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Texto Teatral.

O ALIENISTA EM MARATAÍZES

“A loucura é uma ilha perdida no oceano da razão.”

Machado de Assis

Autora: Roberta de Souza Isaias

Agosto-2019.
Roteiro:

O ALIENISTA EM MARATAÍZES

Personagens:
Dr. Simão Bacamarte: médico psiquiatra que estuda sobre loucura.
Dona Evarista: esposa do Dr. Simão.
Hippie: Machado de Assis da Silva, carioca, homem instruído que preferiu viver a liberdade a continuar
nos negócios da família.
Jovem 1: Capitu, 20 anos, filha do prefeito. É metida, porém bem educada. Vive agarrada nas redes
sociais.
Jovem 2: Helena, 19 anos, e trabalha. Sua única preocupação é conseguir atestado para apresentar no
serviço. Posta tudo que acontece nas redes sociais.
Jovem 3: Eugênia, 19 anos, educada, calma, adora selfies e postar fotos nas redes sociais.
Prefeito: Conselheiro Aires. Adora falar e acredita ter o dom da palavra.

Ato 1:

(Cenário de um consultório. Dr Simão Bacamarte e dona Evarista da Costa e Mascarenhas entram em


cena conversando)
Simão: Enfim, depois de 5 anos de residência no Sistema Único de Saúde, posso dedicar-me
exclusivamente à pesquisa sobre loucura.

Dona Evarista: Eu não entendi por que decidiu sair da cidade grande e vir morar em uma cidade
pequena como esta... Marataízes, a terra do abacaxi! O doutor nem gosta dessa fruta! (Ouve o barulho
da propaganda do abacaxi de Marataízes).

Simão: Preciso de sossego para realizar a pesquisa, mulher! E aqui está perto das cidades que preciso:
Vitória e Campos. Aqui também é uma cidade turística acostumada a receber forasteiros sem que isso
desperte a curiosidade das pessoas. (Simão para de falar, olha o relógio de pulso, coça o queixo e volta
a falar) Darei uma volta pela cidade. Quer acompanhar-me?

Dona Evarista: Não marido. Somente seu laboratório está arrumado. Ainda preciso terminar de tirar
tudo da caixa e desfazer as malas. Ficarei para arrumar tudo. (Aproxima-se, dá um beijo no rosto de
Simão, que está distraído olhando para cima) Tome cuidado. (Dona Evarista sai de cena por um lado e
Simão por outro).
1
(Barulho de mar. Simão caminha pensativo, cruza com turistas indo à praia, porém continua distraído.
Sai de cena. Entra em cena um hippie vendedor de pulseiras, senta no chão e começa a oferecer
pulseiras, cantar músicas, as pessoas passam e o ignoram. Um ou outro passa, olha as pulseiras mas
não compra. O hippie continua a oferecer pulseiras e a cantar feliz. Simão volta em cena e começa a
observar o hippie que toca a flauta e canta).

Hippie: “Nada do que foi será de novo


Do jeito que já foi um dia
Tudo passa,
Tudo sempre passará
A vida vem em ondas como um mar
Num indo e vindo infinito”
Olha a pulseira da sorte. Três pulseiras dez real! Três por dez! (Toca a flauta de novo e canta) “Como
uma onda no mar!
Como uma onda no mar!
Como uma onda no mar!”
(Olha para Simão e pergunta) vai uma pulseira da sorte, engomadinho?
(Simão se aproxima)

Simão: Sou o Dr. Simão Bacamarte e o senhor é?

Hippie: Sou o Hippie das Pulseiras.

Simão: Prenome?

Hippie: Alcunha.
(Simão fica surpreso por perceber que o hippie possui algum conhecimento. Caminha em volta do hippie
sempre coçando o queixo de forma distraída! Simão para e o hippie reclama)

Hippie: Sr... Dr... está tapando o astro rei.

Simão: (Confuso, volta-se para o hippie) Quem?

Hippie: O sol, devolva-me o sol, estás a fazer sombras! (Simão ignora o hippie e faz um ar de mistério)
Simão: Tenho uma proposta a lhe fazer. Estou fazendo uma pesquisa científica e gostaria de lhe fazer
umas perguntas em meu laboratório. Lá tem cama macia, comida e roupas. Não demorará muito.
Gostaria de me acompanhar? (Simão sem esperar resposta, aproxima-se do hippie para ajudá-lo a se
levantar. Cheira o ar e pergunta) Que cheiro ruim é esse?

Hippie: (Se levanta e ri) É o meu aroma natural. Chama-se cheiro de pele sem banho! Tomo banho
quando chove! (E rodopia feliz)
(Simão pega o hippie pelo braço e ambos encaminham-se para sair de cena, Simão explica como será a
experiência)

Simão: Quero que você tome um banho, se alimente e descanse. Conversaremos depois. (Cenário de
cozinha. Dona Evarista aparece em cena toda atarefada preparando um lanche para o hóspede novo, e
fala sozinha)

Dona Evarista: não achei que Simão iria arrumar uma cobaia tão rápido! É serviço que não acaba
mais! (E sai de cena carregando uma bandeja. Cenário do consultório. Em seguida, entra em cena
Simão e o Hippie)

Simão: Por favor, sente-se na cadeira e fique à vontade, farei algumas perguntas. (O hippie senta todo
à vontade, despreocupado da vida, e Simão senta-se detrás da escrivaninha, abre o caderno, pega a
caneta, aperta três vezes, olha para o hippie e começa a fazer perguntas)

Simão: Qual o nome completo do senhor?

Hippie: Machado de Assis da Silva. (Simão o encara, o hippie o encara de volta. Simão escreve no
papel)

Simão: Data de nascimento?

Hippie: 21 de junho de 1990. (Simão anota)

Simão: Possui familiar vivo?

Hippie: Sim! Todos estão vivos, e bem vivos! Moram no Rio de Janeiro. Papai é empresário, mamãe é
vereadora e minha irmã mais nova é enfermeira.
Simão: Por que o senhor não está lá perto deles?

Hippie: Porque escolhi estar aqui, oras!

Simão: Vocês se dão bem?

Hippie: Muito bem! Nos vemos sempre que posso.

Simão: O que te impede de ter uma casa?

Hippie: Mas eu tenho uma casa! O planeta Terra é minha casa! Todos os dias eu tenho uma visão
espetacular do amanhecer sem janela nenhuma me atrapalhar! A natureza me dá os melhores alimentos
que cozinheira nenhuma consegue fazer igual: as frutas e verduras! E na minha casa, eu tenho como
escolher onde quero ficar, sinto-me livre e feliz. Sinto-me completo! Na verdade eu possuo uma
mansão. Cada dia fico em um lugar da minha imensa mansão terrena!
(Simão está parado olhando fixamente para o Hippie, fica como que paralisado)

Hippie: próxima pergunta?

Simão: A experiência já acabou. Pode ir.

Hippie: Mas já?

Simão: Já. Chamarei dona Evarista para acompanhar-te à porta. (E grita dona Evarista que aparece
prontamente)

Dona Evarista: Sim senhor?

Simão: acompanhe este senhor até à porta. (Simão fica sentado coçando o queixo. Dona Evarista
acompanha o hippie até a saída do cenário e volta para perto de Simão e começa a ajeitar a mesa,
arrumar a cadeira, tirar uma poeira imaginária, ela olha para o Simão e pergunta.)

Dona Evarista: O que aconteceu? Achei que ele ficaria mais tempo!

Simão: Eu o vi na rua, sem nada e feliz! Achei-o louco! Porém agora percebi que ele tem muito mais do
que imaginei. Ele é feliz porque tem tudo. Não é louco. (coçando o queixo) Encontrarei outra cobaia.
(Ambos saem de cena)

Ato 2

(Cortina fecha e abre no cenário de praia – [sonorização: barulho de onda]: um coqueiro, mar, sol,
algumas pessoas caminham, outras passam correndo, passa o vendedor de picolé e chegam as jovens
conversando, com roupas de praia, óculos de sol, chapéu de praia, o alienista está sentado um pouco
atrás tomando água de coco, vestido da cabeça aos pés.)

Jovem 1: Não acredito que conseguimos vir à praia hoje!

Jovem 2: É bom para espantar o mofo!

Jovem 3: O dia está lindo para tirar fotos!

Jovem 1, 2 e 3: Iremos arrasar!

(As jovens estendem as saídas de praia, sentam-se e começam a tirar objetos da bolsa. Uma passa
protetor nos ombros, a outra retoca o batom, e a outra tira o chapéu e ajeita o penteado. Cada uma
pega o celular e começa a fazer caras e bocas para tirarem as próprias fotos. Simão observa toda essa
movimentação.)

Jovem 1: vamos tirar uma foto juntas?

Jovem 2 e 3: Sim! (Elas se aproximam, mais caras e bocas e cada uma tira do seu celular, retornam
aos lugares e continuam mexendo no celular.)

Jovem 3: Já estou cheia de curtidas!

Jovem 1 e 2: Eu também!

Jovem 3: Vamos embora?


Jovem 1 e 2: Sim! (Elas se levantam e começam a dobrar as saídas, ajeitar a bolsa. Simão se
aproxima)

Simão: Boa tarde senhoritas! Sou o doutor Simão Bacamarte e gostaria de saber se as senhoritas não
poderiam participar de uma pesquisa científica... tudo em prol da saúde!

Jovem 1: (Desconfiada) Estamos com pressa!

Jovem 2: Dará atestado?

Jovem 3: Estamos com fome! (as jovens começam a discutir entre elas, Simão intercede)

Simão: Senhoritas, por favor! O laboratório é na minha casa, e quem as recepcionará será minha
esposa. Poderão tomar banho, alimentar-se e repousar enquanto preparo as perguntas. (Simão começa
a empurrá-las gentilmente em direção à casa e todos saem de cena. Troca o cenário e volta o
laboratório. Entra dona Evarista, toda atarefada.)

Dona Evarista: Querem a senha do wi-fi! Mesmo se eu tivesse, não passaria! Ora vejam! Que
disparate! E a outra reclamou que a água do chuveiro está muito fria! Pelo menos não reclamaram da
comida! (Evarista vai ajeitando tudo, coloca mais duas cadeiras e sai de cena.)

(Simão entra, senta, olha uma pasta, tira uns papéis, deixa em cima da mesa, se levanta e sai. Retorna
com as três jovens. Todos sentam).

Simão: Boa tarde senhoritas. Eu farei algumas perguntas para preencher a pesquisa. Nome e idade.

Jovem 1, 2 e 3: vinte, dezenove, dezenove.


(Jovem 1, 2 e 3 falam ao mesmo tempo, se entreolham e começam a discutir).

Simão: Por favor, senhoritas! (As jovens se calam). Começaremos de novo. Qual o nome da senhorita?

Jovem 1: Capitu, tenho 20 anos e sou filha do prefeito. Quando ele souber que estou aqui, fará um
escândalo!

Simão: (Dirigindo o olhar para a jovem 2, indaga) E o seu nome, senhorita?


Jovem 2: Helena, tenho 19 anos e tenho uma pergunta.

Simão: Pois faça a pergunta, senhorita.

Jovem 2: Você dá atestado? Precisarei de um, com CID! Meu chefe não aceita atestado sem o código
internacional de doenças!

Simão: Darei seu atestado. (E olhando para a terceira jovem, pergunta) Seu nome?

Jovem 3: Eugênia, tenho 19 anos e posso tirar uma selfie com o doutor? Aliás, onde está meu celular?
(As três jovens começam a falar ao mesmo tempo. Simão toca uma sineta, dona Evarista entra, troca
um olhar com Simão e fala com as jovens).

Dona Evarista: Por favor, senhoritas, acompanhem-me, por favor.


(E leva as jovens de volta para a cela).

Simão: (sozinho em cena, ele divaga) Elas parecem tão bem apessoadas, não rasgam dinheiro, sabem
se alimentar corretamente, são educadas, apenas não sabem a hora de pararem de falar! Mas parece
que a loucura delas está no telefone. Será isso?

(Som de campainha. Dona Evarista chega em cena com um senhor com roupas coloridas).

Dona Evarista: Esposo, o prefeito da cidade quer falar com você! (o prefeito aproxima-se com a mão
estendida).

Prefeito: Doutor, é uma honra termos o senhor nessa cidade! Sou o Conselheiro Aires! Sempre fui a
favor da pesquisa e da saúde. Está gostando da cidade? Já conhecia antes? Gostaria que fosse visitar as
instalações do novo hospital. Não está funcionando ainda, mas em breve irá ser o melhor hospital da
região sul do Espírito Santo. Serei breve... O motivo da minha visita é que a população está
amedrontada com os convites do doutor para participarem da pesquisa, inclusive eu fiquei sabendo que
minha filha está aqui. Essa informação é verdade ou boato do povo? Já viu né, o povo às vezes fala
demais.
(Neste momento Simão levanta e vai levando o prefeito lentamente em direção à cela. O prefeito
continua falando sem perceber para onde ia.)

Prefeito: Eu disse para as pessoas que não tinham nada a temer, que um médico na cidade é benéfico
para todos e que eu iria conversar para tentar resolver as coisas.
(Ambos saem de cena;)

Ato 3:

(Aparecem as três jovens e o prefeito na cela.)


Prefeito: Isso é um disparate!

Jovem 1 (Capitu): Pelo menos devolveram nosso celular.

Jovem 2 (Helena): (mexendo no celular) Disparate: absurdo... absurdo é disparate? Gostei. Concordo,
senhor prefeito. Isso é um disparate!

Jovem 3 (Eugênia): pedi que enviasse o questionário por whatsapp para adiantar nosso lado e ajudar
o doutor... chegaram as perguntas!
(Todos pegam os celulares e começam a mexer; todos saem de cena).

(Consultório. Entram em cena Simão e dona Evarista. Dona Evarista, com o celular na mão, lê as
respostas.)

Dona Evarista: Capitu respondeu que fotos eternizam momentos, e às vezes passamos despercebidos
por tantas situações, que a vida passa tão rápido, temos tanto o que fazer, e são esses momentos
eternizados em fotos que nos fazem lembrar como é importante termos amigos, como é importante
gostar de nós mesmos, e que bom que tem um equipamento capaz de eternizar momentos fugazes em
nossas vidas.
(Suspira dona Evarista, e Simão fica com olhar pensativo, coçando o queixo. Dona Evarista continua).

Dona Evarista: E o prefeito respondeu que aprendeu com a professora de Português que o homem
deve saber fazer bom uso da palavra para ter um bom futuro e que desde cedo foi muito cobrado por
esta ação, e acredita que sabe fazer bom uso das palavras, e foi por isso que escolheu a vida pública,
pois cada um tem um dom e o dom dele é de convencer as pessoas de que pode cuidar delas.

Simão: Pode dispensar a todos!


Dona Evarista: O que disse?

Simão: Pode liberá-los. Já tenho as minhas respostas. Agradeça a colaboração que deram à Ciência.
(Dona Evarista sai de cena, e Simão fica andando de um lado para o outro, coçando o queixo, em
seguida senta. Dona Evarista retorna, com espanador e vassoura).

Dona Evarista: Ficou tudo uma bagunça, preciso organizar isso! (Evarista começa a limpar, organizar a
mesa de Simão, tirar pó. Pede para ele se levantar e começa a varrer. Simão olha fixamente para a
esposa).

Dona Evarista: O que foi?

Simão: Ah! Coitada! Como não vi isso antes?


(Aproxima-se da mulher, tira-lhe a vassoura das mãos e gentilmente a leva para a cela).

Dona Evarista: Serei sua cobaia! Não acredito! Que disparate!

Simão: Será rápido. Quero fazer algumas perguntas.

Dona Evarista: Não irei responder! Só depois de me alimentar!

Simão: E quem irá fazer a comida?

Dona Evarista: Você! Afinal, gente louca não pode fazer comida!
(E senta na cadeira. Simão vai para a cozinha).

Simão: Meu Deus! Descobri que eu não sei cozinhar! E agora?


(Simão sai de cena, e retorna com uma caixa de pizza e um refrigerante).

Simão: O jantar da paciente chegou.


(E entrega a caixa para Dona Evarista).

Dona Evarista: Mas o doutor mesmo disse que essa comida pode matar! Meu Deus! Que triste. Eu que
fui educada para cuidar das pessoas, faço tudo com muito amor! Fico feliz em ver tudo organizado, em
ver a satisfação da pessoa ao se alimentar, saborear a comida como se nunca tivesse comido algo
daquele sabor antes! Eu fico tão feliz! É como se eu tivesse fazendo parte da história de alguém. E
agora cá estou! Considerada louca! Se eu segui o doutor até aqui é porque percebo que você precisa de
mim e eu faço o meu melhor para deixar tudo organizado para você trabalhar. Sabe aquele ditado: “por
trás de um grande homem, sempre existe uma grande mulher.” Sinto-me bem e valorizada com tudo
que faço aqui. Mas tudo bem. Alimentar-me-ei dessa pizza, e depois estarei disposta a responder as
perguntas do doutor.
(Simão olha demoradamente para a esposa, coça o queixo e fala).

Simão: A senhora minha esposa pode se alimentar e depois sair da cela.

Dona Evarista: Mas já? Eu nem respondi ao questionário!

Simão: Sim, está liberada. Pode sair. Já respondeste e muito bem o questionário! (Dona Evarista pega a
caixa e se levanta, passa por Simão e sai de cena. Simão coça o queixo, anda de um lado a outro. Para.
Coça o queixo novamente e se encaminha para a cela. Se tranca. Joga a chave pela janela. Dona
Evarista retorna).

Dona Evarista: Simão, trouxe uma refeição saudável para você. Simão? (olha ao redor).

Simão: Estou aqui na cela.

Dona Evarista: O que está fazendo aí?

Simão: Irei me estudar! Até agora tenho focado nas pessoas erradas. Esqueci que eu sou o exemplo.
Irei me estudar e revolucionar o tratamento sobre loucura. Apenas peço Dona Evarista, minha esposa,
dedicada, que continue cuidando de mim. Não como esposo, mas como paciente. A Ciência precisa de
mim!

Dona Evarista: (chorando) Simão, meu amor! Por favor...

Simão: A questão é científica, trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em
mim mesmo a teoria e a prática. (A cortina se fecha, com a voz do narrador dizendo que Simão morrera
ali dezessete meses depois, deixando valiosos estudos sobre a loucura).

FIM

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