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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
CURSO DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA

Aline Milena Castro Matos

“OH SORA”:
ENTRE ESPALHAÇÕES DE UMA PEDAGOGA PRETA EM UM CENTRO DE
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ADULTO

Porto Alegre
Maio de 2022
Aline Milena Castro Matos

“OH SORA”:
ENTRE ESPALHAÇÕES DE UMA PEDAGOGA PRETA EM UM CENTRO DE
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ADULTO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Comissão de Graduação do Curso de Licenciatura
em Pedagogia da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial e obrigatório para obtenção do
título de Licenciatura em Pedagogia.

Orientadora: Profa. Dra. Daniele Noal Gai

Porto Alegre
Maio 2022
[RESUMO]
As narrativas compartilhadas nesta pesquisa são a materialização da palavra oral e do
cotidiano, de uma estudante de Pedagogia preta, que trabalhou em um Centro de Atenção
Psicossocial Adulto (CAPS). As minhas intenções, de afirmação de uma produção, de ser uma
pedagoga em um espaço dito como da saúde e de teorizar sobre esse lugar, provoca que
pensemos o deslocamento da Pedagogia como categoria profissional. Em busca de uma
abordagem teórica-metodológica que esteja aberta para as poesias do cotidiano e ao não
enunciável do ensino-aprendizagem, a metodologia desta pesquisa foi desenvolvida durante o
ato de pesquisar e é denominada de Espalhações. Defendendo que não há pesquisa isenta do
olhar e ação do pesquisador, procuro espalhar-me nas páginas da pesquisa, reivindicando,
assim como Audre Lorde, a energia criativa das mulheres que culturalmente são ensinadas a
dissociar o erótico de seus afazeres.

PALAVRAS-CHAVES: Pedagoga Preta; Narrativas; Espalhações; Educação e Saúde; Centro


de Atenção Psicossocial.
[AGRADECIMENTOS]

Gratidão:

A Deus, pela minha vida e pela minha saúde.


A minha mãe, Juliane. Palavras não seriam o suficiente para expressar a minha
gratidão por todo o suporte e palavras de incentivo. Obrigada por dar tudo de si para que eu
pudesse estar na universidade. Esse passo é nosso!
Ao Antônio, pela escuta e apoio. Foram inúmeras as vezes que eu pensei em desistir
da academia e tu sempre foi meu apoio em meio às durezas do dia-a-dia. Obrigada pelo
carinho, obrigada pelo amor!
A minha orientadora de vida, Dani Noal! Eu não poderia ter sido orientada por alguma
pessoa mais competente, cuidadosa e ética. Obrigada por me acompanhar desde o 1º semestre
da graduação e fazer com que eu apreciasse ser extensionista e pesquisadora.
As amigas: Miriam, Kátia, Victória e Karol pelos infinitos diálogos e desabafos
durante essa escrita.
A Dani Dalmaso e Cleni Terezinha por tudo!
Aos usuários, amigos e amigas do CAPS. Nosso tempo juntos me tornou uma
profissional e uma pessoa muito melhor!
Para Silvia Leticia Matos,
queria que você estivesse nesse momento.
[SUMÁRIO]
RASTROS DAS ESPALHAÇÕES

#01

CONCEITOS …………………………………………………………..……….08

O AMOR CABE NA ACADÊMIA? [Nota da escritora] ...................................10

#02

DAS MINHAS INTENÇÕES E INQUIETAÇÕES ………………….…….…14

O que é uma pesquisa de Espalhações?……………………………………..……17

#03

UMA PEDAGOGA ENTRE TERRITÓRIOS……......................................... 28

Ser professora é ser pedagoga? ………………………………………….……….29

Ser pedagoga é ser professora? …………………………………………..……....31

A pedagogia em saída: do chão da escola ao chão do CAPS ……………………33

Escuta pedagógica…………………………………………………………...…...35
#04

UMA ESCRITA DA EDUCAÇÃO NA SAÚDE..……………………….…... 38

Olhar para a potência e não para o déficit……………………………………… 39

#05

O QUE FICA DAS ESPALHAÇÕES………………………………….……. 44

#06

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………………………….…….46

#07

ANEXO……………………………….……………………………….…….49
#1
[CONCEITOS]

RAPS: Rede de Atenção Psicossocial, instituída pela portaria 3.088 de 2011 (BRASIL, 2011)
“[...]cuja finalidade é a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para
pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de
crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).” (Brasil, 2011).
Um dos serviços da rede são os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

CAPS II: O Centro de Atenção Psicossocial II, é um serviço do Sistema Único de Saúde
(SUS) que compõem a Rede de Atenção Psicossocial, especializado no tratamento de pessoas
que possuem transtornos mentais graves, cuja severidade justifique a permanência em
ambiente de cuidado intensivo, comunitário e personalizado. Tem por princípio fornecer
atendimento multidisciplinar, e sua equipe assistencial conta com profissionais da área de
Enfermagem, Psiquiatria, Educação Física, Terapia Ocupacional, Serviço Social, Psicologia e
Pedagogia.

RISM: Residência Multiprofissional em Saúde Mental é uma Especialização em saúde, que


investe na qualificação de profissionais para a atuação no campo de atenção psicossocial,
promoção e educação em saúde mental.

USUÁRIOS: O termo usuário (BRASIL, 2008), refere-se a um sujeito que não é passivo
(paciente) quanto ao seu tratamento. Pelo contrário, entende-se o usuário como uma pessoa de
autonomia, ativo nas tomadas de decisões de seu plano terapêutico.
PRETA/O: Utilizo ao longo deste trabalho, e da vida pessoal, como contraponto ao termo
negra/o, considerando que este último é popularmente utilizado para referir-se a algo ruim,
ofensivo, exótico.
o amor cabe na acadêmia?
[nota da escritora]

A pergunta que escolho para começar essa escrita é uma


provocação para pensar o amor como um conceito fundamental para
a cura de uma universidade e escritas sem paixões. Poderá causar
estranheza ao leitor, um trabalho de conclusão de curso preocupado
como uma artesania da palavra, por isso, adianto-me ao relatar que
essa monografia, de uma pedagoga preta, preocupa-se em tecer uma
escrita inventiva, sensível, filosófica e poética, como forma de
restauração da academia com os pesquisadores que são
verdadeiramente apaixonados por suas pesquisas e que defendem
esse eros.

As narrativas aqui compartilhadas são a materialização, da


palavra oral e das pequeninas coisas e causos do cotidiano, de uma
estudante de Pedagogia preta, extensionista e bolsista de iniciação
científica, que trabalha em um Centro de Atenção Psicossocial II
Adulto. É a estética visual desta pesquisa que me recorda como é
sentir tesão pelo ato de pesquisar com leveza, mesmo com todas as
complexidades que acompanham as temáticas centrais deste trabalho:
pesquisadoras pretas, saúde mental e a atuação da pedagoga e do
pedagogo em um CAPS. Procuro essa leveza no ato de pesquisar,
pois: “[...] nenhuma teoria que não possa ser comunicada numa
conversa cotidiana pode ser usada para educar o público.” (hooks,
2017, p. 90) e aqui busco me comunicar com todos que estejam
abertos a uma “[...]teoria preocupada com o seu processo de
construção” (hooks, 2017, p. 196).
Embora as questões étnicas raciais não sejam o foco principal
desta pesquisa, elas estão intrínsecas no cotidiano desta pesquisadora
preta. Colocando em pauta o silenciamento dos conhecimentos
plurais do povo preto que ainda perpetuam as universidades.
Silenciamento que reproduz e reforça o ensino para uma classe
elitista (hooks, 2019). Diante disso, escolho para dialogar nessa
composição, teóricas-pesquisadoras pretas, que são referências
naquilo que fazem, para afirmar suas produções, considerando a
minha própria compreensão sobre o que é o amor na academia, a
partir das reflexões raciais, e de como a população preta é
desassistida no ambiente universitário.

Defendendo que não há pesquisa isenta do olhar e ação do


pesquisador, espalhar-me-ei nessas páginas, reivindicando, assim
como Audre Lorde, a energia criativa das mulheres que culturalmente
são ensinadas a dissociar o erótico de seus afazeres.

Espero que essa leitura lhe cause afetações.


Imagem 1: Colagens vivas. Fonte: Arquivo da autora
#02
“O mais importante para todas nós é a necessidade de
ensinarmos a partir da vivência, de falarmos as
verdades nas quais acreditamos e as quais conhecemos,
para além daquilo que compreendemos. Porque somente
assim podemos sobreviver, participando de um processo
de vida criativo e contínuo, que é o crescimento.”
(LORDE, 2019, p. 55)
14

DAS MINHAS
INTENÇÕES E INQUIETAÇÕES

Essa escrita trás intenções que surgem através das vivências, leituras, diários de
campos, atendimentos individuais e em grupo com usuários de um Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) Adulto. Intencionou-se uma pesquisa em educação e saúde, a partir de
uma perspectiva pedagógica, construída com referenciais teóricos pretas e pretos.

Afirmando a produção intelectual de uma população deixada sempre a margem e


erroneamente reduzida a um único discurso, intenciona-se que o leitor possa pensar:

Que conhecimento tem sido parte das agendas acadêmicas? Quais conhecimentos não
fazem parte? Que conhecimento é esse? Quem está autorizado a ter esse
conhecimento? Quem não está? Quem pode ensinar esse conhecimento? Quem não
pode? Quem habita a academia? Quem está às margens? E, finalmente: quem pode
falar? (KILOMBA, 2019, p.50).

As minhas intenções: de afirmação de uma produção, de ser uma pedagoga em um


espaço dito como da saúde, de teorizar sobre esse lugar, provocar que pensemos o
deslocamento da Pedagogia como categoria profissional. Assim, essa pesquisa vai
espalhando-se, preocupada em fugir das representações que unificam os diferentes corpos, os
diferentes saberes, e ocupa-se de pensar nas possibilidades de existência na diferença.

Uma pesquisa quase nua. Quase porque não dispo-me totalmente, entendo que é
importante pequenos fragmentos, que somente esta pesquisadora sabe sobre este trabalho.
Trabalho que vai transformando o desejo de compartilhar as minhas experiências em ação
concreta. Uma ação concreta de aprendizagem (LORDE, 2019).

Uma pesquisa que convoca ao autoquestionamento, que convoca a confusão e entende


esse momento de confusão como descolonização (KILOMBA, 2019). Intenciona-se que essa
confusão provoque um olhar emancipatório, um olhar de uma perspectiva outra daquilo que
se sabe, para que se possa transformar o silenciamento em ação (LORDE, 2019).

Outros pingos e respingos dessas intenções, são as minhas inquietações.


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Primeira inquietação de escrever sobre inquietações: como registrar?

Poderia eu colocar
as minhas inquietações,
como lista de mercado,
nessa escrita de Trabalho de Conclusão de Curso?

Poderia eu discorrer rapidamente o que sinto quando pesquiso? Como fazer dessa
escrita uma experiência? Como espalhar nessas páginas os amores e desamores encontrados
ao longo desse processo de ser uma pedagoga em um CAPS?

Apoio-me numa escuta. Uma escuta do que agita e acalma. Para encontrar o sul
(FREIRE, 1992) e aterrar. Uma escuta do que agita e acalma para entender a importância de
afirmar a Pedagogia em espaços não-escolares.

Agita-me toda vez que escuto: “legal, tu quer ser professora!”, quando falo que curso
Licenciatura em Pedagogia. Acalma-me toda vez que encontro outros corpos que buscam um
movimento de expansão da educação para além do território da sala de aula.

Uma educação que está entre, descobrindo e sustentando um lugar outro da pedagoga
e do pedagogo, conectando com outras perspectivas pedagógicas, no caso desta pesquisa,
perspectivas pedagógicas do cuidado em saúde e educação.

Uma escuta do que agita e acalma para entender que por falta de entendimento de
gestões e de financiamentos dos órgão responsáveis, a Pedagogia deixou de ser contemplada
nos editais de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (RIS-SMC/UFRGS), nos restando um pouco
menos do que já tínhamos.

E porque fazer parte do quadro de categorias profissionais com possibilidade para


fazer a especialização em Residência Integrada Multiprofissional interessa para essa pedagoga
em formação? Me parece necessário compartilhar com o leitor que os espaços na área da
saúde com possibilidade de atuação da pedagoga e do pedagogo são restritos e são poucas
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vagas, essas quando existentes, nas áreas ambulatoriais, assistenciais e em secretarias de


saúde.

Entre brechas e frestas, os estágios na modalidade curricular obrigatório e os estágios


não obrigatórios remunerados, têm sido a porta de entrada para pensar em outros modos de
habitar esses espaços da saúde. O Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul tem na disciplina de Seminário e Estágio Docente I Educação
Especial, Processos e Práticas uma inserção importante de pedagogas em formação no campo
da saúde, tanto em hospitais quanto serviços de saúde mental na modalidade de estágio
curricular alternativo obrigatório.

Embora necessários, os estágios não são o suficiente para essa pedagoga em processo
de finalização da graduação, que sente vontade de ir mais. Por isso, a escuta do que agita: a
especialização através da RISM-SMC deixou de abrir vagas para Pedagogia, nos tirando as
poucas possibilidades de inserção nesses espaços para compor equipes multiprofissionais em
uma especialização, com o objetivo de expansão de estudos e formação em serviço. De novo.

São os amores e desamores que embalam e inspiram esta escrita que: defende,
denúncia, explica, alega, narra e diz de maneira intencionada o que pode dizer. Entendo esse
movimento como levantamento de informações, afinal “[...]o modo de contar/relatar/dizer
também é de produzir dados” (PINTO; VASCONCELOS, 2020, p.157).

Para construir essa artesania do pensamento (GAI; MATOS 2021), da palavra, da


escrita e da vida, convoco Grada Kilomba (2019) com “Memórias da plantação: Episódios de
racismo no cotidiano”, Audre Lorde (2019) com trechos de “Irmã Outsider” e. por fim,
convoco bell hooks (2017), “Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade",
para que as quatro mulheres possam correr o risco de falar no centro (KILOMBA, 2019, p.
67).
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O QUE É UMA
PESQUISA DE ESPALHAÇÕES?

Em busca de uma abordagem teórico-metodológica que esteja aberta para as poesias


do cotidiano e ao não enunciável do ensino-aprendizagem, a metodologia dessa pesquisa foi
desenvolvida durante o ato de pesquisar, e é denominada de espalhações.

As espalhações, assim como a cartografia (COSTA, 2014), leva necessariamente em


consideração as artes e a filosofia, não comparando os sujeitos, sem desqualificar ou
qualificar qualquer ação, mas afirmando a diferença em si. Uma pesquisa de espalhações
afirma a potência daquilo que é descoberto durante a ação.

Encontro nas espalhações um modo de investigação que requer três passos para o seu
desenvolvimento: vivência; processo; materialidades:

As Vivências referem-se aos pesquisadores e todo o subjetivo, que fazem delas e


deles os seres únicos que são: O que gosta? O que não gosta? Que tipo de educação teve? O
que acredita? Como se mantém?

Essas são apenas algumas perguntas que possibilitam o pensamento daquilo que é
característico de cada uma e cada um. As vivências, e os modos como elas são construídas,
são o que de fato trazem os pesquisadores ao momento presente da investigação, o que
reverbera naquela ou naquele é o que faz ela ou ele chegar até ali.

Para esta autora, que vos escreve, reconhecer que todos aqueles que me antecederam,
em tudo aquilo que eu faço e vivo, são partes essenciais no processo de uma narrativa
presente, é preservar as memórias e vivências de um lugar sagrado e de resistência. (GOMES,
2019).

As minhas vivências de mulher preta, estudante de Pedagogia, que ingressou na


universidade pelo seu sistema de cotas, são as que trago para essa pesquisa e o que me motiva
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a pensar o processo de desenvolvimento deste trabalho acadêmico. Entendo que essa abertura,
de compartilhar o que passa por essa corpa (GOMES, 2019) é o que me aproxima do leitor e,
assim como Audre Lorde (2019, p. 105), afirmo que: “[...] essa é a intimidade da investigação
que é necessária para ensinar verdadeiramente, para escrever, para viver.”.

Processo, gosto de pensar esse segundo passo, para entender as espalhações como
uma metodologia de pesquisa, subdividido em dois momentos: o processo de sistematização
ou escrita e o processo de intervenção.

O primeiro, o processo de sistematização ou escrita, que necessariamente envolve um


documento, um arquivo, uma folha em branco, que vai ganhando cores, tons, linhas e
imagens, através do ato de espalhar-se através das páginas. Esse primeiro momento foi o que
mais tive dificuldade, há meados de um ano atrás (ano civil 2021 e semestre letivo 2020/02),
quando comecei a escrever esse trabalho de pesquisa em meio a pandemia do coronavírus.

Senti-me desafiada a ter que “organizar” os meus pensamentos e sensações em uma


coisa só, uma monografia. Descobri ao longo desta escrita que não deveria ter medo de
lentificar o meu próprio processo. Me permitir deixar essa pesquisa alguns meses de molho
foi o que possibilitou o amadurecimento do processo dessa escrita.

Quando pontuo o processo de sistematização não me refiro a apenas sentar e escrever,


me refiro a entender justamente o tempo de uma escrita e que ela, por ela mesma, seja de uma
linguagem acessível. Uma escrita acessível quer dizer que pessoas fora do ambiente
universitário também possam compreender o que pesquisamos, afinal elas pertencem a
comunidade acadêmica.

A segunda subdivisão, dentro do processo, nomeio como o processo de intervenção: A


pesquisa com espalhações compreende que uma composição não se desenvolve sem
interferência do olhar de quem pesquisa e dos recortes que se interpõem e que se propõem, a
pesquisadora e a escrita.
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Por isso, o processo de intervenção é o grande ato, o acontecimento. Durante essa


composição as intervenções são o cotidiano dessa estagiária de pedagogia em um CAPS. Ao
olhar para esse pequeno território como espaço de investigação, misturei:

Emoção. Empolgação. Paixão. Cansaço.


Leituras. Anotações. Sensação de não fluidez.
Mais leituras. Pausa. Revisão de texto.

Olhar atento para o espaço e para as primeiras propostas. Constante revisitação de


pesquisa. Novamente paixão. Poderia alguém produzir alguma narrativa sem entregar-se a
ela?

Visualidades: o que se produz a partir das vivências da pesquisadora e do


processo de intervenção? Como transformar a criação em mais criação, para que de fato se
tornem espalhações?

Encontro nos meus diários de campo, nos registros de atendimentos coletivos, nos
atendimentos individuais, nas oficinas terapêuticas e nos seminários do CAPS, uma forma de
produzir paisagens vivas, sendo uma educadora nas minhas produções, proposições e
resultados, colocando a vida como uma obra aberta, como uma obra em artesania, como
materialidades e visualidades em espalhação.

Cuidadosamente fiz escolhas e convites, através desse modo de fazer pesquisa. As


visualidades escolhidas, para troca e partilha de dados, neste trabalho de conclusão de curso,
foram dois diários compartilhados e o registro de uma conversação.

Os diários compartilhados, que cabem no bolso, foram confeccionados com as folhas


de quatro antigos diários de campo que utilizei ao longo da minha passagem no CAPS e nos
meus grupos de estudos.

As folhas em brancos que sobraram dos diários usados, foram rasgadas e arrematadas
com barbante, formando um caderninho de vinte e cinco (25) folhas, reunindo diferentes
formas, cores e texturas.
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Todo o material foi envolto em um tecido, também arrematado com barbante. Essa
descrição detalhada do diário compartilhado é importante para que se possa sentir, mesmo que
à distância, como leitora ou leitor, o cuidado com o material produzido.

Diante do segundo ano de pandemia de Covid-19, os diários compartilhados também


foram ofertados de maneira virtual, para que as convidadas para essa composição pudessem
escolher a maneira que se sentissem mais confortável de participar.

Foi considerado também, na oferta dessa forma de participação virtual, o tempo e


diferentes possibilidades que os diários compartilhados virtuais poderiam abrir, construir,
ofertar através de: imagens, fotografias, músicas, sites, redes e links.
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Imagem 2: Construção dos diários. Fonte: Arquivo da autora


22

Imagem 3: Tons e marcas. Fonte: Arquivo da autora


23

2 DE MAIO DE 1958. Eu não sou indolente. Há tempos que eu


pretendia fazer o meu diário. Mas eu pensava que não tinha valor e
achei que era perder tempo. Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar
as pessoas que eu conheço com mais atenção. Quero enviar um sorriso
amável às crianças e aos operários. (CAROLINA DE JESUS, 2016, p.
24).

Diário, um objeto simples que é capaz de permitir que possamos pegar em nossas
mãos todas as nossas emoções que foram traduzidas em palavras, riscações (MATOS, 2022)
ou desenhos.

Cultivar um diário é cultivar intimidade. Assim como Carolina Maria de Jesus1


ansiava por escrever nas páginas de seu diário como forma de sentir, denunciar e retratar o seu
cotidiano na favela, intenciona-se que os diários compartilhados sejam uma possibilidade de
espaço de criação, segurança e intimidade, para dialogar com as experiências, entendendo que
esse espaço de registro revela as nossas mais profundas sensações.

1 DE JULHO. Eu percebo que se este Diário for publicado vai magoar muita
gente. Tem pessoa que quando me vê passar saem da janela ou fecham as
portas. Estes gestos não me ofendem. Eu até gosto porque não preciso parar
para conversar. (...) Quando passei perto da fábrica vi vários tomates. Ia pegar
quando vi o gerente. Não aproximei porque ele não gosta que pega. Quando
descarregam os caminhões os tomates caem no solo e quando os caminhões
saem esmaga-os. Mas a humanidade é assim. Prefere vê estragar do que
deixar seus semelhantes aproveitar. Quando ele afastou-se fui pegar uns
tomates. Depois fui catar mais papéis. Encontrei o Sansão. O carteiro. Ele
ainda não cortou os cabelos. Ele estava com os olhos vermelhos. Pensei: será
que ele chorou? Ou vontade de fumar ou está com fome! Coisas tão comum
aqui no Brasil. Fitei o seu uniforme descorado. O senhor Kubstchek que
aprecia pompas devia dar outros uniformes para os carteiros. Ele olha-me com
o meu saco de papel. Percebi que ele confia em mim. As pessoas sem apoio
igual ao carteiro quando encontra alguém que condói-se deles, reanimam o
espírito. (CAROLINA DE JESUS, 2016, p. 66).

No cotidiano de um serviço psicossocial, presenciamos várias dessas cenas como a


que Carolina de Jesus nos narra através das anotações em seus diários. É através desse objeto

1
Mulher, negra, mineira, catadora de papel e posteriormente escritora. Carolina recolhia os cadernos que
encontrava no material que recolhia, para registrar em forma de diário o cotidiano da vida na favela do Canindé
em São Paulo. Publicou mais de três livros em vida e teve mais seis obras publicadas após a sua morte,
organizadas a partir dos escritos que deixou.
24

de registro que a autora encontra a forma para traduzir as minúcias do dia-a-dia de uma
mulher, preta e pobre, que para a sociedade não vale um tomate caído no chão.

Através de uma percepção sensível, Carolina entrega-se a uma artesania da escrita,


que de forma muito particular, vai revelando o que sofre uma corpa (GOMES, 2019) preta.
Embora nem todos consigam transformar a falta em um lugar de possibilidades (KILOMBA,
2019), em Quarto de Despejo (2014), o relato cotidiano vai contra o silêncio e a
marginalização, que também são marcas do racismo estrutural.

Assim como Grada Kilomba (2019, p. 68) esta pesquisa entende que “[...] a margem é
um local que nutre a nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar e de imaginar
mundos alternativos[...]”, por isso, vai se desenvolvendo através da via da sensibilidade, que
não é sinônimo de fraqueza, impulsionada pelos diferentes modos de existir (GAI; MATOS,
2021, p.3).

Compreendo a criAÇÃO como a única forma possível de sobreviver e escrever sobre


ser mulher, preta, pedagoga, com desejo de um trabalho como pedagoga, um trabalho com
educação na saúde.

Os diários compartilhados deste trabalho de conclusão de curso, são uma


correspondência entre mim e duas pesquisadoras que aceitaram esta provocação de
espalhações. Foram confeccionados um diário físico e um virtual, para cada uma das duas
conversações, cada diário corresponde a uma temática central desta pesquisa, que não deixa
de considerar que vivemos “entre experiências” (CADORE et al., 2020, p. 3).

Pautada na ética da responsabilidade, esta pesquisa preocupa-se em preservar a


identidade das pesquisadoras envolvidas no levantamento de informações, entendendo que a
própria metodologia do trabalho exige uma promoção de cuidado. Por isso, as identificações
serão apenas por numeração dos diários:

DIÁRIO 01 (VIRTUAL): Pretende-se discutir sobre a identidade profissional da


pedagoga e do pedagogo. Correspondência entre a pesquisadora e uma estudante de
Pedagogia branca, que atua em ambiente de educação não formal e possui experiência em
CAPS.
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DIÁRIO 02 (FÍSICO): Preocupa-se em olhar para potencialidade pedagógica no


cotidiano de um CAPS. Correspondência entre a pesquisadora e uma pedagoga branca, que é
Acompanhante Terapêutica (AT) e possui residência em saúde mental coletiva.

Uma pesquisa de espalhações que perpassa por um tempo, cuidado e está aberta às
possibilidades de reinvenção na ação do ato de pesquisar. Uma pesquisa que é convidada a
oralidade pela terceira pesquisadora que participa da coleta de dados, para assim produzir uma
conversação entre duas mulheres pretas.

Poderiam duas mulheres pretas (pesquisadora e convidada), se entregarem a essas


espalhações, senão através do olho no olho?

Afinal, o que pode surgir numa conversação, entre mulheres pretas, sobre o processo
de aceitação de identidade, diz de um lugar de fala singular e que requer um acolhimento em
ato.

Embaladas por Stela do Patrocínio2, através do seu falatório em uma entrevista,


encaramos a nossa própria conversação presencial com o intuito de pôr para fora:

E atualmente você bota as coisas pra fora ou pra dentro?


Pra dentro
O que você tá botando pra dentro agora?
O chocolate que eu botei pra dentro
Você que eu tô botando pra dentro
A família toda que eu tô botando pra dentro
O mundo que eu tô botando pra dentro
De tanto olhar
De tanto? Olhar
De tanto enxergar olhar ver espiar
Sentir e notar

2
Mulher, negra, poeta, carioca e “doente mental” - como ela mesmo dizia. Viveu 26 anos no manicômio Colônia
Juliano Moreira na cidade do Rio de Janeiro. Stela do Patrocínio ficou conhecida pelo seu falatório, que depois
da sua morte foi transcrito e organizado em um livro intitulado “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome”.
26

Tô botando tudo pra dentro porque botando


pra dentro eu botei pra fora.
(PATROCÍNIO, 2005, p. 147-152)

Assim, a coleta de dados dessa pesquisa é composta pelas espalhações e narrações


registradas nos diários pessoais desta pesquisadora. Das espalhações trocadas através de dois
(02) diários compartilhados, um com uma estudante de Pedagogia e outro com uma pedagoga
que é Acompanhante Terapêutica. Por fim, conversações e narrativas orais, desta
pesquisadora preta, com uma professora de educação física preta, que atuou durante muitos
anos em um hospital e em um CAPS.
27

#03
“Outro saber que não posso duvidar um
momento sequer na minha

prática educativo-crítica
é o de que, como experiência especificamente
humana, a educação é uma forma de
intervenção no mundo”.
(FREIRE, 2014, p. 96).
28

UMA PEDAGOGA
ENTRE TERRITÓRIOS

Ao iniciarmos uma leitura vamos adentrando um espaço, uma cena, um momento, ou


seja, um recorte. Você, ao iniciar essa leitura está sendo convidada a adentrar alguns
territórios a partir do meu recorte e de uma cena escolhida por mim.

Entre-territórios transita por sensações e marcas dessa corpa (GOMES, 2019), que sai
da atuação em sala de aula e vai para o trabalho pedagógico-terapêutico desenvolvido com
usuários de um CAPS adulto. Entre-territórios, descobrindo e sustentando um lugar outro da
pedagoga e do pedagogo.

Ao chegar na CAPS sou chamada de sora. A sora, assim como na sala de aula onde
se desenvolve a docência com crianças. Essa palavra como forma de expressão vem carregada
de afeto, já como forma de nomeação, me faz constatar as seguintes questões:

- Há uma classificação utilizada para referir-se aos diferentes profissionais da


equipe como os médicos, os enfermeiros, a assistente social, a sora e o sor. A
sora e o sor, são os profissionais de educação física e Pedagogia.

- A segunda constatação: para afirmar a presença da Pedagogia dentro do CAPS


é preciso descolar alguns estereótipos atrelados à profissão, o principal deles é
o de profissional da alfabetização, de alfabetizadora, já que nosso fazer
pedagógico dentro desse serviço de saúde não é a oferta de um espaço de
escolarização.

Essas pequeninas coisas do dia-a-dia são o que possibilitam a compressão de quem é


aquela que está na sala de aula e quem é aquela que está atuando em um centro de atenção
psicossocial.
29

SER PROFESSORA
É SER PEDAGOGA?

Utilizo da dúvida para pensarmos, enquanto categoria profissional, o que caracteriza


uma professora? E mais: toda professora é pedagoga? A pergunta citada ganha destaque nesta
pesquisa, pois ao longo do meu processo formativo as duas palavras, pedagoga e professora,
aparecem como sinônimos, por isso, quero provocar o leitor a pensar: será que realmente são?

A procura de possíveis respostas para as primeiras perguntas, faço um breve recorte


histórico, preocupada em olhar para a formação do próprio Curso de Licenciatura em
Pedagogia no Brasil, para poder pensar qual a influência do seu currículo no processo de
atuação e identificação do ser professora, para novamente questionar:

- Ser professora é ser pedagoga?

O Curso de Pedagogia foi instaurado no Brasil em 1939 pelo decreto nº 1190 de 4 de


Abril, organizado da seguinte maneira: 3 anos para a formação no bacharelado (cuja atuação
se dava em níveis técnicos da educação) e acréscimo de mais 1 ano de estudos em Didática
para a formação na licenciatura (que se destinava à atuação exclusivamente na docência).
Esse acréscimo dos estudos em Didática colocavam em evidência a seguinte concepção: de
um lado está o método e de outro está a prática (FURLAN, 2008).

Questionado, desde sua origem, o Curso de Pedagogia passou por várias alterações em
seus programas de ensino, propostas pedagógicas e organizações curriculares, o que faz com
que a discussão em torno da identidade deste profissional tenha sofrido muitos descréditos
pessoais e sociais. Aqui temos o ponto chave para pensar uma construção em fragmentos, e
que necessitava de cŕedito frente aqueles que questionavam a oferta frente a nível superior dos
cursos de Pedagogia, já que diante desse cenário iniciaram-se investimentos organizacionais
no cenário escolar.
30

Hoje, embora a Licenciatura em Pedagogia já tenha encontrado suas próprias bases


para se firmar como curso superior e que exista um senso comum na sociedade sobre o
profissional que se forma nessa licenciatura, bem como seu lugar de atuação, ainda há
inúmeras discussões acerca do currículo dessa graduação. Enquanto uns defendem as
habilitações para dar ênfase em uma área específica de atuação do profissional de pedagogia,
outros tentam sustentar a amplitude de um currículo, preocupados que os estudantes tenham
bem mais que a oferta de uma única prática.

Nessa perspectiva, vale ressaltar que são amplas as possibilidades de formação no


curso de Pedagogia. O recorte a ser efetivado pelas instituições formadoras,
entretanto, vincula-se às condições específicas de cada uma, entre as quais a
existência de um corpo docente qualificado, a capacidade de desenvolver pesquisas e
uma infraestrutura adequada. Não se trata, portanto, de abranger um amplo leque de
opções, mas sim de escolher e verticalizar aquelas áreas priorizadas no Projeto
Pedagógico da Instituição formadora. (ANFOPE, 2021).

Diante disso, retorno a pergunta inicial:

- Ser professora é ser pedagoga?

Buscando fazer o deslocamento desses conceitos, esta pesquisa entende que toda
pedagoga pode ser professora, mas nem toda professora é necessariamente pedagoga. Aqui
poderia abrir mais alguns pontos, sendo eles: as demais licenciaturas e a formação em
magistério. Preocupada em chegar no direcionamento: espaço que a Pedagogia pode atuar,
não me debruçarei sobre essas reflexões, que poderão reverberar de forma mais forte em
outros momentos.
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SER PEDAGOGA
É SER PROFESSORA?

Inverte-se a pergunta. Toda pedagoga é professora? Mesmo que as reflexões acima já


evidenciem que a docência não é a base da Pedagogia é importante destacar, de forma
objetiva, que embora a habilitação em Pedagogia permita atuar nas redes de ensino, esta é só
uma dentre tantas possibilidades de atuação desta profissional.

Imagem 4: Diário da pesquisadora Fonte: Arquivo da autora.

Ser pedagoga tem a ver com um saber da experiência da educação, a profissional de


Pedagogia é aquela capaz de olhar e constituir finalidade para ações, entendendo as lógicas
formativas que os sujeitos envolvidos possuem, destinando assim, uma atenção para as
minúcias do cotidiano e todas situações de aprendizagens desse dia-a-dia.

Portanto, cabe a pedagoga estar atenta aos interesses e objetivos do espaço que se está
atuando, para que assim a sua abordagem pedagógica seja efetiva e efetivada. Por isso, esta
pesquisa defende o descolamento do “ser pedagoga” e “ser professora”, uma vez que todo
espaço que possui processos educativos é um lugar de atuação da pedagoga.
32

Imagem 5: Diário 01 - Trocas com uma pedagoga que é Acompanhante Terapêutica. Fonte: Arquivo
da autora.
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A PEDAGOGIA EM SAÍDA:

DO CHÃO DA ESCOLA AO CHÃO DO CAPS

Quando comecei a atuar em um CAPS, uma das primeiras coisas que me chamou
atenção foi a convocação para escuta e experimentação do silêncio. Falas calmas. Tons
serenos e lentificados. Eu recém havia saído da sala de aula com crianças, habituada a usar
um tom de voz alto, a estar fazendo uma intervenção atrás da outra. Na sala de aula não
aprendemos o tempo do silêncio. Na sala de aula o silêncio indica outros fatores para a
professora e sua docência.

Imagem 6: Cantos do diário. Fonte: Arquivo da autora

Diferente dos silêncios que indicam uma tentativa de docilização dos corpos.
Diferente das lógicas manicomiais que até hoje buscam atualizar-se em algumas práticas do
cotidiano do cuidado em saúde mental.

O silêncio que permite o eco e a reverberação também precisam existir, mas para isso
algumas vozes precisam se recolher para oportunizar que outras existam. Diante disso, faço
um convite para pensarmos: Quem são as pessoas que têm pautado isso?

O silêncio no qual eu proponho nessa escrita é uma forma de trazer a ruptura da ação
da professora em sala de aula e a ação da pedagoga que chega em um CAPS. Ao transitar
entre esses territórios, vou compreendendo que naquele serviço de saúde mental, eu não era a
professora.

A procura da compreensão para sustentar e entender a minha permanência enquanto


profissional da educação em um Centro de atenção psicossocial, em uma equipe com
psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, enfermeiros, educadores físicos e terapeutas
34

ocupacionais, áreas voltadas para saúde ou assistenciais, fui me questionando: o que pode
uma pedagoga em um CAPS? O que da nossa categoria os outros profissionais não poderiam
exercer? Todas as atividades da Pedagogia são transversais? Porque a educação deve atuar em
um espaço de saúde? Será que a equipe do CAPS percebe os processos pedagógicos como
próprios do fazer da pedagoga?

Esse último questionamento vem pois existe uma tendência das atividades de relações
humanas serem incorporadas por qualquer profissional, o que me preocupa é que mesmo com
trabalhos transversais todas as categorias profissionais possuem o seu campo de atuação bem
marcado, enquanto as atividades executadas por um profissional de Pedagogia carregam uma
impressão de que podem ser realizadas por qualquer um.

O olhar da Pedagogia durante a execução de alguma atividade em um CAPS é sempre


um olhar que entende que o usuário passa por um processo de desenvolvimento, um processo
de aprendizagem, um processo de desenvolvimento cognitivo, de assimilar e executar, e que
entre a assimilação existe um caminho interventivo, de um mediador preocupado com o
processo. A Pedagogia é uma categoria que vai pensar um processo de inclusão dos usuários
do CAPS nos diferentes níveis de desafio, exercício, experimentação e desenvolvimento de
habilidades, tudo em uma mesma proposta.

O que observo em minha pequena trajetória na saúde mental é uma tendência dos
grupos e oficinas a diminuir o nível de aprendizagem de uma tarefa ou preocupar-se muito
com o resultado final. Embora o resultado final seja importante para que o usuário perceba
que ele é capaz de realizar uma tarefa, não cabe a nenhum profissional passar por cima da
autonomia daquele sujeito durante o processo.
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ESCUTA PEDAGÓGICA

Penso no conceito de escuta pedagógica justamente para distingui-la do que


nomeamos de “escutar o outro”, bem como, distingui-la da escuta que é feita em um
consultório terapêutico.

Imagem 7: Diário compartilhado. Fonte: Arquivo da autora

No meu encontro com os usuários do CAPS o silêncio sempre me remeteu a um


exercício de escuta. Não uma escuta qualquer, que todos nós somos capazes de fazer com um
amigo, com um primo ou qualquer outro familiar, mas sim uma escuta intencional, que requer
abertura do escutador e um aceite para navegar na experimentação de ouvir.

Da recepção ao consultório, da cozinha à sala de convivência, os usuários são


estimulados a interagirem entre si e com a equipe. Nesses ambientes de movimentações
escutei muitas conversas e propus muitas delas. O que sempre me chamou a atenção nessas
conversas era que muitas delas estavam esvaziadas de presença do escutador, não fisicamente
falando, é claro.
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“Quando nos dispomos a escutar, ficar em silêncio basta?”. Entendo como escuta
pedagógica uma escuta presente, uma escuta que dentro do nosso contexto de serviço de
saúde mental envolve uma devolutiva, que não necessariamente será uma resposta frente a
alguma atitude a ser tomada, mas sim uma escuta a partir de uma voz que se recolhe de
maneira intencional para que outras vozes possam ecoar. A escuta diz da necessidade do
usuário de falar e não do profissional a exercer algum tipo de “poder” sobre o escutado.

Conforme uma das cartilhas do HumanizaSUS (BRASIL, 2011) a escuta


“[...]significa, num primeiro momento, acolher toda queixa ou relato do usuário mesmo
quando possa parecer não interessar diretamente para o diagnóstico e tratamento.”, o que faz
desse movimento, uma postura ética que fortalece o protagonismo do usuário.

Imagem 8: Diário compartilhado: Riscações. Fonte: Arquivo da autora

A escuta de uma pedagoga é? Intencional. Postura ética. Entende que o corpo fala.
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#04
“Celebro um ensino que permita as

transgressões - um movimento contra as


fronteiras e para além delas. É esse movimento
que transforma a educação na prática da
liberdade." (hooks, 2017, p. 24).
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UMA ESCRITA
DA EDUCAÇÃO NA SAÚDE

Onde estão as escritas da educação na saúde a partir de uma perspectiva pedagógica?


O que tem sido produzido sobre essas áreas? Neste capítulo, preocupo-me em trazer pequenos
relatos de uma Pedagogia engajada (hooks, 2017) em ação no CAPS.

Uma Pedagogia engajada é necessariamente pautada na educação como prática da


liberdade (hooks, 2017). Como pedagoga, me reconheço articulando e transformando
processos educativos do cotidiano, provocando o usuário a ocupar o protagonismo das
atividades potenciais.

Propor uma atividade terapêutica preocupada com os processos inclusivos e


colaborativos, sempre foi um grande desafio, afinal como partir dos interesses que alguns
usuários nem sabiam que tinham? Como criar com os usuários que não manifestavam
desejos? Não sabiam por que não eram escutados por escutadores atentos? Não manifestavam
por que não eram incentivados a transgredir e transpassar dificuldades com suporte e
mediação?

Naquele nosso pequeno território (MATOS, 2021) o estímulo precisava ser muito
ativo, para que o usuário participasse pela primeira vez de alguma atividade conosco.
Considero que essa prática só criava um fluxo, pois os usuários demonstravam engajamento
em cada proposição e o que vinha a partir eram méritos dos usuários e não do propositor.
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OLHAR PARA A POTÊNCIA


E NÃO PARA O DÉFICIT

Nos dias de atividades os corredores brancos ganhavam cores, movimentos e vozes.


Mais do que propostas planejadas a atividade era composta por puxar a cadeira e sentar junto
com o grupo, a atividade já inicia no “oi” dado para o porteiro na entrada do serviço.

Promovendo o exercício da cidadania e acesso cultural, junto com Van Gogh, Mário
Quintana, Fernando Pessoa, Cora Coralina, Emicida, Gilberto Gil, Elza Soares e tantos outros,
descobrimos nossas próprias artistagens (CORAZZA, 2006).

Da nossa sala de convivência à uma feira do livro no centro da cidade, sempre tive o
cuidado de capturar, seja no gesto ou na fala, os movimentos que os usuários faziam em
contato com o território. Insiro aqui alguns registros da nossas minúcias do cotidiano:

“Eu fiz até um vídeo, sora”


Sobre a visitação a uma exposição de artes em um shopping center da cidade.

“A minha tá ali!"
Reconhecimento de sua produção, que foi exposta em uma banca na feira do livro da cidade.

“É mais legal acompanhado”


Sobre uma saída em grupo em um local que o usuário já havia visitado.

“Posso mostrar uma poesia?”


Pergunta frequente durante nossos encontros online em meio a pandemia de Covid-19.

“Faltou o Mario Quintana, ele é da minha terra”.


Sobre a dinâmica feita com o grupo, envolvendo alguns escritores e artistas.

“Que horror isso”.


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Comentário expresso durante reflexão sobre os significados de expressões racistas do nosso


cotidiano.

“É o dia da consciência negra? Racismo né?”


Comentário expresso durante a introdução do “Jogo das expressões” criado a partir da cartilha
“O racismo sutil por trás das palavras” (BRASIL, 2020).

“Eu sou a rainha do STOP”


Durante um dos nossos encontros online em meio a pandemia de Covid-19.

“Eu quero que a pandemia passe pra gente estar tudo aí”
Durante um dos nossos encontros online em meio a pandemia de Covid-19.

Imagem 9: Nossos pés nos quadros de Van Gogh Fonte: Arquivo da autora.
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Imagem 10: Bolas com sacolas. Fonte: Arquivo da autora.

Imagem 11: Confecção do varal de poesias que expomos na feira do livro da cidade. Fonte: Arquivo da autora.
42

Imagem 12: Mãos pretas. Fonte: Arquivo da autora.

Imagem 13: Pés soltos. Fonte: Arquivo da autora.


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#05
“E nos lugares em que as palavras das
mulheres clamam para ser ouvidas, cada uma

de nós devemos reconhecer a nossa


responsabilidade de buscar essas
palavras, de lê-las, de compartilhá-las e de
analisar a pertinência delas na nossa vida”.
(LORDE, 2019, p. 24).
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O QUE FICA
DAS ESPALHAÇÕES?

Muitas coisas transitam pelo corpo dessa estudante de Pedagogia


em processo de conclusão da graduação.

O eco dos pensamentos até a sensação de frio na barriga ao


chegar em um espaço novo, como pedagoga, como educadora, em
ação pedagógica e proposições de acolhimento e escutas
pedagógicas.

Os entrecruzamentos entre Pedagogias, artes e saúde mental, são


embasamentos e embalam, de forma viva, presente, pulsante, esta
pesquisadora, esta pesquisa e o que levo comigo dela.

Durante o processo de escrita muitos fragmentos foram colados,


bordados e falados. Muitos outros foram se dissipando conforme
não se encaixavam mais na pesquisa. Como concluir um trabalho
que por si só é inconclusivo?

Afinal, não propus em nenhum momento a chegada em algum


lugar, pelo contrário, abri meus diários de campo, os diários
virtuais compartilhados, as conversações com minhas
colaboradoras da pesquisa, as escrituras das autoras selecionadas
para embasar este texto, as minhas vivências e de mais algumas
mulheres, para pensar uma escrita em educação e saúde.

Para pensar a produção intelectual desta estudante preta, que trás


para este manuscrito outras mulheres pretas e utiliza da sutileza
das artesanias para ir fazendo pequenas problematizações e
denúncias.
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O que fica das espalhações são as pequenas transgressões


possíveis (hooks, 2019, p. 24): o que pode uma pedagoga preta
em um centro de atenção psicossocial. Tudo que pode uma
pedagoga preta em um centro de atenção psicossocial.

Embora não explícito, de forma objetiva, em nenhum outro


momento, minha intenção sempre foi a de sustentar e teorizar
sobre o valor potencial da nossa categoria profissional no serviço
de saúde mental.

Teorizar para que se possa problematizar e entender que apesar das


práticas nos CAPS serem muitas vezes transdisciplinares, todas as
outras áreas atuantes possuem o seu pequeno território bem
marcado, como por exemplo: aplicar injeções; dar diagnóstico a
partir de uma sigla de manual clínico; fazer exercício físicos;
ofertar uma escuta terapêutica etc.

Por isso tudo, defendo que é preciso mais pesquisas que sigam
apontando o que é próprio da área da pedagogia e da atuação da
pedagoga nos locais de atenção à saúde mental, para que assim
possamos ir abrindo mais brechas e frestas possíveis de atuação.

Optei por espalhações com pedagogas mulheres pretas acerca da


educação e saúde mental em uma investigação que entreencontra nas
sutilezas do dia-a-dia afirmar a energia criativa das mulheres no
trabalho, no amores, na vida e na linguagem, afirmando essa força
vital (LORDE, 2019).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Disponível em:
https://www.anfope.org.br/wp-content/uploads/2021/04/Nota-ao-CNE-sobre-Proposta-DCNS-
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nacional de humanização. Brasília, Ministério da Saúde, 2011.

Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização – HUMANIZASUS.


Documento de base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília.2008.

BRASIL. Secretaria da Justiça e Cidadania. O racismo sutil por trás das palavras. Brasília.
2020.

Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a


Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único
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GAI, Daniele Noal; MATOS, Aline Milena.; Fernand Deligny. Artesanias da Diferença:
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LORDE, Audre. Irmã Outsider. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Autêntica
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2020.
49

ANEXO 1
50

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