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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

HENRIQUE CUNHA DE LIMA

A TESE DA ANIMAÇÃO PROGRESSIVA EM TOMÁS DE AQUINO E SUAS


IMPLICAÇÕES ÉTICAS: O INÍCIO DA VIDA HUMANA E O PROBLEMA DO
ABORTO

RIO DE JANEIRO
2021
2

HENRIQUE CUNHA DE LIMA

A TESE DA ANIMAÇÃO PROGRESSIVA EM TOMÁS DE AQUINO E SUAS


IMPLICAÇÕES ÉTICAS: O INÍCIO DA VIDA HUMANA E O PROBLEMA DO
ABORTO

Monografia apresentada como requisito parcial à


obtenção do título de bacharel em Filosofia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Guerizoli Teixeira

RIO DE JANEIRO
2021
3

HENRIQUE CUNHA DE LIMA

A TESE DA ANIMAÇÃO PROGRESSIVA EM TOMÁS DE AQUINO E SUAS


IMPLICAÇÕES ÉTICAS: O INÍCIO DA VIDA HUMANA E O PROBLEMA DO
ABORTO

Monografia apresentada como requisito parcial à


obtenção do título de bacharel em Filosofia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Guerizoli Teixeira

Aprovada por:

_____________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Guerizoli Teixeira (orientador), nota 8,5

_____________________________________________
Prof. Dr. Mário Augusto Queiroz Carvalho, nota 8,5

_____________________________________________
Prof. Dr. Markos Klemz Guerrero, nota 8,5

Data: 24/01/2022
4

SUMÁRIO

I INTRODUÇÃO 5
II HILEMORFISMO 9
III ANIMAÇÃO PROGRESSIVA 12
IV IMPLICAÇÕES ÉTICAS 17
V CONCLUSÃO 29
BIBLIOGRAFIA 35
5

1 INTRODUÇÃO

Uma das questões mais polêmicas acerca do pensamento de Tomás de Aquino (1225-
1274) está situada em sua ética. Deparamo-nos por vezes com a alegação de que, por meio dele,
reputado por muitos como o maior fílósofo e teólogo católico, a Igreja Católica chancelava ou
considerava moralmente neutra a prática do abortamento nos estágios iniciais da gravidez.
Geralmente, tal opinião se pretende embasada na tese de Tomás acerca da animação
progressiva do ente concebido1 (tese derivada do hilemorfismo), também chamada animação
mediata ou retardada, a qual teria sido recepcionada de Aristóteles.

Fundamentalmente, como o próprio nome nos indica, a tese da animação progressiva


supõe que o ente concebido é formado por uma alma; isto é, a matéria que o constitui é
informada por um princípio imaterial. Como dito, tal tese é derivada do hilemorfismo. Em
suma, o hilemorfismo nos diz que todos os entes materiais são constituídos por dois princípios
ontológicos primordiais: a forma e a matéria. No que diz respeito especificamente ao homem,
segundo a filosofia aristotélico-tomista, a união desses dois princípios dar-se-ia no tempo, ou
seja, não de maneira instantânea, mas progressiva. Mais precisamente, uma vez que a alma é
entendida como forma do corpo, durante o processo formativo, o princípio formal completo
(alma) unir-se-ia ao princípio material (corpo) após vários dias, como fim de um processo
constituído de etapas progressivas, ao longo do qual seriam atualizadas certas perfeições ônticas
em escala crescente: primeiramente as perfeições vegetativas; em seguida, as perfeições
sensitivas e, por fim, as intelectivas, mais perfeitas do que as anteriores. Assim, nada se tornaria
humano instantaneamente, num átimo. Em vez disto, o processo de animação se prolongaria no
tempo. Em outras palavras, a forma plenamente humana só informaria a matéria corporal
muitos dias após a concepção, quando um corpo já se encontraria minimamente preparado para
receber as perfeições humanas mais nobres (o intelecto e a vontade), ou seja, justamente aquelas
que, também segundo a filosofia tomista, nos diferenciam dos animais irracionais.

Ora, como, ainda de acordo com a mesma tradição de pensamento, o concepto não
pode ser dito plenamente humano até pelo menos o quadragésimo dia após a concepção para o
embrião masculino e o nonagésimo dia para o embrião feminino, antes desses marcos temporais
o abortamento não seria moralmente condenável, já que seria equivalente a matar uma planta

1
O ente concebido ou concepto pode ser designado pela embriologia, conforme sua fase de desenvolvimento,
como ovo, zigoto, embrião ou feto.
6

ou um animal irracional. Portanto, sendo Tomás um teólogo católico de extrema importância,


talvez o maior deles, sua teoria mostraria que a doutrina da Igreja Católica concernente ao
pecado de aborto – hoje condenado em qualquer momento da gravidez – nem sempre teria sido
unânime, tendo contado, antes, com pelo menos uma voz dissonante e ao mesmo tempo de
grande peso histórico.

De fato, o problema que advém da tese da animação progressiva encontrou múltiplas


propostas de solução ao longo da história da Igreja. Para entendê-las, cabe distinguir entre duas
questões concernentes à animação: quanto à sua causa e quanto à sua relação com o tempo.
Quanto à causa da alma humana, há duas correntes principais. Tertuliano (160-230) postulou o
traducianismo, doutrina segundo a qual a alma espiritual ou intelectiva seria transmitida dos
pais aos filhos no processo de geração, juntamente com o corpo. A única alma humana criada
diretamente por Deus teria sido a alma de Adão; as demais teriam sido produzidas por um ou
ambos os genitores e transmitidas aos filhos. Gregório de Nissa (335-395) foi outro que aderiu
à ideia. Posteriormente, Agostinho (354-430) também conjecturou tal tese. Embora não a tenha
chancelado explicitamente, conjecturou-a por considerá-la uma boa explicação para a
transmissão do pecado original. O traducianismo, ainda, tem basicamente duas vertentes: a
materialista, de Tertuliano, que propunha que a alma humana está contida virtualmente no
esperma, ou que os pais geram da matéria inanimada tanto o corpo quanto a alma do filho; e a
espiritualista ou geracionista, de Agostinho, segundo a qual as almas dos filhos são geradas
pelas almas dos pais, de modo que as almas humanas deteriam um poder criador, conferido por
Deus, de gerar outras almas e de transmiti-las aos respectivos descendentes.

Ainda na questão relativa à causa da alma humana, opôs-se ao traducianismo o


criacionismo, doutrina pela qual as almas humanas foram e estão sendo criadas diretamente por
Deus e por Ele infundidas nos corpos. Os criacionistas abordaram o problema da transmissão
observando que, se se transmitisse uma alma, esta deveria necessariamente preexistir de algum
modo, tal como propôs Platão e sua escola, bem como Orígenes (185-254), ou ter-se originado
por emanação, hipóteses por eles descartadas. Afora vozes isoladas, o criacionismo foi
largamente predominante no período escolástico e contou com a adesão de Alberto Magno e
Tomás de Aquino, dentre outros. Nesse sentido, ao abordar a posição defendida por Tomás, o
presente trabalho claramente se coloca sob o domínio daquilo que o criacionismo tem a oferecer
como descrição do início da vida.
7

Quanto ao tempo da animação – ou ao momento em que esta se aperfeiçoa –, há


igualmente duas teses principais. O imediatismo postula a criação e infusão da alma no instante
da concepção. Tal tese foi defendida por Clemente de Alexandria (150-215), Lactâncio (260-
330)2, Gregório de Nissa (335-395)3 e, acima de todos, por Máximo Confessor (580-662)4. Já
o mediatismo, teoria que postula a animação mediata, progressiva ou retardada, encontra em
Aristóteles sua base de apoio. Segundo essa tese, o embrião desenvolve por primeiro uma alma
vegetativa, posteriormente substituída por uma alma sensitiva; esta, por fim, é substituída por
uma alma intelectiva5. Com base no Estagirita, Tomás postula esta sucessão de almas, de modo
que neste trabalho nos colocamos claramente sob a égide do mediatismo6. A teoria de Tomás
acerca da animação progressiva do embrião7 supõe que este seja inicialmente informado por
uma alma vegetativa, que posteriormente se corrompe e cede lugar a uma alma sensitiva; esta,
finalmente, também se corrompe para que advenha a alma intelectiva espiritual, que é criada
diretamente por Deus e por ele infundida no ente concebido. Ele postula, assim, que a animação
completa do ente não se daria no instante da concepção, mas posteriormente – como já dito,
após quarenta dias para o embrião masculino e noventa dias para o embrião feminino.

Contudo, o mestre de Tomás, Alberto Magno (1206-1280), concebeu tese diversa. Para
o Doutor Universal, que também se apoiou em Aristóteles, o embrião concebido, antes de
receber uma alma intelectiva infundida por Deus, não detém alma nenhuma. As atividades
vegetativas e sensitivas nele operadas são causadas pela vis formativa do sêmen paterno, já que
se pensava na época que este permanecia em atividade junto ao embrião até o quadragésimo
dia após a concepção. Finda a atividade da potência formativa seminal, o concepto estaria
pronto para receber a infusão da alma intelectual ou espiritual, já perfeita e acabada. Portanto,
diferentemente de Tomás, Alberto, ainda que adira ao mediatismo, não adere à tese da
progressão ou sucessão de almas (vegetativa, sensitiva e intelectiva).

Contudo, ambos os doutores, Alberto e seu discípulo Tomás, consideravam


imprescindível a atividade do sêmen paterno junto ao embrião ainda não animado por uma alma
intelectiva, pois a vis formativa do sêmen era o meio pelo qual a alma intelectiva do pai

2
De opificio Dei, XIX.
3
De hominis opificio, XXIX.
4
Ambigua, 42, 1324 C; 1325 D; 1337 C-D; 1341 A-C.
5
De Generatione Animalium, II, 3, 736 b, 8-15.
6
STh, I, 118, 2; CG, II, cap. 88 e 89; In Sent., II, 18, 2, 1; De Pot., 3, 9.
7
“Chamo embrião a primeira mistura da fêmea e do macho”. ARISTÓTELES, in De Generatione Animalium, I,
1, 728 b, 35.
8

predispunha a matéria do ente concebido para receber de Deus a infusão de uma alma intelectiva
por Ele criada. Lembremos que os doutores se baseavam na biologia aristotélica, segundo a
qual à fêmea cabia fornecer o elemento material passivo e ao macho o elemento formal ativo.

Há, portanto, um rico debate acerca de uma antropologia ou biologia filosófica da


gênese da vida humana travado intra muros na Igreja Católica8. Grosso modo, estas são as
principais correntes desse debate que se apresentaram ao longo da história:

MATERIALISTA

TRADUCIANISMO
ESPIRITUALISTA
quanto à CAUSA ou
GERACIONISTA
CRIACIONISMO

Problema da
ANIMAÇÃO COM
PROGRESSÃO de
ALMAS
MEDIATISMO
SEM
quanto ao TEMPO PROGRESSÃO de
ALMAS
IMEDIATISMO

Esta monografia, embora parta de um debate que tem lugar no seio da Igreja, pretende
ser absolutamente neutra do ponto de vista religioso ou político, além de guiar-se por
parâmetros estritamente filosóficos, com o modesto escopo de analisar, longe de qualquer
polêmica atual, as raízes metafísicas da ética de Tomás. Noutros termos, buscamos entender de
que modo podemos fundamentar física e metafisicamente uma certa solução de um problema
ético que envolve a dignidade humana e a possibilidade de supressão intencional da vida de
outrem. Para tanto, o tema do abortamento, tratado por Tomás em alguns de seus escritos, será

8
CRUZ, Luiz Carlos Lodi da. A Alma do Embrião Humano: a questão da animação e o fundamento ontológico
da dignidade de pessoa do embrião. Anápolis: Múltipla, 2013.
9

estudado como um caso particular que revela essa estrita dependência entre filosofia teórica e
filosofia prática em seu pensamento, dependência essa que perpassa toda a filosofia antiga e
medieval. Ao final, pretende-se demonstrar que Tomás esteve muito longe de afirmar uma
suposta higidez ética do abortamento (mesmo quando praticado nos estágios iniciais da
gravidez), como pode pensar um leitor descuidado. Por outro lado, mostrar-se-á que suas
escolhas físicas e metafísicas influem diretamente na medida de gravidade ética que ele
reconhece para o ato em questão, medida essa que terá relação direta com o estágio da gravidez
em que seja praticado.

Inicialmente, faremos um breve estudo das teorias implicadas no problema (o


hilemorfismo e a animação progressiva), segundo o pensamento de Tomás, para então vermos,
em seguida, como essas teorias se articulam na solução do problema ético do abortamento,
também de acordo com o pensamento do Doutor Comum. Finalmente, tencionamos aprofundar
a investigação com o apelo à teoria das virtudes de Tomás, para – quem sabe – propor uma
solução para o problema que seja a mais condizente possível com a dignidade intrínseca da
pessoa humana.

2 HILEMORFISMO

Para entender a questão do abortamento em Tomás de Aquino, deve-se, inicialmente,


ter em mente que o Doutor Angélico adere à teoria do hilemorfismo, que remonta a Aristóteles.
O hilemorfismo postula que todo corpo natural é composto de dois princípios substanciais: a
matéria (ou matéria-prima) e a forma substancial9. Esses princípios estão articulados entre si do
mesmo modo que o estão a potência e o ato. Tais princípios são necessários para explicar as
mudanças substanciais, em que há um sujeito substancial que perde seu ser substancial
mediante corrupção e adquire um novo ser substancial por geração e corrupção. O movimento
ou mudança substancial não poderia acontecer se o sujeito do movimento não tivesse o novo
ser em potência. Dito de outro modo, a mudança substancial não aconteceria se não houvesse
um princípio substancial (a matéria-prima) que estivesse ordenado a algo como está a potência
ao ato. Igualmente, a mudança substancial não ocorreria se não houvesse um outro princípio (a

9
GILSON, Etienne. El Tomismo. Navarra: EUNSA, 2002. Segunda parte, capítulo IV.
10

forma substancial) que se perdesse por corrupção ou se adquirisse por geração, e que estivesse
ordenado a algo como está o ato à potência.

A teoria hilemórfica (ύλη - hylé – “matéria” e μορφή - morphé – “forma”) é colocada


com toda a clareza por Tomás em um de seus mais importantes opúsculos: O Ente e a Essência.
Ali o Aquinate ensina que a essência dos entes naturais (isto é, dos compostos) compreende a
forma e a matéria. Vejamos alguns excertos em que ele expõe aquela ideia:

1) Ora, das substâncias, umas são simples e outras são compostas. Todavia, em
ambas há essência. (...) Nas substâncias compostas, a matéria e a forma são
conhecidas, como também o são, no homem, a alma e o corpo. Mas não se pode
afirmar que somente uma delas seja chamada a essência. (...) a essência é aquilo
que é significado pela definição. Ora, a definição das coisas naturais não contém só
a forma, mas, também, a matéria, até porque, se assim não fosse, não haveria
diferença entre as definições naturais e as definições matemáticas. (...) Fica, pois,
evidenciado que a essência compreende a matéria e a forma.10

2) Corpo, desse modo, é tomado como parte integral e material de animal, porque a
alma estará então fora do significado do nome corpo: ela lhe é acrescida, pois que
de ambos – alma e corpo, como de partes, o animal é constituído.11

3) E devido a esse motivo de ter a alma humana, entre as demais substâncias


intelectuais, mais de potência, torna-se ela tão próxima das coisas materiais que estas
são levadas a participar do seu ser, de modo a resultar da alma e do corpo um ser
num composto, embora este ser, enquanto é da alma, não seja dependente do
corpo.12

4) Donde não se encontrar em tais substâncias considerável número de indivíduos


em uma só espécie, como foi dito acima, a não ser na alma humana, devido ao corpo
a que se une. Embora a individuação desta dependa individualmente do corpo quanto
ao seu começo, pois não adquire para si o ser individualizado a não ser em um corpo
do qual é ato; contudo, não é necessário que, retirado o corpo, pereça a
individuação, porque, tendo um ser absoluto, do qual é adquirido para si o ser
individualizado, desde que foi feita forma deste corpo, aquele ser permanecerá para
sempre individualizado. Daí Avicena dizer que a individuação e a multiplicação das
almas dependem do corpo quanto ao seu princípio, mas não quanto ao seu fim.13

10
De Ente et Essentia, cap. II, §§ 8 a 13: Substantiarum vero quaedam sunt simplices et quaedam compositae, et
in utrisque est essentia. (…) In substantiis igitur compositis forma et materia nota est, ut in homine anima et
corpus. Non autem potest dici quod alterum eorum tantum essentia esse dicatur. (…) essentia est illud, quod per
diffinitionem rei significatur. Diffinitio autem substantiarum naturalium non tantum formam continet, sed etiam
materiam; aliter enim diffinitiones naturales et mathematicae non differrent. (…) Patet ergo quod essentia
comprehendit materiam et formam.
11
De Ente et Essentia, cap. III, § 20, fine: Et hoc modo corpus erit integralis et materialis pars animalis, quia sic
anima erit praeter id quod significatum est nomine corporis et erit superveniens ipsi corpori, ita quod ex ipsis
duobus, scilicet anima et corpore, sicut ex partibus constituetur animal.
12
De Ente et Essentia, cap. V, § 58: Et propter hoc quod inter alias substantias intellectuales plus habet de
potentia, ideo efficitur in tantum propinqua rebus materialibus, ut res materialis trahatur ad participandum esse
suum, ita scilicet quod ex anima et corpore resultat unum esse in uno composito, quamvis illud esse, prout est
animae, non sit dependens a corpore.
13
De Ente et Essentia, cap. VI, § 66: Et ideo in talibus substantiis non invenitur multitudo individuorum in una
specie, ut dictum est, nisi in anima humana propter corpus, cui unitur. Et licet individuatio eius ex corpore
occasionaliter dependeat quantum ad sui inchoationem, quia non acquiritur sibi esse individuatum nisi in corpore,
cuius est actus, non tamen oportet ut subtracto corpore individuatio pereat, quia cum habeat esse absolutum,
11

No excerto 1, Tomás explica que, quanto à materialidade, há substâncias simples


(Deus e os anjos, não compostos por matéria14) e compostas (homens, animais, vegetais e
minerais), esclarecendo que ambas as classes de entes são dotadas de essência. Nas substâncias
compostas, a essência é o composto de forma e matéria. Nenhum dos dois princípios constitui
isoladamente a essência. Por isso se diz que a essência do homem é a junção de corpo (matéria)
e alma (forma). Desse modo, considera-se que a essência é aquilo que é significado pela
definição completa do ente.

Pelo excerto 2 entende-se que o corpo é parte integral e material do animal racional,
não se confundindo com a alma, que extrapola seu significado. Antes, a alma é acrescida ao
corpo para que se constitua o homem, animal racional. Como dito, forma e matéria se articulam
como ato e potência. Ainda, no excerto 3 Tomás ensina que, dentre as substâncias inteligentes,
a alma humana é a que tem mais de potência, de modo que é aquela que mais se aproxima das
realidades materiais, tanto que estas são levadas a participar do seu ser, resultando assim num
composto, embora a alma não seja totalmente dependente do corpo para subsistir.

Diferentemente dos homens e demais entes naturais, os anjos não são realidades
hilemórficas, como fica claro pela leitura do excerto 4. Como a matéria é o princípio de
individuação, isto implica que não haja pluralidade de indivíduos de uma mesma espécie
angélica, mas que cada anjo seja o único indivíduo de sua espécie. Tal não se dá com o homem,
que se individualiza pelo corpo material, de modo a haver pluralidade de indivíduos da espécie
humana. Contudo, embora a individuação dependa do corpo no início, o mesmo não vale para
o fim. A alma humana é um ser absoluto que adquire para si o ser individualizado, assumindo
a forma de um corpo. Uma vez que isso ocorra, a alma permanece para sempre individualizada,
mesmo que o corpo pereça. Por fim, Aristóteles ensinara que não há pluralidade de almas num
mesmo indivíduo, pois no termo sucessivo está contido em potência o termo antecedente.
Assim, nos animais, sua alma sensitiva comporta potencialmente as faculdades vegetativas,

ex quo acquisitum est sibi esse individuatum ex hoc quod facta est forma huius corporis, illud esse semper
remanet individuatum. Et ideo dicit Avicenna quod individuatio animarum vel multiplicatio dependet ex corpore
quantum ad sui principium, sed non quantum ad sui finem.
14
Para Tomás, só Deus é absolutamente simples, sem composição alguma. Todavia, os anjos, embora sejam
simples formas, são ainda compostos por ato e potência, essência e esse.
12

bem como a alma intelectiva do homem comporta potencialmente as faculdades sensitivas e


vegetativas, tal como no quadrilátero está contido o triângulo.15

3 ANIMAÇÃO PROGRESSIVA

Explanada a teoria do hilemorfismo, convém esclarecer a teoria da animação


progressiva, mediata, retardada ou tardia do concepto, tomada de Aristóteles. Tal teoria afirma
que o concepto desenvolve progressivamente suas potências. Primeiramente as potências
vegetativas; depois as potências sensitivas; por fim é-lhe infundida a última perfeição, isto é,
as potências intelectivas, cuja atividade não depende do corpo. Isso implica dizer que o
concepto só terá alma plenamente humana algum tempo após a concepção.

Tomás assim postula sua teoria, apelando para a autoridade de Aristóteles16:

Segundo o Filósofo, no livro da Geração dos Animais, o embrião é animal antes de


ser homem. (...) O embrião tem primeiramente uma alma apenas sensitiva. Esta
desaparece, e uma alma mais perfeita lhe sucede, que é ao mesmo tempo sensitiva e
intelectiva...

Vejamos outra passagem em que Tomás expõe a teoria17:

A dependência de uma potência de outra pode-se entender de duas maneiras:


primeiro, segundo a ordem da natureza, enquanto as coisas perfeitas são
naturalmente anteriores às imperfeitas. Depois, segundo a ordem da geração e do
tempo, enquanto o que é imperfeito evolui para o perfeito. (...) Conforme a segunda
ordem, (...) as potências vegetativas são anteriores, na ordem da geração, às
potências sensitivas. Assim, elas preparam o corpo para que essas possam agir.
Mesma relação entre as potências sensitivas e as potências intelectivas.

Assim, segundo o Doutor Angélico, a alma humana, embora seja una, comporta as
potências vegetativas (funções mais baixas do corpo, análogas às das plantas), as potências
sensitivas (os sentidos corpóreos, também compartilhados pelos animais irracionais) e as

15
De Anima, II, 3, 414b29-31.
16
STh, I, q.76, a.3.
17
STh, I, q.77, a.4, resp.: Dependentia autem unius potentiae ab altera dupliciter accipi potest, uno modo,
secundum naturae ordinem, prout perfecta sunt naturaliter imperfectis priora; alio modo, secundum ordinem
generationis et temporis, prout ex imperfecto ad perfectum venitur. Secundum igitur primum potentiarum ordinem,
potentiae intellectivae sunt priores potentiis sensitivis, unde dirigunt eas et imperant eis. Et similiter potentiae
sensitivae hoc ordine sunt priores potentiis animae nutritivae. Secundum vero ordinem secundum, e converso se
habet. Nam potentiae animae nutritivae sunt priores, in via generationis, potentiis animae sensitivae, unde ad
earum actiones praeparant corpus. Et similiter est de potentiis sensitivis respectu intellectivarum.
13

potências intelectivas (funções superiores da alma, próprias das criaturas espirituais e


independentes do corpo, correspondendo à razão e à vontade). Tomás esclarece que18, segundo
a ordem da natureza, as coisas perfeitas são naturalmente anteriores às imperfeitas; porém,
segundo a ordem da geração e do tempo, o que é imperfeito evolui para o perfeito. Sendo assim,
as potências vegetativas da alma são anteriores, na ordem da geração, às potências sensitivas,
assim como estas são em relação às potências intelectivas.

Isso significa dizer que, no ente concebido, ao longo de seus sucessivos estágios de
desenvolvimento, primeiro se formariam as potências vegetativas, logo após as sensitivas e por
fim as intelectivas, quando a natureza humana se aperfeiçoaria pela infusão divina da alma
espiritual, que então absorveria ou traria em si as potências inferiores. Pode-se dizer que Tomás
soa bastante razoável ao postular que, segundo a ordem da geração e do tempo, o que é
imperfeito evolui para o perfeito. Mas não tanto com relação ao tempo em que este processo se
desdobra. Talvez a animação não seja tão tardia assim; talvez seja instantânea, simultânea à
concepção, ou temporalmente infinitesimal. Neste caso, considerando a percepção humana do
tempo, a evolução do menos perfeito para o mais perfeito não se prolongaria no tempo,
constituindo apenas etapas lógicas passíveis de análise, mas concentradas no mesmo instante
do tempo.19

Como assinalado, uma das teorias sobre a geração humana em voga na época de Tomás
era o traducianismo, que afirmava ser o sêmen a causa formal do embrião, enquanto a causa
material seria o sangue menstrual. O sêmen masculino permanecia no útero materno e seria
responsável pela animação completa do embrião, inclusive pela animação racional. O agente
deste processo era a alma do pai, por meio da vis formativa que seu sêmen possuía. Tomás
insurge-se contra esta teoria20, negando que a alma racional estivesse presente no sêmen, pois,
segundo ele, considerando-se que o princípio intelectivo no homem é um princípio que
transcende a matéria, não é possível que a potência ativa presente na matéria estenda sua ação
até produzir um efeito imaterial, isto é, a transmissão da alma racional. Portanto, conclui ele, é
impossível que a potência presente no sêmen humano produza um princípio intelectual.

18
STh, I, q.77, a.4, ad 3 e a.8, resp.
19
Além do texto citado, Tomás trata da doutrina da animação progressiva nestes outros: STh, I, q.118, a.2, resp.;
STh, I, q.77, a.8, resp.; STh, I, q.85, a.3; CG, II, cap. 88 e 89; II Sent., d.18, q.2, a.1; De Pot., q.3, a.9, ad 9; Sup.
Iob, cap.3.
20
STh, I, q.118, artigo 2: “A alma intelectiva é causada pelo sêmen?”
14

Em seu favor, Tomás invoca Aristóteles, que afirma, na Geração dos Animais, que “só
o intelecto vem de fora”. Isto porque a alma intelectiva, prescindindo do corpo, subsiste após a
corrupção deste, e, sendo imaterial, não pode ser causada por geração material, mas somente
por criação divina. Assim, conclui Tomás que a alma intelectiva é criada por Deus no término
da geração humana, sendo esta alma ao mesmo tempo sensitiva e vegetativa, pelo que se
desfazem as formas precedentes (vegetativa e sensitiva), causadas, estas sim, pelo sêmen.

Como Tomás tem por certo que o sêmen empreende alguma atividade na geração
(premissa que, dados os conhecimentos científicos atuais, não está de todo errada), é necessário
que ele recorra à teoria da animação progressiva e, consequentemente, à distinção entre fetos
animados racionalmente e não animados racionalmente, para que concilie a teoria da vis
formativa do sêmen com a animação racional causada diretamente por Deus. Isto porque,
primeiramente, tem lugar a atividade formativa do sêmen, gerando as formas imperfeitas
correspondentes às almas vegetativa e sensitiva e, depois, completa-se a geração com a infusão
divina da forma perfeita ou completa, que abrange as três dimensões da alma.

Convém salientar que antes de Tomás já se sustentava a tese da animação imediata,


isto é, a teoria segundo a qual o concepto recebe imediatamente, tão logo ocorra a concepção,
a alma completa, em suas três dimensões. Tal teoria foi defendida por Clemente de Alexandria,
Lactâncio, Gregório de Nissa e, principalmente, por Máximo Confessor. Considerando que,
desses autores, o único mencionado por Tomás é Gregório de Nissa (porém, interpreta-o como
traducianista), seria razoável supor que Tomás não conhecesse a teoria da animação imediata.
Tanto que, quando expõe sua teoria da animação progressiva, tomada de Aristóteles, não
estabelece um contraponto com a teoria da animação imediata, mas sim com o traducianismo,
conforme dito.

Uma fragilidade da tese de Tomás é considerar que a alma do pai, por meio do sêmen,
exerce atividade gerativa do embrião em suas dimensões vegetativa e sensitiva. Pergunta-se:
como poderia a alma do pai ser causa eficiente sobre a matéria corporal do embrião à distância,
já que a causalidade eficiente supõe contato? Talvez Tomás respondesse argumentando que,
dada a imaterialidade da alma, a objeção da distância poderia ser superada. Contudo, tal
hipótese nos parece hoje datada e um tanto quanto anacrônica à luz das descobertas da ciência
experimental.
15

Por outro lado, o embrião não pode por si mesmo desenvolver-se para gerar sua própria
alma racional, pois a perfeição do efeito não pode superar a perfeição da causa, como ensinou
Tomás por diversas vezes21. Segundo o Doutor, que adere à doutrina aristotélica do ato e da
potência, “o que está em potência é reduzido a ato pelo que está em ato, pelo que é necessário
que esteja quente o que transmite calor a outros.”22 Sendo assim, conclui Tomás que “é sempre
necessário que a causa seja superior ao efeito.”23 Em outras palavras, é necessário que a causa
da alma racional do embrião tenha em si a perfeição da racionalidade para que possa transmiti-
la ou causá-la em outrem.

Se a causa não pode ser a alma dos pais e nem o próprio embrião materialmente
considerado, só restaria a alternativa de uma vis formativa externa que lhe fosse infundida no
momento da concepção e que permitaria seu desenvolvimento. Ora, somente uma alma racional
pode ser fonte dessa vis formativa, já que a perfeição do efeito não supera a da causa. Com isso,
a tese da animação imediata emerge com maior razoabilidade.

Por fim, convém notar que o próprio Tomás admite a teoria da animação imediata
como exceção. Tratando da encarnação de Cristo, tanto ele quanto Máximo Confessor afirmam
que sua alma racional foi criada e infundida no mesmo momento da concepção. Enquanto para
Tomás a animação imediata é um caso excepcionalíssimo, para Máximo Confessor é a regra de
toda e qualquer animação humana.

Tomás afirma que o Verbo divino assumiu o corpo por intermédio da alma racional,
de modo que aquele não poderia ser assumido senão pela ordem que o liga a esta24. Contudo,
isto não nos conduz necessariamente à animação imediata do corpo de Cristo. A tese fica mais
clara quando Tomás afasta a hipótese de que Maria tenha concebido uma carne ainda não
animada e ainda não assumida pelo Verbo25:

...o Verbo de Deus se uniu à natureza humana e a todas as suas partes, na unidade
da hipóstase. E não convinha que o Verbo de Deus, ao assumir a natureza humana,
destruísse a hipóstase preexistente dessa natureza ou de algumas de suas partes.

21
I Sent., d. 12. q. 1, art. 3, af. 4; STh, I, 2, 2; STh, I, 46, 2, ad 1; STh, I-II, 112, 1; STh, III, 9, 2.
22
STh, III, 9, 2, resp.
23
STh, I-II, 112, 1, resp.
24
STh, III, 6, 1.
25
STh, III, 33, 3, resp.
16

Vê-se, portanto, que Tomás claramente afasta a hipótese de que houvesse uma
hipóstase meramente humana antes da assunção da natureza humana pelo Verbo divino. Porém,
nada impede ainda que tenha havido uma animação progressiva sem a destruição de uma
hipóstase preexistente, de modo que, em dado momento, o corpo estaria apto para receber a
infusão de uma alma racional e assim ser assumido pelo Verbo divino. Tal hipótese, no entanto,
é também afastada por Tomás26:

Se tivesse havido um espaço de tempo entre a concepção e a formação perfeita, a


concepção não poderia ser atribuída inteiramente ao Filho de Deus, pois só lhe é
atribuída em razão da assunção”

Parece que repugna a Tomás a ideia de que Maria tenha concebido algo que não fosse
o Filho de Deus, ou que não fosse ainda o Filho de Deus, caso em que ela seria mãe de um ente
vegetal ou animal, mas não do Cristo. Em outros termos, se o dogma de fé diz que Maria
concebeu o Verbo divino, tal concepção não pode ter sido imperfeita ou incompleta, pois, do
contrário, não seria o Filho de Deus, o Cristo inteiro. Este pensamento fica claro no artigo
seguinte, em que Tomás afirma27:

Para poder atribuir a concepção ao próprio Filho de Deus, como confessamos no


Símbolo ao dizer ‘que foi concebido pelo Espírito Santo’, é preciso afirmar que o
próprio corpo ao ser concebido foi assumido pelo Verbo de Deus.

Portanto, para Tomás, é necessário que o corpo do Cristo tenha sido animado
instantaneamente por uma alma racional no momento da concepção. Tal conclusão se impõe
para que se possa afirmar, como diz o dogma, que o Filho de Deus foi concebido pelo poder do
Espírito Santo. Esse caráter instantâneo da animação corpórea do Cristo, que o tornaria a única
exceção à animação progressiva dentre todos os homens, é assim justificado por Tomás28:
“...quanto maior for a potência do agente, mais rápida será a preparação da matéria. Daí que um
agente de potência infinita pode preparar a matéria para a devida forma num instante”.

Tomás deduz que, caso a alma intelectiva de Cristo não fosse infundida no primeiro
momento da concepção, não se poderia afirmar que Cristo foi concebido. Tal posição fica ainda
mais clara quando Tomás tenta justificar por que Cristo constitui uma exceção à regra29:

26
STh, III, 33, 1, resp.
27
STh, III, 33, 2, resp.
28
STh, III, 33, 1, resp.
29
STh, III, 33, 2.
17

Segundo o Filósofo, no livro da Geração dos Animais, a geração humana exige um


antes e um depois: primeiro é ser vivo, depois animal e, finalmente, ser humano. (...)
Deve-se dizer que na geração dos demais homens acontece o que diz o Filósofo (...),
mas o corpo de Cristo, por causa da potência infinita do agente, foi perfeitamente
disposto num instante. Por isso, no primeiro instante recebeu uma forma perfeita,
isto é, a alma racional.

Considerando que não havia, à época de Tomás, conhecimento acerca da organicidade


das células, tampouco conhecimento sobre a molécula de DNA, é possível que Tomás
imaginasse que os próprios membros do corpo de Cristo tenham-se formado no instante da
concepção. Como tal acontecimento miraculoso não se observava nos demais casos, Tomás
pode ter sido levado a postular a solução aristotélica da animação progressiva como regra e a
animação instantânea como exceção, para o caso do Cristo.30

4 IMPLICAÇÕES ÉTICAS

Como dito, por aderir à teoria da animação progressiva, Tomás é frequentemente


invocado como exemplo de uma suposta tolerância ao aborto por parte da Igreja no passado.
Tal alegação não se sustenta. Isto porque a condenação da Igreja à prática do aborto, além de
fundamentar-se na lei natural, baseia-se também nas Escrituras e em documentos tão antigos
como o Didaqué, que preceitua: “Não matarás criança por aborto”. Há também uma vasta
tradição patrística condenando a prática. Portanto, Tomás não poderia pensar que o aborto é
algo moralmente inócuo sob pena de contrariar toda a tradição cristã anterior a ele, coisa que
ele jamais faria. Pelo contrário, Tomás condena claramente o aborto, considera-o um pecado
mortal e compara-o ao homicídio. Porém, por assumir a doutrina da animação progressiva,
Tomás chegará a juízos bioéticos que destoam da atual doutrina da Igreja. Vejamos alguns
excertos:

5) Respondo. Pode-se considerar um homem sob duplo aspecto: em si mesmo ou em


relação aos outros. Considerando o homem em si mesmo, jamais será permitido
matá-lo, porque, em todo homem, ainda que seja pecador, devemos amar a natureza,
obra de Deus, que se desfaz pela morte. Mas, como já se explicou, a morte do pecador
só se torna lícita quando se trata de preservar o bem comum, que o pecado destrói.

30
CRUZ, Luiz Carlos Lodi da. A Alma do Embrião Humano: a questão da animação e o fundamento ontológico
da dignidade de pessoa do embrião”. Anápolis: Múltipla, 2013.
18

Mas, a vida dos justos conserva e promove o bem comum, pois constituem o que há
de melhor na sociedade. Logo, de modo algum é lícito matar um inocente.31

6) Quanto ao segundo, deve-se dizer que quem fere uma mulher grávida pratica uma
ação ilícita. Portanto, se daí resultar a morte da mulher ou do feto já animado, não
escapará ao crime de homicídio.32

7) Este pecado [um ato que possa causar um aborto], conquanto seja grave e esteja
incluído entre os atos maus e contrários à natureza, considerando que até as bestas
desejam procriar, ainda assim é menos grave que o homicídio, já que até então o
fruto da concepção poderia ter-se impedido de outro modo. Nem tal ato é julgado
irregular, senão quando se provoca o aborto de um concepto já formado.33

8) É preciso dizer que alguns matam apenas o corpo – destes já falamos; outros
matam a alma, arrancando a vida da graça, empurrando ao pecado mortal: “Ele foi
homicida desde o princípio” (João 8, 44), ou seja, porque induziu ao pecado. Outros,
no entanto, são homicidas da alma e do corpo, e isso de dois modos. Primeiro, nos
abortos: os filhos são mortos tanto no corpo como na alma. Segundo, nos suicídios.34

9) Gerar filhos, e não matá-los ocultamente por aborto.35

No excerto 5, Tomás é claro ao dizer que “de modo algum é lícito matar um inocente”.
Tomás repudia qualquer espécie de homicídio que não seja em legítima defesa (pessoal ou
social), isto é, “a morte do pecador só se torna lícita quando se trata de preservar o bem comum,

31
STh, II-II, q.64, a.6, respondeo: Respondeo dicendum quod aliquis homo dupliciter considerari potest, uno
modo, secundum se; alio modo, per comparationem ad aliud. Secundum se quidem considerando hominem, nullum
occidere licet, quia in quolibet, etiam peccatore, debemus amare naturam, quam Deus fecit, quae per occisionem
corrumpitur. Sed sicut supra dictum est, occisio peccatoris fit licita per comparationem ad bonum commune, quod
per peccatum corrumpitur. Vita autem iustorum est conservativa et promotiva boni communis, quia ipsi sunt
principalior pars multitudinis. Et ideo nullo modo licet occidere innocentem.
32
STh, II-II, q.64, a.8, ad 2: Ad secundum dicendum quod ille qui percutit mulierem praegnantem dat operam rei
illicitae. Et ideo si sequatur mors vel mulieris vel puerperii animati, non effugiet homicidii crimen, praecipue
cum ex tali percussione in promptu sit quod mors sequatur.
33
IV Sent., d.31, q.2, a.3, expositio textus: Solet quaeri, cum masculus et femina, nec ille maritus nec illa uxor
alterius (...) pro incontinentia solius concubitus causa copulantur. De hoc in praecedenti dist. dictum est, quoniam
malus finis bonitatem matrimonii non tollit. Qui vero venena sterilitatis procurant, non conjuges, sed fornicarii
sunt. Hoc peccatum quamvis sit grave, et inter maleficia computandum, et contra naturam, quia etiam bestiae
fetus expectant; tamen est minus quam homicidium; quia adhuc poterat alio modo impediri conceptus. Nec est
judicandus talis irregularis, nisi jam formato puerperio abortum procuret. Semina paulatim formantur et cetera.
De hoc habitum est in tertio, dist. 3. Et postquam venter uxoris intumuerit, non perdant filios. Quamvis enim matrix
post impraegnationem claudatur; tamen ex delectatione, ut Avicenna dicit, movetur et aperitur; et ex hoc imminet
periculum abortus; et ideo Hieronymus vituperat accessum viri ad uxorem impraegnatam; non tamen ita quod
semper sit peccatum mortale; nisi forte quando probabiliter timetur de periculo abortus. Nec immutetur in eum
usum qui est contra naturam. Usus contra naturam conjugis est, quando debitum vas praetermittit, vel debitum
modum a natura institutum quantum ad situm; et in primo semper est peccatum mortale, quia proles sequi non
potest, unde totaliter intentio naturae frustratur; sed in secundo modo non semper est peccatum mortale, ut quidam
dicunt, sed potest esse signum mortalis concupiscentiae; quandoque etiam sine peccato esse potest, quando
dispositio corporis alium modum non patitur; alias tanto est gravius, quanto magis a naturali modo receditur.
34
In Decem Praeceptis, a.7, de quinto praecepto: ‘non occides’: Et sciendum, quod aliqui occidunt solum corpus,
de quo dictum est; alii animam, auferendo vitam gratiae, trahendo scilicet ad peccatum mortale. Ioan. VIII, 44:
ille homicida erat ab initio, inquantum scilicet traxit ad peccatum. Alii autem utrumque, et hoc dupliciter. Primo
in destructione praegnantium: occiduntur enim pueri in corpore et in anima. Secundo interficiendo seipsum.
35
Sup. I Tim., cap. 5, lec. 2: Et ideo subdit: melius est nubere quam uri. Et ideo in quo casu loquitur, videndum
est, quia in hoc, ne primam fidem faciant irritam, et ideo quod hic dicit volo, intelligitur non ex principali
intentione. Filios procreare, et non eos occulte occidere per abortum.
19

que o pecado destrói.” Ora, não há dúvidas de que o embrião ou feto no ventre de sua mãe é
um inocente. Logo, Tomás condena também o homicídio uterino. Contra esta interpretação,
alguém poderia objetar que a qualificação de “inocente” só se aplica propriamente ao concepto
já animado racionalmente, pois, antes disso, carecendo de alma racional, não se lhe aplica a
qualificação de inocente ou culpado, já que seria incapaz de ter culpa de algo. Contra esta
objeção, dir-se-ia, por exemplo, que a inocência tem espectro mais amplo do que a culpa, o que
é algo com que Tomás certamente concorda, considerando que o filósofo adere
inequivocamente à doutrina do pecado original.36 Portanto, para Tomás, há um estado original
de inocência que foi posteriormente conspurcado pelo pecado original, o qual acarreta uma
culpa que é adquirida por herança e difere da culpa decorrente das ações humanas. Ademais,
ele diferencia claramente entre o estado de inocência original, o estado de culpa e o estado de
glória.37 Enquanto o estado de glória implica uma elevação da natureza, o estado de culpa
implica uma degeneração da mesma e acarreta uma desordem das ações voluntárias.38 Com
isto, podemos concluir que, para o filósofo, o estado de inocência tem um lastro ontológico
mais robusto do que o de culpa, já que este é algo que acidentalmente maculou a natureza
humana e a fez perder, de certa maneira, parte da nobreza ontológica que originalmente detinha.

No excerto 6, Tomás afirma que “quem fere uma mulher grávida pratica uma ação
ilícita. Portanto, se daí resultar a morte da mulher ou da criança animada, não escapará ao crime
de homicídio”. Este passo oferece alguma dificuldade. A contrario sensu, poder-se-ia inferir
que matar uma criança ainda não animada no ventre de sua mãe (assumindo-se a teoria da
animação progressiva ou tardia) não implica o crime de homicídio. Contudo, afastar o crime de
homicídio está muito longe de aceitar que é lícito praticar um aborto nos primeiros dias de
gravidez; isto é, antes da presumida animação completa do ente concebido. Parece que, para
Tomás, provocar a morte do concepto nos primeiros dias de gravidez é menos grave do que
depois, quando a criança já estivesse presumivelmente animada. Porém, o ilícito continua sendo
grave, embora o seja em menor grau. Além disso, uma vez iniciado um processo ordenado a
um fim, ou seja, uma vez ocorrida a concepção, que está ordenada teleologicamente a produzir
um ser humano completamente formado, não é lícito interromper o processo artificialmente,
pois tal ato representaria uma ofensa à ordem da criação, à lei natural. Como ficará claro mais
adiante, Tomás considera as fases intermediárias do processo geracional como meios aptos a

36
STh, I-II, 85, 5.
37
STh, III, 13, 3.
38
STh, I, 48, 6.
20

produzir um fim. Este se materializa num indivíduo que instancia a espécie completa. Assim
sendo, é razoável considerar que o ente que se encontra em uma das fases intermediárias de sua
geração tem seu valor ontológico não em função das características entitativas que
momentaneamente ostenta, de acordo com a respectiva fase intermediária, mas sim em vista do
fim último, que é a geração de um indivíduo perfeito, pertencente à espécie humana.

No excerto 7, Tomás qualifica o abortamento como pecado grave, “incluído entre os


atos maus e contrários à natureza”, pelo que condena o uso do “veneno da esterilidade” (podem-
se incluir nesta expressão os fármacos anticoncepcionais, que impedem a concepção ou
esterilizam, além daqueles que expulsam um embrião já concebido; isto é, as substâncias
abortivas). Como dito, Tomás adverte que os cônjuges que se valem de tais métodos
antinatalistas praticam pecado grave e contra a natureza – pois até as bestas desejam a prole –,
pelo que não mereceriam sequer o nome de cônjuges, mas de fornicadores, pois, aos olhos dele,
rejeitam a procriação, finalidade natural intrínseca ao ato sexual. Conquanto Tomás enfatize
que o recurso ao veneno de esterilidade (aborto) é pecado grave, assevera que é “menos grave
que o homicídio, já que até então o fruto da concepção poderia ter-se impedido de outro modo.
Nem tal ato é julgado irregular, senão quando se provoca o aborto de um concepto já formado”.
Entenda-se: irregular do ponto de vista jurídico. Parece que Tomás, neste excerto – em
consonância com o excerto anterior –, apesar de considerar o abortamento como pecado grave
(uma falta religiosa e ética), tende a considerá-lo como uma falta menor do ponto de vista
político-jurídico; ou seja, um ato que não mereceria uma tipificação penal tão severa quanto a
do homicídio. Assim, fica claro que Tomás considera o abortamento realizado nos estágios
iniciais como um ato menos grave que um homicídio. Porém, se realizado após a animação
completa, será, para ele, equivalente a um homicídio. Ainda no mesmo excerto, o Doutor
Angélico lembra que São Jerônimo proscrevera o acesso do varão à esposa grávida, e
acrescenta: “não que isso seja sempre pecado mortal, senão quando há um provável perigo de
aborto.” Isso nos permite concluir que, para ele, o mero perigo de aborto já configura pecado
mortal, ainda que o aborto não tenha ocorrido.

Juridicamente, Tomás segue uma teoria amplamente difundida em sua época (baseada
no livro do Êxodo, 21, 22-25), a sustentar que um ato que cause o aborto de um embrião não
formado, isto é, ainda não animado racionalmente, não pode de modo algum ser equiparado a
um homicídio, embora seja um ato imoral, antinatural e pecaminoso. Na passagem bíblica
citada, a lei mosaica preceitua que, se dois homens, durante uma briga, ferirem uma mulher
21

grávida, causando-lhe o aborto, sem que haja “maior dano”, o culpado pagará uma indenização
estipulada pelo marido da mulher, além de pagar outra pena determinada pelos árbitros do caso.
Se, porém, houver “dano grave”, aplicar-se-á a lei de talião: vida por vida. Do texto, infere-se
que o aborto não é um dano tão grave quanto o homicídio, sendo-lhe imputada uma pena bem
menos severa do que a aplicada a este. Observe-se, no entanto, que Tomás adota uma ética mais
severa do que a da lei mosaica e menos severa do que a atual doutrina da Igreja concernente ao
aborto. Enquanto a lei mosaica considera qualquer aborto um dano menor, sem fazer distinção
quanto à fase da gravidez em que se dá, o Aquinate só considera um dano menor o aborto
ocorrido antes da animação racional do embrião. Assim se deve entender a frase “nem tal ato é
julgado irregular, senão quando se provoca o aborto de um concepto já formado” (nec est
judicandus talis irregularis, nisi jam formato puerperio abortum procuret). E, por fim, a atual
doutrina da Igreja ultrapassa Tomás e afirma a equivalência moral entre o aborto e o homicídio,
e mais: em razão da descriminalização do aborto em muitos países, a Igreja estabeleceu uma
pena canônica para o aborto que não é prevista para o homicídio, a excomunhão latae
sententiae. Com isso, poder-se-ia dizer que o aborto, segundo a Igreja, tornou-se até mais grave
do que o homicídio, se considerarmos as penas canônicas impostas pela Igreja.

Uma coisa fica bastante nítida: Tomás jamais admite a licitude de um ato que elimine
uma vida humana ou potencialmente humana no ventre materno. Como ele assume a teoria
aristotélica da animação progressiva, o embrião só adquire natureza humana plena ou perfeita
algum tempo após a concepção. Destarte, como foi dito, Tomás conclui que o aborto nos
primeiros dias de gravidez é um ato imoral (pecado grave), embora não seja tão grave quanto o
aborto tardio (equiparado ao homicídio), que priva da vida uma criança já formada, possuidora
de uma alma humana completa, dotada de potências intelectivas. Repita-se: esta conclusão ética
é necessária para que Tomás mantenha coerência com a teoria da animação tardia. Isto porque,
no caso de um abortamento no início da gravidez, não se estaria a matar um ser humano
completamente formado. Por outro lado, não se poderia dizer simplesmente que o embrião em
processo de animação se equipara a um vegetal ou animal, pois estes não se ordenam à
humanização como o embrião se ordena. Sendo assim, não se diga que o aborto precoce
equivale à destruição de um vegetal ou animal, já que estes não são potencialmente humanos
como o concepto é.
22

No fim das contas, parece que a teleologia é o principal fator que afiança a posição de
Tomás. Lembremos que seu ponto de vista teleológico acerca das coisas foi herdado de
Aristóteles. Vejamos o que diz o Estagirita no De Anima39:

Para todos os viventes que são perfeitos [...] a mais natural das obras consiste em
fazer outro vivente semelhante a si mesmos [...] com o fim de participar do eterno e
o divino na medida em que lhes é possível: todos os seres, desde logo, aspiram a isso
e com tal fim realizam quantas ações realizam naturalmente – o “em vista de quê”
tem, pois, dois sentidos: de algo e para algo. Pois bem, posto que lhes resulta
impossível participar do eterno e divino através de uma existência ininterrupta, já
que nenhum ser submetido à corrupção pode permanecer sendo o mesmo em sua
individualidade, cada um participa na medida em que lhe é possível, uns mais, outros
menos; e o que permanece não é ele mesmo, mas outro indivíduo semelhante a ele,
uno não em número, mas em espécie.

Outra passagem eloquente da obra de Aristóteles acerca da teleologia e de seu papel


na estrutura da realidade pode ser encontrada no De Generatione et Corruptione40:

Com efeito, dado que afirmam que em todas as coisas a natureza aspira ao melhor, e
que é melhor ser que não ser [...], mas é impossível que o ser esteja presente devido
a estarem muito longe no princípio, o deus consumou o universo no único modo que
lhe restava, fazendo ininterrupta a geração. [...] A causa disto é, como dissemos
muitas vezes, a translação circular, pois é a única contínua. Por isso, também todas
as outras coisas que se transformam reciprocamente segundo suas afeições e
potências, como os corpos simples, imitam a translação circular. Com efeito, quando
da água se gera o ar e do ar o fogo e, novamente, do fogo a água, dizemos que a
geração completou o ciclo, porque retorna ao ponto inicial. Em consequência,
também a translação retilínea é contínua enquanto imita a circular.

A partir dessas duas referências, fica evidente que Aristóteles considera ser possível
relacionar causalmente dois âmbitos da realidade em termos de imitação e, além disto, que este
tipo de relação pode ser teleológica.

Indo além, podemos extrapolar tais concepções para a própria metafísica aristotélica e
a teoria do primeiro motor. Em Física VIII e Metafísica XII, Aristóteles descreve a relação que
há entre os distintos níveis ontológicos, a qual se dá em razão de certa semelhança, como o
movimento causado pelo primeiro motor no primeiro céu e por este nos céus subsequentes, de
modo que a natureza do efeito esteja em função da natureza da causa. Assim, para Aristóteles,
é fundamental o reconhecimento de alguma semelhança entre as distintas substâncias para

39
DA, II-4 (415 a 25).
40
GC, II-11
23

relacioná-las causalmente. Isto tem lugar tanto no caso da ação causal do céu sobre o mundo
sublunar como no caso da ação causal do primeiro motor sobre o céu41.

O cotejo entre as passagens citadas permite-nos concluir que, para Aristóteles, o


primeiro motor, o céu e o mundo sublunar guardam entre si uma semelhança em razão da qual
estão conectados causalmente. Ademais, o processo contínuo de gerações e corrupções, assim
como a transformação recíproca dos elementos, é eterno na medida em que imita o movimento
do céu. E, por fim, esta relação em termos de imitação está posta como uma relação teleológica.

Em suma, para o Filósofo – como o chamava Tomás –, o primeiro motor é responsável


pela ordem do cosmos porque, graças a ele, como causal final, o primeiro céu se move
eternamente de maneira circular e, por sua vez, em virtude do movimento eterno dos céus é que
se mantém a sucessão eterna de gerações e corrupções no mundo sublunar.

Como visto, ele afirma no De Generatione et Corruptione que “em todas as coisas a
natureza aspira ao melhor”. Ao aplicarmos, pois, a teleologia aristotélica ao tema da animação
humana, resulta que não podemos simplesmente afirmar que o embrião em processo de
animação se equipara a um vegetal ou animal, já que está teleologicamente ordenado à
humanização completa, sendo esta uma notável distinção ontológica. Portanto, como se afirmou
acima, não se poderia dizer que o aborto precoce equivale à destruição de um vegetal ou animal,
já que estes não são potencialmente humanos como o concepto é.

Para que não tenhamos dúvidas sobre a adoção de tais concepções teleológicas
aristotélicas por Tomás e sobre a pertinência das mesmas no caso do aborto, vejamos o que diz
Tomás42:

41
Conquanto essa seja a interpretação tradicional do livro XII (lambda) da Metafísica de Aristóteles, convém
esclarecer que tal interpretação foi objeto de diversas críticas no contexto de uma polêmica mais ampla acerca do
tipo de causalidade que se atribui ao primeiro motor nesse livro e também nos livros VII e VIII da Física. Alguns
sustentaram uma causalidade eficiente, à semelhança da que se lhe atribui em obras de filosofia da natureza, como
a própria Física e o De Caelo. Porém, em Metafísica XII, parece que o filósofo lhe quis atribuir a função de uma
causa final ou exemplar, como sustenta a interpretação tradicional, corroborada pelas passagens citadas do De
Anima e do De Generatione et Corruptione. Talvez essa aporia, ínsita ao pensamento aristotélico original, possa
ser resolvida com a tese de que o primeiro motor move segundo ambos os tipos de causalidade. Para uma defesa
bastante consistente da interpretação tradicional, veja-se o artigo “La causalidad del primer motor en Metafísica
XII”, de Alberto Ross Hernández, publicado na revista Dianóia, volume LII, número 59, em novembro de 2007,
pp. 3-26.
42
STh, I, 2, 3 e CG, II, 89, respectivamente.
24

A quinta via é tomada do governo das coisas. Com efeito, vemos que algumas coisas
que carecem de conhecimento, como os corpos físicos, agem em vista de um fim, o
que se manifesta pelo fato de que, sempre ou na maioria das vezes, agem da mesma
maneira, a fim de alcançarem o que é ótimo. Fica claro que não é por acaso, mas
em virtude de uma intenção, que alcançam o fim. Ora, aquilo que não tem
conhecimento não tende a um fim, a não ser dirigido por algo que conhece e que é
inteligente, como a flecha pelo arqueiro. Logo, existe algo inteligente pelo qual todas
as coisas naturais são ordenadas ao fim, e a isso nós chamamos Deus.

Não há inconveniente se algum dos intermediários é gerado e imediatamente depois


se corrompe, pois os intermediários não têm a espécie completa, mas são como em
via para a espécie, e assim não são gerados para que permaneçam, mas para que
por eles se chegue ao gerado último.

Os textos acima, extraídos cada um de uma das duas sumas de Tomás, não nos deixam
dúvidas sobre a teleologia tomista, e de que esta, aplicada tanto à sua metafísica – o que abrange
o problema de Deus – quanto ao problema da animação progressiva, está apta a compor teses
perfeitamente aristotélicas, o que fortalece a argumentação de Tomás como uma argumentação
fundamentalmente filosófica e não apenas calcada em dados revelados da religião ou em
opiniões pessoais, principalmente no que diz respeito ao tema do aborto.

A primeira citação consiste na famosa quinta via da demonstração da existência de


Deus que Tomás constrói na primeira parte da Suma Teológica. Nela, Tomás alicerça a
demonstração inteiramente na teleologia, e afirma que “os corpos físicos, (...) sempre ou na
maioria das vezes, agem da mesma maneira, a fim de alcançarem o que é ótimo”.43

A segunda citação, da Suma contra os Gentios, tem relação mais estreita com o tema
aqui tratado. Tomás não nos deixa dúvidas: para ele, os graus intermediários do
desenvolvimento humano intrauterino ainda não manifestam a espécie completa ou perfeita,
“mas são como em via para a espécie, e assim não são gerados para que permaneçam, mas para
que por eles se chegue ao gerado último.”

Avançando para o excerto 8, em que se comenta o quinto mandamento – “não matarás”


–, Tomás discorre sobre três possibilidades: quando se mata apenas o corpo, mas a alma do
justo é salva; quando se mata apenas a alma por meio do induzimento ao pecado mortal,
levando-a à perdição eterna; e quando se mata o corpo e também a alma. Deste último caso,
Tomás dá dois exemplos: o aborto e o suicídio. O caso do suicídio não oferece dificuldades,

43
HUGON, Édouard. Os Princípios da Filosofia de São Tomás de Aquino: As Vinte e Quatro Teses
Fundamentais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. IV parte, capítulo 2.5.
25

mas o do aborto sim, mormente por se tratar de um inocente, sem pecados atuais, embora
portador da mácula do pecado original, de acordo com a doutrina católica. São compreensíveis
as razões de Tomás para afirmar que o corpo e a alma da criança abortada se perdem: Tomás
aplica aqui a doutrina do limbo44, que é o lugar de retenção das almas daqueles que não se
qualificam para o céu por não terem recebido o sacramento do batismo. As almas das crianças
mortas sem batismo e dos justos que não o receberam iriam para o limbo após a morte, um local
sem tormentos de qualquer espécie, em que se pode alcançar uma felicidade natural plena e
perpétua, mas não a felicidade sobrenatural do céu, consistente na visão beatífica. Hoje a Igreja
reconhece a tese teológica de que se pode esperar que haja um “caminho de salvação”
extraordinário para as crianças ou justos mortos sem batismo, por uma espécie de “desejo de
batismo”, semelhante ao “batismo de sangue” dos mártires, considerando-se que desejariam o
batismo caso tivessem oportunidade de recebê-lo. A razão disso é que, apesar de Deus ter
vinculado a salvação à recepção do batismo, ele próprio não está vinculado pelos sacramentos
que estabeleceu, podendo oferecer a todos os homens meios de salvação que só ele conhece.45

Observando o excerto 9, vemos que, ali, Tomás parece identificar o aborto com o
homicídio (occidere), sem fazer distinções. Contudo, alguém poderia objetar que o crime de
homicídio difere do ato de matar. Pode-se matar um animal e até uma planta, mas este ato não
implica em homicídio, que é, por definição, o ato de matar um homem. Ocorre que este verbo
sempre esteve associado ao crime de homicídio, pelo que a enunciação latina do quinto
mandamento é “non occides”. Porém, se alguém toma isoladamente um ou outro texto de
Tomás sobre o problema do aborto, não chegará a um parecer consistente sobre o tratamento
que o filósofo dá ao tema. Se em alguns textos ele parece identificar qualquer aborto com o
homicídio – como é o caso do presente excerto –, em outros, mais numerosos, ele faz uma
distinção clara entre o aborto anterior à formação completa do embrião e o aborto posterior a
este evento, como visto acima.

Convém lembrar que a embriologia na época de Aristóteles e de Tomás era rudimentar,


de modo que só se podiam observar as formas e aspectos macroscópicos do embrião em seus
sucessivos estágios. Não se conhecia a dinâmica microscópica da concepção e da subsequente

44
Tomás trata do limbo das crianças (limbus puerorum) nestas passagens de sua obra: III Sent., 22, 2, 1, 2; STh, I-
II, 89, 6, sed contra; além de diversas passagens do Suplemento – como Tomás morreu antes que pudesse terminar
a Suma Teológica, o tratado de escatologia, que fala mais detidamente do limbo, ficou a cargo de seus discípulos.
45
Catecismo da Igreja Católica, parágrafos 1257 a 1261.
26

nidação do ovo ou zigoto. Muito menos se conhecia a célula e sua organicidade, e menos ainda
a molécula do DNA humano, que se configura na concepção e confere à pessoa concebida, no
âmbito material, todas as suas características corpóreas de modo exclusivo e único. Seja como
for, a tese da animação tardia não leva necessariamente à conclusão de que o aborto é um ato
inocente, porque, desde a sua concepção, o embrião já se ordena a ser um homem completo,
como dito. Admitir-se-ia, no máximo, uma pena menos grave se o abortamento fosse praticado
nos estágios iniciais, mas isso nunca faria o aborto ser considerado legítimo ou moralmente
neutro.

Fabrizio Amerini, em percuciente trabalho, examina o tema do início e fim da vida


humana em Tomás46 e conclui que a teoria embriológica de Tomás oscila entre teses que
parecem contraditórias: a contínua identidade do embrião ao longo do tempo e a
descontinuidade do processo de geração. Segundo o autor, conforme se adote uma ou outra
tese, chegar-se-á a diferentes consequências bioéticas, que enfatizam ou bem certas
propriedades ou bem o sujeito que as detém. Assim, se o intérprete quiser incluir Tomás entre
aqueles que se opõem ao aborto em qualquer hipótese, enfatizará a identidade contínua que
Tomás confere ao sujeito que passa pelo processo geracional em vez de procurar estender ao
embrião recém-concebido a propriedade de “ser um ser humano” ou de “ser pessoa”. Se, porém,
um intérprete quiser incluir Tomás entre aqueles que sustentam, ou ao menos não se opõem, à
prática do aborto, deverá enfatizar a descontinuidade do processo de geração humana. Noutros
termos, com uma bioética das propriedades, antes do quadragésimo dia de gestação para os
meninos e do nonagésimo dia para as meninas (considerando-se os marcos estabelecidos por
Aristóteles para cada sexo), o embrião não pode ser considerado um ser humano. Por outro
lado, com uma bioética do sujeito, antes desses marcos o embrião pode ser considerado um
ser humano, mesmo que somente em potência.

Amerini observa também que é difícil determinar a posição de Tomás a respeito do


tipo de animação que o embrião tem antes da animação racional. Por vezes, parece que o
embrião “pré-racional” passa por uma animação extrínseca causada pela alma de seu pai que
nele permanece por meio da vis formativa. Em outras passagens, Tomás parece admitir que o
embrião tem seu próprio princípio de animação, distinto da vis formativa do pai. Tudo isso
revela a dificuldade de trazer Tomás ao centro de um debate bioético contemporâneo. Parece

46
AMERINI, Fabrizio. Aquinas on the Beginning and End os Human Life. Cambridge (Mass.): Harvard
University Press, 2013.
27

que não faz muito sentido forçar a entrada do filósofo neste debate, sob pena de surgirem
algumas incongruências. Apesar disso, encarando o desafio, Amerini conclui (tradução livre,
grifos ausentes no original)47:

Considerando a bioética decorrente de sua posição, apesar das dubiedades, não me


parece que a análise de Tomás acerca do processo embriogenético humano possa ser
considerada como uma posição fraca sobre o valor da vida humana. Por esta razão,
a polêmica lançada por alguns comentadores de Tomás contra a posição da Igreja
acerca da equivalência moral entre aborto e homicídio parece despropositada.
Embora as tentativas de adequar Tomás à atual posição da Igreja sobre o aborto
tenham falhado, isto não significa que a posição de Tomás tem de ser vista como
essencialmente contrária à da Igreja. A Igreja mesma sublinhou, corretamente em
minha opinião, que não há implicação lógica entre a tese da animação progressiva
do embrião (T1) e a tese da licitude moral do aborto (T2). Alguém poderia sustentar
a tese da animação progressiva do embrião e ao mesmo tempo ser claramente
contrário à prática do aborto. (...) Tomás, por exemplo, admite a primeira tese (T1),
mas rejeita a segunda (T2). A sacralidade da vida – tomando “sacralidade” como
um respeito incondicional pela vida tal como é encontrada naturalmente – parece ser
inquestionável para Tomás. Consequentemente, a concessão de Tomás à tese de que
o embrião só se torna humano após certo período de seu desenvolvimento não pode
ser invocada para apoiar superficialmente as teses em favor do aborto.

As palavras de Amerini corroboram o que foi dito acima: não se pode usar Tomás
como exemplo de uma suposta permissividade da Igreja em favor do aborto no passado. Como
ressalta o autor, o principal propósito de Tomás, ao esposar a teoria da animação progressiva,
parece ser o de definir exatamente os modos pelos quais a vida se apresenta, atribuindo a cada
modo um grau qualificado de valor e, consequentemente, de proteção, tanto ética quanto
jurídica. Assim, Tomás assume que as formas de vida vegetal e animal devem ser respeitadas,
mas fica claro que tais formas não podem ter o mesmo respeito devido à vida humana. E, para
Tomás, a vida humana, em seu máximo valor, pertence ao ser humano dotado de alma racional.
Isto é, não basta a vida biologicamente considerada para que um sujeito faça jus ao tratamento
devido a um ser humano pleno de suas capacidades racionais. No entanto, o embrião, dotado
de vida vegetativa desde a concepção, não pode ser equiparado a uma planta e nem mesmo a
um animal irracional no período anterior à sua animação racional. Isto porque, como se disse
acima, e de acordo com a lição de Tomás, cada ente deve ser considerado em sua teleologia
própria. Sendo assim, é inequívoco que um embrião humano está teleologicamente ordenado a
ser um homem completo, dotado de faculdades intelectivas. É um ser humano “em construção”,
dir-se-ia. Em outras palavras, o embrião é um ser humano completo em potência, pois traz em
si a capacidade de desenvolver as faculdades racionais. O mesmo não pode ser dito das plantas
e dos animais. A partir disto, o autor se pergunta: qual, então, deve ser o tratamento ético

47
Op. Cit., pág. 230 e 231.
28

dispensado aos embriões humanos? E conclui que, se a vida de um ser humano é sagrada, como
o é para Tomás, então ela deveria ser respeitada pelo simples fato de estar presente. Segue
argumentando que respeitar a vida humana implica que a vida humana é considerada
maximamente valiosa dentre os entes dotados de matéria e, por isto, deve ser maximamente
preservada. A partir daí, pode-se afirmar que o sujeito ordenado a adquirir uma vida humana
plena e o sujeito que outrora a adquiriu e veio a perdê-la devem ser igualmente protegidos.
Neste sentido, Amerini diz: “tudo aquilo que se prepara para a vida humana e tudo aquilo que
dela se segue, por conseguinte, devem ser preciosamente defendidos”48.

Robert Pasnau49 lembra que ninguém precisa de igualar o material bruto com o produto
final dele derivado para enxergar o grande valor do material bruto. Logo, considerando que
ninguém há de negar que a vida humana tem valor, é razoável dizer que nós devemos valorizar
não só os seres humanos plenos, mas também os embriões e fetos que se tornarão seres humanos
plenos. Assim, num mundo onde a água é preciosa, seria imoral não só destruir a água, mas
também o hidrogênio e o oxigênio usados para fazer água. Pasnau assevera que essas ideias são
completamente razoáveis por si mesmas, sem que seja necessário apelar para uma duvidosa
identificação entre o embrião e o ser humano.

Em vista disso, Amerini afirma que um embrião adquire seu valor ético na medida em
que é um pressuposto indispensável para a vida humana, do mesmo modo como adquire seu
valor metafísico na medida em que é o sujeito do processo geracional que o levará a tornar-se
um ser humano. Outrossim, conclui Amerini, se aquilo que é o pressuposto do ser humano não
é diferente, pela identidade do sujeito, do mesmo ser humano, o embrião deve, por conseguinte,
ser salvaguardado sem exceções na medida em que é potencialmente a mesma coisa que será
atualmente um ser humano50.

Como bem salienta o autor, dispondo do aparato físico e metafísico aristotélico, parece
difícil chegar a conclusões diversas das apresentadas, por mais razoáveis que possam ser.
Embora alguns excertos de Tomás possam gerar dúvidas, há uma coleção de outros textos que

48
Op. Cit., pág. 232.
49
PASNAU, Robert. Thomas Aquinas on Human Nature – A Philosophical Study of Summa Theologiae I, 75-
89. Cambridge-UK: Cambridge University Press, 2004. Pág. 125.
50
Op. Cit., pág. 232.
29

não deixam margem às dúvidas. Por exemplo, nos Comentários ao Livro de Jó51, Tomás
descreve as sucessivas etapas do processo de geração humana e as condições para que seja bem-
sucedido: primeiramente, a emissão do sêmen; depois, a “compressão da massa corporal no
útero materno”, a distinção dos órgãos e a infusão da alma racional por Deus. Contudo, o
filósofo menciona uma última condição:

Por fim, então vem a conservação da vida, tanto no útero materno como depois de
sair do útero. Esta conservação é parcialmente devida aos princípios naturais e
parcialmente aos dons de Deus, que são acrescentados à natureza e acima dela,
conforme sejam pertinentes à alma, ao corpo ou aos bens exteriores.

O excerto é eloquente por si mesmo. Segundo Tomás, impõe-se a conservação da vida,


“tanto no útero materno como depois de sair do útero”, como condição para que o processo
geracional alcance seu fim, de acordo com os “princípios naturais”.

5 CONCLUSÃO

Como se disse acima, a adesão de Tomás à metafísica e à embriologia aristotélica tem


certamente consequências bioéticas. Contudo, não se extrai daí nenhuma teoria bioética
específica, pelo menos não uma que esteja claramente enunciada nas obras de Tomás. Como já
dito, há dois caminhos bioéticos possíveis, conforme se enfatize uma ou outra tese tomista: de
um lado, a contínua identidade do embrião ao longo do tempo, que dá ensejo a uma “bioética
do sujeito” e, de outro, a descontinuidade do processo de geração, que enseja a “bioética das
propriedades”. De acordo com Amerini, um tomista poderia dizer que, considerada a filosofia
de Tomás, a melhor abordagem bioética à questão do começo da vida humana pode ser
resumida nesta frase: “a gradual proteção da vida humana”. Desta maneira, não se poderia
alegar que Tomás nega proteção ao concepto, mesmo nos primeiros dias de gestação.

Fazendo uma breve análise desse confronto de teses bioéticas a que alude Amerini,
poderíamos afirmar que, entre uma bioética do sujeito e uma bioética das propriedades; isto é,
entre uma bioética centrada na substância (ousía), no indivíduo, e uma bioética centrada em
seus acidentes ou propriedades, há de prevalecer a bioética do sujeito. Isto porque o sujeito

51
Sup. Iob, cap. 10: Ultimum autem est conservatio vitae tam in materno utero quam post exitum ex utero, quae
quidem conservatio est partim quidem per principia naturalia, partim autem per alia Dei beneficia naturae
superaddita, sive pertineant ad animam sive ad corpus sive ad exteriora bona...
30

sempre terá precedência ontológica sobre as propriedades que ele mesmo carrega. Estas seguem
aquele, e não o contrário. Na metafísica aristotélica, os sucessivos movimentos – da potência
para o ato e vice-versa – supõem a continuidade do ente que os sofre. Com isto, poderíamos
concluir que a bioética do sujeito não exclui as propriedades, mas a bioética das propriedades,
para se afirmar, deve de algum modo ignorar o sujeito detentor das propriedades, fazendo com
que estas tenham precedência sobre aquele, o que subverte a precedência lógica e ontológica
do ente sobre suas propriedades. Sendo assim, com a metafísica do ato e da potência e a
consideração teleológica dos entes, às quais Tomás adere, concluir-se-ia que é impossível
admitir a licitude moral do aborto em qualquer fase da gravidez.

Outra razão que nos faz pender para uma bioética do sujeito ou da substância é a teoria
da lei natural, abraçada por Tomás52. Relembremos que a tradição jurídica clássica está fundada
no reconhecimento da chamada lei natural; isto é, no fato de que a estrutura ético-jurídica de
uma dada sociedade humana, com suas normas e instituições, fundamenta-se numa estrutura
natural, e não na vontade arbitrária do homem. A lei produzida pelo homem – seja a lei geral e
abstrata que emana dos legisladores (lei positiva)53 ou a lei para os casos concretos que emana
dos julgadores (jurisprudência) – encontraria seu fundamento nessa lei natural, que está sediada
na natureza humana, no ser das coisas, na realidade mesma. Segundo Tomás, tal lei natural
imanente, por sua vez, encontra seu fundamento último na lei divina transcendente, que
corresponde à Razão criadora, ao Logos eterno. Em outros termos, significa dizer que as normas
éticas não dependem do arbítrio da vontade ou das opiniões, mas são dadas por uma inescapável
razão natural, que pode ser conhecida pelo intelecto humano. Se há uma natureza humana, como
pensa Tomás, há necessariamente hábitos compatíveis e hábitos incompatíveis com a mesma.
Os primeiros, Tomás os chama de virtudes; os últimos, de vícios. Assim, a ética das virtudes
de Tomás é calcada na natureza humana, na essência, na substância.54

Formulada na Grécia antiga, notadamente por Platão e Aristóteles, desenvolvida e


reconhecida por Cícero e os grandes jurisconsultos romanos e mencionada expressamente por
Paulo na carta aos Romanos55, a doutrina da lei natural chega ao século XIII e atinge com

52
Vide o Tratado da Lei e o Tratado da Justiça na Suma Teológica.
53
Observe-se que as cortes supremas podem também agir como legisladoras ao julgarem a constitucionalidade
das leis, ocasião em que emitem comandos gerais e abstratos, semelhantes às leis. Tal é o caso do nosso Supremo
Tribunal Federal.
54
GILSON, Etienne. El Tomismo. Navarra: EUNSA, 2002. Terceira parte, capítulo I.
55
Cap. 2, vv. 14 e 15: Os pagãos, que não têm a lei, fazendo naturalmente as coisas que são da lei, embora não
tenham a lei, a si mesmos servem de lei; eles mostram que o objeto da lei está gravado nos seus corações, dando-
31

Tomás a maturidade plena, sendo renovada nos séculos XVI e XVII pela escolástica tardia da
Península Ibérica. Considerando tal doutrina tomista, é razoável concluir, se empreendermos
uma interpretação sistemática da obra do filósofo, que Tomás, no fim das contas, adere mais a
uma bioética do sujeito – ou da natureza, se quisermos –, do que a uma bioética das
propriedades que tendesse a uma postura permissiva em relação ao aborto.

Ademais, se a condição de ser humano não é inata; isto é, se a pessoa não pertence à
espécie humana por natureza, quem decide se o embrião ou feto em gestação pertence ou não à
humanidade acaba sendo um consenso social ou a vontade arbitrária do legislador da ocasião.
Uma vez desconsiderado como termo inicial de proteção da vida humana o marco da
concepção, que se afigura como o mais cauteloso, vários marcos arbitrários para o início dessa
proteção podem ser postulados, cada qual com base numa propriedade adquirida pelo sujeito:
a formação do córtex cerebral, o início da atividade encefálica, o aparecimento das
características fenotípicas, a aceitação da criança pela comunidade humana, etc. Ao enveredar-
se por tal senda, o aborto passa a ser moralmente justificado até o marco arbitrariamente
definido, que pode ser mais precoce ou mais tardio.

Como a definição de tais critérios passa a depender não da natureza intrínseca do


sujeito – que ele ostenta ab initio de modo irrevogável –, mas sim do consenso ou da vontade,
nada impede que o critério vigente mude constantemente, podendo ser fixado até mesmo após
o nascimento, havendo quem defenda o “aborto pós-nascimento”.56 Semelhantemente, nada
impede que um consenso posterior revogue também o status humano de outros sujeitos, a
depender das propriedades que apresentam: deficientes mentais, comatosos, deficientes físicos,
portadores de Alzheimer, homossexuais, negros, judeus, cristãos ou de quem mais for julgado
descartável pela opinião então dominante ou segundo a vontade de um tirano qualquer. Fica
evidente o perigo social e político que tal concepção relativista da vida humana acarreta.

Por fim, há um argumento que pode ser aceito por céticos e materialistas, que negam
a realidade da alma e só se atêm às realidades biológicas. Trata-se de um argumento naturalista
ou até darwinista, poderíamos dizer. Amerini afirma que, com uma metafísica que dá primazia

lhes testemunho a sua consciência, bem como os seus raciocínios, com os quais se acusam ou se escusam
mutuamente.
56
GIUBILINI, Alberto et MINERVA, Francesca. After-birth abortion: why should the baby live?
Journal of Medical Ethics, publicação do Institute of Medical Ethics, vol. 39, 5.
32

às espécies em detrimento de seus indivíduos, qualquer ato que interfira na finalidade natural,
que é a conservação da espécie, deve ser considerado imoral. Assim, o aborto voluntário
aparece para Tomás como imoral e antinatural não só porque suprime um sujeito que se tornaria
um indivíduo humano completo, mas também porque subordina o bem da espécie a um
presumido benefício de um indivíduo qualquer. Por isto, o autor sustenta que “o
reconhecimento da primazia da espécie e da necessidade de sua conservação é por si mesmo
um razoável e suficiente motivo para ser contra, em princípio, a qualquer prática desmotivada
ou generalizada do aborto.”57

Amerini faz alusão, na passagem acima transcrita, a um pronunciamento da Igreja que


afirma, corretamente na opinião dele, que não há implicação lógica entre a tese da animação
progressiva do embrião e a tese da licitude moral do aborto.58 Tal documento distingue muito
bem entre a discussão metafísica acerca do momento de infusão da alma espiritual e o juízo
moral ou ético a respeito do abortamento como duas questões independentes, apresentando para
tanto dois motivos. O primeiro reafirma o que já foi dito: mesmo que se admita a tese da
animação tardia, já se está diante de uma vida biologicamente presente desde a concepção, vida
essa que prepara e requer uma alma racional, com a qual se completará a natureza recebida dos
pais, perfazendo-se o homem. O segundo nos dá um vislumbre da melhor conduta moral diante
de uma dúvida legítima acerca da humanidade ou do momento da animação racional do
embrião.

57
Op. cit., pág. 237.
58
Declaração sobre o Aborto Provocado, da Congregação para a Doutrina da Fé, principal órgão da Igreja Católica
para questões doutrinais (publicado em 1974 e disponível no website da Santa Sé): ...no decorrer da história, os
Padres da Igreja, bem como os seus Pastores e os seus Doutores, ensinaram a mesma doutrina, sem que as
diferentes opiniões acerca do momento da infusão da alma espiritual tenham introduzido uma dúvida sobre a
ilegitimidade do aborto. É certo que, na altura da Idade Média em que era opinião geral não estar a alma
espiritual presente no corpo senão passadas as primeiras semanas, se fazia uma distinção quanto à espécie do
pecado e à gravidade das sanções penais. Excelentes autores houve que admitiram, para esse primeiro período,
soluções casuísticas mais suaves do que aquelas que eles davam para o concernente aos períodos seguintes da
gravidez. Mas, jamais se negou, mesmo então, que o aborto provocado, mesmo nos primeiros dias da concepção
fosse objetivamente falta grave. Uma tal condenação foi de fato unânime. (...) Esta Declaração deixa
expressamente de parte o problema do momento de infusão da alma espiritual. Sobre este ponto não há tradição
unânime e os autores acham-se ainda divididos. Para alguns, ela dá-se a partir do primeiro momento da
concepção; para outros, ela não poderia preceder ao menos a nidificação. Não compete à ciência dirimir a favor
de uns ou de outros, porque a existência de uma alma imortal não entra no seu domínio. Trata-se de uma
discussão filosófica, da qual a nossa posição moral permanece independente, por dois motivos: 1° no caso de
se supor uma animação tardia, estamos já perante uma vida humana, em qualquer hipótese, (biologicamente
verificável); vida humana que prepara e requer esta alma, com a qual se completa a natureza recebida dos pais;
2° por outro lado, basta que esta presença da alma seja provável (e o contrário nunca se conseguirá demonstrá-
lo) para que o tirar-lhe a vida equivalha a aceitar o risco de matar um homem, não apenas em expectativa, mas
já provido da sua alma.
33

Trata-se do princípio da precaução: diante de uma dúvida legítima, a única atitude


moralmente correta é abster-se de praticar o ato (aborto), sob pena de se correr o risco de realizar
um ato equivalente ao homicídio. Seria o mesmo que praticar “roleta russa” em cabeças alheias,
ou enfiar uma faca num biombo sem a certeza de que não há ninguém atrás. A relativização do
valor da vida humana poder-nos-ia levar a caminhos eticamente questionáveis, para dizer o
mínimo. Se a vida humana tem valor (dificilmente alguém negaria isto), não só é imoral
suprimi-la como também assumir o risco de suprimi-la. Sendo assim, seria mister
reconhecermos que os entes humanos ou potencialmente humanos (o que inclui os zigotos,
embriões e fetos) pertencem todos à mesma espécie por natureza, e não por uma revogável
concessão arbitrária; isto é, só porque alguém assim o quis. Diante da dúvida sobre o início da
vida propriamente humana – dúvida legítima, repita-se –, a única postura ética possível seria a
precaução, a qual Tomás de Aquino elenca como virtude subordinada a uma das quatro virtudes
cardeais, a prudência ou sabedoria prática, aquela que reside no intelecto e que dirige as outras
três. O Doutor Angélico assim a define:

A matéria da prudência são as ações contingentes, nas quais assim como o verdadeiro
se mistura com o falso, o mal se mistura com o bem, devido à grande variedade dessas
ações nas quais o bem é frequentemente impedido pelo mal e nas quais o mal assume
aparência de bem. É por isso que a precaução é necessária à prudência para
escolher os bens e evitar os males.59

Ressalte-se que a mera impossibilidade de determinar o momento exato em que ocorre


a aquisição da humanidade plena (o que permanece um mistério insondável) já é motivo
suficiente para se abster de manipular, abortar ou usar para qualquer fim os embriões humanos
ou potencialmente humanos. Ante a incerteza, a melhor atitude moral é proteger a vida – que
se apresenta biologicamente – a partir do marco mais cauteloso, isto é, a concepção ou
fertilização, quando o espermatozoide penetra o óvulo.

Pelo que foi exposto, fica claro que, no âmbito ético, Tomás condena o aborto desde a
concepção (marco inicial da gravidez). E não poderia ser diferente, dado que essa condenação,
feita com toda clareza, remonta à era apostólica da Igreja à qual ele pertencia. No âmbito
metafísico, porém, Tomás adere à doutrina aristotélica da animação progressiva ou tardia,
postulando que a alma racional é infundida por Deus na criança um certo tempo após a
concepção. Como visto, de tal doutrina não se infere uma licitude do aborto nos primeiros dias

59
STh, II-II, q.49, a.8, resp.
34

de gravidez, pois, mesmo que se considere que o concepto não tem ainda uma alma humana
completa (isto é, racional ou intelectual), deve-se reconhecer que está ordenado a tê-la. Em
outras palavras, entre a fase pré-humana e a fase humana, algo permanece ou continua o mesmo:
o sujeito que passa por elas.

Isso posto, Amerini conclui (negritos acrescentados):

Para Tomás, há continuidade entre aquele embrião e aquele ser humano, e esta
continuidade poderia ser tomada como uma suficiente base metafísica para
desenvolver uma teoria bioética que não está pronta para aceitar de modo
generalizado, ou pelo menos de modo desregulado, a intervenção humana em
embriões com base na distinção entre uma fase pré-humana e uma fase propriamente
humana desses embriões. A continuidade entre o sêmen masculino e o embrião
humano, e entre este último e o ser humano, é uma condição suficiente, para Tomás,
para atribuir ao que quer que esteja em alguma relevante potência para um ser
humano um certo caráter sagrado e ‘divino’.

Por tudo o que foi exposto, podemos seguramente afirmar, com boa base textual, que
a tese da animação progressiva e a tese da ilicitude moral do aborto em quaisquer fases da
gravidez não apresentam contradições mútuas, de modo que ambas se harmonizam
coerentemente no contexto da filosofia de Tomás.

Cabe, por fim, reiterar que esta monografia pretendeu ser absolutamente neutra do
ponto de vista religioso ou político, além de ter-se guiado por parâmetros estritamente
filosóficos, com o modesto escopo de analisar, longe de qualquer polêmica atual, as raízes
físicas e metafísicas da ética de Tomás. Buscou-se entender de que modo podemos fundamentar
física e metafisicamente a solução do filósofo para um problema ético que envolve a dignidade
humana e a possibilidade de supressão intencional da vida de outrem.

Com isso em mente, buscou-se também, por meio de um esforço hermenêutico e com
os recursos oferecidos pela própria ética de Tomás, uma possível solução que desse conta de
suprir as lacunas da posição de Tomás e de atualizá-la na medida do possível, de certo modo.
35

BIBLIOGRAFIA

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