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baú, centro de São Paulo.

“É absurdo imaginar que a função


da escola seja facilitar qualquer coisa, em vez de levar a tra-
balhar com as dificuldades da vida, da crítica e do conheci-
mento”, comenta o docente da USP Alcides Villaça. Ele se
diz indignado: “Apresentar, como sendo de Machado de As-
sis, mutilação bisonha de seu texto não deveria dar cadeia?”.
Disciplina: “Técnicas de Redação e Interpretação” Outros seis mestres da USP e três da Unicamp foram procu-
Turma: 3ª. Série do Ensino Médio rados para dar os seus pareceres sobre esse projeto. Nenhum
Responsável: Prof. Adriano Tarra Betassa Tovani Cardeal deles quis comentá-lo.
Tema redacional 02: Simplificação lexical de livros clássi-
cos da literatura brasileira: democratização da leitura ou am- (Folha de S. Paulo, “Cidadona”, 04.05.2014)
pliação da insuficiência linguístico-intelectual?
Machado de Assis vira alvo de debate
Escritora muda obra de Machado após divulgação de obra simplificada
de Assis para facilitar a leitura
Machado de Assis virou assunto nas redes sociais. O
Chico Felitti autor de Dom casmurro esteve no centro de intensos debates
depois que a coluna “Cidadona” da Folha revelou que a es-
critora Patrícia Secco lançará, em junho, uma versão simpli-
ficada de “O alienista”, obra de Machado lançada em 1882.
Secco coordena um projeto que visa “descomplicar” os clás-
sicos para o leitor não acostumado a lê-los. Autorizada pelo
Ministério da Cultura, ela captou cerca de R$1 milhão, via
leis de incentivo, para a empreitada – além desse conto de
Machado, adaptou A pata da gazela, de José de Alencar. Os
dois terão juntos tiragens de 600 mil exemplares e serão dis-
tribuídos de graça pelo Instituto Brasil Leitor. No caso de
“O alienista”, a equipe de Secco suprimiu algumas vírgulas,
deixou as frases diretas e trocou palavras (por exemplo, “fi-
lhos da nobreza” virou “filhos de nobres”; “reproche” virou
“censura”). A notícia alvoroçou (ou seria melhor dizer “agi-
tou”?) redes sociais. Uma petição on-line com mais de 6500
assinaturas contesta o endosso do Ministério da Cultura. “O
foco do projeto é a doação de livros para pessoas que não ti-
veram oportunidade de estudar, constantemente excluídos
do acesso à cultura”, diz Secco. “Trata-se de disputa entre o
purismo e a democratização da leitura”. Adaptações de tex-
tos clássicos existem aos montes, mas a proposta de Secco
dividiu escritores e acadêmicos. “Eu sou contrária”, diz No-
emi Jaffe, Doutora em Literatura Brasileira. “Quando você
adapta uma obra para adequá-la a um novo gênero, como u-
“Entendo por que os jovens não gostam de Machado ma HQ, tudo bem. No caso de ‘O alienista’, o formato é o
de Assis”, diz a escritora Patrícia Secco. “Os livros dele têm mesmo, mas a linguagem foi sequestrada. A literatura não é
cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As cons- só conteúdo, é principalmente linguagem”. A escritora Ruth
truções são muito longas. Eu simplifico isso”. Ela simplifica Rocha, embora já tenha adaptado ao público infantil obras
mesmo: Patrícia lançará em junho uma versão de “O alienis- do porte de Odisseia e Ilíada, considera Machado intocável.
ta” (obra de Machado lançada em 1882), em que frases estão “Em Odisseia, há muita aventura, e as crianças gostam. Ma-
mais diretas e palavras são trocadas por sinônimos mais co- chado é muito profundo, não vejo como simplificar”. Profe-
muns (“sagacidade” virou “esperteza” por exemplo). A mu- ssor de Literatura da UFRGS, Luís Augusto Fischer é “cem
dança não fere o estilo do escritor mais celebrado do Brasil, por cento” a favor das adaptações. Ele mesmo já adaptou “O
afirma Patrícia. “A ideia não é mudar o que ele disse, só tor- alienista” para uma série da editora L&PM voltada a jovens
nar mais fácil”. O plano inicial dela era descomplicar outros leitores. “Essa grita me parece hipócrita, embora haja gente
clássicos. A ideia nasceu em 2008, com aspirações maiores: bem-intencionada. O lado hipócrita é de gente que, talvez,
“Montei um plano com um título de cada autor clássico para nem tenha lido muita coisa, mas que faz pose de guardiã de
a gente tentar fazer uma versão”. Seu projeto, que também uma suposta excelência”.
previa versões de O cortiço e Memórias de um sargento de
milícias, foi liberado pelo Ministério da Cultura para captar (Folha de S. Paulo, “Ilustrada”, 10.05.2014)
dinheiro com lei de incentivo, mas Secco só conseguiu pa-
trocínio para dois títulos: “O alienista” e A pata da gazela, Machado copidescado
de José de Alencar, que sai junto. A equipe que “descompli-
ca” o texto é formada “por um monte de gente”, diz a autora, José Miguel Wisnik
entre eles, a própria e dois jornalistas amigos. A tiragem, de
600 mil exemplares, será distribuída de graça pelo Instituto A trapalhada é tamanha que fica difícil decidir por
Brasil Leitor. O lançamento será em junho, e terá direito a onde começar. Mas trata-se de oferecer gratuitamente a no-
um túnel construído com 60 mil livros no vale do Anhanga- vela “O alienista”, de Machado de Assis, para trabalhadores

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pobres não habituados à leitura. Como enfatiza a autora do simples demais, dessa vez, e fez-se necessário procurar ou-
projeto Patrícia Engel Secco, a tiragem de 300 mil exempla- tra menos usual? Qual é, afinal, o critério? Aqui e ali pinga
res, com o selo do Ministério da Cultura e da Lei de Incenti- uma nota de rodapé, mas uma citação de Dante Alighieri em
vo à Leitura, quer chegar a esses não leitores, privados dos italiano passa batida. Literatura nos pega ao pôr em contato
benefícios da literatura. Diríamos que a causa, de um ponto o que somos com o que não somos – tempos, experiências
de vista genérico, é nobre, e o dia em que ela se cumprir será individuais e coletivas, linguagens e valores que se tornam
o da redenção do país desigual e mal letrado (mal letrado na nossos sem serem nossos. É preciso passar pela diferença a
média, fique bem claro, e em todos os níveis sociais). Mas que o texto nos submete. O narcisismo contemporâneo rea-
a edição propõe-se a resolver, num desastrado salto mortal, ge a isso querendo facilitação, padronização e autorreconhe-
a quadratura do círculo: pessoas que nunca leram nada lerão cimento. Ironicamente, Machado de Assis é um dos mais in-
Machado – esse autor deveras fascinante, capcioso, sibilino, críveis analistas do narcisismo, em toda a literatura univer-
cujos textos não se reduzem à anedota e pressupõem certa sal. Não há como chegar a ele sem chegar a ele. Há modos
convivência anterior com a leitura. A solução encontrada foi e modos: o livro organizado por Marcos Bagno, Machado
a de facilitar o texto original, expurgando-o das supostas di- de Assis para principiantes, por exemplo, faz uma boa in-
ficuldades: palavras difíceis são substituídas por corriquei- trodução antológica sem precisar alterar uma vírgula do ori-
ras; construções sintáticas enviesadas, tornadas diretas; alu- ginal. Num país de analfabetos funcionais, como o nosso, u-
sões de duplo sentido e passagens que exigem uma leitura ma verdadeira política de leitura é crucial para todas as polí-
relacional menos linear, eliminadas. O argumento dos que ticas. O episódio é um índice gritante da falta disso. Macha-
são a favor, que se soma ao da serventia social, é o de que diano.
essa não é a primeira nem será a última adaptação de textos
clássicos. Quem não leu algum Moby Dick, Dom Quixote, a (O Globo, “Cultura”, 17.05.2014)
Odisseia ou Shakespeare em alguma versão condensada e
facilitada? Quem negaria que essa prática promove, de algu- Discípula de Paulo Freire
ma maneira, o incremento da leitura e o acesso a outros tex- “assassina” Machado de Assis
tos e a obras originais? Uma linha influente da teoria literá-
ria critica, por sua vez, o chamado “cânone literário”, o pan- José Maria e Silva
teão das obras “imortais”, a sacralização dos textos e a sua
transformação em fetiches intocáveis, ligados a privilégios Localizado nas proximidades do Viaduto do Chá que
de classe que também se querem intocáveis. Essa concepção – desde a inauguração em 1892 – se tornou, durante muitos
pragmática vem, geralmente, acompanhada, no entanto, da anos, o principal cartão postal da cidade de São Paulo, o Va-
dificuldade de identificar propriedades singulares dos textos le do Anhangabaú será palco, em junho próximo, de um e-
literários que são inerentes à sua composição, ao ritmo, ao vento literário inusitado – um túnel construído não por con-
corpo da linguagem, e que os fazem insubstituíveis e irredu- creto, mas por 60 mil livros. Trata-se do lançamento da nova
tíveis a qualquer outra forma que não a sua. Mas, para não edição de uma das mais importantes obras da língua portu-
cair na pendenga sem saída entre purismo e completo relati- guesa de todos os tempos, a novela “O alienista”, de Ma-
vismo, o melhor é analisar cada caso concreto. O caso da a- chado de Assis, que, depois da morte do escritor, em 1908,
daptação de “O alienista” é muito diferente do das outras o- separou-se de Papéis avulsos, o volume de contos em que
bras clássicas citadas, em que se faz uma redução genérica fora originalmente publicado, em 1882, e se tornou um livro
da estória, claramente distinta do original. Em vez disso, tra- autônomo, traduzido em vários idiomas. Mas não se trata e-
ta-se aqui de uma intervenção linha a linha sobre o estilo, a xatamente da obra-prima de Machado; o que o leitor vai en-
pontuação, o ritmo, o vocabulário e a sintaxe, e como se na- contrar nesse lançamento faraônico é uma adaptação de “O
da disso estivesse acontecendo. É escandaloso que a infor- alienista”, coordenada pela escritora Patrícia Secco e patro-
mação “texto facilitado para incentivo à leitura” apareça a- cinada pelo Ministério da Cultura, por intermédio da “Lei
penas no final do volume, sem nenhum destaque e perdida Rouanet”. “Entendo por que os jovens não gostam de Ma-
entre outros créditos menos relevantes (produção, concep- chado de Assis. Livros dele têm cinco ou seis palavras que
ção, projeto gráfico, imagens e tiragem), e onde a referência aqueles não entendem – por frase. As construções são muito
(nem digo “reverência”) à autenticidade do texto original vi- longas. Eu simplifico isso”, disse Patrícia Secco, em 04 de
ra pó. Nas primeiras linhas, “filho da nobreza da terra” vira maio último, numa entrevista ao jornalista Chico Felliti, da
“filho de nobres”, “regendo a universidade” vira “dirigindo Folha de S. Paulo. Proprietária da Secco Assessoria Empre-
a universidade”, “o maior dos médicos do Brasil, de Portu- sarial S/C Ltda., que, juntamente com sua pessoa física, já
gal e das Espanhas”, vira “da Espanha”. O pretexto, discutí- teve aprovados no Ministério da Cultura projetos que so-
vel em todos esses casos, é o de que palavras mais usuais mam cerca de R$ 10 milhões captados, Patrícia Secco pro-
deixam o texto mais compreensível, mas, junto com isso, duz literatura infanto-juvenil em ritmo industrial, com mais
vem, na verdade, a mentalidade da padronização, praga ge- de 200 títulos publicados, a maioria com temas da moda, co-
neralizada e generalizante que não faz senão tirar o travo, o mo meio ambiente, direitos humanos e inclusão social. Com
gosto e o sabor de qualquer texto. Prova disso é que, na pri- o propósito de facilitar a leitura de quatro clássicos da litera-
meira linha, a adaptadora insere vírgulas inexistentes no ori- tura brasileira, Secco pedira autorização ao Ministério da
ginal (“dizem que, em tempos remotos, vivera ali um certo Cultura para captar R$ 1,53 milhão; por incrível que pareça,
médico”), que não se explicam senão pela pulsão de copi- foi autorizada a captar R$1,45 milhão, ou seja, quase o mon-
desque que quer adequar textos a normas editoriais, atrope- tante que havia pedido para seu projeto. Na prática, conse-
lando o que vier pela frente. Chego a pensar que a demago- guiu captar uma cifra milionária – R$1,039 milhão – para
gia social envolvida no projeto é um álibi inconsciente para produzir dois livros a serem lançados num mesmo volume:
copidescar Machado. Tanto assim que mais adiante “achou- “O alienista”, de Machado de Assis, e A pata da gazela, de
-se a mais desgraçada das mulheres” vira “considerou-se a José de Alencar. A princípio, a ideia de adaptar um clássico
mais desgraçada das mulheres”. A palavra “achou-se” era não é necessariamente condenável, especialmente se for pa-

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ra crianças. As adaptações de clássicos da literatura – come- até mesmo se tornou um deles. Com sua adaptação de “O a-
çando pela Bíblia sagrada – devem ser tão antigas quanto o lienista”, a escritora-empresária Patrícia Secco destrói a uni-
ato de ler. Em sua já clássica Uma história da leitura, o ar- versalidade da literatura de Machado de Assis com a peque-
gentino-canadense Alberto Manguel diz que, em 1387, John nez ideológica da pedagogia de Paulo Freire. Foi o criador
de Trevisa, que estava traduzindo do latim para o inglês a e- da “Pedagogia do oprimido”, uma espécie de marxismo de
popeia Polychronicon do monge beneditino Ranulf Higden autoajuda, quem consagrou a tese pedagógica de que apren-
(c. 1280-1364) resolveu fazê-lo não em versos, mas em pro- dizado é um epifenômeno das circunstâncias materiais e é
sa, pois sabia que o público já não queria ouvir uma recita- somente a partir delas que se pode alfabetizar uma criança
ção pública da obra (que, por sinal, se tornaria muito popu- e despertar-lhe a consciência. O pedagogo brasileiro foi um
lar no século XV), preferindo lê-la diretamente. Da mesma grande admirador de Mao Tsé-Tung e, assim como o mons-
forma, a Divina comédia, de Dante Alighieri, originalmente truoso comunista chinês mandava os lavradores arrancarem
escrita em versos, mereceu adaptações em prosa e versões até as flores nativas, porque eram inúteis no universo do tra-
condensadas para crianças, que exploram o viés aventureiro balho, Paulo Freire também arranca as palavras burguesas
de sua viagem ao Inferno, Purgatório e Céu, transformando- da cartilha do trabalhador, determinando a alfabetização a
-o numa espécie de Julio Verne do espírito. Uma das primei- partir das tais “palavras geradoras”, como “tijolo”. É o que
ras justificativas para se adaptar uma obra é, sem dúvida, a chamo de “pedagogia análoga à escravidão” – o filho do la-
sua extensão. Poucas crianças são capazes de ler um roman- vrador deve ter os olhos presos ao chão e está proibido de
ce ou uma epopeia que se estende por mais de 500 páginas. “ouvir estrelas”. Patrícia Secco professa a mesma filosofia:
A boa adaptação é uma espécie de resumo que tenta extrair se o faxineiro da farmácia não sabe o que é “boticário”, que
a essência da obra sem desvirtuá-la. Carlos Heitor Cony, se arranque, então, essa maldita palavra dos textos clássicos.
que adaptou diversos clássicos para o público infanto-juve- Nunca ocorreu a ela que seria muito mais fácil, barato e res-
nil, como Dostoiévski, Melville, Mark Twain, Dumas, Go- peitoso oferecer um dicionário ao faxineiro? Aliás, um tra-
gol, Eça, Manoel Antônio de Almeida e Julio Verne, ao ser balhador que resolva ler “O alienista” – e isso está longe de
indagado numa entrevista à revista “Cult” se reescrevia ou ser raro – nem precisará de dicionário para descobrir o signi-
resumia os livros, respondeu: “Era uma condensação. Eu e- ficado dessa palavra. O próprio conto, que sempre associa o
liminava pontos mortos, alguns diálogos, detalhes técnicos. boticário Crispim Soares a remédios, já lhe oferece a respos-
Deixava o texto mais denso. Mas preservava a história, o ta. Além disso, tão logo veja a palavra no texto, o faxineiro
clima e, principalmente, a expectativa”. Cony foi taxativo: irá se lembrar de que existe uma rede de perfumaria com es-
“O bom adaptador não falseia o original”. se nome e, por associação de ideias, poderá lembrar-se da
palavra “botica”, que pode ter ouvido a um parente mais ve-
Facilitação de Machado nega o escritor lho. Caso não disponha de um dicionário em casa, o faxinei-
ro machadiano sempre poderá consultar uma pessoa letrada
Infelizmente, Patrícia Secco falseia Machado de As- de seu meio, parente ou um conhecido, que, se não for capaz
sis. Além de desfigurar o estilo, ela o emburrece. Sua adap- de sanar sua dúvida, saberá onde encontrar a resposta. Ou
tação é um retrocesso, que sacrifica até os avanços linguísti- Patrícia Secco acha que só existe vida inteligente em seu
cos do estilo machadiano, já ousadamente próximo da lin- meio social e que, nas classes pobres, não há ninguém capaz
guagem coloquial numa antecipação das vanguardas do mo- de trocar ideias com um faxineiro interessado em literatura?
dernismo que só iriam se consolidar no Brasil quase meio
século depois. A autora esqueceu-se de que Machado, assim Censo de 1872 abalou a literatura brasileira
como Borges, Beckett, Graciliano, não dá para ser adaptado
em prosa sem que se perca essência de sua arte. A obra ma- O psicólogo Yves de La Taille, professor da USP e
chadiana é basicamente linguagem. Nos seus romances, não autor do livro Limites, considera que os limites morais com-
há enredos rocambolescos ou profusão de personagens, co- portam três dimensões, uma das quais significa “desafio” –
mo há em Homero, Cervantes e nos clássicos românticos. uma pessoa, além de respeitar limites em face dos direitos
Mesmo “O alienista”, talvez o enredo mais movimentado de dos outros e de impor limites em defesa de sua intimidade,
toda sua obra, depende substancialmente da linguagem, pois deve também superar limites, o que significa superar a si
é nela que moram a argúcia e a ironia do conto. Para justifi- mesma, buscando a maturidade e a excelência. É tudo o que
car sua adaptação, Patrícia Secco recorre a afirmações de- Patrícia Secco não quer do leitor, com sua simplificação dos
magógicas. “Estou horrorizada. É muito triste pensar que al- clássicos. Ninguém aprende sem esforço próprio, recebendo
gumas pessoas acham que Machado de Assis, mestre da lite- tudo de mão beijada. Graciliano Ramos começou a ser escri-
ratura brasileira, não pode ser lido pelo senhor José, eletri- tor quando se sentiu desafiado pelas mesóclises da Carta de
cista do bairro do Espinheiro, que, apesar de gostar de ler, ABC, do lendário Abílio César Borges, ou Barão de Macaú-
não cursou mais que o primário, ou pelo Cristiano, faxineiro bas, que tinha a máxima “fala pouco e bem, ter-te-ão por al-
de uma farmácia de Boa Viagem que nem sequer sabe o sig- guém”. A frase o levaria a indagar à sua meia-irmã Mocinha
nificado da palavra ‘boticário’” disse a escritora-empresária se “ter-te-ão” era um homem. Como Mocinha, a adolescente
à repórter Maria Fernanda Rodrigues, do Estadão, em maté- semialfabetizada que o ensinou a ler, também não tinha idei-
ria de 9 de maio último. Ora, quem disse que um faxineiro a do que fosse aquilo, o menino Graciliano, enfezado viven-
não pode compreender Machado de Assis? Se fosse assim, te das Alagoas, criado a cascudos e beliscões, teve que des-
o próprio Machado – descendente de agregados e ex-escra- cobrir sozinho, devorando, antes dos dez anos, a prosa ro-
vos, somente com o ensino primário – nem existiria. Foi jus- mântica de José de Alencar, bem mais distante da lingua-
tamente porque em seu tempo não existia uma Patrícia Sec- gem comum que a linguagem coloquial de Machado de As-
co facilitando-lhe Camões, Vieira e Almeida Garrett que o sis. Ao se dar conta da indignação que sua proposta suscitou
Machadinho do Morro do Livramento embebeu-se dos clás- no País, desde um abaixo-assinado contrário até artigos e e-
sicos, aprendeu francês sozinho e não apenas se tornou ca- ditoriais – Patrícia Secco publicou, na Folha de S. Paulo, no
paz de compreender os mestres da literatura universal, como dia 13 de maio, uma defesa de sua adaptação. O título do ar-

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tigo não poderia ser menos machadiano: “Machado não gos- fres públicos.
taria de permanecer desconhecido para quem não lê”. Que
afirmação mais esdrúxula! Machado, revolucionariamente, Simplificar livros agrava o problema da leitura
sabia-se texto e, como tal, sabia-se dependente do leitor. Em
sua tese Os leitores de Machado de Assis (Editora da USP, Escritora-empresária Patrícia Secco: R$ 10 milhões
2004), o professor da USP Hélio de Seixas Guimarães chega captados no Ministério da Cultura e produção de literatura
a afirmar que a obra machadiana foi influenciada pelo Cen- infanto-juvenil em ritmo industrial. Linguagem difícil nun-
so de 1872 (o primeiro realizado no Brasil e divulgado em ca foi o maior empecilho à leitura. Mário de Andrade, com
1876), ao revelar que só 18,6% da população livre e 15,7% um seu espírito galhofeiro, disse que, para se gostar de Ma-
da população total – incluindo-se escravos – sabiam ler e es- chado de Assis, é preciso já nascer velho. Eu vou mais lon-
crever. “A tomada de consciência da escassez de leitores, ge: para se gostar de literatura, é preciso envelhecer cedo.
problema que se inscreve de maneira cada vez mais radical Por isso, o Eclesiastes diz que “o muito estudar enfado é da
em seus romances, parece-me fator relevante para ajudar a carne”. Em nenhuma época ou lugar a leitura foi a mais po-
guinada que o escritor imprimiu a sua carreira”, escreve Sei- pular das formas de lazer. Literatura é a mais reflexiva das
xas Guimarães. Mas Machado de Assis qual sociólogo e psi- artes, e a maioria das pessoas abomina reflexão, que, para
cólogo nato também estava preocupado com os que não sa- muitos, rima com “depressão”. Isso ocorre também com a
bem – ou não querem – ler, oferecendo-lhes não a literatura- música erudita. Quantas pessoas, ricas ou pobres, formadas
texto, mas a literatura-instituição, encarnada na Academia ou não, tão logo se sentem tocadas por um concerto de Mo-
Brasileira de Letras, que detém até o monopólio legal da lín- zart, uma sonata de Beethoven, logo tendem a afastá-las dos
gua, tão grande é a sua importância. Aliás, ao contrário do ouvidos, pedindo uma “música alegre”, sob a alegação de
que pensa Patrícia Secco, isso torna Machado de Assis o es- que aquele tipo de música lhes provoca tristeza? Creio que
critor mais conhecido pelos que não sabem – ou não querem isso ocorra com qualquer povo, só que, no Brasil, fugir da
– ler, nomeando ruas e escolas e simbolizando as letras naci- reflexão como o diabo foge de cruz não é uma característica
onais da mesma forma que o desgrenhado Beethoven sim- só das massas, mas também das elites. Uma frase de Macha-
boliza a música para quem nunca pisou numa sala de con- do de Assis talvez explique esse fenômeno: “A verdadeira
certo e só conhece da música erudita o eterno “tchan-tchan- ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se as-
tchan-tchan” da Quinta sinfonia. No próprio modo de com- simila para nutrição”. Infelizmente, no Brasil, a educação
posição da ABL, que aceita políticos e notáveis travestidos nunca foi um meio de edificação intelectual e moral do indi-
de escritores (como o Barão do Rio Branco, Marco Maciel víduo, como pregava Machado, mas um salvo-conduto para
e Ivo Pitanguy), Machado de Assis revelou toda sua enge- o sucesso social. Nas nações que levam a sério o conheci-
nharia político-institucional, dando à literatura brasileira u- mento, o indivíduo primeiro busca o saber e, como conse-
ma dignidade social que ela jamais poderia alcançar numa quência, conquista o diploma. No Brasil, dá-se o contrário:
nação de analfabetos se continuasse sendo produzida em ba- o sujeito busca avidamente o diploma e, se sobrar tempo,
res, por uma despreocupada geração de boêmios. E quando vai à cata de algum conhecimento para fingir que não é de
procurou fazer da literatura brasileira também uma institui- todo ignorante. Por isso, lê-se pouco no Brasil, mesmo entre
ção social descarnada do texto, capaz de chamar a atenção a gente letrada: ler exige uma posição de sentido do espírito
da sociedade por outros meios, Machado de Assis não esta- – que é cada vez mais rara numa nação que sempre despre-
va pensando exatamente nas camadas populares da nação – zou o mérito. Simplificar livros não resolve o problema –
estou certo de que ele pensava, sobretudo, na preguiçosa eli- pelo contrário, agrava-o. Iniciativas como a de Patrícia Sec-
te nacional, que, mesmo sabendo e podendo ler, não lia, nem co abastardam o povo brasileiro ao impedi-lo de conhecer o
em seu tempo, nem hoje. Machado estava ciente de que, até verdadeiro Machado de Assis, sufocado por uma montanha
mesmo entre as elites, eram poucos os que tinham o hábito de 600 mil falsificações de sua obra. Nesta semana que pas-
da leitura, tanto que seu grande amigo José de Alencar se sou, dormi menos de três horas por dia, em média, varando
queixava de que o público conhecia mais O guarani pelo as madrugadas na comparação – linha por linha – da sagrada
teatro do que pelo texto do romance em si. Portanto, Patrícia escritura de “O alienista” de Machado de Assis com o apó-
Secco revela todo o seu preconceito contra os pobres quan- crifo de mesmo nome da escritora Patrícia Secco. Ao cabo
do cita uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostran- dessa ingente labuta (que Secco, toscamente, “traduziria”
do que 58% dos brasileiros não leram nenhum livro nos por “ao fim desse grande trabalho”), faço minha a indigna-
últimos seis meses e, logo em seguida, afirma que, “por trás ção de Alcides Villaça, professor da USP: “Apresentar co-
desses números, existem rostos e vidas”, mas, ao desvendá- mo sendo de Machado de Assis uma mutilação bisonha de
-los, só se lembra de pessoas como “Seu Roberto, motorista seu texto não devia dar cadeia?” Sim, devia dar cadeia, so-
de táxi, o Cristiano, caixa da farmácia da esquina, a Dona bretudo para os tecnocratas do MEC que torraram mais de
Nice, copeira do escritório”, pois, segundo ela, “eles são não R$1 milhão dos cofres públicos nessa falsificação grosseira
leitores”. Ora, só eles? E quantos são leitores entre as elites de Machado de Assis.
econômica, social e política do País? Essa preocupação per-
passa a obra de vários críticos ao longo do tempo, como José Machado de Assis para consumo próprio
Veríssimo, Sílvio Romero e Otto Maria Carpeaux que se an-
gustiavam com o grande número de profissionais liberais, Nem se pode chamar de adaptação esse trabalho de
qual médicos, engenheiros, advogados, professores e outros Patrícia Secco. Em sua arbitrária simplificação d’“O alienis-
profissionais de nível superior, que passam ao largo da lite- ta”, com graves erros de interpretação de texto, a escritora-
ratura, limitando-se às leituras técnicas de suas respectivas -empresária embrutece o espírito do leitor ao falsear o estilo
áreas e reservando o tempo livre para outras formas de lazer, de Machado de Assis, descaracterizar os seus personagens
que nada têm a ver com as letras. Por isso, quando se pensa e descontextualizar sua obra. Segundo ela própria contou a
em “pobre” como o sinônimo de “não leitor”, o que se quer, Chico Felliti, da Folha de S. Paulo, a equipe que “descom-
no fundo, é uma justificativa para arrancar dinheiro dos co- plica” o texto é formada “por um monte de gente” (expres-

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são dela, segundo o jornalista), entre eles a própria escritora carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do
e “dois jornalistas amigos”. É como pegar pintores de pare- esposo; e à sua resistência – explicável, mas inqualificável
de num bar e levá-los para restaurar a Capela Sistina. O re- – devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”.
sultado não poderia ser pior. Onde Machado de Assis escre- Qualquer dona de casa sem nenhum estudo compreende que
ve: “Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Ba- D. Evarista, por amor à saborosa carne de porco de Itaguaí,
camarte”; Patrícia Secco traduz: “Uma curiosidade científi- não quis fazer a dieta proposta pelo marido e, por isso, não
ca iluminou os olhos de Simão Bacamarte”. Além de destru- conseguiu ter filhos. Agora, eis a versão analfabético-funci-
ir a musicalidade da frase, a troca de palavras assassina o onal de Patrícia Secco: “[Simão Bacamarte] acabou por in-
sentido do texto: “volúpia” tem uma forte conotação sexual, dicar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre da-
imprescindível para se compreender a paixão de Bacamarte ma, que deveria se alimentar exclusivamente com a carne
pela ciência, algo que se perde completamente com a pala- de porco de Itaguaí, não atendeu aos conselhos do esposo.
vra “curiosidade”. Além do mais, palavras como “volúpia” E, à sua teimosia – explicável, mas inqualificável – deve-
e “alumiar” não precisam de tradução: a primeira pode ser mos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Ela sim-
lida na Bíblia ou ouvida em homilias católicas e pregações plesmente está dizendo que o alienista receitou uma dieta de
evangélicas, e a segunda, em que pese fazer parte do reper- carne de porco à esposa, quando foi o contrário. Mais adian-
tório clássico da língua, é perfeitamente compreensível para te, quando descreve revolta dos Canjicas contra a Casa Ver-
qualquer lavrador que nunca frequentou escola, mas sabe de, Machado de Assis narra: “Os dragões pararam, o capitão
perfeitamente o que é uma candeia alumiando. A impressão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma
que fica é de que Patrícia Secco e sua equipe traduziram Ma- parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou for-
chado de Assis para consumo próprio. Ou alguém imagina temente o barbeiro”. Secco estropia o texto: “Os soldados
que uma pessoa esforçada o suficiente para ler um livro não pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse.
vai ser capaz de compreender, com a ajuda do contexto da Mas, enquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a
obra, palavras ou expressões como “congregar”, “ataranta- outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. A adaptadora não
do”, “estatelar-se”, “pessoa de consideração”, “déspota”, faz ideia da conjunção “conquanto” e, em vez de recorrer a
“laudas”, “demanda”, “estar em erro”, “arruaças”, “clamo- “embora”, a traduz por “enquanto”, transformado Machado
res”, “vereança”, “eloquência”, “aritméticos”, “vestuário”, em analfabeto. No mesmo episódio, o escritor diz que o ca-
“abono”, “gaiato”, “intuito”, “oficiou”, “lusitana”, “juiz-de- pitão dos “dragões” mandou “carregar contra os Canjicas”.
-fora” e outras de mesmo nível? Todas essas palavras foram Patrícia Secco traduz “carregar” (que, no contexto, significa
substituídas por sinônimos catados arbitrariamente no “investir contra”) por “disparar”, sem perceber que os dra-
dicionário sem levar em conta o contexto da obra, muito me- gões – como os “Dragões da Independência” de hoje – usa-
nos o estilo do autor. Analisei minuciosamente a adaptação vam espadas e não armas de fogo. Com isso, o leitor de sua
de Patrícia Secco e hei de voltar a ela. Mas já adianto: trata- adaptação vai achar que Machado de Assis fazia realismo
-se de um caso clínico de analfabetismo funcional, digno de mágico: uma tropa mete fogo na multidão e essa multidão
ser recolhido às dependências da Casa Verde de Simão Ba- arrosta as balas, sem medo da morte. Uma das admiráveis
camarte. Em vários momentos, Secco e sua equipe não con- qualidades de “O alienista” é o cuidado com que a história
seguem compreender o que Machado diz com sua peculiar aparece nele. Machado de Assis preocupa-se com os míni-
clareza e desvirtuam completamente o original. Machado de mos detalhes históricos e escreve que Simão Bacamarte era
Assis escreve: “Simão Bacamarte começou por organizar “maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”.
um pessoal de administração; e aceitando essa ideia ao boti- Patrícia Secco corrige para “Espanha”, sem fazer a menor i-
cário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. deia de que, na época colonial em que se passa a história, a
Já Patrícia Secco: “Simão Bacamarte começou organizando Espanha era oficialmente chamada “Reino das Espanhas”.
um pessoal de administração. Convencendo o farmacêutico Em outro trecho, Machado diz que, para D. Evarista, ver o
Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Repa- Rio de Janeiro “equivalia ao sonho do hebreu cativo”, sinte-
rem no absurdo: a adaptadora transforma o alienista num su- tizando nessa expressão a sensação de exílio e confinamento
bordinado do boticário, a quem precisa convencer sobre a que a acanhada Itaguaí produzia no espírito frívolo da mu-
necessidade de uma administração em seu próprio manicô- lher de Bacamarte. Patrícia Secco estraga a imagem, substi-
mio. Em outro trecho, o Padre Lopes diz: “Isso de estudar tuindo “hebreu cativo” por “judeu cativo”. Ela confunde os
sempre, sempre, não é bom, vira o juízo”. A adaptadora re- hebreus que se tornaram escravos no Egito e foram liberta-
escreve: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, preju- dos por Moisés com os filhos da tribo de Judá que, já na ter-
dica o juízo”. Chega a ser inacreditável essa troca da popula- ra prometida de Canaã, séculos depois, emprestariam o no-
ríssima expressão “vira o juízo” por “prejudica o juízo”, um me de sua tribo para todo o povo eleito. Se, ao citar Dante,
barbarismo que deve ter revirado o estômago do primeiro Machado tivesse dito, com precisão histórica, “poeta floren-
verme que roeu as frias carnes do defunto Brás Cubas! tino”, não tenho dúvida de que Patrícia Secco iria corrigir
para “poeta italiano”. Aliás, numa das raras e lacônicas no-
Deturpando o enredo e a história tas de rodapé, a adaptadora faz isso: ela diz que Averróis é
um filósofo e poeta “hispano-árabe”. É o mesmo que cha-
Na arbitrária simplificação de “O alienista”, com er- mar Santo Agostinho de filósofo romano-argelino. Por que
ros de interpretação de texto, escritora embrutece espírito do Patrícia Secco e sua equipe cometem essa profusão de erros
leitor ao falsear estilo machadiano. Machado conta que, co- de extrema gravidade ao adaptar o conto de Machado de As-
mo D. Evarista não conseguia ter filhos, o Dr. Simão Baca- sis? Sem dúvida, porque não estão à altura da tarefa. No fun-
marte “fez estudo profundo da matéria, releu todos os escri- do, a escritora e seus amigos jornalistas, a cada vez que bus-
tores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou con- cam um sinônimo para um termo ou expressão do conto, es-
sultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por a- tão traduzindo a obra para eles próprios e não para o eletri-
conselhar à mulher um regímen alimentício especial”. En- cista, o faxineiro, o motorista de táxi, que precisam menos
tretanto, “a ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela do que eles dessa facilitação. Para se ter uma ideia do quanto

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é absurda tal adaptação, Machado empregou o termo “tran- sua própria mulher no manicômio, ou de grande espírito pú-
seuntes”, e a adaptadora achou por bem substituí-lo pela ex- blico, como abdicar das subvenções da Câmara à Casa Ver-
pressão “os que por ali passavam”. Imagino Patrícia Secco de, ajudam a compor o seu caráter incorruptível. Mas tão
ouvindo uma rádio AM do interior na década de 70, quando importante quanto suas ações é sua vida interior, que Ma-
o Brasil era muito menos escolarizado do que hoje. Ela fica- chado de Assis, como exímio “psicólogo da alma humana”,
ria pasmada (ou “espantada” conforme sua tradução de Ma- evita descrever explicitamente, preferindo fixá-la por meio
chado) ao se dar conta de que um dos grandes sucessos de de pequenos gestos do alienista, como um olhar perquiridor
Tonico & Tinoco, dedicado por peões de fazenda a suas res- sobre a multidão, um sorriso complacente para a esposa, um
pectivas namoradas, era a canção “O gondoleiro do amor”, passeio pelas ruas com o boticário. Percebe-se, em cada uma
poema de Castro Alves, cantado pela dupla caipira ao som de suas atitudes, mesmo nas mais banais, que Simão Baca-
de violinos. Saudosos tempos em que uma dupla de lavrado- marte jamais baixa a guarda de seu espírito investigativo, e
res elevava o povo até Castro Alves; hoje, gente como Patrí- que está sempre em busca de dados para confrontar ou cor-
cia Secco faz é rebaixar o povo quando dá a ele um Macha- roborar as hipóteses que lhe fervilham na cabeça.
do de Assis no nível de si mesma.
Deturpando o conceito de ciência
(Jornal Opção, 24.05.2014)
Em sua adaptação de “O alienista”, a escritora-em-
Ministério da cultura confunde ciência com presária Patrícia Secco passa por cima de todas essas nuan-
religião ao falsificar Machado de Assis ces, começando por deturpar o próprio conceito de ciência,
atribuindo a Machado de Assis uma afirmação capaz de en-
José Maria e Silva vergonhar os loucos da Casa Verde. Depois que D. Evarista,
contrariando os prognósticos científicos de Simão Bacamar-
Se o Ministério da Cultura tivesse um mínimo de res- te, não lhe deu filho algum, o médico não se desesperou e,
peito pela nação brasileira, ao invés de construir um túnel para ter certeza da esterilidade da esposa, esperou três, qua-
com 60 mil livros, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, tro, cinco anos, só então partindo para um estudo profundo
para o lançamento da falsificação de “O alienista”, de Ma- da matéria em busca de uma solução para o problema. Ao
chado de Assis, perpetrada pela escritora-empresária Patrí- descrever essa atitude de Simão Bacamarte, que jamais se
cia Secco, ele mandaria diretamente para a reciclagem os deixa guiar intempestivamente pelos fatos, comportando-se
600 mil exemplares do livro, adaptado juntamente com “A sempre como o senhor das situações que vivencia, Machado
pata da gazela”, de José de Alencar. Conquanto jogando fo- de Assis reforça essas características de verdadeiro cientista
ra mais de um milhão de reais gastos com essa adaptação, o do médico, lembrando que “a índole natural da ciência é a
prejuízo seria muito menor, poupando os jovens e demais longanimidade”. Pobre Machado! Ele jamais poderia imagi-
leitores brasileiros de consumirem um Machado de Assis nar que, 132 anos depois, em plena era da física subatômica
completamente adulterado, qual demonstrei no artigo “Dis- e do sequenciamento do DNA, uma escritora haveria de en-
cípula de Paulo Freire assassina Machado de Assis”. Mas a vergonhá-lo diante de seus leitores atribuindo-lhe esta frase:
somatória dos erros apontados naquele artigo está longe de “A índole natural da ciência é a aceitação” – pois foi assim
abarcar todos os problemas da arbitrária adaptação de Patrí- que Patrícia Secco simplificou “longanimidade”. Somente
cia Secco. Explicar a necessária reposição de cada palavra essa frase insana – que demonstra não apenas um completo
e cada frase do texto original exigiria um livro muito maior desconhecimento do que seja ciência, mas até mesmo uma
do que o próprio conto de Machado de Assis somado à tosca total incapacidade de consultar dicionário – já seria mais do
adaptação de sua obra patrocinada pelo MEC. “O alienista” que suficiente para que o Ministério da Cultura criasse ver-
é um tratado de sociologia do conhecimento em forma de gonha na cara e transformasse em papel reciclado o livro de
ficção e é justamente essa sua característica essencial que se Patrícia Secco, antes que os jovens pensem que Machado de
perde na adaptação de Patrícia Secco. A complexa figura do Assis não passa de um néscio, que confunde ciência com re-
Dr. Simão Bacamarte – que simboliza tanto o bem quanto o ligião. Em qualquer aula, palestra, verbete de enciclopédia
mal que a ciência acarreta – só pode ser plenamente compre- e até programa de auditório que porventura trate de ciência,
endida quando se atenta para a linguagem com que esse per- aprende-se que ela é justamente o oposto de aceitação. O ci-
sonagem é meticulosamente bordado por Machado de Assis entista pesquisa e descobre ou inventa coisas novas justa-
no correr da narrativa. Não só os adjetivos mas até os verbos mente porque não se satisfaz, não se conforma, não se resig-
que descrevem suas ações foram escolhidos a dedo por Ma- na, não aceita respostas prontas e está sempre formulando
chado de Assis e não podem ser alterados de forma alguma, novas perguntas para os dados que a realidade lhe oferece.
sob pena de se desconstruir esse herói trágico da ciência cri- Se Machado de Assis estivesse falando da religião do padre
ado pelo escritor brasileiro. Ao contrário do que tende a pa- Lopes e não da ciência do alienista, aí, sim, ele bem poderia
recer à primeira vista, “O alienista” não é apenas uma crítica ter escrito: “A índole natural da fé é a aceitação”.
arrasadora à prepotência do progresso científico – ele é tam-
bém uma homenagem à inquietação intelectual do autêntico Sem saber usar dicionário
cientista, que jamais deve abdicar da busca do conhecimen-
to, ainda que ao preço de sacrificar-se a si mesmo. Há casos O problema é que Patrícia Secco e o “monte de gen-
de cientistas que, com o risco da própria vida, ousaram se te” (segundo suas próprias palavras) que a ajudou a adaptar
tornar cobaias de suas próprias experiências. Foi o caso do “O alienista” não parecem saber usar dicionário. Ao pesqui-
médico microbiologista polonês Alberto Sabin (1906-1993) sarem a palavra “longanimidade” no Aurélio e no Houaiss,
– naturalizado norte-americano, que testou em si mesmo o optaram pelo seu significado mais simples e lateral, sem se
vírus vivo da poliomielite para produzir a vacina que iria preocupar com a essência de seu significado e, sobretudo,
vencer a doença. Simão Bacamarte é um cientista dessa es- com o contexto da frase em que Machado de Assis a usou.
tirpe e suas demonstrações de imparcialidade, como internar Esse é um pecado que nem aluno do ensino fundamental de-

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veria cometer que dirá uma escritora que se arvora a adaptar lo XIX foi o século do positivismo de Augusto Comte, um
os clássicos. O Houaiss define “longanimidade” como “vir- filósofo que apresenta muitos pontos em comum, do ponto
tude de se suportar, com firmeza, contrariedades em benefí- de vista cognitivo e moral, com Dr. Simão Bacamarte. Am-
cio de outrem” e oferece como sinônimos “magnanimida- bos viam no conhecimento o mais alto ideal da humanidade
de” e “generosidade”. Já o Aurélio define “longanimidade” e ambos eram inquebrantáveis e incorruptíveis na busca de
como “firmeza de ânimo” e abona essa acepção com uma tal ideal. Além disso, a influência do positivismo, no Brasil,
citação de Lima Barreto, extraída de Clara dos anjos, em é imensa: forjou a República, enraizou-se nos quartéis, ins-
que o autor, numa prova de que “longanimidade” não se re- pirou políticos como Getúlio Vargas e paira até hoje sobre
duz nem sequer a “resignação”, usa as duas palavras na mes- o País no lema da Bandeira Nacional. Em 1882, quando Ma-
ma frase com conectivo: “Nunca articulou acusação contra chado de Assis publicou “O alienista” como um dos contos
Flores. Sofria todos os desmandos do marido com resigna- do livro Papéis avulsos, o positivismo impregnava a intelec-
ção e longanimidade”. O Aurélio também apresenta como tualidade francesa. Émile Zola ainda não publicara o clássi-
sinônimos da palavra em questão os termos “magnanimida- co Germinal, mas sua obra já refletia o positivismo de Au-
de” e “generosidade”. No espanhol, que, a exemplo do por- gusto Comte e tinha grande número de discípulos no Brasil.
tuguês, herdou a palavra do latim longanimitas, o Diccioná- Muitos romances eram escritos qual ilustração de teses cien-
rio de la Real Academia Española também define longani- tíficas, como o determinismo social do Naturalismo, que de-
midad como “grandeza y constancia de ánimo en las adver- sagradava Machado de Assis e o levou a criticar duramente
sidades”, “benignidad, clemencia, generosidad”. Ou seja, o romance O primo Basílio, de Eça de Queirós. “O alienis-
em todos os principais dicionários da língua portuguesa e ta” surge como uma crítica a esse cientificismo que impreg-
espanhola, o sinônimo mais próximo de “aceitação” para a nava a literatura e, em muitos casos, a engessava. Essa no-
palavra “longanimidade”, por extensão de sentido, é “resig- vela inscreve-se numa linhagem ficcional que remonta a E-
nação”. rasmo de Roterdã, Luciano de Samósata e Menipo de Gada-
ra, sem se esquecer da vertente filosófica que se ancora em
Assassinando a inteligência de Machado Montaigne e remonta ao Sêneca da Apocolocintose. E o que
realça o caráter único d’“O alienista” é que ele não é somen-
Como foi, então, que Patrícia Secco, assassinando a te uma sátira da psiquiatria – é também a tragédia de um psi-
inteligência de Machado de Assis, atribuiu-lhe a máxima de quiatra. Simão Bacamarte é cinzelado por Machado de As-
que “a índole natural da ciência é a aceitação”? Simples: sis com o mais grave respeito que a ciência fazia por mere-
sendo fiel ao seu espírito de que educar é facilitar. A rigor, cer. O discurso de Machado não é contra o objeto de sua crí-
não havia como substituir a palavra “longanimidade” do tica, como se vê em Erasmo ou em Luciano, mas empático
texto original de “O alienista”. Eis um caso em que, mesmo – ao mesmo tempo em que destrói a verdade fátua do cienti-
numa adaptação séria, de um livro que se presta a isso, o lei- ficismo de Simão Bacamarte, enaltece a convicção com que
tor teria de recorrer ao dicionário – o que, obviamente, não ele a busca. De certa forma, Machado de Assis, ao mesmo
faz mal a ninguém, pelo contrário. Nem a palavra “magnani- tempo em que deplora os erros da ciência, também lhe reco-
midade”, um seu sinônimo mais próximo, seria adequada ao nhece os méritos.
texto, pois “magnânimo” traz embutida a ideia de nobreza,
superioridade, altivez, mas a ciência às vezes tem de ser hu- Ciência como única explicação do mundo
milde e render-se aos fatos como ocorreu a Bacamarte dian-
te da esterilidade de sua mulher. Mas a resignação pontual É importante observar que os grandes avanços cien-
dum cientista diante dum caso concreto que se mostra refra- tíficos dos séculos XVIII e XIX levaram até mesmo a uma
tário ao entendimento não autoriza ninguém a dizer que “a crescente popularização da ciência entre as classes letradas.
índole natural da ciência é a resignação” – muito menos “a- As primeiras palestras e exposições científicas destinadas
ceitação”, como fez Patrícia Secco, numa das centenas de ao público leigo datam de antes da Revolução Francesa. Pa-
erros graves dessa verdadeira tragédia literária patrocinada ra se ter uma ideia dessa crescente importância do conheci-
pelo Ministério da Cultura. Para se perceber que “aceitação” mento científico, já em 1739, o italiano Francesco Algarotti
não pode ser usada indiscriminadamente como sinônimo de publicou A filosofia de Sir Isaac Newton explicada para o
“resignação”, basta pensar se é possível um pastor evangéli- uso das damas e, em 1770, foram publicados os primeiros
co dizer a uma pessoa a qual queira converter: “Você se re- livros de divulgação científica destinados a crianças. Foi as-
signa a Jesus?”. No ato de resignar-se, há muito de resistên- sim que a ciência saiu do laboratório e ganhou a imprensa,
cia vencida, dobrada, que se rendeu, enquanto o ato de acei- tornando-se, sobretudo a partir no século XX, praticamente
tar pode ser pura entrega, como no caso do crente que aceita a única forma válida de explicação do mundo. Hoje, pratica-
Jesus como seu Salvador ou de santos qual Francisco de As- mente já não existe nenhum aspecto da vida humana que a
sis, que, segundo a tradição católica, aceitaram no próprio ciência não esquadrinhe. É como se não houvesse nenhuma
corpo as sete chagas de Cristo. O Diccionário de la Real A- verdade fora do conhecimento científico. O debate que se
cademia Española registra esta acepção da palavra acepta- travou no Brasil a respeito das pesquisas com células-tronco
ción: “Asumir resignadamente un sacrificio, molestia o pri- embrionárias, por exemplo, foi reduzido pela imprensa a u-
vación”. ma luta maniqueísta entre cientistas e religiosos, em que os
primeiros encarnavam a razão e os últimos eram a caricatura
“O alienista” já é uma obra atual do obscurantismo. Praticamente não se ouviu a voz da filo-
sofia sobre o tema, o que seria obrigatório numa questão em
Entre a centúria de erros cometidos por Patrícia Sec- que é impossível separar, de modo preciso, o fato científico
co na adaptação de “O alienista”, esse é, sem dúvida, um de suas implicações morais. Os filósofos que se apresenta-
dos mais graves. Secco deturpa a essência da obra ao simpli- ram para aquele debate quase sempre se comportavam como
ficar justamente a complexa visão de Machado de Assis so- lacaios da ciência. A chamada “medicalização da vida”, por
bre a ciência, que continua mais atual do que nunca. O sécu- exemplo, no fundo é apenas um aspecto de um fenômeno

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mais amplo – a cientifização crescente da existência huma- contemporâneo. Exatamente por se distanciar desse modelo,
na. Prova disso é o enorme sucesso dos cientistas que se de- legitimado pela academia literária, a iniciativa de Patrícia
dicam à divulgação científica, como um Stephen Jay Gould fez subir a sobrancelha de alguns professores brasileiros, ou
(1941-2002) ou um Richard Dawkins, cujos livros ocupam por espanto, ou por indignação. Professor de Literatura Bra-
o lugar que já pertenceu à literatura na tentativa de explicar sileira da USP, Alcides Villaça, foi um dos primeiros a dar
o mundo. É que o Ocidente voltou a ser tão bacamartiano sua opinião, mostrando que se encaixava mais no segundo
quanto o mundo positivista da novela de Machado de Assis, caso, o dos indignados. “Machado de Assis não é para ser
e a ciência, com equivocado assentimento da filosofia, senta ‘gostado’ como sorvete de limão ou chocolate. Machado é
praça como exclusiva detentora da verdade, como se toda a um problema para qualquer criatura inteligente (por favor,
complexidade do universo pudesse ser reduzida apenas aos tente se preocupar). Ele relativiza os valores que servem de
fatos conhecidos. Mas se Patrícia Secco deturpando Macha- colchão para as nossas vidas. Ele aprendeu na prática (era
do de Assis escreve que “a índole natural da ciência é a acei- mulato, meu bem) que é duro nascer pobre e sem voz”, es-
tação”, toda essa complexidade que acompanha o desenvol- creveu o professor no seu perfil no Facebook. “Saiba que os
vimento científico e “O alienista” capta com incrível preci- jovens leitores para quem apresento, como professor, os tex-
são termina por desaparecer sem deixar rastro. Com isso, ao tos de Machado se revitalizam com essas questões (que ele
invés de facilitar Machado de Assis, ela torna o mundo ain- aborda) e agradecem pelo fato de que existe um artista que
da mais complexo – ao calar uma das vozes geniais que mais lhes dá forma e expansão. Caso queira aprender a redigir
soube compreendê-lo. sem ‘dificultação’ sugiro começar com fórmula sujeito mais
verbo mais complemento até atingir outras sequências pos-
(Jornal Opção, 31.05.2014) síveis e, enfim, começar a ler - é o que lhe desejo - um texto
do verdadeiro Machado de Assis. Do autêntico. Qualquer
De Machado de Assis a Shakespeare: quando falsificação, jogue imediatamente no lixo”, finaliza Villaça
a adaptação diminui obras clássicas o sarcástico desabafo. Para o professor de Literatura
Brasileira da UNESP, Benedito Antunes, a discussão esta-
Meire Kusumoto belecida após a apresentação do projeto de Patrícia é válida
e importante. “Mas não acho justificável desconstruir o esti-
Machado de Assis, carioca nascido há 174 anos e lo do autor. É como se ela estivesse traduzindo a obra, mas
morto há 105 anos, quem diria, está no centro de uma con- dentro da própria língua”, disse Antunes ao site de Veja. Se-
trovérsia literária em pleno século XXI. O colega cearense gundo o professor, o texto ainda pode causar dúvidas no lei-
José de Alencar (1829-1877) também não conseguiu se sal- tor. “A obra estará alterada, mas vai se passar pela verdadei-
var. Não foram eles, porém, que se colocaram em tamanho ra. Você vende a imagem de que está lendo Machado de As-
bafafá: foi com estranhamento que crítica e público recebe- sis, mas estará lendo outra coisa”. Para Antunes, a formação
ram a notícia de que a escritora paulista Patrícia Engel Sec- de leitores é um processo complexo, que não pode ser resol-
co, com a ajuda de uma equipe, simplificou obras dos dois vido com a simplificação de obras clássicas. “Não é facili-
autores clássicos para facilitar sua leitura. O projeto que al- tando um texto que você facilita a formação de leitores. A
terou partes do conto “O alienista”, publicado por Machado ideia é propor inicialmente leituras mais próximas do públi-
em 1882 como parte do livro Papéis avulsos e do romance A co. Naturalmente, ele vai se encaminhar para os clássicos o-
pata da gazela, publicado por Alencar em 1870, recebeu a riginais um dia”. Após observar a repercussão do projeto,
aprovação do Ministério da Cultura a captar recursos com a Patrícia afirmou que há certo purismo literário naqueles que
lei de incentivo para imprimir e distribuir, gratuitamente, a criticaram. “Trata-se de uma disputa entre o purismo e a
600 mil exemplares, pelo Instituto Brasil Leitor, a partir de democratização da leitura. As redes sociais estão cheias de
junho. Os livros, já disponíveis na internet, têm substituição exemplos de prejulgamentos e linchamentos baseados em e-
de palavras e expressões com registro simplificado, como, quívocos de interpretação”, diz. A adaptação de obras clás-
por exemplo, a troca de “prendas” por “qualidades” em “O sicas é prática corrente e aceita dentro do campo literário,
alienista”. “O público-alvo do projeto é constituído por não principalmente quando verte originais para livros destina-
leitores, ou leitores novos, jovens e adultos, de todos os ní- dos ao público jovem. O professor da UNESP, Benedito
veis de escolaridade e faixa de renda”, afirmou Patrícia em Antunes, lembra que até Monteiro Lobato adaptava muitas
entrevista ao site de Veja. Autora de mais de 250 títulos, em histórias clássicas nos contos que Dona Benta apresentava
sua maioria infantis, ela diz que encontra, diariamente, pes- à turma do Sítío do picapau amarelo. “Ele citava o grego E-
soas que não leem, mas que poderiam se interessar pelo uni- sopo, o francês Jean de La Fontaine, mas criava obras dife-
verso de Machado e Alencar se tivessem acesso a uma obra rentes, com Dona Benta comentando, Emília alterando par-
facilitada. “As adaptações têm sido, desde sempre, um gran- tes. Ele mudava o contexto, mas não fugia à essência das fá-
de negócio para a indústria editorial. Acredito que elas apro- bulas”, afirma Antunes. O professor da USP, Alcides Villa-
ximem o leitor novo ao texto literário, e que obras mediadas ça, concorda que as adaptações podem coexistir com a obra
por meio desse mecanismo são bons instrumentos de acesso original. “Adaptações hão em paralelo (distanciado, claro)
à literatura”, diz. No entanto o modelo de adaptação que Pa- com o original. Li várias quando menino”, disse ao site de
trícia e sua equipe, formada por profissionais do mercado e- Veja. Para ele, mesmo as adaptações mais ousadas, como as
ditorial, utilizaram nas duas obras é diferente do que se cos- que apresentam histórias clássicas em forma de quadrinhos,
tuma ver, por exemplo, em séries de obras clássicas destina- são válidas. “Histórias em quadrinhos têm linguagem pró-
das ao público infanto-juvenil. As estruturas e as histórias pria e são válidas como tais. De forma alguma substituem o
de “O alienista” e A pata da gazela foram mantidas e só e- texto integral de uma narrativa. O mesmo ocorre com outros
xiste a substituição de palavras e expressões das obras, ao formatos: adaptação para televisão, cinema, utilização em
passo que em adaptações comuns ao mercado editorial é fei- canções, em videoclipes etc.”. A série Mangá Shakespeare,
ta uma reformulação completa da forma como o texto é a- editada pelo Grupo Record, por exemplo, dá novo tratamen-
presentado, é uma recriação do texto clássico no contexto to às clássicas peças de teatro do dramaturgo inglês William

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Shakespeare (1564-1616). O texto é original, do século XV cado para que toda a população possa discutir filosofia. Ou
e XVI, cortado, eliminando descrições que são resolvidas filosofia não é importante? Outro dia, o frentista do posto
pelas ilustrações e vertido apenas para a língua portuguesa onde abasteço com frequência me pediu uma aula sobre físi-
pelo escritor e tradutor Alexei Bueno. As imagens são feitas ca quântica, pois encontrou o assunto muito mal explicado
com inspiração nas histórias em quadrinhos japonesas, os em uma revista. Desconversei, claro, mas então me surgiu a
mangás. A série, com cinco volumes publicados, vendeu ideia: por que não simplificar os conceitos da física quântica
cerca de 33000 livros até o momento. Já a coleção Save the para que toda a população possa discutir sua teoria? Mas
Story, também da Record, traz clássicos recontados por ou- quando se trata de literatura, dona Patrícia, me fica a certeza
tros escritores. Não é uma mera adaptação da história, é uma de que a senhora, com todo respeito, não sabe bem o que se-
versão a partir dos olhos de quem leu e gostou de um livro. ja. Literatura, minha cara, não é historinha, é muito mais. A
Umberto Eco, por exemplo, reconta o romance Os noivos, diégese machadiana é deveras simples. A grandeza do Ma-
do poeta italiano Alessandro Manzoni. Com quatro volumes chado não está nos enredos, mas justamente em seu discur-
publicados, a coleção vendeu cerca de 39000 exemplares a- so. E discurso literário é irredutível. E historinha não é lite-
té agora. De acordo com a editora executiva da Galera Re- ratura. Então, o que se apresenta ao público de menor com-
cord, Ana Lima, a intenção é também fazer com que o leitor preensão não é mais o Machado, mas sua falsificação. De
recorra ao livro original, eventualmente. “Torço muito para que adianta levar ao povo um guisado de gato, dizendo que
que os leitores, depois dos mangás, leiam não só as peças, é lebre? A simplificadora age como esses alunos de cursi-
mas os sonetos de Shakespeare e também outros dramatur- nho, que leem um resumo do livro e propalam que conhe-
gos e poetas”, afirmou. Intenção parecida tem o gerente edi- cem a obra. Apenas para exemplificar: o romance Grande
torial dos paradidáticos das editoras Ática e Scipione, Paulo sertão: veredas, de Guimarães Rosa, começa assim: “− No-
Verano. As casas editoriais têm dois projetos que adaptam nada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem
histórias clássicas para o público infantil e juvenil. Na séri- não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal no bai-
e Reencontro, autores da literatura brasileira se encarregam xo do córrego. Por meu acerto”. Bem, achei sua linguagem
de recontar livros como O mágico de Oz, de L. Frank Baum, muito estranha e refiz o texto: “− Coisa sem importância.
e Viagens de Gulliver, Jonathan Swift. Já na coleção Clás- Os estampidos de revólver que o senhor ouviu não foram de
sicos Brasileiros em HQ, Machado de Assis, Aluísio Azeve- briga de homem, louvado seja Deus. Fiz pontaria em uma
do e Raul Pompeia são alguns dos nomes que têm suas obras árvore do quintal lá perto do riacho. Apenas para treinar”. É
vertidas para o mundo dos quadrinhos. Para Verano, as a- evidente que o segundo texto não traz marca nenhuma de
daptações são uma forma de apresentar o autor e sua história Guimarães Rosa. É gato, sim, não lebre. Não se trata de ser
ao público jovem, sem que elas substituam a obra original. pior ou melhor. Trata-se de respeitar a autoralidade. Quem
“Quando as crianças se tornarem mais velhas, elas já terão não entende isso ainda não sabe o que é literatura. Se todos
subsídios para entrar nas obras completas, pois já terão lido podem tudo, onde ficaram meus sonhos de ser pianista, ju-
as adaptações. É um acesso ao texto na íntegra”, afirma. rista, alpinista e tantos outros? Sei algumas coisas, poucas,
mas ninguém sabe tudo.
(Revista Veja, “Entretenimento”, 12.05.2014)
(Carta Capital, “Sociedade”, 16.05.2014)
Um Machado “simprim”
Machado de Assis mais “simplesinho”?
Menalton Braff
Alcides Celso Oliveira Villaça (FFLCH-USP)
Admirável a intenção da senhora Patrícia Secco: ela,
que, com toda certeza, teve muita dificuldade para entender A você, que acha que sabe por que os jovens não gos-
o Machado de Assis, resolveu simplificar nosso escritor tam de ler Machado de Assis e entende ser necessário “sim-
maior para aqueles que, como ela, não conseguiam penetrar plificar” os seus textos: Machado de Assis não é para ser
os segredos da linguagem machadiana. Mas como se pode “gostado” como sorvete de limão ou chocolate. Machado é
afirmar algo assim tão subjetivo a respeito dessa senhora? um problema para qualquer criatura inteligente (por favor,
Bem, cabem aqui algumas considerações. Que ela não en- tente se preocupar). Ele relativiza os valores que servem de
tendeu o Machado é óbvio. Afirmar que em cada frase há u- colchão para nossas vidas. Ele aprendeu na prática (era um-
mas cinco palavras de pouco uso! Ele, o Machado, conheci- lato, meu bem) que é duro nascer pobre e sem voz. Ele viu
do por todos que o estudam como um dos autores brasileiros e entendeu logo todas as falcatruas de quem está no poder.
de vocabulário mais corrente, de menor extensão! Aquilo lá Pior que isso: ele não achava que as classes subjugadas ti-
de “esperteza”, meu santo Benedito! Primeiro não é verdade vessem qualquer outra intenção que não a de serem classes
a complexidade vocabular do Machado, mas não só isso; se, dominantes. E se aparelhou para sobreviver, e viver bem. E-
desde o início de uma vida intelectual, um indivíduo tiver à le viu e entendeu que, talvez, não valha a pena tanto esforço
sua disposição só palavras conhecidas, seu empobrecimento por idealismos condenados ao fracasso, conforme a História
linguístico será um desastre. Lembro minha adolescência, Política (que Maquiavel estudara tão bem) já provou. Ele i-
em Porto Alegre, quando discutíamos quase aos tapas se o maginou que o esforço de ser sublime não compensa na bar-
certo era baixar o nível da cultura para chegar-se aos menos ganha da próxima esquina. Ele piscou o olho para nós por-
cultos, ou elevar o nível cultural geral para integrá-los no que sabia muito, e também não sabia o que fazer com suas
mundo da cultura. Ora, nivelar por baixo ou por cima? Al- melhores intenções, e sua secreta poesia, e seu inconfessá-
guém irá me contestar dizendo que esse “por baixo e por ci- vel sentimento do trágico. E ele nos provou que tudo isso só
ma” não existe mais. Ótimo. Nível é uma coisa ultrapassada. passa a existir com o aparelhamento certeiro de uma lingua-
Bem, mas como a dona Patrícia quer simplificar o Machado, gem, de uma fala absolutamente pessoal, com um sujeito já
para que seja palatável até mesmo por pessoas que “fugiram dentro. E aí vem você e quer “facilitar” tudo isso, minha
da escola”, um amigo meu propõe que o Kant seja simplifi- cara? Você não sabe o quanto custou para aquele mulato lú-

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cido nos mostrar o mapa das nossas minas mais íntimas, da de do nosso país. Por trás desses números, no entanto, exis-
sociedade violenta que cochila dentro de nós? Pois saiba tem rostos e vidas. Pessoas como o senhor Roberto, moto-
que os jovens leitores para quem apresento, como professor, rista de táxi, Cristiano, caixa da farmácia da esquina, a Do-
os textos de Machado, se revitalizam com essas questões e na Nice, copeira do escritório. Eles são não leitores, e foi
agradecem pelo fato de que existe um artista que lhes dá for- pensando neles que elaborei o projeto, que é desenvolvido
ma e expansão. Com o texto dele, começam e recomeçam de acordo com as determinações do PNLL (Plano Nacional
as mais vivas discussões. Caso queira aprender a redigir sem do Livro e Leitura). Em parceria com a Secretaria do Livro
“dificultação”, sugiro começar com a fórmula “sujeito mais e Leitura do Ministério da Cultura, foi idealizado com o de-
verbo mais complemento” até atingir outras sequências pos- sejo de contribuir para a democratização do acesso à leitura
síveis e, enfim, começar a ler – é o que lhe desejo – texto do em nosso país. Acredito, realmente, nas adaptações como
verdadeiro Machado de Assis. Do autêntico. Qualquer falsi- instrumentos de acesso à literatura e, mais que isso, as con-
ficação, jogue imediatamente no lixo. sidero necessárias. A adaptação de clássicos, aliás, é uma
prática que sempre existiu. Trata-se de um grande negócio
(Facebook, 04.05.2014) para a indústria editorial, o que pode ser verificado pela e-
norme quantidade de obras adaptadas que se encontram à
venda nas livrarias e que fazem parte das listas de compras
do governo. Sou grata à Editora Abril por ter editado Clás-
sicos da Literatura Juvenil, entre eles Oliver Twist, O conde
de Monte Cristo, O corcunda de Notre-Dame, O homem da
máscara de ferro e A ilha do tesouro. Foi por meio dessas
adaptações que adentrei o universo de Dickens, Victor Hu-
go, Stevenson, entre outros. O custo dessa empreitada (edi-
tar e imprimir 300000 livros O alienista, de Machado de
Assis, e 300000 livros A pata da gazela, de José de Alencar
e 600000 livretos de dicas para formar um bom leitor) tota-
lizou R$1 milhão. Ou seja, R$ 1,67 o exemplar. Recursos
captados por meio da Lei de Incentivo à Cultura de nosso
país. Se há algo de positivo nessa controvérsia gerada pelo
meu projeto é que os jornais estão discutindo o acesso à lei-
tura, algo que não deveria jamais sair da pauta dos veículos
de comunicação. Oxalá todos que se mobilizaram nessa po-
Machado não gostaria de permanecer lêmica peguem seus exemplares de Machado de Assis das
desconhecido para quem não lê prateleiras para um delicioso reencontro. Tenho comigo a
sensação de que, ao fazê-lo, tomarão consciência de que o
Patrícia Engel Secco Bruxo do Cosme Velho, em toda sua genialidade incontes-
tável, não gostaria de permanecer para sempre como um
Sou escritora e trabalho há 18 anos com o incentivo desconhecido desta multidão de brasileiros.
ao hábito da leitura. Estar entre leitores e participar do pro-
cesso de descoberta do mundo das letras é o que me faz fe- (UOL, “Opinião”, 13.05.2014)
liz e me motiva. A experiência acumulada estimulou-me a
criar um projeto que visa à distribuição de clássicos da lite- “Gravata não passa futebol”
ratura adaptados. O público para o qual desenvolvi essa a-
ção é formado por não leitores e leitores novos, de todas as Pasquale Cipro Neto
idades e faixa de renda. Em geral, pessoas que jamais se a-
venturaram no maravilhoso universo de autores como Ma- Paro num dos semáforos da avenida Dr. Arnaldo. Em
chado de Assis e José de Alencar. O foco específico do pro- um dos “picolés” que há na “ilha” dessa via, vê-se uma pu-
jeto é a doação de livros para pessoas que não tiveram opor- blicidade de uma fábrica de celulares. Na parte baixa da tela,
tunidade de estudar ou tiveram acesso a um ensino de baixa veem-se dois ou três celulares (smartphones); na parte alta,
qualidade: jovens, adultos e idosos que não completaram o esta frase: “Gravata não passa futebol”. Confesso que, como
ciclo educacional e são constantemente excluídos do aces- o Rolando Lero, demorei um pouco para captar a mensagem
so à cultura. Recentemente, o Sesc (Serviço Social do Co- dos “gurus” que a criaram. No pouco tempo em que o sinal
mércio) e a Fundação Perseu Abramo divulgaram uma pes- ficou fechado, fiz algumas lucubrações, que incluíram a tola
quisa sobre hábitos culturais de brasileiros. O levantamento relação entre gravata e ferro elétrico, motivada (a relação)
aponta para uma triste realidade: “89% (dos entrevistados) por um dos tantos sentidos do verbo “passar”. Ao fim e ao
nunca foram a um concerto de ópera ou música clássica em cabo notei que se tratava duma mensagem publicitária desti-
sala de espetáculo e 83% a qualquer outro local; 75% nun- nada aos filhos que, porventura, ainda não tivessem compra-
ca foram a espetáculo de dança ou balé no teatro; 71% nun- do o presente do dia dos pais e que estivessem pensando em
ca estiveram em exposições de pintura, escultura e outras comprar uma gravata. A sugestão da peça publicitária? Tro-
artes em museus ou outros locais, e 70% jamais foram a u- car a gravata por um smartphone. O motivo? “Gravatas não
ma exposição de fotografia”. É de ficar pasmo. No univer- passam futebol”, ou seja, “gravatas não transmitem futebol”
so da leitura, a maioria (58%) não leu nenhum livro nos úl- (coisa que esses smartphones moderninhos fazem “com um
timos 6 meses, e os que leram possuem uma média de ape- pé nas costas”, visto que muitos deles são também aparelhos
nas 1,2 livro lido nesse período. A Bíblia é o segundo livro de televisão digital). Desfeito o “mistério”, fiquei pensando
mais lido. A boa notícia é que o interesse por romances – na captação da mensagem. Será que a frase atinge o seu ob-
assim, genericamente – lidera as atenções. Essa é a realida- jetivo? Será que a maior parte das pessoas que a veem capta

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de imediato seu sentido? Convém notar que se trata de men- o xingaram e tentaram agredi-lo [...]”. O referente do “o” e
sagem dirigida, especificamente, a quem passa por ela rapi- do “-lo” em questão é o ex-médico Roger Abdelmassih. O
damente. Embora o verbo “passar” com o sentido de “trans- caro leitor certamente notou que o redator preferiu “xingar”
mitir” seja muito comum na linguagem coloquial, o seu em- a “ofender”, “destratar”, “afrontar” etc. E fez ele muito bem.
prego na peça publicitária em tela não produz efeito imedia- O que as vítimas fizeram mesmo foi “xingar”. Imagine o
to. Se, no seu lugar, tivesse sido empregado o verbo “trans- texto assim: “Algumas vítimas o ofenderam e tentaram a-
mitir”, pouco frequente na linguagem coloquial, a captação gredi-lo [...]”. Que tal? A mensagem teria o mesmo tom, a
da mensagem seria mais rápida. Ou será que o que os reda- mesma dose de realidade? “Xingar” pode até ser sinônimo
tores queriam era mesmo provocar o estranhamento, fato de “ofender” etc., mas é claro que cada um desses verbos
comum na linguagem publicitária? Associada às fotos dos tem seus próprios matizes. Os dicionários (brasileiros e por-
smartphones, a frase “Gravata não transmite futebol” decer- tugueses) registram “xingar” como típico do português do
to seria facilmente assimilada. Se a intenção não era causar Brasil. Sorte nossa termos e podermos usar termo tão espe-
o estranhamento, essa peça publicitária confirma a “tese” de cífico como esse. “Xingar” vem do quimbundo, “língua da
que é populismo puro dizer que a linguagem oral é sempre família banta falada em Angola por ambundos” (Houaiss).
mais palatável do que a formal, ou que é sempre melhor usar Esse episódio ilustra muitíssimo bem a importância da esco-
termos conhecidos no lugar de palavras mais “sofisticadas”. lha das palavras. Não é à toa que o Houaiss define (muito
O fato é que todos deveríamos ter um bom vocabulário pas- bem) “sinônimo” como “palavra de significado semelhante
sivo, aquele que se conhece ou se deveria conhecer, mas que ao de outra e que pode, em alguns contextos, ser usada em
se usa com pouca frequência (além, é claro, do vocabulário seu lugar sem alterar o significado da sentença”. É bom re-
ativo, que se conhece e se usa com frequência). A escolha petir: “[...] pode, em alguns contextos, ser usada em seu lu-
ficaria por conta da situação, da necessidade. Vejo muito is- gar sem alterar o significado da sentença”. No caso do con-
so nos meios de comunicação. Certas palavras e construções texto do boletim da CBN, parece que a troca de “xingar” por
foram sumariamente abolidas da televisão, do rádio e de jor- “ofender” de fato não altera essencialmente o significado da
nais ou sites sob o duvidosíssimo argumento de que o ouvin- sentença, mas altera (e como!) o tom, o matiz. É por essas e
te – ou leitor – não as conhece e (ou) as acha formais demais. outras que convém voltar ao tema “simplificação da lingua-
Muitos profissionais do jornalismo (sobretudo, os da televi- gem”, que comentei rapidamente há duas semanas. Citei a
são) têm “alergia” a termos que não frequentem a linguagem troca (em “O alienista”, de Machado de Assis) de “sagacida-
coloquial. Pura bobagem. Essa conversa me lembra o que de” por “esperteza”, lembrada pelo professor João Cezar de
foi feito, recentemente, com uma obra de Machado de Assis, Castro Rocha em artigo publicado em O Estado de S. Paulo.
“reescrita” em linguagem “mais simples”. Sob o tosco argu- Eis uma das passagens: “[...] pareceu-lhe que possuía a as-
mento de que as pessoas não conhecem determinadas pala- gacidade, a paciência, a perseverança [...]”. O Houaiss defi-
vras, procedeu-se a um verdadeiro ultraje à obra do grande ne assim “sagacidade”: “Qualidade ou virtude de sagaz; ap-
Mestre. Como lembrou professor João Cezar de Castro Ro- tidão para compreender ou aprender por simples indícios; a-
cha (da UERJ), em recente e brilhante artigo publicado por gudeza de espírito; argúcia, manha, malícia”. E então, caro
O Estado de S. Paulo, uma das trocas foi a de “sagacidade” leitor? Que lhe parece trocar “sagacidade” por “esperteza”?
por “esperteza”, como se, na língua de hoje, fosse possível É sempre bom relembrar a carga pejorativa da palavra “es-
desprezar o tom que “esperteza” assumiu neste infame país, perteza” no linguajar brasileiro de hoje. A questão da esco-
repleto de “espertos” de todos os jaezes. Deus meu, Deus lha do vocabulário tem outros aspectos relevantes. Um deles
meu! Devagar com o andor, moçadinha. É isso. é visto ao se fazer a “coesão lexical”, que ocorre, por exem-
plo, com o uso de termos que representem seres já citados
(Folha de S. Paulo, “Cotidiano”, 07.08.2014) num texto. Certa vez, o grande Clóvis Rossi analisava deter-
minado aspecto da sordidez da realidade brasileira. No fim
do texto, o grande Rossi escreveu isto: “[...] a oitava econo-
mia do mundo não passa de um grande desastre social”. Co-
mo se vê, Rossi substituiu “o Brasil” por “a oitava economia
do mundo”. Com esse recurso, o articulista não só evitou a
enfadonha repetição (de “Brasil”, no caso), mas também a-
crescentou ou lembrou uma informação importante (o PIB
do Brasil era o oitavo do mundo). Se levarmos em conta o
choque que se dá entre o fato de termos um PIB significativo
e sermos “um grande desastre social”, notaremos a habilida-
de do articulista com as palavras. Escrever bem não é só jun-
tar algumas palavras obedecendo às normas gramaticais. Às
vezes, “o tiro sai pela culatra”. Em uma de suas provas, a
UNESP incluiu um texto cujos protagonistas eram os pilo-
tos Ayrton Senna da Silva e Alain Prost. Lá pelas tantas, de-
pois de evitar várias vezes a repetição dos nomes dos pilotos
(o brasileiro, o francês, o campeão do ano X, o campeão do
ano Y, o tricampeão, o tetracampeão...), o articulista não se
Xingar e ofender conteve: usou “o nanico” para referir-se a Prost (como se
Senna fosse um gigante). Além de provocar confusão, a coe-
Pasquale Cipro Neto são lexical foi deselegante. Umas aulinhas com os textos de
mestres (como Rossi) podem ajudar. É isso.
Uma das edições do “Repórter CBN” de ontem vei-
culou uma passagem parecida com esta: “Algumas vítimas (Folha de S. Paulo, “Cotidiano”, 21.08.2014)

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