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Reality

(Final)
o canal fora do ar de
Michelle Ferreira

"Mas na realidade não há nenhum eu, nem mesmo no


mais simples, não há uma unidade, mas um mundo
plural, um pequeno firmamento, um caos de formas,
de matizes, de situações, de heranças e
possibilidades." Hermann Hesse

“Não se trata de interpretar simples, ou de


interpretar interior, mas de não interpretar de
modo algum.” Robert Bresson

“Tudo que é sólido se desmancha no ar.”Karl Marx

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(1)
A doença que se alastra não tem cura. Por
essa razão não reproduzimos o mundo, mas criamos
um mundo. E para nós, o mundo inteiro cabe em cima
de um palco. Fazem parte do mundo inteiro apenas
aquilo que existe,aquilo que se pode considerar
como real. Uma mesa é real. Um conjunto de
cadeiras também é um dado de realidade. As
pessoas são reais e existem.Tudo aquilo que
acontece realmente acontece. Tudo é cru, direto e
arrebatador. Não há psicologia ou tempo para se
pensar, só para viver. Objetos surgem conforme a
necessidade. O jogo começa porque é um jogo. A
vida acontece. Alguma luz. Os personagens
aparecem e damos de cara com Eva Lo Brac, atriz
decadente que possui uma dignidade indecente e
humor negro-inteligente junto com o traficante
Val Kott, um homem de certa sensibilidade ainda
que um pouco intimidador que leva a sua profissão
muito a sério, mas se sente acolhido por Eva e tem
sentimentos fortes por Cintia, filha de Eva . Eles
dividem o espaço e o tempo com Tita Pilapitese,
uma produtora de TV que está há trinta e seis
horas falando ao telefone e por causa do
recorrente stress de sua profissão, sofre com uma
terrível úlcera instalada em seu
estômago/cérebro/alma e raramente consegue relaxar
por ter medo de acabar sozinha. Tita morde um
lápis e tenta ter uma idéia para um novo programa
ao mesmo tempo que Simone Vander Ley, sua
assistente enigmática, está com sede. Simone é uma
garota não tão garota de olhos caroço de azeitona
que podem revelar sua profundidade pantanosa, como
alguns traços evidentes de psicopatia. Ela chega
em um restaurante da moda, freqüentado por pessoas
que querem estar na moda. Simone será atendida
por Cintia Brac Mello Roya, que mesmo possuindo um

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sobrenome capaz de impressionar os
impressionáveis, serve mesas no restaurante de
Lucinha, o restaurante da moda. Não interessa quem
seja a tal da Lucinha, o mais importante é que
Cíntia trabalha como garçonete para ganhar
dinheiro já que não consegue sobreviver de sua
arte performática, plástica e musical. E na
periferia disso tudo, uma jovem observa a cena.
Não sabemos quem ela é. Segura uma folha de papel
em branco nas mãos. Simone tira o crachá com a sua
foto 3X4 com cara de susto e deixa em cima da
mesa. Leva as mãos ao rosto enquanto abaixa a
cabeça e pega o cardápio com displicência.
Continua com sede. Cintia se aproxima para atendê-
la segurando um bloquinho onde escreve poemas
estruturalistas. A peça começa e só vai parar para
respirar na página 28.

Cintia – O que vai ser?

Simone – Água. Ainda tem?

Cintia – Mineral. A da torneira acabou.

Simone – Por que eu iria querer água da torneira?

Cintia – Não sei, me ocorreu.

Simone – Gasosa. Qual a marca?

Cintia – Spritz e Laguna.

Simone – Não tem aquela Francesa?

Cintia – Não.

Simone – Por quê?

Cintia – Não sei porquê.

Simone – Mas aquela Francesa é a melhor.

Cintia – A melhor não tem.

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Simone – Repete os nomes pra mim.

Cintia - Spritz e Laguna.

Simone – Qual faz mais bolinhas?

Cintia – Não tomo água com gás.

Simone – Qual faz mais cócega no nariz?

Cintia – Não sinto cócegas no nariz.

Simone – Mas embaixo do braço você sente, não


sente?

Cintia – Eu sinto muito por não sentir nada. Quer


saber do especial do dia?

Simone – Não vou comer, embora esse seja um dia


muito especial. E aquela água Da Alsácia que é
meio benta, tem?

Cintia – Não tem.

Simone – Mas a Da Alsácia é a melhor depois da


Francesa.

Cintia – As únicas duas marcas de água com gás


que temos aqui são Spritz e Laguna.

Simone – Que espelunca, NE?

Cintia (aponta para o lado de fora)– Sabe aquele


café do outro lado da rua de toldo amarelo?

Simone – Você está dizendo para eu me retirar?

Cintia – Eu estou concordando com você que aqui é


uma espelunca.

Simone – Chame o gerente. Vamos dividir essa sua


opinião com ele, Cintia.

Cintia – Eu te conheço?

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Simone – Não se lembra de mim?

Simone Vander Ley olha profundamente para


Cintia. Dá um mergulho em seus olhos e volta.

Simone – Não faz a mínima idéia de quem eu sou,


não é mesmo, Cintia Brac Mello Roya. Sempre achei
o seu nome bonito e cumprido. Agora diga o meu.

Cintia – Jussara.

Simone – Errou. Pergunte o que eu estou fazendo.


Vamos falar um pouco de mim. Não, melhor, vamos
falar de você usando avental. É engraçado, não é?
Ainda é artista?

Cintia – Eu vou buscar a sua água.

Simone – Sua mãe.

Cintia (num rompante) – Não fala da minha mãe.

Simone – Ela sumiu. Você sumiu.

Cintia – Eu não sumi, eu estou aqui.

Simone – E ela? Como está?

Cintia – Isso te interessa?

Simone – Tudo me interessa. Senta. Quero te contar


uma idéia que eu tive para um programa.

Cintia – Suas idéias sempre foram as piores,


Simone.

Simone – Você lembrou.

Cintia – Tem um cheiro familiar de estrume que a


gente sempre sente.

Simone – Mas também que idéia filmar um cachorro


daquele jeito, você mereceu a expulsão...

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Cintia – Pra mim foi um alivio ter saído.

Simone - Eu senti sua falta. Éramos amigas.

Cintia – Eu nunca fui sua amiga.

Simone – Senta que eu te pago uma bebida.

Cintia – Estou trabalhando.

Simone – Todo mundo está trabalhando. Eu, por


exemplo, sou assistente de produção. Olha o meu
crachá.

Cintia – Parabéns, mas eu não vejo televisão.

Simone – Eu estou subindo, porque quem não sobe


dança, e depois que dança desce até chegar no
aterrador fundo do poço que é algo como trabalhar
no Mac Donald’s.

Cintia – Brenda, atende aqui!

Simone - É engraçado, não é, Cintia?

Cintia – Pra você é, pra mim, não.

Simone - Fiquei sabendo que sua mãe está doente e


vai morrer.

Cintia – Não fala da minha mãe.

Simone - É verdade?

Cintia – Todo mundo vai morrer.

Simone – Sim, mas ela vai morrer antes.

Cintia – Quem disse? Você pode morrer atropelada


por um caminhão de água com gás quando sair daqui.

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Esqueçam os comediantes mexicanos. Estamos falando
de dois seres inteligentes. Eva e Val estão
doidões e estão no meio de um papo cabeça,
espiritual, metafísico que mistura fezes e via
láctea. Val usa um boné do Red Sox.

Val – Olha ou não olha?

Eva – De novo isso?

Val – É importante.

Eva – Você sempre entra nesse lugar, reparou?

Val – Não é essa a questão.

Eva – Você precisa resolver a sua fase anal.

Val – É sério.

Eva – A não resolução da fase anal também é uma


coisa séria. Tem gente que fica maluco.

Val – Olha primeiro ou aperta o botão da descarga


e nem entra em contato? Responde, Eva. É
científico.

Eva - Tá virando uma obsessão.

Val – Tem gente que não entra em contato, e tem


gente que faz questão de olhar.

Eva – E o que isso significa?

Val – Alguns encaram outros não.

Eva – Isso já é sabido.

Val - Eu, por exemplo, olho.

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Eva – Por quê que você olha?

Val - Acho bonito, como uma obra.

Eva – Arte é outra coisa.

Val – Eu tô falando.

Eva – Você tá falando merda.

Val - É uma teoria.

Eva – Uma teoria de merda.

Val – Eu gosto de conversar com você.

Eva – Eu também. Vamos tomar uma cerveja. O dia


está quente. Cadê o fio da meada?

Val – Perdemos.

Eva – Gostoso se perder. Mas vamos achar.

Val – Achei.

Eva – Cadê?

Val - O muro caiu.

Eva – Era o festival marginal de 89 e eu estava


usando um casaco de vison.

Val – O quê é vison?

Eva – Uma palavra idiota. E caminho de leite?


Caminho de leite é pior.

Val – Você chegou rápido no caminho de leite dessa


vez.

Eva – É que o caminho de leite me intriga. Você me


intriga. Eu to muito intrigada.

Val – Efeito colateral. É muito boa, não é?

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Eva – É um escândalo.

Val – Padrão de qualidade.

Eva – Importada?

Val – A NASA fica no Acre.

Eva – Ah...

Val – Hidropônica. Laboratório da fronteira.

Eva – Passa, passa, passa.

Val – To passando, to passando, to passando.

Eva – Posso falar uma coisa?

Val – Claro.

Eva – Não, não vou falar.

Val – Fala!

Eva – Não, não, não.

Val – Eva, fala, fala logo se não você esquece.

Eva – Deixa pra lá.Eu não quero que você fique


ofendido.

Val – Impossível me ofender.

Eva – Você é a cara daquele sujeito, como é o nome


dele?

Val – Você também?

Eva – Tá vendo, ficou ofendido.

Val – Não fiquei, é que eu ouço isso todo dia.

Eva – Mas é igual.

Val – Não sou igual. Sou mais bonito. E tenho mais

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cabelo. Perdemos o fio da meada novamente.

Eva - Festival marginal. A gente era muito


marginal naquela época. E olha que tinha um muro
no meio.

Val – Mas caiu.

Eva – Caiu tudo, meu chapa. O muro, a bunda, o


cabelo, tá tudo no chão.

Val – Meu pai é seu fã.

Eva – Diga pro seu pai que todos os meus fãs estão
com Alzheimer.

Val – Ele está com Alzheimer.

Eva – Então não diga nada. Ele vai esquecer.

Val ( pegando um rolo de película) – Olha só!

Eva – Não sabia que isso ainda existia.

Val – “Aurora na montanha”?

Eva – De Sérgio Mello Roya.

Val - É um dos meus filmes preferidos.

Eva – Vendi a casa da minha mãe para terminar o


filme.

Val – Uma das melhores aberturas que eu já vi.

Eva - E a cena que eu apareço de nu frontal?

Val – Você está linda.

Eva – Eu era linda. Eu era mesmo. Hoje eu olho pro


espelho e vejo uma caveira de peruca.

Val – Mas essa peruca está especialmente bonita em


você.

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Eva – Eu não sei, não sei, achei tão simples.
Estou perdendo a minha complexidade. Eu costumava
ser tão complexa quando eu era marginal depois fui
pra TV e acabou.

Val – Grande Sérgio Mello Roya.

Eva – Um metro e noventa de egoísmo; alcoólatra,


mulherengo, auto-centrado e péssimo pai. Um
traste absoluto. Mas um gênio.A vida é isso aí.

Val – Então ele é o pai da Cintia?

Eva- Eu passei um tempo achando que não, que a


Cintia poderia ser filha do, mas depois tive
certeza que era do Sérgio. O mesmo queixo e o
mesmo mau - humor. Você tem filhos?

Val – Ainda não.

Eva – Filho é bom mas dura muito, é muita


preocupação. Eu to muito preocupada com a Cintia
porque ela é uma bebezinha que eu tenho e está
perdida. Foi para as belas artes, não teve
paciência, tentou teatro, não tinha jeito, foi pra
rádio, não tinha voz, tocou piano, quebrou a
mão,vendemos o piano, fez cinema, foi expulsa, aí
começou a fazer essas coisas esquisitas que só
você gosta.

Val – Eu acho que ela tem talento.

Eva – Pra encher o meu saco, ela tem.

Val – Você e a Cintia são bem diferentes.

Eva – Ela é mais simples. Quem é mais bonita?

Val – São diferentes.

Eva – Se eu tivesse a idade dela com aquilo que


hoje eu to careca de saber, estaria surfando no

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caminho de leite faz tempo.

Val - Ela sabe do nosso escambo?

Eva – Ela acha que eu estou pagando o condomínio,


mas o condomínio não é prioridade. Mais uma
cerveja?

Val – A fita tá embolorada.

Eva – Não diga.

Val - Fungos. Estudei cinema.

Eva – Então você é um artista.

Val – Eu não sou.

Eva – Fez algum filme?

Val – Com certeza você não viu.

Eva – Mas eu quero ver.

Val – Não vale a pena.

Eva – Por que parou?

Val – Não sou um Sérgio Mello Roya.

Eva – Sérgio Mello Roya também foi medíocre.A


diferença é que ele continuou.

Val – Não tenho essa persistência.

Eva – Tentativa e erro, meu querido. Tentativa e


erro.

Val – Prefiro ser o melhor traficante do bairro. É


mais negócio. Acha triste?

Eva – Claro que não. Acho que você faz um trabalho


bonito, social, importante, digno.Merece a chave
da cidade.

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Val - Tem outra copia?

Eva – A Cintia que cuida disso.

Val – Você pode tentar recuperar essa fita.

Eva – Com que dinheiro?

Val – Não se preocupe. Posso levar esse peixe de


gesso? Quando ela fez? (colocando o peixe na
mochila)

Eva – Sei lá.É um favor que você me faz. Coisa


horrorosa. Eu já tive um Volpi na parede, sabia?

Val – Eu tenho um cliente restaurador, vou levar o


rolo pra ele,quem sabe? (levanta) Eu vou indo.

Eva – Fica mais um pouco. Você é tão legal.

Val – Eu tenho outras entregas para fazer.

Eva (pegando no braço de Val)– Eu quero o cupido


azul.

Val – Não.

Eva – Eu quero, não me negue isso. Ou a estrelinha


amarela.

Val - É muita responsabilidade. Acho que é um


pouco forte pra você.

Eva – Forte? Você não sabe o que é forte. Antes do


muro cair era muito mais forte,eu te garanto.

Val – Eva, uma coisa é você fumar a erva da NASA,


outra coisa é tomar alucinógeno com anfetamina,
você não pode.

Eva – Todo mundo na minha situação tem que ter o


direito constitucional de poder ficar doidão o
quanto quiser.

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Val – Mas você já está doidona. Eu preciso ir.

Eva - Me dá um beijo.

Val – Eu achei que o tratamento tirasse a libido.

Eva – Acho que foi a única coisa que sobrou de


mim. Eu te amo.

Val – Você não me ama.

Eva – Mas você é tão legal que eu poderia te amar.


Eu já amei muito. Amei profundamente, amei ao
mesmo tempo, eu sou boa nisso, é só um beijo.

Val – Eu não tenho pena de você.

Eva – Tem certeza? Nem um pouco?

Eva tenta beijar Val. Ele não recua e aceita o


beijo, mesmo um pouco constrangido. Entra Cintia.

Cintia – É sério isso?

Val – Não é isso que você está pensando.

Eva – Meu Deus, que clichê.

Cintia - Se for sério é muito triste.

Eva – Era pra você entrar agora?

Cintia – Está escrito que eu devo entrar agora.

Eva – Ai que saudades do Sheik de Agadir.

Val – O que é isso?

Eva – É uma novela, mas não é da sua época. Quem


está escrevendo esse lixo?

Cintia – Só estou cumprindo o destino trágico de


ser a sua filha.

Eva – Não faça drama, isso aqui é uma comédia.

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Cintia – Ninguém está achando engraçado.

Eva – É porque o seu tom está errado.

Val – Essa é a hora em que eu saio.

Eva – Você fica!

Cintia – Ele sai ou eu chamo a policia. (Vai pegar


o telefone e não acha)Cadê o telefone? Você vendeu
o telefone?Você não fez isso.

Eva – Ninguém me liga mesmo.

Cintia - E essas cervejas? Você não pode beber.

Eva – O Val tomou as duas, não é, Val?

Val – Sim, eu estava com muita sede.

Eva – Cintia, bebezinha, você não acha que o Val


parece ...

Cintia – Não me chame assim.

Eva – Tá, bom, Cintia, sua chata, você não acha


que o Val é parecido com aquele apresentador?

Cintia – Você é igual a ele.

Val – Eu sou mais bonito.

Cintia – Não é não. (para Eva, que pára de rir


nesse instante) Mamãe, você está parecendo uma
chinesa. Você está chapada?

Eva – Eu to legal.

Val – Um leve estado alterado de consciência. Mas


não é nada demais. É super estimado. Você sabe,
você fez cinema. Olha, mais cedo ou mais tarde o
governo vai liberar e de fato, você já foi pra
Montevidéu? Conhece? O que vai fazer no ano novo?

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Cintia – Você chapou a minha mãe.

Val – Me tira uma curiosidade, quando você vai no


banheiro, depois que você faz...

Eva – Tem coisas que eu ainda posso fazer


sozinha. Me chapar é uma delas. Não me tire esse
prazer.

Cintia – Você chapou a minha mãe e estava beijando


a minha mãe.

Eva – Qual o problema? Você é muito


preconceituosa.

Cintia – Como ela tem te pago? Tenho certeza que


não fornece de graça.

Eva – O Val faz filantropia.

Cintia (para Val) – Você não tem vergonha?

Eva – Pelo menos ele faz um trabalho importante,


Cintia, e você, faz o quê, me diz?

Pausa.Uma mãe magoa de morte uma filha. É real,


natural, acontece todo dia.

Cintia – Entupa ela com tudo o que você tiver. E


quando eu falo tudo, eu falo tudo, tudo mesmo, até
ela ficar branca, depois amarela, depois verde,
depois roxa. Quando ela ficar roxa, não se
assuste, pegue o balão de gás que está logo ali, e
ponha pra ela respirar. Então, se ele continuar
viva e der tudo certo no final, só me faça um
pequeno favor, se não for pedir muito: coloque o
que sobrar no sofá que amanhã eu lido com isso.

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Tita comeu um lápis inteiro. Isso não é bom para


a sua úlcera.

Simone – Posso falar uma coisa?

Tita – Não.

Simone – Eu tenho uma idéia.

Tita – Não quero saber.

Simone – Mas ela pode ser uma boa idéia.

Tita- não é.

Simone – Você está sofrendo para ter uma idéia.

Tita – Quem disse?

Simone – Eu posso ter a idéia que você precisa.

Tita – Você não tem nada e está me atrapalhando.

Simone – Como você pode saber?

Tita olha profundamente para Simone e a fuzila.

Simone – Desculpe. Você é genial.

Tita – Vai buscar um café pra mim.

Toca o telefone.

Tita – Atende o telefone

Simone Vander Ley, a assistente,atende.

Simone – Alô. É o Aluísio.

Tita – Eu não estou.

Simone – Ela não está.Ele disse que sabe que você


está aqui.

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Tita – Como ele sabe que eu estou aqui?

Simone – Como o senhor sabe que ela está aqui? Ele


diz que você está sendo filmada. Nós estamos.

Tita – Eu estou sendo filmada?

Simone – Eu vejo tudo. Ele disse.

Tita – Diga que é um holograma, que na verdade eu


não estou aqui.

Simone – Ela disse que é um holograma, ela não


está aqui. Ela foi ao dentista.

Tita – Estou precisando ir mesmo ao dentista. Faz


vinte anos que não tenho tempo para nada.

Simone – Ele disse que você vai morar debaixo da


ponte e nunca mais vai escovar os dentes de novo
sua cadela ignorante.

Tita – Ele me chamou de cadela ignorante?

Simone – Palavras dele.

Tita – Fale que ele é um corno, imundo, chupador


de rola. Quer dizer, não diga nada, pergunte o que
ele quer.

Simone – Senhor Aluísio, o holograma está


perguntando o que o senhor quer. Sem comunidade
carente, entendi, obesidade mórbida está vetado e
precisa falar português. Índio também não.

Tita – O Aluísio não gosta de índio porque ele tem


cara de índio.

Simone – Ele disse que a puta da sua mãe é que tem


cara de índio.

Tita – A minha mãe era grega e ele sabe. Diga que


até o final da semana ele terá a sinopse do

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programa.

Simone – Ele disse que é para ontem.

Tita – Claro, diga que eu estou trabalhando muito


duro para isso.

Simone – Sim, nós estamos trabalhando muito duro


pra isso, Senhor Aluísio.

Tita – Eu estou trabalhando muito duro pra isso!

Simone – Nós estamos trabalhando muito duro para


isso, Senhor Aluísio.

Tita - Me dá o telefone aqui!

Simone – Desligou.

Tita – O que está tentando fazer?

Simone – Nada. Você é genial.

Tita – Vai buscar um café pra mim.

Simone – Mas você já tomou quatorze.

Tita – Me traz o décimo quinto.

Simone –Tita, você precisa comer.Tem que cuidar da


sua úlcera.

Tita – A minha úlcera não é da sua conta. Meu


sistema digestivo é assunto privado. Eu quero um
café e só, obrigada.

Simone – Eu tenho uma idéia.

Tita – Depois.

Simone – Depois, quando?

Tita – Qualquer hora que não seja nesse exato


momento, pode ser?

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Simone não se mexe.

Tita – Vai ficar aí parada como se tivesse


congelado um frame?

Simone – Eu estudei.

Tita – Você estudou?

Simone – Sim, eu estudei.

Tita – E daí que você estudou?

Simone – Eu não fiz aula de como buscar o café.

Pausa. Tita fica inconformada com a petulância de


Simone e toma uma providência drástica mas com a
calma cruel dos superiores.

Tita – Escuta bem, Simone: eu gosto de você e sou


uma mãe pra você. Na verdade eu sou melhor do que
a sua mãe é pra você, e todo mundo sabe quem é a
sua mãe, o seu pai, e o seu tio, e é por causa do
seu tio que você está aqui, entende, não é porque
você estudou. Eu tinha uma fila de gente que
estudou muito mais que você e em lugares muito
melhores, tipo exterior, tipo Harvard e a puta que
o pariu vezes dez primeiro mundo high
deffinitionHDonthemand, e mesmo assim, eu, que sou
melhor do que a sua mãe é pra você, pois
convenhamos, a sua mãe é um pouco desequilibrada,
pois bem, eu escolhi você por causa do irmão do
seu pai, seu tio. Não se chateie, digo isso
porque é obrigação moral de uma mãe - e eu sou
uma mãe pra você - dizer para a sua prole a
realidade das coisas, e nesse momento a realidade
das coisas para você se resume em fazer um pequeno
estágio sobre como buscar o café, nível TRÊS, com
adoçante, na xícara de vidro, sem derramar uma
gota no biscoitinho que vem do lado!

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Bruno Daddy entra.

Tita – Quer um café?

Bruno – Aceito.

Tita – Dois. Obrigada, Simone. Pode demorar.

Simone sai, emburrada.

Bruno – Como ela está se saindo?

Tita – Mal. Péssima.

Bruno – É uma menina, está aprendendo.

Tita – Muito em breve ela vai colocar veneno no


meu café.Vou demiti-la. Não tem talento.

Bruno – Não pode fazer isso. Eu prometi pro


Edmundo.

Tita – O problema é dele. O problema é seu.

Bruno – O problema é nosso.

Tita – Não tem nada nosso. Fiquei plantada te


esperando ontem.Criei Raízes. Quase dei frutos.

Bruno (fala enquanto faz uma carreira de cocaína)


– Tive um imprevisto. Clóvis caiu da cadeirinha.
Torceu a mão. Dolores ficou preocupada. Só
tragédia.

Tita – Você não sabe o que é tragédia.

Bruno - Ainda bem que você não tem família.

Tita – Não faça isso aqui. O Aluísio está vendo.

Bruno – O Aluísio sabe.

Tita – Você já foi pra sauna com o Aluísio?

Bruno – Só vou pra sauna com você.

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Tita – Eu trabalho o dobrado e não tenho casa no
Havaí.

Bruno – Já te chamei mil vezes para passar férias


comigo no Havaí. Poderíamos andar de caiaque.

Tita – Claro, como não! Eu, você, a Dolores de


topless e o Clóvis de boinha de braço.

Bruno – Não faça esse papel.

Tita – Que papel você quer que eu faça?

Bruno – A amante fatal é sempre mais interessante


do que a mulher abandonada.

Tita – E a produtora velha e derrubada que não


consegue ter uma idéia original?

Bruno – Não combina com você.

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Eva – Parece que não está acontecendo nada, mas


está, porque tem uma agulha espetada no seu braço.
Mas todo mundo finge que nada está acontecendo e
Kenny G pra gente ouvir. É muito deprimente a sala
da tarde. Não basta estar fudida, você tem que
estar fudida e ouvir Kenny G. É muita coisa.As
vezes eu acho que eu já morri e fui para o inferno
porque no meu inferno vai tocar muito Kenny G. E
olha que eu já namorei maestro. Já pedi para
colocarem Beethoven ou aquela menina esquimó que
canta, ou deixa em silêncio, eu falo muito
sozinha. Caminho de leite é muito intrigante. Toda
vez que eu to vomitando eu tento ter um pensamento
positivo, então eu me imagino surfando no caminho
de leite. Cansei do Kenny G e fui para a sala das

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crianças. Eu não gosto muito de criança mas
aqueles meninos sem cabelo são bem engraçadinhos.
Lá eles dão picolé de uva e a língua fica roxa. É
divertido.Fiz até um amigo, o Felipe. A mãe dele
me reconheceu. Como ela conseguiu? Tinha uma época
que todo mundo me reconhecia. Margareth Di Bem era
um grande personagem. Apanhei muito no super
mercado por causa de Margareth Di Bem. Mas calma
que o filme de terror ainda nem começou...quando a
mãe do Felipe ia tirar uma foto comigo começou a
hora do pesadelo: entraram uns palhaços.Eu odeio
palhaços. No meu inferno vai ter muitos palhaços.
Palhaços saxofonistas. Quando eu era pequena me
levaram no circo e o palhaço babava muito, fiquei
com má impressão. Acho até que fui molestada pelo
palhaço. Tem que ter talento pra ser palhaço,
precisa ter vocação, não pode babar. Eles eram
péssimos. O Felipe chorou, meu picolé caiu e eu
fique com saudade do Kenny G.

Entra Cintia.

Cintia – O que você está fazendo aí desse jeito?

Eva – É a posição da coruja.

Cintia – Não parece muito confortável.

Eva – Estou bem assim. Levou o estrudell pra sua


avó?

Cintia – Eu sempre levo.

Eva - Como ela tá?

Cintia – Bem. Jogando baralho com o namorado.

Eva – Ela perguntou de mim?

Cintia – Te mandou lembranças.

Eva - Bruxa.

  23  
Cintia – Você vendeu a casa dela.

Eva – Eu sou atriz.

Cintia – Tinha um maço de Marlboro no meu bolso


essa manhã.

Eva – É mesmo?

Cintia - E ele sumiu.

Eva – E agora? Quem poderá nos salvar?

Cintia – Você tá fumando cigarro também?

Eva – ...

Cintia - Você tem que usar um balão de oxigênio


pra respirar e fuma?

Eva – Foi um só.

Cintia - Onde você vai parar?

Eva – Aí é que está. Eu não quero parar.O que pode


acontecer comigo se eu fumar um único cigarro, ter
um câncer?

Toca Kenny G.

(5)

Simone volta equilibrando dois copos de café.Vê a


carreira de cocaína estendida sobre a mesa.

Daddy – Isso não é o que você está pensando que é,


eu me explico: isso é sal, sal marinho, sal
refinado, sal que salga, serve para isso, coisas
de cozinha.

  24  
Tita – E Vamos fazer um piloto de culinária e isso
daqui é farinha.

Daddy – Farinha de mandioca, de milho, de rosca...

Tita – De trigo. Parece farinha de trigo.

Simone – Eu tenho uma idéia.

Eva – Vou matar a saudade de Margareth Di Bem.

Cintia – Eu não quero ouvir.

Eva – Você nunca mais verá seu filho novamente


Elosísa!

Tita – Eu não quero ouvir isso de novo.

Daddy – Deixa a menina se expressar.

Cíntia – Essa novela já acabou.

Tita – O seu papel não é esse.

Simone – Minha amiga é filha de Eva Lo Brac.

Cíntia – Eu não sou sua amiga.

Tita – Eva Lo Brac?! Conheço muito bem.

Simone – Ela está com câncer.

Bruno – Não fale essa palavra, fale Neoplasia


Maligna, essa palavra é muito pesada.

Eva - Que avental é esse?

Cintia – Estou trabalhando no restaurante da


Lucinha faz mais de um mês.

Simone – A filha dela está trabalhando no Mac


Donald’s.

Cintia (para Simone) – Cala a boca. (Para Eva)


você está tão alucinada que nem percebeu.

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Eva – (para Bruno)– Isso não é sal. Cintia , jura?
Da Lucinha?

Cintia – O que quer que eu faça?

Eva – Qualquer coisa menos isso.

Cintia – Qualquer coisa menos isso não paga as


contas.

Eva – Você quer ser artista? Ainda quer ser alguma


coisa ou só quer ter um sobrenome bonito?

Cíntia – Você despreza meu trabalho.

Eva – Ainda é um pouco infantil.

Cintia – Nunca me incentivou.

Eva - Você precisa se dedicar mais.

Cintia - Troca o que eu faço por maconha.

Eva – O Val acha que vai valer muito dinheiro um


dia. Mas ainda não é vanguarda.

Simone – A minha idéia é vanguarda.

Cintia - Acabou tudo mãe, você não está vendo?

Eva – Artista, minha filha, é outra coisa.

Cintia – Quantas artistas tem nessa sala? Porque


parece que só cabe você aqui dentro.

Eva – Artista tá na TV!

Cintia – Que decadência!

Eva – Sua ou minha?

Simone – Um reality show de doentes terminais.

Eva – Cadê a sua dignidade?

  26  
Tita – Tive uma idéia, Aluísio, e você não vai
acreditar.

Cintia – Você está fumando a minha dignidade.

Eva – Não estou te pedindo nada. Você pode ir


embora quando quiser.

Simone – Você não pode fazer isso, não pode roubar


a minha idéia. Tio, você está de prova.

Bruno – Não me chame de tio, é embaraçoso.

Cintia – Quem vai trocar as suas meias e escovar a


sua peruca? Os seus ex-maridos-ex-milionários ou
suas ex- amigas do peito que não te ligam já faz
um década?

Eva – Você é adotada!Pronto! A novela acabou. Fim.


Que subam os créditos.

Cintia - Essa sua doença tem um nome.

Eva – Diga esse nome! Diga!

Cintia – Você sabe.

Eva – Tem e se chama: foda-se!

Cíntia – Foda-se sozinha então! Por quê é que eu


tenho que me foder junto com você?

Eva – Filha de uma puta!

Cíntia – É claro que eu sou!

Eva, como em seus dias de atriz de novela, bate na


cara de Cíntia. Pausa. Paramos pela primeira vez.

Cíntia – Você me bateu de verdade.Você me


machucou.

Eva – Foi o calor da cena. Me desculpa.

  27  
Cintia – Não toca em mim

Tita entra.

Tita (para Cintia)- Como vai?

Cíntia – Mal, acabei de levar um tapa na cara.

Tita – Eva Lo Brac foi a melhor batedora de tapa


da televisão.

Eva – Tita Pilapitese, sua mãe era uma prostituta


grega, não era? Falar o seu nome me dá uma náusea
sartriana.

Tita – Como tem andado?

Eva – Ás vezes de andador. Ás vezes de cadeira de


rodas.

Tita – E o que tem feito?

Eva – Quimioterapia.

Cintia – Se quiser um café, não temos, ela vendeu


o bule.

Tita – Tenho uma proposta pra te fazer. E não é


novela. É muito melhor. E você vai dizer que sim.

Eva – Não vou.

Tita – Vai.

Eva – Não vou mesmo.

Tita – Vai. Está escrito que você vai.

Eva – Na hora eu mudo. Você sabe que quando eu não


gosto do texto, eu mudo tudo.

  28  
(6)

Vitória Allêgre vira a folha de papel sufite que


esteve segurando até agora. Na folha está escrito:
Vitória Allegre, 22, 1,70, Leucemia.

Vitória – Eu sou descendente de irlandeses


protestantes e de índios tupinambás. Sou uma
mistura que só o Brasil pode dar. O Equador
talvez possa dar também.

Simone – Corta.

Vitória – Desculpe, estou nervosa.

Simone – Está indo bem. Só não cite os índios, por


favor.

(7)

E continua...

Tita - Você entendeu?

Eva – É um jogo.

Tita – Dez participantes, um contra o outro.

Eva – E ganha quem tiver a morte mais bonita?

Simone – Ou quem morrer por último. O público


quem escolhe. O público é soberano.

Tita – Eu preciso de uma cabeça careca que não


seja pontuda.

Eva – E a emissora vai pagar o meu enterro?

Tita – Se você ganhar, além do prêmio, ,vamos


alugar um helicóptero que jogará rosas durante a

  29  
cerimônia.

Eva – E se não?

Tita – Se não nada feito.

Eva – Quem serão meus concorrentes?

Simone – Vitória Allegre?

Vitória – Allêgre.Sou eu.

Simone – Allegre é melhor.

Tita – Nenhum dos seus concorrentes é como você.

Simone – Você está dentro. A sua cabeça careca no


vídeo não é pontuda. A câmera gosta de você.

Eva – E o país inteiro vai me ver indo no


banheiro?

Tita – Depende do que você for fazer no banheiro.

Eva – Enquanto eu não usar fraldas, serei


feliz.Quem teve essa idéia?

Simone – Eu tive essa idéia.

Tita – É uma idéia que eu tive.

Eva – Que idéia de merda.

Cintia – Ainda bem que não assisto TV.

Simone – Por que você filmou aquele cachorro?

Cintia – Eu juro que se você me dirigir a palavra


mais uma vez...

Vitória – Você acha que eu tenho chances?

Simone – Muitas. É só fazer o que eu digo. Você


gosta de água com gás?

  30  
Bruno – Tita, pensa bem.

Tita – Não me atrapalha. Estou trabalhando.

Bruno – Quem serão os anunciantes? É um horror.

Tita – Horror é a guerra. Horror é a fome. Nós


fazemos entretenimento. (para Eva) Eva, Não pode
reclamar, teve uma vida deslumbrante.

Eva - Pelo menos eu não tive a sua, o que já está


muito bom.

Tita – Eu agradeço tudo o que você já fez por mim.

Eva – E o quê é que você fez para agradecer, Tita?

Tita – Você é uma pessoa muito difícil de se


trabalhar.

Eva – Ser fácil pra você é ser burro, vai tomar no


cu!

Tita – Não vai poder falar palavrão durante o


programa.

Eva – Eu não vou assinar essa merda, eu não


preciso disso.

Tita – Quem, depois de tudo o que você fez, de


tudo o que você criou, em todos os capítulos que
você enganou, traiu, bateu, atirou, envenenou,
esfaqueou e jogou a Eloísa pela janela... aliás,
essa cena foi maravilhosa.

Eva – Foi, não foi?

Tita – Foi, você estava muito bem, tão linda, e


que janela...

Eva – É verdade. E tinha aquela luz maravilhosa do

Donizete.

  31  
Tita – Você fez tantas coisas geniais, trabalhou
tanto,tanto, tanto, foi tão bem iluminada e depois
de tanta capa de revista com a sobrancelha
levantada, quem se lembra de você?

Val – Desculpa, mas foi impossível salvar o filme.

Cintia – Ai. Cortei a mão.Cortei a mão. Cassete,


cortei a mão.

Silêncio.

Tita - Vai terminar a sua vida assim?

Eva olha a mão da filha cheia de sangue.Toma a


decisão final da sua vida.

Eva – Eu quero cem toalhas brancas no meu camarim.

Tita – É um reality show. Não tem camarim.

Eva – Não interessa. Eu quero um camarim com cem


toalhas brancas.

Tita – O que vai fazer com cem toalhas brancas?

Eva – Não sei, alguma coisa chocante. E que quero


que o Jessé seja o meu maquiador.

Tita – O Jesse morreu.

Eva – Eu gostava do Jessé.

Tita – Acabou a era Jessé.

Eva – E quero a luz bonita do Donizete.

Tita – Infelizmente, o Donizete...

Eva – Foda-se. Chame um tão bom quanto. Não vou


usar amarelo porque eu odeio amarelo. Quero poder
fumar meu baseado da NASA e tenho que poder falar
palavrão porque a Eva real gosta de falar palavrão
pra caralho.

  32  
Tita – Qualquer coisa a gente põe um Pi.

Eva – Sem, Pi, ou eu não assino.

Tita – É uma alegria poder trabalhar com você mais


uma vez.

Eva – Espero que seja a última.

Tita – Vai ganhar com a sua morte mais do que


conseguiu perder a vida inteira.

Vitoria – Você veio fazer o teste?

Eva – Eu sou o teste.

Simone – Será que pode me dar um autografo?

Eva – Eu não assino mais o meu nome.

Vitória – Quem é ela?

Cintia – Não faça isso por mim, to pedindo. Se for


por mim, por favor, não, faça.

Eva – Não é.

Cíntia – Ainda bem porque não é real. (mostra sua


mão ensangüentada) É mel de milho com chocolate.

Vitória – Meu nome é Vitória Allegre, eu tenho


alguns anos e vou estar com vocês até o meu coração
parar.

Cintia - Eles te ligaram, mãe, eles lembraram de


você, suas ex-amigas do peito e os seus ex-maridos
ex- milionários. O telefone não para, mas não
temos mais telefone. Que horas o motorista vem te
buscar? Por quê não vai de uma vez? Eu sabia da
sua vaidade, mas escolher fazer parte disso? É
muito mórbido mãe.

Eva se afasta e a voz de Cintia também vai sumindo

  33  
em fade.

Cintia - Você vai precisar de um de seus


personagens e não vai ter nenhum. Tenho vergonha
de ser a sua filha. Eu vou mudar de nome, de
cidade, eu vou mudar de país eu não vou ver você
morrer pela TV, e não vou torcer por você,eu não
acredito que vai ser capaz de me deixar sozinha de
novo, você não vai ganhar.Você é imortal.

Entra Val Kott.

Val Kott – Vim te fazer companhia.

Cintia passa a mão suja de sangue no rosto.

Cintia – É minha mais nova obra. O que achou?

Val Kott, num rompante apaixonado, beija Cintia. O


sangue se espalha pelo rosto de ambos. E eles
ficam lá se beijando até o mundo acabar.

Ato II

(8)

Mas o mundo ainda não acabou.

Simone – Começa com o caos, crimes, seca,


enchentes, suicídios, crise, suicídios por causa
da crise, crise por causa da seca. História de
quem perdeu tudo, histórias de quem ganhou na
loteria, documentários de superação, programas
para levantar a auto estima. Tudo ao mesmo tempo
com o patrocínio de bebidas gasosas. Campanhas de
frigoríficos. Porcos de gravata fazem pum e todos
cumprem seus deveres cívicos. Não existe mais água

  34  
para se beber e o povo está todo lá. O povo é
alegre e não tem problemas com a sua origem.

Tita – Levanta. Você está sentada na minha


cadeira.Vai pegar um café pra mim.

Simone sai resmungando algo como “eu vou te


matar”.

Tita – Bruno, é a sua vez.

Val Kott se transforma em Bruno Daddy enquanto


limpa o rosto sujo de sangue quase real.

Tita – Vai começar a brincadeira. Merda, Eva.

Eva – Morra, Tita.

Bruno - É um prazer, eu sempre digo, é um prazer


estar aqui podendo trazer, levar e trazer alegria,
muita alegria, realmente, é muita emoção, fazer
parte dessa família chamada audiência. É um
prazer, trazer e levar para vocês, o quê? Emoção.
Porque é muita emoção, eu sou o Doutor Bruno
Daddy e apresento: “Reality... (pra si) deus do
céu...

Tita – Diga o nome do programa, Bruno.

Bruno – Câncer. Reality Câncer.

Tita – Entra musica.

A musica entra.

Tita – Que musica é essa? Simone!

Bruno - Duas vidas.Duas histórias.

Tita – Muda já.

Bruno - Duas doentes.

Simone – Não dá mais tempo.

  35  
Bruno - Somente duas. Todo o resto já morreu.

Tita – Eu vou comer o seu pâncreas, Simone.

Bruno pigarreia.

Tita – Lê o TP, Bruno.

Bruno joga no chão o ponto que está em sua orelha


e começa a improvisar.

Dr. Daddy – Eu conheci o Papa. Não esse, o outro.


E ele me pediu alguns conselhos e eu disse: “Papa,
meu querido, Papa meu velho, eu não entendo nada
de religião, eu nem acredito em deus...”

Tita – Você precisa acreditar em deus, Bruno.Anda,


acredita em deus.

Dr. Daddy – Eu disse para o Papa uma vez, numa


das nossas caminhadas pela Praça São Pedro, por
uma das vielas laterais, aquelas que lembram
jardins de cavalaria, eu me sentei e disse: “Papa,
meu querido, meu velho, quem tem poder sobre a
vida não é Deus. Quem tem poder sobre a vida é o
médico.” Eu sou médico,sou católico - ateu, venho
de uma família de médicos católicos-ateus e tenho
aspirações políticas. ( Continua como se nada
tivesse acontecido, num único fluxo desde o
começo) Duas vidas. Duas histórias arrasadas por
uma doença maligna. Quem vai ganhar? Vote. Opine.
Para quem você daria esse prêmio milionário? Para
o Papa? O Papa não está doente. O Papa é muito
rico. Já foram no Vaticano? De excursão é sempre
mais barato. Comprem em doze vezes.Estamos no fim
do jogo. Vamos para a sabatina. Água.

Simone lhe entrega água

  36  
Bruno - Cor?

Vitória – Rosa.

Eva – Azul. Odeio amarelo.

Dr. Daddy – Signo?

Vitória – Peixes.

Eva – Câncer. ( um pequeno sorriso, depois fica


séria) Escorpião.

Dr. Daddy – Um ídolo?

Vitória - Minha mãe.

Eva – Passo.

Dr. Daddy – Comida predileta?

Vitória – O arroz e feijão da minha mãe.

Eva – Picolé de uva.

Dr. Daddy – Se não estivesse doente gostaria de


estar?

Vitória – Na faculdade.

Eva – No laboratório da fronteira. Ou em Cuba


tomando rum.

Dr. Daddy – Um filme?

Vitória – A Bela e a Fera.

Eva – Garganta Profunda.

Dr. Daddy – (faz barulho de campainha)

Eva – A noite dos mortos vivos.

Dr.Daddy – (faz barulho de campainha)

  37  
Eva - “What ever happened with Baby Jane?”

Vitória – Não valeu!

Dr. Daddy – Ponto.

Eva – Chupa.

Dr. Daddy – Um ultimo desejo?

Vitória – Não sentir dor.

Dr. Daddy – Você ganhou um aspirador de pó.

Vitória (levantando a mão, como num gesto de


vitória) – Viva!

Eva – Quê marmelada…

Dr. Daddy – A melhor recordação que você vai levar


da vida é:

Vitória – Ter chegado até aqui.

Eva – Sei lá. Muita coisa.

Dr. Daddy – Uma palavra?

Vitória – Esperança.

Eva – Vergonha.

Tita – Intervalo.

Bruno Daddy desmonta.

Bruno – Odeio programa ao vivo.Estou exausto. Elas


não morrem. Por que elas não morrem?

Tita – Calma.

Simone – Sua água, tio.

Bruno – Não me chame de tio. É embaraçoso.

  38  
Tita – Cinco segundos.

Bruno – Essa água não é a francesa. Mas que


porcaria.

Tita – No ar.

Bruno - Som de grilo no ar. Sons de chuva,


relâmpagos e trovoadas. Sons de crianças brincando.
Som de protesto. Som da guerra do Iraque. Som do
discurso de Hitler, de Mussolini, de Comeini, da
Isabela Rosselini, de Décio Pitinini. O mundo passa
ao vivo e a vida não tem replay. Vamos ver o que
as nossas participantes estão fazendo nesse
momento.

As participantes não estão fazendo nada.Pela


terceira vez, nada acontece em cena. Nada acontece
em lugar nenhum. O mundo para. Expectativa. Depois
de algum tempo, Tita fala.

Tita – A Eva está muito quieta, ela não está


bem.Vamos,Eva, arranque o tédio de nossas vidas.

Simone – A Vitória está bem preparada.

De repente, Vitória acha que teve uma


inspiração.

Vitória – Eu moro numa casa. Uma casa de fachada


de tijolos perto da estação de trem. Nessa casa
moram eu, minha mãe e só. E um canário belga. Mais
ninguém. Temos uma televisão.Só eu e a minha mãe.
Minha mãe é enfermeira e seu estado civil é de
solteira. Mas ela não gosta disso. Nós tínhamos

  39  
uma casinha na praia que a minha mãe vendeu e um
carro que a minha mãe também vendeu. Tínhamos um
canário belga. Minha mãe também vendeu para pagar
o tratamento. Ou ele morreu, não me lembro.

Eva é acometida por um sono incontrolável.

Vitória – Minha mãe sabe falar inglês e é muito


culta. Gosta de ler e de ver filmes. E gosta de
rezar de vez em quando.Eu também gosto muito de
ler e de ver filmes. Rezar... eu rezo também.
Fazemos tudo juntas. Lemos e vemos muitos filmes.
Sempre juntas. Ela gosta de cuidar das pessoas e
tem um grande apreço pela humanidade. É por isso
que ela é enfermeira, porque ela ama a humanidade.
Se eu tivesse tido tempo...

Eva não consegue vencer o sono e dorme.

Vitória - ... se eu tivesse tido tempo e


oportunidade, eu gostaria de ter sido enfermeira
como a minha mãe. Minha mãe sempre diz que eu fico
muito bem de branco. Ela diz que eu pareço um
anjo, mas eu não gostaria de parecer um anjo. Eu
gostaria de parecer uma noiva. Eu tenho saudade do
meu canário belga.Se eu tivesse tido tempo...

Eva cai com a cabeça para trás.Dorme.

Vitória - ... se eu tivesse tido tempo e


oportunidade eu gostaria de ter me casado. Ter
casado, ter tido uma lua de mel, ter viajado para

  40  
algum lugar que não fosse a casinha de praia que a
minha mãe vendeu, ainda bem, porque aquele lugar
era uma das coisas mais medonhas e fedorentas que
eu já tive a oportunidade de ...

Eva ainda dorme.

Vitória - ... porque a praia não era bonita e a


casa era muito pequena e tudo era de plástico. Os
copos eram de plástico, pratos e talheres também.
Tudo de plástico. O sofá tinha um forro estampado,
cheio de peixes, lulas e estrelas do mar. De
plástico. A faca não cortava direito. Era melhor
comer com a mão do que cortar com a faca. O que é
de plástico não corta. A mão ficava engordurada e
eu limpava na toalha estampada que era de
plástico...

Eva sonha com o tempo em que era criança.

Vitória –Queria comer um bife na praia cortado com


uma faca de serra de verdade. Eu gostaria. Eu
queria.Mas não aconteceu. Nessa vida não
aconteceu. Talvez numa próxima.Porque eu sei que
existe uma outra vida além dessa. Porque essa pra
mim não valeu. Se eu acreditar nisso ainda posso
sorrir e conversar, sorrir e conversar. Sim, é uma
alegria estar aqui. Já sou uma vencedora. Eu tenho
muita fé.

Eva acorda de repente.

  41  
Eva – Já vi campo de concentração mais animado.

Pausa.

Eva – Pode rir se quiser.

Vitória – Não acho isso engraçado. Tenho um


profundo respeito pela comunidade judaica.

Eva – Se você não achou engraçado é porque você


não entendeu. Estou com vontade de fazer xixi.Eles
bem que podiam colocar uma sonda na gente a final
de contas.

Vitória – Se você usasse a fraldinha, ia ver que


não tem nada de mais, é confortável, e é capaz de
aliviar...

Eva – Eles estão te pagando para você falar da


fraldinha?

Dr. Daddy – É um prazer, só queria dizer, que no


começo eram dez. Dez pessoas cuja vida tinha data
para acabar. Essa semana, só restaram duas. Fiquem
calmos, está acabando. A vida é curta, o mundo é
pequeno, aproveite cada segundo. E por favor, doem
órgãos. Órgãos em bom estado são sempre bem
vindos.

Vitória – Eu gostava tanto dele. Achei que o Lelo


estaria na final. Eu não queria que ele tivesse
saído.

  42  
Eva – Ele não saiu. Ele morreu.

Vitória – O dinheiro não importa tanto assim.

Eva – Você dizia que ele cheirava mal.

Vitória – Eu nunca disse isso.

Eva – Tá gravado. Reprisa, aí!

Vitória - Fazíamos fisioterapia juntos. Ele era


bem limpinho. (procura a câmera) Eu gostaria de
dizer para os pais do Lelo que eu nunca disse que
ele cheirava mal.

Eva – E eu gostaria de falar para os pais do Lelo


que...( pausa) Eu não sei o que falar para vocês.
Sinto muito.

Vitória – O Lelo era jovem, alto...

Eva – O Lelo jogava basquete. Vai ficar conhecido


como o menino que jogava basquete.

Vitória – Poderíamos ter feito um belo par.

Eva - Escuta, não é assim que você vai ganhar. Não


seja boba. Essas coisas que você fala soam muito
mal. Vamos fumar um baseado. Cadê minha canabis,
tá no contrato! Caralho! (sua fala é acompanhada
por um alto PI. Mal se ouve o que ela fala) Filhas
da puta! Canalhas! Vão tomar no cu. Por quê esse
PI? Eu disse que não queria esse PI.

  43  
Vitória faz um “não” com a cabeça, como quem
diz: “ Coitada de você.”

Eva –Continue fazendo essa cara de coitada! Eu não


consigo fazer essa cara de coitada que você faz!

Vitória – Eu não atriz.

Eva – Jamais poderia ser.

Vitória – Poderia sim, por quê não? Sou bonita.

Eva – Você não é tão bonita.

Vitória – Eu tenho olhos bonitos.

Eva – Esferas vazias.

Vitória – E você é boa atriz? Minha mãe te viu. Eu


não sei quem você é. Quer dizer, quem costumava
ser.

Eva – Já foi ao teatro?

Vitória – Eu estava no hospital.

Eva – Artista, minha querida, é uma outra coisa

Vitória – Eu posso ter talento. Eu posso ter


nascido para isso.

Eva – Produção, eu quero um blood mary de


glóbulos brancos para beber a esse comentário.

Simone, imediatamente coloca a mesa um copo com


liquido branco dentro. Eva bebe.

  44  
Eva – Isso é leite.

Simone – Ordens medicas.

Eva ( a meia voz falando sem parar) – Não me


importa, coloca vodka nesse copo se não eu vou
começar a falar umas verdades sobre Aluísio, sobre
todo mundo, Tita inclusive, eu vou abrir a boca e
não vai sobrar pedra sobre pedra dessa emissora,
então mete vodka nesse copo! (muda. Para Vitória)
Quem é que nasce com talento?

Vitória – Os grandes. Os grandes nasceram com


talento. Eu nunca ouvi falar de você.

Um outro copo de leite aparece. Agora com vodka.


Eva bebe.

Eva - Você não tem cultura, minha filha!

Vitoria – Não sou sua filha.

Eva – Não é mesmo. Já viu “Aurora na montanha”?

Vitoria – Esse filme não existe.

Eva - Você nem sabe o nome dos grandes! Não sabe


pronunciá-los. Nunca ouviu falar do que é
realmente bom, do que é realmente importante!
Nunca viu nada que pudesse mudar a sua vida.

Vitória – O que poderia mudar a minha vida é a


cura do câncer.

  45  
Eva – A cura do câncer não mudaria quem você é.
Tiraria a doença de você, mas não mudaria a pessoa
que você é. Você é assim, fazer o quê?
Coitadinha, que peninha. Escuta, garota,existem
coisas mais importantes do que o mundo que você
vive e as bobagens que você fala. Existe um lugar,
e se você conhecesse esse lugar jamais deixaria de
freqüentá-lo, um lugar onde a vida acontece e a
experiência é real.

Vitória – Eu quero entrar!

Eva – Mas você não pode.

Vitória – É claro que eu posso. Todo mundo pode.


Isso se chama inclusão. Se eu quero eu consigo, se
eu acreditar eu posso. O povo não é bobo, ta? Eles
estão vendo o que você faz.

Eva – É o fim, Eloísa.

Vitoria – Meu nome não é Eloísa.

Eva – Eu vou seqüestrar o seu filho, Eloísa, vou


levá-lo para o Camboja e quando você nos achar na
floresta, eu arrancarei um tufo do seu cabelo
antes de me jogar do penhasco e a policia do fim
do mundo colocará a culpa em você e do inferno eu
vou ver a sua cara infeliz e vou sorrir, porque eu
sou fria e calculista, porque não basta ser fria,
tem que fazer o cálculo da maldade, e quando eu
cair do penhasco um pântano cenográfico cheio de

  46  
jacarés estará me esperando, e depois deles
enfiarem os dentes afiados no meu corpo de dublê
e arrancarem, perna, braço, tronco, a câmera fecha
e faz um close no olho do jacaré mecânico, que
pisca satisfeito. E dentro do olho do bicho você
poderá me ver dizendo a frase...

Eva parece ter tido um mal súbito e apaga. Som de


morte eminente.

Vitória – Eva?

Eva - ...

Vitória – Você está viva?!

Tita – Eva Lo Brac morreu.

Bruno – Graças a deus.

Simone – Temos uma vencedora.

Vitória chega perto de Eva. Cutuca-a no braço. Eva


não se move.

Vitória - Será que eu ganhei?!

Suspense absoluto. Mas Eva não morreu. Como num


rompante volta e assusta todo mundo.

Eva – Você nunca mais verá o seu filho, Eloísa!

Vitória – Meu Deus!

Vitória cai para trás. Todos os personagens se

  47  
assustam.

Eva – Menina lixo de banheiro de bar. Achou que eu


tinha embarcado no trem do alem, não é?

Vitória – Você é má!

Eva – O país inteiro torceu pela minha morte,


assim como você está fazendo agora.

Vitoria - Você é uma pessoa horrível! Eu não sou


horrível como você.

Eva – Você é pior. Você é sonsa. Você é abobada.


Não é assim que se faz a Eloísa.

Vitória – Quem é essa Eloísa?

Eva – É a sua chance.O que vai deixar para a


posteridade? Me xinga.Me xinga, sua estúpida, ou
quem vai aparecer no meio do olho do jacaré é
você.Saia desse lugar ridículo.

Vitória – Você é ridícula.

Eva - E que mais que eu sou?

Vitória – Uma velha filha da puta!

Eva – Em você eles não colocam o PI.

Vitória – Eu não quis dizer o que eu disse.

Eva - Foi muito bom foi. Não desista. Foi a única


coisa espontânea que você disse em TRÊS meses.

  48  
Continua. Você está indo bem. Fala a primeira
coisa que te vem a cabeça depois de tanto tempo
aqui, trancada num hospital cheio de câmeras.

Vitória – Não posso falar.

Eva – Pode.

Vitória – Não posso.

Eva – Um artista tem que se expor.

Vitória – Pinto! Caralho! Cacete!

Eva – E o que mais!?

Vitória – Pinto! Caralho! Cacete!

Eva - Não existe mais nada nessa sua cabeça


careca?

Vitória – Eles são imensos, são gigantes, são


enormes!Cheio de veias pulsantes. E você me
atrapalha e é velha. Você é muito mais velha do
que eu!

Eva –Esse é o espírito da coisa.

Vitória – Eu mereço ganhar esse prêmio!

Eva – Por que é você merece ?

Vitória – Você não nasceu doente. Teve o dobro do


tempo que eu tive. Você viajou e teve uma filha.
Eu já nasci sentada e passei a vida vomitando.

  49  
Eva – E eu sofro menos do que você?

Vitória – Sofre!

Eva – Como você sabe?!

Vitória – Eu sinto em mim o meu sofrimento, não


sinto o seu!

Eva – Você gostaria de estar no meu lugar?

Vitória – Não!

Eva – E por quê não?

Vitória – Porque você é feia.

Eva – Obrigada pela honestidade!

Vitória – Eu nasci para esse momento! Você não


pode tirar esse momento de mim!

Eva – Para onde você vai depois daqui?

Vitória – Para algum lugar...

Eva – Você passa por um caminho de leite?

Vitoria – É um lugar cheio de árvores.E tem umas


pessoas acenando.

Eva – E Deus está no meio dessas árvores?

Vitória – Dizem que ele flutua entre a copa das


árvores!

Eva – E como ele é?

  50  
Vitória – Eu não sei, não consigo ver.

Eva – Me diga, porque eu preciso muito dessa


informação nesse momento!Como ele é?

Vitória – Não tem nada lá!

Eva – Um artista vê primeiro e vê além,ele enxerga


aquilo que ninguém mais consegue ver!

Vitória – Eu não o vejo mas eu preciso acreditar


que ele vai estar lá se não eu vou ficar com muito
medo.

Eva – Não fique com medo.

Vitoria – Eu nasci sentada e morrendo de medo e


assim fiquei e agora vai acabar.

Eva – Se concentra: é como fumaça? Um raio? Uma


pomba? Diga! O artista diz a verdade mesmo que
ninguém queira ouvir.

Vitória – Mas não tem nada lá! É um branco total!

Eva – Inventa.

Vitória – Ele é grande, muito grande, tão grande


quanto os imensos pintos, caralhos e cassetes de
veias pulsantes, Deus é enorme na sua infinita
filhadaputisse! Eu queria ser feliz aqui, com esse
corpo, nessa vida, e eu pedi tanto, rezei tanto, a
minha mãe também rezou, e todo o tempo estávamos
falando com o nada. Eu quero que Deus morra em

  51  
todos os lugares do mundo!

Eva – Bravo.

Vitória - Eu acho que vou para o inferno.

Eva – Te espero lá.

Eva cai, morta. E fica caída, morta. Um corpo


morto.

Cintia – Mãe!

Bruno – Agora morreu não morreu?

Tita – Sim, agora acabou.

Bruno – Parabéns, você ganhou.

Simone – Eu disse que era você. Meu telefone é


995493278842

Vitória – Eu preciso de tempo.

Bruno – O prêmio é em dinheiro.

(9)

Bruno - A vida é isso aqui ou isso aí? É uma


pergunta pertinente.Não sou fanático. O fanatismo
não leva a nada. O ateísmo também não leva a nada,
quem disse que eu sou ateu? Eu nunca disse isso.
Veja a Faixa de Gaza. Está gravando? Posso falar
da Faixa de Gaza? É pertinente? Coloca uma legenda
sobre a Faixa de Gaza. Explica, se não as pessoas
não vão saber.Vamos falar um pouco sobre isso? Eu
sou médico, eu posso falar sobre isso, posso falar
sobre quase tudo.Oriente Médio não é bom? E

  52  
África, é bom? A África é um continente. Nunca
fui, mas dizem que é lindo. África do Sul eu fui.
Onde eu estava era todo mundo branco. É África a
África do sul, é claro que eu sei, o ebola é
gravíssimo mas tem hotel seis estrelas. O
primeiro seis estrelas do mundo é na África do
Sul. Copa do mundo? Eu vou! Eu vou! Adoro futebol!
Futebol é Brasil! E o Brasil é... O Brasil é
lindo. (desmonta) Edite como quiser. Cansei dessa
merda.

Tita – Você precisa tirar umas férias e ir para


uma clínica de reabilitação.

Simone entra com duas xícaras de café.

Bruno – Meu contrato acabou. Vou mudar de


emissora.

Tita- O Aluísio já sabe?

Bruno – O Aluísio vai junto.

Tita – E quando você ia me contar?

Bruno – Amanhã.

Tita – Toma um café comigo de despedida.

Bruno – Amanhã.

Tita – Amanha eu posso não existir mais. Ou você


pode não existir mais. Tem olhado para os dois
lados antes de atravessar a rua?

Bruno – Eu não ando á pé.

Tita – O tempo não está bom para andar de


helicóptero.

Bruno morre num acidente de helicóptero. Dentro do


helicóptero quilos de cocaína.

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Simone – Por que você não me ligou?

Vitória (muito séria, muito mulher, quase um outro


personagem)- Eu quero aparecer na foto loira e
sozinha, com licença.

Simone – Eu fiz você. Eu ajudei você.

Vitória – Não, você não fez nada, venci com o meu


talento, com meu esforço e com a minha doença. E
eu quero aparecer na foto loira e sozinha. Loira e
feliz. Um anjo loiro. Um anjo do sexo, Loira,
feliz e sozinha. Com o prêmio vou comprar uma casa
numa praia estrangeira isolada do mundo.Vou ter
centenas de facas de serra. Todos gritarão meu
nome, mas eu vou estar tão longe que não vou ouvir
ninguém.

Tita – Eu sinto muito pelo seu tio.

Simone – É muito triste mesmo. As pessoas morrem


por nada. Eu te trouxe um café.

Tita começa a beber o café enquanto Vitória fala.

Tita – Você está demitida. Pode ir, obrigada. Mas


não desista. Você tem futuro.

Simone – Mas você não.

Tita – Eu sabia que você iria acabar me envene...

Tita cai morta. Foi envenenada.

Simone (com uma caixa na mão) – Sua mãe está aqui


dentro.

Cintia – Obrigada.

Simone – O que vai fazer?

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Cintia – Vou fumá-la.

Simone – Bonita homenagem. Não me convida pra


entrar.

Cintia – Não.

Simone – O quê é isso na parede?

Cintia – Por quê?

Simone – Só estou perguntando.

Cintia – É um quadro.

Simone – Quem fez?

Cintia – Você gostou?

Simone – Não é vanguarda.

Cintia – Então morra num seqüestro relâmpago!

Simone – Eu não vou morrer num seqüestro


relâmpago.

Simone cai, morta. Cintia e Val Kott começam a


fazer um baseado.

Val Kott – Antes de eu morrer com um tiro pelas


costas no laboratório da fronteira, me responda:

Vitória Allegre fala.

Vitória ( continua altiva)– Reencarnação, não sei,


tomara que não. Eu não pretendo voltar, não quero
voltar, tomara que seja só isso mesmo e fim. Ou se
eu voltar eu gostaria de ser... nada, eu não
pretendo voltar. O Brasil é um país cheio de

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árvores e de gente dizen...

Vitória morre e fica loira. Val e Cintia fumam o


baseado.

Cintia – De novo isso, Val Kott?

Val – É importante. É uma teoria.

Cintia – Você precisa resolver a sua fase anal.

Val – Você olha ou não olha?

Cintia - ...

Val – Olha ou não olha?

Cintia – É claro que eu olho. ( e sorri)

Val Kott – Eu sabia.

Val Kott cai morto. Foi baleado. Cintia ainda


resiste mais um pouco, mas morre de amor logo em
seguida e cai. Tudo caiu e está esparramado pelo
chão. É tudo verdade.FIM.

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