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RIO DE JANEIRO
2021
2
RIO DE JANEIRO
2021
3
Aprovada por:
_____________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Guerizoli Teixeira (orientador), nota 8,5
_____________________________________________
Prof. Dr. Mário Augusto Queiroz Carvalho, nota 8,5
_____________________________________________
Prof. Dr. Markos Klemz Guerrero, nota 8,5
Data: 24/01/2022
4
SUMÁRIO
I INTRODUÇÃO 5
II HILEMORFISMO 9
III ANIMAÇÃO PROGRESSIVA 12
IV IMPLICAÇÕES ÉTICAS 17
V CONCLUSÃO 29
BIBLIOGRAFIA 35
5
1 INTRODUÇÃO
Uma das questões mais polêmicas acerca do pensamento de Tomás de Aquino (1225-
1274) está situada em sua ética. Deparamo-nos por vezes com a alegação de que, por meio dele,
reputado por muitos como o maior fílósofo e teólogo católico, a Igreja Católica chancelava ou
considerava moralmente neutra a prática do abortamento nos estágios iniciais da gravidez.
Geralmente, tal opinião se pretende embasada na tese de Tomás acerca da animação
progressiva do ente concebido1 (tese derivada do hilemorfismo), também chamada animação
mediata ou retardada, a qual teria sido recepcionada de Aristóteles.
Ora, como, ainda de acordo com a mesma tradição de pensamento, o concepto não
pode ser dito plenamente humano até pelo menos o quadragésimo dia após a concepção para o
embrião masculino e o nonagésimo dia para o embrião feminino, antes desses marcos temporais
o abortamento não seria moralmente condenável, já que seria equivalente a matar uma planta
1
O ente concebido ou concepto pode ser designado pela embriologia, conforme sua fase de desenvolvimento,
como ovo, zigoto, embrião ou feto.
6
Contudo, o mestre de Tomás, Alberto Magno (1206-1280), concebeu tese diversa. Para
o Doutor Universal, que também se apoiou em Aristóteles, o embrião concebido, antes de
receber uma alma intelectiva infundida por Deus, não detém alma nenhuma. As atividades
vegetativas e sensitivas nele operadas são causadas pela vis formativa do sêmen paterno, já que
se pensava na época que este permanecia em atividade junto ao embrião até o quadragésimo
dia após a concepção. Finda a atividade da potência formativa seminal, o concepto estaria
pronto para receber a infusão da alma intelectual ou espiritual, já perfeita e acabada. Portanto,
diferentemente de Tomás, Alberto, ainda que adira ao mediatismo, não adere à tese da
progressão ou sucessão de almas (vegetativa, sensitiva e intelectiva).
2
De opificio Dei, XIX.
3
De hominis opificio, XXIX.
4
Ambigua, 42, 1324 C; 1325 D; 1337 C-D; 1341 A-C.
5
De Generatione Animalium, II, 3, 736 b, 8-15.
6
STh, I, 118, 2; CG, II, cap. 88 e 89; In Sent., II, 18, 2, 1; De Pot., 3, 9.
7
“Chamo embrião a primeira mistura da fêmea e do macho”. ARISTÓTELES, in De Generatione Animalium, I,
1, 728 b, 35.
8
predispunha a matéria do ente concebido para receber de Deus a infusão de uma alma intelectiva
por Ele criada. Lembremos que os doutores se baseavam na biologia aristotélica, segundo a
qual à fêmea cabia fornecer o elemento material passivo e ao macho o elemento formal ativo.
MATERIALISTA
TRADUCIANISMO
ESPIRITUALISTA
quanto à CAUSA ou
GERACIONISTA
CRIACIONISMO
Problema da
ANIMAÇÃO COM
PROGRESSÃO de
ALMAS
MEDIATISMO
SEM
quanto ao TEMPO PROGRESSÃO de
ALMAS
IMEDIATISMO
Esta monografia, embora parta de um debate que tem lugar no seio da Igreja, pretende
ser absolutamente neutra do ponto de vista religioso ou político, além de guiar-se por
parâmetros estritamente filosóficos, com o modesto escopo de analisar, longe de qualquer
polêmica atual, as raízes metafísicas da ética de Tomás. Noutros termos, buscamos entender de
que modo podemos fundamentar física e metafisicamente uma certa solução de um problema
ético que envolve a dignidade humana e a possibilidade de supressão intencional da vida de
outrem. Para tanto, o tema do abortamento, tratado por Tomás em alguns de seus escritos, será
8
CRUZ, Luiz Carlos Lodi da. A Alma do Embrião Humano: a questão da animação e o fundamento ontológico
da dignidade de pessoa do embrião. Anápolis: Múltipla, 2013.
9
estudado como um caso particular que revela essa estrita dependência entre filosofia teórica e
filosofia prática em seu pensamento, dependência essa que perpassa toda a filosofia antiga e
medieval. Ao final, pretende-se demonstrar que Tomás esteve muito longe de afirmar uma
suposta higidez ética do abortamento (mesmo quando praticado nos estágios iniciais da
gravidez), como pode pensar um leitor descuidado. Por outro lado, mostrar-se-á que suas
escolhas físicas e metafísicas influem diretamente na medida de gravidade ética que ele
reconhece para o ato em questão, medida essa que terá relação direta com o estágio da gravidez
em que seja praticado.
2 HILEMORFISMO
9
GILSON, Etienne. El Tomismo. Navarra: EUNSA, 2002. Segunda parte, capítulo IV.
10
forma substancial) que se perdesse por corrupção ou se adquirisse por geração, e que estivesse
ordenado a algo como está o ato à potência.
1) Ora, das substâncias, umas são simples e outras são compostas. Todavia, em
ambas há essência. (...) Nas substâncias compostas, a matéria e a forma são
conhecidas, como também o são, no homem, a alma e o corpo. Mas não se pode
afirmar que somente uma delas seja chamada a essência. (...) a essência é aquilo
que é significado pela definição. Ora, a definição das coisas naturais não contém só
a forma, mas, também, a matéria, até porque, se assim não fosse, não haveria
diferença entre as definições naturais e as definições matemáticas. (...) Fica, pois,
evidenciado que a essência compreende a matéria e a forma.10
2) Corpo, desse modo, é tomado como parte integral e material de animal, porque a
alma estará então fora do significado do nome corpo: ela lhe é acrescida, pois que
de ambos – alma e corpo, como de partes, o animal é constituído.11
10
De Ente et Essentia, cap. II, §§ 8 a 13: Substantiarum vero quaedam sunt simplices et quaedam compositae, et
in utrisque est essentia. (…) In substantiis igitur compositis forma et materia nota est, ut in homine anima et
corpus. Non autem potest dici quod alterum eorum tantum essentia esse dicatur. (…) essentia est illud, quod per
diffinitionem rei significatur. Diffinitio autem substantiarum naturalium non tantum formam continet, sed etiam
materiam; aliter enim diffinitiones naturales et mathematicae non differrent. (…) Patet ergo quod essentia
comprehendit materiam et formam.
11
De Ente et Essentia, cap. III, § 20, fine: Et hoc modo corpus erit integralis et materialis pars animalis, quia sic
anima erit praeter id quod significatum est nomine corporis et erit superveniens ipsi corpori, ita quod ex ipsis
duobus, scilicet anima et corpore, sicut ex partibus constituetur animal.
12
De Ente et Essentia, cap. V, § 58: Et propter hoc quod inter alias substantias intellectuales plus habet de
potentia, ideo efficitur in tantum propinqua rebus materialibus, ut res materialis trahatur ad participandum esse
suum, ita scilicet quod ex anima et corpore resultat unum esse in uno composito, quamvis illud esse, prout est
animae, non sit dependens a corpore.
13
De Ente et Essentia, cap. VI, § 66: Et ideo in talibus substantiis non invenitur multitudo individuorum in una
specie, ut dictum est, nisi in anima humana propter corpus, cui unitur. Et licet individuatio eius ex corpore
occasionaliter dependeat quantum ad sui inchoationem, quia non acquiritur sibi esse individuatum nisi in corpore,
cuius est actus, non tamen oportet ut subtracto corpore individuatio pereat, quia cum habeat esse absolutum,
11
Pelo excerto 2 entende-se que o corpo é parte integral e material do animal racional,
não se confundindo com a alma, que extrapola seu significado. Antes, a alma é acrescida ao
corpo para que se constitua o homem, animal racional. Como dito, forma e matéria se articulam
como ato e potência. Ainda, no excerto 3 Tomás ensina que, dentre as substâncias inteligentes,
a alma humana é a que tem mais de potência, de modo que é aquela que mais se aproxima das
realidades materiais, tanto que estas são levadas a participar do seu ser, resultando assim num
composto, embora a alma não seja totalmente dependente do corpo para subsistir.
Diferentemente dos homens e demais entes naturais, os anjos não são realidades
hilemórficas, como fica claro pela leitura do excerto 4. Como a matéria é o princípio de
individuação, isto implica que não haja pluralidade de indivíduos de uma mesma espécie
angélica, mas que cada anjo seja o único indivíduo de sua espécie. Tal não se dá com o homem,
que se individualiza pelo corpo material, de modo a haver pluralidade de indivíduos da espécie
humana. Contudo, embora a individuação dependa do corpo no início, o mesmo não vale para
o fim. A alma humana é um ser absoluto que adquire para si o ser individualizado, assumindo
a forma de um corpo. Uma vez que isso ocorra, a alma permanece para sempre individualizada,
mesmo que o corpo pereça. Por fim, Aristóteles ensinara que não há pluralidade de almas num
mesmo indivíduo, pois no termo sucessivo está contido em potência o termo antecedente.
Assim, nos animais, sua alma sensitiva comporta potencialmente as faculdades vegetativas,
ex quo acquisitum est sibi esse individuatum ex hoc quod facta est forma huius corporis, illud esse semper
remanet individuatum. Et ideo dicit Avicenna quod individuatio animarum vel multiplicatio dependet ex corpore
quantum ad sui principium, sed non quantum ad sui finem.
14
Para Tomás, só Deus é absolutamente simples, sem composição alguma. Todavia, os anjos, embora sejam
simples formas, são ainda compostos por ato e potência, essência e esse.
12
3 ANIMAÇÃO PROGRESSIVA
Assim, segundo o Doutor Angélico, a alma humana, embora seja una, comporta as
potências vegetativas (funções mais baixas do corpo, análogas às das plantas), as potências
sensitivas (os sentidos corpóreos, também compartilhados pelos animais irracionais) e as
15
De Anima, II, 3, 414b29-31.
16
STh, I, q.76, a.3.
17
STh, I, q.77, a.4, resp.: Dependentia autem unius potentiae ab altera dupliciter accipi potest, uno modo,
secundum naturae ordinem, prout perfecta sunt naturaliter imperfectis priora; alio modo, secundum ordinem
generationis et temporis, prout ex imperfecto ad perfectum venitur. Secundum igitur primum potentiarum ordinem,
potentiae intellectivae sunt priores potentiis sensitivis, unde dirigunt eas et imperant eis. Et similiter potentiae
sensitivae hoc ordine sunt priores potentiis animae nutritivae. Secundum vero ordinem secundum, e converso se
habet. Nam potentiae animae nutritivae sunt priores, in via generationis, potentiis animae sensitivae, unde ad
earum actiones praeparant corpus. Et similiter est de potentiis sensitivis respectu intellectivarum.
13
Isso significa dizer que, no ente concebido, ao longo de seus sucessivos estágios de
desenvolvimento, primeiro se formariam as potências vegetativas, logo após as sensitivas e por
fim as intelectivas, quando a natureza humana se aperfeiçoaria pela infusão divina da alma
espiritual, que então absorveria ou traria em si as potências inferiores. Pode-se dizer que Tomás
soa bastante razoável ao postular que, segundo a ordem da geração e do tempo, o que é
imperfeito evolui para o perfeito. Mas não tanto com relação ao tempo em que este processo se
desdobra. Talvez a animação não seja tão tardia assim; talvez seja instantânea, simultânea à
concepção, ou temporalmente infinitesimal. Neste caso, considerando a percepção humana do
tempo, a evolução do menos perfeito para o mais perfeito não se prolongaria no tempo,
constituindo apenas etapas lógicas passíveis de análise, mas concentradas no mesmo instante
do tempo.19
Como assinalado, uma das teorias sobre a geração humana em voga na época de Tomás
era o traducianismo, que afirmava ser o sêmen a causa formal do embrião, enquanto a causa
material seria o sangue menstrual. O sêmen masculino permanecia no útero materno e seria
responsável pela animação completa do embrião, inclusive pela animação racional. O agente
deste processo era a alma do pai, por meio da vis formativa que seu sêmen possuía. Tomás
insurge-se contra esta teoria20, negando que a alma racional estivesse presente no sêmen, pois,
segundo ele, considerando-se que o princípio intelectivo no homem é um princípio que
transcende a matéria, não é possível que a potência ativa presente na matéria estenda sua ação
até produzir um efeito imaterial, isto é, a transmissão da alma racional. Portanto, conclui ele, é
impossível que a potência presente no sêmen humano produza um princípio intelectual.
18
STh, I, q.77, a.4, ad 3 e a.8, resp.
19
Além do texto citado, Tomás trata da doutrina da animação progressiva nestes outros: STh, I, q.118, a.2, resp.;
STh, I, q.77, a.8, resp.; STh, I, q.85, a.3; CG, II, cap. 88 e 89; II Sent., d.18, q.2, a.1; De Pot., q.3, a.9, ad 9; Sup.
Iob, cap.3.
20
STh, I, q.118, artigo 2: “A alma intelectiva é causada pelo sêmen?”
14
Em seu favor, Tomás invoca Aristóteles, que afirma, na Geração dos Animais, que “só
o intelecto vem de fora”. Isto porque a alma intelectiva, prescindindo do corpo, subsiste após a
corrupção deste, e, sendo imaterial, não pode ser causada por geração material, mas somente
por criação divina. Assim, conclui Tomás que a alma intelectiva é criada por Deus no término
da geração humana, sendo esta alma ao mesmo tempo sensitiva e vegetativa, pelo que se
desfazem as formas precedentes (vegetativa e sensitiva), causadas, estas sim, pelo sêmen.
Como Tomás tem por certo que o sêmen empreende alguma atividade na geração
(premissa que, dados os conhecimentos científicos atuais, não está de todo errada), é necessário
que ele recorra à teoria da animação progressiva e, consequentemente, à distinção entre fetos
animados racionalmente e não animados racionalmente, para que concilie a teoria da vis
formativa do sêmen com a animação racional causada diretamente por Deus. Isto porque,
primeiramente, tem lugar a atividade formativa do sêmen, gerando as formas imperfeitas
correspondentes às almas vegetativa e sensitiva e, depois, completa-se a geração com a infusão
divina da forma perfeita ou completa, que abrange as três dimensões da alma.
Uma fragilidade da tese de Tomás é considerar que a alma do pai, por meio do sêmen,
exerce atividade gerativa do embrião em suas dimensões vegetativa e sensitiva. Pergunta-se:
como poderia a alma do pai ser causa eficiente sobre a matéria corporal do embrião à distância,
já que a causalidade eficiente supõe contato? Talvez Tomás respondesse argumentando que,
dada a imaterialidade da alma, a objeção da distância poderia ser superada. Contudo, tal
hipótese nos parece hoje datada e um tanto quanto anacrônica à luz das descobertas da ciência
experimental.
15
Por outro lado, o embrião não pode por si mesmo desenvolver-se para gerar sua própria
alma racional, pois a perfeição do efeito não pode superar a perfeição da causa, como ensinou
Tomás por diversas vezes21. Segundo o Doutor, que adere à doutrina aristotélica do ato e da
potência, “o que está em potência é reduzido a ato pelo que está em ato, pelo que é necessário
que esteja quente o que transmite calor a outros.”22 Sendo assim, conclui Tomás que “é sempre
necessário que a causa seja superior ao efeito.”23 Em outras palavras, é necessário que a causa
da alma racional do embrião tenha em si a perfeição da racionalidade para que possa transmiti-
la ou causá-la em outrem.
Se a causa não pode ser a alma dos pais e nem o próprio embrião materialmente
considerado, só restaria a alternativa de uma vis formativa externa que lhe fosse infundida no
momento da concepção e que permitaria seu desenvolvimento. Ora, somente uma alma racional
pode ser fonte dessa vis formativa, já que a perfeição do efeito não supera a da causa. Com isso,
a tese da animação imediata emerge com maior razoabilidade.
Por fim, convém notar que o próprio Tomás admite a teoria da animação imediata
como exceção. Tratando da encarnação de Cristo, tanto ele quanto Máximo Confessor afirmam
que sua alma racional foi criada e infundida no mesmo momento da concepção. Enquanto para
Tomás a animação imediata é um caso excepcionalíssimo, para Máximo Confessor é a regra de
toda e qualquer animação humana.
Tomás afirma que o Verbo divino assumiu o corpo por intermédio da alma racional,
de modo que aquele não poderia ser assumido senão pela ordem que o liga a esta24. Contudo,
isto não nos conduz necessariamente à animação imediata do corpo de Cristo. A tese fica mais
clara quando Tomás afasta a hipótese de que Maria tenha concebido uma carne ainda não
animada e ainda não assumida pelo Verbo25:
...o Verbo de Deus se uniu à natureza humana e a todas as suas partes, na unidade
da hipóstase. E não convinha que o Verbo de Deus, ao assumir a natureza humana,
destruísse a hipóstase preexistente dessa natureza ou de algumas de suas partes.
21
I Sent., d. 12. q. 1, art. 3, af. 4; STh, I, 2, 2; STh, I, 46, 2, ad 1; STh, I-II, 112, 1; STh, III, 9, 2.
22
STh, III, 9, 2, resp.
23
STh, I-II, 112, 1, resp.
24
STh, III, 6, 1.
25
STh, III, 33, 3, resp.
16
Vê-se, portanto, que Tomás claramente afasta a hipótese de que houvesse uma
hipóstase meramente humana antes da assunção da natureza humana pelo Verbo divino. Porém,
nada impede ainda que tenha havido uma animação progressiva sem a destruição de uma
hipóstase preexistente, de modo que, em dado momento, o corpo estaria apto para receber a
infusão de uma alma racional e assim ser assumido pelo Verbo divino. Tal hipótese, no entanto,
é também afastada por Tomás26:
Parece que repugna a Tomás a ideia de que Maria tenha concebido algo que não fosse
o Filho de Deus, ou que não fosse ainda o Filho de Deus, caso em que ela seria mãe de um ente
vegetal ou animal, mas não do Cristo. Em outros termos, se o dogma de fé diz que Maria
concebeu o Verbo divino, tal concepção não pode ter sido imperfeita ou incompleta, pois, do
contrário, não seria o Filho de Deus, o Cristo inteiro. Este pensamento fica claro no artigo
seguinte, em que Tomás afirma27:
Portanto, para Tomás, é necessário que o corpo do Cristo tenha sido animado
instantaneamente por uma alma racional no momento da concepção. Tal conclusão se impõe
para que se possa afirmar, como diz o dogma, que o Filho de Deus foi concebido pelo poder do
Espírito Santo. Esse caráter instantâneo da animação corpórea do Cristo, que o tornaria a única
exceção à animação progressiva dentre todos os homens, é assim justificado por Tomás28:
“...quanto maior for a potência do agente, mais rápida será a preparação da matéria. Daí que um
agente de potência infinita pode preparar a matéria para a devida forma num instante”.
Tomás deduz que, caso a alma intelectiva de Cristo não fosse infundida no primeiro
momento da concepção, não se poderia afirmar que Cristo foi concebido. Tal posição fica ainda
mais clara quando Tomás tenta justificar por que Cristo constitui uma exceção à regra29:
26
STh, III, 33, 1, resp.
27
STh, III, 33, 2, resp.
28
STh, III, 33, 1, resp.
29
STh, III, 33, 2.
17
4 IMPLICAÇÕES ÉTICAS
30
CRUZ, Luiz Carlos Lodi da. A Alma do Embrião Humano: a questão da animação e o fundamento ontológico
da dignidade de pessoa do embrião”. Anápolis: Múltipla, 2013.
18
Mas, a vida dos justos conserva e promove o bem comum, pois constituem o que há
de melhor na sociedade. Logo, de modo algum é lícito matar um inocente.31
6) Quanto ao segundo, deve-se dizer que quem fere uma mulher grávida pratica uma
ação ilícita. Portanto, se daí resultar a morte da mulher ou do feto já animado, não
escapará ao crime de homicídio.32
7) Este pecado [um ato que possa causar um aborto], conquanto seja grave e esteja
incluído entre os atos maus e contrários à natureza, considerando que até as bestas
desejam procriar, ainda assim é menos grave que o homicídio, já que até então o
fruto da concepção poderia ter-se impedido de outro modo. Nem tal ato é julgado
irregular, senão quando se provoca o aborto de um concepto já formado.33
8) É preciso dizer que alguns matam apenas o corpo – destes já falamos; outros
matam a alma, arrancando a vida da graça, empurrando ao pecado mortal: “Ele foi
homicida desde o princípio” (João 8, 44), ou seja, porque induziu ao pecado. Outros,
no entanto, são homicidas da alma e do corpo, e isso de dois modos. Primeiro, nos
abortos: os filhos são mortos tanto no corpo como na alma. Segundo, nos suicídios.34
No excerto 5, Tomás é claro ao dizer que “de modo algum é lícito matar um inocente”.
Tomás repudia qualquer espécie de homicídio que não seja em legítima defesa (pessoal ou
social), isto é, “a morte do pecador só se torna lícita quando se trata de preservar o bem comum,
31
STh, II-II, q.64, a.6, respondeo: Respondeo dicendum quod aliquis homo dupliciter considerari potest, uno
modo, secundum se; alio modo, per comparationem ad aliud. Secundum se quidem considerando hominem, nullum
occidere licet, quia in quolibet, etiam peccatore, debemus amare naturam, quam Deus fecit, quae per occisionem
corrumpitur. Sed sicut supra dictum est, occisio peccatoris fit licita per comparationem ad bonum commune, quod
per peccatum corrumpitur. Vita autem iustorum est conservativa et promotiva boni communis, quia ipsi sunt
principalior pars multitudinis. Et ideo nullo modo licet occidere innocentem.
32
STh, II-II, q.64, a.8, ad 2: Ad secundum dicendum quod ille qui percutit mulierem praegnantem dat operam rei
illicitae. Et ideo si sequatur mors vel mulieris vel puerperii animati, non effugiet homicidii crimen, praecipue
cum ex tali percussione in promptu sit quod mors sequatur.
33
IV Sent., d.31, q.2, a.3, expositio textus: Solet quaeri, cum masculus et femina, nec ille maritus nec illa uxor
alterius (...) pro incontinentia solius concubitus causa copulantur. De hoc in praecedenti dist. dictum est, quoniam
malus finis bonitatem matrimonii non tollit. Qui vero venena sterilitatis procurant, non conjuges, sed fornicarii
sunt. Hoc peccatum quamvis sit grave, et inter maleficia computandum, et contra naturam, quia etiam bestiae
fetus expectant; tamen est minus quam homicidium; quia adhuc poterat alio modo impediri conceptus. Nec est
judicandus talis irregularis, nisi jam formato puerperio abortum procuret. Semina paulatim formantur et cetera.
De hoc habitum est in tertio, dist. 3. Et postquam venter uxoris intumuerit, non perdant filios. Quamvis enim matrix
post impraegnationem claudatur; tamen ex delectatione, ut Avicenna dicit, movetur et aperitur; et ex hoc imminet
periculum abortus; et ideo Hieronymus vituperat accessum viri ad uxorem impraegnatam; non tamen ita quod
semper sit peccatum mortale; nisi forte quando probabiliter timetur de periculo abortus. Nec immutetur in eum
usum qui est contra naturam. Usus contra naturam conjugis est, quando debitum vas praetermittit, vel debitum
modum a natura institutum quantum ad situm; et in primo semper est peccatum mortale, quia proles sequi non
potest, unde totaliter intentio naturae frustratur; sed in secundo modo non semper est peccatum mortale, ut quidam
dicunt, sed potest esse signum mortalis concupiscentiae; quandoque etiam sine peccato esse potest, quando
dispositio corporis alium modum non patitur; alias tanto est gravius, quanto magis a naturali modo receditur.
34
In Decem Praeceptis, a.7, de quinto praecepto: ‘non occides’: Et sciendum, quod aliqui occidunt solum corpus,
de quo dictum est; alii animam, auferendo vitam gratiae, trahendo scilicet ad peccatum mortale. Ioan. VIII, 44:
ille homicida erat ab initio, inquantum scilicet traxit ad peccatum. Alii autem utrumque, et hoc dupliciter. Primo
in destructione praegnantium: occiduntur enim pueri in corpore et in anima. Secundo interficiendo seipsum.
35
Sup. I Tim., cap. 5, lec. 2: Et ideo subdit: melius est nubere quam uri. Et ideo in quo casu loquitur, videndum
est, quia in hoc, ne primam fidem faciant irritam, et ideo quod hic dicit volo, intelligitur non ex principali
intentione. Filios procreare, et non eos occulte occidere per abortum.
19
que o pecado destrói.” Ora, não há dúvidas de que o embrião ou feto no ventre de sua mãe é
um inocente. Logo, Tomás condena também o homicídio uterino. Contra esta interpretação,
alguém poderia objetar que a qualificação de “inocente” só se aplica propriamente ao concepto
já animado racionalmente, pois, antes disso, carecendo de alma racional, não se lhe aplica a
qualificação de inocente ou culpado, já que seria incapaz de ter culpa de algo. Contra esta
objeção, dir-se-ia, por exemplo, que a inocência tem espectro mais amplo do que a culpa, o que
é algo com que Tomás certamente concorda, considerando que o filósofo adere
inequivocamente à doutrina do pecado original.36 Portanto, para Tomás, há um estado original
de inocência que foi posteriormente conspurcado pelo pecado original, o qual acarreta uma
culpa que é adquirida por herança e difere da culpa decorrente das ações humanas. Ademais,
ele diferencia claramente entre o estado de inocência original, o estado de culpa e o estado de
glória.37 Enquanto o estado de glória implica uma elevação da natureza, o estado de culpa
implica uma degeneração da mesma e acarreta uma desordem das ações voluntárias.38 Com
isto, podemos concluir que, para o filósofo, o estado de inocência tem um lastro ontológico
mais robusto do que o de culpa, já que este é algo que acidentalmente maculou a natureza
humana e a fez perder, de certa maneira, parte da nobreza ontológica que originalmente detinha.
No excerto 6, Tomás afirma que “quem fere uma mulher grávida pratica uma ação
ilícita. Portanto, se daí resultar a morte da mulher ou da criança animada, não escapará ao crime
de homicídio”. Este passo oferece alguma dificuldade. A contrario sensu, poder-se-ia inferir
que matar uma criança ainda não animada no ventre de sua mãe (assumindo-se a teoria da
animação progressiva ou tardia) não implica o crime de homicídio. Contudo, afastar o crime de
homicídio está muito longe de aceitar que é lícito praticar um aborto nos primeiros dias de
gravidez; isto é, antes da presumida animação completa do ente concebido. Parece que, para
Tomás, provocar a morte do concepto nos primeiros dias de gravidez é menos grave do que
depois, quando a criança já estivesse presumivelmente animada. Porém, o ilícito continua sendo
grave, embora o seja em menor grau. Além disso, uma vez iniciado um processo ordenado a
um fim, ou seja, uma vez ocorrida a concepção, que está ordenada teleologicamente a produzir
um ser humano completamente formado, não é lícito interromper o processo artificialmente,
pois tal ato representaria uma ofensa à ordem da criação, à lei natural. Como ficará claro mais
adiante, Tomás considera as fases intermediárias do processo geracional como meios aptos a
36
STh, I-II, 85, 5.
37
STh, III, 13, 3.
38
STh, I, 48, 6.
20
produzir um fim. Este se materializa num indivíduo que instancia a espécie completa. Assim
sendo, é razoável considerar que o ente que se encontra em uma das fases intermediárias de sua
geração tem seu valor ontológico não em função das características entitativas que
momentaneamente ostenta, de acordo com a respectiva fase intermediária, mas sim em vista do
fim último, que é a geração de um indivíduo perfeito, pertencente à espécie humana.
Juridicamente, Tomás segue uma teoria amplamente difundida em sua época (baseada
no livro do Êxodo, 21, 22-25), a sustentar que um ato que cause o aborto de um embrião não
formado, isto é, ainda não animado racionalmente, não pode de modo algum ser equiparado a
um homicídio, embora seja um ato imoral, antinatural e pecaminoso. Na passagem bíblica
citada, a lei mosaica preceitua que, se dois homens, durante uma briga, ferirem uma mulher
21
grávida, causando-lhe o aborto, sem que haja “maior dano”, o culpado pagará uma indenização
estipulada pelo marido da mulher, além de pagar outra pena determinada pelos árbitros do caso.
Se, porém, houver “dano grave”, aplicar-se-á a lei de talião: vida por vida. Do texto, infere-se
que o aborto não é um dano tão grave quanto o homicídio, sendo-lhe imputada uma pena bem
menos severa do que a aplicada a este. Observe-se, no entanto, que Tomás adota uma ética mais
severa do que a da lei mosaica e menos severa do que a atual doutrina da Igreja concernente ao
aborto. Enquanto a lei mosaica considera qualquer aborto um dano menor, sem fazer distinção
quanto à fase da gravidez em que se dá, o Aquinate só considera um dano menor o aborto
ocorrido antes da animação racional do embrião. Assim se deve entender a frase “nem tal ato é
julgado irregular, senão quando se provoca o aborto de um concepto já formado” (nec est
judicandus talis irregularis, nisi jam formato puerperio abortum procuret). E, por fim, a atual
doutrina da Igreja ultrapassa Tomás e afirma a equivalência moral entre o aborto e o homicídio,
e mais: em razão da descriminalização do aborto em muitos países, a Igreja estabeleceu uma
pena canônica para o aborto que não é prevista para o homicídio, a excomunhão latae
sententiae. Com isso, poder-se-ia dizer que o aborto, segundo a Igreja, tornou-se até mais grave
do que o homicídio, se considerarmos as penas canônicas impostas pela Igreja.
Uma coisa fica bastante nítida: Tomás jamais admite a licitude de um ato que elimine
uma vida humana ou potencialmente humana no ventre materno. Como ele assume a teoria
aristotélica da animação progressiva, o embrião só adquire natureza humana plena ou perfeita
algum tempo após a concepção. Destarte, como foi dito, Tomás conclui que o aborto nos
primeiros dias de gravidez é um ato imoral (pecado grave), embora não seja tão grave quanto o
aborto tardio (equiparado ao homicídio), que priva da vida uma criança já formada, possuidora
de uma alma humana completa, dotada de potências intelectivas. Repita-se: esta conclusão ética
é necessária para que Tomás mantenha coerência com a teoria da animação tardia. Isto porque,
no caso de um abortamento no início da gravidez, não se estaria a matar um ser humano
completamente formado. Por outro lado, não se poderia dizer simplesmente que o embrião em
processo de animação se equipara a um vegetal ou animal, pois estes não se ordenam à
humanização como o embrião se ordena. Sendo assim, não se diga que o aborto precoce
equivale à destruição de um vegetal ou animal, já que estes não são potencialmente humanos
como o concepto é.
22
No fim das contas, parece que a teleologia é o principal fator que afiança a posição de
Tomás. Lembremos que seu ponto de vista teleológico acerca das coisas foi herdado de
Aristóteles. Vejamos o que diz o Estagirita no De Anima39:
Para todos os viventes que são perfeitos [...] a mais natural das obras consiste em
fazer outro vivente semelhante a si mesmos [...] com o fim de participar do eterno e
o divino na medida em que lhes é possível: todos os seres, desde logo, aspiram a isso
e com tal fim realizam quantas ações realizam naturalmente – o “em vista de quê”
tem, pois, dois sentidos: de algo e para algo. Pois bem, posto que lhes resulta
impossível participar do eterno e divino através de uma existência ininterrupta, já
que nenhum ser submetido à corrupção pode permanecer sendo o mesmo em sua
individualidade, cada um participa na medida em que lhe é possível, uns mais, outros
menos; e o que permanece não é ele mesmo, mas outro indivíduo semelhante a ele,
uno não em número, mas em espécie.
Com efeito, dado que afirmam que em todas as coisas a natureza aspira ao melhor, e
que é melhor ser que não ser [...], mas é impossível que o ser esteja presente devido
a estarem muito longe no princípio, o deus consumou o universo no único modo que
lhe restava, fazendo ininterrupta a geração. [...] A causa disto é, como dissemos
muitas vezes, a translação circular, pois é a única contínua. Por isso, também todas
as outras coisas que se transformam reciprocamente segundo suas afeições e
potências, como os corpos simples, imitam a translação circular. Com efeito, quando
da água se gera o ar e do ar o fogo e, novamente, do fogo a água, dizemos que a
geração completou o ciclo, porque retorna ao ponto inicial. Em consequência,
também a translação retilínea é contínua enquanto imita a circular.
A partir dessas duas referências, fica evidente que Aristóteles considera ser possível
relacionar causalmente dois âmbitos da realidade em termos de imitação e, além disto, que este
tipo de relação pode ser teleológica.
Indo além, podemos extrapolar tais concepções para a própria metafísica aristotélica e
a teoria do primeiro motor. Em Física VIII e Metafísica XII, Aristóteles descreve a relação que
há entre os distintos níveis ontológicos, a qual se dá em razão de certa semelhança, como o
movimento causado pelo primeiro motor no primeiro céu e por este nos céus subsequentes, de
modo que a natureza do efeito esteja em função da natureza da causa. Assim, para Aristóteles,
é fundamental o reconhecimento de alguma semelhança entre as distintas substâncias para
39
DA, II-4 (415 a 25).
40
GC, II-11
23
relacioná-las causalmente. Isto tem lugar tanto no caso da ação causal do céu sobre o mundo
sublunar como no caso da ação causal do primeiro motor sobre o céu41.
Como visto, ele afirma no De Generatione et Corruptione que “em todas as coisas a
natureza aspira ao melhor”. Ao aplicarmos, pois, a teleologia aristotélica ao tema da animação
humana, resulta que não podemos simplesmente afirmar que o embrião em processo de
animação se equipara a um vegetal ou animal, já que está teleologicamente ordenado à
humanização completa, sendo esta uma notável distinção ontológica. Portanto, como se afirmou
acima, não se poderia dizer que o aborto precoce equivale à destruição de um vegetal ou animal,
já que estes não são potencialmente humanos como o concepto é.
Para que não tenhamos dúvidas sobre a adoção de tais concepções teleológicas
aristotélicas por Tomás e sobre a pertinência das mesmas no caso do aborto, vejamos o que diz
Tomás42:
41
Conquanto essa seja a interpretação tradicional do livro XII (lambda) da Metafísica de Aristóteles, convém
esclarecer que tal interpretação foi objeto de diversas críticas no contexto de uma polêmica mais ampla acerca do
tipo de causalidade que se atribui ao primeiro motor nesse livro e também nos livros VII e VIII da Física. Alguns
sustentaram uma causalidade eficiente, à semelhança da que se lhe atribui em obras de filosofia da natureza, como
a própria Física e o De Caelo. Porém, em Metafísica XII, parece que o filósofo lhe quis atribuir a função de uma
causa final ou exemplar, como sustenta a interpretação tradicional, corroborada pelas passagens citadas do De
Anima e do De Generatione et Corruptione. Talvez essa aporia, ínsita ao pensamento aristotélico original, possa
ser resolvida com a tese de que o primeiro motor move segundo ambos os tipos de causalidade. Para uma defesa
bastante consistente da interpretação tradicional, veja-se o artigo “La causalidad del primer motor en Metafísica
XII”, de Alberto Ross Hernández, publicado na revista Dianóia, volume LII, número 59, em novembro de 2007,
pp. 3-26.
42
STh, I, 2, 3 e CG, II, 89, respectivamente.
24
A quinta via é tomada do governo das coisas. Com efeito, vemos que algumas coisas
que carecem de conhecimento, como os corpos físicos, agem em vista de um fim, o
que se manifesta pelo fato de que, sempre ou na maioria das vezes, agem da mesma
maneira, a fim de alcançarem o que é ótimo. Fica claro que não é por acaso, mas
em virtude de uma intenção, que alcançam o fim. Ora, aquilo que não tem
conhecimento não tende a um fim, a não ser dirigido por algo que conhece e que é
inteligente, como a flecha pelo arqueiro. Logo, existe algo inteligente pelo qual todas
as coisas naturais são ordenadas ao fim, e a isso nós chamamos Deus.
Os textos acima, extraídos cada um de uma das duas sumas de Tomás, não nos deixam
dúvidas sobre a teleologia tomista, e de que esta, aplicada tanto à sua metafísica – o que abrange
o problema de Deus – quanto ao problema da animação progressiva, está apta a compor teses
perfeitamente aristotélicas, o que fortalece a argumentação de Tomás como uma argumentação
fundamentalmente filosófica e não apenas calcada em dados revelados da religião ou em
opiniões pessoais, principalmente no que diz respeito ao tema do aborto.
A segunda citação, da Suma contra os Gentios, tem relação mais estreita com o tema
aqui tratado. Tomás não nos deixa dúvidas: para ele, os graus intermediários do
desenvolvimento humano intrauterino ainda não manifestam a espécie completa ou perfeita,
“mas são como em via para a espécie, e assim não são gerados para que permaneçam, mas para
que por eles se chegue ao gerado último.”
43
HUGON, Édouard. Os Princípios da Filosofia de São Tomás de Aquino: As Vinte e Quatro Teses
Fundamentais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. IV parte, capítulo 2.5.
25
mas o do aborto sim, mormente por se tratar de um inocente, sem pecados atuais, embora
portador da mácula do pecado original, de acordo com a doutrina católica. São compreensíveis
as razões de Tomás para afirmar que o corpo e a alma da criança abortada se perdem: Tomás
aplica aqui a doutrina do limbo44, que é o lugar de retenção das almas daqueles que não se
qualificam para o céu por não terem recebido o sacramento do batismo. As almas das crianças
mortas sem batismo e dos justos que não o receberam iriam para o limbo após a morte, um local
sem tormentos de qualquer espécie, em que se pode alcançar uma felicidade natural plena e
perpétua, mas não a felicidade sobrenatural do céu, consistente na visão beatífica. Hoje a Igreja
reconhece a tese teológica de que se pode esperar que haja um “caminho de salvação”
extraordinário para as crianças ou justos mortos sem batismo, por uma espécie de “desejo de
batismo”, semelhante ao “batismo de sangue” dos mártires, considerando-se que desejariam o
batismo caso tivessem oportunidade de recebê-lo. A razão disso é que, apesar de Deus ter
vinculado a salvação à recepção do batismo, ele próprio não está vinculado pelos sacramentos
que estabeleceu, podendo oferecer a todos os homens meios de salvação que só ele conhece.45
Observando o excerto 9, vemos que, ali, Tomás parece identificar o aborto com o
homicídio (occidere), sem fazer distinções. Contudo, alguém poderia objetar que o crime de
homicídio difere do ato de matar. Pode-se matar um animal e até uma planta, mas este ato não
implica em homicídio, que é, por definição, o ato de matar um homem. Ocorre que este verbo
sempre esteve associado ao crime de homicídio, pelo que a enunciação latina do quinto
mandamento é “non occides”. Porém, se alguém toma isoladamente um ou outro texto de
Tomás sobre o problema do aborto, não chegará a um parecer consistente sobre o tratamento
que o filósofo dá ao tema. Se em alguns textos ele parece identificar qualquer aborto com o
homicídio – como é o caso do presente excerto –, em outros, mais numerosos, ele faz uma
distinção clara entre o aborto anterior à formação completa do embrião e o aborto posterior a
este evento, como visto acima.
44
Tomás trata do limbo das crianças (limbus puerorum) nestas passagens de sua obra: III Sent., 22, 2, 1, 2; STh, I-
II, 89, 6, sed contra; além de diversas passagens do Suplemento – como Tomás morreu antes que pudesse terminar
a Suma Teológica, o tratado de escatologia, que fala mais detidamente do limbo, ficou a cargo de seus discípulos.
45
Catecismo da Igreja Católica, parágrafos 1257 a 1261.
26
nidação do ovo ou zigoto. Muito menos se conhecia a célula e sua organicidade, e menos ainda
a molécula do DNA humano, que se configura na concepção e confere à pessoa concebida, no
âmbito material, todas as suas características corpóreas de modo exclusivo e único. Seja como
for, a tese da animação tardia não leva necessariamente à conclusão de que o aborto é um ato
inocente, porque, desde a sua concepção, o embrião já se ordena a ser um homem completo,
como dito. Admitir-se-ia, no máximo, uma pena menos grave se o abortamento fosse praticado
nos estágios iniciais, mas isso nunca faria o aborto ser considerado legítimo ou moralmente
neutro.
46
AMERINI, Fabrizio. Aquinas on the Beginning and End os Human Life. Cambridge (Mass.): Harvard
University Press, 2013.
27
que não faz muito sentido forçar a entrada do filósofo neste debate, sob pena de surgirem
algumas incongruências. Apesar disso, encarando o desafio, Amerini conclui (tradução livre,
grifos ausentes no original)47:
As palavras de Amerini corroboram o que foi dito acima: não se pode usar Tomás
como exemplo de uma suposta permissividade da Igreja em favor do aborto no passado. Como
ressalta o autor, o principal propósito de Tomás, ao esposar a teoria da animação progressiva,
parece ser o de definir exatamente os modos pelos quais a vida se apresenta, atribuindo a cada
modo um grau qualificado de valor e, consequentemente, de proteção, tanto ética quanto
jurídica. Assim, Tomás assume que as formas de vida vegetal e animal devem ser respeitadas,
mas fica claro que tais formas não podem ter o mesmo respeito devido à vida humana. E, para
Tomás, a vida humana, em seu máximo valor, pertence ao ser humano dotado de alma racional.
Isto é, não basta a vida biologicamente considerada para que um sujeito faça jus ao tratamento
devido a um ser humano pleno de suas capacidades racionais. No entanto, o embrião, dotado
de vida vegetativa desde a concepção, não pode ser equiparado a uma planta e nem mesmo a
um animal irracional no período anterior à sua animação racional. Isto porque, como se disse
acima, e de acordo com a lição de Tomás, cada ente deve ser considerado em sua teleologia
própria. Sendo assim, é inequívoco que um embrião humano está teleologicamente ordenado a
ser um homem completo, dotado de faculdades intelectivas. É um ser humano “em construção”,
dir-se-ia. Em outras palavras, o embrião é um ser humano completo em potência, pois traz em
si a capacidade de desenvolver as faculdades racionais. O mesmo não pode ser dito das plantas
e dos animais. A partir disto, o autor se pergunta: qual, então, deve ser o tratamento ético
47
Op. Cit., pág. 230 e 231.
28
dispensado aos embriões humanos? E conclui que, se a vida de um ser humano é sagrada, como
o é para Tomás, então ela deveria ser respeitada pelo simples fato de estar presente. Segue
argumentando que respeitar a vida humana implica que a vida humana é considerada
maximamente valiosa dentre os entes dotados de matéria e, por isto, deve ser maximamente
preservada. A partir daí, pode-se afirmar que o sujeito ordenado a adquirir uma vida humana
plena e o sujeito que outrora a adquiriu e veio a perdê-la devem ser igualmente protegidos.
Neste sentido, Amerini diz: “tudo aquilo que se prepara para a vida humana e tudo aquilo que
dela se segue, por conseguinte, devem ser preciosamente defendidos”48.
Robert Pasnau49 lembra que ninguém precisa de igualar o material bruto com o produto
final dele derivado para enxergar o grande valor do material bruto. Logo, considerando que
ninguém há de negar que a vida humana tem valor, é razoável dizer que nós devemos valorizar
não só os seres humanos plenos, mas também os embriões e fetos que se tornarão seres humanos
plenos. Assim, num mundo onde a água é preciosa, seria imoral não só destruir a água, mas
também o hidrogênio e o oxigênio usados para fazer água. Pasnau assevera que essas ideias são
completamente razoáveis por si mesmas, sem que seja necessário apelar para uma duvidosa
identificação entre o embrião e o ser humano.
Em vista disso, Amerini afirma que um embrião adquire seu valor ético na medida em
que é um pressuposto indispensável para a vida humana, do mesmo modo como adquire seu
valor metafísico na medida em que é o sujeito do processo geracional que o levará a tornar-se
um ser humano. Outrossim, conclui Amerini, se aquilo que é o pressuposto do ser humano não
é diferente, pela identidade do sujeito, do mesmo ser humano, o embrião deve, por conseguinte,
ser salvaguardado sem exceções na medida em que é potencialmente a mesma coisa que será
atualmente um ser humano50.
Como bem salienta o autor, dispondo do aparato físico e metafísico aristotélico, parece
difícil chegar a conclusões diversas das apresentadas, por mais razoáveis que possam ser.
Embora alguns excertos de Tomás possam gerar dúvidas, há uma coleção de outros textos que
48
Op. Cit., pág. 232.
49
PASNAU, Robert. Thomas Aquinas on Human Nature – A Philosophical Study of Summa Theologiae I, 75-
89. Cambridge-UK: Cambridge University Press, 2004. Pág. 125.
50
Op. Cit., pág. 232.
29
não deixam margem às dúvidas. Por exemplo, nos Comentários ao Livro de Jó51, Tomás
descreve as sucessivas etapas do processo de geração humana e as condições para que seja bem-
sucedido: primeiramente, a emissão do sêmen; depois, a “compressão da massa corporal no
útero materno”, a distinção dos órgãos e a infusão da alma racional por Deus. Contudo, o
filósofo menciona uma última condição:
Por fim, então vem a conservação da vida, tanto no útero materno como depois de
sair do útero. Esta conservação é parcialmente devida aos princípios naturais e
parcialmente aos dons de Deus, que são acrescentados à natureza e acima dela,
conforme sejam pertinentes à alma, ao corpo ou aos bens exteriores.
5 CONCLUSÃO
Fazendo uma breve análise desse confronto de teses bioéticas a que alude Amerini,
poderíamos afirmar que, entre uma bioética do sujeito e uma bioética das propriedades; isto é,
entre uma bioética centrada na substância (ousía), no indivíduo, e uma bioética centrada em
seus acidentes ou propriedades, há de prevalecer a bioética do sujeito. Isto porque o sujeito
51
Sup. Iob, cap. 10: Ultimum autem est conservatio vitae tam in materno utero quam post exitum ex utero, quae
quidem conservatio est partim quidem per principia naturalia, partim autem per alia Dei beneficia naturae
superaddita, sive pertineant ad animam sive ad corpus sive ad exteriora bona...
30
sempre terá precedência ontológica sobre as propriedades que ele mesmo carrega. Estas seguem
aquele, e não o contrário. Na metafísica aristotélica, os sucessivos movimentos – da potência
para o ato e vice-versa – supõem a continuidade do ente que os sofre. Com isto, poderíamos
concluir que a bioética do sujeito não exclui as propriedades, mas a bioética das propriedades,
para se afirmar, deve de algum modo ignorar o sujeito detentor das propriedades, fazendo com
que estas tenham precedência sobre aquele, o que subverte a precedência lógica e ontológica
do ente sobre suas propriedades. Sendo assim, com a metafísica do ato e da potência e a
consideração teleológica dos entes, às quais Tomás adere, concluir-se-ia que é impossível
admitir a licitude moral do aborto em qualquer fase da gravidez.
Outra razão que nos faz pender para uma bioética do sujeito ou da substância é a teoria
da lei natural, abraçada por Tomás52. Relembremos que a tradição jurídica clássica está fundada
no reconhecimento da chamada lei natural; isto é, no fato de que a estrutura ético-jurídica de
uma dada sociedade humana, com suas normas e instituições, fundamenta-se numa estrutura
natural, e não na vontade arbitrária do homem. A lei produzida pelo homem – seja a lei geral e
abstrata que emana dos legisladores (lei positiva)53 ou a lei para os casos concretos que emana
dos julgadores (jurisprudência) – encontraria seu fundamento nessa lei natural, que está sediada
na natureza humana, no ser das coisas, na realidade mesma. Segundo Tomás, tal lei natural
imanente, por sua vez, encontra seu fundamento último na lei divina transcendente, que
corresponde à Razão criadora, ao Logos eterno. Em outros termos, significa dizer que as normas
éticas não dependem do arbítrio da vontade ou das opiniões, mas são dadas por uma inescapável
razão natural, que pode ser conhecida pelo intelecto humano. Se há uma natureza humana, como
pensa Tomás, há necessariamente hábitos compatíveis e hábitos incompatíveis com a mesma.
Os primeiros, Tomás os chama de virtudes; os últimos, de vícios. Assim, a ética das virtudes
de Tomás é calcada na natureza humana, na essência, na substância.54
52
Vide o Tratado da Lei e o Tratado da Justiça na Suma Teológica.
53
Observe-se que as cortes supremas podem também agir como legisladoras ao julgarem a constitucionalidade
das leis, ocasião em que emitem comandos gerais e abstratos, semelhantes às leis. Tal é o caso do nosso Supremo
Tribunal Federal.
54
GILSON, Etienne. El Tomismo. Navarra: EUNSA, 2002. Terceira parte, capítulo I.
55
Cap. 2, vv. 14 e 15: Os pagãos, que não têm a lei, fazendo naturalmente as coisas que são da lei, embora não
tenham a lei, a si mesmos servem de lei; eles mostram que o objeto da lei está gravado nos seus corações, dando-
31
Tomás a maturidade plena, sendo renovada nos séculos XVI e XVII pela escolástica tardia da
Península Ibérica. Considerando tal doutrina tomista, é razoável concluir, se empreendermos
uma interpretação sistemática da obra do filósofo, que Tomás, no fim das contas, adere mais a
uma bioética do sujeito – ou da natureza, se quisermos –, do que a uma bioética das
propriedades que tendesse a uma postura permissiva em relação ao aborto.
Ademais, se a condição de ser humano não é inata; isto é, se a pessoa não pertence à
espécie humana por natureza, quem decide se o embrião ou feto em gestação pertence ou não à
humanidade acaba sendo um consenso social ou a vontade arbitrária do legislador da ocasião.
Uma vez desconsiderado como termo inicial de proteção da vida humana o marco da
concepção, que se afigura como o mais cauteloso, vários marcos arbitrários para o início dessa
proteção podem ser postulados, cada qual com base numa propriedade adquirida pelo sujeito:
a formação do córtex cerebral, o início da atividade encefálica, o aparecimento das
características fenotípicas, a aceitação da criança pela comunidade humana, etc. Ao enveredar-
se por tal senda, o aborto passa a ser moralmente justificado até o marco arbitrariamente
definido, que pode ser mais precoce ou mais tardio.
Por fim, há um argumento que pode ser aceito por céticos e materialistas, que negam
a realidade da alma e só se atêm às realidades biológicas. Trata-se de um argumento naturalista
ou até darwinista, poderíamos dizer. Amerini afirma que, com uma metafísica que dá primazia
lhes testemunho a sua consciência, bem como os seus raciocínios, com os quais se acusam ou se escusam
mutuamente.
56
GIUBILINI, Alberto et MINERVA, Francesca. After-birth abortion: why should the baby live?
Journal of Medical Ethics, publicação do Institute of Medical Ethics, vol. 39, 5.
32
às espécies em detrimento de seus indivíduos, qualquer ato que interfira na finalidade natural,
que é a conservação da espécie, deve ser considerado imoral. Assim, o aborto voluntário
aparece para Tomás como imoral e antinatural não só porque suprime um sujeito que se tornaria
um indivíduo humano completo, mas também porque subordina o bem da espécie a um
presumido benefício de um indivíduo qualquer. Por isto, o autor sustenta que “o
reconhecimento da primazia da espécie e da necessidade de sua conservação é por si mesmo
um razoável e suficiente motivo para ser contra, em princípio, a qualquer prática desmotivada
ou generalizada do aborto.”57
57
Op. cit., pág. 237.
58
Declaração sobre o Aborto Provocado, da Congregação para a Doutrina da Fé, principal órgão da Igreja Católica
para questões doutrinais (publicado em 1974 e disponível no website da Santa Sé): ...no decorrer da história, os
Padres da Igreja, bem como os seus Pastores e os seus Doutores, ensinaram a mesma doutrina, sem que as
diferentes opiniões acerca do momento da infusão da alma espiritual tenham introduzido uma dúvida sobre a
ilegitimidade do aborto. É certo que, na altura da Idade Média em que era opinião geral não estar a alma
espiritual presente no corpo senão passadas as primeiras semanas, se fazia uma distinção quanto à espécie do
pecado e à gravidade das sanções penais. Excelentes autores houve que admitiram, para esse primeiro período,
soluções casuísticas mais suaves do que aquelas que eles davam para o concernente aos períodos seguintes da
gravidez. Mas, jamais se negou, mesmo então, que o aborto provocado, mesmo nos primeiros dias da concepção
fosse objetivamente falta grave. Uma tal condenação foi de fato unânime. (...) Esta Declaração deixa
expressamente de parte o problema do momento de infusão da alma espiritual. Sobre este ponto não há tradição
unânime e os autores acham-se ainda divididos. Para alguns, ela dá-se a partir do primeiro momento da
concepção; para outros, ela não poderia preceder ao menos a nidificação. Não compete à ciência dirimir a favor
de uns ou de outros, porque a existência de uma alma imortal não entra no seu domínio. Trata-se de uma
discussão filosófica, da qual a nossa posição moral permanece independente, por dois motivos: 1° no caso de
se supor uma animação tardia, estamos já perante uma vida humana, em qualquer hipótese, (biologicamente
verificável); vida humana que prepara e requer esta alma, com a qual se completa a natureza recebida dos pais;
2° por outro lado, basta que esta presença da alma seja provável (e o contrário nunca se conseguirá demonstrá-
lo) para que o tirar-lhe a vida equivalha a aceitar o risco de matar um homem, não apenas em expectativa, mas
já provido da sua alma.
33
A matéria da prudência são as ações contingentes, nas quais assim como o verdadeiro
se mistura com o falso, o mal se mistura com o bem, devido à grande variedade dessas
ações nas quais o bem é frequentemente impedido pelo mal e nas quais o mal assume
aparência de bem. É por isso que a precaução é necessária à prudência para
escolher os bens e evitar os males.59
Pelo que foi exposto, fica claro que, no âmbito ético, Tomás condena o aborto desde a
concepção (marco inicial da gravidez). E não poderia ser diferente, dado que essa condenação,
feita com toda clareza, remonta à era apostólica da Igreja à qual ele pertencia. No âmbito
metafísico, porém, Tomás adere à doutrina aristotélica da animação progressiva ou tardia,
postulando que a alma racional é infundida por Deus na criança um certo tempo após a
concepção. Como visto, de tal doutrina não se infere uma licitude do aborto nos primeiros dias
59
STh, II-II, q.49, a.8, resp.
34
de gravidez, pois, mesmo que se considere que o concepto não tem ainda uma alma humana
completa (isto é, racional ou intelectual), deve-se reconhecer que está ordenado a tê-la. Em
outras palavras, entre a fase pré-humana e a fase humana, algo permanece ou continua o mesmo:
o sujeito que passa por elas.
Para Tomás, há continuidade entre aquele embrião e aquele ser humano, e esta
continuidade poderia ser tomada como uma suficiente base metafísica para
desenvolver uma teoria bioética que não está pronta para aceitar de modo
generalizado, ou pelo menos de modo desregulado, a intervenção humana em
embriões com base na distinção entre uma fase pré-humana e uma fase propriamente
humana desses embriões. A continuidade entre o sêmen masculino e o embrião
humano, e entre este último e o ser humano, é uma condição suficiente, para Tomás,
para atribuir ao que quer que esteja em alguma relevante potência para um ser
humano um certo caráter sagrado e ‘divino’.
Por tudo o que foi exposto, podemos seguramente afirmar, com boa base textual, que
a tese da animação progressiva e a tese da ilicitude moral do aborto em quaisquer fases da
gravidez não apresentam contradições mútuas, de modo que ambas se harmonizam
coerentemente no contexto da filosofia de Tomás.
Cabe, por fim, reiterar que esta monografia pretendeu ser absolutamente neutra do
ponto de vista religioso ou político, além de ter-se guiado por parâmetros estritamente
filosóficos, com o modesto escopo de analisar, longe de qualquer polêmica atual, as raízes
físicas e metafísicas da ética de Tomás. Buscou-se entender de que modo podemos fundamentar
física e metafisicamente a solução do filósofo para um problema ético que envolve a dignidade
humana e a possibilidade de supressão intencional da vida de outrem.
Com isso em mente, buscou-se também, por meio de um esforço hermenêutico e com
os recursos oferecidos pela própria ética de Tomás, uma possível solução que desse conta de
suprir as lacunas da posição de Tomás e de atualizá-la na medida do possível, de certo modo.
35
BIBLIOGRAFIA
_____________. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2014. Ensaio introdutório, edição do texto
grego com tradução e comentários em Italiano: Giovanni Reale. Tradução para o Português:
Marcelo Perine.
_____________. Fisica. Florença: Giunti Editore - Bompiani, 2019. Tradução italiana: Roberto
Radice.
_____________. De Anima. Da Alma. Lisboa: Edições 70, 2001. Tradução portuguesa: Carlos
Humberto Gomes.
AMERINI, Fabrizio. Aquinas on the Beginning and End os Human Life. Cambridge (Mass.):
Harvard University Press, 2013.
CRUZ, Luiz Carlos Lodi da. A Alma do Embrião Humano: a questão da animação e o
fundamento ontológico da dignidade de pessoa do embrião. Anápolis: Múltipla, 2013.