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Dialogus: círculos dialógicos,

humanização e
auto(trans)formação
de professores
Celso Ilgo Henz
Joze Medianeira dos Santos de Andrade Toniolo
(Orgs.)

Dialogus: círculos dialógicos,


humanização e
auto(trans)formação
de professores

OI OS
EDITORA

2015
© Dos Autores Organizadores – 2015
celsoufsm@gmail.com
joze.toniolo@iffarroupilha.edu.br

Editoração: Oikos
Capa: Juliana Nascimento
Revisão dos originais: Larissa Martins Freitas
Revisão: Carlos A. Dreher
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Impressão: Rotermund S. A.

Conselho Editorial
Antonio Sidekum (Nova Harmonia)
Arthur Blasio Rambo (IHSL)
Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)
Danilo Streck (UNISINOS)
Elcio Cecchetti (UFSC e UNOCHAPECÓ)
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D536 Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de


professores / Organizadores Celso Ilgo Henz e Joze Medianeira
dos Santos de Andrade Toniolo. – São Leopoldo: Oikos, 2015.
160 p.; 16 x 23 cm.
ISBN 978-85-7843-554-7
1. Professores – Formação. 2. Ensino – Aprendizagem. 3. Peda-
gogia socioeducativa. I. Henz, Celso Ilgo. II. Toniolo, Joze Medianei-
ra dos Santos de Andrade.
CDU 371.13
Catalogação na publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
SUMÁRIO

Prefácio ...................................................................................................... 7
Apresentação ........................................................................................... 11
CÍRCULOS DIALÓGICOS INVESTIGATIVO-FORMATIVOS
E AUTO(TRANS)FORMAÇÃO PERMANENTE
DE PROFESSORES ................................................................................ 17
HENZ, Celso Ilgo
DIALOGUS: encontros dialógicos investigativos como
possibilidade de auto(trans)formação permanente de professores .............. 29
TONIOLO, Joze Medianeira dos Santos de Andrade
HENZ, Celso Ilgo
PAULO FREIRE E A FORMAÇÃO INICIAL PARA EJA:
interfaces dos cursos de licenciaturas da Universidade Federal
de Santa Maria ......................................................................................... 40
KAUFMAN, Nisiael de Oliveira
HENNICKA, Micheli Daiani
MONTAGNER, Silvia Regina
SOBRE ESCUTAR CRIANÇAS, ADOLESCENTES, JOVENS
E ADULTOS NA ESCOLA: desafios e possibilidades
para a auto(trans)formação de professores ................................................ 51
GOELZER, Juliana
OLIVEIRA, Luiz Renato de
SANTOS, Caroline da Silva dos
POR UMA PEDAGOGIA SOCIOEDUCATIVA: a construção
de processos humanizadores e auto(trans)formativos ................................ 62
PARIGI, Camila da Rosa
RIBEIRO, Eliziane Tainá Lunardi
COUTO, Gislaine Rodrigues
CÍRCULOS DIALÓGICOS INVESTIGATIVO-FORMATIVOS:
uma proposta epistemológico-política de pesquisa .................................... 73
HENZ, Celso Ilgo
FREITAS, Larissa Martins
UM OLHAR DA PEDAGOGIA POPULAR PARA A SALA
DE AULA DA ESCOLA PÚBLICA: o desafio de mobilizar
para o estudo e as contribuições dos vínculos afetivos e da
gestão escolar como entrelaçamentos do processo educativo ..................... 84
SIGNOR, Patrícia
PIGATTO, Carolina Zasso
KRANN, Rosilei Amaral
DEMOCRACIA, ALEGRIA E ESPERANÇA: a construção
compartilhada do Projeto Político-Pedagógico .......................................... 95
ROBAERT, Samuel
FERREIRA, Marinês Verônica
UMA ESCOLA ALEGRE E COMPROMETIDA COM
AS APRENDIZAGENS DAS CLASSES POPULARES:
EJA e o ensino de Química à luz dos ensinamentos de Paulo Freire ........ 106
CALDERAN, Arlete Pierina
RAMOS, Maria Rosângela Silveira
FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DAS ESCOLAS
DO CAMPO, ANCORADA NAS HISTÓRIAS DE VIDA E NOS
CÍRCULOS DIALÓGICOS INVESTIGATIVO-FORMATIVOS ........... 117
CARVALHO, Luciana Carrion
SILVEIRA, Melissa Noal da
APRENDENDO UMA CULTURA DE PAZ:
diálogos no amor e na esperança para “Ser Mais” ................................... 128
DORNELES, Tatiana Poltosi
SILVA, Daniele Mallmann da
A CONTRIBUIÇÃO DA AFETIVIDADE ENTRE EDUCANDOS
E EDUCADORES PARA O DESENVOLVIMENTO
DE SERES SOLIDÁRIOS E CRIATIVOS ............................................ 139
MACHADO, Mabel Brum Pinheiro
MENEGHETTI, Vânia Teresa
FORMAÇÃO INICIAL NO CURSO DE PEDAGOGIA:
compreendendo a capacitação para o exercício da docência
na classe hospitalar ................................................................................. 150
OLIVEIRA, Marilei Almeida de
OLIVEIRA, Marli Almeida de

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Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

PREFÁCIO

Dada a urgência do prazo para o envio deste prefácio, o Celso me suge-


riu que eu deixasse o coração falar. Eu poderia iniciar, portanto, expressando
sentimentos de alegria, de afeto, de esperança, em se tratando de um livro
cujos capítulos estão permeados do diálogo e da amorosidade de Paulo Freire.
Mas o coração às vezes acelera subitamente seu ritmo, e os sentimentos que
dele irrompem, incontidos, podem ser de indignação e denúncia, como jorra-
ram com veemência extrema no escrito derradeiro de Freire, sua Terceira Car-
ta Pedagógica, que nos deixou inconclusa, infelizmente, sobre sua mesa, na
hora de partir para a viagem definitiva. Inspirado nele, começarei, pois, este
prefácio com palavras de indignação e denúncia; indignação e denúncia pe-
rante o espetáculo deprimente que grande parte da mídia nos oferece, deto-
nando, detonando, detonando a nossa educação, a nossa escola pública, com-
parando o Brasil com a Finlândia, com a Suécia, com os Estados Unidos... Eu
venho dizendo, há muitos anos, que há coisas lindas, fabulosas, acontecendo
em humildes escolas de periferia ou do interior. Quando falei isto a um repór-
ter, ele reagiu, justificando o silêncio : “Mas estas coisas não chegam até nós”.
E eu disse a ele: “O senhor há de convir que repórter competente vai pesqui-
sar, vai ouvir os que nunca são ouvidos”.
Quando se compara, porém, o Brasil a outros países, por que não citar
as estatísticas que eles ideológica ou politicamente escondem? Eu tenho comi-
go dois documentos irrefutáveis de que na década de 80 os Estados Unidos
tinham sessenta milhões de analfabetos. Baste isto como indignação. Esque-
çamos os derrotistas atrelados aos interesses da perversa Globalização do
Mercado, que o Papa Francisco denomina “globalização da indiferença”. Va-
mos alimentar nossa esperança, nossa energia de luta, folheando este livro,
que nos está sendo presenteado pelo grupo de pesquisa “Dialogus”, do Centro
de Educação da Universidade Federal de Santa Maria.
Trata-se de um livro que não nasce de urgências burocráticas e institucio-
nais, de exigências da meritocracia acadêmica, de fúteis vaidades intelectuais
ou da competitividade do qualis. Trata-se, pelo contrário, de uma obra que
nasce do apelo de problemas dos mais urgentes e relevantes, no campo da
educação. Problemas como o de que os cursos de pedagogia ou das licenciatu-
ras não preparem as professoras e os professores apenas para darem aula a
crianças ou jovens sadios, nas escolas. Cabe prepará-los também para outras
demandas, como para crianças hospitalizadas com doenças graves, que não

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Prefácio

podem, e talvez não poderão mais frequentar uma escola, que têm todavia o
direito de continuar seus estudos.
Ao ler aquele texto, lembrei-me emocionado de uma das histórias do
saudoso Rubem Alves. Ele fala de um pai que se pergunta, orgulhoso, o que
poderá ser seu filho: médico, jurista, engenheiro mecatrônico, diplomata?... Qual,
enfim, das profissões mais honrosas (para ele, o pai, evidentemente...)? E o ou-
tro pai, cujo filhinho, com leucemia, tem os dias contados, dizendo apenas:
“Meu filho, se domingo for um dia bonito, vamos passear no zoológico”.
Aquelas crianças também gostariam de correr, brincar, pular. Mas se
não podem correr, pular, por que não voar, nas asas da imaginação, conduzi-
das por lindas histórias contadas por suas professoras, e por atividades lúdi-
cas, que suas professoras poderiam ter aprendido, nos cursos de pedagogia ou
das licenciaturas?
Mas não apenas crianças hospitalizadas têm direito à alegria de viver.
Todas as crianças, todos os adolescentes, todos os jovens e, por que não, todos
os adultos, querem alegria e têm direito a serem felizes. É o que enfatiza, já no
título, um dos capítulos do livro: “Uma Escola Alegre e comprometida com as
Aprendizagens das Classes Populares: EJA e o ensino de química à luz dos
ensinamentos de Paulo Freire”.
Percorrendo a lista dos títulos, dou-me conta de que há outro capítulo
dedicado à EJA, sob o título: “Paulo Freire e a Formação Inicial para EJA:
interfaces dos cursos de licenciatura na Universidade Federal de Santa Ma-
ria”. Não posso evitar uma digressão que, longe de afastar-me da atenção ao
prefácio, reforça a importância dos temas tratados neste livro. Na próxima
sexta-feira participarei, como um dos palestrantes, no Encontro Estadual do
Fórum da EJA. Na minha fala terei o prazer de comentar o livro que recebi, há
poucos dias, intitulado “Olhares múltiplos contemporâneos da Educação de
Jovens e Adultos”. Ao prefaciar este livro tive a satisfação de viajar, mental-
mente, através de todo o Rio Grande, com os autores e as autoras de todos os
quadrantes de nosso Estado. Fiz esta digressão para salientar a vitalidade ex-
traordinária da EJA, na qual se inserem dois capítulos, ao menos, do livro que
estou agora prefaciando.
Já que Paulo Freire está presente em todos os capítulos deste livro e, evi-
dente, em todas as atividades da EJA, faço uma pergunta a vocês, minhas inter-
locutoras e meus interlocutores do grupo de pesquisa “Dialogus”, e a todas as
professoras e todos os professores da EJA. Pergunta que eu faria também aos
que nas ruas gritaram: “Fora, Paulo”, os mesmos que pediam a volta da ditadu-
ra: “Se Paulo Freire tivesse permanecido no MEC, em 1964, em lugar de ser
expelido a 15 anos de exílio, teríamos ainda adultos analfabetos no Brasil hoje?”
Enquanto nossos legisladores, em Brasília, se preocupavam com a redu-
ção da idade penal, jogando nossas crianças às garras dos traficantes, as auto-

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Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

ras de um dos capítulos se preocuparam em pesquisar a história de vida de


crianças que já nasceram excluídas pelas condições sociais adversas de suas
origens. As autoras foram ouvir a educadora Carmem Craidy, que dedicou
sua vida a esta causa. Ela me presenteou o livro intitulado: “Medida Socioe-
ducativa: entre A & Z”, um livro cujos autores e autoras são não apenas pro-
fessoras e professores da UFRGS, mas também internos ou egressos da FASE,
pais e mães dos mesmos. Foi dada àqueles adolescentes e jovens a oportunida-
de de dizerem, de escreverem sua palavra, de contarem algo de sua história de
vida. Tal Como dizia Michel Foucault, nas suas pesquisas com os apenados:
“Não temos que falar por eles. Eles têm que se comunicar entre si e com a
comunidade”. Na mesma ótica de Fiori, que sintetizou o sentido da pedago-
gia de Freire no título de seu famoso prefácio: “Aprender a dizer a sua pala-
vra”. Linhas filosóficas muito diferentes, a de Foucault confrontada com a de
Fiori e Freire, mas por que não convergirem no respeito à dignidade e à auto-
nomia de cada ser humano?
É nesta mesma linha que eu vejo a pergunta que os autores de outro
capítulo lançam aos educadores: “Nossas práticas têm dado voz ou silenciado
os educandos?” O diálogo e a afetividade entre educandos e educadores é de
fundamental importância para o desenvolvimento de seres solidários, criati-
vos e curiosos epistemologicamente,destacando-se ter de se aprender a escu-
tar. Outro texto também enfatiza a afetividade para a criatividade nos proces-
sos de ensino-aprendizagem, trazendo poemas da crianças: “nas atividades reali-
zadas é possível perceber o enorme potencial criativo das crianças, o qual às ve-
zes se encontra adormecido”. Esta reflexão tem a ver com um artigo de Carlos
Drummond de Andrade intitulado “A educação do ser poético”. Drummond
considera que a criança é naturalmente poeta, mas aos poucos vai perdendo
este instinto poético, até o mesmo se extinguir totalmente na idade adulta. E
Drummond se pergunta: “Não será a escola que mata o ser poético da crian-
ça?”. Ele teme que sim, porque a escola leciona “matemática, português, geo-
grafia, sem mostrar às crianças o lado poético destas disciplinas”.
A construção do Projeto Político-Pedagógico, segundo uma das pesqui-
sas relatadas no livro, longe de ser uma tarefa meramente burocrática, deveria
ser vista como um processo compartilhado de todos os educadores e segmen-
tos de cada escola. Neste sentido ele significaria, ao mesmo tempo, uma expe-
riência de autoformação dos professores e estudantes, pela vivência da cidada-
nia na democratização da escola.
Um dos artigos é dedicado à educação do campo. Os autores relatam
uma experiência de formação, realizada numa escola do meio rural, através
dos Círculos Dialógicos, contrapondo-se à “violência simbólica”, que em ge-
ral impõe às escolas do meio rural um modelo urbanocêntrico. Trata-se da
contraposição da cidade e do campo, que segundo Marx e Engels tem origens

9
Prefácio

imemoriais, continuando problema grave até hoje, muito mal enfrentado so-
bretudo na educação.
Um dos méritos que me cabe salientar, entre vários outros, é que os
capítulos do livro abordam vários dos temas mais relevantes da nossa atuali-
dade, desde a EJA, a Pedagogia Hospitalar, a Formação Permanente de Pro-
fessores, o Pedagógico, a Educação Popular na Escola, a Escola do Campo,
bem como a construção do Projeto Político.
A concepção político-pedagógica que perpassa todos os capítulos do
livro – numa perspectiva dialógica, humanizadora, crítica, criativa e libertado-
ra –, tendo como inspirador Paulo Freire, em diálogo com outros autores, não
nasceu de pesquisas ou reflexões isoladas das autoras e dos autores, mas, sim,
de um processo cooperativo e afetivo. Tal processo se constitui no grupo de
pesquisa intitulado Dialogus, que realiza quinzenalmente seus encontros dia-
lógicos de auto(trans)formação permanente com professores, através de “Cír-
culos Dialógicos Investigativo-formativos”, inspirados nos famosos “Círculos
de Cultura” criados por Paulo Freire.
Eu desejaria não apenas ler, mas meditar demoradamente cada um dos
trabalhos. O que farei agora, é percorrê-los num ensaio de pot-pourri, colhendo
algumas pérolas que cada capítulo me oferece. Vínculos afetivos entre profes-
sores e estudantes, é a proposta de um dos capítulos, inspirado em Paulo Frei-
re e Pichón Rivière, como ideal para as relações em sala de aula. Nessa mesma
perspectiva, ao longo dos capítulos destaco valores como humanização, liber-
tação, processo cooperativo, afetividade, amorosidade. A gestão é vista, pelos
autores de outro capítulo, entrelaçada com o processo educativo, não disso-
ciada do mesmo. Prosseguindo meu pot-pourri, leio que cabe aos professores
“escutar” os educandos, totalmente de acordo com Freire, que em “Pedagogia
da Autonomia” dedica umas dez páginas ao item “Ensinar exige saber escu-
tar”. E o “saber escutar” tem tudo a ver com a auto(trans)formação perma-
nente, tendo como ponto de partida as “histórias de vida”. Diálogo, respeito,
reconhecimento do outro, são outras expressões que exprimem a sensibilidade
necessária em qualquer prática educativa.
Eu resumiria minha revoada meditativa sobre todos os capítulos do li-
vro, dizendo que, a par de seriedade intelectual, de rigor acadêmico e de visão
crítica da realidade educacional, nesta obra, como no Grupo Dialogus, do qual
o livro nasce, sentimos que pulsam intensamente “as razões do coração”, que
me incentivam também a levar adiante meu projeto de pós-doutorado intitula-
do: “Emotividade versus Razão: Por uma pedagogia do coração”.

Prof. Dr. Balduino Antonio Andreola


Porto Alegre, Primavera de 2015.

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Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

APRESENTAÇÃO

Presente em nossos cotidianos, eventos e relações diversas, o Grupo


Dialogus da UFSM organizou o livro DIALOGUS: círculos dialógicos, humani-
zação e auto(trans)formação de professores, expressando, centralmente, união e
organização, refletindo, com densidade, a forte relação que as pessoas parti-
cipantes do grupo mantêm entre si, com o mundo acadêmico e com os mais
diversos espaços educativos, com destaque para as práticas escolares. Ouso
afirmar que os vários textos que compõem esta coletânea dão conta do que é
central na vida acadêmica, expressando uma das dimensões muito caras à
produção intelectual: A ciência encontra sua única finalidade no alívio da miséria
humana (Bertolt Brecht). Com dedicada organização e trabalho colaborati-
vo, o grupo, sob a liderança do Professor Celso Henz, dedica-se à pesquisa, à
reflexão e à escrita de textos que bem expressam o caráter central que o tem
movido: solidariedade, organização, união, partilha, enfim, DIÁLOGO. As
autoras e os autores dos textos da coletânea colocam suas razões e suas emo-
ções para fazer falar e expor suas experiências e reflexões, invariavelmente
nascidas lá onde os “pés pisam” (Frei Betto). E o texto vai sendo composto
por vários escritos, todos eles produzidos em parceria, com duas centralida-
des básicas: a auto(trans)formação e os círculos dialógicos investigativo-formativos.
Assim, no primeiro texto do livro, Círculos Dialógicos Investigativo-
Formativos e Auto(trans)formação Permanente de Professores, Celso Ilgo
Henz apresenta-nos justamente as duas centralidades dos estudos, diálogos e
pesquisas que mobilizam e potencializam o Grupo Dialogus. Apresenta a pro-
posta epistemológico-política dos Círculos Dialógicos Investigativo-formati-
vos, com suas premissas e movimentos, como possibilidade de pesquisa e
auto(trans)formação permanente com professores e acadêmicos. Inspira-se nos
“Círculos de Cultura” de Paulo Freire, aproximando-os aos pressupostos da
pesquisa-formação de Marie-Christine Josso. Escreve o autor: “os diálogos
problematizadores e reflexivos construídos nas escolas reafirmam a importân-
cia de promover novas interações e debates entre educadores e acadêmicos,
para viabilizar (re)(des)construções de novas pedagogias, epistemologias e práxis
mais humanas e cidadãs, que contemplem a educação e a ciência no seu senti-
do amplo: educar e pesquisar para a auto(trans)formação das pessoas e contri-
buir com a transformação da sociedade.”

11
Apresentação

No texto seguinte, Joze Medianeira dos Santos de Andrade Toniolo e


Celso Ilgo Henz, com texto DIALOGUS: encontros dialógicos investigati-
vos como possibilidade de auto(trans)formação permanente de professo-
res, seguem dando conta do objetivo maior acima lembrado, que é o diálo-
go; buscam, ainda, “compartilhar o histórico e alguns registros do Grupo de
Estudos e Pesquisa “Dialogus: educação, formação e humanização com Pau-
lo Freire”. É de encontros quinzenais, na UFSM, que nascem as diversas
experiências de parceria, cooperação e partilha, especialmente com escolas
públicas. Para os autores, os encontros do grupo oportunizam “maior apro-
ximação entre a teoria e a prática; entre a ação-reflexão-ação; entre a univer-
sidade e a realidade escolar sentida/pensada/construída por acadêmicos e
acadêmicas das licenciaturas, professores e professoras da Educação Básica
e do Ensino Superior, através do diálogo investigativo e problematizador acer-
ca das práticas educativas”. Os encontros, em forma de “Círculos Dialógi-
cos Investigativo-formativos”, propiciam o diálogo entre situações vivencia-
das na realidade escolar e os pressupostos teórico-conceituais de Paulo Frei-
re e outros autores.
O terceiro texto da coletânea, intitulado Paulo Freire e a formação ini-
cial para EJA: interfaces dos cursos de licenciaturas da Universidade Fede-
ral de Santa Maria, de autoria de Nisiael de Oliveira Kaufman, Micheli Dai-
ani Hennicka e Silvia Regina Montagner, desenvolve o tema da formação ini-
cial de professores das licenciaturas para atuar na Educação de Jovens e Adul-
tos (EJA). As autoras partem da seguinte problemática: “A formação inicial
de professores na Universidade Federal de Santa Maria vem preparando seus
acadêmicos para atuarem na Educação de Jovens e Adultos, considerando as
possibilidades e desafios dessa modalidade no Ensino Médio?”. Paulo Freire
fundamenta a reflexão, em diálogo com outros autores. Centralmente, as au-
toras, concluem que “têm se evidenciado as fragilidades e desafios da forma-
ção inicial de professores, bem como a necessidade dessa ser redefinida para
que as práticas na Educação de Jovens e Adultos/Ensino Médio não se resu-
mam a uma mera transmissão de conhecimentos...”.
O próximo texto – Sobre escutar crianças, adolescentes, jovens e adul-
tos na escola: desafios e possibilidades para a auto(trans)formação de pro-
fessores –, escrito por Juliana Goelzer, Luiz Renato de Oliveira e Caroline da
Silva dos Santos, traz “reflexões de um grupo de educadores, professores da
Educação Básica, sobre a importância da escuta aos educandos e da valoriza-
ção de suas realidades”. Ou seja, a intenção dos autores é discutir a “impor-
tância da escuta e do diálogo com crianças, adolescentes, jovens e adultos na

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Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

escola”, tomando, como Freire bem enfatiza, as realidades que cercam esses sujei-
tos como ponto de partida. Tal opção, apontam os autores, é “condição para
uma prática pedagógica humanizadora.” Ademais, os autores intentam, tam-
bém, compartilhar “vivências e reflexões como educadores e educandos, como
gente”, sempre fazendo-se acompanhar do referencial freiriano.
O quinto texto – Por uma pedagogia socioeducativa: a construção de
processos humanizadores e auto(trans)formativos –, escrito por Camila da
Rosa Parigi, Eliziane Tainá Lunardi Ribeiro e Gislaine Rodrigues Couto, par-
te de reflexões sobre “adolescentes em conflito com a lei e discute as questões
históricas e legais da educação dentro dos espaços socioeducativos de priva-
ção de liberdade”. O diálogo é realizado com Paulo Freire, Carmem Maria
Crady, Miguel Arroyo e Celso Henz. O texto organiza (e aponta) centrais ele-
mentos para quem se dedica a repensar práticas socioeducativas “como espa-
ços-tempos auto(trans)formativos dos socioeducandos e socioeducadores, tendo
como perspectiva a humanização e cidadania”.
O texto seguinte – Círculos dialógicos investigativo-formativos: uma
proposta epistemológico-política de pesquisa –, sob a responsabilidade de
Celso Ilgo Henz e Larissa Martins Freitas, apresenta uma “... proposta episte-
mológico-política de pesquisa, inspirada nos Círculos de Cultura freireanos
em um entrelaçamento com os pressupostos da pesquisa-formação de Josso
(2004).” O escrito, à semelhança dos anteriores, nasce do trabalho do Grupo
Dialogus – Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire – CE/
UFSM, com forte presença na formação permanente com educadores das es-
colas de Educação Básica de Santa Maria/RS e Região. Os autores acreditam
que a “... pesquisa só se faz significativa no momento em que instiga os sujei-
tos envolvidos ao desvelamento de suas necessidades e contribui com a eman-
cipação de todos.” E é pela “reflexão crítica sobre a prática, com um coletivo
de pessoas, educadores e/ou educandos, com base nas temáticas levantadas
pelo grupo” que o anúncio acima acontece. Observam, os autores, que “du-
rante a dinâmica dos Círculos cada um vai tomando consciência do seu pró-
prio fazer pedagógico, em um processo permanente de reflexão,
(des)construindo práticas e (re)construindo-as em vistas de uma perspectiva
humanizadora comprometida com a conscientização e libertação de todos.”
O próximo texto, Um olhar da pedagogia popular para a sala de aula
da Escola Pública: o desafio de mobilizar para o estudo e as contribuições
dos vínculos afetivos e da gestão escolar como entrelaçamentos do proces-
so educativo, de Patrícia Signor, Carolina Zasso Pigatto e Rosilei Amaral
Krann, “lança um olhar da pedagogia popular para a sala de aula da escola

13
Apresentação

pública”. Dialogam com a “mobilização dos alunos para o estudo e as con-


tribuições dos vínculos afetivos e da gestão escolar como entrelaçamentos
do processo educativo mais problematizador, dialógico e humano.” Freire é,
sempre, base teórica para o diálogo. Avançando com problematizações e di-
álogos, afirmam que o trabalho possibilitou constatar duas facetas da reali-
dade da educação básica: “A escola ainda não tem conseguido contribuir
para a emancipação dos jovens cidadãos que frequentam as salas de aula.” E
concluem: “doutra parte, ouvir, compartilhar e prestar atenção neste jovem
que trabalha, que vai à escola, que luta diariamente para ser visto como al-
guém é um passo crucial e fundamental para a transformação da escola e a
motivação desses sujeitos”.
O oitavo texto – Democracia, alegria e esperança: a construção com-
partilhada do Projeto Político-Pedagógico –, de Samuel Robaert e Marinês
Verônica Ferreira, discute “a democratização da escola e da formação per-
manente dos professores através da construção compartilhada do Projeto Políti-
co-Pedagógico (PPP)”. Apostam, seus autores, no PPP como um elemento “ar-
ticulador da cotidianidade da escola e também dos processos
auto(trans)formativos docentes com foco no desenvolvimento pessoal e profissi-
onal docente, e da instituição educativa”.
O nono texto, intitulado Uma escola alegre e comprometida com as
aprendizagens das classes populares: EJA e o ensino de química à luz
dos ensinamentos de Paulo Freire, de autoria de Arlete Pierina Calderan e
Maria Rosângela Silveira Ramos, parte da seguinte afirmação: “O ato de edu-
car é socializar hábitos e atitudes entre pessoas, por meio de ações construídas
coletivamente e de forma intencional, no qual o diálogo entre educador e edu-
cando contribui para que as situações de aprendizagem possam acontecer.”
Objetivam, as autoras, “a reflexão sobre o ambiente escolar, voltada às ques-
tões de situações de aprendizagens nas escolas públicas, o processo formativo,
a questão dialógica, as interações, as mediações, bem como apresenta um exem-
plo de ação pedagógica, inserida em um contexto de ‘educar com seriedade e
alegria’”.
O próximo texto, Formação continuada de professores das escolas
do campo, ancorada nas histórias de vida e nos círculos dialógicos investi-
gativo-formativos, de Luciana Carrion Carvalho e Melissa Noal da Silvei-
ra, “versa sobre a violência simbólica entre os docentes da Educação do Cam-
po e sua relação com a formação continuada de professores”. Refletem “acer-
ca da formação continuada de professores nessa modalidade de educação,
visando ao não apagamento de suas características devido à instituição do

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Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

modelo urbanocêntrico nas Escolas Rurais”. Desde a perspectiva da história


de vida, de narrativas (auto)biográficas e Círculos Dialógicos Investigativo-
formativos, “como dispositivos de formação continuada aos docentes da
Educação do Campo”, as autoras investigaram “a possibilidade da forma-
ção continuada para a superação da violência simbólica entre os docentes da
Escola do Campo...”.
O décimo primeiro texto – Aprendendo uma Cultura de Paz: diálogos
no amor e na esperança para “Ser Mais” – de Tatiana Poltosi Dorneles e
Daniele Mallmann da Silva, procura “analisar os princípios da cultura de paz
e seus desafios para a auto(trans)formação” em meio a uma realidade desu-
manizada, apontando a necessidade de reflexão sobre os valores humanistas,
sempre baseada no diálogo, na escuta e no reconhecimento do outro. As auto-
ras concluem: “Os seres humanos, conscientes deste inacabamento, carregam
em si a capacidade de se desafiarem a tornar a vida e o mundo diferentes, para
o que a formação permanente pode contribuir enquanto processos de práxis
educativas e (re)humanizadoras”.
O próximo texto, o décimo segundo, intitulado A contribuição da afe-
tividade entre educandos e educadores para o desenvolvimento de seres soli-
dários e criativos, de Mabel Brum Pinheiro Machado e Vânia Teresa Mene-
ghetti, discute o “tema da afetividade, da amorosidade, nas relações estabele-
cidas entre educandos e educadores, e entre os próprios educandos”, tomando
Freire como referência central para o diálogo, objetivando estimular “o pro-
cesso de aprendizagem”, desde discussão filosóficas em Platão e Nietzsche.
Embora haja divergências entre os autores, do encontro dos autores citados
surge a possibilidade de criar um espaço de diálogo em sala de aula, estimular
a criticidade, a reflexão e o desenvolvimento da capacidade de criar a partir
dos conhecimentos trabalhados que surgiam e que foram abordados. Afirmam,
ainda, com Freire, que se pode trabalhar para a formação de “seres confiantes
nas suas capacidades”.
Por fim, o texto Formação inicial no Curso de Pedagogia: compreen-
dendo a capacitação para o exercício da docência na classe hospitalar, de
Marilei Almeida de Oliveira e Marli Almeida de Oliveira, “busca apresentar
os resultados da pesquisa realizada com base no trabalho de conclusão do
curso de Pedagogia Licenciatura Plena da Universidade Federal de Santa Maria,
intitulada ‘A Formação Inicial no Curso de Pedagogia: identificando qualida-
de e capacitação da práxis pedagógica na Classe Hospitalar’”. As autoras tra-
tam da formação inicial desenvolvida nos cursos presenciais de Pedagogia do
Município de Santa Maria. Concluem que os “cursos estão frente a um grande

15
Apresentação

desafio, pois precisam repensar as práticas que vêm sendo construídas e ofere-
cidas aos acadêmicos, de modo que as mesmas venham a revelar a realidade
da sociedade...”.
Enfim, a leitora e o leitor estão convidados a saborear os textos que,
mais do que revelar resultados de pesquisa, diálogos e construções coletivas,
expressam o grau de cumplicidade de pessoas que, comprometidas com a mu-
dança das injustas e injustificadas condições sociais em que vivem as pessoas,
colocam-se em posição de auto(trans)formação.
Uma boa leitura auto(trans)formativa a todos nós.

Prof. Dr. Gomercindo Ghiggi


Pelotas, outubro de 2015.

16
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

CÍRCULOS DIALÓGICOS
INVESTIGATIVO-FORMATIVOS E
AUTO(TRANS)FORMAÇÃO PERMANENTE
DE PROFESSORES1
HENZ, Celso Ilgo2

Primeiras palavras...
A realidade socioeconômica e cultural historicamente vigente em nosso
país tem oprimido, discriminado e excluído a muitas pessoas e grupos sociais,
que também são aviltados pelas manipulações midiáticas e tecnológicas for-
temente presentes e condicionantes no sentir/pensar/agir (HENZ, 2003) cotidia-
no de homens e mulheres do início do século XXI. Nesse contexto, a escola
ainda pode ser um dos poucos lugares onde crianças, adolescentes, jovens e
adultos tenham a oportunidade de encontrar um ambiente e pessoas que ain-
da não estejam totalmente “coisificadas” pela engrenagem da sociedade capi-
talista neoliberal globalizada.
O “Grupo Dialogus”, e seus projetos, visa ser um espaço-tempo de es-
tudos e pesquisas pela aprendizagem e exercício do diálogo-problematizador,
junto com os professores da Educação Básica e acadêmicos da Universidade
Federal de Santa Maria; oportuniza reflexões e pesquisas sobre a realidade
social e escolar com vistas a possíveis mudanças nas práxis educativas e contri-
buir com condições para uma vida mais digna pessoal e socialmente. Desde
2007, buscamos encorajar os profissionais a refletirem sobre si mesmos, sobre
suas práticas, para que possam também despertar nos estudantes sentimentos
e desejos de humanização e cidadania. Tomando como enfoque a abordagem
hermenêutica, optamos por trabalhar na perspectiva dos “círculos de cultura”
de Freire, aproximando-os da proposta de pesquisa-formação de Josso (2010)

1
Parte deste artigo já foi publicada no VIII Seminário Nacional Diálogos com Paulo Freire: por
uma pedagogia dos direitos humanos. Anais. Bento Gonçalves: IFRS: 2014.
2
Doutor em Educação (UFRGS, 2003), professor Associado 2 do Programa de Pós-Graduação
em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), coordenador do Gru-
po de Estudos e Pesquisa “DIALOGUS: educação, formação e humanização com Paulo Frei-
re”. E-mail: celsoufsm@gmail.com.

17
HENZ, C. I. • Círculos dialógicos investigativo-formativos e auto(trans)formação permanente de professores

pelos seus aspectos eminentemente dialéticos e proativos na transformação da


realidade e na auto(trans)formação dos sujeitos.
Desde maio de 2007 as atividades, com um recorte de pesquisa-ação,
desenvolvem-se em escolas municipais e estaduais da cidade de Santa Maria/
RS e regiões próximas, cujos desdobramentos e aprofundamentos levaram à
criação do Grupo “Dialogus: educação, formação e humanização com Paulo
Freire”, registrado junto à base do CNPq em 2011. Assim, o trabalho do Gru-
po foi se constituindo, passo a passo, juntamente com acadêmicos e professo-
res da Educação Básica enquanto entrelugar de vivências, encontros, estudos,
reflexões e mudanças, ganhando um forte viés de auto(trans)formação perma-
nente e também de pesquisa; sempre optando por uma educação a serviço de
uma vida mais bonita e digna para todos, com mais humanização e cidadania
na escola e na sociedade. O objetivo geral é investigar e propiciar processos e
vivências de humanização e cidadania com os professores e acadêmicos da
Educação Básica e Ensino Superior, buscando identificar os seus limites, de-
safios e possibilidades.
Com Freire (1999), acreditamos que, a partir da reflexão sobre si mes-
mo e sua práxis, toda pessoa é capaz de intervir na sociedade, uma vez que esse
processo conduz a tomadas de consciência e pode resultar no compromisso de
cada homem e mulher para com a história pela qual vai se constituindo. Daí
que, pelos movimentos dialógico-reflexivos e dialéticos dos encontros, refleti-
mos e desafiamos, com os educadores, sobre nós mesmos, sobre nosso quefa-
zer profissional, pessoal e cidadão, e sobre o contexto político-econômico-so-
cial em que estamos inseridos. Assim, procuramos construir caminhos que
possibilitem mudanças proativas à educação e à vida dos profissionais da edu-
cação, contribuindo, desta forma, para processos de humanização e cidadania
na escola, na universidade e na sociedade.

Caminhos epistemológico-políticos:
círculos dialógicos investigativo-formativos
Os encontros do “Grupo Dialogus” fundamentam-se em uma aborda-
gem qualitativa que busca compreender a complexidade dos fenômenos da
vida humana. Para isso, dialogam, refletem e desafiam ao desvelamento e a
transformação de muitos aspectos da vida social que condicionam o sentir/
pensar/agir das pessoas, trabalhando a partir de temáticas que emergem do
cotidiano profissional e social dos participantes. Quer dizer: “A procura temá-
tica converte-se assim numa luta comum por uma consciência da realidade e
uma consciência de si, que fazem desta procura o ponto de partida do proces-
so de educação e da ação cultural do tipo libertador” (FREIRE, 1980, p. 33).

18
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Inicialmente trabalhávamos orientados pelos pressupostos da pesquisa-


ação, mas aos poucos desvendamos que Freire também poderia ser o nosso
referencial para a pesquisa, sobretudo, por sua proposta epistemológico-políti-
ca dos “Círculos de Cultura”. Assim, várias dissertações vêm ensaiando a cons-
trução de uma proposta metodológico-epistemológica a partir de Freire. Com
muitas vozes e várias mãos, nós do Grupo Dialogus chegamos à compreensão
de que a nossa caminhada pedagógica e epistemológico-política se configura
como “Círculos Dialógicos Investigativo-formativos”. Reconhecendo o nosso
inacabamento, até o momento assumimos algumas premissas: confiança em
cada pessoa como capaz de construir conhecimento; o diálogo como constru-
ção cooperativa de conhecimentos e auto(trans)formações; valorização dos
saberes da experiência feito (FREIRE, 2011) de cada participante; onde todos
são interlocutores/coautores da pesquisa; e, “leitura do mundo” e “leitura da
palavra” permanentemente se (re)significando.
Como pesquisa qualitativa, partimos de problemas reais, que são identi-
ficados pela escuta sensível às narrativas de cada participante. Ademais, nos
espaços-tempos do Grupo, tanto nos estudos como nas atividades de pesqui-
sa, todos os participantes são reconhecidos como sujeitos epistemológicos e
caracterizam-se como coautotores e construtores de conhecimentos e práticas
que sirvam para intervir nos problemas levantados, refletindo e analisando
sobre como se dão as diferentes relações e interações nas práxis educativas
escolares e nas relações sociais. Esse processo se dá pela organização de círcu-
los dialógicos onde todos são convidados à prática da escuta sensível, do olhar
aguçado, do reconhecimento à alteridade do outro, a “dizer a sua palavra”
(FIORI, in FREIRE, 2011). Juntos, pela “leitura do mundo e leitura da pala-
vra” (FREIRE, 2011), intentamos desvendar a realidade, com olhares atentos
e com distanciamentos críticos, para desenvolver a capacidade crítica e criati-
va pela qual chegamos à “conscientização” (Ibidem) enquanto comprometi-
mento com a transformação da mesma, por meio de cujos movimentos tam-
bém nos auto(trans)formamos.
Trata-se de uma proposta epistemológico-política eminentemente dia-
lética e construtiva com vistas à transformação, na qual “todas as pessoas que
participam do estudo qualitativo são reconhecidas como sujeitos que elabo-
ram conhecimentos e produzem práticas adequadas para intervir no problema
que identificam” (CHIZOTTI, 2009, p. 83).
Doutra parte, toda esta práxis pedagógica, epistemológica e política, pelo
exercício do diálogo amoroso e reflexivo, nos conduz da curiosidade espontâ-
nea para a curiosidade epistemológica, propiciando a descoberta da condição
de inacabamento de cada participante como pessoa e cidadão no cotidiano da
escola, da universidade e da sociedade. Aos poucos se entende que as nossas

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HENZ, C. I. • Círculos dialógicos investigativo-formativos e auto(trans)formação permanente de professores

“formações permanentes” e/pelas pesquisas, junto com os professores da edu-


cação básica e acadêmicos da UFSM, são processos intersubjetivos e dialógi-
cos pelos quais cada um vai se auto(trans)formando enquanto pessoa e en-
quanto profissional, partindo da premissa de que: “ninguém educa ninguém,
como tampouco ninguém se educa sozinho: os homens se educam em comu-
nhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2011, p. 96). Isto faz buscarmos
aportes em Josso, considerando que estes movimentos dialéticos e proativos
podem ser assumidos como “pesquisa-formação”, uma vez que
a formação do sujeito é concebida como sucessão de transformação de suas
qualidades socioculturais e a pesquisa é entendida como a realização de
atividades transformadoras da subjetividade do sujeito aprendente e cog-
noscente. É, portanto, igualmente o sujeito da pesquisa e o sujeito cognos-
cente que estão em formação (JOSSO, 2010, p. 19).

Destarte, a auto(trans)formação permanente de professores se dá por


meio de uma circularidade em espiral ascendente proativa que se movimenta
dentro da condição ontológica do inacabamento humano em busca do “ser
mais” (FREIRE, 2011), o que só é possível pelo diálogo com os outros e com
o mundo. Pela dialética ação-reflexão-ação constitui-se um movimento coo-
perativo entre homens e mulheres que passam a perceber-se sujeitos no mun-
do, imersos em uma realidade que os condiciona, mas também descubram que
são capazes de transformá-la. Também Freitas (2010, p. 88) corrobora isso ao
enfatizar que “é através da conscientização que os sujeitos assumem seu com-
promisso histórico no processo de fazer e refazer o mundo, dentro das possibi-
lidades concretas, fazendo e refazendo a si mesmos”.
A realização e dinâmica dos encontros busca inspiração nos “Círculos
de Cultura” criados por Freire: “Os Círculos de Cultura [...] reúnem um coor-
denador com algumas dezenas de homens do povo, num trabalho comum de
conquista da linguagem. [...] a condição essencial da tarefa é o diálogo: ‘coor-
denar, jamais impor sua influência’” (FREIRE, 1980, p. 27). Nesta perspecti-
va, segue o testemunho de uma professora: Precisamos nos perceber enquanto gen-
te que somos e estamos conseguindo essa percepção a partir de nossos diálogos aqui.
Vocês nos provocaram, nos desacomodaram de nossas práticas; possibilitaram a nós um
espaço de ouvir, falar, refletir, discutir, respeitar, compartilhar e principalmente rever
nossas práticas (Palavras de uma professora interlocutora no Grupo, novem-
bro/2013).
Trabalhar com os Círculos Dialógicos Investigativo-Formativos, como
pesquisa e auto(trans)formação, possibilita reconhecer cada homem e cada
mulher na sua singularidade e na sua capacidade de construir conhecimentos
que ajudem no desvelamento da condição de condicionados; mas, porque con-
dicionados e não determinados, no seu inacabamento está a possibilidade de

20
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

um sentir/pensar/agir (HENZ, 2003) para transformar a si mesmo e a realida-


de vigente, sempre pelo diálogo e intersubjetividade de uns com os outros. Sob
esse prisma, todos os participantes da pesquisa são reconhecidos como coau-
tores, muito embora haja um pesquisador líder mediando os diálogos investi-
gativo-formativos. Freire (1999, p. 35) corrobora afirmando que não se pode
conhecer a realidade de que participam a não ser com eles, como sujeitos
também deste conhecimento que, sendo, para eles, um conhecimento do
conhecimento anterior (o que se dá ao nível da sua experiência quotidiana)
se torna um novo conhecimento. [...] Na perspectiva libertadora [...] a pes-
quisa, como ato do conhecimento, tem como sujeitos cognoscentes, de um
lado, os pesquisadores profissionais; de outro, os grupos populares e, como
objeto a ser desvelado, a realidade concreta.
Assim, os encontros quinzenais, na universidade ou nas escolas de Edu-
cação Básica, constituem-se no entrelaçamento de muitas dimensões e aspec-
tos do humano, do pedagógico e do social, como “leitura da palavra e (re)leitura
do mundo” e das práxis pedagógicas, resultando na “conscientização” de si
no/com o mundo, pela aprendizagem do “dizer a sua palavra” de cada um
(FIORI, in FREIRE, 2011).
Cada participante da pesquisa auto(trans)formativa, nos Círculos Dia-
lógicos Investigativo-formativos, é único e singular, sempre convidado a “di-
zer a sua palavra” (Ibidem, 2011), por meio de uma construção cooperativa,
intersubjetiva do conhecimento e da reflexão sobre a sua prática educativa,
uma vez que “a pesquisa é entendida como a realização de atividades transfor-
madoras da subjetividade do sujeito aprendente e cognoscente. É, portanto,
igualmente o sujeito da pesquisa e o sujeito cognoscente que estão em forma-
ção” (JOSSO, 2010, p. 19). Embora isso demande um empenho pessoal de
cada um, sempre é resultado da cooperação reflexiva, necessariamente funda-
mentada em bons constructos teórico-conceituais, caracterizando-se como pro-
cessos de coautoria epistemológica, o que não se dá sem considerar as múlti-
plas dimensões pessoais, profissionais e sociais de cada participante.
Os questionamentos e as reflexões dialógicas abrangem não só a práti-
ca, mas também as memórias, histórias, capacidades, saberes, atitudes, sensi-
bilidades, valores e concepções de cada professor ou professora e do grupo
como um todo, em um permanente movimento de conscientização e desafio
para tentar o novo que transforma. Então, o que ficou muito forte para mim, é que
precisamos ter coragem para enfrentar as oposições, pois sempre que buscamos inovar,
criar novas maneiras de aprender-ensinar somos barrados, ou pela gestão da escola, ou
pela secretária ou ainda pela sociedade. Precisamos ter coragem para enfrentar tudo isso
por nossos alunos (Fala de uma professora interlocutora no Grupo, maio/2013).
Não obstante, garantir a cada homem e mulher a possibilidade de dizer-se na
sua inteireza e ser reconhecido na sua singularidade – coerente com uma pers-

21
HENZ, C. I. • Círculos dialógicos investigativo-formativos e auto(trans)formação permanente de professores

pectiva dialógica, democrática e auto(trans)formativa – não se dá sem confli-


tos, pois estamos interagindo cooperativamente com “outros eus”, na busca
de objetivos e utopias comuns.
Com a corroboração teórico-conceitual de Francisco Imbernón (2009),
aprendemos que os processos de formação de professores, as instituições edu-
cativas e os profissionais da educação precisam redefinir e reestruturar objeti-
vos e ações, buscando assumir novas sensibilidades, saberes e conhecimentos
pedagógicos, científicos e culturais, condizentes com os desafios que deman-
dam do período histórico, econômico e político da sociedade. Dessa forma, os
participantes dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos desafiam-se per-
manentemente, buscando descobrir, organizar, fundamentar, revisar e
(re)construir teorias e práticas, dentro do contexto escolar ou para além do
mesmo.
Toda esta processualidade dialógica e dialética, mobilizadora da
auto(trans)formação, inscreve-se no âmbito hermenêutico, pois estabelece uma
ação comunicativa, problematizadora, reflexiva e histórica, gerando a fusão
dos diferentes mundos e horizontes de compreensão, a partir e por meio das
experiências e leituras de cada sujeito participante, sempre numa perspectiva
proativa. Nesse sentido, para Henz (2003, p. 24), compreender
[...] significa apreender o sentido. Mas este sentido sempre encontra-se num
determinado contexto; é aquilo que é “significativo” num respectivo mun-
do, a partir do qual a linguagem humana pode descortinar muitas significa-
ções e/ou intencionalidades dentro de uma totalidade impregnada pela his-
tória, tradição, vida cotidiana, diferentes maneiras de ver e viver a existên-
cia humana e o mundo em que ela se constitui.
Quer dizer, para análise e interpretação dos diálogos, os Círculos Dia-
lógicos Investigativo-formativos assumem o enfoque hermenêutico. A com-
preensão das palavras pronunciadas, dos desvelamentos e dos significados
construídos cooperativamente, precisam reconhecer as vivências de cada par-
ticipante dentro dos seus diferentes contextos sócio-histórico-culturais. Cada
um é o que se constitui pela interação e diálogo com os outros e com o mundo
ao seu entorno.

Diálogos (re)construídos e
auto(trans)formação permanente
Durante os encontros com os professores e acadêmicos acontecem dife-
rentes movimentos pessoais, epistemológicos e políticos, os quais dialeticamen-
te conduzem à descoberta do inacabamento, e, por conseguinte, à consciência
de ser humano em permanente processo de conscientização e auto(trans)for-

22
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

mação, com possibilidades de “ser mais” (FREIRE, 2011). O eterno compa-


nheiro desta práxis epistemológico-política e auto(trans)formativa é o diálogo
problematizador e amoroso, criando condições para que todos aprendam a
escutar e a “dizer a sua palavra” (FIORI, 2011), para intersubjetiva e dialogi-
camente também tomar distância de tudo aquilo que os condiciona e os faz
sentir/pensar/agir de uma determinada forma. Assim, os encontros desafiam
à reflexão e transformação sobre o cotidiano da sala de aula e da escola, bem
como o resgate da genteidade 3 de educadores, educandos e acadêmicos, agu-
çando suas capacidades de sonhar e lutar por um mundo diferente em que
todos tenham condições de ser homens e mulheres novos, “gostando de ser
gente” (FREIRE, 1996, p. 59).
Partindo dessa perspectiva, as (re)construções epistemológico-políticas
e as auto(trans)formações vivenciadas nos Círculos Dialógicos Investigativo-
formativos já foram sistematizadas em dissertações de mestrado4 de partici-
pantes do Grupo Dialogus, apontando alguns movimentos que compõem essa
proposta metodológico-epistemológica.
Assim, apresentamos esses movimentos ressaltando que “não ocorrem
linearmente ou de forma estanque; todos estão imbricados uns nos outros,
dentro da processualidade dialética de uma espiral” (HENZ; FREITAS, 2015):
escuta sensível e olhar aguçado; descoberta do inacabamento; emersão e iden-
tificação das temáticas; diálogos problematizadores; conscientização; e,
auto(trans)formação.
A partir dos pressupostos de Freire (1980, 1999, 2009, 2011), de Josso
(2010) e de Imbernón (2009) vemos como imperativo o desenvolvimento de
práticas alternativas fundamentadas em uma autonomia com autoria e parti-
cipação dialógica e democrática, que possibilitem a reflexão sobre os contex-
tos escolares, da comunidade circundante e da estrutura organizacional da
sociedade. Nessa perspectiva, a auto(trans)formação de professores assume
um papel importante para uma nova práxis pedagógica e epistemológico-polí-
tica. Somente um profissional aberto à reflexão sobre suas práticas e os con-
tornos que envolvem os estudantes e os processos educativos será capaz de
“estabelecer estratégias de pensamento, de percepção, de estímulos e centrar-
se na tomada de decisões para processar, sistematizar e comunicar a informa-
ção” (IMBERNÓN, 2009, p. 41).

3
No livro “Educação Humanizadora na Sociedade Globalizada” (2007), Henz destaca a pala-
vra genteidade, com base nos pressupostos freireanos. O conceito está relacionado ao inacaba-
mento do ser humano e sua constituição como sujeito que aprende permanentemente, com os
outros e com o mundo.
4
FREITAS (2015); OLIVEIRA (2015); KAUFMAN (2015).

23
HENZ, C. I. • Círculos dialógicos investigativo-formativos e auto(trans)formação permanente de professores

Para Freire (2009) essa formação se caracteriza por um movimento de


distanciamento, de reflexão crítica sobre as ações do contexto concreto, a par-
tir da curiosidade epistemológica que se articula com o saber prático e poste-
riormente com a prática, como instrumentos indispensáveis na construção
de um conhecimento mais resistente e significativo sobre o mundo vivido e
sentido. Ou seja,
[...] ao saber teórico destas influências teríamos que juntar o saber teórico-
prático da realidade concreta em que educadores trabalham. Já sei, não há
dúvida, que as condições materiais em que e sob que vivem os educandos
lhes condicionam a compreensão do próprio mundo, sua capacidade de
aprender, de responder aos desafios (p. 137).
Diante disso, os educadores e as educadoras passam a compreender tam-
bém a importância de novas práxis pedagógico-epistemológicas, nas quais os
conteúdos estejam imbricados com as relações humanas, que constituem os
sujeitos e perpassam todos os momentos e aspectos dos processos de ensino-
aprendizagem; os estudantes também passam a ser reconhecidos como sujei-
tos epistêmicos, capazes de construir conhecimentos, e não apenas receberem
passivamente conteúdos prontos. Corrobora com Freire, o diálogo entre dois
professores: Precisamos provocar que nossos jovens deixem de se perceber como sujeitos
“assujeitados”, precisamos “desaliená-los”, a vida é muito mais do que esse bairro (...)
(Narrativa de um professor durante encontro, agosto/2012). Ao que foi segui-
do: (...) sim, mas para eles saírem desta condição, o que eles tem? Ou melhor, quem eles
tem? Tem apenas nós, a escola (...) poderão apenas usar da educação para enfrentar o
mundo ai fora (Narrativa de outra professora durante encontro, agosto/2012).
No decorrer dos encontros buscamos dialogar sobre a importância da
leitura crítica do mundo e da realidade, a qual precede a leitura da palavra.
Freire (2009) provoca-nos para a possibilidade de reinvenção das práticas pe-
dagógicas, através da leitura e compreensão das ideologias que estão imbrica-
das em nossas ações. O desafio é ousar com novas práticas pedagógicas, reco-
nhecendo que para “outros sujeitos”, que trazem as marcas das “imagens que-
bradas”, fazem-se necessárias “novas pedagogias” (ARROYO, 2004 e 2013),
com as quais os conteúdos sejam abordados e imbricados com as relações
humanas e socioculturais.
Nesta dinâmica dialética, o educador também está permanentemente
aprendendo e ensinando junto com os educandos. Para corroborar com estas
(re)(des)construções epistemológicas, pedagógicas e políticas, trazemos a nar-
rativa de um dos participantes do grupo em maio/2013: a curiosidade, a inquie-
tude, nos faz rever a nossa prática para melhorá-la no amanhã. Sempre numa percepção
crítica, reinterpretada e reescrita do que foi lido, ou seja, para transformar nossa prática
em uma prática mais consciente e dialógica. Não obstante, Freire (2009) alerta que

24
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

esse movimento não ocorre se não nos voltarmos ao campo existencial; ao


contexto sócio-histórico-cultural onde é possível, não só maior compreensão
do mundo e da palavra, mas a própria transformação; na medida em que a
leitura do contexto concreto e teórico acontece, os sujeitos poderão modificar
suas práticas e o espaço no qual vivem. Nas palavras do autor:
Refiro-me a que a leitura do mundo precede a leitura da palavra e a leitura
desta implica na continuidade da leitura daquele. Na proposta a que me
referi acima, este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo,
está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mes-
mo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, pode-
mos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida
pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de escrevê-lo ou reescrevê-
la, quer dizer, transformá-lo através de nossa prática consciente (FREIRE,
2009, p. 30).

Esse compromisso transformador com a realidade e com a sua leitura


demanda uma compreensão crítica das ações que os sujeitos estabelecem em
seus contextos. Assim, quanto mais nos aproximamos da compreensão crítica
do mundo existencial, mais compreendemos as relações entre nossas práticas
e as ideologias autoritárias ou libertadoras; ou estamos trabalhando para legi-
timar uma sociedade que domina, discrimina, exclui e silencia, ou nossas prá-
xis mostram-se comprometidas com a humanização e cidadania daqueles que
estão “impedidos de ser” pelas estruturas sócio-político-econômicas vigentes.
Nesse movimento, os professores começam a compreender que, quan-
do o ensinar ocorre pela transmissão daquele que sabe àquele que não sabe,
assume-se consciente ou inconscientemente o mito da neutralidade, uma es-
pécie de ação pedagógica um quefazer puro ou espontaneísta. Faz-se necessá-
ria, pois, a superação da visão simplista ou salvadora do sujeito em processo de
aprendizagem; trata-se de assumir uma práxis educativa como processo coope-
rativo cognoscente crítico e criativo, a serviço da emancipação das pessoas. A
superação da visão da “educação bancária” (FREIRE, 2011), na qual o pro-
fessor transfere/deposita o conhecimento no sujeito; permite também a cons-
trução de uma sociedade nova, de um homem novo e uma mulher nova, onde
todos tenham condições de sentirem autores da própria história.

Interrompendo, para prosseguir os diálogos...


e as auto(trans)formações
A compreensão dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos como
um fenômeno humano reitera a importância das teorias e ações pedagógicas
estarem relacionadas às concepções de homem e sociedade, corroborando com

25
HENZ, C. I. • Círculos dialógicos investigativo-formativos e auto(trans)formação permanente de professores

objetivos e metodologias das ações formativas e educativas que vão transfor-


mando a intencionalidade pedagógica e política nas práxis dos professores.
Assim, aos poucos foram assumidas posturas mais críticas e ativas fren-
te aos processos de auto(trans)formação, às concepções de educação e socie-
dade, às compreensões de quem são os educandos e das ações a serem propos-
tas com eles. Na fala de um dos integrantes do grupo de professores é bom ficar
aqui esse tempo, pois aqui nos afastamos das práticas para admirar e refazer, com todo o
grupo (Fala de um dos professores durante o encontro, novembro/2013). Os
diálogos problematizadores e reflexivos construídos nas escolas reafirmam a
importância de promover novas interações e debates entre educadores e aca-
dêmicos, para viabilizar (re)(des)construções de novas pedagogias, epistemo-
logias e práxis mais humanas e cidadãs, que contemplem a educação e a ciên-
cia no seu sentido amplo: educar e pesquisar para a auto(trans)formação das
pessoas e contribuir com a transformação da sociedade.
Por meio dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos, pretende-
mos continuar sendo um entrelugar de estudos, pesquisa e auto(trans)formação
permanente com professores que atuam nas escolas de Educação Básica, o
que também se constitui em primoroso espaço auto(trans)formativo para os
acadêmicos dos Cursos de Licenciatura. Refletindo sobre a práxis educativa
vigente nas escolas e nas universidades, o desafio está em assumir ações que
criem um ambiente e relações de vivência da cidadania em todos os seus as-
pectos e dimensões, para uma maior genteidade de todos seja na escola, seja na
sociedade.
Nesse sentido, buscamos nos comprometer com os processos de liberta-
ção/conscientização, que são pensados com os sujeitos, com o intuito de de-
senvolver a luta pela transformação de si (auto) e da realidade ao seu entor-
no. Com os muitos “outros sujeitos” das escolas e das universidades, edu-
candos e educadores ainda sonhamos e acreditamos que podemos ajudar a
fazer a diferença nas relações entre nós e os estudantes, pela maneira de
enfocar e (re)significar os conteúdos, de sentir/pensar/agir na escola, na so-
ciedade, no mundo; assumirmos o compromisso de fazer a diferença na vida
das pessoas que conosco participam de práxis educativas para aprenderem a
“ser mais” gente.

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27
HENZ, C. I. • Círculos dialógicos investigativo-formativos e auto(trans)formação permanente de professores

KAUFMAN, Nisiael O. A Formação Inicial de professores das licenciaturas para


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Maria, Santa Maria.

28
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

DIALOGUS: encontros dialógicos


investigativos como possibilidade
de auto(trans)formação permanente
de professores
TONIOLO, Joze Medianeira dos Santos de Andrade1
HENZ, Celso Ilgo2

Iniciando o diálogo...
Vivemos uma realidade socioeconômico e cultural que nos desafia dupla-
mente: por um lado educar as futuras gerações para se inserirem e conseguirem
sobreviver no mercado de trabalho e nas estruturas sociais vigentes, assentadas
prioritariamente no conhecimento e na informação, para o que se faz necessário
educar desenvolvendo certas “habilidades e competências”; d’outra parte, tor-
na-se extremamente importante e emancipador desenvolver uma capacidade de
reflexão crítica que se constitua como engajamento consciente na transforma-
ção do status quo vigente, para que todos tenham acesso às condições mínimas
para viverem como seres humanos e cidadãos.
Nesta perspectiva, a escola pode ser um dos poucos lugares onde crian-
ças, adolescentes, jovens e adultos tenham a oportunidade de encontrar um
ambiente com pessoas que ainda não estejam totalmente “coisificadas” pela
engrenagem da sociedade capitalista neoliberal globalizada, uma vez que as
políticas educacionais determinam a obrigatoriedade e a gratuidade da educa-
ção básica, ainda que isto seja muito genérico. As políticas educacionais vi-
gentes são carregadas de intencionalidades, valores, ideias e princípios que,
via de regra, visam organizar um “mundo escolar” em que educadores e edu-
candos aprendam um determinado jeito de ser gente; ou seja, aprendam a ser

1
Doutoranda em Educação (PPGE/UFSM) e participante do Grupo de Estudos e Pesquisa
Dialogus: educação, formação e humanização com Paulo Freire. Professora do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha. E-mail: joze.toniolo@iffarroupilha.edu.br.
2
Doutor em Educação (UFRGS). Professor associado 2 da Universidade Federal de Santa Maria
e pesquisador do PPGE/UFSM, na Linha de Pesquisa: Formação, Saberes e Desenvolvimento
Profissional. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa Dialogus: educação, formação e humanização
com Paulo Freire, registrado junto à base do CNPq. E-mail: celsoufsm@gmail.com.

29
TONIOLO, J. M. dos S. de A.; HENZ, C. I. • Dialogus: encontros dialógicos investigativos...

cidadãos dentro de um conjunto de estruturas e instituições sociopolítico e


econômico já instituídos.
Buscando outros caminhos como possibilidades é que o “Grupo de Estu-
dos e Pesquisa Dialogus: educação, formação e humanização com Paulo Freire”,
por meio de seus projetos, visa ser um espaço-tempo de estudos e pesquisas,
através do diálogo-problematizador, junto com os professores da Educação Bá-
sica e acadêmicos, oportunizando reflexões e intervenções sobre a realidade so-
cial e escolar, bem como procura provocar possíveis mudanças nas práxis educa-
tivas. Busca, ainda, encorajar os profissionais a refletirem sobre si mesmos e
sobre suas práticas, para que possam também despertar nos estudantes esse sen-
timento de humanização e cidadania. Tomando como enfoque a perspectiva
hermenêutica, damos preferência ao processo investigativo enquanto pesquisa-
formação (JOSSO, 2004), pelos seus aspectos eminentemente construtivos e di-
aléticos com vistas à transformação pessoal e social.
O projeto de pesquisa “Humanização e Cidadania na Escola”3 se desen-
volve dentro do “Grupo Dialogus: educação, formação e humanização com Paulo
Freire”, desde o mês de maio do ano de 2007. As atividades com este recorte de
pesquisa-formação se desenvolvem em escolas municipais e estaduais da cidade
de Santa Maria/RS e regiões próximas, cujos desdobramentos e aprofundamentos
levaram à criação do “Grupo Dialogus”, registrado junto à base do CNPq em
2011, buscando ampliar, problematizar e aprofundar questões que foram emer-
gindo em cada encontro.
Desafiado por este contexto, o Grupo de Estudos e Pesquisa Dialogus
emerge do “chão da escola”, das necessidades e vivências explicitadas pelos
docentes e acadêmicos, dando continuidade aos seus processos
auto(trans)formativos. Além disso, busca oportunizar maior aproximação entre
a teoria e a prática; entre a ação-reflexão-ação; entre a universidade e a realidade
escolar sentida/pensada/construída por professores e acadêmicos.
Assim, os estudos do Grupo Dialogus, que ocorrem quinzenalmente na
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS), constituem-se como um pro-
cesso de educação e (re)construção de conhecimentos, a partir da indagação
autorreflexiva que prevê o envolvimento de todos os sujeitos (acadêmicos dos
cursos de licenciatura e professores) em ações prospectivas, tendo como objetivo
principal investigar e oportunizar a criação de processos de humanização e vi-
vência de cidadania com os professores e acadêmicos da Educação Básica e do

3
O Projeto de Pesquisa “Humanização e Cidadania na Escola” ocorre desde o ano de 2007 em
escolas Estaduais e Municipais de Santa Maria/RS e região, sob a coordenação do Professor
Dr. Celso Ilgo Henz. Atualmente o projeto vem se desenvolvendo em uma escola com
professores(as) da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e conta com
financiamento FIPE/UFSM.

30
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Ensino Superior, visando identificar os seus limites, seus desafios e suas possibi-
lidades.
Nessa perspectiva, Freire (2011) salienta que a partir da reflexão sobre si
mesmo o sujeito é capaz de intervir na realidade, uma vez que a autorreflexão
levará ao aprofundamento da tomada de consciência e resultará na sua inserção
como ator da sua própria história. Daí que, durante os encontros, refletimos e
dialogamos com licenciandos e educadores sobre si mesmos, suas práticas e
sobre o contexto político, econômico e social no qual estão inseridos. Além
disso, buscamos construir com os professores caminhos que possibilitem mu-
danças à educação e à vida desses profissionais; e, assim, contribuir para possí-
veis processos de humanização e cidadania na escola.

Diálogos (re)construídos na auto(trans)formação de professores


Os encontros com os(as) professores(as) e licenciandos(as), sempre dialó-
gicos-investigativos-problematizadores, propiciam a descoberta do inacabamento
e, por conseguinte, a consciência de ser humano em permanente processo de
auto(trans)formação. Assim, procuramos desafiar à reflexão e à transformação
sobre o cotidiano da sala de aula e da escola, bem como ao resgate da genteidade4
de educadores, educandos e acadêmicos.
Para a realização e a dinâmica dos encontros, assumimos os “Círculos
Dialógicos Investigativo-formativos”, inspirados nos “Círculos de Cultura”
criados por Freire: “Os Círculos de Cultura [...] reúnem um coordenador com
algumas dezenas de homens do povo, num trabalho comum de conquista da
linguagem. [...] a condição essencial da tarefa é o diálogo: ‘coordenar, jamais
impor sua influência’” (FREIRE, 1979, p. 27).
Os encontros quinzenais do grupo constituem-se no entrelaçamento das
múltiplas dimensões e aspectos do humano, do pedagógico e do social, enquan-
to “leitura da palavra e (re)leitura do mundo” (FREIRE, 2011) e das práxis peda-
gógicas, resultando na “conscientização” de si no/com o mundo, pela aprendi-
zagem do “dizer a sua palavra” (FIORI, in FREIRE, 2011). Ao refletir sobre a
docência, a partir do diálogo problematizador, os professores vão aprendendo
uns com os outros, partindo da premissa de que:
No círculo de cultura, a rigor, não se ensina, aprende-se em “reciprocidades
de consciências”; não há professor, há um coordenador, que tem por função
dar as informações solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar con-

4
No livro “Educação Humanizadora na Sociedade Globalizada” (2007), Henz destaca a palavra
genteidade, com base nos pressupostos freireanos. O conceito está relacionado ao inacabamento
do ser humano e sua constituição como sujeito que aprende permanentemente, necessariamente
pelo diálogo com os outros e com o mundo.

31
TONIOLO, J. M. dos S. de A.; HENZ, C. I. • Dialogus: encontros dialógicos investigativos...

dições favoráveis à dinâmica do grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção


direta no curso do diálogo (FIORI, p. 15, 2011).
Assim como no Círculo de Cultura, também nos Círculos Dialógicos In-
vestigativo-formativos se aprende em “reciprocidades de consciência”, pelo que
os professores e acadêmicos(as), ao refletirem sobre a sua própria prática, bus-
cam evidenciar as contribuições desses diálogos cooperativos na sua
auto(trans)formação permanente. Além disso, nesses momentos todos compar-
tilham as vivências e práticas educativas escolares, a fim de (re)significá-las, sem-
pre articuladas aos pressupostos teóricos de Paulo Freire.
O grande diferencial do trabalho desenvolvido nos encontros do Grupo
Dialogus é que esses momentos não se constituem apenas para leituras e discus-
são da obra de Freire, mas em um espaço-tempo auto(trans)formativo dialógico
em que os professores pensam, refletem e reconstituem(-se) coletivamente, em
processos de (re)construção cooperativa e intersubjetiva de conhecimentos.
Segundo Francisco Imbernón (2009), os processos de formação de pro-
fessores, as instituições educativas e os profissionais da educação precisam rede-
finir e reestruturar objetivos e ações, buscando assumir novas competências e
conhecimentos pedagógicos, científicos e culturais, condizentes com o período
histórico, econômico e político da sociedade. Assim, acreditamos que a
auto(trans)formação permanente de professores dá-se por meio dos questiona-
mentos e das reflexões dialógicas que abrangem não só a prática, mas também
capacidades, saberes, atitudes, sensibilidades, valores e concepções de cada pro-
fessor ou professora e do grupo como um todo.
Dessa forma, os participantes dos círculos dialógicos desafiam-se perma-
nentemente, buscando descobrir, organizar, fundamentar, revisar e (re)construir
teorias e práticas, dentro do contexto escolar ou para além do mesmo. Para manter
vivas essas memórias e aprendizados, adotamos como forma de registro dos
momentos de compartilhamento de experiências e aprendizagens cooperativas
o “Diário Dialogus”. Nele, a cada encontro, um(a) participante fica encarregado(a)
de fazer o relato das impressões e reflexões despertadas, a partir dos diálogos
realizados com/no Círculo Dialógico Investigativo-formativo. Assim, os regis-
tros são retomados no encontro seguinte, para ajudarem a (re)significar as novas
(re)(des)construções e aprendizagens que emergirem, contribuindo com os pro-
cessos de auto(trans)formação permanente dos professores.
A partir dos pressupostos de Freire (1979, 1999, 2009, 2011) e de Imber-
nón (2009), acreditamos ser imperativo o desenvolvimento de práticas alternati-
vas fundamentadas em uma autonomia com autoria e participação dialógica,
que possibilitem a reflexão sobre os contextos escolares, da comunidade circun-
dante e da organização da sociedade. Nessa perspectiva, a auto(trans)formação
de professores assume um papel importante para uma nova práxis pedagógica.

32
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Somente os profissionais abertos à reflexão sobre suas práticas e os contextos


dos estudantes e dos processos educativos serão capazes de “estabelecer estraté-
gias de pensamento, de percepção, de estímulos e centrar-se na tomada de deci-
sões para processar, sistematizar e comunicar a informação” (IMBERNÓN, 2009,
p. 41).
Para Freire (2009), essa formação se caracteriza por um movimento de
distanciamento, de reflexão crítica sobre as ações do contexto concreto, a partir
da curiosidade epistemológica que se articula com o saber prático e posterior-
mente com a prática; “[...] ao saber teórico destas influências teríamos que jun-
tar o saber teórico-prático da realidade concreta em que educadores trabalham”
(p. 137), considerando estes saberes indispensáveis na construção de um conhe-
cimento mais resistente e significativo sobre o mundo vivido.
Nesse sentido, acreditamos que o diálogo entre profissionais já atuantes
nas instituições educativas e acadêmicos em formação nos cursos de licenciatu-
ra, provoca e possibilita maiores discussões nos processos de auto(trans)formação
(inicial e permanente) de professores. A partir da leitura e compreensão das rela-
ções dos sujeitos que compõem esses espaços e dos processos de ensino-aprendi-
zagem, os professores tornam-se mais sensíveis e desafiados pelas mudanças
que ocorrem na sociedade, as quais envolvem e atingem tanto os estudantes
como a eles próprios.

Diário Dialogus: professoras e professores


aprendendo a dizer a sua palavra
Com o intuito de compartilhar a riqueza dos registros realizados no
“Diário Dialogus”, que retratam um pouco das vivências compartilhadas no gru-
po, é que nos propomos a trazer alguns desses relatos para problematizar as
repercussões desses movimentos auto(trans)formativos na formação permanen-
te de professores.
Os encontros do Grupo Dialogus vêm-se constituindo e se fortalecendo
afetiva, epistemológica, pedagógica e politicamente, ultrapassando os “muros
da Universidade”. Nesse grupo não apenas estudamos e discutimos a epistemo-
logia do pensamento de Paulo Freire, mas também compartilhamos vivências,
angústias, alegrias, a luz dos seus escritos, de modo que este tem se constituído
em um entre-lugar “bom de se estar”; um espaço-tempo em que trabalhamos a
inteireza de nossos corpos conscientes (FREIRE, 1998a); são momentos permeados
de muito diálogo, respeito, amorosidade, trocas e aprendizados.
Essa riqueza pode ser percebida em alguns relatos dos professores, pro-
fessoras e acadêmicos(as) participantes do grupo, quando estes manifestam
sentimentos e aprendizados despertados durante os encontros, os quais vão
constituindo e (re)significando o “ser professor”, o que pode ser percebido nos

33
TONIOLO, J. M. dos S. de A.; HENZ, C. I. • Dialogus: encontros dialógicos investigativos...

relatos que seguem: “Em nossos encontros socializamos experiências, leituras,


reflexões e encontramos inspiração e coragem para (re)construir nossa prática
pedagógica e nosso próprio pensar” (Relato Diário – Andrea). Além dessa pos-
sibilidade de (re)construção e reflexão da própria prática docente, os momentos
compartilhados no grupo se constituem em um processo auto(trans)formativo,
amoroso, reflexivo e dialógico, em que:
Além das leituras que realizamos, trocamos experiências, medos, anseios; to-
dos têm a oportunidade de dizer a sua palavra, todos compreendem e respei-
tam a reflexão do outro. Sabemos que ninguém se forma sozinho, é com o
outro que podemos refletir sobre nossas experiências e intervir sobre elas. (Re-
lato Diário – Gi)
Falar em auto(trans)formação de professores é falar em um processo que
não se dá isoladamente, mas necessariamente na dialogicidade e na intersubjeti-
vidade; um processo que nunca se acaba; que está permanentemente em cons-
trução; um processo que inicia na formação inicial e se estende continuamente
durante toda a trajetória docente, sobretudo pela rigorosa reflexão sobre si e
sobre sua prática. Por isso mesmo, podemos dizer que essa auto(trans)formação
nunca se completa, porque somos seres inacabados; não nascemos prontos e
pré-destinados a isto ou aquilo; “ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos
poucos, na prática social de que tomamos parte” (FREIRE, 2003, p. 79). E, no
Grupo Dialogus, esses encontros dialógicos têm contribuído com o processo per-
manente de “constituir-se educador”, como podemos observar no relato de uma
acadêmica em processo de formação inicial e de uma educadora que já atua há
algum tempo na Educação Básica:
Eu estava passando por um momento decisivo, antes do meu estágio. E este
encontro me mostrou que preciso enfrentar meus medos e encarar a realidade.
E Paulo Freire como sempre me encorajando: “Ninguém nasce educador ou
marcado para ser educador. A gente se forma, como educador, permanente-
mente na prática e na reflexão sobre a prática”. (Relato Diário – Gi)
Nas leituras de Freire compreendemos a importância da busca pela curiosida-
de, pela inquietude que nos faz rever a nossa prática para melhorá-la no ama-
nhã. Sempre numa percepção crítica, reinterpretada e reescrita do que foi lido,
ou seja, para transformar nossa prática em uma prática consciente e dialógi-
ca. (Relato Diário – Larissa)
Transformar nossa prática em uma prática consciente e dialógica exige que te-
nhamos consciência do nosso inacabamento como pessoas e como profissio-
nais, da nossa incompletude enquanto seres que aprendem continuamente na
relação estabelecida com os outros e com a realidade, a qual, ao mesmo tempo,
nos condiciona e desafia para a construção de inéditos viáveis (FREIRE, 2011)
em nós e no mundo. O educador precisa ir se constituindo como tal nas intera-
ções, em comunhão com os outros, nas aprendizagens, nas trocas estabelecidas

34
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

com seus pares que vão marcando e construindo o “ser professor”. Nas palavras
do próprio Freire: “Na verdade, não nasci marcado para ser um professor a esta
maneira, mas me tornei assim na experiência de minha infância, de minha ado-
lescência, de minha juventude” (FREIRE, 2003, p. 84).
Constituímo-nos educadores no entrelaçamento, na pluralidade dessas
dimensões e aspectos que vão delineando nossas trajetórias e marcando nossas
vidas. Essa aprendizagem, que é individual, mas também intersubjetiva e coo-
perativa, precisa estar sempre permeada pelo processo de ação-reflexão-ação que
caracteriza nossa práxis educativa, o que nos permite ser mais a cada dia.
Quero deixar aqui nestas palavras o que os encontros têm me possibilitado.
Além de ter a oportunidade de redimensionar a compreensão em torno da
busca incessante em tornar-me humana plenamente no decorrer da vida, tem
rompido com algumas barreiras – as quais havia estabelecido. Assim, apren-
de-se com Freire que “vale dizer que a escola de que precisamos urgentemente
é uma escola em que realmente se estude e se trabalhe”. Por isso, nossos en-
contros regados a bom chimarrão e boa companhia convergem nesta busca,
tanto para quem pretende iniciar a docência quanto para quem já está a mais
tempo inserido na atividade. (Relato Diário – Marlize)
Quer dizer, a busca por ser mais como educador inicia na formação
inicial, mas vai se construindo permanentemente. Muitos outros saberes vão
sendo construídos no inacabamento e na auto(trans)formação, a partir da ação
e da reflexão permanente da e sobre a própria prática, pelo “dizer a sua palavra”
(FIORI, 2011). Nesse movimento:
[...] Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fun-
damental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a
prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O pró-
prio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo
concreto que quase se confunda com a prática (FREIRE, 1998, p. 43-44).

Quando falamos em auto(trans)formação de professores, a preocupação


central deveria ser esse pensar criticamente a prática para melhorá-la, recriá-la,
reinventá-la de acordo com os desafios de cada realidade, com cada nova situa-
ção. E nesse processo de “formar-se”, de constituir-se professor, o ato de escre-
ver o vivido, o dito, o que se refletiu no grupo, ajuda a (re)pensar criticamente a
própria prática no compartilhamento das aprendizagens construídas coletiva-
mente. Daí que:
Escrever é tão re-fazer o que esteve sendo pensado nos diferentes momentos
de nossa prática, de nossas relações com, é tão re-criar, tão re-dizer o antes
dizendo-se no tempo de nossa ação quanto ler seriamente exige de quem o
faz, repensar o pensado, re-escrever o escrito e ler também o que antes de ter
virado o escrito do autor ou da autora foi uma certa leitura sua (FREIRE,
1999, p. 54).

35
TONIOLO, J. M. dos S. de A.; HENZ, C. I. • Dialogus: encontros dialógicos investigativos...

Essas relações, essa “leitura” é que buscamos fazer quando registramos


nossas vivências no Diário Dialogus. Estabelecer relações entre o escrito, o lido e
o vivido era o que Freire preconizava em seus escritos, afirmando sempre que
somos seres históricos, capazes de intervir no mundo com consciência crítica e
transformadora. Por isso, somos seres de possibilidades, capazes de (re)criar, de
(re)inventar, de (re)(des)construir!
Neste sentido, compreendemos que Paulo Freire não deixou discípulos, mas
nos mostrou que estamos aqui para evoluirmos enquanto sujeitos e nos rein-
ventarmos com base em seus legados. [...] Assim, este foi mais um capítulo de
nossas vivências e reflexões, cada vez mais produtivas e questionadoras, que
em muitas vezes nos conforta, nos anima e, em outras vezes, nos desestabili-
za, nos inquieta. Mas este não foi um capítulo final [...] foi um relato de nossa
trajetória, que estará em constante (re)construção [...]. (Relato Diário – Nisi)

Reconhecer-se como um ser inacabado que está em constante


(re)construção do processo aprendente da docência (GADOTTI, 2005), implica
inquietar-se, desacomodar-se, desestabilizar-se. É esse movimento que nos im-
pulsiona à mudança, à auto(trans)formação. Assim, a aprendizagem docente
vai se concretizando, vai sendo na prática, nas situações diárias, que exigem um
conhecimento amplo da profissão, mas que a transcendem. Um conhecimento
da vida, do mundo, do seu próprio processo de aprendizagem que exige cons-
tantemente uma reflexão na, da e sobre a prática, como defendia Paulo Freire
(2011, 1998).
Não obstante, essa prática se consolida e se fortalece no coletivo, pelo
diálogo investigativo que faz com que repensemos nossas próprias práticas, rein-
ventando novas formas de ver, compreender e fazer e educação. Freire, que nun-
ca teve a pretensão de ser um “modelo” a ser seguido, nos propõe o desafio de
(re)criarmos nossas próprias pedagogias (FREIRE apud ANDREOLA, 2009), bus-
cando sempre a coerência entre a teoria e a prática, o “dizer” e o “fazer”, articu-
lando esses saberes em nossas práticas educativas e no dia-a-dia de nossas vidas.
Por isso, consideramos que os registros contidos no Diário Dialogus con-
figuram-se em um instrumento riquíssimo de aprendizado sobre si mesmo,
sobre a própria docência, sobre o grupo, contribuindo para que outros profes-
sores, a partir desses registros, possam também refletir sobre suas próprias prá-
ticas, permitindo “re-criar, re-dizer o antes dizendo-se no tempo de nossa ação”
(FREIRE, 1999).

Uma pequena pausa... mas os diálogos continuam


Antes de iniciar minhas escritas sobre o nosso último encontro, passei os olhos
nas escritas deste diário, que já passou pelas mãos de tantos colegas aqui deste
grupo. Posso dizer que foi um momento muito gostoso, pois cada relato que li

36
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

lembrou-me de pessoas que passaram por esse grupo e hoje seguem outros
caminhos e lembrei-me de cada um de vocês, pois escreveram sobre nossos
encontros de maneira singular, com a leitura que cada um fez. A leitura das
páginas deste diário também me fez compreender o diferencial do qual, orgu-
lhosamente, falamos do nosso grupo: somos todos aprendizes e aprendemos
com diferentes mestres da vida, o que nos liga a Freire, pois estamos buscando
a conscientização e libertação em comunhão. (Relato Diário – Camila)

No decorrer dos momentos de convivência e aprendizados construídos


com o grupo, e pelos relatos registrados no Diário Dialogus, podemos perceber
que o “Grupo de Estudos e Pesquisa Dialogus: educação, formação e humaniza-
ção com Paulo Freire” vem se constituindo em um importante espaço-tempo de
(inter)relações com gentes, saberes, vivências, conhecimentos e realidades; os pro-
fessores procuram, no grupo, formas de dar continuidade ao seu processo
auto(trans)formativo, ao seu processo aprendente da docência.
Durante os encontros com os acadêmicos, com os professores das escolas
de Educação Básica e Superior compreendemos, cada vez mais, a necessidade
da construção de práxis dialógicas que problematizem a realidade dos estudan-
tes, que promovam mudanças de concepções e ações dos educadores, tanto na
Educação Básica quanto no Ensino Superior. Segundo Freire (2011, p. 109), “o
diálogo é o encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo,
não se esgotando, portanto, na relação eu-tu”; assim, uma educação libertado-
ra/conscientizadora/problematizadora e transformadora é aquela que, por meio
dos diálogos reflexivos entre os sujeitos e o mundo, provoca a inquietação e o
movimento de mudança. Então, “[...] a educação problematizadora coloca, des-
de logo, a exigência da superação da contradição educador-educandos. Sem esta
não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos
cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível” (FREIRE, 2011, p. 94).
Nesse sentido, o Grupo de Estudos Dialogus vem contribuindo para es-
sas reflexões nos contextos educativos, pois acredita na construção de práxis
mais humanizadoras e cidadãs dentro do espaço-tempo escolar. Ao longo das
reflexões, vêm sendo assumidas posturas mais críticas e ativas frente aos pro-
cessos de auto(trans)formação de professores, às concepções de educação e
sociedade, às compreensões de quem são os educandos e das ações a serem
propostas com eles.
Desse modo, o Grupo Dialogus, além de ser um importante espaço-tem-
po de auto(trans)formação dos professores, vem se fortalecendo a cada novo
encontro, alimentado pelo desafio do novo, pela crença na possibilidade de
mudança, pela esperança na educação, esperança que se fortalece no trabalho
coletivo do grupo, onde ensinamos/aprendemos a ser mais e melhores na co-
munhão e no diálogo problematizador com os outros. É essa aprendizagem
solidária, e não solitária, que vem sendo construída e fortalecida no Grupo,

37
TONIOLO, J. M. dos S. de A.; HENZ, C. I. • Dialogus: encontros dialógicos investigativos...

em que a discussão de cada obra de Paulo Freire nos ajuda a (re)pensar nossas
práticas, sempre contextualizadas com a realidade da qual fazemos parte.
Portanto, o “Grupo Dialogus”, com seus estudos e suas pesquisas, pre-
tende continuar sendo um entre-lugar de auto(trans)formação permanente com
professores que atuam nas escolas de Educação Básica em Santa Maria e re-
gião, o que também se constitui em espaço auto(trans)formativo para os aca-
dêmicos dos Cursos de Licenciatura. Refletindo sobre a práxis educativa vi-
gente nas escolas e nas universidades, o desafio está em assumir ações que
propiciem um ambiente de relações e vivências da cidadania em todos os seus
aspectos e dimensões, para uma maior genteidade de todos, seja na escola, seja
na sociedade.
Com os muitos “outros sujeitos” das escolas e das universidades, edu-
candos e educadores, ainda sonhamos e acreditamos que podemos fazer a di-
ferença nas relações entre nós e os estudantes, pela maneira de enfocar e
(re)significar os conteúdos, de sentir/pensar/agir na escola, na sociedade, no
mundo. Por isso, compartilhar os relatos presentes no diário do Grupo de Es-
tudos e Pesquisa Dialogus configura-se, também, em um convite para que ou-
tras vozes se somem as nossas; para que outros professores e futuros professo-
res também se sintam convidados a compartilhar conosco os seus saberes, fa-
zeres e aprendizados; sintam-se convidados a construir, juntos, novos cami-
nhos de auto(trans)formação permanente que se dá no exercício constante de
ação-reflexão-ação da, na e sobre a docência.

Referências
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38
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

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39
PAULO FREIRE E A FORMAÇÃO INICIAL
PARA EJA: interfaces dos cursos de
licenciaturas da Universidade Federal
de Santa Maria
KAUFMAN, Nisiael de Oliveira1
HENNICKA, Micheli Daiani2
MONTAGNER, Silvia Regina3

Primeiras palavras...
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) atravessou uma história marca-
da por medidas paliativas, através de iniciativas fragmentadas e sem êxitos.
Essa modalidade de ensino não requeria estudo nem especialização por parte
de seus professores, sendo entendida como um campo eminentemente ligado
à boa vontade e à adaptação das metodologias do ensino regular.
Em razão disso, percebemos, até os dias atuais, impregnada a ideia de
que qualquer professor, automaticamente, pode ensinar jovens e adultos, não
se pensando em um ensino adequado para esses sujeitos, o que certamente
exigiria uma formação inicial específica e não geral como a maioria dos cursos
de licenciatura tem trabalhado.
A presente pesquisa, que esta vinculada ao Programa de Pós-Gradua-
ção em Educação da Universidade Federal de Santa Maria/RS (UFSM), tem
como objetivo: compreender os desafios e as perspectivas da formação inicial
dos acadêmicos dos cursos de licenciaturas da Universidade Federal de Santa
Maria, com relação à preparação para atuação na Educação de Jovens e Adul-
tos do Ensino Médio. Tem como problemática de pesquisa: a formação inicial
de professores na Universidade Federal de Santa Maria vem preparando seus
acadêmicos para atuarem na Educação de Jovens e Adultos, considerando as
possibilidades e os desafios dessa modalidade no Ensino Médio?

1
Pedagoga; Especialista em Gestão e Organização da Escola; Mestre em Educação. Técnica em
Assuntos Educacionais. UFSM. E-mail: nisiaeloliveira@bol.com.br.
2
Pedagoga; Especialista em Gestão Educacional; Mestre em Educação. Tutora a distância.
UFSM. E-mail: michipedag@yahoo.com.br.
3
Pedagoga; Especialista em PROEJA; Mestre em Educação. Pedagoga do IF Farroupilha.
E-mail: smsilviamontagner@gmail.com.

40
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Assumimos como foco de pesquisa a formação inicial para atuação na


EJA/Ensino Médio por entendermos que são muitos os embates quanto a
uma formação que contemple as reais necessidades deste campo de atuação,
visto que ainda é forte a lógica de reprodução e a influência das ideologias
dominantes. A luta por uma educação/formação para a classe popular, até os
dias atuais, é permeada pela tentativa de se recompor ou restabelecer lacunas
de um sistema excludente e autocrata.
Partindo da realidade de um contexto diferenciado, cabe ao profissional
docente da EJA o desafio de construir saberes necessários à prática, levando
em consideração os conhecimentos fundamentais a estes jovens e adultos. Além
disso, os saberes da experiência feito4 precisam ser reconhecidos no processo edu-
cativo, sendo que o educador, neste cenário, passa a ser um mediador que
também se encontra em processo de permanente aprendizagem e reconstru-
ção. Esta interlocução de saberes possibilita que, “distanciando-se de seu mundo
vivido, problematizando-o, ‘descodificando-o’ criticamente, no mesmo movi-
mento da consciência o homem se re-descobre como sujeito instaurador desse
mundo de sua experiência” (FIORI, 2002, p. 8).
Com base nesse enfoque, buscamos compreender os desafios e as lacu-
nas existentes na formação inicial de professores para atuação na EJA/Ensino
Médio. Por isso, destacamos a importância de uma formação inicial que con-
temple as particularidades de um campo de conhecimentos e saberes teórico-
metodológicos próprios da docência na Educação de Jovens e Adultos, que
permitam pensá-la como área de estudo fundamental nos cursos de formação
em nível superior (licenciaturas). Existe um longo caminho a ser percorrido,
pois essa reconfiguração está diretamente atrelada ao rompimento de rótulos
ainda existentes, ampliando-se os espaços de discussão no âmbito acadêmico
da UFSM sobre um novo panorama.

Andarilhando com Paulo Freire: repensando a formação inicial


dos cursos de licenciaturas para a EJA
A Educação de Jovens e Adultos surgiu inicialmente como uma medida
paliativa e aos poucos foi se ampliando e conquistando maior visibilidade. A

4
“O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, ‘desarmada’, indiscutivel-
mente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade
metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. Este não é o saber que a
rigorosidade do pensar certo procura” (FREIRE, 2011, p. 22). Por isso, é fundamental que, na
prática da formação docente, o educador entenda que os saberes não são construídos apenas a
partir de “guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder”,
mas, pelo contrário, quando aprendiz em comunhão com o professor formador caminham
juntos no movimento dinâmico entre o fazer e o pensar sobre o fazer.

41
KAUFMAN, N. de O.; HENNICKA, M. D.; MONTAGNER, S. R. • Paulo Freire e a formação inicial para EJA

partir das novas demandas, foram surgindo consideráveis iniciativas e políti-


cas públicas específicas para essa modalidade. As legislações passaram a reco-
nhecer os jovens e adultos como portadores de direitos, buscando proporcio-
nar a estes sujeitos, vítimas da exclusão social, o que lhes foi negado.
A Educação de Adultos é o espaço da diversidade de múltiplas vivências, de
relações intergeracionais, de diálogo entre saberes e culturas. Ao lado da
diversidade está também à desigualdade que atinge a todos, sobretudo num
país injusto como o nosso [...] A diversidade pode ser considerada como
uma grande riqueza, mas a desigualdade social e econômica é a nossa po-
breza maior. E não basta oferecer programas de Educação de Adultos, é
preciso oferecer condições de aprendizagem (GADOTTI, 2009, p. 26).
Partindo da realidade de um contexto diferenciado, coube ao profissio-
nal docente da EJA o desafio de construir saberes necessários à prática, levan-
do em consideração os conhecimentos fundamentais a estes jovens e adultos.
Consequentemente, ampliou-se a preocupação pela formação e capacitação
desses professores, visto que já se percebia que para educar adultos eram ne-
cessárias propostas pedagógicas diferenciadas.
A Resolução CNE/CEB Nº 1, de 5 de julho de 2000, destacou em seu
Art. 17 que:
A formação inicial e continuada de profissionais para a Educação de Jovens
e Adultos terá como referência as diretrizes curriculares nacionais para o
ensino fundamental e para o ensino médio e as diretrizes curriculares nacio-
nais para a formação de professores, apoiada em:
I – ambiente institucional com organização adequada à proposta pedagógica;
II – investigação dos problemas desta modalidade de educação, buscando ofe-
recer soluções teoricamente fundamentadas e socialmente contextualizadas;
III – desenvolvimento de práticas educativas que correlacionem teoria e
prática;
IV – utilização de métodos e técnicas que contemplem códigos e linguagens
apropriados às situações específicas de aprendizagem.
Contudo, ainda que prevista nas legislações, a formação para EJA ain-
da tem se estabelecido como um dos principais obstáculos a ser superado, con-
siderando que, na maioria dos casos, esta tem ocorrido de forma superficial.
“A situação atual da formação dos educadores da EJA reafirma a ideia de que
amadorismo, assistencialismo ou ainda boa vontade para trabalhar são sufi-
cientes” (HENZ; PARIGI; RIBEIRO, 2013, p. 68). Dessa forma, apesar de
programas e iniciativas em favor da Educação de Jovens e Adultos, ainda pre-
senciamos uma realidade precária, com uma formação inicial e continuada
frágil e insuficiente.
Inspiramo-nos em Freire para pensar em uma formação inicial alicerçada
num processo permanente de reflexão/ação, que leve o educador à consciência

42
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

de si como ser histórico num movimento dialético no/com o mundo que o


cerca, associado sempre à prática social. Para o educador,
[...] embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar, e
quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É neste sentido que ensi-
nar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar, é ação pela qual
um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomoda-
do. Não há docência sem discência, as duas se explicam, e seus sujeitos,
apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto,
um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar, e quem aprende ensina ao
aprender (FREIRE, 2011, p. 26).

Inegavelmente, Paulo Freire foi um dos pensadores mais importantes


do século XX. O educador é uma referência obrigatória quando se aborda o
compromisso com o conhecimento e a transformação da própria prática, apre-
sentando-nos uma proposta concreta (não um modelo) para a reflexão crítica,
entendendo a educação como um processo de conhecimento que nos instiga a
pensar em sonhos possíveis.
Suas contribuições auxiliam no processo de reflexão crítica sobre a prá-
tica pedagógica, reforçando a importância de saber dialogar, escutar e respei-
tar o saber do educando, o qual ele chamava de “saber da experiência feito”,
reconhecendo a identidade cultural do outro.
O educando, em especial o adulto, tem muito a contribuir para o pro-
cesso de ensino aprendizagem, não só pelo seu perfil, mas pelo conjunto de
ações que exerce na sua família e na sociedade. Por isso, é importante modifi-
car as práticas educativas ao se trabalhar com a EJA, que exige do educador
saberes que reconheçam uma leitura de mundo específica desse contexto.
Segundo Feitosa (2008), os adultos, ao chegarem à escola, acreditam
que não sabem nada, pois sua concepção de conhecimento se relaciona aos
conhecimentos escolares/científicos. Por isso, logo no início do processo de
ensino-aprendizagem, o diálogo entre os educandos e o educador, assim como
entre os educandos, é necessário e essencial para que estes percebam que pos-
suem, sim, muitos conhecimentos, os quais se encontram de forma desorgani-
zada. Então, conforme o educador vai ouvindo, valorizando, respeitando e
relacionando os conhecimentos trazidos pelos educandos com os conhecimen-
tos ditos escolares/científicos, os estudantes passam a participar ativamente
do processo de aprendizagem, assumindo seu papel de sujeito ativo, e não
como mero objeto. Conforme nos afirma Freire (1981, p. 87),
nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar
impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar
convencidos de que a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias for-
mas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui. A
ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa
situação, sob pena de se fazer “bancária” ou de pregar no deserto.

43
KAUFMAN, N. de O.; HENNICKA, M. D.; MONTAGNER, S. R. • Paulo Freire e a formação inicial para EJA

Ratificamos assim, a importância do diálogo em sala de aula, oportuni-


zando e desafiando os educandos a dizerem a sua palavra, sobre sua vida e sua
leitura do mundo, tornando-se, dessa forma, sujeitos participantes do seu pro-
cesso de aprendizagem, aspecto fundamental para não realizarmos, como edu-
cadores, uma prática educativa bancária, a qual foi bastante criticada por Frei-
re em seus escritos. Dentro dessa perspectiva, encontra-se, em Henz (2002, p.
165), a seguinte passagem:
Trata-se de trazer a vida do povo trabalhador para dentro da sala de aula, a
fim de que novos processos culturais possam ganhar forma na dialeticidade
orgânica entre o conhecimento sistematizado e o saber popular, resultando
na melhoria da qualidade de vida para todos, enquanto sujeitos da sua vida
e da própria história, auxiliando homens e mulheres na produção e
(re)construção do seu próprio mundo.
Portanto, defendendo a ideia de que, na Educação de Jovens e Adultos,
o currículo não pode se reduzir apenas a conteúdos estáticos, bem comporta-
dos, desconectados da experiência social e cultural dos educandos, um dos
principais desafios que se apresentam aos educadores dessa modalidade é a
necessidade de estarem aptos a repensarem a organização disciplinar, no sen-
tido de criar possibilidades para que estes estudantes realizem percursos for-
mativos mais diversificados, integrados e mais apropriados às suas condições
de vida.
Com base no exposto, para Freire é inconcebível que a leitura da pala-
vra seja reconhecida, sem que se considere a leitura de mundo. A realidade
deve ser o ponto de partida, pois a produção simbólica que os educandos fa-
zem e que marcam sua identidade cultural precisa ser legitimada nos contex-
tos educacionais, que insistem em fragmentar cada vez mais “os saberes da
vida” e os “saberes da escola”, sendo estes últimos, geralmente, caracterizados
como um conhecimento estanque, rigoroso e imposto como superior.
Lembra ainda que existe um grande distanciamento entre o que se faz
na escola e o que se vive no cotidiano das práticas. Em se tratando da EJA,
tem-se estimulado cada vez mais esta “cultura do silêncio” quando se deveria
considerar e trabalhar a partir das experiências de vida dos jovens e adultos e
da riqueza de possibilidades que estes trazem para o cotidiano escolar.
Minha impressão é que a escola está aumentando a distância entre as pala-
vras que lemos e o mundo em que vivemos [...] Você pode pensar nesta
dicotomia como uma espécie de “cultura do silêncio” imposta aos estudan-
tes. A leitura da escola mantém silêncio a respeito do mundo da experiência,
e o mundo da experiência é silenciado sem seus textos críticos próprios (FREI-
RE, 1986, p. 85).

Nessa perspectiva, somente compreenderemos as exigências do exercí-


cio da docência, quando atentarmos para as suas concepções e princípios edu-

44
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

cacionais, que se traduzem na práxis5 educativa. A formação docente e os prin-


cípios da educação libertadora, emancipadora são partes indissociáveis de todo
ato educativo: “[...] a educação já não pode ser o ato de depositar, ou de nar-
rar, ou de transferir, ou de transmitir ‘conhecimentos’ e valores aos educan-
dos, meros pacientes, à maneira da educação bancária, mas um ato cognoscen-
te” (FREIRE, 1981, p. 39).
Nesse sentido, é fundamental que se tenha a consciência de que, mesmo
havendo possibilidades de articular prática e teoria na formação inicial, exis-
tem saberes experienciais próprios, que somente serão construídos quando o
professor assumir de fato a responsabilidade e os desafios da profissão docen-
te, entendendo que sua missão vai além de propagar saberes e que seu propósi-
to maior é o de formar cidadãos críticos, reflexivos e conscientes de seu papel
na sociedade, criando possibilidades para que possam ser mais gente.

Caminhos metodológicos
Compreendendo que, através da pesquisa, é possível não somente a cons-
tatação, mas a compreensão da realidade educacional no seu sentido mais
amplo – enquanto prática social – optamos como estratégia metodológica pela
pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, com enfoque hermêneutico.
Esse tipo de pesquisa fornece uma visão ampla e, ao mesmo tempo,
profunda e integrada de uma unidade social complexa, composta de múltiplas
variáveis, a fim de viabilizar o diagnóstico da realidade, construindo possibili-
dades de ação e transformação.
Diante do exposto, a referida pesquisa está sendo realizada na Univer-
sidade Federal de Santa Maria, com acadêmicos/egressos dos cursos de licen-
ciaturas de Matemática (noturno), Letras Português e Literaturas de Língua
Portuguesa, História e Física (diurno), que tenham desenvolvido seus estágios
supervisionados na Educação de Jovens e Adultos, em específico na etapa do
Ensino Médio. Optamos por esse foco de pesquisa por considerar que esta
área necessita de uma maior compreensão, por se configurar em um campo
ainda pouco explorado, o qual requer ser pensado mais amplamente, visto que
são muitos os embates que se apresentam atualmente, tanto nos estágios/for-
mação inicial para EJA, quanto na etapa do Ensino Médio da EJA.
Para isso, serão aplicadas entrevistas semiestruturadas a fim de com-
preender como acontece o processo de formação inicial desses acadêmicos e

5
A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é
impossível a superação da contradição opressor-oprimidos” (FREIRE, 1981, p. 21). A práxis
se relaciona com a forma de interpretar a realidade, é a prática que origina desta compreensão,
gerando um processo de atuação consciente que leve a uma ação transformadora.

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KAUFMAN, N. de O.; HENNICKA, M. D.; MONTAGNER, S. R. • Paulo Freire e a formação inicial para EJA

quais as fragilidades e desafios na qualificação destes para atuarem na Educa-


ção de Jovens e Adultos/Ensino Médio. Posteriormente, serão propostos Cír-
culos Dialógicos Investigativo-formativos6, de forma virtual, com temas (gera-
dores) que emergirem das entrevistas, problematizando o universo de signifi-
cados de cada um dos sujeitos coautores, explorando tópicos importantes que
aparecerem como conflitantes ou divergentes. Essa proposta inovadora tem
como base uma perspectiva mais humana, buscando uma nova forma de esta-
belecer a comunicação e a troca de experiências em uma relação dialógico-
dialética, rompendo com a barreira hierárquica entre quem sabe e quem preci-
sa aprender.
Além disso, tal trajetória coloca a necessidade de que alguns documen-
tos dos cursos de licenciaturas selecionados também sejam consultados, tais
como: matrizes curriculares e projetos pedagógicos dos cursos, a fim de ampliar
e endossar a pesquisa, aprofundando os dados relevantes para uma maior com-
preensão da realidade.
Coerente com a proposta de Freire, acreditamos na investigação da “rea-
lidade concreta”, em um espaço/tempo em que o pesquisador se coloque em
um permanente e dinâmico movimento de pesquisar e educar
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Fala-se hoje, com insis-
tência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de pesquisador
no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se
acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indaga-
ção, a busca, a pesquisa. [...] Pesquiso para constatar, constatando, interve-
nho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não
conheço e comunicar ou anunciar a novidade (FREIRE, 2011, p. 32).

Embasados nas palavras de Freire, pretendemos através desta pesquisa


não somente constatar, mas interagir e suscitar novas provocações juntamente
com os protagonistas deste processo e com isso reeducarmos nosso olhar e
ressignificarmos nossas concepções. Pois, para esse autor, toda intervenção/
ação cultural é sempre uma forma sistematizada e deliberada de ação que in-
terfere na estrutura social ou no sentido de mantê-la como está ou para trans-
formá-la.

6
A referida proposta surge a partir de pesquisas e experiências desenvolvidas pelo Grupo
“Dialogus: Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire” da Universidade Federal
de Santa Maria. Essa metodologia “fundamenta-se em uma abordagem qualitativa que busca
compreender a complexidade dos fenômenos da vida humana. Para isso, dialoga-reflete para
desvendar muitos significados da vida social que condicionam o ser/fazer das pessoas,
trabalhando a partir de temáticas que emergem do cotidiano profissional e social dos
participantes” (HENZ, 2014, p. 2). Isto implica que todos os participantes sejam coautores/
interlocutores da pesquisa, muito embora haja um pesquisador líder mediando os diálogos
investigativo-formativos.

46
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Portanto, defendemos uma pesquisa que tenha como princípios nortea-


dores a interação e a coautoria dos sujeitos participantes, concretizando, me-
todologicamente, o esforço de compreensão da realidade vivida, a fim de se
alcançar um nível mais crítico de conhecimento dessa realidade, pela experiên-
cia da (auto)reflexão e auto(trans)formação de homens e mulheres. Nesse viés,
o diálogo e o processo de conscientização são primordiais para o entrelaça-
mento de saberes, concepções e vivências.

A formação inicial dos cursos de licenciatura e a EJA:


limitações e aspirações...
Acreditamos que, nos cursos de licenciatura, a formação pedagógica
deveria ser contemplada e valorizada tanto quanto o domínio de conteúdos da
área. Porém, ainda existe uma forte cultura da departamentalização nas uni-
versidades, que fragmenta e desconecta as disciplinas. Diante do exposto, muitos
licenciados apresentam dificuldades de transpor os conteúdos estudados (re-
flexo da falta de formação pedagógica) para as diferentes modalidades e con-
textos. Há uma falta de identidade dos cursos, e, embora as diretrizes e legisla-
ções sinalizem o contrário, a formação conteudista é muito evidente nesses
cursos, persistindo o antigo modelo 3+1.
As licenciaturas são cursos que, pela legislação, têm por objetivo formar
professores para a educação básica: educação infantil (creche e pré-escola);
ensino fundamental; ensino médio; ensino profissionalizante; educação de
jovens e adultos; educação especial. Sua institucionalização e currículos vêm
sendo postos em questão, e isso não é de hoje [...] em função dos graves
problemas que enfrentamos no que respeita às aprendizagens escolares em
nossa sociedade, a qual se complexifica a cada dia, avoluma-se a preocupa-
ção com as licenciaturas, seja quanto às estruturas institucionais que as abri-
gam, seja quanto aos seus currículos e conteúdos formativos (GATTI, 2010,
p. 5).
Para a autora, não há consistência em uma profissionalização sem a
constituição de uma base sólida de conhecimentos e formas de ação. Com
estas conceituações, saímos do improviso, da ideia do professor missionário,
“quebra-galho”, tutor ou professor meramente técnico, para adentrar a con-
cepção de um profissional que tem condições de confrontar-se com problemas
complexos e variados, estando capacitado para construir novas possibilidades
de ação.
Nesse sentido, é necessária uma nova forma de ver a educação, a forma-
ção e o papel dos professores e estudantes, visto que este espaço precisa ser
mais dinâmico no seu processo e na sua metodologia.

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KAUFMAN, N. de O.; HENNICKA, M. D.; MONTAGNER, S. R. • Paulo Freire e a formação inicial para EJA

Há muito tempo, a formação inicial dos professores é fraca. Ela denota grande
despreocupação e falta de vontade por parte das administrações públicas
em assumir a profissão e encarar o fato de que ela envolve valores morais e
éticos e trabalha com alunos que vivem situações problemáticas diversas.
Em um cenário ideal, o curso superior deveria girar sobre o eixo da relação
entre teoria e prática educacional, além de oferecer uma visão holística e
crítica das disciplinas – sejam de conteúdo científico ou psicopedagógico
(IMBERNÓN, 2011, p. 01).
Para este autor, a estrutura da formação inicial deve possibilitar uma
análise global das situações educativas, comprometendo-se com o contexto
e a cultura em que se desenvolve. No entanto, os cursos pouco estão funda-
mentando teoricamente a atuação do futuro profissional, uma vez que os
currículos de formação têm-se constituído em um aglomerado de discipli-
nas, isoladas entre si, sem qualquer relação com a realidade da Educação de
Jovens e Adultos.
Pimenta e Lima (2006) reforçam que são muitas as limitações na forma-
ção inicial dos professores, que acumula historicamente índices precários de-
vido à formação aligeirada e, muitas vezes, frágil teórica e praticamente.
Os estágios, muitas vezes se reduzem a observações, não se constituindo em
práticas efetivas, com metodologias que se baseiam predominantemente na
utilização de apostilas, resumos e cópias de trechos de livros, e os conteúdos
abordados de forma resumida e pouco aprofundada” (PIMENTA; LIMA,
2006, p. 17).
Diante disso, em uma época caracterizada por ambiguidades é preciso
levar em consideração a função social das instituições educativas, pois, en-
quanto não pensarmos em uma formação comprometida com uma educação
emancipadora e transformadora, nossos discursos continuarão vazios e sem
sentido.
Portanto, é importante que as universidades ampliem as discussões teó-
rico-metodológicas sobre a Educação de Jovens e Adultos, visto que o docente
comprometido com sua formação atuará de forma diferenciada, com respeito
à diversidade dos educandos, contribuindo efetivamente para a redução das
desigualdades socioeducacionais e culturais causadas por direitos amplamen-
te negados durante séculos. E essa mudança de paradigma precisa acontecer
desde a formação inicial até em materiais, metodologias e conteúdos que de-
vem estar interligados a uma prática pedagógica consciente, pautada nos prin-
cípios do direito universal à educação em relação com a realidade dos estu-
dantes.

48
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Auto(trans)formação de educadores a partir de novas concepções:


os diálogos permanecem
A partir dos percursos construídos até o presente momento, ressalta-
mos a relevância da temática, bem como o impacto que essa problemática
poderá vir a causar, a partir das novas demandas e desafios constatados. Ape-
sar de termos nos debruçado especificamente na etapa do Ensino Médio, as
reflexões tecidas podem contribuir para a formação inicial de professores para
a EJA, no sentido mais amplo, ou seja, para além da etapa enfatizada, corro-
borando com o compromisso ético-político de garantir o direito à Educação
Básica aos jovens e adultos.
Os caminhos da pesquisa apontam como principais desafios a serem
superados: a ambiguidade entre a teoria e a prática (distanciamento entre a
escola e a universidade); pouca ou nenhuma abordagem da EJA nas discipli-
nas pedagógicas; ausência de disciplina específica sobre essa modalidade (cur-
rículos insuficientes); desvalorização/preconceito ainda existentes na escola e
na própria universidade; formação predominantemente conteudista e a fragi-
lidade dos estágios.
Além disso, percebemos que esse contexto diferenciado (EJA) possui
uma riqueza de bagagem cultural, que precisa ser reconhecida nos currículos
nos cursos de licenciatura, levando os acadêmicos a uma reflexão crítica e à
conscientização do papel social, ético e político que exercem, reafirmando ainda
a importância da relação educador/educando como pressuposto indispensá-
vel em qualquer ato educativo.
Assim, fica evidente a necessidade de repensar a abordagem da EJA nos
cursos de licenciatura, já que os acadêmicos em geral se sentem inseguros e
despreparados para atuar nesse contexto, sendo obrigados a adaptar conteúdos
e buscar por conta própria subsídios que os instrumentalizem para uma prática
significativa. É imprescindível, na formação do professor, uma busca constante,
não apenas do saber, mas também do fazer, estando cada vez mais presente a
ação-reflexão no dia a dia do professor. Assim, os cursos de formação têm como
desafio “proceder ao intercâmbio, durante o processo formativo, entre o que se
teoriza e o que se pratica em ambas” (PIMENTA; LIMA, 2004, p. 56). E ainda,
o desafio de propiciar conhecimentos necessários para que o docente considere
os contextos sociais, históricos e culturais do ambiente em que atuará.
Nesse sentido, esta pesquisa caminha na busca de contribuir para a su-
peração da fragmentação existente na formação inicial de professores, para
que as especificidades da Educação de Jovens e Adultos também sejam con-
templadas de forma integral, mobilizando saberes essenciais deste contexto e
repensando a organização curricular e o caráter mais prático da formação pe-
dagógica para esta modalidade de ensino.

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KAUFMAN, N. de O.; HENNICKA, M. D.; MONTAGNER, S. R. • Paulo Freire e a formação inicial para EJA

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50
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

SOBRE ESCUTAR CRIANÇAS, ADOLESCENTES,


JOVENS E ADULTOS NA ESCOLA:
desafios e possibilidades para a
auto(trans)formação de professores
GOELZER, Juliana1
OLIVEIRA, Luiz Renato de2
SANTOS, Caroline da Silva dos3

Sobre a escola “do nosso tempo”...


Ou sobre a escola de hoje?
Quando pensamos em escola, pensamos em um espaço de encontro de
gerações, um espaço de pessoas de diferentes idades, que neste lugar procuram
uma oportunidade para ser mais gente (FREIRE, 2011); pensamos em um espa-
ço sério e alegre, um espaço cheio de vida. Ou não. Pode ser que, ao pensar
sobre a escola, muitos pensem primeiramente – ou unicamente – no seu espa-
ço físico, nas grades curriculares, nos conteúdos, nas metodologias, desconsi-
derando que a escola é, fundamentalmente, e primeiramente, um lugar de gente
(FREIRE, 2002).
Acreditamos que o modo como pensamos e sentimos a escola está inti-
mamente relacionado ao modo como somos (se somos, e se um dia fomos)
vistos e ouvidos dentro desse espaço. Sim, a escola pode ser um espaço acolhe-
dor ou um espaço excludente para crianças, adolescentes, jovens e adultos, e
isso depende, e muito, do quanto os professores os compreendem (ou não)
como sujeitos de diferentes contextos sócio-histórico e culturais, sujeitos com-
petentes, que muito têm a ensinar e aprender.

1
Pedagoga (UFSM), Especialista em Gestão Educacional (PPGE/UFSM), Mestre em Educação
(PPGE/UFSM), Doutoranda em Educação (PPGE/UFSM). Professora de Educação Infantil
na Unidade de Educação Infantil Ipê Amarelo (UEIIA/UFSM). E-mail:
julianagoelzer@yahoo.com.br.
2
Licenciado em Estudos Sociais (UNIFRA), Especialista em História do Brasil (UFSM), Mestre
em Educação (PPGE/UFSM). Professor da Educação Básica da Rede Pública Estadual e
Municipal de Ensino de Santa Maria na Educação de Jovens e Adultos. E-mail:
renato_geo@yahoo.com.br.
3
Pedagoga (UFSM), Especialista em Gestão Educacional (PPGE/UFSM), Mestranda em
Educação (PPGE/UFSM). E-mail: caroline.silva83@yahoo.com.br.

51
GOELZER, J.; OLIVEIRA, L. R. de; SANTOS, C. da S. dos • Sobre escutar crianças, adolescentes, ...

Nesses momentos, é inevitável pensar nas escolas que fizeram – e con-


tinuam fazendo – parte da nossa história. Lembramos dos nossos professo-
res, nossos mestres (ARROYO, 2004), que certamente deixaram muitas mar-
cas em nós.
Essas marcas, presentes em nossas lembranças (e em nossas práticas?) e
nas narrativas de tantos professores e professoras, colegas com os quais dialo-
gamos no dia a dia do nosso trabalho e nos encontros de auto(trans)formação
permanente que nosso Grupo de Pesquisa4 realiza, revelam por vezes a amo-
rosidade, a afetividade, a dialogicidade presentes nas práticas educativas do
“seu tempo de escola”; mas por vezes também revelam a opressão, a exclusão,
carregando o peso das marcas da desumanização a que muitos foram (ou fo-
mos?) submetidos.
Na maioria das vezes, quando questionados sobre o que lembram do
seu tempo de escola, muitos professores e professoras lembram do recreio, da
merenda, dos momentos nos quais lhes era permitido dizer a sua palavra (FREI-
RE, 2011), daqueles dias em que ficaram de castigo ou que a professora não os
deixou ir ao banheiro e acabaram urinando na roupa... Nessas ocasiões, esses
professores muito pouco lembram dos conteúdos ensinados e aprendidos, mas
lembram da organização das classes, sempre enfileiradas, do quadro negro
que estava sempre cheio de “conteúdos”, da impossibilidade de olhar para o
lado ou para trás para conversar com o colega. Essas vivências certamente
marcaram muitos dos adultos de hoje, e são lembradas, principalmente, por
aqueles que se tornaram professores.
Ao refletir sobre essas formas de olhar, sentir e pensar sobre a escola, e
ao recordar, junto a tantos professores, as marcas de humanização e de desu-
manização que a escola, que os nossos professores nos deixaram há algum
tempo, vimos levantando a seguinte problematização: que marcas nós, profes-
sores, em nossas escolas, estamos deixando hoje nas crianças, nos adolescen-
tes, jovens e adultos, que compartilham um tempo tão longo e precioso de sua
vida conosco? Estamos, em nossas escolas, colocando essa criança, esse ado-
lescente, jovem e adulto, no lugar de sujeito que eles merecem e que lhes é de
direito? Ou estamos, a cada dia mais, silenciando-os e dizendo a eles que apren-
dam em silêncio o que “achamos” que estamos a lhes ensinar? Estamos atuan-
do com sensibilidade, respeitando a cultura, a leitura de mundo (FREIRE, 2011),
as diferentes manifestações dos educandos e, mais ainda, apoiando seus pro-
cessos de humanização? Até que ponto os escutamos?

4
Grupo de Estudos e Pesquisa Dialogus: Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire,
coordenado pelo Prof. Dr. Celso Ilgo Henz. O grupo desenvolve muitos projetos de pesquisa e
extensão em escolas de Educação Básica de Santa Maria/RS e região, utilizando como
metodologia principal o diálogo problematizador e reflexivo, proposto por Paulo Freire (2011).

52
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Pensando nessas questões, passamos a refletir sobre os espaços de parti-


cipação que organizamos para os educandos na escola; logo, sobre o lugar que
lhes damos, se de sujeitos ativos e competentes para atuarem em seus contex-
tos, ou se de meros espectadores e sujeitos passivos, como frágeis, incompe-
tentes, aqueles que, somente após saírem da escola, “virão a ser alguém”.
Este artigo constitui-se, assim, de algumas reflexões de um grupo de
educadores, professores da Educação Básica, sobre a importância da escuta
dos educandos, a valorização de suas realidades. Nosso objetivo maior é refle-
tir acerca da importância da escuta e do diálogo com as crianças, os adolescen-
tes, jovens e adultos na escola, partindo de suas realidades concretas (FREIRE,
2006) como condição para uma prática pedagógica humanizadora.
Buscamos, aqui, compartilhar com os leitores que acreditam em uma
educação humanizadora, as nossas vivências e reflexões como educadores e
educandos, como gente, e tomamos como base de nossos diálogos e reflexões,
os ensinamentos de nosso mestre Paulo Freire.

O caminho que tornou possível a reflexão,


o diálogo, a auto(trans)formação
Partindo de tais reflexões e questionamentos, os quais foram sendo levan-
tados e discutidos ao longo de nossos encontros para estudos no Grupo de Pes-
quisa, motivamo-nos a aprofundar nossos referenciais teóricos relacionados à
importância do diálogo e da escuta de crianças, adolescentes, jovens e adultos
na escola, como condição para uma educação humanizadora. Como parte des-
se processo, também aprofundamos nossos referenciais com relação à formação
dos professores, uma vez que consideramos esta uma articulação necessária.
Assim, buscamos apresentar neste artigo um estudo bibliográfico, vi-
sando um aprofundamento teórico da temática do diálogo e da escuta, e da
auto(trans)formação de professores, por compreender a necessidade de
(re)pensar se nossas práticas pedagógicas têm dado voz ou silenciado os edu-
candos na escola. Nesse sentido, entendemos que:
É a pesquisa que alimenta a atividade de ensino e a atualiza frente à realida-
de do mundo. Portanto, embora seja uma prática teórica, a pesquisa vincula
pensamento e ação. Ou seja, nada pode ser intelectualmente um problema
se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida prática. As ques-
tões da investigação estão, portanto, relacionadas a interesses e circunstân-
cias socialmente condicionadas. São frutos de determinada inserção na vida
real, nela encontrando suas razões e seus objetivos (MINAYO, 2012, p. 16).
Assim, destacamos que nossas problematizações têm origem em nossas
vivências como educandos e como educadores e, por isso, compreendemos
que os problema(s) da vida prática merecem nossa especial atenção.

53
GOELZER, J.; OLIVEIRA, L. R. de; SANTOS, C. da S. dos • Sobre escutar crianças, adolescentes, ...

Apresentamos então, neste artigo, algumas reflexões oriundas do diálo-


go realizado no decorrer da pesquisa com autores estudiosos das temáticas em
questão. Buscamos organizar o texto da seguinte forma: na primeira parte apre-
sentamos uma breve contextualização do estudo, nossa problemática e o obje-
tivo da pesquisa; na sequência, apresentamos a metodologia adotada; dando
continuidade, escrevemos acerca da importância da escuta e do diálogo na
escola, com crianças, adolescentes, jovens e adultos; e, por fim, levantamos os
desafios e as possibilidades do processo de auto(trans)formação permanente
de professores para a escuta e o diálogo na escola.

Escola: um espaço de escuta?


Há algum tempo nos perguntamos se na escola a possibilidade de escu-
ta e diálogo é presente, e se o é de forma comprometida com aquilo que é dito
e com a ação humanizadora que precisa envolver o educador a cada dia. Será
que a escola, os educadores e os educandos têm seus tempos e espaços respei-
tados, de modo a fazer deste ambiente um lugar de encontro, entre todos, para
o ser mais?
Para que cada um, na escola, seja reconhecido nas suas singularidades e
tenha seus tempos e espaços respeitados, o processo de escuta é fundamental.
O diálogo entre educadores e educandos é a chave para o reconhecimento e o
compartilhamento de saberes e vivências, é uma dimensão que perpassa todo
o processo educativo, pois sem ele seria impossível construir qualquer prática
pedagógica humanizadora. Segundo Freitas:
Tudo o que posso fazer como uma-pessoa-que-educo, ou melhor, uma-pes-
soa-que-se-educa através de mim, é colocar-me ao seu lado e dialogar com
ela. Trocar vivências, afetos e saberes. E, então, partilhar com ela a essência
da experiência de uma verdadeira educação: o diálogo (2014, p. 15).
Essa partilha de saberes, afetos, emoções e amorosidade vivenciados na
escola, entrelaçam-se com as práticas pedagógicas que, quando realizadas e
dialogadas, desenvolvem o humano e cotidiano milagre do aprender (FREITAS,
2014). E esse aprender não se relaciona apenas com aprender conteúdos, re-
gras, rotinas, mas se relaciona com ouvir o outro, respeitar suas opiniões, per-
ceber que ele é parte importante do diálogo, para que ambos, educadores e
educandos, possam dizer a sua palavra, e assim a escuta possa acontecer de
forma concreta.
Paulo Freire aponta como um dos saberes necessários à prática educati-
va o saber escutar. Assim ele escreve:
Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é
falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os
portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escu-

54
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

tar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta
paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condi-
ções, precise falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder
falar com é falar impositivamente. [...] O educador que escuta aprende a difí-
cil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em
uma fala com ele (FREIRE, 2005, p. 113, grifos dos autores).

As crianças, os adolescentes, os jovens e os adultos, ao chegarem à esco-


la, trazem consigo suas histórias e uma bagagem de conhecimentos que deve
ser levada em consideração, servir de base para a prática educativa, e por isso
há a necessidade de um trabalho com o educando e não para ele. Nesse proces-
so, a humildade para escutar o outro e reconhecer suas vivências e seus conhe-
cimentos tão diversos como fundamentais no processo educativo é essencial.
E cabe ao professor, nessa acolhida aos educandos, buscar conhecer suas leitu-
ras de mundo e desenvolver sua prática pedagógica respeitando seus conheci-
mentos, suas experiências de vida, suas necessidades e interesses. Freire nos
ensina que:
Como educador preciso ir “lendo” cada vez melhor a leitura de mundo que
os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e
do maior de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de
maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos
populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do
mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo.
E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo “leitu-
ra do mundo” que precede sempre a “leitura da palavra” (FREIRE, 2005, p.
81).

Quantas vezes ouvimos relatos de professores que estão a tanto tempo


atuando na mesma escola e sequer conhecem aquela comunidade, suas rique-
zas, suas necessidades? Como é que, como educador, vamos compreender a
leitura de mundo de nossos educandos, para valorizá-la e ampliá-la, se sequer
conhecemos suas realidades e se sequer damos espaço para que eles digam a
sua palavra dentro da escola, ou, se damos espaço, não damos a devida aten-
ção ao que dizem, se não nos comprometemos com a sua humanização?
Freire (2005) diz que o diálogo torna-se a essência de uma educação
humanizadora e se constitui como um fenômeno essencialmente humano, reali-
zado pelas pessoas por meio da palavra, a partir de duas dimensões: a ação,
para a transformação e não alienação, e a reflexão, atrelada à conscientização
crítica e não alienante. Assim, a palavra não deve ser um privilégio de poucas
pessoas, mas direito de todos os homens e mulheres, já que, como diz o au-
tor: “Os homens se fazem pela palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (ibid,
p. 78).
Dialogando com Shor (1986) sobre a natureza do diálogo, Freire aponta
para o seu caráter transformador:

55
GOELZER, J.; OLIVEIRA, L. R. de; SANTOS, C. da S. dos • Sobre escutar crianças, adolescentes, ...

O diálogo é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre


sua realidade tal como a fazem e re-fazem. Outra coisa: na medida em que
somos seres comunicativos, que nos comunicamos uns com os outros en-
quanto nos tornamos mais capazes de transformar nossa realidade, somos
capazes de saber e saber que sabemos, que é algo mais do que só saber. [...] nós
seres humanos sabemos que sabemos, e sabemos também que não sabemos.
Através do diálogo, refletindo junto sobre o que sabemos e não sabemos,
podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade (FREI-
RE; SHOR, 1986, p. 123, grifos dos autores).

Para tanto, precisamos encontrar formas de escuta e de diálogo na esco-


la que possam contribuir para o crescimento e o envolvimento das gentes no
processo educativo, de maneira que estas possam conhecer e construir possibi-
lidades de transformação de suas realidades. Daí a necessidade de uma educa-
ção escolar mais próxima da realidade dos educandos, que venha ao encontro
das suas reais necessidades e que tenha um significado dentro e fora dos mu-
ros da escola, o que requer a escuta constante das crianças, dos adolescentes,
dos jovens e dos adultos que fazem parte deste espaço.
Cabe salientar que, quando defendemos a necessidade de “escutar as
crianças”, estamos defendendo que as crianças bem pequenas, de 0 a 6 anos,
também sejam ouvidas! E ao contrário do que muitos (dentre eles educado-
res!) pensam e dizem, elas sabem muito, e têm muito a nos dizer! Mas, para
ouvi-las, é preciso que tenhamos muita sensibilidade, pois elas se expressam e
se comunicam conosco por meio de diferentes linguagens (EDWARDS, 1999).
Por isso mesmo, nossa escuta às crianças, segundo Rinaldi (2012, p.124),
não é aquela que se dá apenas com os ouvidos: “Escuta, portanto, como metá-
fora para a abertura e a sensibilidade de ouvir e ser ouvido – ouvir não somen-
te com as orelhas, mas com todos os nossos sentidos (visão, tato, olfato, pala-
dar, audição e também direção)”.
Escutar as crianças – e os adolescentes, jovens e adultos – e valorizar o
seu modo de ser, estar e de perceber o contexto em que vivem, é tarefa funda-
mental do educador amoroso e comprometido. Escutá-los é valorizá-los em
suas capacidades. Rinaldi (2012, p. 122-123), ao apontar para a importância
da escuta na escola, faz um chamamento para todos nós, educadores, quando
escreve:
Isso é o que uma escola deveria ser: primeiro e acima de tudo, um contexto
de múltiplo escutar. Esse contexto de múltiplo escutar, envolvendo os edu-
cadores e também o grupo de crianças e cada criança, todos capazes de
ouvir os outros e a si mesmos, subverte a relação ensino-aprendizagem e,
assim, muda o enfoque para o aprendizado; quer dizer, do autoaprendizado
da criança e do aprendizado conquistado por crianças e adultos juntos (ibid,
p. 128).

56
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Destacamos, a partir dessas considerações de Rinaldi (2012), o quanto


se faz necessário que educadores, gestores, famílias, acreditem nas crianças,
nos adolescentes, nos jovens e nos adultos como pessoas competentes, sujeitos
ativos e capazes de transformarem suas realidades, de serem mais em todas as
dimensões do humano. Contudo, isso somente será possível se aprendermos a
escutá-los e com eles dialogarmos. Somente assim, quando a escola se consti-
tuir nesse lugar de múltiplo escutar, é que poderemos efetivamente contribuir
com seus processos de humanização.
Escutar crianças, adolescentes, jovens e adultos é uma atitude amorosa,
sensível e comprometida que requer do professor a assunção de desafios, a
busca e o encontro de possibilidades de atuação; desafios e possibilidades que
são causa e consequência do processo de auto(trans)formação permanente dos
professores.

A auto(trans)formação permanente dos professores:


para que possamos “escutar”
Compreender a importância da escuta e do diálogo na escola, com
crianças, adolescentes, jovens e adultos, requer que o professor – ou o futuro
professor – eduque o seu olhar e se sensibilize para este processo de escuta.
Mas, infelizmente, nos cursos de formação inicial – e muitas vezes continuada
– de grande parte dos professores que hoje estão nas escolas, a escuta, o diálo-
go e outras dimensões tão fundamentais à prática educativa humanizadora
não foram temáticas de estudo e reflexão.5
Por isso, hoje, muitos professores ainda encaram a escola como uma
instituição que tem unicamente a função de ensinar, de transmitir conteúdos,
esquecendo que a escola é lugar de gente (FREIRE, 2002); logo, esses professores
também assumem para si unicamente a função de transmitir esses conteúdos
aos educandos. Arroyo, então, nos lembra que:
No tempo escolar os mestres têm de dar conta de pessoas, que não estão
unicamente em permanente estado de relação com os conteúdos do currícu-
lo, com suas mudanças, mas que se relacionam, convivem entre iguais e
diversos, sentem, fantasiam, valorizam, dançam, se expressam na totalida-
de de sua condição humana. As crianças, adolescentes e jovens... explodem
na totalidade de suas vivências no presente (ARROYO, 2004, p. 232).
Essa triste realidade – de crianças, adolescentes, jovens e adultos que
ainda hoje provavelmente continuam sendo silenciados na escola, tendo em

5
Dados construídos pelo nosso grupo de pesquisa, principalmente no decorrer de formações
continuadas que realizamos com os colegas professores e professoras de Educação Básica, ao
longo dos últimos anos.

57
GOELZER, J.; OLIVEIRA, L. R. de; SANTOS, C. da S. dos • Sobre escutar crianças, adolescentes, ...

vista esse contexto – torna-se ainda mais gritante quando, em outros escritos
(ARROYO, 2004), o mesmo autor nos lembra que grande parte desses sujeitos
vivem sem perspectivas, muitas vezes nas ruas, sem família, sem amigos. A
realidade deles muitas vezes é tão desumanizante que esperam encontrar, na
escola, apenas um espaço onde sejam acolhidos, reconhecidos. Por isso, a edu-
cação não pode mais limitar-se à mera transmissão de conteúdos; não pode
ignorar essas tantas crianças e esses tantos adolescentes, jovens e adultos que
vivem sem perspectivas. Nesse caso, mais ainda, a escuta do educador e dos
outros que também são parte desse processo é justamente o que lhes abre pers-
pectivas e esperanças de humanização.
Educação, na lógica da formação humana, é ter direito ao conhecimen-
to, ao saber, à cultura e seus significados, à identidade, ao desenvolvimento
pleno como seres humanos que somos (ibid, p. 53). A partir dessa compreen-
são, a ideia de educação conteudista, em que o sujeito recebe uma carga de
informações e não as processa, não as contextualiza, se quebra, e a escola
passa a trilhar novos caminhos, em que os sujeitos se respeitam entre si e com
os outros, passando a reconstruir sua história e a estarem no mundo (FREIRE,
2011), agindo sobre ele.
De acordo com Henz:
Entretanto, muitas de nossas escolas foram “esvaziadas” da genteidade
dos(as) educandos(as); todos parecem estar ali somente em função da “trans-
missão dos conhecimentos científicos”; esquecendo que a escola é um lugar
de gente (Freire). Lembremos: não nascemos “homens” e ou “mulheres”;
precisamos aprender a ser gente. Então, educar é humanizar: é ensinar-apren-
der a genteidade. Mais do que pelas teorias e conceitos; aprendemos a hu-
manização convivendo, dialogando, cooperando, envolvendo-nos em pro-
cessos de ensino-aprendizagem em que cada um(a) – educando(a) e
educador(a) – possa dizer a sua palavra na inteireza de seu corpo consciente
(HENZ, 2007, p. 161).

Diante desse contexto, apontamos para a importância dos processos de


auto(trans)formação permanente desses educadores.
Em seus escritos, Paulo Freire (2005, 2011) nos instiga a refletir sobre
nossa incompletude enquanto seres humanos. Somos seres inacabados, em
constante processo de busca pelo ser mais, processo este que requer o diálogo e
a reflexão para que possamos constantemente nos interrogar sobre nossa prá-
tica. Logo, nos auto(trans)formar.
Ao tratar da importância da formação permanente, Freire destaca que
[...] na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o
da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje
ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso
teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que
quase se confunda com a prática (FREIRE, 2005, p. 39).

58
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Acreditamos que é apenas instigando e incentivando os professores a


refletirem sobre suas práticas, ajudando-os na tarefa de reconhecerem-se como
seres inconclusos, que poderemos juntos refletir sobre a opressão e a exclusão
geradas pela falta de diálogo e de escuta para com nossos educandos. E, consi-
derando isso, Freire nos alerta e orienta no que deve se pautar o processo de
formação de professores:
A formação dos professores e das professoras devia insistir na constituição
deste saber necessário e que me faz certo dessa coisa óbvia, que é a impor-
tância inegável que tem sobre nós o contorno ecológico, social e econômico
em que vivemos. [...] Preciso, agora, saber ou abrir-me à realidade desses
alunos com quem partilho a minha atividade pedagógica. Preciso tornar-
me, se não absolutamente íntimo de sua forma de estar sendo, no mínimo,
menos estranho e distante dela (FREIRE, 2005, p. 137).

Com isso, o autor nos diz que os processos de formação inicial e conti-
nuada de professores devem, sim, minimamente alertar para as diferentes rea-
lidades as quais as crianças, os adolescentes, os jovens e os adultos de nossa
sociedade estão submetidos, alertando ainda para a impossibilidade de uma
prática humanizadora, que permita o ser mais do educando, caso estas realida-
des não sejam reconhecidas.
Nesse sentido, pensamos em uma escola flexível, dinâmica e adaptada
às diversas situações vivenciadas pelos educandos. Por isso, o encontro com o
outro e a convivência com a diversidade são de extrema importância, pois é
dessa forma que ampliamos nossas relações e compreendemos a nós mesmos
e aos outros. Desse modo, partimos do pressuposto de que uma ação dialoga-
da, construída e refletida coletivamente no cotidiano da escola, entre todos os
sujeitos envolvidos no processo educativo, estimula o gosto por aprender cada
vez mais.
Sabemos da necessidade de (re)pensar constantemente a forma de tra-
balho na escola, refletindo de forma coletiva. Somente assim podemos rever o
lugar que é dado aos educandos no planejamento, onde o educador age com
sensibilidade, tendo olhar especial aos saberes que os educandos trazem consi-
go, e acompanhando-os no (re)conhecimento crítico do contexto mais amplo
do qual todos somos parte.
As pessoas é que são o centro da escola, protagonistas da ação educati-
va que nela é desenvolvida. Acreditamos que cada um está na escola para nela
continuar a ensinar-aprender a ser mais gente. Sendo assim, como educadores e
educadoras que somos, devemos “trabalhar” como primeira grande lição a
nossa genteidade (HENZ, 2003), o nosso modo de sentir/pensar/agir como
homens e mulheres; nossas práxis educativas precisam ser mais humanizado-
ras. Para isso, não podemos temer revelar o humano como educador, gostando
de ser gente (HENZ, 2003), sabendo-se condicionado, mas não determinado,

59
GOELZER, J.; OLIVEIRA, L. R. de; SANTOS, C. da S. dos • Sobre escutar crianças, adolescentes, ...

tomando nas mãos a vida e a história – e dentro dela a práxis educativa – como
possibilidade de novas (re)construções em nós mesmos e na realidade, sempre
com os outros.

Que crianças, adolescentes, jovens e adultos tenham sempre


a oportunidade de dizer a sua palavra e de ser ouvidos,
também (e principalmente) na escola
A partir da pesquisa realizada, tornamos ainda mais sólida a nossa com-
preensão de que as crianças, os adolescentes, os jovens e os adultos têm muito
a dizer e nos ensinam muito a cada dia, mas que para isso nós, educadores,
precisamos nos abrir para o verdadeiro diálogo e fazer da escola um contexto de
múltiplo escutar, o que requer assumirmos os desafios e nos abrirmos para as
possibilidades desse processo de escuta.
Dar voz às crianças, aos adolescentes, aos jovens e aos adultos, permitir
que eles digam a sua palavra e apoiá-los nesse processo de compreensão crítica
da realidade, permite que eles percebam o quanto são importantes no mundo,
o quanto têm a ensinar e aprender e o quanto podem transformar suas realida-
des. E, nesse processo, os professores também têm a oportunidade de, através
da sua palavra, e da escuta sensível, aprender e ensinar com eles, descobrindo-
se gente capaz de também transformar a realidade, gente capaz de se
auto(trans)formar.
A partir de tais reflexões, sem jamais concluí-las, podemos afirmar que
uma escola séria e alegre, comprometida com a educação humanizadora, é
uma escola que dá às crianças, aos adolescentes, aos jovens e aos adultos o
papel de sujeitos, de protagonistas, que eles merecem e que lhes é de direito. É
uma escola em que todos compartilham os anseios, os desejos e as necessida-
des uns dos outros. É uma escola em que o professor conhece a realidade
concreta de todos que dela são parte, e assume seu papel de apoiador e media-
dor para que todos olhem e atuem de modo crítico sobre ela, sem perder de
vista o seu contexto maior.
Compreendemos que pensar um hoje e um amanhã mais humanizado,
com pessoas críticas, dialógicas, afetivas, reflexivas e com voz para dizerem a
sua palavra requer pensar na educação que estamos construindo na escola para
nossas crianças, nossos adolescentes, nossos jovens e nossos adultos, se esta-
mos oferecendo a eles uma educação opressora ou libertadora (FREIRE, 2011),
se estamos dando a eles a oportunidade de constituírem-se esses sujeitos úni-
cos, singulares. Quiçá possamos, a partir dessas reflexões, contribuir com a
auto(trans)formação de outros professores, vislumbrando uma possível
(re)construção da docência da escuta e do diálogo na educação de crianças,
adolescentes, jovens e adultos.

60
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Referências
ARROYO, Miguel G. Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens. 7. ed. Petrópolis:
Vozes, 2004.
BEE, H. O ciclo Vital. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George. As cem linguagens da
criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Tradução
Dayse Batista. Porto Alegre: Artmed, 1999.
FREIRE, Paulo. Professora Sim, Tia Não. Cartas a quem ousa ensinar. 11. ed. São
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50. ed. Coleção O mundo, hoje, v. 21. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
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São Paulo: Paz e Terra, 2005.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2009.
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lhor através da ação. In: BRANDÃO, C. R. (Org.). Pesquisa Participante. São Paulo:
Brasiliense, 2006.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Tradução:
Adriana Lopez. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
FREITAS, Ana Lúcia Souza de. Leituras de Paulo Freire: uma trilogia de referência,
v. 1. Passo Fundo: Méritos, 2014.
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citação de professores. 2003. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.
HENZ, Celso Ilgo. Na escola também se aprende a ser gente. In: HENZ, Celso Ilgo;
ROSSATO, Ricardo (Orgs.). Educação humanizadora na sociedade globalizada. Santa
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MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio da Pesquisa Social. In: MINAYO, Maria
Cecília de Souza (Org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 31. ed. Petró-
polis: Vozes, 2012.
RINALDI, Carla. Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender. Tradu-
ção: Vania Cury. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

61
POR UMA PEDAGOGIA SOCIOEDUCATIVA:
a construção de processos humanizadores
e auto(trans)formativos
PARIGI, Camila da Rosa1
RIBEIRO, Eliziane Tainá Lunardi2
COUTO, Gislaine Rodrigues3

Considerações iniciais
Estão em voga, em cenário nacional, discussões acerca da redução da
maioridade penal a partir da proposta de emenda constitucional que deslegiti-
ma a inimputabilidade do adolescente com idade superior a dezesseis anos.
Em contrapartida, estudos e discussões de grupos da sociedade civil nos con-
textos acadêmicos apresentam divergências e ponderações críticas em relação
à implementação da proposta citada. Os argumentos desses grupos são funda-
mentados por meio de escutas e olhares voltados à compreensão dos desafios,
caminhos e histórias de vida dos adolescentes e jovens que estão envolvidos
com a criminalidade. Nesse sentido, destaca-se que pouca ou nenhuma ênfase
é dada ao conjunto de situações que os adolescentes passaram/passam ao lon-
go de sua infância e adolescência até chegar ao crime, muito menos às diversas
situações de violência que podem influenciar negativamente as escolhas.
Um estudo realizado nos Estados Unidos com crianças e adolescentes
que moram em zonas urbanas pobres, afirma que estas crianças e estes adoles-
centes “com problemas de criminalidade estão propensos a uma exposição às
gangues de rua e à violência urbana, aos traficantes de drogas, a moradias com
excesso de habitantes e ao abuso” (BEE, 1997 p. 305). Não se trata de tomar

1
Formada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Maria. Acadêmica do Curso de
Especialização em Gestão Educacional e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação da Universidade Federal de Santa Maria-UFSM. E-mail: camilaparigiufsm@gmail.com.
2
Formada em Pedagogia e Educação Especial pela Universidade Federal de Santa Maria. Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSM e professora da Rede Estadual do
Rio Grande do Sul. E-mail: elizianetainalr@gmail.com.
3
Formada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Maria. Acadêmica do Curso de
Especialização em Gestão Educacional e Mestranda do Programa de Pós-Graduação (Mestrado
Profissional) em Políticas Públicas e Gestão Educacional da Universidade Federal de Santa
Maria-UFSM. E-mail: gihcouto@gmail.com.

62
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

como fator determinante o “ser de camada popular”, mas, sim, de compreen-


der o contexto social no qual os sujeitos vivem, perpassando pela família, pe-
las instituições escolares, pelos amigos, pela vizinhança, pela mídia, etc. To-
dos esses espaços sociais contribuem positiva ou negativamente na formação
do sujeito.
Por esse motivo, buscaremos apresentar algumas discussões que vêm
sendo construídas pelas autoras, especialmente na pesquisa intitulada “Histó-
rias, Sonhos e Esperança... A Práxis Pedagógica com Adolescentes em Confli-
to com a Lei: desafios para a formação inicial na perspectiva da ‘reinserção
social’”4, que voltou para a discussão do processo educativo desenvolvido nas
instituições socioeducativas com problematizações acerca dos pressupostos
freireanos.
A justificativa deste trabalho fundamenta-se na necessidade de aproxi-
marmos nossas discussões e práticas à história de vida desses adolescentes
que, muitas vezes, foram/são marginalizados, sofreram e sofrem diferentes
preconceitos da sociedade, o que influencia diretamente na formação humana
desses sujeitos.
O contexto educativo se caracteriza por um espaço-tempo capaz de pro-
piciar aos estudantes o desenvolvimento de suas potencialidades, tendo em
vista a problematização e/ou transmissão dos conhecimentos historicamente
produzidos pela sociedade. Com isso tem a intenção de promover a mobiliza-
ção social, a democracia e a participação ativa de cidadãos.
Diante disso, começamos a problematizar por que esse espaço acaba,
em alguns momentos, tornando-se um espaço de estigmatização, exclusão ou
silenciamento. Não se trata de apenas “lançar pedras na Geni”5, mas, sim, de
questionar a realidade. É importante, sim, destacar as diversas práticas que
vêm sendo construídas nas escolas em relação à valorização dos saberes, dos
contextos dos estudantes, de ouvi-los e das problematizações e construções de
conhecimentos. Mas é urgentemente necessário questionar por que ainda exis-
tem escolas que não oferecem às crianças e aos adolescentes práticas de valori-
zação da vida e dos gostos democráticos (FREIRE, 2011).
Com essa grande problemática estreitaremos ainda mais essa discussão,
questionando-nos sobre os adolescentes e os jovens que estão cumprindo medi-
das socioeducativas de privação de liberdade nos Centros de Atendimento
Socioeducativos. Qual a função da práxis educativa com esses sujeitos em rela-

4
Monografia de Conclusão do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria,
elaborado pela acadêmica Camila da Rosa Parigi e orientado pelo Professor Dr. Celso Ilgo
Henz e a Professora Mestre Eliziane Tainá Lunardi Ribeiro.
5
Expressão usada com base na música “Geni e o Zepelim” de Chico Buarque de Holanda.
Disponível em: <http://letras.mus.br/chico-buarque/77259/>.

63
PARIGI, C. da R.; RIBEIRO, E. T. L.; COUTO, G. R. • Por uma pedagogia socioeducativa

ção à família, à comunidade e à sociedade? Ainda, quais as vivências humaniza-


doras e cidadãs com os adolescentes que cometem atos infracionais, que estão
na drogadição, no alcoolismo, que são marginalizados e muitas vezes vítimas de
abusos?
Buscando responder as questões trazidas anteriormente, estruturaremos
essa escrita em três principais momentos: no primeiro, expomos brevemente
sobre os Centros de Atendimento Socioeducativos e, posteriormente, sobre as
ações pedagógicas e educativas realizadas nesse espaço. Logo depois, finaliza-
mos apontando nossas percepções.

Contexto Histórico: a caracterização e os percursos históricos


das instituições de atendimento para crianças e adolescentes
que praticam atos infracionais
As políticas nacionais para as crianças e os adolescentes começam a ser
desenvolvidas a partir da visão de tutela e proteção; criam-se, então, as casas
de proteção para crianças e adolescentes “carentes ou desvalidos”, mantidas
com o objetivo de recuperar “o menor “ pelo trabalho.
Essas ações ocorreram até o primeiro Código de Menores em 1927, o
qual criou um conjunto de leis buscando controlar a infância e a adolescência
abandonadas ou “delinquentes”. Posteriormente, o governo de Getúlio Var-
gas instaura o SAM – Serviço de Atendimento aos Menores, subordinado ao
Ministério da Justiça, em que o funcionamento operava como em presídios ou
penitenciarias (FINOQUETO, 2007).
A década de 50 é marcada pelos movimentos dos direitos humanos, quan-
do a Assembleia Geral das Nações Unidas lança a “Declaração dos Direitos das
Crianças” e, em 1959, instaura então princípios básicos para a infância, tais
como: liberdade, felicidade, medidas legislativas instituídas e convívio familiar.
Assim, em 1964, a Lei Federal n. 4.513 instaurou a FUNABEM – Fun-
dação Nacional do Bem-Estar do Menor. Desenvolveram-se ações regionais
para a execução da política nacional, como nos estados de São Paulo e do Rio
Grande do Sul: PROMENOR – 1973 (Fundação Paulista de Promoção Social
do Menor) e FEBEM-RS – 1969 (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor).
Anos depois, o Código de Menores sofre modificações, atendendo à Decla-
ração dos Direitos da Criança de 1959. Elabora-se e divulga-se em âmbito nacio-
nal a Doutrina de Situação Irregular, que destacava a criminalização e a pobreza,
em que a criança pobre era tida como um futuro marginal em potencial, e, por
isso, era preciso reprimi-la e corrigi-la pela violência, caracterizando uma política
assistencialista e que desvalorizava os direitos da criança e do adolescente.
A visão de tutela e proteção foi expressa pelo código de menores de
1979 que se destinava a crianças e adolescentes em situação irregular. A este

64
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

respeito o livro “Processos Educativos com Adolescentes em Conflito com a


Lei” (CRAIDY et al., 2012) destaca que essa doutrina baseava-se em um pres-
suposto de incapacidade da criança e do adolescente e, por isso, estes eram
vistos como objeto de “intervenção protetiva”. O exemplo a seguir demonstra a
segregação e a estigmatização das crianças e dos adolescentes considerados em
situação irregular:
No que se refere ao caráter discriminatório que vigorava no próprio texto
legal anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a ilustrar a lógica
que presidia o revogado código de menores, basta lembrar do episódio ex-
presso em um jornal de grande circulação do País, que estampava manchete
da página policial: “Menor Assalta Criança na frente da Escola”. No texto,
“menor” era o tratamento dado ao adolescente autor da conduta infracio-
nal, enquanto criança, a vítima. Pela Doutrina de Situação Irregular, havia
duas infâncias no Brasil, uma infância dividida: aquela das crianças e dos
adolescentes, a quem os direitos eram assegurados, e os tidos em situação
regular e em face dos quais a lei lhes era indiferente; e outra, a dos “meno-
res”, objeto da ação da lei por estarem em situação irregular (CARVALHO,
FERNANDES; MAYER, 2012, p. 20).
Os anos seguintes foram marcados por fortes correntes que debatiam
sobre o internamento de crianças e adolescentes, sendo, no Brasil, organiza-
das a partir da Comissão dos Direitos Humanos e da OAB – Ordem dos Advo-
gados do Brasil que buscaram o reconhecimento e a legitimação dos direitos
da criança e do adolescente.
Com a Constituição Cidadã, em 1988, reconhecem-se as crianças e os
adolescentes como “sujeitos de direitos”, e instaura-se uma nova doutrina:
Doutrina da Proteção Integral. A Constituição Federal de 1988 irá prever uma
política para crianças e adolescente, na qual:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao ado-
lescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, cruel-
dade e opressão (BRASIL, 1988, p. 37).

Com as novas chamativas da Constituição, o movimento se fortalece e


elabora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990), uma nova lei
que passa a garantir os direitos pessoais e sociais de crianças e adolescentes,
que possibilitem o desenvolvimento físico, mental, social, afetivo, psíquico,
moral e espiritual (FINOQUETO, 2007). O Estatuto dá subsídio para um novo
espaço para cumprimento de medidas socioeducativas, considerando a educa-
ção como essencial pelo seu poder de mudança e emancipação dos sujeitos.
Os espaços das Medidas Socioeducativas criados pelo ECA são destina-
dos a adolescentes e a jovens em conflito com a lei; segundo o Estatuto (BRA-

65
PARIGI, C. da R.; RIBEIRO, E. T. L.; COUTO, G. R. • Por uma pedagogia socioeducativa

SIL,1990) trata-se das medidas que, após a verificação dos atos infracionais,
poderão aplicar-se aos adolescentes, de acordo com as capacidades para cum-
pri-las e as circunstâncias e gravidade da infração. As autoridades previstas
são incumbidas de encaminhá-las aos pais ou responsáveis, bem como de rea-
lizar encaminhamentos de orientação e acompanhamentos, tratamento médi-
co, psicológico ou psiquiátrico, matricula e frequência nas redes de ensino.
Após as mudanças legais, no ano de 2002, cria-se, na cidade de Porto
Alegre no estado do Rio Grande do Sul, através do decreto 41.664, a Funda-
ção de Atendimento Socioeducativo/FASE, bem como o seu Estatuto Social.
Ainda, organizam-se unidades de atendimentos, ou seja, a FASE está sediada
em Porto Alegre/RS e possui mais sete unidades no interior do estado. Nas
demais regiões do estado criam-se os Centros de Atendimento Socioeducati-
vos (CASE), em sete municípios: Santo Ângelo, Santa Maria, Novo Hambur-
go, Pelotas, Caxias do Sul, Uruguaiana e Passo Fundo6. Segundo os dados já
coletados no site da FASE/RS7, os índices de adolescentes privados de liber-
dade ou que cumprem medidas de semiliberdade tiveram um declive desde
1998 até o ano de 2011. Após esse período os números oscilam, apresentando
um crescimento, o que é um fator preocupante na sociedade.
Essa nova perspectiva que surgiu passou a compreender a criança e o
adolescente como sujeitos de direitos, diferentemente das concepções anterio-
res que compreendiam a criança e o adolescente que cometiam atos infracio-
nais como “delinquentes” ou como “vitimados da pobreza”.
Diante das novas chamativas da constituição e dos pressupostos teóri-
cos que fundamentam esse trabalho, pensar nas medidas socioeducativas sem
o horizonte da educação seria uma proposta inviável e falível. A educação
compreendida como um processo de transformação dos sujeitos está intrinse-
camente ligada ao ser humano, ocorre durante toda a sua existência e em to-
dos os aspectos da vida.
Assim, as práticas educativas dentro das instituições socioeducativas
comprometem-se com a transformação dos sujeitos através de fatores sociais,
históricos, psicológicos, culturais e cognitivos. O Sistema Nacional de Aten-
dimento Socioeducativo – SINASE que dispõe de diretrizes pedagógicas
norteadoras do trabalho socioeducativo, afirma que as ações socioeducativas
são imprescindíveis na construção da identidade das crianças e dos adolescen-
tes e ainda auxiliam na elaboração de projeto de vida (BRASIL, 2006).

6
Ainda, extensões regionais responsáveis pelas medidas de semiliberdade, como previstas no
ECA. No município de Santa Maria está situado o CASEMI – Centro de Atendimento
Socioeducativo de Semiliberdade, que atende toda a região central do Estado.
7
Disponível em: <http://www.fase.rs.gov.br/>. Acesso em: 23 ago. 2013.

66
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

O Processo Educativo através de práxis humanizadoras


auto(trans)formativas: quais as possibilidades?
Reencontrar-se como sujeito, liberar-se, é todo o sentido do compromisso
histórico. Já a antropologia sugere que a “práxis”, se humana e humaniza-
dora, é a “prática da liberdade” (FREIRE, 2011, p. 23).
O processo educativo dentro das medidas socioeducativas de privação
de liberdade, assim como nos demais espaços educativos, precisa ser pensado
a partir de uma perspectiva humanizadora e cidadã. O que diferencia esse
espaço dos demais são as singularidades do contexto e dos sujeitos que fazem
parte dessa prática.
O educador brasileiro Paulo Freire, na obra “Pedagogia do Oprimido”,
problematiza processo de humanização e desumanização de mulheres e ho-
mens, compreendendo-as como processo histórico. A desumanização é con-
ceituada pelo autor com “roubo da humanidade” e “distorção da vocação de
ser mais”, pois compreende o ser humano como objeto e não como sujeito
(FREIRE, 2011). Ao seu contrário, a humanização compreende o ser humano
na sua totalidade, na possibilidade de mudança de si e do mundo.
A práxis pedagógica comprometida com o viés humanista preocupa-se
em possibilitar uma visão real do contexto social no qual o sujeito vive. Freire
(2011) idealiza esta práxis como “Pedagogia do Oprimido”. A construção dessa
pedagogia é trazida por Freire em dois momentos: o primeiro momento é o
desvelamento, a compreensão e a transformação do mundo e de si; o segundo
é a libertação, na qual o oprimido deixa de ser oprimido e passa a buscar um
processo de libertação permanente (FREIRE, 2011).
Paralelamente com o processo de humanização, a cidadania se apresen-
ta como:
[...] a luta ferrenha dos seres humanos para serem mais humanos; significa a
luta pela busca da liberdade, na construção diária da liberdade no encontro
com o outro, no embate pelos espaços que permitem a vivência plena da
dignidade humana. A cidadania compõe-se de um conjunto de direitos fun-
damentais para a existência plena da vida humana: direitos civis, que signi-
ficam o domínio sobre o próprio corpo, a livre locomoção, a segurança; os
direitos sociais, que garantam as necessidades humanas básicas, como: ali-
mentação, habitação, saúde, educação, trabalho e salários dignos; expres-
sar-se com liberdade no campo da cultura, da religião, da política, da sexua-
lidade, e participar livremente de sindicatos, partidos, associações, movi-
mentos sociais e conselhos populares, etc. (AHLERT, 2001, p. 12).

Trata-se de um processo de auto(trans)formação, de libertação e repre-


sentação social, no qual o ser humano se constrói humanizado ou desumani-
zado. Freire (2011) elucida as duas possibilidades: humanizar-se e desumani-
zar-se. Compreende o ser humano com um ser inacabado, inconcluso e, por

67
PARIGI, C. da R.; RIBEIRO, E. T. L.; COUTO, G. R. • Por uma pedagogia socioeducativa

isso, capaz de promover mudanças ou estagnar-se com a realidade a ele apre-


sentada. Porém, somente o ser humanizado se torna ser crítico e assume ações
comprometidas com a transformação e a mudança e, por essa razão, constitui-
se como ser histórico condicionado e não determinado, que se constrói e re-
constrói a partir de sonhos e utopias.
Esse movimento implica “a conscientização e nos convida a assumir
uma posição utópica frente ao mundo” (FREIRE, 1997, p. 16), pois, no mo-
mento em que buscamos algo, sonhamos com algo, o sonho vai se transforman-
do em projeto coletivo de transformação da realidade que “coisifica” o ser hu-
mano em uma nova realidade que possibilita a ele transformar-se em sujeito.
Freire (2001) nos esclarece que a práxis educativa é algo extremamente
sério, pois lida com seres humanos, “gente” em processo de formação. E os
educadores participam desse processo de conhecimento de si e do mundo pe-
los sujeitos. Assim, define como responsabilidade do educador “[...] o preparo
científico e gosto pelo ensino, e com nossa seriedade e testemunho de luta
contra a injustiça, contribuir para que os educados vão se tornando presenças
marcantes no mundo” (FREIRE, 1997, p. 32).
Para Miguel Arroyo (2010), os educadores têm, muitas vezes, uma sen-
sação de perda de sentido do processo educativo, visto que não entendem os
sujeitos sociais com os quais trabalham, nem dedicam o tempo em conhecê-
los e ouvi-los.
Frente a isso, a pedagoga, coordenadora da Escola Humberto de Cam-
pos, esclarece-nos que o trabalho com os adolescentes na escola é diferencia-
do: “a organização do Projeto Político da Escola reconhece os meninos, as
aulas são diferenciadas, com períodos mais curtos, intervalos e dinâmicas di-
ferenciadas para os adolescentes” (Fala da Coordenadora Pedagógica durante
a entrevista).
Acreditamos ser imprescindível o olhar voltado ao adolescente que cum-
pre a medida, bem como para sua história de vida e para sua família. Nesta
perspectiva, Paulo Freire defende que:
Em cada situação, para desenvolver alternativas de trabalho, teríamos de ir
até as pessoas para discutir juntos o que precisa se feito em seu contexto. No
entanto, em todos os contextos, nas ações e em maneiras de falar, interesso-
me por encontrar formas de criar um contexto em que as pessoas que vivem
nas ruas possam reconstruir seus anseios e seus desejos – desejos de recome-
çar a ser de maneiras diferentes. Interesso-me pela pedagogia do desejo (FREI-
RE, 2001, p. 37).

Pelas palavras do educador, é possível entender que os objetivos, as me-


tas e as ações das práticas educativas precisam ser pensados com os educan-
dos. Dentro do sistema socioeducativo, a partir das entrevistas e do Plano de
Atendimento Individualizado, são construídas as metas e os objetivos do ado-

68
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

lescente durante sua internação. Ainda sobre isso, a Pedagoga Técnica em


Educação esclarece:
Temos que nos colocar no lugar deles, porque para eles o tempo aqui passa
muito devagar, temos que ver que o menino que vem pra cá tem problemas
na família, que são adolescentes e estão se descobrindo (Fala da Pedagoga
Técnica em Educação durante a entrevista).
Nas palavras da educadora, é possível vermos o reconhecimento do edu-
cando como um adolescente e a necessidade de compreendê-lo pelo tempo
que não pode sair da instituição. Também compreendemos que uma educação
humana e cidadã, no contexto do CASE-SM, ocorre somente no momento
em que os sujeitos se conhecem e refletem sobre as ações e reações que os
fazem estar neste ou naquele lugar, e assim tornam-se capazes de querer e
promover mudanças.
Craidy e Gonçalves (2006) apontaram que os elementos necessários para
uma Pedagogia das Medidas Socioeducativas são:
sentir-se aceito e respeitado; estabelecer relações pessoais positivas – “Aqui
me senti aceito, ninguém me discriminou”; apreender regras, conhecer um
ambiente organizado – “Aprendi o que é um ambiente de trabalho, a ter
horário e a ser organizado”; apreender coisas novas e ver mais possibilida-
des para a própria vida – “Antes eu não conseguia enxergar um futuro pra
mim” (CRAIDY; GONÇALVES, 2006, p. 38).

Trata-se de uma pedagogia que escuta e olha o socioeducando e com ele


constrói possibilidades para sua vida, que o faz sentir-se aceito e integrado.
Destacamos que a práxis educativa nesse contexto se compromete com os ado-
lescentes, oferecendo-lhes oportunidades de acesso a cultura, escolarização,
conhecimento de direitos, vida familiar e comunitária, bem como de profissio-
nalização e trabalho.
Henz (2007) desconstrói uma visão que pode ser marcante para esses
adolescentes: a visão do determinismo. Ele esclarece que,
[...] o ser humano e a história não são pré-determinados, mas abertos e mo-
dificáveis segundo as decisões, utopias, projetos e ações que homens e mu-
lheres assumem na medida em que, na história e como história se humani-
zam no mundo, com o mundo e com os outros seres humanos, num conti-
nuado e inacabado processo de estar sendo (p. 150).
É necessário reconhecê-los como “gente” e compreendê-los como seres
históricos, mas apenas isso não é suficiente. O educador comprometido com o
adolescente é responsável por fazer com que o adolescente se aceite e supere
uma visão fatalista de estar privado de liberdade. Esse movimento de supera-
ção não se dá desconectado do mundo e das relações com o mundo, pois é
preciso buscar as razões sociais, históricas e políticas de estar privado de liber-

69
PARIGI, C. da R.; RIBEIRO, E. T. L.; COUTO, G. R. • Por uma pedagogia socioeducativa

dade, para assim traçar uma luta consciente para transformar as situações que
o fazem estar ali.
Essa práxis não deve ser pensada de forma assistencialista ou autoritá-
ria, pois nenhuma se compromete com a humanização dos educandos. Ao
contrário, rouba-lhes outros sonhos, outras possibilidades, e os impede de sen-
tirem-se sujeitos da própria história e da sociedade que os condiciona para
viver e agir de uma determinada forma. A práxis educativa precisa ser constru-
ída dialogicamente com os socioeducandos, a partir de uma pedagogia proble-
matizadora da realidade, em que a escola seja um espaço acolhedor, capaz de
construir vínculos afetivos e confiança, e que multiplique gostos democráti-
cos, como de ouvir, respeitar, tolerar, criticar, questionar, expor, etc. (FREI-
RE, 2011).

(In)Conclusões
Ao concluirmos esta escrita, percebemos que alguns direitos básicos pre-
vistos no artigo 227 na carta constituinte de 1988, como os direitos a vida,
saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, res-
peito, liberdade e convivência familiar e comunitária são negados a muitas
crianças e muitos adolescentes, por vezes, negligenciados, discriminados e ex-
plorados através do trabalho infantil ou exploração sexual.
Frente a esses fatores, inferimos que as instituições socioeducativas pre-
cisam comprometer-se em, através de ações acolhedoras e educativas, promo-
ver a inclusão e a participação dos adolescentes na sociedade, de maneira res-
ponsável e consciente. Nesse sentido, não podemos exercer práticas educati-
vas autoritárias e verticais, em que a voz dos sujeitos seja negada. Trata-se de
um processo em que são construídos diálogos e reflexões sobre as diversas
situações dos estudantes, bem como de um processo de ensino-aprendizagem
emancipador que torne possível aos internados, ao saírem, retornar à escola e
encontrar novas formas de viver.
Essa necessidade exige que os educadores propiciem práticas pedagógi-
cas democráticas, em que todos participem da tomada de decisão diante das
diversidades e desafios enfrentados dentro da instituição, para que aprendam
a superar as injustiças sociais que vivem diariamente. A cidadania e a humani-
zação dentro das instituições socioeducativas desafiam à valorização das rela-
ções e inter-relações nesse espaço, às experiências e vivências dos estudantes
na perspectiva da emancipação e consciência crítica dos processos históricos,
políticos, econômicos e tecnológicos da sociedade.
Arroyo (2012) nos orienta que é preciso que os educadores auxiliem os
educandos também a humanizar os espaços nos quais vivem, porém não de
forma fatalista, mas, sim, oportunizando uma pedagogia em que “se enten-

70
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

dam e entendam as relações sociais em que é produzido seu mau viver” (AR-
ROYO, 2012, p. 81). Somente no momento em que o adolescente compreen-
der essas relações é que poderá traçar novas ações para sua vida; assim não lhe
faltarão possibilidades e perspectivas após o cumprimento da medida socioe-
ducativa.
Compreendemos que não se trata de algo simples, ainda mais por ser
um espaço onde o sujeito praticamente não tem contato com a realidade exter-
na da sociedade, e por estar privado de liberdade, condição indispensável para
aprender e vivenciar a autonomia, o comprometimento e a responsabilidade,
bem como sonhar e buscar novas possibilidades.
Por fim, destacamos que a superação da visão da infância e da adoles-
cência como “coitadinhos” ao sofrerem abusos, ou como “perigosos” ao reali-
zarem infrações, é necessária. Muito já foi realizado do ponto de vista teórico,
mas é necessário ainda enxergá-los e tratá-los como seres humanos em dife-
rentes e complexas trajetórias. Como “gente” que está se constituindo e apren-
dendo a ser a gente (HENZ, 2007), a partir das suas relações com os outros e
com a realidade que os circunda.

Referências
AHLERT, A. Interdependências entre educação, ética e cidadania para uma formação
emancipadora e libertadora. Diálogos Latino Americanos, v. 12, nov. 2007. Disponí-
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72
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

CÍRCULOS DIALÓGICOS
INVESTIGATIVO-FORMATIVOS:
uma proposta epistemológico-política
de pesquisa
HENZ, Celso Ilgo1
FREITAS, Larissa Martins2

Palavras iniciais
A ciência vem se (re)construindo gradativamente, porque carrega consi-
go as marcas de um tempo histórico que reflete os valores socioculturais de
cada época, atribuindo ao seu fazer representações e ideias do momento (GHE-
DIN; FRANCO, 2011, p. 55). Isso exige dos pesquisadores um novo olhar que
valorize as necessidades humanas, principalmente na educação que carece de
(re)definições, a fim de que realmente a ciência possa contribuir significativa-
mente com as pessoas que estão nesse meio e com a sociedade. Se não for
dessa forma, as pessoas passam a não ver sentido em participar das pesquisas,
por acreditarem que elas não contribuem em nada com a melhoria da sua
condição de educador e, consequentemente, a ciência perde sua razão de ser.
Caminhando nessa direção, entendemos que fazer ciência, hoje, “[...] é
descobrir, desvelar verdades em torno do mundo, [...] das coisas que repousa-
vam a espera do desnudamento. É dar sentido objetivo a algo que novas neces-
sidades emergentes da prática social colocam” (FREIRE, 2013, p. 105). Pes-
quisamos para compreender a realidade a qual vislumbramos conhecer, bem
como para alargar o entendimento da própria complexidade humana, visto
que o homem é um ser que faz história e, portanto, que age sobre o mundo e
produz conhecimento. E, sob esse entendimento, Ghedin & Franco (2011, p.

1
Doutor em Educação (UFRGS, 2003). Professor Associado 2 da UFSM. Professor da LP1:
Formação, Saberes e Desenvolvimento Profissional, do PPGE/UFSM. Coordenador do Grupo
de Estudos “DIALOGUS: educação, formação e humanização com Paulo Freire”. E-mail:
celsoufsm@gmail.com.
2
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora de Educação Básica
– Coordenadora Pedagógica na Escola Estadual de Ensino Médio Professora Maria Rocha. Gra-
duada em Letras-Português (UNIFRA). Participante do Grupo de Pesquisa Dialogus: educação,
formação e humanização com Paulo Freire (UFSM). E-mail: lari.mfreitas@yahoo.com.br.

73
HENZ, C. I.; FREITAS, L. M. • Círculos dialógicos investigativo-formativos

103) afirmam que o homem, “ao produzir conhecimento, transforma e é trans-


formado”. Por isso, a pesquisa só se faz significativa no momento em que
instiga os participantes envolvidos ao desvelamento de suas necessidades, pro-
vocando-os à reflexão e, consequentemente, à conscientização do que é preci-
so ser modificado. Esse tipo de pesquisa dá a todos a possibilidade de evoluir,
de transcender e de superar velhas convicções em busca do ser mais3. E é exata-
mente nesta perspectiva de pesquisa que acreditamos!
O “Grupo Dialogus – educação, formação e humanização com Paulo
Freire” vem desenvolvendo uma proposta epistemológico-política de pesquisa
e de dinâmica nos encontros de estudo na Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM/RS), assim como nas formações permanentes com educadores das
escolas das redes municipal e estadual da cidade e do estado, e também em
outras pesquisas de dissertação de mestrado já realizadas e em andamento.
Esses encontros auto(trans)formativos têm oportunizado espaços e dispositi-
vos de reflexão com esses educadores e acadêmicos dos cursos de licenciatura
sobre seus limites, desafios e possibilidades.
Os encontros de formações permanentes acontecem dentro do Projeto
“Humanização e Cidadania na Escola: diálogos com professores”, cujo obje-
tivo é proporcionar espaços-tempo de investigação-ação, através dos Círculos
Dialógicos Investigativo-formativos, oportunizando uma reflexão sobre a rea-
lidade social e escolar e sobre possíveis mudanças nas práxis educativas dos
educadores. Isso porque o Grupo prioriza o direito de cada um dizer a sua
palavra4, bem como acredita que só existe transformação quando esta parte do
diálogo-problematizador e da escuta sensível ao outro. Porém, é importante
lembrar que “Eu só escuto na medida em que eu respeito, inclusive o que fala
me contradizendo” (FREIRE, 1992, p. 5). E essa escuta, quando feita de ma-
neira atenta e aberta às proposições dos outros, contribui para o aprendizado
mútuo e mobiliza à auto(trans)formação permanente.
Nessa perspectiva, este texto tem como objetivo apresentar a proposta
epistemológico-política de pesquisa dos Círculos Dialógicos Investigativo-for-
mativos, inspirada nos Círculos de Cultura freireanos em um entrelaçamento
com os pressupostos da pesquisa-formação de Josso (2004, 2010).

3
Segundo a proposta freireana, o ser humano está em permanente procura, aventurando-se
curiosamente no conhecimento de si mesmo e do mundo, além de lutar pela afirmação/conquista
de sua liberdade (ZITKOSKI, 2010, p. 369).
4
Expressão utilizada por Fiori (2011).

74
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos como


possibilidade de investigação e auto(trans)formação
Os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos surgiram inspirados nos
Círculos de Cultura5 de Paulo Freire. Buscamos, assim como o próprio autor
dizia, “reinventar”6 a sua criação, pois ele, da mesma maneira que se denomi-
nava um ser inacabado e inconcluso, considerava ter deixado um legado que
também precisava ser “reinventado” por aqueles que se comprometem com
uma educação humanizadora, adequada a seu tempo e capaz de possibilitar a
consciência crítica de homens e mulheres em busca do ser mais.
De acordo com Brandão (2013), a proposta de Paulo Freire “não se
impõe sobre a realidade ou sobre cada caso. Ela serve a cada situação. O mes-
mo trabalho coletivo de construir o método7, a cada vez, deve ser também o
trabalho de ajustar, inovar e criar a partir dele” (p. 68). Nessa perspectiva, não
existem receitas determinadas e prontas, tudo depende da situação e do con-
texto. Então, o “método” não precisa apresentar uma estrutura rígida, poden-
do ser pensado e adequado com vistas a atender às necessidades dos sujeitos
envolvidos e ao contexto, buscando sempre a libertação e a emancipação de
todos.
Desse modo, assim como os Círculos de Cultura “reúnem um coorde-
nador com algumas dezenas de homens do povo, num trabalho comum de
conquista da linguagem em que a condição essencial da tarefa é o diálogo”
(FREIRE, 2001, p. 27), os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos pro-
curam, através do diálogo-problematizador, proporcionar uma reflexão crítica
sobre o ato educativo, com um coletivo de pessoas, educadores e/ou educan-
dos, com base nas questões levantadas pelo grupo com relação à temática.
Nesse contexto, é importante esclarecermos que, na premissa freireana, o diá-
logo é entendido como
[...] uma relação horizontal A com B. Nasce da matriz crítica e gera critici-
dade. Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança.
Por isso só o diálogo comunica. E quando os dois polos do diálogo se ligam

5
Constituem-se como um espaço dinâmico de aprendizagem e troca de conhecimento. Nesse
espaço os sujeitos da Educação de Jovens e Adultos reuniam-se para discutir uma situação-
problema, representativa de situações reais. Os diálogos nos Círculos de Cultura buscam levar
à reflexão acerca da própria realidade, para, na sequência, decodificá-la (VASCONCELOS,
2006, p. 53).
6
Vista aqui a partir da concepção de seguir Paulo Freire, sem repeti-lo ou tomá-lo como um
“guru” ou um mito. Dito de outra forma, reinvenção é inerente aos múltiplos caminhos do
legado de Paulo Freire (SCOCUGLIA, 2010, p. 357).
7
É importante destacar aqui que Paulo Freire incomodava-se “quando lhe atribuíam a autoria
de um método de alfabetização. Ele dizia que tinha criado uma metodologia que mais se
aproximava com um método de conhecer do que de ensinar” (FEITOSA, 2008, p. 74).

75
HENZ, C. I.; FREITAS, L. M. • Círculos dialógicos investigativo-formativos

assim, [...] se fazem críticos na busca de algo. Instala-se então uma relação
de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação (FREIRE, 2014, p. 141).
Sendo assim, a comunicação se estabelece a partir da palavra como for-
ma de dizer e fazer o mundo, ou seja, a palavra verdadeira torna-se práxis
social comprometida com o processo de humanização, no qual ação e reflexão
constituem-se de modo dialético. Sob esse prisma, podemos afirmar que “o
diálogo possui uma força transformadora. Onde um diálogo é bem-sucedi-
do, algo nos ficou e algo fica em nós que nos transformou” (HERMANN,
2002, p. 91). Essa dialeticidade se efetiva nos Círculos Dialógicos Investigati-
vo-formativos, a fim de que homens e mulheres percebam-se como sujeitos no
mundo, imersos em uma realidade sócio-histórico e cultural, e capazes, então,
de transformá-la.
Nessa dimensão, acreditamos que cada sujeito envolvido na pesquisa
ocupa um papel único e singular e, por isso, têm a possibilidade de dizer a sua
palavra compartilhando saberes em um processo de construção colaborativa e
auto(trans)formativa do conhecimento e de reflexão sobre a própria prática
educativa, pois “somente um trabalho coletivamente realizado pode chegar à
construção de um saber” (JOSSO, 2010, p. 27). Sobre isso, Freire (1997, p. 35)
corrobora enfatizando que não podemos
conhecer a realidade de que participam a não ser com eles, como sujeitos
também deste conhecimento que, sendo, para eles, um conhecimento do co-
nhecimento anterior (o que se dá ao nível da sua experiência quotidiana) se
torna um novo conhecimento. [...] Na perspectiva libertadora [...] a pesqui-
sa, como ato do conhecimento, tem como sujeitos cognoscentes, de um lado,
os pesquisadores profissionais; de outro, os grupos populares e, como objeto
a ser desvelado, a realidade concreta.

Nesse contexto, todos os sujeitos envolvidos têm a possibilidade de par-


ticipar ativamente da pesquisa como coautores8, construindo práticas capazes
de intervir na sua realidade. Afinal, quando estamos a serviço da emancipa-
ção de homens e mulheres, temos como premissa que cada sujeito “tem que
participar na investigação como investigador e estudioso e não como mero
objeto” (FREIRE, 1999, p. 37). Por meio das “vozes” desses coautores pode-
mos ir desvendando as situações-limites, refletindo e analisando com eles as
relações e interações do contexto em que se encontram, para que todos, pes-
quisadores e pesquisandos interlocutores, no diálogo, encontrem novos senti-
dos para as suas práticas.

8
O termo coautor foi denominado pelos autores, pois o entendimento do mesmo é que não
existe um autor único, todos os sujeitos envolvidos também participam dialogicamente e, por
isso, é impossível determinar um sujeito como o principal.

76
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Diante disso, esta proposta epistemológico-política de pesquisa possui


também características de pesquisa-formação, visto que “os participantes in-
vestem ativamente em cada etapa do trabalho” (JOSSO, 2010, p. 135). A pes-
quisa-formação ultrapassa a ideia de dissertar apenas sobre a formação dos
sujeitos, para que estes se assumam como sujeitos da formação. Isso porque o
sujeito interlocutor, na processualidade dialógica dos encontros, vai tomando
consciência de si, do outro e da sua realidade, e, a partir das reflexões feitas
com o grupo, torna-se capaz de fazer e refazer o mundo e também a si mesmo.
Dentro desse viés, a pesquisa-formação possibilita que não nos limite-
mos apenas a compreender como pensam, falam e vivem os sujeitos dentro de
uma realidade social, muito menos que passemos a prever possíveis “solu-
ções” para as situações-limites levantadas por esse grupo. Mas permite que
mergulhemos em sua realidade, para captar a lógica dinâmica e contraditória
do discurso de cada ator social e de seu relacionamento com os outros atores,
com vistas a despertar nesses sujeitos o desejo de mudanças e, com eles, criar
meios para a transformação do contexto da escola (JOSSO, 2004, p. 25), bem
como mobilizá-los a buscarem a sua própria auto(trans)formação.

Movimentos metodológicos dos


Círculos Dialógicos Investigativo-formativos
Este trabalho mostra a dinâmica dos Círculos Dialógicos Investigativo-
formativos como um caminho metodológico, o qual já vem sendo assumido
pelo “Grupo Dialogus – educação, formação e humanização com Paulo Frei-
re”, tanto em seus encontros de estudo e pesquisa na Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM/RS) quanto para dinamizar as formações permanentes
com educadores das escolas das redes municipal e estadual da cidade e do
estado. Além disso, os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos têm sido
utilizados como metodologia em várias pesquisas de dissertações de mestrado
já realizadas e em andamento no grupo.
A proposta deste texto é mostrar especialmente como ocorre a referida
metodologia nas formações e pesquisas. O registro das interlocuções é um dos
pontos primordiais para os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos. Usa-
mos tanto na forma escrita quanto também na oral, a partir da gravação das
falas, pois compreendemos que o registro é uma das maneiras escolhidas para
capturar a realidade concreta a ser problematizada pelos sujeitos coautores, uma
vez que “a prática de registrar nos leva a observar, a comparar, a selecionar, a
estabelecer relações entre os fatos e as coisas” (FREIRE, 2013, p. 145). Em cada
encontro de formação propomos para o grupo que “alguém” seja responsável
por sistematizar as reflexões feitas nos diálogos, para posteriormente organizar-
mos novas discussões, partindo das problematizações levantadas.

77
HENZ, C. I.; FREITAS, L. M. • Círculos dialógicos investigativo-formativos

Para a efetivação harmônica e crítico-reflexiva, logo no primeiro encon-


tro com os sujeitos coautores, expomos a eles alguns passos importantes para
a dinâmica dos círculos, discutidos e organizados pelo subgrupo que vem apro-
fundando os estudos sobre os Círculos Dialógicos durante os encontros do
Grupo Dialogus. No quadro abaixo, apresentamos de forma sistematizada es-
ses movimentos, ressaltando que os mesmos não ocorrem linearmente ou de
forma estanque; todos estão imbricados uns nos outros, dentro da processuali-
dade dialética de uma espiral.

Quadro 1 – Movimentos para a dinâmica dos Círculos Dialógicos Investigati-


vo-formativos

Fonte: elaborado pelos autores deste artigo.

Inicialmente, conversamos com os coautores sobre a própria dinâmica


dos círculos, esclarecendo que, durante os diálogos, todos precisam estar aten-
tos à fala de cada um dos interlocutores e, também, sentirem-se livres para
“dizer a sua palavra” conforme forem se sentindo convidados à fala. Neste
primeiro movimento, a ideia é que pesquisadores/interlocutores possam viven-
ciar uma experiência concreta de compartilhamento de sentimentos, de per-
cepções, de crenças e de opiniões, baseada na escuta sensível e no olhar agu-
çado ao outro, na busca pela razão de ser das problematizações apontadas
pelo grupo. Ressaltamos aqui que essa escuta sensível transcende “a capacida-
de auditiva e difere-se da pura cordialidade” (SAUL, 2010, p. 159), para além
da palavra, em que sejam considerados também os gestos, os olhares, as rea-
ções, os sentimentos despertados por esses momentos reflexivos dialógicos.

78
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Ao longo dos encontros, vamos provocando diálogos entre os interlocu-


tores envolvidos, com vistas a convidá-los a adentrar o segundo movimento da
dinâmica dos círculos, que está relacionado à possibilidade de cada um se
descobrir como ser inacabado e ter, consequentemente, a progressiva cons-
ciência de que, como humanos, estamos em permanente processo de busca e
auto(trans)formação. Dessa maneira, cada um dos sujeitos coautores é desa-
fiado a refletir sobre o cotidiano da escola e da sala de aula em vistas a re-
pensar criticamente a prática para melhorá-la (FREIRE, 2011, p. 40).
A partir daí, o pesquisador e os sujeitos coautores dialogam sobre as
temáticas levantadas, o que vai construindo o terceiro movimento da dinâmi-
ca, pronunciando o seu sentir/pensar/agir (HENZ, 2003) e, “ao proceder dessa
forma, eles denunciam suas condições existenciais, movidos pela ação-refle-
xão-ação e pela proposição de saídas para o impasse, anunciando novas possi-
bilidades de intervenção na realidade” (ROMÃO, 2006, p. 179-180).
Nessa perspectiva, vão se constituindo os diálogos-problematizadores,
quarto movimento da dinâmica, a fim de mobilizar e potencializar cada um dos
participantes a pensar sobre os questionamentos que vão sendo levantados. A
partir dessas discussões, novas indagações começam a surgir. Ao indagar, o
ser humano mobiliza a sua capacidade de fazer opções, de decidir e de esco-
lher e, quando exerce essa capacidade de escolha, não muda totalmente o
mundo, mas muda sua posição diante e dentro dele. Todavia, para que haja a
mudança é necessário saber a serviço de que e de quem se está trabalhando,
para que as discussões não caiam no espontaneísmo e na licenciosidade. Nes-
te sentido, Freire (2000, p. 102) ratifica a importância do exercício desse pen-
sar, entendendo que:
O exercício de pensar o tempo, de pensar a técnica, de pensar o conheci-
mento enquanto se conhece, de pensar o quê das coisas, o para quê, o
como, o em favor de que, de quem, o contra que, contra quem são exigên-
cias fundamentais de uma educação democrática à altura dos desafios do
nosso tempo.
Nesse contexto, caminhamos rumo ao quinto movimento da dinâmica
dos círculos: a auto(trans)formação de todos os sujeitos envolvidos. Nesse
momento, tanto os pesquisadores quanto os interlocutores pesquisadores têm
a possibilidade de vivenciar um processo dialógico de auto(trans)formação
permanente, em que ambos compartilham suas inquietações, desejos, esperan-
ças, alegrias, frustrações, saberes, bem como problematizam essas experiências,
não só, como enfatiza Freitas (2010, p. 88), para a tomada de “consciência da
realidade, mas também no engajamento na luta pela transformação.
Desse modo, conforme Henz (2014) “a auto(trans)formação permanen-
te de professores se dá por meio de uma circularidade em espiral ascendente

79
HENZ, C. I.; FREITAS, L. M. • Círculos dialógicos investigativo-formativos

proativa que se movimenta dentro da condição ontológica do inacabamento


humano em busca do ‘ser mais’”. E isso, para o autor, só é possível por meio
do processo dialético de ação-reflexão-ação com os outros e com o mundo, de
maneira que todos se percebam como sujeitos condicionados, mas também
como capazes de mudar essa realidade.
Por fim, chegamos ao sexto movimento da dinâmica, o da conscientiza-
ção . Nesse momento dos círculos dialógicos cada um dos participantes, no
9

seu tempo, vai tomando consciência das situações-limite que o circundam e


começa a refletir criticamente sobre elas, condição essencial para que o com-
prometimento humano com o mundo e com os outros aconteça. Freitas (2010,
p. 88), inspirada nos pressupostos freireanos, enfatiza: “É através da conscien-
tização que os sujeitos assumem seu compromisso histórico no processo de
fazer e refazer o mundo, dentro das possibilidades concretas, fazendo e refa-
zendo a si mesmos”.
Nessa perspectiva, “a pesquisa é entendida como a realização de ativi-
dades transformadoras da subjetividade do sujeito aprendente e cognoscente.
São, portanto, igualmente o sujeito da pesquisa e o sujeito cognoscente que
estão em formação” (JOSSO, 2010, p. 19). Desse modo, acreditamos que, du-
rante os encontros dialógicos, tanto os pesquisadores quanto os sujeitos inter-
locutores do estudo encontram-se em processo permanente de ação/reflexão/
ação, e, consequentemente, de aprendizagem e de construção mútua.
De qualquer jeito, o sentir/pensar/agir é pronunciado e mobilizado qua-
se que totalmente através do diálogo que se torna elemento orientador e possi-
bilitador de toda a pesquisa. Porém, não há como falarmos em diálogo sem
falarmos em linguagem, em interpretação, o que, como vimos, não se restrin-
ge apenas a textos escritos, mas a todo o processo interpretativo. Sendo assim,
precisávamos escolher um método de análise e interpretação que “permitisse
o aclaramento dos horizontes de significados” (GHEDIN & FRANCO, 2011,
p. 164).
Diante disso, para análise e interpretação dos diálogos, utilizamos o
enfoque hermenêutico, por entendermos que ele contribui para a compreen-
são e o desvelamento do que é significativo para cada pessoa, a partir das suas
vivências e experiências dentro de seu contexto sócio-histórico e cultural. Esse
tipo de enfoque possibilita a tomada de consciência de si e do outro, visando
compreender a realidade que se apresenta a partir do modo pelo qual cada um
está no mundo.

9
Na concepção freireana, a conscientização é tomar posse da realidade, primeiramente afastando-
se dela para perceber a radicalização utópica que a informa; depois para desmitologizá-la, ou
seja, para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a reforçar a estrutura da realidade
dominante (FREIRE, 2001, p. 33).

80
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Nesse sentido, “compreender é sempre um processo de fusão de hori-


zontes” (HERMANN, 2002, p. 49), no qual as pessoas trazem consigo as suas
concepções sobre o mundo, sobre os outros e sobre as coisas que as cercam.
Ainda, de acordo com a autora, a hermenêutica reivindica olhar o mundo
com base na sua finitude e historicidade de onde decorre o caráter interpreta-
tivo, visando à busca de sentido para as coisas e a interpretação. A interpreta-
ção, então, “ultrapassa o texto escrito e se refere a uma manifestação vital que
afeta as relações dos homens entre si e com o mundo” (Ibidem, 2002, p. 15).
No entanto, o fato de compreendermos não significa que precisamos
concordar com o que ou quem se compreende, mas, sim, termos a oportunida-
de de pensar e ponderar aquilo que o outro pensa (GADAMER, 2002, p. 23),
dialogicamente. Daí reside a importância de todos estarem abertos para as
novas vivências, compartilhando com o grupo, através do diálogo nos Círcu-
los Dialógicos Investigativo-formativos, reflexões sobre quem são, como se
constituíram e o porquê de suas práticas. Nesse sentido, a hermenêutica auxi-
lia na compreensão desses diálogos, uma vez que, possibilita buscar o que está
implícito nas entrelinhas da conversa, desvelando como o ser humano atribui
sentido a si próprio e à totalidade sócio-histórico e cultural em que está imerso.

(In)conclusões
Com base no exposto, percebemos que os Círculos Dialógicos Investi-
gativo-formativos configuraram-se em espaços e dispositivos de estudos em
que pesquisadores e sujeitos interlocutores têm a possibilidade de dialogar
abertamente. Ao longo dos encontros com educadores e acadêmicos, observa-
mos o quanto os momentos e movimentos de diálogo são indispensáveis para
que se possa problematizar o cotidiano da escola, bem como a realidade de
cada um dos interlocutores, para que aconteçam efetivas auto(trans)formações
nas suas concepções e ações e, consequentemente, no contexto em que atuam.
Nesses movimentos dialógicos e intersubjetivos cada um passa a refletir
com mais criticidade sobre suas práticas, afastando-se da sua própria realida-
de, olhando-a de longe para então questioná-la, como afirmou o grande edu-
cador Paulo Freire. Durante os encontros cada um vai tomando consciência
do seu próprio fazer pedagógico, em um processo permanente de reflexão,
(des)construindo práticas e (re)construindo-as, em vistas de uma perspectiva
humanizadora comprometida com a conscientização e a libertação de todos.
A metodologia dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos, cria-
da e utilizada pelo Grupo Dialogus em suas atividades de encontros, em suas
pesquisas e em seus projetos formativos, possibilita a aproximação dialógi-
ca, permitindo voz e vez a cada interlocutor, bem como o repensar das práti-
cas do grupo e de formação permanente. Acreditamos que essa abordagem

81
HENZ, C. I.; FREITAS, L. M. • Círculos dialógicos investigativo-formativos

metodológica contribui tanto com as ações aqui já apresentadas como para


as atividades futuras, bem como para o uso em novas pesquisas de mestrado
e doutorado.

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83
UM OLHAR DA PEDAGOGIA POPULAR
PARA A SALA DE AULA DA ESCOLA PÚBLICA:
o desafio de mobilizar para o estudo
e as contribuições dos vínculos afetivos e
da gestão escolar como entrelaçamentos
do processo educativo
SIGNOR, Patrícia1
PIGATTO, Carolina Zasso2
KRANN, Rosilei Amaral3

Considerações iniciais
Os inícios de cada ano letivo são marcados por aspirações, desejos de
mudança e muitos desafios que se acentuam ao longo do trabalho pedagógico
nas escolas. Na realidade da escola pública são estudantes vindos das mais
distintas condições econômicas, sociais e culturais que são “enquadrados” em
salas de aulas homogêneas, nas quais serão repassados conteúdos geralmente
iguais aos dos anos anteriores e onde todos “deverão moldar-se” ao estereóti-
po de “aluno ideal” – aquele que estuda, aprende facilmente, tira boas notas e
terá um excelente futuro – a fim de corresponder às expectativas do mercado,
da família, da escola e da estrutura social vigente.
Há, contudo, um embate que não permite que a escola funcione do modo
narrado acima: a realidade. Na injusta sociedade em que a desigualdade se acen-
tua à medida em que confrontamos o poder econômico e as oportunidades de
uns e de outros, a escola configura um dos poucos, senão único, ambientes de
convivência e confronto da luta de classes. Por não avaliar a realidade vivida
por eles, o professor que trabalha com aulas “prontas”, transmitindo conteú-
dos cristalizados e isolados não consegue aproximar-se dos estudantes e tam-
pouco cativá-los para a construção da aprendizagem, ao que Freire chamou

1
Mestranda em Educação, Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: p85343@yahoo.com.br.
2
Mestranda em Educação, Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: carolzpigatto@hotmail.com.
3
Pedagoga – Licenciatura Plena/UNIDAVI SC, Especialista em Educação Infantil e Séries
Iniciais do Ensino Fundamental/Registro SP. E-mail: rosileikrann@gmail.com.

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Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

de educação bancária. “Na visão ‘bancária’ da educação, o ‘saber’ é uma doa-


ção dos que se julgam sábios aos que se julgam nada saber” (FREIRE, 2013,
p. 81). Assim, a escola julga-se o único lugar onde se possa aprender, igno-
rando os tempos-espaços nos quais os educandos vivem, sobrevivem, intera-
gem e convivem com outros seres humanos produzindo saber, conhecimen-
to e cultura.
Partindo de uma concepção bancária, além do desafio de como ensinar,
o professor enfrenta a todo o instante o problema da indisciplina, da apatia e
do descaso de muitos estudantes com a escola. Esta dura realidade distancia
adolescentes e jovens das escolas e acentua um problema da educação pública
brasileira: como contribuir para que esses possam enxergar no estudo uma
possibilidade para “ser mais” e conscientizar-se da necessidade de libertação
da opressão que já sofrem na sociedade?
Para que a sala de aula seja espaço de diálogo, compreensão e humani-
zação, assim como viveu Paulo Freire, não é possível partir de conteúdos iso-
lados, mas, sim, escolhê-los e trabalhá-los para a compreensão de mundo, de
homem e de escola pelos quais se está disposto a lutar. A realidade será o
ponto de partida e também de chegada, com vistas à emancipação dos sujeitos
que nela interferem.
A aproximação com a realidade da escola e principalmente dos educan-
dos confere sentido à educação. Não se está lá para aprender para os outros,
nem tampouco para decorar o que outros disseram, mas, sim, “aprender a
dizer a sua palavra” em concordância com Freire em sua obra “Pedagogia do
Oprimido” (2013, p. 17), talvez aquela palavra presa na garganta que às vezes
nem sabe mais ser dita porque silenciada pela opressão, dominação e exclusão
promovida pela sociedade, e muitas vezes reforçada pela escola.
Ainda nessa perspectiva, tem-se nos escritos de Freire que é preciso apren-
der a dizer a sua palavra, a partir dos saberes advindos das experiências cotidia-
nas, e esses momentos de (re)construção do PPP são ideais para isso, pois
esses envolvem (ou ao menos deveriam) toda a comunidade escolar, pais, edu-
candos e educadores. Além disso, é preciso também ter a escuta sensível e
considerar as falas de todos os sujeitos que participam desse momento. Com-
plementando, na pedagogia freireana se tem uma diferença entre a educação
bancária e a educação problematizadora, no que se refere à questão da abertu-
ra ao diálogo entre os sujeitos. De acordo com Freire (2011), o diálogo é nega-
do na educação bancária, enquanto a educação problematizadora mantém suas
bases no diálogo, quando educandos e educadores aprendem juntos.
Através da participação nas escolas serão redimensionadas as relações
de poder, os tempos, os espaços no sentido de atender as demandas da comu-
nidade. Por isso, a comunicação deve ser um instrumento direto entre escola e

85
SIGNOR, P.; PIGATTO, C. Z.; KRANN, R. A. • Um olhar da pedagogia popular para a sala de aula...

sociedade, a qual pode ser efetivada através, por exemplo, dos colegiados esco-
lares, pois estes auxiliam na tomada de decisão em todas as áreas, procuram
meios para alcançar os objetivos do PPP e devem contar com a colaboração de
todos os envolvidos na escola.
Seu maior significado está na participação dos pais na vida escolar de
seus filhos. Essa é a condição fundamental para que a escola esteja integrada
na comunidade e vice-versa. Freire defende que somente por meio da criação
de estruturas democráticas poderemos romper com a tradição autoritária do
sistema de ensino:
O que quero deixar claro é que um maior nível de participação democrática
dos alunos, dos professores, das professoras, das mães, dos pais da comuni-
dade local, de uma escola que, sendo pública, pretenda ir tornando se popu-
lar, demanda estruturas leves, disponíveis à mudança, descentralizadas, que
viabilizem, com rapidez e eficiência, a ação governamental (FREIRE, 2001,
p. 74-75).
Para entender que a educação é uma perspectiva de mudança, por que
não partir de uma construção histórica de mundo, de sociedade e de homem
mais dialógica e problematizadora, tornando a escola uma possibilidade para
seus educandos “serem-mais” e não com uma simples determinação?
A escola que se propõe a educar(-se) diariamente por esta causa necessi-
ta ter uma prática reflexiva e aberta permanente para ouvir e permitir a partici-
pação dos educandos na construção de estratégias e ações de aprendizagens
transformadoras e ousadas. Assim é importante que as instituições façam acon-
tecer a gestão escolar democrática, como forma de vivenciar um processo de
educação amplo, contextualizado e que permita a participação e a escuta de
seus sujeitos.
A gestão da escola no dia a dia é um ato político, pois não podemos
mais levar adiante as decisões tomadas de forma individualizadas, mas temos
que considerar as opiniões dos novos parceiros do processo educacional: pais,
professores, funcionários e alunos, assumindo um compromisso com a comu-
nidade escolar, deixando-os participar, tomar decisões, isso propiciará à esco-
la uma gestão democrática e participativa, em que a construção não pode ser
individual, pelo contrário, precisa ser coletiva.

Ouvir para transformar na prática


É fundamental para o aluno sentir que tem na escola um espaço para
ser quem é e dizer a sua palavra. Se chegar à escola e encontrar um ambiente
hostil e autoritário, no qual deva enquadrar-se para que seja respeitado e
reconhecido, ao invés de identificar-se, distancia-se e rejeita o lugar que de-
veria ser seu. Para Paulo Freire:

86
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

dizer a palavra tem grande importância no sentido de transformar o mundo,


pois, ao dizer a própria palavra as pessoas começam a construir consciente-
mente seus próprios caminhos [...] (AMORIM, in: TAVARES SANTOS,
2011, p. 187).

Com o intuito de poder ouvir a palavra dos sujeitos do processo educa-


tivo, a pesquisa deste artigo parte de uma aula inicial do ano letivo de 2015, na
qual se buscou identificar quais fatores mobilizariam verdadeiramente os jo-
vens para o estudo? A pesquisa foi realizada em dois contextos diferentes:
uma escola de ensino médio, localizada no município de Sarandi, e outra es-
cola de educação básica, de Barra Funda, ambas do norte do estado do RS. A
primeira escola, denominada aqui por Escola A, é a única escola pública de
Ensino Médio do município. Contempla nos três turnos de funcionamento
cerca de 800 alunos de diferentes realidades locais (meio rural, bairros e centro
urbano). Prima, em seu PPP, por uma educação para o ser e o saber, mas
mantém em sua grande maioria aulas tradicionais e o objetivo de preparar
para o vestibular e para os quesitos mínimos necessários para a conclusão da
Educação Básica. A pesquisa nesta escola teve por foco alunos do 2º ano do
turno da noite, trabalhadores dos mais diversos setores da economia local, os
quais procuram a escola neste turno para conciliar emprego e estudo, com o
intuito da conclusão do Ensino Médio.
Na segunda escola, doravante denominada Escola Z, o contexto é um
município de cerca de 3.000 habitantes. A instituição de ensino é também a
única pública de Ensino Médio, que atua nos turnos da manhã e noite, com
cerca de 250 estudantes. A pesquisa foi realizada com alunos do 3º ano do
turno da manhã, alunos que em sua maioria já ingressaram no mercado de
trabalho, principalmente por programas de primeiro emprego como o “Apren-
diz Legal”, ou na principal indústria do município, de água mineral e refrige-
rantes, trabalhando à tarde e à noite.
A escola Z procura, há mais de 10 anos, estruturar seu trabalho com os
pilares da pedagogia popular para a libertação, com olhar voltado às classes
populares, recriando a pedagogia de Freire em uma escola pública. O trabalho
pedagógico parte da rede temática de falas coletadas na comunidade, e as áre-
as dos conhecimentos procuram identificar as problemáticas de cada eixo te-
mático, abordando questões locais e globais. A escola procura desenvolver com
os educandos a criticidade e a dialogicidade, a fim de que percebam as situa-
ções de opressão e dominação na sociedade.
A escolha dos contextos da pesquisa deu-se em razão de os municípios
serem próximos; as escolas, por mais que tratem de distintas realidades, aten-
dem jovens com as mesmas idades, situações econômicas, geográficas e sociais,
nas quais os professores sentem uma mesma e grande dificuldade: motivá-los

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SIGNOR, P.; PIGATTO, C. Z.; KRANN, R. A. • Um olhar da pedagogia popular para a sala de aula...

ao estudo. Por tratar-se de concepções e práticas pedagógicas diferentes, tam-


bém se buscou saber se este fator interfere e modifica as motivações dos alu-
nos, já que uma escola segue o ensino tradicional e a outra procura abordar a
pedagogia da pergunta4, no viés da educação popular.
A pesquisa envolveu 54 jovens matriculados e frequentando o Ensino
Médio Politécnico, entre 15 e 19 anos, nas duas escolas. Para iniciar a pesqui-
sa quali-quantitativa, utilizou-se um questionário, composto de uma pergunta
aberta que emergiu de uma aula que contemplou os passos da pedagogia liber-
tadora de Freire, com o objetivo de conhecer e aproximar-se dos educandos e
conseguir dialogar com eles sobre o que verdadeiramente os mobilizaria para
o estudo. O “Estudo da Realidade” partiu da canção “As coisas não caem do
céu”, de Leoni, que lança um olhar crítico sobre a realidade do país, na qual
culpabilizamos os outros e o mundo por aquilo que não alcançamos; e chama
para a mobilização a fim de que não fiquemos “esperançosos” no sentido de
não “esperarmos” que as mudanças aconteçam sem que delas façamos parte
com ações e mobilizações dos resultados que queremos.
Os estudantes foram questionados a respeito do que sentiram e lembra-
ram ao ouvir a música. Após, foram interpretados trechos significativos, em
que se pediu para estabelecer relações com a letra da música e o contexto pes-
soal e escolar, a partir de suas percepções, com vistas a que os estudantes per-
cebessem que, para acontecer uma mudança em suas vidas (pessoal, social e
escolar), seria necessário mobilizarem-se. Após, perguntou-se se compreendiam
o que era mobilização. Depois da discussão, foi promovido um estudo sobre o
conceito de “mobilização” partindo de três fontes: um dicionário on-line de
língua portuguesa, o dicionário de língua portuguesa de Evanildo Bechara e o
dicionário Paulo Freire5.
Como aplicação do conhecimento, lançou-se aos educandos a seguinte
pergunta: responda, com a maior clareza possível, pensando no ano letivo que temos

4
Para Guerrero (2010, p. 81), na pedagogia da pergunta “os fatores do processo educativo se
conjugam para libertar o sujeito da domesticação, do amestramento intelectual, chamando-o a
assumir uma postura crítica no ato do conhecimento. O sujeito deixa de ser objeto porque já
não é considerado como um recipiente vazio que deve ser preenchido, mas enquanto sujeito –
que possui e que pode recriar conhecimentos – que vai ser desafiado, problematizado no
desenvolvimento do próprio ato educativo, para que chegue ao conhecimento crítico de sua
percepção, de um saber que compreende a prática em que vive.
5
Dicionário Informal. Disponível em: <http://www.dicionarioinformal.com.br/significado/
mobiliza%C3%A7%C3%A3o/2841/>. Acesso em: 21 fev. 2015. BECHARA, Evanildo.
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Dicionário Paulo Freire. São Paulo: Autêntica, 2010, p. 269-270.

88
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

pela frente, o que verdadeiramente te MOBILIZA para o estudo?, com o intuito de


ouvi-los e fazê-los participar da construção das aulas e da própria aprendiza-
gem. Sem que eles precisassem se identificar, o questionário pedia apenas a
idade e a profissão, dados importantes que levaram a constatação de que, ape-
sar de estudarem em séries diferentes – 2º e 3º ano do Ensino Médio – as
idades médias são as mesmas: 16 e 17 anos na maioria, sendo que as idades de
18 e 19 anos apareceram nos alunos que estudam no 2º ano do EM, e não no
3º ano. Isso leva a concluir que há uma defasagem entre a idade e a série se
compararmos os turnos frequentados pelos estudantes, já que na escola A os
alunos do 2º ano do EM, que apresentaram idades mais avançadas, estudam à
noite e em sua totalidade já estão inseridos no mercado de trabalho. Na Escola
Z, os alunos que mantêm a média de 16 e 17 anos, estudam de manhã, e a
maioria (66%) ainda não está no mercado de trabalho.
Na escola A, a totalidade dos alunos trabalha durante o dia em setores de
venda, na construção civil, como babá, como auxiliar de mecânica, produção,
em serviços gerais ou ainda em indústrias do ramo calçadista. Dos estudantes
que participaram da pesquisa, apenas 30% esboçaram que a escola os mobiliza
para o seguimento dos estudos e o desejo de cursar uma faculdade. Ninguém
demonstrou conhecimento e/ou objetivo de prosseguir nos estudos por meio de
políticas públicas de educação, como o PROUNI, através do ENEM6.
O que ficou visível na falta de mobilização dos estudantes é a percepção
de que os professores não lhes conferem credibilidade, ou seja, não acreditam
que eles possam ter sucesso nos estudos. A transmissão de conteúdos prontos
e sem relação com a realidade parece incomodar os educandos e ser fator pre-
ponderante para o desestímulo e descrédito à educação: Eu gosto de vir para
aula, mas chega um ponto em que acaba sendo algo repetitivo, algo que me faz cansar.
Desde o primeiro dia de aula sempre chegamos, copiamos e acaba a aula..., afirma
uma costureira de 17 anos. A relação professor-aluno foi abordada diretamen-
te em 30% dos pesquisados, aparecendo a necessidade de os professores os
compreenderem e motivarem para o estudo. Destacam pontos como menos
arrogância, maior compreensão e mais diálogo com os estudantes: ... ver que as
professoras acreditam e incentivam seus alunos já é um bom motivo para se mobilizar e
mostrar a elas que tem gente que ainda sonha e que se importa..., afirma uma adoles-
cente, funcionária de um atelier de calçados, com apenas 15 anos de idade.

6
Segundo informações do site do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio
Teixeira), o “Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi criado em 1998 com o objetivo de
avaliar o desempenho do estudante ao fim da educação básica, buscando contribuir para a
melhoria da qualidade desse nível de escolaridade. A partir de 2009 passou a ser utilizado
também como mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior. (Disponível em: http:/
/portal.inep.gov.br/web/enem/sobre-o-enem).

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SIGNOR, P.; PIGATTO, C. Z.; KRANN, R. A. • Um olhar da pedagogia popular para a sala de aula...

Educação bancária, autoritarismo e o uso do “poder” para conseguir a


“disciplina”, acabam por distanciar os educadores dos educandos, tornando
os processos de ensino-aprendizagem impessoais e fragmentados, em que a
maior preocupação são os resultados quantitativos isolados e sem significação
para o cotidiano atual e futuro dos estudantes.
O medo da reprovação, por vezes recorrente, aparece como um dos fa-
tores que mobilizam ao estudo, como meio para recuperar o tempo perdido. A
escola A registrou em 2014 um percentual acima de 40% de evasões, cancela-
mentos e reprovações, a grande maioria registrada no noturno. Esta realidade
vivenciada pela maioria das escolas que funcionam à noite e recebem estudan-
tes em situações econômicas vulneráveis, que trabalham durante o dia e parti-
cipam do sustento da família ou de seu próprio sustento.
Somente 15% dos estudantes relataram um projeto de vida com base
nos estudos, a fim de aprender/construir uma profissão e uma carreira; mudar
a profissão atual (babá) para um “emprego melhor”, conceito vago, mas men-
cionado pelo senso comum na grande maioria dos jovens que atribuem ao
estudo uma oportunidade profissional que gere um reconhecimento social e
financeiro melhor do que o atual. Esse percentual, 15%, se repete entre os
estudantes que mencionaram a família como elemento para mobilização. Sen-
do a maioria ainda menor de idade, morando na casa dos pais ou com um dos
pais, o que se percebe é um cenário de abandono do jovem pela família. Mui-
tos pais acreditam que, por já trabalhar, o filho não necessite mais de incentivo
e acompanhamento no estudo, o que desmotiva e paralisa muitos deles que,
sem incentivo em casa e na escola, acreditam que não seja importante dedicar-
se ao aprendizado. “Na verdade eu penso bem diferente do que muitas pessoas,
eu penso em acabar o 2º grau que hoje em dia nós precisamos ter 2º grau. [...]
sinceramente eu não pretendo fazer faculdade, pretendo acabar o 2º grau”.
Nesta fala é possível perceber que o estudo é visto apenas como uma obriga-
ção: a de concluir a Educação Básica. No mais, não é percebido como impor-
tante, como caminho para seguir os estudos em nível superior, tampouco para
contribuir com uma visão ampliada de mundo e/ou possibilidades de avanços
sociais/intelectuais.
Doutra parte, o crescimento profissional no trabalho atual também é
um dos pontos mobilizadores para alguns poucos: o que me mobiliza é crescer na
empresa em que trabalho para que no futuro eu seja capaz de enfrentar as dificuldades
que a vida nos desafia e a ser quem realmente queremos ser em nossa vida, afirma o
auxiliar de mecânica de 18 anos. Ainda é possível perceber a ligação estabele-
cida entre estudar, conseguir um bom emprego e “ser alguém na vida”. Seja
pelo senso comum ou não, o fato é que a escola ainda é condicionada como
um ambiente de “preparação para o futuro”, e menos para viver melhor o

90
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

presente. O sonho de “ser alguém” impede muitos jovens de perceberem que


“já são alguém”, que possuem poder de mobilização, criticidade, discussão e
ação perante os ambientes em que convivem e atuam. Reforçando esta ideia, a
escola perde espaços de luta e de organização social e política por acreditar
que precisa “prepará-los para o futuro” e jogar fora seu potencial no presente.
A necessidade de participação nas aulas também foi reivindicada: ...gos-
taria que desse para participar das aulas, assim os alunos poderiam colaborar mais com
os professores... Tem as professoras que não ligam se o aluno está cansado..., afirma o
auxiliar de serviços gerais com 19 anos; ... que os professores levassem mais a sério
nós alunos..., afirma um estudante de 17 anos. Isto demonstra uma maturidade
de requerer um espaço para serem ouvidos, para poderem se pronunciar, dize-
rem quem são, o que querem e o que podem fazer. A escola é sim um espaço-
tempo social, um ambiente de possíveis articulações de sonhos, lutas, de refle-
xão e de prática social. Em uma aula na qual apenas o professor fala, não há
construção, tampouco apreensão de saberes e conhecimentos, e, sim, apenas
um “eu finjo que ensino e você finge que aprende” (DEMO, 2002, p. 61). Sem
se dar conta de quantas oportunidades para debates, questionamentos e pro-
blematizações foram perdidas, o ensino segue sem significação e relevância
para seus destinatários. Isso pode ser assumido a partir da narrativa da auxiliar
de produção, de 16 anos, ao afirmar que é importante, para os estudantes, que os
professores utilizem vários métodos de aprendizagem, com aulas mais variadas. Sem
dispensar a exigência nos estudos, ela falou também da importância de os
docentes demonstrarem carisma com os estudantes. A afetividade está ligada à
aprendizagem e, por vezes, a escola é o único lugar onde o estudante pode se
sentir acolhido, com algum tipo de afeto, já que em casa e no trabalho não há
garantia de que eles vivenciem esta ambiência e esta interação.
É neste aspecto que os vínculos afetivos como convivência, proximida-
de, afetividade, sentimentos, emoções e comunicação surgem através do res-
peito de um pelo outro. Os vínculos não devem ser estabelecidos por meio do
medo (que é outro sentimento), mas, sim, do relacionamento, da confiança,
da amizade, da afinidade e do coleguismo entre as pessoas. E a rejeição não
seria também um tipo de vínculo? Ao ser feita essa pergunta, percebe-se que,
ao pensar em vínculos afetivos, não se reflete sobre a rejeição, mas esta pode
ser considerada como um vínculo, pois envolve sentimentos, relações e sujei-
tos, de acordo com o relatado pelos alunos. Os sentimentos existentes não são
somente os considerados bons, ou melhor, os positivos. Existem sentimentos
que podem ser considerados negativos como a rejeição (já comentada), a indi-
ferença, a falta de um olhar, ou um olhar de reprovação, a falta de uma pala-
vra, a raiva, o asco. Com a presença destes sentimentos na escola, pergunta-se
se poderão atrapalhar o desenvolvimento do conhecimento dos estudantes, ou
se servirão como desafios a serem transpostos?

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SIGNOR, P.; PIGATTO, C. Z.; KRANN, R. A. • Um olhar da pedagogia popular para a sala de aula...

Os sentimentos podem estar presentes até no tom da voz dos professo-


res (coordenador/diretor), gerando sentimentos de medo, alegria, desconfian-
ça. Isso tudo vai depender de como o gestor fala com o estudante, o que pode-
rá ou não gerar falta de interesse para o desenvolvimento do conhecimento.
Wallon (1975) analisou como as relações são construídas, estruturadas e esta-
belecidas. Segundo o autor, as afetividades, juntamente com a inteligência,
evoluem e se modificam na medida em que o indivíduo se desenvolve e como
a ação do meio social influencia a afetividade. Neste meio social é possível
relacionar a escola.
É primordial e indiscutível que os estudantes e professores se relacio-
nem, e, para compreender essas relações, é interessante expor dados acerca dos
vínculos, a partir das teorias de Pichon-Rivière (1998, 2007), o qual destaca que
“[...] o vínculo é sempre um vínculo social; através da relação com essa pessoa
repete-se uma história de vínculos determinados em um tempo e em espaços
determinados. Por essa razão, o vínculo se relaciona posteriormente com a no-
ção de papel, de status e de comunicação” (PICHON-RIVIÈRE, 2007, p. 31).
Os vínculos afetivos estão diretamente relacionados à comunicação e às
relações entre as pessoas. Como explica o autor, “isso nos leva a tomar como
material de trabalho, e observação permanente, a maneira particular pela qual
cada indivíduo se relaciona com outros, criando uma estrutura particular a
cada caso e a cada momento, que chamamos de vínculo” (PICHON-RIVIÈ-
RE, 1998, p. 3). As formas como as pessoas se relacionam entre si permitem
entender que não existe um único tipo de vínculo.
Por meio dessas palavras, pode-se dizer que em algumas situações exis-
te a negação do vínculo, a sua não aceitação. O estudante pode não querer se
vincular com os professores ou com os gestores para não se colocar no lugar
do outro. Dependendo dos vínculos interpessoais que serão estabelecidos,
mudará a forma como se interage com o outro e, no caso de alunos do Ensino
Médio noturno, a interação envolve também o meio de convivência social e
profissional, uma vez que se tratam de sujeitos alunos e trabalhadores.
Na escola Z, 66% dos alunos apenas estudam; os demais ocupam traba-
lhos formais em indústrias, marcenarias e programas de primeiro emprego, como
o Jovem Aprendiz7. A maioria desses jovens, que apenas estuda, ainda enxerga
na escola uma possibilidade de ingresso no ensino superior; ou seja, percebe nas
políticas públicas para a educação em programas como o PROUNI, via prova
do ENEM, a oportunidade de cursarem uma universidade gratuitamente. Por-

7
Programas denominados “Jovem Aprendiz” e “Aprendiz Legal” são oferecidos por empresas,
cooperativas e indústrias, embasados na Lei 10.097/2000, a Lei da Aprendizagem, com o
objetivo de inserir jovens estudantes no mercado de trabalho, oferecendo cursos de capacitação
e estágios remunerados por tempo determinado.

92
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

tanto, ainda mantêm a necessidade e ainda nutrem o sonho de prosseguir os


estudos. Quero estudar para ir bem no ENEM, para futuramente cursar uma faculda-
de gratuita, afirma um estudante de 16 anos.
Ademais, é possível perceber que há mobilização para o estudo quando
as aulas relacionam a convivência a novos aprendizados, possibilitam debates
e temas significativos para a realidade vivida pelos estudantes. Como essa es-
cola aborda temáticas cotidianas, isso amplia o desejo pela aprendizagem e
também a participação em aula.

Considerações inacabadas
É possível constatar que, para uma gestão escolar participativa e demo-
crática, é necessária uma reforma principalmente na formação política do ci-
dadão, de docentes, discentes, funcionários e da comunidade, para que perce-
bam que a participação e o conhecimento de cada um são de grande importân-
cia para que se chegue a uma verdadeira e plena gestão democrática. Pois,
sabe-se que a gestão democrática se constrói a cada dia, dando oportunidades
para que todos possam participar priorizando sempre o interesse coletivo.
A escola não pode ignorar a função e a oportunidade de mediar e inter-
ferir na realidade política e social na qual está inserida. O papel social da edu-
cação deve dar conta de tratar os estudantes como sujeitos sociais para o hoje,
para o agora, para a conscientização e o compromisso com a transformação
da situação de opressão atual, a fim de que consiga se aproximar dos educan-
dos e promover com eles o sentido para o estudo, apesar das dificuldades e
empecilhos que os afasta da escola.
A pesquisa mostrou duas facetas da realidade da Educação Básica: a
escola ainda não tem conseguido contribuir para a emancipação dos jovens
cidadãos que frequentam as salas de aula. Doutra parte, ouvir, compartilhar e
prestar atenção neste jovem que trabalha, que vai à escola, que luta diariamen-
te para ser visto como alguém é um passo crucial e fundamental para a trans-
formação da escola.
Constata-se que a pedagogia popular de Freire, segue sendo reinventada
como uma possibilidade pedagógico-política para a emancipação e a autono-
mia epistemológica e social para a escola e para seus sujeitos, partindo das
premissas do diálogo, do respeito, da solidariedade e da escuta sensível e aten-
ta. Educar a partir do olhar de Freire é reconhecer no outro a possibilidade e a
capacidade de reconstrução de si mesmo e da reflexão sobre as ações nas prá-
ticas educativas. Contribuindo com o amadurecimento e a emancipação do
outro, também é possível o educador (re)descobrir-se reflexivo e em processo
de emancipação. Afinal, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam
em comunhão, mediatizados pelo mundo (FREIRE, 2013).

93
SIGNOR, P.; PIGATTO, C. Z.; KRANN, R. A. • Um olhar da pedagogia popular para a sala de aula...

Referências
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94
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

DEMOCRACIA, ALEGRIA E ESPERANÇA:


a construção compartilhada do
Projeto Político-Pedagógico
ROBAERT, Samuel1
FERREIRA, Marinês Verônica2

Iniciando o diálogo: imperativo histórico e existencial


da formação permanente dos professores
No esteio das manifestações de intolerância escancaradas nas ruas e
também nas redes sociais em movimentos de parte da população brasileira,
questionamo-nos profundamente sobre a urgência de democratização de nos-
sa sociedade e da radicalização da nossa democracia. A radicalidade a que nos
reportamos é a da tolerância, da amorosidade e da “esperança, indispensável
à alegria” (FREIRE, 2013b, p. 154). Segundo Freire, não há possibilidade de
haver democracia fora da tolerância, “que, significando, substantivamente, a
convivência entre dessemelhantes, não lhes nega contudo o direito de brigar
por seus sonhos” (FREIRE, 2015, p. 22).
Democracia sem tolerância não se constitui, nem tampouco na homo-
geneidade e no consenso, pois não é possível avançar com ela quando as dife-
renças não são respeitadas e preservadas (TORRES et al., p. 61). Por isso a
democracia deve ser radical. E Freire se reporta a sua radicalidade em diversas
obras.
O grande educador brasileiro assumia-se como um radical esperançoso.
E sua obra, permeada por esse pensamento, nos permite um movimento refle-
xivo constante sobre este seu posicionamento. Para Freire (1996), a radicalida-
de do ser humano se constitui na medida em que o mesmo não é capaz de
“escapar” de seu imperativo existencial e histórico: ser mais. A compreensão
de sua própria radicalidade se funda na posição em que se coloca diante do
seu entendimento acerca do homem e da mulher como seres históricos e ina-

1
Especialista em Gestão Educacional pela UFSM, Mestre do Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: samu_robaert@yahoo.com.br.
2
Química Licenciatura e Industrial; Especialista em Educação Ambiental, Especialista em Gestão
Educacional; Mestranda do Programa de Educação em Ciências pela Universidade Federal de
Santa Maria. E-mail: marinesmvf@hotmail.com.

95
ROBAERT, S.; FERREIRA, M. V. • Democracia, alegria e esperança

cabados. E, como inacabados, se sabem condicionados, mas com consciência,


e esta mostra a possibilidade de ir além, de não ficar determinados.
Para Freire, diferentemente de outros animais, o ser humano se sabe, se
percebe e se entende inacabado. Mais que isso, o ser humano não se adapta,
mas se sabe no seu suporte, “integrando-se a seu contexto, por nele intervir, o
transforma em mundo” (FREIRE, 2013b, p. 31). Por esta razão, percebe Frei-
re, contamos nossas histórias no suporte, falamos de nossos amores, ilusões e
desilusões, esperanças e sonhos.
O ser humano ama, se aventura, sonha e se encanta, mas também tem
raiva. Fala da história que se processa no mundo e que é a sua história. Trans-
forma o mundo. É mais que um ser no suporte, “mas um ser no mundo, com o
mundo e com os outros” (FREIRE, 2013b, p. 35), que se recusa a assumir a
condição de objeto.
Por isso mesmo, ao alertar sobre a radicalidade deste imperativo exis-
tencial e histórico do ser humano, Freire nos mostra que não há como renun-
ciar à luta pela assunção do direito de decidir, de optar e de romper, pois é
através destes que o ser humano transforma o mundo (FREIRE, 2013b). E
desta forma, a história, para o ser no mundo, é pura possibilidade e não deter-
minismo histórico, como apregoa a visão mecanicista, encharcada pela racio-
nalidade técnica instrumental.
Para Freire (2015, p. 25), “seria impensável que um ser assim, ‘progra-
mado para aprender’, inacabado, mas consciente de seu inacabamento, por
isso mesmo em permanente busca, indagador, curioso em torno de si e de si
no e com o mundo e com os outros […] não se achasse num constante proces-
so de formação”.
Como procuramos nos posicionar com Freire até aqui, não há como
pensar a educação permanente dos seres humanos sem nos reportarmos a seu
imperativo existencial e histórico, segundo o qual o ser humano “cuja presen-
ça que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transfor-
ma, que fala do que faz, mas também do que sonha, que constata, compara,
avalia, valora, que decide, que rompe” (FREIRE, 1996, p. 18), sem pensarmos
em uma escola democrática, e por isso esperançosa e alegre.
Arroyo (2013), lembrando-se de Freire, percebe que os professores, mui-
tas vezes, são tratados não como sujeitos de sua formação, mas como executo-
res de programas pensados por técnicos e especialistas e que, rotineiramente,
têm seus objetivos fracassados, e que, rotineiramente, se dão nos moldes do
que Freire (1997, 2015) denomina de “pacotes”. Ao nos reportar aos “paco-
tes” e seus manuais endereçados a professores para o seu devido uso, Freire
percebe o autoritarismo e a descrença total na capacidade criativa dos profes-
sores. Percebe também a arrogância “de meia dúzia de especialistas que se

96
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

julgam iluminados” (2015, p. 84), os “sabichões e sabichonas” (1997, p. 12).


Estes, ao elaborarem os pacotes, têm a expectativa de que os professores “do-
cilmente” executem as ações planejadas por eles. Como vemos, a crítica de
Freire é contundente contra esta negação da inquietação, da incerteza, da dú-
vida e do sonho, da vocação ontológica do ser humano.
No entanto, a presença da visão mecanicista da história se faz presente
mesmo entre aqueles professores que se dizem progressistas, e Freire comenta,
na sua própria obra “À sombra desta mangueira”, as críticas vindas daqueles
que diziam que educação nada tinha a ver com sonhos, utopias e conscientiza-
ção, mas com formação técnica, científica e profissional. Sobre isso Freire es-
creveu: “na verdade […] a educação precisa tanto da formação técnica, cientí-
fica, profissional quanto do sonho e da utopia” (FREIRE, 2013a, p. 49).

Pensando uma escola alegre e esperançosa e, portanto,


democrática: formação permanente de professores e construção
compartilhada do projeto político-pedagógico (PPP)
No esteio da sonhada democratização das instituições, a discussão em
torno da formação de professores tem produzido grandes discussões atual-
mente. Alguns dos maiores expoentes internacionais da atualidade neste cam-
po de estudos, como António Nóvoa (2009), têm nos alertado para os modis-
mos, “excesso de discursos, redundantes e repetitivos, que se traduz em uma
pobreza de práticas” (NÓVOA, 2009, p. 27). Atento a questão dos modismos,
Imbernón (2010) destaca a volta do referencial de Paulo Freire na formação de
professores, negando a falácia da suposta neutralidade política da educação e
da formação de professores, e retoma a busca da construção de uma formação
mais colaborativa e dialógica, envolvendo a todos os que, de alguma forma,
compartilham dos tempos e espaços formativos dos professores.
Nóvoa, Imbernón e Arroyo, com certeza inspirados na obra de Freire,
apontam-nos uma mudança no olhar sobre a formação de professores, no qual
estes estão no centro do debate das mudanças educativas. A mudança no olhar
se funda no entendimento de que a formação permanente deve passar para
“dentro da profissão”, ou seja, através do empoderamento, pelos professores,
do planejamento e do controle da sua própria formação permanente. Essa
mudança de olhar envolve a aquisição de uma cultura profissional em que
prevalecem os trabalhos colaborativos e dialógicos e, por isso, mais democrati-
zantes e centrados na instituição educativa e no reforço da importância dos
projetos educativos.
Imbernón, ao retomar a obra de Freire, fala da “rearmada” intelectual,
moral e profissional dos professores, marcada por uma recuperação por parte
destes do controle sobre o seu trabalho e a sua formação, o seu desenvolvi-

97
ROBAERT, S.; FERREIRA, M. V. • Democracia, alegria e esperança

mento profissional. Segundo Imbernón, (2010, p. 42), “o objetivo desta ‘rear-


mada’ deveria ser o de ressituar os professores, para serem os protagonistas
ativos de sua formação em seu contexto de trabalho”.
Tomando Paulo Freire como referencial, Imbernón (2010, p. 47) perce-
be que é necessário que se abandone o conceito tradicional de formação conti-
nuada, como mera atualização científica, que pode ser “recebida” mediante
certificados. Ao apontar a mudança de referencial na formação de professores,
também enfatiza que se faz necessária uma mudança no olhar sobre a forma-
ção permanente dos professores, na qual “as instituições educacionais e a co-
munidade devem ser o foco da formação continuada e os professores, os sujei-
tos ativos e protagonistas da mesma” (2010, p. 48). O imperativo existencial e
histórico, a necessidade ontológica exige que o professor seja sujeito de sua
formação permanente, e não objeto.
Acreditamos que a construção compartilhada do PPP, pelos sujeitos que
constituem a cotidianidade3 escolar, pode ser um movimento humanizador da
instituição educativa, na medida em que é democratizante, mas também con-
siderando que sua construção compartilhada, mediada pelo diálogo proble-
matizador, permite que se concretize um planejamento com pronúncia do mun-
do (CARIA, 2011), construindo um sentido para o “caminhar da escola” e,
por consequência, para a formação permanente dos professores.
Ao mesmo tempo, a construção compartilhada do PPP é um movimen-
to capaz de articular a cotidianidade escolar com o desenvolvimento profissio-
nal docente, através de processos auto(trans)formativos4 (HENZ, 2012) per-
manentes dos professores, ligado diretamente ao desenvolvimento da institui-
ção educativa, trazendo a formação permanente dos professores para “dentro
da profissão”, como se refere Nóvoa (2009), permitindo um protagonismo
coletivo (NÓVOA, 2009; IMBERNÓN, 2011); formação colaborativa e dialó-
gica entre os professores e todos os sujeitos que “intervêm” direta ou indireta-
mente na formação (IMBERNÓN, 2010), e também novas possibilidades de
aprendizagem mais dialógicas e menos individualistas e funcionalistas (IM-
BERNÓN, 2010).
Tais princípios asseguram o compromisso com a liberdade dos sujeitos
que [re]constroem a cotidianidade da escola. Mas uma formação assim, dialó-

3
Caria analisa o conceito de cotidianidade. Para este autor, a cotidianidade consiste no “solo a
ser pisado”, “visto que posiciona seus atores quanto à realidade que o cerca e estabelece níveis
de superação dessa realidade a partir de metas concretas e possíveis (CARIA, 2010, p. 100).
4
Freire se refere à sua própria formação, que se constitui em um processo de (auto)formação ou,
como nos propõe Henz (2012), um processo de auto(trans)formação de si mesmos (as), que
“implica consciência, intencionalidade e responsabilidade no sentir/pensar/agir,
intersubjetivamente, de cada um (a)” (HENZ, 2012, p. 6).

98
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

gica e colaborativa, marcada por um processo permanente de reflexão sobre a


prática, não pode dar-se fora de um contexto de experiências democráticas,
desarticuladas da cotidianidade escolar.
Gadotti (2008, p. 107) nos traz que, “os professores são competentes,
mas não têm condições de trabalho”. E, segundo Gadotti, espera-se que a
“[...] escola ofereça as condições para que eles possam refletir sobre a sua prá-
tica, construir seus projetos de vida, seus projetos pedagógicos e possam sen-
tir-se bem na escola”. Assim também espera-se que a “[...] escola tenha um
projeto pedagógico por entender que uma escola sem projeto não é uma esco-
la, é um fábrica de adestramento”.

O PPP e o desenvolvimento profissional docente:


o início de uma pesquisa em uma rede
de escolas de Educação Básica
Recentemente, em pesquisa realizada em uma escola de Educação Bási-
ca (ROBAERT, 2012), constatamos, com professores, pais e gestores, o enten-
dimento de que a expressão da experiência democrática na escola, através da
participação, se dá somente por meio da democracia representativa, e que o
PPP, apesar de ser percebido como importante dentro da escola, permanece
na prática como um documento inerte, mais como um marco burocrático do
que como um movimento humanizador e emancipatório do ser humano.
Percebemos, com isso, algo que, talvez, seja recorrente entre os educa-
dores: que o PPP não tem dinamizado a cotidianidade escolar e que as expe-
riências democráticas escolares se dão mais em um nível teórico em que se
fala e se reflete sobre a democracia, mas não se a vive plenamente. Sobre isso,
Freire nos alerta: “Ensinar democracia é possível, mas não é tarefa para quem
se desencanta da terça para a quarta-feira somente porque as nuvens ficaram
pesadas e ameaçadoras”. Assim somos esperançosos, no sentido que Freire
dava a esta palavra, de que, “ensinar democracia é possível. Para isso, contu-
do, é preciso testemunhá-la” (FREIRE, 2013, p. 244).
O pensamento de Freire tem nos acompanhado e estimulado perma-
nentemente enquanto educadores. Como tornar a escola um espaço de expe-
riências exitosas de liberdade? Como nos auto(trans)formarmos em processos
democráticos e emancipatórios dos sujeitos do ato educativo, educandos e
educadores?
Ao nos questionarmos, junto com Freire e Arroyo, onde e como nos
educamos como educadores, reportamo-nos à forte presença da visão mecani-
cista da história, que promove a separação entre os que pensam, decidem,
normatizam e os que executam, fazem. E percebemos que esta lógica tem in-

99
ROBAERT, S.; FERREIRA, M. V. • Democracia, alegria e esperança

sistentemente negado aos professores a autoria e o controle de sua própria


formação permanente.
Procurando responder ao problema: Como o PPP, enquanto elemento hu-
manizador, articula a cotidianidade da escola aos processos auto(trans)formativos
docentes, na perspectiva do desenvolvimento profissional docente e da insti-
tuição educativa, nas escolas de uma rede municipal de educação? Propo-
mo-nos a uma pesquisa que se constitui em uma abordagem qualitativa, do tipo
estudo de casos, em três escolas de uma rede municipal de educação. Pretende-
mos assim, reconhecer e analisar, como acontecem os processos de (re)construção
do PPP e as articulações entre este, os espaços de auto(trans)formação perma-
nente e a (re)construção da profissionalidade docente.
Como instrumento de pesquisa, optamos pelo uso de questionários se-
miestruturados, baseado em Ludke e André (2013). Os sujeitos da pesquisa
são oito professores, denominados nesta pesquisa de professores A1, A2, A3,
B1, B2, B3, B4 e C1, e três escolas, denominadas nesta pesquisa de Escolas A,
B e C.
O conjunto de ideias e conceitos evidenciados entre os professores acer-
ca do PPP e da sua participação na construção compartilhada deste pode ser
diferenciado em dois grupos distintos. No primeiro grupo aparecem ideias
que se articulam em torno do conceito central do PPP como um planejamento
humanizador da instituição educativa, marcado pelo trabalho coletivo, cola-
borativo e dialógico. No segundo grupo, as ideias se articulam em torno do
conceito de PPP como um elemento burocratizante e burocratizado, existindo
no plano teórico e não articulador da cotidianidade da escola.
Em relação às ações de formação permanente nas escolas onde a pes-
quisa foi realizada, o objetivo principal foi procurar identificar as relações exis-
tentes entre o planejamento da escola, através da construção compartilhada
do PPP, buscando evidências da imbricação dos processos auto(trans)formativos
docentes com o planejamento da escola, ou seja, verificar em que dimensão o
PPP articula a cotidianidade da escola com o desenvolvimento profissional
dos professores e da instituição educativa. O primeiro questionamento feito
aos sujeitos da pesquisa foi: como é que você percebe a formação permanen-
te/continuada dos professores aqui na escola?
O professor A1 destacou em sua fala a articulação feita pela SMEC
(Secretaria Municipal de Educação e Cultura) para a formação permanente
dos professores, em que ocorrem encontros gerais com todos os professores da
rede e outros momentos, que ocorrem na escola, com os professores da insti-
tuição. O planejamento e a implementação das ações de formação, no entan-
to, são feitos pela SMEC, não havendo a participação dos professores no pla-
nejamento destas ações, que ocorrem principalmente através de “Palestras,
oficinas, oficinas por área” (PROFESSOR A1).

100
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

O professor A1 também percebe que se o planejamento da formação


permanente for feito pela escola, a participação tende a ser maior; a formação
com foco na instituição educativa também propicia, segundo o professor, que
se leve em consideração a realidade da escola e as necessidades formativas dos
professores em relação à realidade na qual a escola encontra-se envolvida.
Eu sou da opinião assim… cada escola fazer a sua… porque a participação
geralmente vai ser maior… sabe, tem pessoas que não se envolvem, eles vão
lá por estar lá… eu acho que na escola, seria bem mais interessante […]
Porque muitas vezes tem muitas pessoas que nem conhecem nossa realida-
de… acho que a gente olhando dentro da escola seria bem mais interessan-
te… as formações em cada escola né […] (PROFESSOR A1).

Acerca de seu entendimento se estas ações de formação permanente


provocam mudança efetiva nos professores e na escola, o professor A1 consi-
derou que estas ações de formação não têm provocado a mudança pretendida
na escola, destacando que acontece participação dos professores nos encon-
tros de formação, mas há dificuldade de “fazer acontecer”; destaca também
que muitos professores se encontram de “corpo presente”, sugerindo que pos-
sa haver um desligamento dos professores destas ações de formação que vêm
sendo implementadas pela SMEC.
O professor A3 destaca que as ações de formação permanente sempre
contribuem de alguma forma. Mas na fala do professor também aparece o
desligamento destas ações do cotidiano dos professores. O professor entende
que, apesar de “algum ponto positivo” poder ser tirado, “eles poderiam apro-
veitar mais, buscar coisas do nosso interesse. Aqui é uma escola diferente,
deveria ter coisas relacionadas a essa escola. Isso não tem […]” (PROFES-
SOR A3).
Para o professor A2, existe formação constituída pela SMEC, com uma
pré-orientação: “Nós temos a formação constituída pela Secretaria […] Ela
tem algumas horas acontecendo dentro da escola, com cunho… já uma pré-
orientação, do que trabalhar […] Ela vem com o esqueleto […]” (PROFES-
SOR A2).
Percepção semelhante foi encontrada nas escolas B e C. Segundo os
professores da escola B, as ações de formação concentraram-se em planeja-
mentos de atividades de recepção aos alunos; atividades com as coordenações
e direções das escolas da rede, que são, por sua vez, incumbidos de “repassar”
essas formações para os professores; planejamentos por áreas, que não aconte-
cem de forma sistemática na escola, mas que foi um dos enfoques das ações de
formação organizadas no ano de 2014.
Os professores também foram questionados sobre como a formação per-
manente repercute no cotidiano da escola e afirmaram que concordam, de

101
ROBAERT, S.; FERREIRA, M. V. • Democracia, alegria e esperança

uma forma geral, que nem sempre as ações de formação permanente conse-
guem realizar o que se propõem, relatando a falta de sequência em alguma
atividades. Tendo em vista esse entendimento dos professores da escola B,
buscamos aprofundar esta problemática, questionando-os sobre como a for-
mação permanente dos professores contemplaria a realidade da escola e as
dificuldades sentidas pelos professores no seu cotidiano, e também se as ações
de formação dariam suporte às dificuldades enfrentadas pelos professores no
seu exercício profissional.
O professor B4 argumentou que a formação permanente, da forma em
que está estruturada e organizada, não contribui significativamente e repercu-
te muito pouco no trabalho dos professores: “Praticamente em nada. Isso foi
uma reivindicação que eu fiz, […] Que se faça uma formação conforme a nos-
sa realidade, porque esse ano teve muito conteúdo que, […]. Não teve nada a
ver e não veio a contribuir com nada.” (PROFESSOR B4).
Acerca do seu envolvimento com o planejamento das ações de forma-
ção permanente, foi feito o seguinte questionamento: “Alguma vez vocês já
tiveram a oportunidade de planejar a formação de vocês? […] Vocês se sentem
participantes desse planejamento?”. Os professores B1 e B3 prontamente con-
cordaram que não haveria esta participação dos professores no planejamento
da formação permanente dos mesmos: “Eu não!” (PROFESSOR B1); “Eu
também não!” (PROFESSOR B3).
O Professor B1 comentou que nunca teve esta experiência em nenhuma
escola. “Eu acho que nunca foi, não aqui na escola, a própria rede eu acho, a
Secretaria eu acho que nunca, nesses dois anos que eu estou aqui, nunca per-
guntaram, sei lá, qual é o tema que eu gostaria de estudar e especializar mais”
(PROFESSOR B1). O professor reclama que as ações de formação sempre
vêm prontas, sem a possibilidade do envolvimento ativo dos professores no
seu planejamento, caracterizando um papel apenas executor a estas políticas
públicas de formação permanente: “Eu acho que sempre veio pra nós a forma-
ção que é baseada nesse título, nesse tema, você vai desenvolver essas ações e
fica nisso” (PROFESSOR B1).
O professor B1 entende também que se trata de uma reinvindicação dos
professores, e motivo de reclamações e queixas: “A grande reclamação dos
professores é essa” (PROFESSOR B1), pois estes gostariam “que viesse uma
formação a somar pra nós e não fazer uma formação por fazer. Eu acho que
ninguém gosta disso. E a formação é isso.” (PROFESSOR B1). Para o profes-
sor, muitas vezes os professores precisam ser obrigados a participar destas ações
de formação, mas percebe que os problemas não estão relacionados necessaria-
mente aos horários, ou carga horária disponibilizada pela SMEC para as for-
mações, mas, sim, ao “jeito como às vezes são colocadas as coisas para nós,

102
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

não é interessante. Inclusive forçando nós a participar muitas vezes” (PRO-


FESSOR B1). O mesmo entendimento foi consenso entre os professores B2,
B3 e B4.
Para o professor C1, entre as atividades de formação permanente das
quais participou, a que mais mereceu lembranças positivas foram os momen-
tos de estudos em áreas do conhecimento: “Foi uma época muito boa, a gente
gostou muito, não ficou só em cima da matemática, mas também da inclusão,
a gente teve que estudar isso” (PROFESSOR C1). Questionado se essa moda-
lidade de formação permanente contemplaria a realidade da escola e as difi-
culdades encontradas por professores e alunos, o professor destacou que “em
partes” (PROFESSOR C1). Destacou que, no ano de 2014, o foco da forma-
ção permanente foi na proposta curricular da Rede Municipal de Educação,
propiciando reflexões que, de acordo com o professor, produziram mudanças,
que foram percebidas na sala de aula, muito embora o professor C1 perceba
que “tem professores que vão na formação por ir” (PROFESSOR C1).
O professor também foi questionado acerca de se a formação perma-
nente dos professores estaria articulada com o cotidiano da escola e com o
PPP. O professor C1 entende que esta articulação é importante, mas argumen-
tou que apesar disso, da formação com foco na escola ser mais próxima da
realidade dos professores e alunos, a formação “geral” com todos os professo-
res da Rede também é necessária, já que a escola, por ser pequena, conta com
apenas um professor de matemática, por exemplo, impossibilitando troca de
experiência com colegas professores da área.

Considerações (não)finais
Considerando os dados prévios da pesquisa e o nosso referencial teóri-
co, podemos fazer algumas considerações parciais. Uma delas, percebida nas
falas dos professores, que seguidamente professores são chamados pelos Siste-
mas de Ensino a participar de programas de formação continuada, frequente-
mente marcados por “revisões de conteúdos” ou mudanças em grades e com-
ponentes curriculares. Percebemos também que este tipo de olhar sobre a for-
mação permanente dos professores não produz a mudança esperada e, muitas
vezes, é rejeitada pelos professores, como pode ser percebido nas falas dos
professores sujeitos desta pesquisa. Diversos autores têm criticado esta práti-
ca, que nega a autoria aos professores e os considera como simples executores
da inovação planejada em gabinetes. Freire (1997) mesmo já se referia aos
“pacotes”, planejados por “sabichões e sabichonas”, técnicos até bem-inten-
cionados, mas que demonstram absoluta descrença na possibilidade que têm
as professoras de saber e criar (FREIRE, 1997, p. 12). Da mesma forma, temos
que considerar que o aluno aprende quando o professor aprende, o aluno en-

103
ROBAERT, S.; FERREIRA, M. V. • Democracia, alegria e esperança

xerga até onde o professor enxergar. Por isso, o professor não pode ser o limite
aos sonhos dos alunos.
Com vistas a superar esta forma de pensar sobre os professores, Imber-
nón (2011) nos alerta para a necessidade de que os professores recuperem o
controle sobre o seu processo de trabalho, e, como intelectuais, estabeleçam a
sua própria (auto)formação, que se dá no processo de trabalho. A persistência
da visão mecanicista da história e o predomínio da racionalidade técnica ins-
trumental produz a perda de um espaço privilegiado para o desenvolvimento
profissional docente e da instituição educativa de forma articulada aos interes-
ses dos sujeitos históricos que empreendem o PPP e fazem a cotidianidade do
espaço escolar. Perdemos, também, a oportunidade de que os professores, jun-
tamente com a comunidade escolar, reflitam sobre o seu cotidiano, acabando
por mergulhar a escola em um cotidiano irrefletido, burocratizado, hierarqui-
zado, bem dentro do que propõe o paradigma técnico-científico, que não per-
mite experiências exitosas e mesmo contraditórias de liberdade se manifesta-
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Instituto Paulo Freire, Série Unifreire, 2008.

105
UMA ESCOLA ALEGRE E
COMPROMETIDA COM AS APRENDIZAGENS
DAS CLASSES POPULARES:
EJA e o ensino de Química à luz
dos ensinamentos de Paulo Freire
CALDERAN, Arlete Pierina1
RAMOS, Maria Rosângela Silveira2

Considerações iniciais
Vivenciamos um sistema educacional em busca de respostas, de melho-
rias e de novas metodologias, as quais venham qualificar e dar real significado
às ações pedagógico-educativas. Os esforços para a efetivação de uma apren-
dizagem significativa na escola devem ir além da simples transmissão de co-
nhecimentos. É papel da escola proporcionar aos educandos, desde o início da
escolarização, uma forma de ensino que seja compatível com suas necessida-
des, para que possam posicionar-se de forma consciente e mais crítica, e inter-
vir na vida em sociedade. À medida que esse sujeito vai se tornando conhece-
dor dos diversos fatores que influenciam o meio em que vive e está inserido,
poderá ser agente ativo e motivado a buscar formas de colaborar com a evolu-
ção da coletividade. O ato de educar é socializar hábitos e atitudes entre
pessoas, por meio de ações construídas coletivamente e de forma intencional,
em que o diálogo entre educador e educando contribui para que as situações
de aprendizagem possam acontecer.
Nesse sentido, o presente texto tem como objetivo a reflexão sobre o
ambiente escolar voltada para as questões de situações de aprendizagens nas
escolas públicas, o processo formativo, a questão dialógica, as interações, as
mediações, bem como apresenta um exemplo de ação pedagógica inserida em

1
Professora de Química da Escola Estadual de Educação Básica. Mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde/UFSM. Especialista em
Educação Profissional integrada à Educação Básica na Modalidade EJA. Especialista em
Educação Ambiental. E-mail: arletepcalderan@hotmail.com.
2
Professora no Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto Federal Farroupilha. Doutoranda
em Educação pela UFSM. Orientador Prof. Dr. Celso Henz. E-mail: mrosangelasr@gmail.com.

106
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

um contexto de “educar com seriedade e alegria” – desenvolvido em uma Es-


cola Estadual de Educação Básica (EEEB)3 de Santa Maria, RS, na disciplina
de Química, com os alunos da primeira turma de Educação de Jovens e Adul-
tos – EJA.
A ação pedagógica apresentada e desenvolvida na EEEB busca um en-
sino que possibilite ou se aproxime de uma aprendizagem significativa. Neste
texto, destacamos ainda as seguintes inquietações como provocações para a
reflexão: que ambiente é este no qual esperamos encontrar o envolvimento na
‘atmosfera’ do saber? Como deve ocorrer a construção de conhecimentos nes-
te espaço de aprendizagens chamado escola?

Reflexões...
Pensar sobre a escola hoje é um ato abrangente. Podemos ponderar so-
bre sua constituição física, sobre os sujeitos envolvidos, suas situações de apren-
dizagem, sobre a práxis pedagógica, a questão salarial, sobre a educação ban-
cária, tecnicista ou libertadora, sobre as políticas educacionais, entre outros
fatores que envolvem o que chamaremos de esfera escolar. Aqui nos limitaremos
a pensar/atentar aos seguintes pontos em torno do ambiente escolar: as situa-
ções de aprendizagem; o diálogo e as mediações; a questão formativa e os
meios tecnológicos.
Para Paulo Freire (1996), ensinar exige rigorosidade metódica, pesqui-
sa, respeito aos saberes dos educandos, criticidade, estética e ética, corporifi-
cação das palavras pelo exemplo, risco, aceitação do novo e rejeição a qual-
quer forma de discriminação, reflexão crítica sobre a prática, reconhecimento
e assunção da identidade cultural, consciência do inacabamento, bom-senso,
humildade, tolerância, luta pelos direitos dos educadores, alegria, esperança,
curiosidade, segurança, competência profissional, generosidade, comprometi-
mento, forma de intervenção no mundo, liberdade e autoridade, saber escutar,
dialogar (disponibilidade para ouvir), querer bem aos educandos.
Neste contexto, em que percebemos a grandiosidade de um trabalho
pedagógico sério e coerente às buscas dos educandos, é premente pensarmos
sobre o ato de educar com seriedade e alegria.
As trocas de informações e as relações estabelecidas e mediadas pelos
indivíduos estão sendo aproximadas do contexto sócio-histórico no qual os
sujeitos estão inseridos? Será que conseguimos aproximar a alegria e o educar
pela seriedade em nossas escolas? É nesse sentido que se justifica a importân-

3
Usaremos EEEB para nos referirmos à Escola na qual foi realizada a atividade com os alunos
da EJA na disciplina de Química.

107
CALDERAN, A. P.; RAMOS, M. R. S. • Uma escola alegre e comprometida com as aprendizagens...

cia de refletirmos sobre a prática escolar, sobre o papel da escola e o seu com-
prometimento social como unidade formadora de sujeitos.
Para responder, argumentar e refletir sobre essas questões, Freire (1987,
1992, 1996, 2014), Vygotski (2010) e a interlocução de outros sujeitos que se
apropriam desses referenciais na sua prática educativa, como Henz (2003) e
Bolzan (2009), são referenciais que certamente deram e continuam dando su-
porte a essas questões, bem como as vivências pedagógicas escolares dos sujei-
tos envolvidos na construção desta reflexão têm a intenção de somar e dividir
experiências.

A escola...
Quando a criança chega pela primeira vez no ambiente escolar, vem car-
regada de emoções, sentimentos, alegrias, desejos, inseguranças, de influências
cotidianas estabelecidas entre os demais sujeitos de sua convivência. Portanto,
não é um ser sem nenhuma referência ou, até mesmo, sem conhecimento.
Dessa maneira, a escola deve se identificar como um espaço de cultura,
de formação, de produção de saberes, de construção e reconstrução de conhe-
cimentos, em que os sujeitos estão sempre se renovando. Deve ser uma escola
que desempenhe a função de mediadora, partilhe com seus alunos os conheci-
mentos prévios, procurando despertar a curiosidade para os novos conheci-
mentos, a criatividade, o senso crítico e desafiando para construir novos co-
nhecimentos, e na qual o diálogo seja o ponto central, o eixo norteador das
ações que envolvem o processo educativo dos sujeitos. Apropriando-nos de
Freire (1987), podemos dizer que todo o ensino deve estar voltado para
[...] a educação problematizadora, respondendo à essência do ser da cons-
ciência, que é a intencionalidade, nega os comunicados e existência a co-
municação. Identifica-se com o próprio da consciência que é sempre ser
consciência de, não apenas quando se intenciona a objetos, mas também
quando se volta sobre si mesma (FREIRE,1987, p. 39).

Diante disso, a práxis escolar deve contribuir na transformação dos su-


jeitos, auxiliando na “formação” de cidadãos autênticos de suas histórias, das
suas vivências e atuantes numa construção coletiva e democrática. Portanto,
faz-se necessário a escola assumir a sua conjuntura histórico-cultural, não so-
mente de seu espaço/tempo ou do lugar que ali ocupa, mas essencialmente
dando voz aos alunos que ali estão inseridos e que são sujeitos ocupantes des-
se meio. Deve priorizar em todo esse contexto a razão, os sentimentos, as emo-
ções, os desejos, os sentidos, o intelecto, entre outros aspectos, deixando as
marcas nesse ambiente em que convive pelas quais pode compartilhar com os
outros indivíduos, através das mais diversas interações, e pelo diálogo.

108
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

As interações são características especificamente humanas. Segundo


Vygotski (2010), resultam da influência mútua do ser humano com o seu meio,
marcado pela sua cultura histórica. Ao mesmo tempo em que o ser humano
modifica o ambiente através de seu próprio comportamento, essa mesma mo-
dificação vai influenciar em suas atitudes futuras. As marcas interacionistas
são atos de significação e só são possíveis pela mediação do outro e pelo ins-
trumento cultural.
Na escola, o aluno interage com o professor numa relação específica de
ensino. O ensinar/aprender é explícito para que o educando, diante da tarefa
de compreender e/ou construir, receba as orientações necessárias do profes-
sor. Cabe a este propor acesso aos conceitos sistematizados, significativos e
dialógicos, evitando as memorizações de conteúdo. Freire (2011), em seus re-
latos, mostra que a memorização mecânica não leva à aprendizagem, não cons-
titui conhecimento do objeto.
Portanto, o papel do professor é criar/reinventar uma nova educação,
acrescentando ao que já conquistamos em cada ambiente escolar, em cada
situação de aprendizagem, mas remodelando para um novo tempo, reconstru-
indo saberes voltados para a realidade dos sujeitos, seus conhecimentos coti-
dianos, tendo como meta prioritária a educação para a libertação.

O professor e os desafios...
Um ensino libertador, dialógico, contextualizado e interacionista está
intrinsecamente relacionado com a questão formativa do professor. Como um
professor elabora/constrói/propõe ações aos seus educandos, se seu processo
formativo não lhe proporcionou realizar atividades de maneira interativa, li-
bertadora, dialógica? É urgente repensarmos a formação, seja ela inicial, con-
tinuada ou permanente.
A formação inicial é um ponto evidente que surge em todos os encon-
tros, debates e reuniões. Segundo Henz (2014, p. 7), “o diálogo entre profissio-
nais já atuantes nas instituições educativas e acadêmicos em formação nos
cursos de licenciatura, provoca e possibilita maiores discussões nos processos
de auto(trans)formação (inicial e permanente) de professores”. Precisamos rever
as práxis pedagógicas lá no início, na ponta que são nossos cursos de licenciatu-
ra, mas lembrando sempre que a formação é uma constante na vida docente.
Se fizermos uma retrospectiva nas questões formativas dos professores,
no que envolve os cursos de licenciatura, vamos compreender que o ato de
ensinar está diretamente relacionado à sua constituição histórica de formação.
Os professores atuam, agem e pensam de acordo com o que receberam em
suas formações. Se ocorrer um ensino mais reflexivo, os professores serão mais
participativos e inseridos no contexto escolar. Segundo Bolzan (2009, p. 21),

109
CALDERAN, A. P.; RAMOS, M. R. S. • Uma escola alegre e comprometida com as aprendizagens...

“há uma relação direta entre a ação do professor, a conduta e o rendimento


dos alunos. Dessa forma, a interação e a mediação são fatores preponderantes
na construção do conhecimento compartilhado dos alunos e dos professores”.
A relação de ensinar e de aprender não pode ser única e exclusivamente
da formação inicial. Acredita-se que realmente somos docentes quando conse-
guimos ser conscientes da nossa função e do nosso papel na escola, na socieda-
de, num contexto escolar mais abrangente e trabalhando “com os educandos”.
A educação de hoje deve estar voltada para as exigências da atualidade,
não abandonando o que já foi construído, a sua história, a tradição. A escola
precisa reagir a estas novas exigências que estão em seu entorno. Como uma
instituição social e histórica, precisa rever a sua posição no tempo/espaço,
adaptar-se e até mesmo usufruir de meios tecnológicos e de comunicação que
vêm surgindo. O papel da escola não é ignorá-los, mas, sim, deixar de ser uma
escola estática, estagnada e sem diálogo, para transformar-se em uma escola
atraente, alegre e inserida no contexto social/cultural.
Esse desafio pode ser considerado como uma utopia para o professor. É
fato que hoje os alunos dominam mais os meios tecnológicos que seus pro-
fessores. Reinventar e reciclar é preciso! Para Freire e Guimarães (2003), os
meios de comunicação não levam ao fim da escola, mas uma escola renovada!
Uma escola que não tivesse, inclusive, medo nenhum de dialogar com os
chamados meios de comunicação. Uma escola sem medo de conviver com
eles, chegando mesmo até, risonhamente, a dizer: “venha cá, televisão, me
ajuda! Me ajuda a ensinar, me ajuda a aprender!”, não (FREIRE & GUI-
MARÃES, 2003, p. 36-37).
Assim, a escola estabeleceria a relação (utópica ou não) com os meios
de comunicação. A reconstrução do espaço escolar está em se ter em mente
que ali é o ambiente de “formação”, ou seja, local de reconstrução de saberes,
de aprendizagens, de interações e trocas de conhecimentos, e que nenhuma
tecnologia vem substituir a escola, ou até mesmo os professores, e, sim, um
meio, um recurso pelo qual se busca um fim que é a reconstrução de conheci-
mentos, a tentativa de ensinar melhor, de maneira coletiva, em conjunto com
a comunidade, com as áreas do conhecimento no ambiente escolar, para que
se possa efetivar a ligação dos saberes, e também aproximar as novas tecnolo-
gias que estão postas nas escolas.

Exemplo de trabalho com seriedade e alegria...


Agora, um novo desafio! Como articular esses pontos já mencionados
com a alegria na escola? Como ter uma escola receptiva e prazerosa? Mas ao
mesmo tempo com qualidade? Falamos da escola, na importância dialógica
entre os sujeitos, na questão formativa dos professores e dos meios tecnológi-

110
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

cos que se fazem presentes nela. Porém, de posse disso, como ser uma escola
contagiante para os alunos? Freire desafia-nos nessa ação da relação pedagógi-
ca sendo acariciada pela afetividade, amorosidade e pelo diálogo, oportunizado
pela educação libertadora. Acreditamos que o exercício da docência só aconte-
ce de forma comprometida quando está associado a esses fatores. Principalmen-
te a amorosidade, a alegria, a esperança e o diálogo constituem-se como elemen-
tos indispensáveis para que isto ocorra no processo educativo e para as intera-
ções necessárias para a troca dos saberes. Freire (1996) nos mostra esta relação:
Há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperan-
ça. A esperança de professor e alunos juntos podermos aprender, ensinar,
inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à nossa
alegria. Na verdade, do ponto de vista da natureza humana, a esperança não
é algo que a ela se justaponha. A esperança faz parte da natureza humana.
Seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabado, primeiro o
ser humano não se inscrevesse ou não se achasse predisposto a participar de
movimento constante de busca e, segundo, se buscasse sem esperança. [...]
A esperança é um condimento indispensável à experiência histórica. Sem
ela, não haveria História, mas puro determinismo. Só há História onde há
tempo problematizado e não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a ne-
gação da história (FREIRE,1996, p. 43).
É pela esperança, pela alegria, pelo diálogo e pelas inter-relações que os
sujeitos vão se constituindo, estabelecendo trocas, marcando suas histórias. A
amorosidade garante um espaço para o diálogo e para o compartilhamento de
saberes, reforçando um compromisso e um comprometimento na relação en-
sino e aprendizagem, num envolvimento afetivo/pedagógico entre professo-
res e alunos, aliados aos conhecimentos cotidianos realizando a transposição
do saber escolar.
Trabalhar na EJA, por exemplo, exige em primeira instância despir-se de
práticas pedagógicas tecnicistas em que “vencer conteúdos” é o mais importan-
te, e, contrário a isso, devem-se agregar novas estratégias metodológicas para
interagir com os conteúdos específicos de cada área do conhecimento, numa
versão impregnada de significados coerentes às vivências daqueles educandos.
Esse desafio impulsionou a professora de química, uma das autoras desse
estudo, a repensar sua prática docente. Atualmente trabalha de uma forma
mais interativa com suas turmas, independente da modalidade de ensino, e,
como professora atuante na modalidade EJA, sente-se mais responsável e per-
cebe a necessidade de trabalhar de forma diferenciada, na tentativa de buscar
respostas aos questionamentos acerca de que tipo de ensino perseguir.
Para tentar responder a essa questão, a professora planejou, para o pri-
meiro encontro com os educandos da EJA, a leitura de uma mensagem de
otimismo, na qual o texto de um autor desconhecido trazia palavras de espe-

111
CALDERAN, A. P.; RAMOS, M. R. S. • Uma escola alegre e comprometida com as aprendizagens...

rança e valorização da vida, e a importância de ser entusiasta. O texto descre-


via o significado do termo entusiasmo e dizia que apenas pessoas entusiasma-
das são capazes de vencer desafios do dia a dia. A pessoa entusiasmada é
aquela que acredita na sua capacidade de transformar as coisas, de fazer dar
certo, que acredita em si e no outro, e na força que as pessoas têm em transfor-
mar o mundo e a própria realidade.
E, assim, o primeiro encontro com os educandos da EJA transcorreu
num ambiente de valorização da vida. Aos poucos, cada educando foi se apre-
sentando e se manifestando a respeito da importância de ter retomado os estu-
dos e quais seus objetivos de vida e expectativas em relação à escola.
Na continuidade desse primeiro encontro, como segundo momento, os
alunos da turma EJA, num total de 45 educandos, foram convidados a se diri-
gir ao salão da escola onde assistiriam a duas animações, de cerca de 5 minu-
tos cada uma, sobre a “química e a sociedade”.
A primeira animação foi em alusão ao ano internacional da química,
que foi marcado por um congresso internacional no ano de 2011. A história
em vídeo descrevia e apresentava o lado bom e útil da química, e abordava as
dimensões para a educação – Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente
(CTSA). Nesse vídeo os educandos puderam perceber a aplicação do conheci-
mento científico em prol das necessidades dos cidadãos, estando estes inseri-
dos numa nova sociedade, a sociedade das linguagens, das tecnologias da in-
formação, da comunicação em constantes transformações.
Já o segundo vídeo trazia a história do “homem capitalista” fazendo
uso de seu conhecimento de uma forma maléfica ao ambiente. Em todos os
espaços que o personagem da animação passava, deixava rastros de destruição
e avareza. O personagem pensava e agia em prol de seu bem-estar, de forma
individualizada e destrutiva.
Depois que os educandos assistiram a essas duas animações, a professo-
ra entregou a eles uma atividade em que deveriam ler um texto em relação aos
objetivos de estudar química e a sua importância. Ao mesmo tempo, deveriam
manifestar-se quanto aos dois vídeos assistidos, e, ao final, aconteceria o deba-
te num grande grupo. Como complementação da ação, propôs um questioná-
rio no qual as questões apresentadas direcionavam para o que desejavam apren-
der ou estudar na disciplina de Química no ano letivo de 2015.
Na sequência, estruturou o Quadro 14, no qual foram registradas as
respostas dadas por alguns dos educandos sobre os seguintes assuntos: ativi-

4
O referido quadro foi criado pela professora de química, uma das autoras do texto, que articulou
as ações com a turma da EJA.

112
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

dade que desempenham atualmente; exemplos de onde se percebe a química;


o que gostariam de estudar em química; se consideravam existir química asso-
ciada aos seus trabalhos e/ou atividades.

Quadro 1: Respostas dadas pelos educandos aos questionamentos sobre quí-


mica

Atividade Exemplos de onde você O que você gostaria de Você acha que existe química
percebe a química. estudar em química? associada ao seu trabalho?

Caixa/frentista Medicamentos, Plásticos. Aulas práticas para um Sim, e muito: gasolinas.


melhor entendimento.

Soldador Produtos de cabelo, Ir mais profundo sobre a Elétrons/arame de mig/


combustíveis, plásticos. energia. tintas, oxigênio industrial.

Cozinheiro Na formação dos alimentos, As equações da descoberta Sim na mistura de alimentos


na natureza, química nos da química, os primeiros quando são colocados juntos.
acompanha desde o nascimento. descobridores da química.

Técnica de Em vários momentos: produtos Mais aulas no laboratório. Sim, na administração de


enfermagem de higiene e limpeza, na energia medicamentos, em agulhas.
que utilizamos, em alguns
alimentos, medicamentos.

Dona de casa, Queima de uma vela, Química industrial, Sim, preparação de alimentos,
vendedora de fermentação da massa do pão, fabricação de produtos de limpeza da casa, nos
cosméticos preparação de um café, limpeza e higiene. Química cosméticos que eu vendo.
combustão do gás de cozinha. orgânica.

Carpinteiro Gás de fogão, álcool, e As substâncias. Cálculos e energia.


produtos de limpeza.

Fonte: Elaborado pela autora da atividade.

Análise e discussão dos dados


Em análise às respostas dadas pelos educandos, e enfatizando aquelas
voltadas para o que desejam estudar na disciplina de química, percebemos que
esses sujeitos têm expectativas importantes em relação a essa instituição esco-
la, e que ainda, apesar de tudo, é uma das mais importantes instituições exis-
tentes, e, a nosso ver, está entre as que “dão certo”. Na escola aprende-se a ser
gente, a estar com gente e a compartilhar entre gentes.
Em relação a um dos assuntos mais importantes, na opinião da profes-
sora regente de classe: o que o educando gostaria de estudar nas aulas de quí-
mica, o objetivo desse questionamento foi com a intenção de deixar claro que
durante as aulas de química seria priorizado, e dar-se-ia muita importância e
relevância ao que o educando procura na escola.
Este aluno procura a escola por vontade própria. Ele não pode ser con-
siderado “um ser com mente vazia”, desprovido de desejos, anseios e sonhos.

113
CALDERAN, A. P.; RAMOS, M. R. S. • Uma escola alegre e comprometida com as aprendizagens...

Pelo contrário, suas expectativas vão além da sala de aula, e isso deve ser res-
peitado.
As respostas dadas demonstram que esses educandos já percebem a im-
portância da química no dia a dia, da ciência como um todo associada às suas
vivências, como podemos perceber: “quero estudar assuntos sobre energia”;
“as novas manifestações do ambiente e as novas tecnologias”; “as substâncias”;
“tudo o que eu precisar saber para enfrentar no dia a dia de minha vida”;
“sobre os remédios que usamos”; “o que comemos e o que usamos no dia a
dia”; “sobre evaporação de água e sal, etc.”; “o essencial, ver vídeos, experiên-
cias no laboratório, enfim, tudo o que a matéria oferecer”; “química industri-
al, fabricação de produtos de limpeza e higiene”.
Percebemos que a maioria das respostas dos educandos está ligada às
suas preocupações com os estudos relacionados às suas vivências, bem como
às suas atividades diárias, em expressões como: energia, ambiente, novas tec-
nologias, dia a dia, remédios, “o essencial para nossas vidas”.

Considerações finais
Acreditamos que estudar Freire nos leva a construir um novo olhar so-
bre a educação, sobre as ações imediatas de aprendizagem. Aprende-se a ques-
tionar a atitude de educador, muitas vezes insatisfeito, curioso, preocupado
com o crescente número de educandos que procuram a escola, mas que não
conseguem aprender ou não se sentem motivados a fazê-lo.
O desafio para o professor de química, bem como para todos os profis-
sionais da educação, é dar conta, coletivamente, de no mínimo contemplar os
anseios dos educandos, e os objetivos a que se propõem para uma educação de
qualidade, de no mínimo, não decepcionar aquelas crianças, jovens e adultos
que estão diariamente na escola.
Uma estratégia é buscar nos ensinamentos de Freire, grande pedagogo,
forças para prosseguir, pois, na sua prática, percebe-se a importância do amor
nas relações pedagógicas, capaz de transformar a vida; a importância da troca,
do coletivo, da parceria em educação, o compartilhar com o outro, o diálogo,
a humildade, o respeito ao indivíduo, bem como às individualidades.
Um educador não pode fingir que não vê as diferenças de cultura, de
religião, as diferenças políticas e de classes sociais ao seu lado; precisa elimi-
nar seus preconceitos, precisa aceitar o diferente, não querendo que ele se tor-
ne um igual, precisa conscientizar para educar. “Pensar e fazer errado, pelo
visto, não têm mesmo nada que ver com a humildade que o pensar certo exi-
ge” (FREIRE,1996, p. 36).
Iniciamos as nossas reflexões, neste texto, ponderando sobre a atenção
dispensada aos alunos quando estes chegam pela primeira vez na escola. Aqui

114
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

reafirmamos a importância e a necessidade de uma escola que prime tanto


pela amorosidade quanto pela alegria do encontro, da receptividade, uma es-
cola democrática, ética e que respeite a “leitura de mundo” que cada educan-
do carrega consigo ao chegar à escola.
Saber escutar os educandos, dar vez e voz para cada sujeito falar é uma
maneira de estabelecer as relações interativas e dialógicas que tanto Vygotski e
Freire mostram em seus escritos. Quando se dá ao aluno a possibilidade de
falar, propiciar um diálogo e não aquele monólogo em que o professor apenas
fala e o aluno escuta, acreditamos que a aula passa a ter um novo sentido.
Existindo a integração, deixa de ser um fato/história isolado e passa a ter
vários sons/ecos, possibilitando nessas interações novas aprendizagens, as quais
vão sendo construídas, (re)construídas e, até mesmo, em muitas situações co-
meçam a ter novos sentidos e significados.
Nessa perspectiva, não há maneira de assimilar os conceitos de forma
“pronta”, não mediada, sem sentido e sem construção de conhecimentos. A
postura dialógica permite ao professor orientar/mediar seus alunos em suas
interações em sala de aula e em outro ambiente pedagógico no direcionamen-
to da apropriação da cultura e dos conteúdos, os quais permitam que se situem
neste mundo e levem ao desenvolvimento de suas potencialidades.
Desse modo, ensinar/mediar/interagir não é transmitir informações de
forma bancária, tecnicista. Ensinar é, sim, propiciar situações simultâneas de
ensino e aprendizagem, por meio das quais os alunos possam ter acesso ao
conhecimento elaborado, próprio da escola, e ampliar suas concepções acerca
da realidade na qual estão inseridos.
A questão formativa do professor, seja inicial, continuada ou perma-
nente deve ser uma constante. É necessário encontrar meios para que ela se
torne mais efetiva nos ambientes escolares. A palavra “formação” vem associa-
da com vontade. Acreditamos que este seja um ponto significativo em nossas
reflexões, ou seja, temos que ter disposição para que ocorra. Somos bem cien-
tes de que, para que isso aconteça, existem outros fatores imbricados. Entre
eles, destacamos as políticas educacionais, as quais nos levam para outra refle-
xão futura.
Finalizando... acreditamos que escola é vida! É o espaço/lugar de cons-
trução do conhecimento, mediatizado por outras formas de saber, conceitos,
vivências encontrados no seu meio. Uma (re)constituição dos sujeitos envolvi-
dos que vão em busca do diálogo, de novos conhecimentos, bem como de
novas visões de mundo e que assumem seus pensamentos, seus saberes
(re)construídos com significados dentro da sua perspectiva histórico-cultural.
Esperamos... uma escola comprometida com esses sujeitos, mas ao mes-
mo tempo receptiva, alegre, ética e que estabeleça primordialmente a amorosi-

115
CALDERAN, A. P.; RAMOS, M. R. S. • Uma escola alegre e comprometida com as aprendizagens...

dade entre todos os integrantes da comunidade escolar. Sonho? Cremos que


não! Esperança por uma escola voltada para as classes populares, que aposte
nas histórias de vida de cada um; aposte na qualidade e que ajude a transfor-
mar a realidade dos seus sujeitos, oportunizando uma nova “leitura de mun-
do” com histórias mais dignas e felizes!

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Bezerra. 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

116
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORES DAS ESCOLAS DO CAMPO,
ANCORADA NAS HISTÓRIAS DE VIDA
E NOS CÍRCULOS DIALÓGICOS
INVESTIGATIVO-FORMATIVOS1
CARVALHO, Luciana Carrion2
SILVEIRA, Melissa Noal da3

Considerações iniciais
O estudo versa sobre a violência simbólica entre os docentes da educa-
ção do campo e sua relação com a formação continuada de professores. Busca
refletir acerca da formação continuada de professores nessa modalidade de
educação, visando ao não apagamento de suas características devido à insti-
tuição do modelo urbanocêntrico nas escolas rurais.
A pesquisa foi desenvolvida por meio da metodologia história de vida,
ancorada na perspectiva das narrativas (auto)biográficas e Círculos Dialógi-
cos Investigativo-formativos como dispositivos de formação continuada aos
docentes da educação do campo. Dessa forma, tem por objetivo investigar
sobre a possibilidade da formação continuada para a superação da violência
simbólica entre os docentes da escola do campo a partir da história de vida.
A partir das considerações acima expostas, apresentamos a questão de
pesquisa: em que medida a formação continuada de professores interfere ou

1
O artigo refere-se ao recorte da pesquisa de mestrado em educação, de Carvalho, Luciana
Carrion, na Linha de Pesquisa LP1 – Formação, Saberes e Desenvolvimento Profissional do
Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE/UFSM, sob orientação da Profª Drª
Helenise Sangoi Antunes.
2
Mestra em Educação pela UFSM. Educadora Especial (UFSM), Especialista em Educação de
Surdos (UNISC), Especialista em Gestão Pública e Sociedade (UFT/UFRGS), Intérprete em
Libras, Professora da Rede Pública Estadual. Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa
sobre Formação Inicial, Continuada e Alfabetização – GEPFICA/UFSM. E-mail:
lucarvalho1212@hotmail.com.
3
Mestranda em Políticas Públicas pela UFSM. Professora de Educação Básica Estadual.
Graduada em Letras-Espanhol. Especialista em Educação Profissional Integrada à Educação
Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (UFRGS). Participante do Grupo de
Pesquisa Dialogus: Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire (UFSM). E-mail:
melissa@ufsm.br.

117
CARVALHO, L. C.; SILVEIRA, M. N. da • Formação continuada de professores das escolas do campo...

não na autonomia e no sentimento de pertencimento à comunidade da escola


do campo?
O referencial teórico serviu como referência no estudo sobre educação
do campo, formação continuada de professores e história de vida.

Compartilhando ideias
Para o desenvolvimento desta pesquisa, optamos pela abordagem quali-
tativa, que, segundo Haguette (2011, p. 59), é conceituada como a
superioridade do método que fornece uma compreensão profunda de certos
fenômenos sociais apoiados no pressuposto da maior relevância do aspecto
subjetivo da ação social face à configuração das estruturas sociais, seja a
incapacidade da estatística de dar conta dos fenômenos complexos e dos
fenômenos únicos.
Para a tessitura deste estudo, buscamos utilizar uma metodologia que
oportunizasse a compreensão do processo formativo como um todo, possibili-
tando um novo olhar, ou “outro olhar” referente à formação de professores da
escola do campo, embasado teoricamente, a fim de corresponder aos respecti-
vos objetivos. Dessa forma, torna-se indispensável uma pesquisa que venha
valorar questões não quantificáveis, e sim, subjetivas e singulares.
A investigação foi desenvolvida por meio da metodologia história de
vida, ancorada na perspectiva das narrativas (auto)biográficas e dos Círculos
Dialógicos Investigativo-formativos4. Para Abrahão (2006, p. 154), a metodo-
logia história de vida “caracteriza o processo de pesquisa que consiste em ‘fa-
zer surgir’ histórias de vida em planos de históricos ricos de significado, em
que aflorem, inclusive, e muito especialmente, aspectos de ordem subjetiva”.
Para Josso (2006, p. 21), justifica-se tal metodologia, porque:
Trabalhar sobre relatos de “história de vida” no campo das ciências huma-
nas e na interpretação interativa com seus autores é uma revolução metodo-
lógica que constitui um dos signos de emergência de dois novos paradigmas:
o paradigma de um conhecimento fundamentado sobre uma subjetividade
explicitada, ou seja, consciente de si mesma, e o paradigma de um conheci-
mento experiencial que valoriza a reflexividade produzida a partir de vivên-
cias singulares.
Nesse “tear” de histórias de vida, entendemos que o uso dessa metodo-
logia nos oportuniza o diálogo entre o individual e o sociocultural, sendo,

4
A metodologia dos Círculos Dialógicos vem sendo desenvolvida pelo Grupo de Estudos Dialogus:
Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire (UFSM), inspirada nos Círculos de
Cultura freireanos em aproximação com a pesquisa-formação.

118
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

assim, possível perceber a importância das histórias de vida relacionadas com


a dinâmica da comunidade e seu entorno.
As narrativas (auto)biográficas, conforme Souza e Meireles (2014, p. 71),
“embora estejam relacionadas a uma esfera particular, todas as lembranças
estão circunscritas em um contexto sócio-espacial-temporal”. Isso implica re-
fletirmos que “ao contar suas histórias, cada professora revela as experiências
vividas, recorda suas trajetórias e partilha sentidos” (SOUZA e MEIRELES,
2014, p. 71). Nessa perspectiva, compreendemos que os sujeitos estabelecem
as reconstruções de sentido, pois, ao rememorarem suas vivências, lembran-
ças e percepções, eles poderão (re)significar os fatos e, assim, possibilitar uma
mudança primeiramente pessoal e, consequentemente, uma transformação lo-
cal, em que revisitar o passado poderá oportunizar uma mudança no presente e,
certamente, no futuro. Segundo Abrahão (2006, p. 153), “As narrativas são, pois,
elementos que trazem forte significado pessoal e articulam presente, passado e
futuro, instigadas pela rememoração”. Para Souza (2006, p. 138):
Desta forma, entendo que a abordagem biográfica e a autobiografia das tra-
jetórias de escolarização e formação, tomadas como narrativas de formação
inscrevem-se nesta abordagem epistemológica e metodológica, por compre-
endê-la como processo formativo e autoformativo, através das experiências
dos atores em formação.

Então, as narrativas de formação colaboram com maior compreensão


do processo formativo e (auto)formativo, uma vez que as vivências/experiên-
cias dos atores remetem-nos às suas trajetórias de escolarização e de vida, o
que poderá possibilitar novas reflexões de maneira efetiva em suas vivências e
práticas no cotidiano de seu trabalho docente, por meio da formação continua-
da de professores, provocando sua auto(trans)formação.
Já os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos surgiram com a cons-
trução de uma proposta metodológico-espistemológica política a partir do
Grupo de Estudos Dialogus: Educação, Formação e Humanização com Paulo
Freire. Para Henz (2014, p. 4), essa metodologia
possibilita reconhecer cada homem e cada mulher na sua singularidade. Sob
esse prisma, todos os participantes da pesquisa são reconhecidos como coau-
tores, muito embora haja um pesquisador líder mediando os diálogos inves-
tigativo-formativos.
A perspectiva dos círculos dialógicos oportunizou a reflexão crítica a par-
tir do diálogo entre as coautoras da pesquisa e a pesquisadora sobre as questões
relacionadas às suas vidas: educação, formação, profissão, entre outras.
A aproximação das metodologias escolhidas foi feita por acreditarmos
que isso proporciona e potencializa o diálogo intra e interpessoal dos atores
envolvidos, visto que, como narrativa, o sujeito interpreta sua autoimagem,

119
CARVALHO, L. C.; SILVEIRA, M. N. da • Formação continuada de professores das escolas do campo...

como se compreende e como manifesta seu desejo de dar-se a conhecer. Por-


tanto, a narrativa não se configura em uma “sequenciação” de fatos contados
no formato linear, mas num ensaio de ligá-los no tempo, no espaço, no senti-
do, no social, abrindo-se as possibilidades, por meio dos círculos dialógicos,
de (re)significação de suas vidas, pela rememoração de suas histórias.
A partir das considerações elencadas no texto, referente à metodologia
para formação continuada de professores, acreditamos que as histórias de vida
e narrativas (auto)biográficas, a partir dos Círculos Dialógicos, possibilitam a
tomada de consciência dos sujeitos como seres inacabados e, oportuniza maior
empenho à luta política pela transformação educacional. Nesse modo, senti-
mo-nos provocados a refletir sobre as relações estabelecidas no interior das
escolas devido à grande demanda humana existente nas instituições de ensi-
no. Isso tem nos desafiado, cotidianamente, a pensar sobre a necessidade de
uma formação continuada “para e com” os professores em vários quesitos
além da capacitação e do aperfeiçoamento profissional, mas também no que
compete ao relacionamento, à ética, à identidade com a escola, entre outros;
buscando romper com a invisibilidade dos atores que lá atuam. Para a forma-
ção dos professores, Antunes (2011, p. 26) salienta:
A formação dos professores deve levar em consideração o desenvolvimento
pessoal. O “professor é a pessoa” e, por essa razão, é preciso investir na
identidade pessoal e no saber da experiência vivida. Esta experiência deve
vir aliada à produção do saber para o melhor aproveitamento do formador e
do formando, já que a formação está intimamente a ela ligada.
As discussões acerca da importância do olhar sobre o professor como
sujeito vivo e histórico têm-se mostrado fundamental na atualidade. Então,
vivenciar este novo tempo reflexivo-institucional-escolar tem se tornado mais
instigante a cada momento. Por muito tempo afirmou-se em reuniões de pro-
fessores que o espaço de trabalho estaria desvinculado da vida pessoal, o que
contraria a percepção de hoje. Percebemos que esse pensamento foi um equí-
voco, trazendo frustrações e sofrimentos psíquicos. Portanto, a formação pro-
fissional deve considerar também o desenvolvimento do professor como ser
social e histórico, valorizando suas experiências vividas, (re)significando-as
para a produção do saber. Nesse sentido, Isaia (2009, p. 99) aponta-nos o se-
guinte sobre a trajetória profissional:
A trajetória profissional, partindo desse pressuposto, é vista como um pro-
cesso complexo, um conjunto de movimentos em que revolução e involução
estão presentes; em que fases da vida e fases da profissão se entrecruzam,
mas não são uma só, visto que, fundamentalmente, esse percurso é, em mui-
tos aspectos, único. [...] Exatamente por haver entrecruzamento, muitas ve-
zes, torna-se difícil programar novas estratégias de formação e de desenvol-
vimento profissional, pois essas gerações podem interagir, podem se repelir

120
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

ou mesmo se desconhecerem como parceiras na construção do mundo aca-


dêmico-pedagógico.
Nessa perspectiva, desperta a reflexão sobre o quanto é desafiador o
desenvolvimento de uma formação continuada que alcance ou satisfaça um
significativo grupo de uma escola, uma vez que, em um mesmo local de atua-
ção, estão presentes profissionais de diferentes gerações.
Nesse processo de formação continuada, não podemos esquecer que o
nosso material é humano, o que vem nos desafiar ainda mais a qualificar a
comunicação, o respeito, a ética, o diálogo. Para Freire (2009, p. 81), “quanto
mais tolerantes, quanto mais transparentes, quanto mais críticos, quanto mais
curiosos e humildes, tanto mais assumem autenticamente a prática docente”.
Para além de tratarmos de educação, também tratamos de formação humana,
em que todos atuam na sociedade nas mais diversas funções: familiar, profissio-
nal, cidadã, entre outras. Assim, para Isaia (2009, p. 100) “o desenvolvimento
do professor como pessoa e profissional é gerado por crises, contradições e
conflitos, entendidas de forma construtiva, como ocasião de mudança e trans-
formação”. Assim, Antunes (2011, p. 27) complementa:
Nesse sentido, pensar em construir estratégias para o professor que atua no
Ensino Fundamental repensar em serviço as suas práticas educativas pro-
porciona condições para que os professores compreendam os significados
em torno da sua escolha profissional, da sua carreira docente, da sua prática
pedagógica, da sua formação inicial, da sua formação continuada e da sua
existência enquanto ser humano e profissional. Todas as questões, que estão
colocadas, partiram de um pressuposto: o professor precisa olhar para si
mesmo e compreender-se como pessoa, com uma história de vida que preci-
sa ser conhecida, que realizou trajetórias singulares na carreira docente, que
seus alunos e os seus colegas de profissão também são pessoas com histórias
de vida pessoal e profissional que necessitam ser conhecidas.
Conforme o exposto, acreditamos que a formação em serviço tenha essa
possibilidade para a compreensão e reflexão do professor, de si e de suas esco-
lhas, suas trajetórias e, consequentemente, sua história. Uma formação em
serviço organizada e planejada poderá oportunizar um excelente espaço para o
desenvolvimento pessoal e profissional dos educadores. Poderá ser desenvolvi-
da através de estratégias de sensibilização e humanização referenciando a im-
portância de respeitar o outro independente de suas ideias e opiniões, simples-
mente por perceber o colega como um ser possuidor de necessidades, com uma
história de vida e experiências acumuladas por meio de sua trajetória pessoal e
profissional. Para Júnior (2008, p. 243-244):
Nesta modalidade formalizada, a Educação ganha novos desafios, pois, além
de ser ensinada, ela deve ser também gerenciada, administrada com vistas a
possibilitar uma formação humana em educadores e educandos. A escola,

121
CARVALHO, L. C.; SILVEIRA, M. N. da • Formação continuada de professores das escolas do campo...

por ser uma organização que proporciona o convívio entre diversos sujeitos,
possui um caráter pedagógico que visa a formação humana para transfor-
mação da sociedade. Logo, a administração deste tipo de instituição tende a
ser diferenciada das demais. Desta forma, a cultura que é instaurada em
uma escola está diretamente ligada às perspectivas de sua gestão.
Desse modo, a escola possui um caráter pedagógico para a transforma-
ção da sociedade por meio da formação humana, e traz uma implicação dire-
tamente em seus gestores e em suas formas de gestão. Portanto, uma das for-
mas para qualificar o espaço-escola como comunidade-única poderá ser de-
senvolver nos profissionais que lá atuam a identidade com a instituição e o
sentimento de pertencimento àquela comunidade. Essa identificação é essen-
cial para o enfrentamento dos desafios reais, almejando superá-los na expecta-
tiva de ocorrerem às mudanças necessárias para a transformação do espaço
educativo. Partindo da interlocução com Nóvoa (2009, p. 42):
Através dos movimentos pedagógicos ou das comunidades de prática, refor-
ça-se um sentimento de pertença e de identidade profissional que é essencial
para que os professores se apropriem dos processos de mudança e os trans-
formem em práticas concretas de intervenção. É esta reflexão coletiva que
dá sentido ao desenvolvimento profissional dos professores.
São esses movimentos pedagógicos que provocam a reflexão de si, um
sentimento de pertencimento e de identidade profissional, oportunizando uma
revisitação em si, e, por conseguinte, a reflexão coletiva nos diversos meios e
espaços. Destacamos a relevância de estarmos abertos para o diálogo, para as
mudanças, para o outro. Freire (1997, p. 154) afirma que “o sujeito que se abre
ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se
confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente
movimento na história”. Portanto, quando nos abrimos para o outro, abrimo-
nos para uma relação dialógica, o que nos coloca em movimento com a nossa
própria história. Com todas essas possibilidades postas, podemos, neste mo-
mento, refletir em como se deseja a formação continuada de professores nas
escolas do campo. Segundo Rocha e Martins (2011, p. 214):
Partimos do pressuposto de que a educação é fundante na formação humana.
Por que então falar de uma Educação do Campo, e mais ainda como nela a
formação? Entendemos que do campo anuncia que a formação não é univer-
sal, homogênea, igual. Formar o humano acontece na tensão entre as desi-
gualdades e diversidades. Nesse sentido, ela é emancipadora e transforma-
dora. Ser do campo também anuncia o pertencimento, no sentido de “elabo-
ração da própria identidade e de projetos coletivos de mudança social a par-
tir das próprias experiências”.

Concordamos com a premissa de que a educação é fundante na forma-


ção humana, assim como ela pode ser emancipadora e transformadora quan-

122
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

do está a serviço da reflexão e da autonomia intelectual dos sujeitos. Por esse


motivo, não é possível perpetuar o “silenciamento”5 dessas culturas, a essas
realidades, também ao seu apagamento em suas identidades e o distanciamen-
to de seu pertencimento com o seu meio. Por isso, é necessário oportunizar,
nas relações estabelecidas entre os docentes, o espaço para o diálogo, para a
aceitação do outro e o fortalecimento da autonomia, e principalmente, o for-
talecimento da autoestima.
Para contextualizar as discussões em torno da educação do campo, da-
remos continuidade a este diálogo com a seguinte afirmação provocativa: o
não reconhecimento da história de vida no/do campo e sua cultura significam
o não reconhecimento de seus sujeitos e, por conseguinte, de suas especificida-
des. De acordo com Martins (2008, p. 95), é não respeitar “o sentimento de
pertença, que é subjetivo, e entre outros fatores de vinculação, que são funda-
mentais para a construção de identidades coletivas”. Nesse sentido, Antônio
(2008, p. 75) contribui:
Um dos princípios centrais do movimento “Por uma Educação do Campo”
imprime uma proposição de que “não basta ter escolas no campo; quer-se
ajudar a construir escolas do campo”. Necessariamente, “escolas com um
projeto político-pedagógico vinculado às causas, aos desafios, aos sonhos, à
história e à cultura do povo trabalhador do campo”.

Desse modo, a luta por escolas do campo ganha visibilidade a partir do


reconhecimento legal no Parecer n. 36/2001, em que se reconhece que o cam-
po não é somente um perímetro não urbano, mas possuidor de “possibilidades
que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das con-
dições da existência social e com as realizações da sociedade humana”. Por
essas e outras razões, houve a decisão na proposição das Diretrizes Operacio-
nais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, que supõe ainda: “a iden-
tificação de um modo próprio de vida social e de utilização do espaço, delimi-
tando o que é rural e urbano sem perder de vista o nacional”.
A Resolução CNE/CEB n. 1 de 3 de abril de 20026, em seu artigo 2º,
parágrafo único, esclarece-nos sobre entendimento da identidade dessas es-
colas.
Com o reconhecimento das peculiaridades próprias do campo, como sua
identidade, temporalidade, saberes e memória coletiva na Resolução de 2002
e, ainda, fortalecida pela Lei n. 9.394/96 em seus artigos 23, 26 e 28, em que
se contempla a diversidade do campo em todos os seus aspectos – o social, o

5
Silêncio: Conceito extraído do Dicionário Paulo Freire. Redin (2010, p. 371) nos diz: “Proibir
o homem de dizer a sua palavra é proibi-lo de se transformar, censurar o homem a dizer a sua
palavra é escravizá-lo nas grades da cultura do silêncio”.
6
Resolução que institui as diretrizes operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo.

123
CARVALHO, L. C.; SILVEIRA, M. N. da • Formação continuada de professores das escolas do campo...

cultural, o político, o econômico, de gênero, geração e etnia, Caldart (2012, p.


259) contribui afirmando: “A realidade que produz a Educação do Campo não
é nova, mas ela inaugura uma forma de fazer seu enfrentamento. Ao afirmar a
luta por políticas públicas que garantam aos trabalhadores do campo o direito à
educação, especialmente à escola, e uma educação que seja no e do campo [...]”.
Assim, configura-se uma luta social pelo direito à educação pelos trabalhadores
do campo, “feita por eles mesmos e não apenas em seu nome. A Educação do
Campo não é para nem apenas com, mas sim, dos camponeses, expressão legíti-
ma de uma pedagogia do oprimido”. (CALDART, 2012, p. 261). Nesse sentido,
pensamos que, para as escolas do campo, são indispensáveis as modificações
curriculares e metodológicas, mas, principalmente, a formação continuada de
professores, a fim de redimensionar a formação tradicional até aqui recebida.
Romper com o silêncio, como Freire (2009, p. 40) coloca: “Era como se,
de repente, rompendo a ‘cultura do silêncio’, descobrissem que não apenas
podiam falar, mas, também, que seu discurso crítico sobre o mundo, seu mun-
do, era uma forma de refazê-lo”.
Portanto, acreditamos que o engajamento dos professores em sua insti-
tuição de ensino oportuniza dar sentido ao seu próprio desenvolvimento pro-
fissional e, consequentemente, pessoal, pois romper “a mordaça” do silêncio e
possibilitar ao professor dizer a sua palavra7 poderá ser fator determinante para
a tomada de consciência da própria limitação e, assim, de busca de sua liberta-
ção. Conforme o excerto abaixo, Freire (2009, p. 100) aponta que:
[...] inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos torna-
mos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicio-
nados, históricos. Percebendo, sobretudo, também, que a pura percepção da
inconclusão, da limitação, da possibilidade, não basta. É preciso juntar a ela
a luta política pela transformação do mundo.

Considerações finais
Este estudo nos oportunizou conhecer um recorte da realidade das es-
colas do campo, e vimos, por meio da pesquisa, a existência de um “abismo”
entre a legislação que vigora e a prática exercida na grande maioria das escolas
em nosso território nacional.

7
Fiori prefacia a obra de Freire, Pedagogia do Oprimido: “Condições de poder re-existenciar
criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder dizer a sua
palavra... Mas, para isto, para assumir responsavelmente sua função de homem, há de aprender
a dizer a sua palavra, pois, com ela, constitui a si mesmo e a comunhão humana em que se
constitui; instaura o mundo em que se humaniza, humanizando-o... Com a palavra, o homem
se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua essencial
condição humana (FREIRE, 1987, p. 7).

124
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Dessa forma, percebemos a necessidade de viabilizar reflexões e discus-


sões acerca da formação continuada dos professores em relação ao apagamen-
to das identidades e das culturas dos sujeitos pertencentes a esses meios.
Embora tenhamos a Lei 9.394/96 (LDBEN), as Diretrizes Operacio-
nais, os Pareceres e as Resoluções próprias para as Escolas do Campo, o que
vem nos impulsionar a questionar sobre o que impede a execução do “legal” e
a sua efetivação nas práticas docentes? Após muita reflexão sobre essa ques-
tão, podemos considerar, entre as muitas variáveis, as fragilidades na forma-
ção inicial e continuada de professores atuantes em tais escolas. Como o nos-
so foco nesta pesquisa é a formação continuada, convidamo-los a pensar nessa
perspectiva, na força de impacto que estes momentos formativos possam pro-
vocar em nossos educadores. Frente a isso, percebemos a importância de ‘dar
voz’ aos atores, aos professores, esses que devem ser protagonistas de suas
trajetórias na vida pessoal e profissional.
Uma formação que aproxime as histórias de vida utilizando as narrati-
vas (auto)biográficas pode promover espaços de reflexão crítica do corpo do-
cente, por meio dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos, assim re-
pensando conceitos e percepções até aqui pensadas e/ou vividas. Oportuniza
que cada ser se auto(trans)forme pela capacidade de agir e refletir criticamente
sobre a realidade na qual está inserido, libertando-se da condição de domina-
ção e opressão tão bem discutidos por Paulo Freire.
Destacamos, nesse sentido, a sensibilização, por meio das histórias de
vida dos educadores do campo, como uma das possibilidades para se constituí-
rem como sujeitos históricos, imersos em uma realidade própria, que necessita
visibilidade e respeito a suas peculiaridades, não sendo mais possível perceber-
mos o enfraquecimento das escolas do campo, devido à falta de conhecimento
da realidade onde as escolas estão situadas, bem como as práticas docentes
arraigadas em uma lógica capitalista e urbanocêntrica, voltada para o fortale-
cimento da competição, do individualismo e do silenciamento das vozes de
docentes e estudantes, que ousam pensar e ter esperança em uma educação
voltada para a valorização do trabalho coletivo, do compartilhamento de sa-
beres e do fortalecimento da autonomia.
Portanto, mesmo em um cenário arrasado pelo abandono e descrédi-
to, tornamos viável, a partir das propostas referenciadas, a superação da vio-
lência simbólica dos/nos docentes a partir das histórias de vida e as narrati-
vas (auto)biográficas, por meio dos Círculos Dialógicos Investigativo-
formativos, como dispositivo de formação continuada de professores da Es-
cola do Campo.

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CARVALHO, L. C.; SILVEIRA, M. N. da • Formação continuada de professores das escolas do campo...

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Elizeu Clementino (Orgs.). Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Ale-
gre: EDIPUCRS, 2006, p. 135-147.

127
APRENDENDO UMA CULTURA DE PAZ:
diálogos no amor e na esperança
para “Ser Mais”
DORNELES, Tatiana Poltosi1
SILVA, Daniele Mallmann da2

Abrindo os diálogos
A temática cultura de paz remete-nos a ideia de humanização e
(re)humanização dos(as) educadores(as) em conjunto com os(as) educandos(as),
como condutores de seus passos/sonhos, buscando a inteireza do ser inacabado
e consciente do seu inacabamento, mas semeador da curiosidade/motivação
na busca pelo “ser mais” (FREIRE, 2011). É necessário, antes de qualquer
coisa, que haja vontade/inquietação, para que ocorra um processo de intera-
ção e reciprocidade entre educador(a) e educando(a). Ao analisar os princípios
da cultura de paz verificam-se os desafios para a auto(trans)formação, a neces-
sidade de reconhecimento e reflexão sobre os valores humanistas para a cons-
trução de uma cultura de paz, baseada no diálogo e na escuta, transformando
a teoria em prática. Por isso, o trabalho desenvolvido analisa o discurso produ-
zido sobre a cultura de paz na escola e os valores humanistas para o desenvol-
vimento de uma práxis educativa humana sob uma ótica freireana.
A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica que dialoga de forma
interativa com a hermenêutica-dialética para a construção do conhecimento a
partir da abordagem qualitativa. O estudo utilizou como instrumentos da in-
vestigação periódicos científicos, teses, dissertações e artigos, compreenden-
do, interpretando crítica e reflexivamente a bibliografia e os principais teóri-
cos. O artigo foi construído a partir do conceito de cultura freireano, seu per-

1
Mestra em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria e graduada em Direito pela
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões – Câmpus Santiago. Professora e
Advogada. Integrante do Grupo de Pesquisa Dialogus: Educação, Formação e Humanização
com Paulo Freire (UFSM). E-mail: tatianapd@gmail.com.
2
Acadêmica do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa
Maria. Bolsista CNPq pelo projeto de pesquisa: Humanização e Cidadania na Escola: Diálogos
com Professores. Participante do Projeto de Extensão Hora do Conto: meninos e meninas
lendo o mundo e a palavra. Integrante do Grupo de Pesquisa Dialogus: Educação, Formação e
Humanização com Paulo Freire (UFSM). E-mail: daniele.mallmann@hotmail.com.

128
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

curso, a escola e os valores, atitudes e padrões que inspiram a paz por meio de
atitudes reflexivas e proativas para o desenvolvimento humano em sua inteire-
za, tecendo discussões sobre a importância da cultura de paz na escola a partir
de uma análise dialógica da bibliografia na busca por uma formação sensível,
a partir da incompletude humana e a construção de atitudes valorativas em
prol das relações sociais.

Cultura de Paz: a construção incessante da Justiça Social


A cultura é referenciada na obra de Paulo Freire como uma atividade
humana que transforma, ensina, integra, supera e liberta, tendo como eixo os
Círculos de Cultura, momento da educação libertadora, construindo o fazer e
os sujeitos “aprendentes”. Ao se falar em cultura, não é possível limitar sua
conceituação, mas sempre constituí-la como algo em perene transformação,
especialmente, no relacionar-se com o outro, podendo ser expressa nos modos
de agir, pensar, interpretar e atribuir sentido à palavra e ao mundo. Para Henz
(2003), a cultura é o “processo de humanização do mundo e do ser humano”,
sendo aquilo que o ser humano objetiva, intersubjetiva e envolve em suas ativi-
dades.
Informações da UNESCO reportam datas importantes na promoção da
paz, destacando-se a Conferência Internacional da Paz em Haia, no ano de
1899, a qual objetivava evitar a guerra, resolver as crises e elaborar regras de
convivência para os países. O evento não evitou a Primeira Guerra Mundial e,
logo, foi criada a Liga das Nações, em 1919, para ser a mediadora em casos de
conflitos internacionais. Em face da parca adesão, acabou por eclodir a Se-
gunda Guerra Mundial. Nesse momento surge a ONU, juntamente com sua
agência especializada para a educação, a ciência e a cultura, a UNESCO que
atualmente vivencia uma linha neoliberal de atuação. Os integrantes da ONU
estão unidos em torno de um tratado internacional com direitos e deveres,
denominado Carta da ONU.
A criação da UNESCO ficou marcada por seu preâmbulo, ao destacar
como missão a construção da paz: “Como as guerras se iniciam nas mentes
dos homens, é na mente dos homens que as defesas da paz devem ser constru-
ídas”. E ainda: “O propósito da entidade é contribuir para a paz e a segurança,
promovendo cooperação entre as nações por meio da educação, da ciência e
da cultura, visando a favorecer o respeito universal à justiça, ao estado de di-
reito e aos direitos humanos e liberdades fundamentais afirmados aos povos
do mundo” (NOLETO, 2003, p. 11).
Em 1995, a UNESCO canalizou todos seus esforços para a cultura de
paz, com um projeto transdisciplinar denominado “Rumo à Cultura de Paz”
(1996/2001). Assim, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1997, pro-

129
DORNELES, T. P.; SILVA, D. M. da • Aprendendo uma cultura de paz

clamou o ano de 2000 como o Ano Internacional da Cultura de Paz, marcan-


do o início da mobilização mundial (NOLETO, 2010, p. 11). Em 1998, foi
proclamada a Década Internacional para a Cultura de Paz e Não-Violência
para as Crianças do Mundo, no período de 2001 a 2010, pela Resolução n.
53/25, a qual refere: “[...] uma cultura de paz e não-violência promove respei-
to pela vida e dignidade de todos os seres humanos, sem preconceito ou discri-
minação de qualquer espécie [...]”.
Explicitando a cultura de paz, Noleto referencia que:
É uma cultura baseada em tolerância e solidariedade, uma cultura que res-
peita todos os direitos individuais, que assegura e sustenta a liberdade de
opinião e que se empenha em prevenir conflitos, resolvendo-os em suas fon-
tes, que englobam novas ameaças não militares para a paz e para a seguran-
ça, como a exclusão, a pobreza extrema e a degradação.
Substituir a secular cultura de guerra por uma cultura de paz requer um
esforço educativo prolongado para modificar as reações à adversidade e cons-
truir um modelo de desenvolvimento que possa suprimir as causas de confli-
to. No campo do desenvolvimento econômico é preciso passar da economia
competitiva de mercado para um modelo de desenvolvimento mútuo e sus-
tentável, sem o qual é impossível alcançar uma paz duradoura.
E falar em cultura de paz é falar dos valores essenciais à vida democrática.
Valores como igualdade, respeito aos direitos humanos, respeito à diversida-
de cultural, justiça, liberdade, tolerância, diálogo, reconciliação, solidarie-
dade, desenvolvimento e justiça social (NOLETO, 2003, p. 11-12).
Na definição da ONU, a cultura de paz é: “[...] um conjunto de valores,
atitudes, comportamentos e modos de vida que rejeitam a violência e previ-
nem os conflitos, atacando suas causas para resolver os problemas através do
diálogo e negociação entre indivíduos, grupos e nações” (Resoluções da ONU
A/RES/52/13 e A/RES/53/243). Assim, a construção da cultura de paz está
intrinsecamente ligada à educação, reconhecendo a UNESCO que a paz é
elemento indispensável para a elaboração dos saberes e o sucesso do processo
ensino-aprendizagem. A escola é, reconhecidamente, o espaço privilegiado
para a formação do(a) cidadão(ã) consciente e responsável, no sentido de
(re)estabelecer princípios e resgatar os valores universais.
A cultura de paz assegura que os conflitos, inerentes ao relacionamento
humano, sejam resolvidos de forma não violenta, com base em valores como:
ética, rigorosidade, autonomia, curiosidade, bom senso, criticidade, boniteza,
igualdade, respeito, afetividade, diversidade, justiça, liberdade, tolerância, hu-
mildade, diálogo, reconciliação, segurança, generosidade, comprometimento,
consciência, escuta, empatia, alegria, esperança, reconhecimento, exemplo e
solidariedade. Segundo a Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura
de Paz das Nações Unidas (1999), a paz não é apenas a ausência de guerra,
mas um processo de participação positiva e dinâmica, que incentiva o diálogo

130
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

e resolve o conflito, num espírito de compreensão e cooperação. No enfoque


dos conflitos constrói-se a possibilidade de um espaço com ações que permi-
tam restabelecer, restaurar e valorizar o consenso dos envolvidos e assim as-
cender a um ambiente de paz, por meio do diálogo, da amorosidade, da tole-
rância, da negociação e da mediação.
Em tal contexto surgem diversos saberes necessários para a promoção
da cultura de paz, destacando-se a comunicação não violenta como base da
práxis educativa. Esta linguagem pode ser empregada em qualquer espaço, em
qualquer diálogo e em qualquer momento. É um instrumento relacionado di-
retamente com a cultura de paz, sendo citada como uma de suas fórmulas:
Em síntese: a cultura da paz baseia-se na criação de padrões de comporta-
mento e recursos de comunicação não-violentos. O exercício de tolerar as
diferenças começa dentro da própria família, na arte do convívio entre as
pessoas de idades, temperamentos, desejos e necessidades diversas. A busca
do convívio pacífico na família é uma contribuição muito importante para a
construção da paz no mundo. A educação, na família e na escola, é o cami-
nho fundamental para a construção da cultura de paz, ao fortalecer a crença
de que a paz é extremamente importante para a humanidade, ao criar uma
mentalidade de não-violência e de participação na comunidade em favor da
paz (MALDONADO, 2006, p. 113).
A comunicação não violenta propicia o resgate de valores fundamentais
para os(as) educandos(as) e educadores(as), fomentando a escola como espa-
ço de aprendizagem e de proteção. As práxis educativas podem proporcionar
a aproximação dos sujeitos, ser elo entre escola e família, relação desgastada e
fonte de reclamação, o distanciamento da família do ambiente escolar. Idealiza-
se muito os(as) educadores(as), mas há a necessidade de reconhecê-los(as) como
seres humanos, os quais se alimentam das relações que estabelecem com outras
pessoas. Assim, o conflito como um fenômeno que atinge os relacionamentos
em diversos níveis agride intensamente os envolvidos, ocasionando nos(as)
educadores(as) a desmotivação para o trabalho, tão frequentemente referida.
O Manifesto 2000 por uma Cultura de Paz e Não Violência, redigido
por alguns dos ganhadores do Prêmio Nobel da Paz, entre eles Norman Bor-
laug, Nelson Mandela e Dalai Lama, que estavam em Paris para as comemo-
rações do 50º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
objetivava que o novo milênio fosse recebido com esse marco diferenciado no
comportamento de cada indivíduo, que se comprometeria a praticar e fomen-
tar os princípios de respeitar a vida, rejeitar a violência, ser generoso, ouvir
para compreender, preservar o planeta e redescobrir a solidariedade. Tal docu-
mento assume o compromisso de ajudar a forjar um mundo mais digno e har-
monioso, afirmando ser da responsabilidade de cada ser humano traduzir os
valores, as atitudes e os padrões de comportamento que inspiram a paz.

131
DORNELES, T. P.; SILVA, D. M. da • Aprendendo uma cultura de paz

A ação transformadora da educação permite:


[...] às pessoas descobrirem as estruturas violentas e as prepara para a ação
transformadora. Utilizando o termo popularizado por Paulo Freire – um
dos principais educadores que os pesquisadores da paz utilizam em suas
análises da educação – o objetivo da EP é conscientizar as pessoas sobre a
violência que sofrem e cometem. O que significa justamente tornar-se cons-
ciente de uma realidade sobre a qual se estava inconsciente até então devido
à violência estrutural (RABBANI, 2003, p. 73).

A importância do convívio social reporta à necessidade dos(as)


educadores(as) estarem atentos(as) às atitudes que permitem a mediação para
a transformação de comportamentos dos(as) educandos(as) e da comunidade
escolar, por meio de programas permanentes de formação de educadores(as)
que assegurem conhecimentos, conteúdos, reflexões e vivências necessárias
para a prática pedagógica da interdisciplinaridade da educação para a paz.
Isso deve ocorrer numa construção de todos os envolvidos no processo edu-
cacional, estabelecendo o diálogo, a reflexão e uma prática dirigida à satisfa-
ção das necessidades e interesses dos(as) educandos(as) e educadores(as)
(RABBANI, 2003, p. 75).
O processo educativo para a paz enfatiza a dimensão humanizadora da
educação (NOLETO, 2003, p. 146), abrangendo a identificação de estratégias
que viabilizem a sua efetivação na prática cotidiana. Rabbani (2003, p. 64)
afirma que educar para a paz é “educar sobre a paz e em paz”, visto que a
primeira só é possível com a segunda. Educar para a paz constitui a existência
de relações de diálogo que favoreçam o intercâmbio de reflexões e a prática
dirigida à satisfação das necessidades e interesses de educadores e educandos.
É evidenciada pela UNESCO a necessidade da construção da cultura
de paz através de práticas educativas. Na obra “Violência nas escolas” (ABRA-
MOVAY & RUA, 2004) é realizada a reflexão crítica voltada à relevância da
pesquisa e da prospecção para o tema através da formação docente e dos qua-
tro pilares do conhecimento, reconhecidos pela Comissão Internacional sobre
Educação para o Século XXI: aprender a conhecer, a fazer, a viver juntos e a
ser (DELORS, 2001, p. 92), impondo-se novos desafios aos saberes, em espe-
cial sobre o ensino e a incorporação da “ética do gênero humano” e do “co-
nhecimento humano” (MORIN, 2011).
Os quatro pilares da educação propostos por Delors (2001, p. 92) apon-
tam para um ideal de educação. É claro que a regra difere muito do conceito.
Sabe-se que, no Brasil e no mundo, ainda se luta para o ingresso de crianças e
adolescentes na escola, porque ainda existem dificuldades no acesso à educa-
ção. E, quando se consegue o acesso e a permanência, nem sempre há o suces-
so no processo de aprendizagem e a sua conclusão. De fato, o ensino formal

132
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

ainda está bastante atrelado aos dois primeiros pilares, aprender a conhecer e
aprender a fazer. Os outros dois pilares ainda continuam sendo ideais para a
maioria das escolas.
O aprender a conhecer pode ser definido como o fornecimento de meios
pela escola para que cada um possa compreender o mundo: “Aprender para
conhecer supõe, antes de tudo, aprender a aprender, exercitando a atenção, a
memória e o pensamento” (DELORS, 2001, p. 92). O aprender a fazer consis-
te em ensinar ao(a) educando(a) como por em prática os conhecimentos que
adquiriu, preparando-o(a) para o trabalho. E, num cenário que cada vez mais
exige habilidades que vão além do fazer, também é fundamental a inserção
dos ensinamentos relacionados à capacidade de gerir, resolver conflitos, traba-
lhar em equipe, entre outros que acabam ampliando significativamente esse
pilar. O aprender a viver juntos, a viver com os outros, é o aprendizado mais
fundamental quando se fala na construção da cultura de paz, proporcionando
o surgimento e o desenvolvimento de sentimentos como a empatia e o respeito
ao outro.
Além da busca do respeito de uns pelos outros dentro da escola, valioso
é também desenvolver o espírito de união dos(as) educandos(as) em prol da
comunidade, isto é, o espírito de solidariedade através de ações sociais que
ultrapassam os muros da escola e que faz com que brotem sentimentos de
pertencimento e cidadania. Tal processo perpassa a formação permanente
dos(as) educadores(as), sendo fundamental que estimulem os(as) educandos(as)
a disseminar temas relacionados à educação para cidadania.
O aprender a ser, último dos pilares, fala da liberdade de pensamento,
imaginação, capacidade de sonhar, de transcender e ser criativo. Este conheci-
mento pode ser estimulado por meio de atividades ligadas à arte, como teatro,
música, poesia, e que servirá para o fortalecimento do(a) cidadão(ã) capaz de
se comunicar e de discernir. Esse ideal de aprendizagem, em seus quatro ní-
veis, transmite a essência do conceito de escola como um espaço de aprendiza-
do e de proteção. Um ambiente de paz e acolhimento só é possível se houver
harmonia entre todos os agentes educacionais, por isso a importância da qua-
lificação profissional dos(as) educadores(as) a partir de práxis humanistas como
alternativa para o (re)estabelecimento da paz no ambiente escolar.
Se a escola é lugar de formação e informação das crianças e dos jovens, a
formação profissional dos(as) educadores(as) representa o elemento fundamen-
tal no processo de construção do conhecimento. Cuidar da formação profissio-
nal, buscar novas alternativas, desconstruir conceitos, através da proposta hu-
manizadora precisa ser o objetivo de todo o(a) educador(a). Assim, ao buscar a
formação cidadã, através de questões ético-valorativas, que perpassam as práxis
educativas e a construção da cultura de paz na escola, com o entrelaçamento de

133
DORNELES, T. P.; SILVA, D. M. da • Aprendendo uma cultura de paz

narrativas e olhares, busca-se o conhecimento, o percebido, o expresso e o silen-


ciado, construindo a visão do ser humano como um todo.
Observa-se a dificuldade em esperar dos(as) educadores(as) comporta-
mentos marcados por autocontrole, serenidade, atitude positiva, aceitação
dos(as) educandos(as) com dificuldades comportamentais, evitando os con-
frontos, mantendo-os(as) em um ambiente de cooperação, respeito e amizade.
O afeto e a atenção individualizada favorecem a empatia e facilitam o proces-
so ensino-aprendizagem. Esse tipo de relacionamento necessita prevalecer entre
ambas as partes. A profissão docente representa, na atualidade, sinônimo de
estresse, este percebido como sentimento agonizador e não desejável, resulta-
do da percepção que a pessoa tem das demandas de determinada situação.
Pesquisas que analisam a qualidade de vida dos(as) educadores(as) evidenciam
que, no Brasil, 92% destes profissionais estão estressados (FANTE, 2005, p.
204). Pode-se dizer que esse dado alarmante demonstra que os(as)
educadores(as) estão adoecidos(as) e adoecendo as pessoas com quem convi-
vem, perdendo a qualidade de vida pessoal, familiar e profissional, sendo esta
uma questão de saúde pública.
É fundamental que as autoridades sensibilizem-se e considerem a ques-
tão da saúde emocional dos(as) educadores(as) e dela cuidem. Nesse intento, é
necessário considerar fatores causais como a baixa remuneração, a desvalori-
zação da categoria, a jornada excessiva de trabalho, o grande número de
educandos(as) por sala, a falta de verba para capacitação e pesquisa, a falta de
tempo para estudos e preparo das aulas, bem como para descanso e lazer, além
de diversas outras dificuldades enfrentadas no cotidiano escolar. Tal situação
é refletida na prática educativa, assim definida por Freire:
Quanto mais penso sobre a prática educativa, reconhecendo a responsabili-
dade que ela exige de nós, tanto mais me convenço do dever nosso de lutar
no sentido de que ela seja realmente respeitada. O respeito que devemos
como professores aos educandos dificilmente se cumpre, se não somo trata-
dos com dignidade e decência pela administração privada ou pública da
educação (FREIRE, 2013, p. 94).
Para Camacho (2001, p. 129), a escola brasileira estaria passando por
crise de socialização, necessitando, assim, revisitar os valores e os conceitos
formadores da educação, inclusive o referente à disciplina. A autora conclui
que as ações são fundamentais para direcionar tanto a alteração no processo
pedagógico quanto às relações estabelecidas entre os atores da comunidade
escolar. Tal crise de socialização seria um dos principais fatores responsáveis
pela ocorrência de comportamentos violentos nas escolas. Aliada a ela retém-
se a ideia de que a educação vem passando por crise de identidade, em face aos
deslocamentos sobre o lugar da escola nas representações sociais. Atualmen-

134
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

te, a escola é instada a assumir obrigações que, até então, não eram suas (inclu-
sive em decorrência da demissão familiar) e, correlatamente, forçada a convi-
ver e a enfrentar a violência crescente gerada na sociedade e reproduzida no
âmbito escolar. Defronta-se com a interferência de outros agentes sociais em
sua rotina, sem que compreenda claramente as suas atribuições. Assim, de-
senvolve sentimento de incapacidade e impotência, reforçado pela constata-
ção de que seu processo pedagógico está inadequado e ineficaz para responder
a todos os anseios da sociedade.
A filosofia freireana está ligada à cultura de paz em razão da capacidade
crítica e amorosa com relação à educação, a qual permite a reinvenção dos con-
flitos, estabelece contextos, valoriza a convivência na diversidade, os direitos
humanos e repudia as injustiças nas relações humanas e sociais mais resilientes,
concretizando um projeto de educação voltado ao desenvolvimento sustentável
do planeta (SALLES FILHO, 2009). Ana Maria Freire indica como fundamen-
tal o pensamento de Paulo Freire para a paz através do diálogo que busca o
saber fazer entre si e com o mundo, o que referencia o inédito-viável (2006, p.
392); tal palavra-ação advém da acepção freireana mais rigorosa, empregada
para expressar o afeto, a cognitividade, a política, a epistemologia e a ética.
Para Freire, a paz reflete o processo de transformação social a partir da
educação, na qual seria possível instaurar a justiça, promover a igualdade e o
respeito. Ana Maria Freire destaca na sua pesquisa que a postura de Freire o
levou à indicação ao Prêmio Nobel da Paz, no ano de 1993, reverenciando sua
coerência, generosidade, mansidão e respeito, especialmente, pela luta para a
paz através da compreensão de que a educação gera a autonomia e a liberdade
(FREIRE, 2006, p. 388). No ano de 1986, Freire foi contemplado com o Prêmio
UNESCO da Educação para a Paz; seu discurso repercutiu ao refletir que:
[...] aprendi sobretudo que a Paz é fundamental, indispensável, mas que a
Paz implica lutar por ela. A Paz se cria, se constrói na e pela superação de
realidades sociais perversas. A Paz se cria, se constrói na construção inces-
sante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de
educação para a Paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças o
torna opaco e tenta miopizar as suas vítimas (FREIRE, 2006, p. 388).
A postura de Freire durante sua existência é referenciada por sua obra,
demonstrando que o discurso é compatível com a prática, que o amor, o res-
peito e a fé alimentam o humanismo, a partir do diálogo, constituindo o hu-
manismo como primordial na constituição de uma cultura de paz. O entendi-
mento freireano é de que a paz só pode se instaurar por meio da educação
crítico-conscientizadora, referenciando que, desde a mais tenra idade, cabe o
compromisso de formar os(as) educandos(as) na cultura de paz, a partir da cola-
boração, da tolerância, da justiça e da solidariedade (FREIRE, 2006, p. 391).

135
DORNELES, T. P.; SILVA, D. M. da • Aprendendo uma cultura de paz

Ao finalizar a interlocução da pesquisa, novos horizontes se expandem,


fechando-se o ciclo desta leitura de mundo e da palavra, para prosseguir o
diálogo a partir da reflexão perene sobre a formação permanente para a práxis
educativa humanizadora dentro da cultura de paz.

Finalizando a interlocução
e prosseguindo os diálogos
A responsabilidade de ensinar e desenvolver propostas pedagógicas para
a formação da cultura de paz necessita ser assumida com rigor por todos os
profissionais da área de educação, com a promoção de estratégias pedagógicas
que possibilitem com o(a) educando(a) a construção de valores em sua vida
escolar, familiar e social, constituindo as práticas de ensino do cotidiano dos
profissionais da educação para efetivar o ensino e a vivência da paz. Entende-
se por valores a constituição de um conjunto de qualidades que distinguem os
seres humanos independentemente de credo, raça, condição social ou religião,
estando presentes em todas as filosofias, como inerentes à condição humana,
dignificando e ampliando a capacidade de percepção do ser consciente/inaca-
bado, que tem no pensamento e nos sentimentos sua manifestação palpável e
aferível. São qualidades/valores consideradas(os) fundamentais que unificam
e afastam o individualismo, enaltecendo a condição humana e dissolvendo
preconceitos e diferenças.
Há compreensão de que é fundamental que a escola assegure o desen-
volvimento de valores para a paz com auxílio de programas sistemáticos em
que as propostas sejam interdisciplinares e não componham temáticas isola-
das com os conteúdos sendo discutidos em uma só situação ou disciplina. A
paz é alcançada por vivências que assegurem a reflexão e as tomadas de deci-
sões, permitindo ao educando discernir sobre o melhor comportamento dian-
te dos conflitos ou situações que requerem atitudes e a promoção de valores,
tais como justiça, diálogo, respeito, cooperação, solidariedade e demais senti-
mentos que resultem na harmonia social.
A cultura de paz é aquela que permite às pessoas que vivem ou se depa-
ram com estruturas violentas modificá-las com ações transformadoras/moti-
vadoras, ou seja, desperta para a realidade sobre a qual se estava inconsciente
até então, devido à violência estrutural ou pelo silêncio de sua leitura de mun-
do. A responsabilidade de ensinar para a paz consiste em estruturar um pro-
cesso educativo/amoroso de modo que as aulas atendam às necessidades
dos(as) educandos(as), dando-lhes liberdade para aprender por meio da rela-
ção direta com afeto e diálogo com os(as) educadores(as) e de apoio e coopera-
ção. Enquanto a escola doutrinar para a competição, para o individualismo e
o egoísmo, é impossível falar da paz, entendida por esses(as) educadores(as)

136
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

como respeito à dignidade humana ou à sua integridade física e psíquica, as


quais referem, respectivamente, à eliminação da violência física e do autorita-
rismo, demonstrando as carências e os caminhos para a efetivação de um pro-
cesso de ensino que objetiva a cultura de paz.
No processo educativo isso se torna possível na consideração de que no
conflito pode-se construir a paz, no sentido de promover o desenvolvimento
integral da pessoa, tornando o educando sensível ao outro, constituindo um
senso de responsabilidade/tolerância com respeito aos direitos e liberdades.
Construir um ambiente de paz é impedir que as violências e suas raízes se
constituam dentro da escola, por meio da mudança de comportamento que
visa a construção de atitudes valorativas em prol das relações sociais, familia-
res e educacionais. E, ainda, a formação docente estabelece a responsabilida-
de de transformar em realidade os valores/sonhos, as atitudes e os comporta-
mentos que promovam a cultura e a paz.
A constituição de valores humanistas para a cultura de paz passa pela
formação permanente de educadores(as) conjuntamente com os(as)
educandos(as), para que estes saibam dialogar, negociar, argumentar, coope-
rar, a partir da esperança, para a concretização do sonho possível, da socieda-
de justa, igualitária, ética e, essencialmente, amorosa. Em razão disso, desta-
ca-se a importância da formação como política pública e da práxis educativa
como promotora da escola democrática, inclusiva e feliz.

Referências
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138
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

A CONTRIBUIÇÃO DA AFETIVIDADE
ENTRE EDUCANDOS E EDUCADORES
PARA O DESENVOLVIMENTO DE
SERES SOLIDÁRIOS E CRIATIVOS
MACHADO, Mabel Brum Pinheiro1
MENEGHETTI, Vânia Teresa2

Primeiras palavras
A ideia de escrever este artigo foi gestada a partir das discussões do
grupo Dialogus: Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire, es-
pecialmente no período de preparação para o XVII Fórum de Estudos: Leitu-
ras de Paulo Freire. O trabalho coloca em discussão o tema da afetividade, da
amorosidade, nas relações estabelecidas entre educandos e educadores, e entre
os próprios educandos.
Não estamos deixando de considerar o fato de que a escola voltada para
as classes populares tem enfrentado diversas dificuldades, e muitos teóricos
costumam falar em crise na educação (NASCIMENTO et al., 2013, p. 7), po-
rém, sem adotar uma visão ingênua, perguntamo-nos se, mesmo diante desse
contexto, seria possível criar vínculos com os alunos, desenvolver a sensibili-
dade e a criatividade e, desse modo, realizar um trabalho que contribua para
elevar a autoestima das crianças e dos próprios professores.
Neste trabalho, abordaremos algumas ideias de Paulo Freire sobre a im-
portância da amorosidade nas relações que se estabelecem na escola, como
fator de estímulo para o processo de aprendizagem. Consideramos interessan-
te elencar alguns pontos em comum com as contribuições da filosofia, através
de Platão e Nietzsche. Apesar de esses filósofos divergirem em alguns pontos,
conseguimos extrair alguns referenciais relevantes para nossa discussão, tais
como a necessidade de criar um espaço de diálogo em sala de aula, estimular a

1
Graduada em Filosofia (UFSM), Especialista em Ética e Filosofia Política (UCS). E-mail:
mabelbrum@gmail.com.
2
Graduada em Língua Portuguesa e Inglesa e Respectivas Literaturas (UFSM), Especialista em
Gestão Educacional (UFSM), Mestranda em Políticas y Administración de la Educación
(UNTREF, Buenos Aires), Professora municipal em Santa Maria, RS. E-mail:
vaniatmeneghetti@gmail.com.

139
MACHADO, M. B. P.; MENEGHETTI, V. T. • A contribuição da afetividade entre educandos e educadores...

criticidade, a reflexão e o desenvolvimento da capacidade de criar a partir dos


conhecimentos trabalhados.
Para iniciarmos nossas reflexões, analisaremos alguns aspectos referen-
tes ao conceito de amor em Platão e à visão de educação expressa por Nietzs-
che e Paulo Freire, estabelecendo relações com atividades e respectivos resul-
tados nas práticas de uma das autoras deste trabalho. As atividades foram
desenvolvidas no 1º semestre de 2015, com alunos de anos iniciais de uma
escola pública de ensino fundamental de Santa Maria, RS.

O amor e a incompletude do ser humano


O que nos leva a fazer ou deixar de fazer alguma coisa? O que nos move?
Seria o amor? Mas o que é o amor? Esse sentimento parece estar em nossas
ações e escolhas diárias, juntamente com vários outros sentimentos e necessida-
des que não se excluem, mas formam e transformam o ser humano de um modo
geral. O amor é um dos sentimentos que deveriam nos mover ou nos movem ao
escolhermos ser professor, educador, “ensinante”, em um contínuo aprender.
Platão, em seu diálogo “O Banquete”, faz algumas considerações sobre o
amor, ali retratado como o deus Eros – um gênio, um meio-termo entre mortal e
imortal, filho de Poros, o Esperto, e de Penia, a Pobreza. Por apresentar caracte-
rísticas do pai e da mãe, Eros oscila “entre a sabedoria e a tolice”, “dirige sua
atenção para tudo que é belo e gracioso; é bravo, audaz, constante e grande
caçador; está sempre a deliberar e a urdir maquinações, a desejar e a adquirir
conhecimentos, filosofa durante toda sua vida” (PLATÃO, 1954, p. 159).
Afetividade, amorosidade: o amor nos remete a pensar sobre as relações
humanas. Um educador que não saiba se relacionar com seus próprios senti-
mentos e com outras pessoas que também agem através de seus sentimentos,
de suas emoções, da razão, dificilmente terá a oportunidade de conhecer seus
educandos e importar-se com eles. “Quem não se considera incompleto e in-
suficiente, não deseja aquilo cuja falta não pode notar” (Idem, p. 165). Um
professor só o é quando entende que, para sê-lo, tem que notar o educando e
dar conta de que seu saber é “um” saber e não “o” saber totalizado, acabado e
cristalizado.
Não raras vezes, esse exercício é difícil para o educador. Parece ser mais
fácil separar, categorizar, distinguir os sentimentos da razão, estabelecer avalia-
ções. Estamos a todo o momento formulando juízos e categorizando pessoas,
coisas e fatos baseando-nos, como já mencionado, em (pré)conceitos também
categorizados.
O ato de dialogar com o outro, ao contrário, abre a possibilidade de
realizar o processo inverso: reflexionar sobre nossos conceitos, nossas práti-

140
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

cas. A reflexão, segundo Platão, põe em movimento o conhecimento que se dá


no diálogo, a base de seu método:
Para que usamos a reflexão? Apenas para reter um conhecimento que nos
escapa? O esquecimento nada mais é do que a fuga de um conhecimento – e
a reflexão, pondo uma nova recordação no lugar da que se foi, salva o co-
nhecimento, dando a impressão de que ele permanece sempre o mesmo (Idem,
p. 164).

É dialogando que se chega ao conhecimento. Nesse sentido, situa-se a


amorosidade para Paulo Freire. O amor, que está contido no diálogo estabele-
cido entre o educador e o educando, é gerado através da incompletude de um
e de outro. “Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo” (FREI-
RE, 1983, p. 94). O discurso regido pelo amor estabelece o respeito entre todos
os agentes que se envolvem com a educação, entre eles e o conhecimento cons-
truído através da história, e o conhecimento que parte dos próprios indivíduos
envolvidos no processo dialógico.
Entretanto, o amor que o educador tem pelo educando não é permissivo,
mas comprometido com o ser humano e com a construção do conhecimento
dentro e fora do ambiente escolar. Freire é enfático em destacar que não se
pode confundir amorosidade com licenciosidade, pois a disciplina intelectual
é necessária ao processo de aprendizagem, e o professor deve saber exercer a
sua autoridade.
Ao amor, ao diálogo, Freire acrescenta a fé. “Não há também, diálogo,
se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e refazer. De
criar e recriar. Fé na sua vocação de Ser Mais, que não é privilégio de alguns
eleitos, mas direito dos homens” (FREIRE, 1983, p. 95).
Nietzsche (2012), por outro lado, pensa a educação do seu tempo e con-
sidera o fato de ela não ser autêntica, de ser desvinculada das necessidades
individuais do educando, de não desenvolver a criatividade, de não ensinar a
pensar: “O que as escolas superiores sabem fazer efetivamente é um adestra-
mento brutal a fim de tornar útil e explorável ao serviço do Estado uma legião
de jovens no tempo mais curto possível” (p. 52). O autor está se referindo às
escolas superiores, porém a preocupação de Nietzsche, desde o século XIX,
bem poderia ser estendida aos dias atuais, e em todos os níveis.
Se analisarmos os documentos que orientam o trabalho pedagógico das
escolas, normalmente são elencados, como objetivos, elementos que fazem refe-
rência ao desenvolvimento do pensamento crítico, à formação do cidadão res-
ponsável, solidário, entre outros atributos. O nível de envolvimento do trabalho
pedagógico em direção à consecução desses objetivos mereceria uma reflexão.
Nietzsche (2012) já afirmava que a escola não se limita a uma reprodu-
ção de seres iguais. A criação seria um elemento fundamental. O fato de pen-

141
MACHADO, M. B. P.; MENEGHETTI, V. T. • A contribuição da afetividade entre educandos e educadores...

sar por si e de construir um conhecimento é até hoje uma provocação que faz
com que nos questionemos em nosso trabalho como educadores. Afinal, afir-
ma Nietzsche, é preciso:
Aprender a pensar: em nossas escolas se perdeu completamente a noção
disso. Até nas universidades, até entre os sábios da filosofia, a lógica, en-
quanto teoria, prática e ofício, começa a desaparecer. Leiam os livros ale-
mães; nem sequer se recorda neles, em nenhum deles, que para pensar ne-
cessita-se uma técnica, um plano de estudos, um magistério; que a arte de
pensar tem que ser aprendida como qualquer espécie de dança (p. 54).
É possível que uma leitura apressada possa dar a impressão de que, tal-
vez, Nietzsche fosse extremamente crítico com relação a tudo e a todos, sem
apontar caminhos. Entretanto, alunos seus deixaram relatos demonstrando
que o filósofo tinha por hábito lançar questionamentos e dar ênfase ao desen-
volvimento da criticidade,
[...] procurava fazer nascer neles o interesse pelo assunto tratado, desenvol-
ver o respeito pelas grandes figuras do passado, pelos grandes problemas da
existência humana e pela seriedade no pensar (SCHULZ, 2007, p. 24).

Segundo Schulz (2007), a visão de Nietzsche é que somos todos condi-


cionados de alguma forma, daí a crítica que propõe aos métodos educativos
de seu tempo, à educação ocidental. Para ele, os professores deveriam com-
portar-se como filósofos. A educação teria a tarefa de propor reflexões sobre a
cultura construída ao longo do tempo. “Logo, o modelo de educação aprego-
ado pelo filósofo é humanista, e deve permitir que o indivíduo libere seus instin-
tos, suas habilidades, talentos” (Idem, p. 28) Essa capacidade de refletir,
indagar-se, constitui a essência do filosofar, segundo Platão. Freire, como
Nietzsche, também ressalta a questão da rigorosidade e acrescenta ainda a
importância da humildade, da confiança: “A confiança vai fazendo os sujeitos
dialógicos cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo” (FREIRE,
1983, p. 96).

Um pouco da experiência...
Para honrar em primeiro lugar a minha arte, (...) começarei por declarar que
este deus é tão excelente poeta, que pode até fazer poetas daqueles a quem
ama. E é por isso que todos – mesmo os que antes eram as pessoas mais
prosaicas deste mundo – todos se tornam poetas quando Eros os ataca (PLA-
TÃO, 1954, p. 149).

O planejamento das atividades realizadas com as crianças por uma das


autoras deste trabalho apresenta relação com a afirmação de Platão. O objeti-
vo do trabalho era observar aspectos relacionados à interação entre educandos

142
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

e educadora, e também entre eles próprios; investigar as possibilidades de diá-


logo em sala de aula e os fatores que poderiam influenciar positivamente na
construção de uma relação mais solidária e respeitosa entre as crianças, além
de desenvolver a criatividade, especialmente na produção de textos. Esses as-
pectos foram discutidos posteriormente com a colega para a redação final do
trabalho, realizada em conjunto.
As atividades foram organizadas e desenvolvidas pela professora Vânia
numa escola municipal de ensino fundamental da zona sul de Santa Maria-
RS, onde trabalha com alunos de anos iniciais, enquanto as professoras titula-
res das turmas têm horário reservado para planejamento. O planejamento acon-
tece um dia por semana, sendo o 2º ano nas terças e o 4º ano nas quintas-
feiras. Como há 4 turmas em cada ano, nesses dias há 4 professores que se
revezam atendendo os alunos. A cada ano, conforme a disponibilidade, a equipe
gestora organiza os professores para as aulas, que podem ser de Educação
Física, Artes, Informática, Inglês, Literatura ou Reforço Escolar. Neste ano,
com a falta de professores, houve dificuldade em pôr em prática essa forma de
organização com as turmas de 3º ano, nas quartas-feiras e as turmas de 2º e 4º
ano tiveram o início dessas aulas somente a partir do mês de abril.
Ao ser organizado o ano letivo, foi solicitado aos professores que
atuariam no planejamento que enfatizassem a produção de texto, uma das
grandes dificuldades dos alunos. Sendo assim, no planejamento da professora
Vânia foram estabelecidos como objetivos desenvolver a sensibilidade; esti-
mular relações mais saudáveis e redução de situações de conflito; propor ativi-
dades que desenvolvessem a criatividade, a colaboração, a sensibilidade e esti-
mulassem a motivação dos alunos. Segue relato da professora Vânia:
Desenvolvi várias atividades com as turmas em que trabalhei, a fim de ir
percebendo as preferências, as habilidades e o nível de domínio do código
linguístico pelos alunos, bem como a maneira como se relacionavam. Desta-
co as seguintes: leitura de histórias em quadrinhos e livros de literatura in-
fantil e infanto-juvenil, desenho a partir de narrativas, contação de histórias
pela professora, leitura e produção de poemas, ilustração a partir de poe-
mas, leitura e produção de “classificados poéticos”, audição de músicas eru-
ditas e músicas para relaxamento, pintura de mandalas e pesquisa sobre o
significado das cores.
Das três atividades que relataremos a seguir, as duas primeiras, que se
referem à produção de textos, foram realizadas com as turmas de 4º ano e a
última com as de 2º ano. Não faremos relato sobre as turmas de 3º ano, pois
houve um menor número de aulas e não foi possível uma observação mais
sistemática.
A fim de instigar a imaginação das crianças para a produção de texto
poético, foram feitas inicialmente leituras de poemas de autores diversos, como

143
MACHADO, M. B. P.; MENEGHETTI, V. T. • A contribuição da afetividade entre educandos e educadores...

Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros, José Paulo


Paes, Roseana Murray e Mário Quintana. Depois foram feitos exercícios com
rimas e ritmo. Destinamos uma das aulas para isso e também para ilustrar as
folhas impressas com os poemas lidos.
No dia proposto a trabalhar a produção de texto poético, foram distri-
buídas pequenas fichas aos alunos, nas quais eles deveriam iniciar a atividade.
A sugestão era que escrevessem uma palavra sobre algo de que gostassem.
Diante dos olhares inseguros, eram feitas provocações: O que você gosta de
fazer? Com que e com quem você brinca, se diverte? Tem animais? O que
gosta de comer? Onde gosta de passear? Tendo escrito a palavra escolhida, era
sugerido que formassem com ela uma frase curta, que poderiam repetir se
considerassem interessante, e depois poderiam ir acrescentando outras, talvez
uma rima, e ir escrevendo na forma de poema, ou seja, sem precisar ir até o
fim da linha, escrever como eles haviam visto nos poemas lidos anteriormente.
Foram distribuídos pedaços de papel um pouco maiores para quem já quisesse
escrever o texto inteiro.
Observamos que, enquanto alguns escreviam rapidamente, muitos não
conseguiam pensar nada além da frase inicial, então a professora passava nas
classes de cada aluno para orientar, auxiliar, sugerir algum recurso poético.
Como os alunos organizam suas mesas para duplas ou em grupos com quatro
participantes, essa disposição favorecia a colaboração entre as crianças. A pro-
fessora ia conferindo a palavra ou frase de cada um, e os colegas iam dando
sugestões, até finalizar o texto. Em alguns casos em que o grupo não conse-
guia concluir, era escrito o início do texto no quadro, e os colegas davam su-
gestões. E assim surgiram poemas como os que seguem3.

Bola bolo
Bolo bola
Enquanto minha mãe bate bolo
Eu bato bola.

Mamãe larga essa panela


Teus temperos, cravo e canela
Pega uma cor amarela
Vem pintar uma aquarela.

3
Não citaremos os nomes dos autores neste trabalho, uma vez que vários textos foram construídos
de forma praticamente coletiva e correríamos o risco de cometer injustiças.

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Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

É bom jogar
É bom ganhar
Seja Muai tai
Judô, karatê
Quebra de braço
Jogo do bafo
E no computador
A competição
É sempre emoção.

Menina gulosa
Recebe uma rosa
Mas carinha feliz
É quando come Bis.

A família é o amor maior do mundo


O amor e a família estão por todo lado
No Brasil, na Argentina,
No Uruguai e em Santa Catarina.

Parece-nos que o fato de um aluno reconhecer a sua dificuldade de con-


cluir um pensamento, um texto, permite que outros também se reconheçam
como seres em construção, e abre a possibilidade de um trabalho de grupo.
Isso ocorreu com vários poemas. No último citado acima, por exemplo, vários
colegas foram sugerindo lugares possíveis, até que a autora gostou de Santa
Catarina, porque rimou com Argentina. Assim, concordamos com Nascimen-
to, Azevedo e Ghiggi (2013): “Amorosidade e diálogo oportunizam aos indi-
víduos viver em plenitude o processo de humanização e de estabelecimento de
sua presença no mundo e na teia de relações com os demais” (p. 2).
Freire diz que “quanto mais se problematizam os educandos, como seres
no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados” (1983, p. 80).
Portanto, estimular as crianças a buscarem elas mesmas as soluções para um
problema, ainda que seja concluir uma estrofe, pode ser importante para habi-
tuar a trabalhar de forma coletiva e solidária.
A outra atividade também foi realizada com turmas de 4º ano. Os alu-
nos tiveram contato com um novo gênero textual: os anúncios classificados.
Como já tinham noções sobre as características do texto poético, foi fácil per-
ceber o gênero explorado por Roseana Murray nos seus classificados poéticos.
Foram lidos diversos, e os alunos tinham que descobrir o que havia de extraor-
dinário, de mágico, em cada um deles.

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MACHADO, M. B. P.; MENEGHETTI, V. T. • A contribuição da afetividade entre educandos e educadores...

Foi sugerido novamente o trabalho de produção de texto, agora com


anúncios classificados. Cada aluno deveria pensar o que poderia anunciar. No
início, foram surgindo ideias que se aproximavam dos classificados de jornal:
casas, animais perdidos, automóveis. A professora passou a provocá-los para
que soltassem a imaginação: Não, não podia ser um carro comum! Tinha que
pensar em algo “poético”. A maioria logo entendeu e começou a ter ideias
mais originais. Também usou o método colaborativo e surgiram produções,
como as seguintes:

Vende-se um carro que fala


Você terá um amigo para conversar
Numa longa viagem
E escolher, para pescar,
Um rio com uma bela paisagem.

Procura-se um médico
Que saiba fazer mágica
Que tenha uma poção
Para as dores do coração
Quem souber de sua existência
Me avise imediatamente
Que o problema é urgente.

Vendo uma casa com espelhos


Que levam ao paraíso das maravilhas,
Com camas onde você dorme nas nuvens,
Com grama e caminhos que levam para o mar
Se alguém se interessar,
Caso goste,
Meu número é 8888-9999
É só ligar.

Troco uma casa azul cor do mar


Por uma limusine com muito brilho!
Quero que seja rápida,
Que seja grande, com muito espaço,
E boa de usar,
Porque quando eu passear
Andando com ela,
Vão achar que a gente
Quer ir para a passarela!

146
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

Com as turmas de 2º ano era preciso trabalhar com textos mais curtos,
devido ao fato de não estarem totalmente alfabetizados. Foram trabalhados
mais contos, lendas, fábulas, finalizando com desenhos e textos curtos. Os
alunos leram gibis, criaram tiras, cantaram... Também trouxeram suas curiosi-
dades sobre cores e pintaram mandalas. Relataremos as atividades relaciona-
das com a chuva.
Houve um período no início do inverno em que choveu muito e, nesses
dias, vão poucos alunos à aula. Mesmo que os motivos já sejam conhecidos –
ruas intransitáveis, falta de guarda-chuva, dificuldade para secar roupas e cal-
çados, noites mal dormidas, entre outros –, ouvir as crianças proporciona um
conhecimento maior da realidade local, das situações que enfrentam as famí-
lias, onde a maioria das ruas não tem calçamento e muito menos calçadas.
Numa região com várias invasões promovidas por grupos de sem-teto, recur-
sos básicos como água, eletricidade e saneamento são precários ou inexisten-
tes. Em algumas dessas invasões, nem ruas existem, pois as casas são instala-
das no meio do campo. A chuva, por consequência, é sinônimo de problemas
e acaba contribuindo para os altos níveis de infrequência. As professoras reali-
zam atividades normalmente, mas o prejuízo dos que não comparecem é difí-
cil de recuperar.
A professora Vânia relata como se desenvolveram as atividades:
Apesar de a experiência da chuva não ser agradável, tentamos tirar proveito
das condições climáticas. Num desses dias chuvosos, eu teria aula com tur-
mas de alfabetização (2º ano) e há sempre a necessidade de reforçar a grafia
das palavras. Como as professoras titulares estavam trabalhando com os
dígrafos, as palavras chuva, chuvinha, chuvarada, chover, guarda-chuva, se
prestavam muito bem ao momento. Trabalhamos com elas e depois cada
aluno tinha o desafio de “proteger” com um guarda-chuva um personagem
ou grupo de personagens recortado de revistas, jornais. Todos deviam colar
sua figura e desenhar sobre a(s) pessoa(s) um guarda-chuva que fosse do
tamanho suficiente para cobri-las. É de se mencionar que alguns tinham
dificuldade quanto ao tamanho e onde encaixariam o cabo do guarda-chu-
va, e foi necessária uma ajudinha dos colegas ou da professora para que as
personagens “não se molhassem”. Eu havia levado o violão e aproveitei para
propor-lhes que cantássemos a música “Chove chuva”, de Jorge Ben Jor,
cuja letra foi levada já impressa. O texto é curto e possibilitou cantar e de-
pois fazer um exercício de leitura coletiva. Também propus que observas-
sem o ritmo, que podia ser acompanhado com palmas ou batida de dois
lápis, e o grupo acompanhou bem, especialmente o refrão, pois bastava olhar
pela janela e... “Chove chuva, chove sem parar”!

Neste momento não será possível explorar aspectos referentes a outras


atividades desenvolvidas, as quais também propiciaram aliar a reflexão ao tra-
balho lúdico. Isto fica para um outro momento.

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MACHADO, M. B. P.; MENEGHETTI, V. T. • A contribuição da afetividade entre educandos e educadores...

Considerações finais
Iniciamos dizendo que não desejamos aqui adotar uma visão ingênua,
mas investigar possibilidades. Há uma citação em que Freire afirma: “Minha
intenção neste texto é mostrar que a tarefa do ensinante, que é também apren-
diz, sendo prazerosa é igualmente exigente. Exigente de seriedade, de preparo
científico, de preparo físico, emocional, afetivo” (Freire, 1999).
É preciso reconhecer que todos esses aspectos têm a sua importância
quando o professor se depara com muitas turmas, grandes, com uma enorme
diversidade quanto à educação que trazem de casa, quanto ao nível de interes-
ses, de conhecimento, de habilidades, sem contar o elevado número de alunos
em situação de inclusão por serem portadores de necessidades especiais. Os
educadores precisam, sim, ter consciência do quão exigente é seu trabalho,
pois, como diz Platão (1954, p. 197) “é impossível a qualquer pessoa doar
aquilo que não tem, nem ensinar aquilo que não sabe”.
Consideramos, assim, a responsabilidade do professor em manter-se em
condições de saúde necessárias ao exercício da profissão e, ao mesmo tempo,
equilibrado emocionalmente, a fim de poder demonstrar afetividade, bem como
de retribuir o muito de afetividade que recebe em inúmeros abraços, beijos,
desenhos e bilhetinhos. Consideramos ainda a necessidade de que o poder
público e os empregadores no ramo da educação façam cumprir toda legisla-
ção que garanta os direitos do professorado, uma forma de também fazer com
que o educador se sinta necessário e “amado”.
Agostinho Rosas afirma que a criatividade se afasta da ideia de dom e
“passa a ser reconhecida como condição humana decorrente da capacidade de
inteligência” (2013, p. 5). O autor faz um elenco de vocábulos usados por
Paulo Freire, tais como criar, recriar, reinventar e lembra que a proposta freire-
ana se relaciona com uma forma de atuação do homem na sociedade, já que a
educação é instrumento necessário ao processo de libertação humana” (Idem,
p. 13). Nas atividades realizadas, foi possível percebermos o enorme potencial
criativo das crianças, o qual às vezes se encontra adormecido. Esse potencial
precisa ser despertado, cultivado, enaltecido, mostrado. Assim estaríamos con-
tribuindo para a construção de seres confiantes nas suas capacidades. A ação
do educador, identificando-se com a dos educandos, se orienta, assim, no sen-
tido da humanização de ambos, “infundida da profunda crença nos homens.
(...) crença no seu poder criador” (Freire,1983, p. 71).
Acreditamos que muitos dos resultados que alcançamos nessas ativida-
des foram garantidos pelo clima de confiança que foi sendo gestado ao longo
do trabalho. Concordamos com Freire que é preciso “estar aberto ao gosto de
querer bem, (...) à coragem de querer bem”, sem separar “seriedade docente e

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Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

afetividade” (2013, p. 138), desse modo, muito mais se poderá desenvolver em


nossos alunos-poetas, se nos deixarmos todos ser “atacados” por Eros.

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de Filosofia Nietzsche. São Paulo: Escala, v. III. 2007.

149
FORMAÇÃO INICIAL NO
CURSO DE PEDAGOGIA:
compreendendo a capacitação para o
exercício da docência na classe hospitalar
OLIVEIRA, Marilei Almeida de1
OLIVEIRA, Marli Almeida de2

Considerações iniciais
O presente trabalho tem como finalidade apresentar a pesquisa realiza-
da com base no trabalho de conclusão do curso de Pedagogia Licenciatura
Plena da Universidade Federal de Santa Maria, intitulada “A Formação Inicial
no Curso de Pedagogia: identificando qualidade e capacitação da práxis peda-
gógica na Classe Hospitalar”. A pesquisa em questão disponibilizou-se a refle-
tir acerca da formação inicial de pedagogos(as) em duas instituições de ensino
superior do município de Santa Maria/RS, tendo como especificidade a atua-
ção do(a) pedagogo(a) no contexto hospitalar.
A primeira Instituição de Ensino Superior (IES) é a Universidade Fede-
ral de Santa Maria – UFSM, uma instituição pública, criada no ano de 1960,
que oferece o curso de Pedagogia desde o ano de 1984; e a segunda IES, o
Centro Universitário Franciscano – UNIFRA, uma instituição privada, criada
no ano de 1955 com a oferta do curso de Pedagogia desde sua criação.
Durante os percursos da formação inicial, desenvolvida nos cursos de
Pedagogia, ambas nos deparamos com alguns obstáculos, no sentido de como
desenvolver o trabalho docente dentro do contexto hospitalar. Diante disso,
tendo como base a pesquisa do trabalho de conclusão do curso de uma de nós,
buscamos juntamente, compreender como a formação inicial contribui para o
desenvolvimento e o desempenho do(a) profissional pedagogo(a) que atua ou
pretende atuar no contexto hospitalar. Desse modo, objetivamos identificar

1
Acadêmica do Curso de Pedagogia Licenciatura Plena – Diurno/Universidade Federal de Santa
Maria. E-mail: mari.oli.ped@gmail.com.
2
Pedagoga/Universidade Anhanguera Uniderp – Pólo São Pedro do Sul. Pós-graduanda em
Gestão Educacional UAB/Universidade Federal de Santa Maria. E-mail:
marlioliveira1587@gmail.com.

150
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

como a formação inicial, desenvolvida nos cursos presenciais de Pedagogia


Licenciatura Plena de Santa Maria/RS, contribui na formação de pedagogos(as)
capazes de atuar em diferentes contextos educativos, dando ênfase ao contex-
to hospitalar.
Para tanto, o trabalho apresentará uma breve discussão do atendimento
educacional no contexto hospitalar e da formação inicial do(a) pedagogo(a);
bem como os resultados obtidos com a pesquisa.

Discutindo o atendimento educacional


no contexto hospitalar e a formação inicial
do(a) pedagogo(a)
Embora a classe hospitalar, no âmbito das legislações, não possua dire-
trizes específicas, a Lei n. 9394/96 que dispõe sobre as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional inseriu-a no interior da modalidade educativa Educação
Especial, em uma visão de educação inclusiva, a qual tem como prioridade
atender as crianças e adolescentes hospitalizados, propiciando a esses alterna-
tivas para que continuem estudando até estarem aptos a retornar à escola de
origem. Trata-se de um atendimento educacional com identidade lúdica e in-
terdisciplinar. Nas palavras de Ortiz e Freitas “é uma intervenção educacional
através de atividades recreativas sem o rigor da continuidade da vida acadêmi-
ca, que estimula habilidades cognitivas, percepto-motoras e expressão artísti-
ca” (2005, p. 53).
Essa pedagogia é destinada para aqueles que Arroyo (2012) chamou de
sujeitos sociais invisibilizados, pois são crianças e adolescentes com graves pato-
logias e, na maioria das vezes, embora sujeitos protegidos por leis, são abando-
nados/esquecidos pela sociedade e assim, desassistidos em todos seus direi-
tos; apresentando medos, sentimentos de insegurança e dor e, ainda, “soma-se
a isso a pungente e sempre presença do medo da morte, vista como uma som-
bra inoportuna que visita alguns leitos, ceifando do convívio alguns compa-
nheiros da unidade hospitalar” (ORTIZ; FREITAS, 2005, p. 29). Porém, as
crianças e adolescentes hospitalizados necessitam dar continuidade a sua vida
escolar, pois “o seu desenvolvimento cognitivo não pode ficar estático ou sim-
plesmente ficar somente sob os cuidados médicos, sem nenhuma expectativa
no âmbito escolar” (SILVA et al., 2008, p. 09), ou seja, a continuidade e a
democratização do acesso ao conhecimento se torna fator imprescindível nes-
se processo. No entanto, o desenvolvimento da ação educacional no contexto
dos hospitais ainda é pouco explorado e traz consigo muitas lacunas.
O contexto do hospital é um ambiente que está marcado pela falta de
sorrisos, falta dos barulhos, dos contrastes, dos tons e da criatividade que se
faz presente em nossas escolas (ORTIZ, 2002). Sabemos que as crianças e os

151
OLIVEIRA, M. A. de; OLIVEIRA, M. A. de • Formação inicial no curso de Pedagogia

adolescentes inseridos nesse contexto são crianças frágeis e, na maioria das


vezes, sujeitos impossibilitados de realizarem aquilo que mais gostam de fa-
zer, como, por exemplo, correr, pular e brincar. Pois, o processo da hospitali-
zação, medida emergencial adotada após o diagnóstico de uma patologia, está
permeado pela “percepção da fragilidade, o desconforto da dor e a inseguran-
ça da possível finitude. É um processo de desestruturação do ser humano, que
se vê em estado de permanente ameaça” (ORTIZ; FREITAS, 2001, p. 71).
Desse modo, o desenvolvimento da ação educacional busca proporcio-
nar a essas crianças e a esses adolescentes uma educação permeada pelo lúdi-
co, pela interdisciplinaridade e pela fantasia que se encontra no mundo da
imaginação, considerando que isso ainda não lhes foi tirado. Assim, a pedago-
gia hospitalar surge para desmistificar as informações e aliviar a ansiedade
desse período de internação, possibilitando uma reflexão da realidade de for-
ma mais generosa, permitindo que o sujeito que passa por tal processo possa
ver o hospital como um espaço onde a vida acontece.
É, pois, fundamental dar continuidade ao trabalho de aprendizagem da
criança e do adolescente dentro do contexto hospitalar. Essa ação oportuniza
a esse sujeito uma nova perspectiva frente ao tratamento. As intervenções pe-
dagógicas no contexto hospitalar, além de colaborarem para com a aprendiza-
gem, auxiliam os(as) educando(as)/pacientes quanto ao modo de enfrentarem
suas patologias, a partir de um mundo com mais cores e sabores do que aquele
em que está inserido, porém sem fugir da realidade que o cerca, e, sim, enfren-
tando-a de maneira menos dolorosa. Com base em Ortiz e Freitas (2005), en-
tendemos que,
É na relação de investimento com o outro que a educação sinaliza para a
emancipação da vida em hospitais, ressignificando-se uma pedagogia dialó-
gica que legitima a concepção de pacientes autônomos e cidadãos, com pro-
jeto de identidade includente e que fomente, na sua práxis, uma educação
humanizada em um mundo humanizado [...] Práxis, aqui, entendida como
atividade humana de ação, envolvendo não apenas a interpretação do mun-
do, mas também como guia de sua transformação. É o paciente-aluno assu-
mindo seu papel, alavancando a história e se fazendo ser histórico-social
(ORTIZ; FREITAS, 2005, p. 58).

Desse modo, destacamos a importância de uma prática pedagógica re-


gada pelo viés freireano de que ensinar exige, entre outros, respeito à autono-
mia e à individualidade de cada sujeito; exige o ato da dialogicidade verdadei-
ra, o ato da escuta, a alegria em estar naquele contexto, a amorosidade e a
sensibilidade para com aquelas crianças e adolescentes patologicamente diag-
nosticados, enfim, ensinar no contexto hospitalar exige esperança, estar con-
victo de que a mudança é possível, sabendo que “é a partir deste saber funda-
mental – mudar é difícil. mas é possível – que vamos programar nossa ação políti-

152
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

co-pedagógica” (FREIRE, 2013, p. 77). Freire ainda nos coloca a importância


de uma ação pedagógica permeada de humanização, na qual a realidade de
vida dos sujeitos se torna temática do processo de escolarização. Sobre isso,
Ortiz e Freitas (2014), destacam que:
Além dos desdobramentos políticos, pedagógicos, psicológicos, sociais e
ideológicos, o ofício de mestre incorpora a responsabilidade de traduzir o
universo consensual do paciente com suas histórias de vida, seus conheci-
mentos acerca da doença e da saúde e o universo reificado do saber científi-
co da área médica, transformando-os em fundamentos de ensino-aprendiza-
gem. Logo, esta postura de escuta respeitosa de saberes credita à educação a
possibilidade de presentificar-se na agenda da humanização em saúde (OR-
TIZ; FREITAS, 2014, p. 599).
Embora a modalidade educativa da classe hospitalar esteja marcada pela
dor e pelo sofrimento, tanto para os(as) educandos(as) e seus familiares quan-
to para aqueles profissionais que atuam nela, trabalhar em virtude de uma edu-
cação libertadora, com a intenção de preparar os sujeitos envolvidos para a vida
se faz necessário. Nesse sentido, remetemo-nos aos processos formativos oferta-
dos nos cursos de licenciaturas, dando ênfase ao curso de Pedagogia.
A formação inicial de professores tornou-se prioridade da educação bra-
sileira somente no início do século XXI, porém os cursos de licenciatura não
sofreram muitas alterações nos últimos 50 anos. Sobre isso, Azevedo et al.
(2012) realizaram um estudo teórico seguindo uma perspectiva histórica-críti-
ca, na qual aponta algumas considerações gerais acerca da formação de pro-
fessores no Brasil e, principalmente, uma trajetória dessa formação. O referido
estudo caracteriza o professor a cada década, desde os anos 60 até os anos
2000. Para tanto, as discussões iniciam caracterizando os educadores da déca-
da de 60 como educadores transmissores de conhecimentos, os quais acredita-
vam que jamais poderiam aprender algo com seus educandos e viam o ato de
educar como uma simples transmissão de conteúdos. A década seguinte foi
marcada pela pedagogia tecnicista, na qual o educador foi caracterizado como
o técnico da educação, que tinha uma formação voltada exclusivamente para
a instrumentalização técnica. Os anos 80 foram anos de mudanças, uma vez
que essa década foi fortemente marcada pela pedagogia libertadora de Paulo
Freire (1921-1997), que defendeu a importância de educadores considerarem
os saberes prévios dos educandos e de tomarem para si que educar não consis-
te em transmitir conteúdos. Em suas palavras: “É preciso que [...] vá ficando
claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao for-
mar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. [...] não há docência
sem discência (FREIRE, 2013, p. 25). A pedagogia libertadora de Freire sur-
giu nos anos 60, como destaca Gadotti (2011), porém foi interrompida com o
golpe militar, reprimindo toda a mobilização já conquistada. Assim, somen-

153
OLIVEIRA, M. A. de; OLIVEIRA, M. A. de • Formação inicial no curso de Pedagogia

te em 1980, com a volta definitiva do educador ao país, seu método de alfa-


betização foi retomado no Brasil. No que diz respeito à formação de profes-
sores, podemos dizer que houve grande salto também, pois o educador dei-
xou de ter uma formação centrada nos métodos e nos treinamentos, dando
ênfase à criticidade e ao comprometimento dos profissionais que estavam
sendo formados para atuar como educadores da Educação Básica.
Desse modo, na década seguinte, o educador já pôde ser caracterizado
como o educador pesquisador, pois a relação teoria/prática passou a ser o
eixo central dos cursos de formação de professores; o que possibilitou que nos
anos de 2000 o educador pudesse ser caracterizado como professor pesquisa-
dor-reflexivo, quando a prática pedagógica é vista como espaço/tempo de re-
flexão e de construção de novos conhecimentos.
Levando em conta essas mudanças histórico-sociais, os cursos de Peda-
gogia do país devem possibilitar uma formação comprometida com os aspec-
tos econômicos, culturais e políticos da sociedade, propiciando a seus acadê-
micos e suas acadêmicas a autonomia em se constituírem sujeitos de sua for-
mação, além de diálogos crítico-reflexivos de modo a relacionar teoria e práti-
ca, ou seja, a formação inicial deve formar profissionais capazes de estudar,
planejar, desenvolver e avaliar de forma reflexiva sua prática pedagógica quer
seja no espaço escolar, quer seja nos diferentes contextos educativos.
Francisco Imbernón, em seu livro “Formação Docente e Profissional:
formar-se para a mudança e a incerteza” (2011), dedica um capítulo exclusiva-
mente para a formação inicial, defendendo a ideia de que esta deve fornecer as
bases para que o futuro educador possa construir, ao longo do curso, um co-
nhecimento pedagógico especializado. Nesse sentido, o autor destaca que,
durante a formação inicial:
É preciso estabelecer um preparo que proporcione um conhecimento válido
e gere uma atitude interativa e dialética que leve a valorizar a necessidade de
uma atualização permanente em função das mudanças que se produzem; a
criar estratégias e métodos de intervenção, cooperação, análise, reflexão; a
construir um estilo rigoroso e investigativo. Aprender também a conviver
com as próprias limitações e com as frustrações e condicionantes produzi-
dos pelo entorno, já que a função docente se move em contextos sociais que,
cada vez mais, refletem forças em conflito (IMBERNÓN, 2011, p. 63-64).

Assim, compreendemos que a formação inicial justifica-se pela necessi-


dade de uma qualificação/preparação para o exercício da docência, porém,
não deve ser considerada algo acabado e/ou sem conexão com o contexto
atual da educação.
Reconhecendo a formação inicial desenvolvida nos cursos de pedago-
gia como uma formação que deve ir além do caráter acadêmico e disciplinar,
dando ênfase também às respostas para as novas demandas de atuação do(a)

154
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

pedagogo(a), defendemos aqui a necessidade de uma formação que vise pro-


blematizar criticamente, para/com o sujeito em formação, as práticas educa-
tivas a partir de pressupostos teóricos, metodológicos e epistemológicos. Para
tanto, os cursos de Pedagogia não deveriam reduzir a formação do(a)
pedagogo(a) somente às instituições escolares, deveriam, sim, levar em con-
ta a amplitude de tempos/espaços em que o pedagogo(a) pode atuar, pen-
sando inclusive nas instituições não escolares, como, por exemplo, o contex-
to hospitalar.

Procedimentos metodológicos
utilizados na pesquisa
A pesquisa caracterizou-se como uma abordagem qualitativa, a qual se
preocupa “com um nível de realidade que não pode ser quantificado [...], tra-
balha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e
atitudes” (MINAYO, 1994, p. 21-22) e possibilita ao sujeito pesquisador a par-
ticipação, a compreensão e a interpretação.
Nesse sentido, a preocupação desta pesquisa foi buscar as informações
de quatro acadêmicos(as) dos cursos presenciais de Pedagogia do município
de Santa Maria/RS, identificando como a formação inicial desenvolvida nes-
ses cursos está se preocupando com uma práxis pedagógica de qualidade den-
tro do contexto hospitalar. Esses sujeitos foram escolhidos a partir de dois
critérios elencados: acadêmicos(as) que já vivenciaram ou que vêm vivencian-
do a prática educativa na classe hospitalar, segundo informações disponibili-
zadas pelas coordenações e acadêmicos(as) que estão cursando os dois últi-
mos semestres do curso.
Diante disso, considerando os objetivos desta pesquisa, as fontes de in-
formação para a concretização de tal foram sujeitos e documentos. A coleta
mediante essas fontes deu-se por meio da observação indireta, fazendo uso
especificamente da análise documental e da observação direta extensiva, da
qual foi usado o questionário aberto.
Para isso foi adotado o estudo de caso, o qual se preocupa com o estudo
profundo de um ou mais objetos, compreendendo um aspecto específico den-
tro de um sistema amplo. Nas palavras de Gil (2010), os estudos de caso,
[...] requerem a utilização de múltiplas técnicas de coleta de dados. Isto é
importante para garantir a profundidade necessária ao estudo e a inserção
do caso em seu contexto, bem como para conferir maior credibilidade aos
resultados. Mediante procedimentos diversos é que se torna possível a trian-
gulação, que contribui para obter a corroboração do fato ou do fenômeno
(GIL, 2010, p. 119).

155
OLIVEIRA, M. A. de; OLIVEIRA, M. A. de • Formação inicial no curso de Pedagogia

A análise documental, segundo Michel (2009), “significa consulta a do-


cumentos, registros pertencentes ou não ao objeto de pesquisa estudado, para
fins de coletar informações úteis para o entendimento e análise do problema”
(MICHEL, 2009, p. 65). Nesse sentido, analisamos o Projeto Pedagógico do
Curso (PPC) Presencial de Pedagogia Licenciatura Plena – Diurno e do Curso
de Pedagogia Licenciatura Plena – Noturno da Universidade Federal de Santa
Maria e do Curso de Licenciatura em Pedagogia do Centro Universitário Fran-
ciscano de Santa Maria.
No que diz respeito ao questionário como instrumento de coleta de da-
dos, a mesma autora o caracteriza como “formulário, previamente construído
por uma série ordenada de perguntas em campos fechados e abertos, que de-
vem ser respondidas por escrito e sem a presença do entrevistador” (MICHEL,
2009, p. 71-72). Para tanto, os sujeitos participantes da pesquisa tiveram um
espaço/tempo para desenvolver suas respostas.

Análise e discussão dos dados


Na busca por respostas significativas e que auxiliassem nos questiona-
mentos iniciais da pesquisa, foi elaborado um questionário com questões es-
pecíficas acerca de como a formação inicial vêm formando pedagogos para a
atuação em outros contextos educativos, mais especificamente no contexto
hospitalar. Diante disso, a construção deste capítulo se deu em torno das res-
postas dos sujeitos participantes da pesquisa, acadêmicos e acadêmicas de duas
Instituições de Ensino Superior do município de Santa Maria, bem como, da
análise realizada sobre os Projetos Pedagógicos dos Cursos.
Nesse sentido, após a análise dos PPCs dos três cursos pesquisados, per-
cebemos que as nomenclaturas “ambientes escolares e não-escolares” e/ou
“escolas e espaços sociais” se fazem presentes nos documentos. Além disso,
percebemos que os espaços não escolares são compreendidos como campos
de atuação do profissional pedagogo(a) e que o egresso do curso deve estar
apto para desenvolver sua prática pedagógica em todos os campos de atuação.
Com essa análise, identificamos que apenas o curso de Pedagogia ofertado
pela UNIFRA possui uma disciplina voltada para a formação do(a) pedagogo(a)
para a prática nos espaços não escolares.
Assim, buscamos propiciar um espaço para que os acadêmicos desses
cursos pudessem falar a respeito de sua formação inicial, indo ao encontro
daquilo que a perspectiva freireana defende: o ato de dar voz aos sujeitos que
estão vivenciando esse processo de formação. Desse modo, a primeira questão
buscou compreender o que os sujeitos participantes entendem por outros con-
textos educativos. Todos os sujeitos caracterizaram os outros contextos educati-

156
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

vos como campos de atuação do pedagogo, que vão além da escola e das salas
de aula.
Diante disso, a segunda questão preocupou-se em saber quais os cam-
pos de atuação do(a) pedagogo(a) conhecidos pelos participantes e como esses
descobriram tais. Os quatro participantes, após descreverem como campo de
atuação escolas, empresas, hospitais, presídios, ONGs e diferentes instâncias
que exijam conhecimentos pedagógicos, afirmaram que o conhecimento so-
bre os diversos campos de atuação do pedagogo surgiu no decorrer do curso
por meio de colegas, de eventos em que participaram e dos estágios extracurri-
culares desenvolvidos no setor educacional do HUSM. Ou seja, os acadêmi-
cos são conhecedores dos diferentes campos de atuação, porque foram além
daquilo que lhes é oferecido pela grade curricular dos cursos de Pedagogia.
Na última pergunta, voltamos nosso olhar exclusivamente para como a
formação inicial desenvolvida nos três cursos abordou a classe hospitalar. Os
participantes assumiram que a modalidade estudada/defendida aqui, não foi
abordada em nenhuma disciplina específica, exceto no caso do Curso de Li-
cenciatura em Pedagogia, oferecido pela UNIFRA, no qual a modalidade é
abordada na disciplina de Espaços Sociais. Porém, a participante destaca que
esta é vista como um dos espaços educativos e cabe ao acadêmico optar por
um aprofundamento nesse espaço ou em outro.
Ainda cabe destacar a indignação dos participantes ao falarem que a classe
hospitalar apenas é discutida na medida em que “o próprio acadêmico traz
questionamentos ou troca de experiências relacionadas ao tema” (Participan-
te B), ou ainda, quando um dos sujeitos participantes afirmou que “o currícu-
lo acaba falando apenas de sala de aula, e esquecendo que o pedagogo pode
atuar também em outros ambientes, como a classe hospitalar”. (Participante
C). Nesse sentido, entendemos e compartilhamos dessa indignação, pois com-
preendemos que os cursos de licenciatura, de uma forma geral, enfatizando,
porém, o curso de Pedagogia, não estão preocupados em formar educadores
para o exercício da docência nas diferentes modalidades da educação, menos
ainda para a classe hospitalar, a qual faz parte de uma dessas modalidades.
Tudo fica a cargo do acadêmico. Esse precisa fazer escolhas e optar por como
será sua formação. No entanto, fica difícil optar pela classe hospitalar quando
essa nem ao menos é discutida no curso. Não estamos tirando a autonomia
dos sujeitos em formação. Pelo contrário, compartilhamos da ideia de que
esse sujeito deve se assumir como ator desse processo, porém entendemos que
é necessário que tanto as modalidades quanto os contextos diferenciados, con-
tidos nelas, devem ser apresentados a esses sujeitos.
Embora a UNIFRA ofereça uma disciplina que aborde o tema, bem
como a oportunidade de um dos estágios ser desenvolvido no contexto hospi-

157
OLIVEIRA, M. A. de; OLIVEIRA, M. A. de • Formação inicial no curso de Pedagogia

talar, percebemos nas respostas da acadêmica participante a necessidade de


mais dedicação a esses espaços não escolares, pois, como ela destacou, “nem
todas as alunas escolhem realizar o estágio no hospital, a maioria realiza em
outros espaços sociais”. Na maioria das vezes optar por realizar o estágio na
classe hospitalar requer não apenas a vontade dos acadêmicos e das acadêmi-
cas, mas também, e principalmente, a disponibilidade de professores orienta-
dores para tal estágio, pois assim como destacou Arroyo (2012), outros sujei-
tos requerem outras pedagogias e, para isso, pensar, planejar, desenvolver e/
ou orientar práticas pedagógicas em diferentes modalidades e/ou contextos
educativos requer daquele que o faz uma visão ampla acerca daquele espaço e
daqueles sujeitos.
Assim, compreendemos que mais uma vez se torna uma busca pessoal
do acadêmico, pois em virtude da pequena carga horária este não pode viven-
ciar a experiência de estudar, refletir e atuar em todos os espaços sociais possí-
veis ao pedagogo, e deve optar por apenas um deles.
Podemos evidenciar então, que a formação inicial, oferecida pelos três
cursos presenciais de Pedagogia, no município de Santa Maria/RS, está frágil
nesse sentido, pois os próprios acadêmicos que estão concluindo o curso des-
tacam isso.

Considerações finais
Ao longo da pesquisa, a partir da análise dos PPCs, de nossas vivências
como acadêmicas e, principalmente, a partir das vozes dos demais acadêmicos,
percebemos que, infelizmente, embora reconhecido como um espaço de atua-
ção do profissional pedagogo, o contexto hospitalar não passa disso nos cursos.
Não existe nenhuma proposta curricular voltada para este. Quando existe, no
caso do curso da UNIFRA, podemos afirmar que uma disciplina com carga
horária de 68h não é suficiente para abordar todos os espaços sociais considera-
dos campos de atuação do pedagogo, ainda mais quando o acadêmico precisa
escolher apenas um dos espaços para um aprofundamento e respectivamente o
estágio, o que é o caso. Alguns acadêmicos até possuem experiências, vivências
e conhecimentos sobre a classe hospitalar, porém, como destacaram ao respon-
der o questionário, foi uma busca pessoal, na qual precisaram ir além das salas
de aula; além disso, os sujeitos participantes enfatizaram o quanto sentem falta
de espaços/tempos, dentro dos cursos, dedicados a esses outros contextos edu-
cativos, além do contexto escolar.
Sendo assim, no que tange à formação inicial de pedagogos, entende-
mos que as Instituições de Ensino Superior estão à frente de um grande desa-
fio, pois precisam assumir a necessidade de desenvolver uma formação inicial
capaz de preparar seus acadêmicos e suas acadêmicas para os diferentes con-

158
Dialogus: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores

textos nos quais o(a) pedagogo(a) poderá exercer sua profissão, enfatizando
aqui, o contexto hospitalar, a classe hospitalar.
Freire nos fala, em sua obra “Política e Educação” (2001), dos deveres
que precisamos assumir ao criticar algo e/ou alguém. Segundo o educador, o
primeiro desses deveres é o de não mentir, “Podemos nos equivocar, podemos
errar. Mentir, nunca” (p. 31), desse modo, assumimos aqui a ética da verdade,
destacamos somente aquilo que nos foi relatado por meio das respostas e a
partir da análise dos PPCs. O outro dever é conhecer aquilo que estamos criti-
cando, não podemos ficar apenas no que nos dizem os outros, embora o que
esses têm a nos dizer possa ser extremamente importante para chegarmos a tal
crítica. O terceiro dever do crítico é “deixar claro a seus leitores que sua crítica
abarca um texto apenas do criticado ou sua obra toda, seu pensamento”. Nes-
se sentido, aqui, é importante deixar claro que a crítica não se refere à forma-
ção inicial como um todo, mas, sim, à formação inicial voltada para os contex-
tos não escolares.
A pedagogia freireana compreende o exercício da docência como uma
atividade eminentemente humana. Nesse sentido, entendemos a necessidade
de práticas educativas que visem à humanização também nesses outros espa-
ços, além do espaço escolar, visto que “o pensamento de Freire afirma a hu-
manização como finalidade da educação, diz da prática educativa como práti-
ca social, circunscrita em contextos, escolares ou não escolares, permeada por
contradições, tensões e conflitos” (SANTIAGO; BATISTA NETO, 2011, p. 8),
destacando, desse modo, a necessidade de práticas transformadoras, capazes
de partir das realidades, mas também de ir além delas, transformando-as. Para
que pedagogos(as) possam desenvolver tais práticas no contexto hospitalar,
mais uma vez nos remetemos à necessidade de processos formativos iniciais
também transformadores, processos formativos capazes de “formar” profissio-
nais críticos/reflexivos que, embora encontrem desafios no ato da docência,
jamais desistirão de fazê-lo de forma humana.
Nessa perspectiva, interrompemos a escrita destacando que os cursos
de Pedagogia devem repensar as práticas que vêm sendo construídas e ofereci-
das aos acadêmicos, de modo que estas venham a revelar a realidade da socie-
dade, sem omitir e/ou negar esses outros espaços/campos de atuação do su-
jeito pedagogo, buscando a valorização desses contextos não escolares, pois,
assim, as crianças e os adolescentes hospitalizados, impossibilitados de fre-
quentar a escola regular, poderão receber profissionais capacitados, capazes
de propiciar ações educativas e aprendizagens significativas para suas vidas.

159
OLIVEIRA, M. A. de; OLIVEIRA, M. A. de • Formação inicial no curso de Pedagogia

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