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Folha de rosto
Citação
Nota do autor
Prólogo
Parte 1. Quando a vida estava só começanco, vi você
Capítulo um
Capítulo dois
Capítulo três
Capítulo quatro
Capítulo cinco
Capítulo seis
Capítulo sete
Capítulo oito
Parte 2. Aventura
Capítulo nove
Capítulo dez
Capítulo onze
Capítulo doze
Capítulo treze
Capítulo quatorze
Capítulo quinze
Capítulo dezesseis
Capítulo dezessete
Capítulo dezoito
Capítulo dezenove
Capítulo vinte
Capítulo vinte e um
Capítulo vinte e dois
Parte 3. Cherry (cabaço)
Capítulo vinte e três
Capítulo vinte e quatro
Capítulo vinte e cinco
Capítulo vinte e seis
Capítulo vinte e sete
Capítulo vinte e oito
Capítulo vinte e nove
Capítulo trinta
Capítulo trinta e um
Capítulo trinta e dois
Capítulo trinta e três
Capítulo trinta e quatro
Capítulo trinta e cinco
Capítulo trinta e seis
Capítulo trinta e sete
Capítulo trinta e oito
Capítulo trinta e nove
Capítulo quarenta
Capítulo quarenta e um
Capítulo quarenta e dois
Parte 4. Colibri
Capítulo quarenta e três
Capítulo quarenta e quatro
Capítulo quarenta e cinco
Capítulo quarenta e seis
Capítulo quarenta e sete
Capítulo quarenta e oito
Capítulo quarenta e nove
Capítulo cinquenta
Capítulo cinquenta e um
Parte 5. O grande romance de um viciado
Capítulo cinquenta e dois
Capítulo cinquenta e três
Capítulo cinquenta e quatro
Capítulo cinquenta e cinco
Capítulo cinquenta e seis
Capítulo cinquenta e sete
Capítulo cinquenta e oito
Capítulo cinquenta e nove
Capítulo sessenta
Capítulo sessenta e um
Parte 6. Declínio
Capítulo sessenta e dois
Capítulo sessenta e três
Capítulo sessenta e quatro
Capítulo sessenta e cinco
Capítulo sessenta e seis
Capítulo sessenta e sete
Capítulo sessenta e oito
Capítulo sessenta e nove
Capítulo setenta
Agradecimentos
Créditos
“Assim é nossa época: ninguém precisa mendigar,
exceto aqueles que podem esbanjar braços jovens.”
— THOMAS NASHE, Summer’s Last Will and Testament
Você tem amigos e eles normalmente não são grande coisa, mas
James Lightfoot era de boa. Ele lembrava do seu aniversário e era
tranquilo. Estritamente pacifista. Tinha um olho meio caído e só
metade do coração. Tinha nascido assim. Usava o cabelo comprido.
Cabelo castanho. Vivia com a mãe. Já fazia um tempo que a mãe
dele não morava na casa dela, mas ainda assim parecia uma casa
de família. Tinha fotos nas paredes que mostravam o cabelo de
James crescendo, ano após ano. Fotos de escola. E aquele olho,
zoado desde sempre.
Numa terça, ele me levou de carro até o banco. Tinha acabado de
comprar um Golf por 300 dólares. Azul-claro. Podia ter andado
até o banco, mas gostava do James e gostava do dele, então fui
de carona. O sol estava brilhando para nós naquele dia: a gente
tinha fumado um blunt sabor pêssego com uma pitada de sativa,
então estávamos superchapados. Roy estava com a gente. Roy
trabalhava pintando casas, mas estava de folga naquele dia, e ia
sentado no banco do carona. Roy era alto. Cabelo preto. Eu estava
sentado atrás. James Lightfoot tinha colocado um disco de noise
para tocar no som do carro; era como estática de com uma
bateria death metal; achei que era impossível ele gostar de verdade
daquele disco. Achei que ele estava bancando o babaca, mas era o
carro dele.
James Lightfoot gritava com Roy. O primo do Roy, Joe, tinha dito
por aí que ia entrar pros Fuzileiros Navais. E James Lightfoot não
queria que Joe se alistasse, mas o Roy meio que estava de boa, e
James estava gritando com o Roy por causa disso. Antes ele tinha
dito que Roy precisava convencer Joe a não entrar para os
Fuzileiros.
“ ”, ele disse. “ ,
.”
Ele estava gritando de novo sobre aquela merda do Joe e dos
Fuzileiros e eu não conseguia ouvir o que ele dizia, mas vi James
sacudindo os braços e não conseguia deixar de pensar que ele era
incorrigível, e que provavelmente ninguém nunca daria ouvidos a
ele.
Eu tinha recebido uma carta no começo da tarde. O banco dizia
que eu devia dinheiro. Era um engano. Estava indo lá resolver isso.
James Lightfoot estacionou o carro e Roy saiu e baixou o banco da
frente para eu poder desembarcar, aí entrei no banco e fui para a
fila. Não tinha me dado conta de que estava fedendo a maconha.
Um dos meus tênis estava se desmanchando, e a minha aparência
indicava uma vida ainda mais zoada do que de fato era, mas eu
estava do lado certo. Tinha comigo um recibo que dizia a verdade.
Tinha a carta comigo, e o recibo, e ia corrigir o engano. Não tinha
problema algum.
Disse à mulher atrás do balcão: “Vocês me mandaram esse aviso
de saldo negativo, mas não tá certo. Já paguei isso”.
Mostrei a ela a nota. A nota já tinha alguns dias. Não tinha usado
qualquer dinheiro desde então. Ela digitou meus dados no
computador.
“Esse é um novo saldo negativo”, ela disse.
“Mas é impossível. Eu não saquei nenhum dinheiro desde o último
depósito. Depositei 160 dólares.”
“Esse depósito deixou sua conta com um saldo de 10 dólares
positivos, mas tinha uma tarifa adicional de juros que deixou sua
conta no negativo.”
“Mas como vocês me cobraram mais juros de cheque especial
depois de eu ter pago?”
“O depósito não compensou a tempo.”
“Mas paguei em dinheiro. Aqui mesmo.”
“Não compensou, senhor.”
“Foi dinheiro vivo, porra.”
“Não. Com. Pen. Sou.”
Saí do banco e o carro estava em chamas. Fumaça escapava de
debaixo do capô. James e Roy observavam. Caminhei até eles e
fiquei parado junto.
Disse para James: “Sinto muito pelo carro”.
Ele perguntou se eu tinha pego minha grana de volta.
Disse que não.
Tiramos tudo que conseguimos do carro: as placas, os s, todo
equipamento de som que conseguimos carregar. Caminhamos em
direção à casa da mãe de James. Roy ainda tinha um pouco de
sativa, que colocou num cachimbo e ofereceu para James.
Não falamos nada.
Mandamos ver na sativa e sentimos como se estivéssemos
vencendo novamente.
O refrão tinha que ser repetido até que ele mandasse parar. E era
assim. A partir daquele dia, sempre que a companhia era
repreendida (algo que acontecia um milhão de vezes por dia), o grito
de guerra tinha que ser recitado integralmente. Sem exceções. Para
piorar, depois de um tempo também foi combinado que o porta-
estandarte do dia tinha que fazer a “dança do robô” durante o refrão.
Por isso nunca se aliste na merda do Exército.
CAPÍTULO QUATORZE
Tinha um rio fajuto em San Antonio. Era como o passeio dos Piratas
do Caribe na Disneylândia, só que em vez de piratas e navios
piratas você tinha bêbados e franquias de restaurantes.
Eu estava próximo do Rio Fajuto. Kovak estava comigo.
Estávamos dando uma volta. Era noite, o fim de semana pós-Emily.
Nosso primeiro fim de semana completamente de folga. Era sexta-
feira.
Kovak era filho de militar da Força Aérea. Vinha de Nevada e tinha
o azar de gostar demais de drogas injetáveis. Então ele se alistou
no Exército. Tinha 23 anos e por isso foi ele quem comprou a bebida
no começo daquela tarde. Eu já tinha tomado um quinto de uma
garrafa de gim. Sentia falta da Emily. A falta devorava meu fígado;
me sentia feito Prometeu com seus pássaros malditos. Estava
ficando tarde, e decidi que precisava comer alguma coisa.
Passamos em frente a algo que se anunciava como um bar-grill.
Dava para ver do lado de dentro. Tinha gaitas de fole nas paredes,
diferentes bandeiras, enfim. As garçonetes usavam saias de flanela.
Eu não ligava. Tinha hambúrguer vegetariano no cardápio, então eu
queria entrar, mas o cara na porta, que usava um kilt, não me deixou
entrar porque eu só tinha 20 anos. Falei que não queria beber, só
queria o hambúrguer vegetariano. Ainda assim ele disse que não.
Eu disse que pediria para viagem. Também não deixou. Fiquei sem
repertório. Falei para Kovak entrar sozinho. Quase caí de costas no
Rio Fajuto, mas por sorte não caí. Subi os degraus até chegar ao
nível da rua, e lá estava Fort Alamo. Um mendigo pediu um cigarro.
Dei um para ele e falei sobre como tinha sido sacaneado no Rio
Fajuto. Ele respondeu que tinham sido uns escrotos filhos da puta
por me sacanearem daquele jeito. Ele usava um boné velho puxado
bem para baixo, então eu não conseguia ver os olhos; mas, pelo
jeito de falar, ele parecia sincero. Ele disse que tinha um Denny’s
perto. Falei que um Denny’s seria bom. Perguntei se ele também
queria pegar algo lá. Ele disse que não tinha dinheiro. Falei que
pagaria.
Sentamos numa mesa na seção de fumantes e a garçonete
anotou nossos pedidos imediatamente. A bebedeira me deixou
falante, então perguntei ao mendigo sobre a situação dele, como ele
tinha se tornado mendigo. Ele disse que a vida dele foi pro brejo na
época em que ele foi parar na prisão.
“Por que você foi preso?”
“Assassinato.”
As panquecas chegaram.
“Um otário estuprou minha irmã. Aí meti bala nele.”
“Compreensível.”
O mendigo estava em condicional, e o agente de condicional
sempre dava uma dura por ele não ter um emprego. E ele não
conseguia arranjar emprego porque tinha problemas mentais.
Falei: “Deixa seu agente comigo. Sou do Exército. Temos bastante
influência hoje em dia. Qual é o nome dele?.”
Ele me deu o nome e o telefone do agente de condicional. Nos
despedimos na frente do Denny’s. Garanti que iria dar um jeito nas
coisas para ele em breve.
.
. ,
.
, .
?”
Ele me obrigou a fazer flexões até eu chegar à falência muscular.
Levou menos de três minutos. Mesmo assim, fiz muitas flexões. Era
bom nisso. A maioria de nós conseguia fazer flexões. Se as guerras
fossem vencidas com flexões e papo-furado, os Estados Unidos
nunca perderiam.
CAPÍTULO DEZENOVE
Fort Hood era sinistro, um novo tipo de deserto, criado para induzir o
fatalismo nos jovens. Funcionava perfeitamente.
Meu código da Quarta Infantaria me colocava no batalhão de
tanques. Não eram só tanques. Havia duas companhias de tanques
(Alfa e Bravo), duas companhias de infantaria (Delta e Eco), uma
companhia de engenharia (Charlie), além de uma companhia de
apoio (Foxtrot) e uma companhia-quartel-general ( ). Essa última
tinha um monte de coisas diferentes: cozinheiros, mecânicos,
batedores, morteiristas, oficiais de inteligência, financeiro. O pelotão
médico era parte da . Fui até lá primeiro. Ficaria lá, como parte
do posto de socorro, ou seria incluído em uma das companhias de
linha (a lista que ia de Alfa até Eco).
Não gostava do pelotão médico; quase todo mundo era mais
velho, e eles tinham preferência por um tipo de conversa no qual eu
não era bom. Então disse ao encarregado do pelotão que queria ir
para uma das companhias de linha, e ele me anexou à Eco. Foi
assim que entrei para a infantaria.
Era setembro. Seríamos enviados em novembro. A companhia era
um grupo coeso, então algumas coisas eram esperadas. Rolavam
muitos Quem é você, porra?
O sargento Shoo era meu superior. Um filho da puta grande, com
jeito de irmão mais velho. Os outros dois médicos da Bravo eram
zés-ninguém, de baixa patente, como eu. Soldado de primeira
classe Yuri e soldado de primeira classe Burnes. Eram gente boa.
Yuri era arrogante pra caralho, mas era tranquilo, e todos os 11B
gostavam dele porque ele era completamente insano, de um jeito
bem heavy metal. E quanto a Burnes, ele talvez fosse esperto
demais para o Exército. Dava para ver que ele estava de saco cheio
da idiotice que era tudo aquilo. Ele ficava na dele a maior parte do
tempo, estudando cálculo diferencial e bebendo cerveja Icehouse.
Planejava seguir carreira política. Tinha trinta e poucos anos e
parecia velho pra caralho pra nós, que não passávamos de
moleques.
A menos que por acaso já tenho ido lá, você nunca ouviu falar do
lugar, então o nome não importa. Havia uma base operacional
avançada. A base tinha sido construída no entorno de uma usina de
energia, próximo ao rio. A usina era uma coisa monstruosa que fazia
todo tipo de barulho. Funcionava com petróleo, então havia petróleo
por toda parte. Petróleo no ar. Petróleo cobrindo o chão. Vivíamos à
sombra da usina de energia, perto do Portão Norte, na Vila Russa,
composta por uns poucos edifícios de concreto agrupados. Aquela
era a área da nossa companhia, onde vivíamos, dormíamos e tudo
mais. A Companhia Delta ficava do outro lado da fileira de veículos.
O posto de emergência também era naquele lado, perto da área de
pouso. O resto do batalhão ficava no acampamento militar, na
extremidade leste da base, do outro lado da usina, passando as
lojas dos hajis, perto do Portão Principal. O Centro de Operações
Táticas ( ) era daquele lado, perto do acampamento. O batalhão
tinha um . Cada companhia tinha seu próprio . Tinha muitos
s. s em abundância, mas o maior era o do batalhão, de
dois andares. A fachada dava para a estrada, que acompanhava o
muro ao norte da base. A estrada ia para oeste de onde estávamos,
passando pelo Portão Norte, de onde dava para ver o rio à esquerda
e a Rota Martha subindo pelo campo, entre as fileiras de palmeiras.
A Rota Martha era uma pista única de asfalto.
Chegamos em dezembro. Assumiríamos o lugar de uma divisão
da Guarda Nacional, os Rifles de Mississippi. Eles não perderam
tempo. Disseram que a gente não dava nem pro cheiro. Eles tinham
fotos de todas as mortes deles, tinham juntado tudo num
PowerPoint intitulado “A Derrubada dos Cabeças de Toalha”. Nós
entramos e eles saíram. Nos passaram todos os procedimentos. O
último dos Rifles de Mississippi pegou o caminho de casa no Natal.
O Natal foi nosso primeiro dia por conta própria.
O Terceiro Pelotão ficava na Unidade de Resposta Rápida 1
( 1). Eu era o médico do Terceiro Pelotão. Estávamos treinando
perto da usina de força quando os hajis dispararam um foguete
contra o do batalhão. Três feridos. Nem vimos nada. Estávamos
a duzentos metros do ponto de disparo, e tinha prédios na nossa
frente. Foi uma grande decepção. No começo, você queria estar
onde a ação estava.
“Resposta Rápida” significava que deveríamos sair se qualquer
coisa acontecesse na área de operações do batalhão. Se uma
patrulha fosse atingida ou fizesse contato, nós éramos o apoio. Se a
Unidade Antibombas fosse acionada, nós fazíamos a escolta. Então
não fez sentido nenhum termos sido encarregados da segurança de
um sargento aleatório do nosso pelotão, enquanto ele pilotava um
aviãozinho de controle remoto do lado de fora da base. O
aviãozinho era chamado de Raptor. Eu não gostava dele.
Você ficava totalmente ligado quando pisava no solo do outro lado
da cerca de arame pela primeira vez. Esperava levar um tiro a
qualquer momento. Paramos em um ponto aleatório, onde não dava
para ver ninguém. Mesmo assim, você tinha certeza de que havia
algum haji por lá, esperando o dia inteiro só para atirar em você. E
você estava tão pronto para isso quanto poderia, mas nunca
acontecia. O sargento brincou com o aviãozinho. O sol se pôs. O
sargento voltou com o avião, embarcamos e voltamos. Tinha
escurecido rápido. No trajeto de volta, ouvimos no rádio do batalhão
que uma patrulha da Companhia Charlie tinha sido atacada na Rota
Polk. Precisávamos ir para lá. O problema é que havíamos ficado de
palhaçada com aquele avião do outro lado da base. Tivemos que
entrar pelo Portão Principal no lado sudeste e atalhar pela base até
o Portão Norte. Subimos meio quilômetro pela Rota Martha e
dobramos na Rota Grove, que nos levou até a Polk. Se
estivéssemos na base, teríamos chegado em cinco minutos, mas
levamos trinta. Metade do batalhão chegou ao local antes de nós.
Havia uma longa fila de veículos entre nós e a patrulha da
Companhia Charlie.
Falavam de cinco baixas causadas por dispositivo explosivo: três
mortos, dois feridos. Eu estava no caminhão do tenente Heyward.
Perguntei a ele se deveria tentar ir ajudar, mesmo que eu fosse um
médico. Fomos eu e o especialista Sullivan.
Tinha um veículo de alta mobilidade, tombado e pegando fogo, em
uma cratera de bomba. Havia três feridos caídos perto da estrada e
dois mortos no caminhão em chamas. Os feridos estavam estáveis
— fraturas, queimaduras leves, concussões e coisas assim, nenhum
correndo risco de morte. O médico da Companhia Charlie tinha feito
um bom trabalho em preparar os feridos para o resgate. Alguns
médicos do quartel-general tinham vindo e ajudado.
O helicóptero de resgate médico aterrissou em um campo à
esquerda da estrada. Erguemos as macas com os feridos e os
carregamos no escuro pelo terreno acidentado. Já estávamos todos
bem curvados antes mesmo de passarmos embaixo das hélices do
helicóptero, e, com a pouca luz, eu conseguia ver o homem na
maca que eu estava ajudando a carregar. Seus olhos pareciam
insanos e tristes. O cérebro reptiliano tinha assumido o controle.
Fizemos contato visual. Falei: “Vou te ajudar”.
Disse isso bem alto para que ele conseguisse escutar com o
barulho das hélices. E então fiquei com vergonha porque era uma
coisa estúpida e melodramática de se dizer, e eu tinha dito.
Na estrada, o veículo capotado já não estava mais em chamas.
Tinha um guindaste tentando tirar ele da cratera, e um monte de
pessoas olhava os corpos ainda dentro do caminhão. Um sargento
estava comandando o guincho, e começou a gritar: “
. ”.
Sullivan e eu estávamos no caminho. Voltamos para o caminhão
de Heyward, e Sullivan falou: “Você viu os corpos? Dava pra ver
todos os ossos”.
Quando voltamos à base, alguns caras nos esperavam perto da
fileira de veículos. Eles perguntaram o que tinha acontecido, quem
tinha morrido e o que tínhamos visto. Eu não soube contar muito
bem. Fui falar com Shoo. Shoo achou engraçado que eu tinha ficado
abalado. Até riu de mim. Falou que eu tinha acabado de perder o
cabaço. Voltei para o meu quarto e fiquei lá. Alguns dos meus
companheiros de quarto também estavam. Burnes, Yuri, Lessing,
Fuentes, Cheetah: todos lá. Todos menos Arnold. Eles queriam
saber tudo que tinha acontecido. Na verdade, eu não sabia muito
bem, mas contei para eles mesmo assim. Fuentes saiu para ir ao
. Ele tinha que ficar na escuta do rádio. Saiu do quarto
solenemente, como se estivesse indo embalsamar a própria avó.
Arnold chegou. Fuentes havia contado tudo para ele. Ele tinha
ouvido falar que os três caras que colocamos no helicóptero haviam
morrido. Isso acabou comigo; me senti meio que arrasado. Não
parecia que eles iam morrer. O que foi que não percebemos?
O superior de Arnold, sargento Drummond, chegou, e falei: “Sarja,
é verdade que os caras que resgatamos morreram?”.
“Não. Quem te disse isso?”
“Arnold disse que ouviu no rádio que eles morreram.”
“Arnold é retardado.”
“Achei que tinha escutado isso, sarja.
“Cala a boca, Arnold. E você, vê se se acalma, controla a agitação.
Tá agindo feito mulher.”
Drummond saiu.
Yuri disse: “Aquele cara é um cuzão”.
Estávamos todos fumando.
Lessing estava puto; ele disse: “Nós tomamos uma sova hoje”.
Lessing era de Chicago.
Burnes estava fazendo as contas. “Tivemos oito baixas hoje, num
contingente de o quê? Talvez uns oitocentos?.”
“E vamos ficar aqui a porra do ano todo”, falei, “um ano todo, cheio
de uma porra de dias.”
Yuri disse que estávamos fodidos.
Lessing falou: “Pra que vocês acham que vieram pra cá?”.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
bem, mas acho que foi umas duas semanas depois disso.
Saí em uma patrulha de recenseamento com o Terceiro Pelotão.
Cheetah estava dirigindo. Cheetah era um merda. Ele adorava
Faces da Morte, e era quase certeza que pornografia infantil
também. Ele comprava todas as facas bregas que encontrava nas
lojinhas hajis, e colocava elas todas numa chapa de compensado,
na parede em cima da cama dele. Naquela manhã ele estava
dirigindo, e achei que isso era idiotice, ele nem sequer era da
infantaria. Tinha o ranking mais baixo de todos os s na
companhia, e ele sequer era bom em sua função, porque era punido
pelos superiores o tempo todo, sendo o tipo de desgraçado que
puxava uma faca por qualquer bobagem. Mesmo assim, ele saiu da
base com a gente, e inclusive estava dirigindo. Tinha algo a ver com
ele ter prometido ao primeiro-sargento que não seria um merda o
tempo todo, se ao menos pudesse sair da base um pouquinho e se
sentir parte do time.
O tenente Evans estava no banco do carona. Perez, na torre. Eu
estava na parte de trás. Nem Cheetah, nem Perez eram cidadãos
americanos. Cheetah era da Somália. Perez, de algum lugar no
México. Me perguntei sobre as implicações disso. Acho que os dois
gostavam mais dos Estados Unidos do que eu. Qual era o meu
problema? Conduzíamos o blindado líder em uma patrulha com três
veículos. Era meio da manhã. Os três veículos seguiram para o
norte na Rota Polk e viraram à direita, saindo da rodovia e
acessando uma trilha que contornava um importante canal de
irrigação. A trilha terminava a 150 metros de algumas casas onde
seria realizado o censo daquele dia. Falei a Evans que ele não
deveria dirigir pelo terreno entre a estrada e as casas. Disse que
precisávamos desembarcar e ir andando pelo resto do caminho.
“Por que não vamos de carro?”
“Os caminhões não podem passar por ali, senhor. São pesados
demais. Vamos ficar atolados.”
“Acho que não vamos atolar.”
“O terreno parece bom porque a parte de cima seca com o sol,
mas é pura merda abaixo da superfície. Confia em mim. Já vi isso
antes. O tenente Heyward atolou três veículos num trajeto idêntico a
esse. Você não lembra do tenente Heyward porque ele foi demitido
antes de você chegar na companhia, senhor.”
“Não sei não”, ele disse. “Acho que vamos tentar mesmo assim.”
O caminhão não andou nem vinte metros e atolou. Evans avisou
Cheetah para voltar, mas o caminhão não tinha como voltar, e
Cheetah também não sabia o que diabos estava fazendo. Aí Evans
queria que o caminhão de North viesse para nos rebocar. “Não é a
melhor ideia, senhor. Foi isso que o tenente Heyward fez, e não
funcionou. Só vai dificultar mais as coisas para a Unidade de
Resposta Rápida quando chegarem aqui. Precisamos de um tanque
com um cabo de aço.”
“Quieto.”
Aí depois que os três caminhões estavam atolados, Evans
contatou a base para que a Unidade de Resposta Rápida nos
tirasse dali. Era tudo que ele podia fazer; ou isso, ou desertar e se
juntar aos hajis.
A Resposta Rápida chegou. Eram do Primeiro Pelotão, um tanque
seguido de três blindados. O tanque Bradley chegou destruindo a
trilha, foi direto para o lodo e ficou enterrado até a metade. Foi o fim
do resgate. Parecia que ficaríamos atolados o dia inteiro, então subi
para a torre. Tinha um haji observando a gente de uma das casas.
Pensei que ele devia ter achado nossa situação curiosa, então não
liguei. Ele ficou entediado e depois de um tempo foi embora.
O sargento Caves estava lá. Ele tinha vindo com a Unidade de
Resposta Rápida e estava falando merda com North. Comentavam
a merda que o dia havia se tornado. Conversavam sobre os lugares
onde iriam caçar quando voltassem aos . O batalhão nos
contatou por rádio e disseram que a Resposta Rápida deveria voltar
à base e depois nos buscar com um caminhão-guindaste. O tanque
teria que esperar.
A ordem foi passada. A Resposta Rápida partiu, e Caves foi com
eles.
Ouvimos uma pancada seca. Havia fumaça subindo rumo ao céu.
Perguntei a Evans se a Resposta Rápida tinha um médico com eles.
Ele falou no rádio: “Eco um meia, aqui é eco três meia”.
Uma voz respondeu no rádio. Era o tenente Nathan. “Ahm…
esse… ahm… não é um bom momento.”
A Resposta Rápida não estava longe. Evans mandou North e
alguns soldados com extintores de incêndio para tentar ajudar. O
meio mais rápido de chegar à estrada de terra era através do canal
de irrigação. Como era profundo, tivemos que nadar para
atravessar. Estávamos pesados por causa dos extintores, armas,
coletes, equipamentos, toda essa merda, e tivemos dificuldade em
não afundar naquela porra. Perez quase se afogou, e Cheetah teve
que puxar ele pra fora. Fui o primeiro a chegar do outro lado.
Rastejei barranco acima e, assim que me coloquei de pé
novamente, vi um caminhão branco descendo pela estrada, vindo
na nossa direção. Saquei meu rifle e apontei para onde achei que
estaria o rosto do motorista. Tirei a mão esquerda da arma e fiz sinal
para que parasse. Se ele não parasse, ia tentar matar ele, mas ele
parou. Fui até a porta do motorista. Tinha dois hajis na cabine. Vi
North e o intérprete chegando à minha direita. North pediu ao
intérprete para dizer aos hajis que nos dessem carona. Subimos na
caçamba do caminhão. Descemos a uns cem metros do local onde
estava a Unidade de Resposta Rápida e corremos pelo restante do
caminho.
Perto da traseira do blindado, tinha um buraco na estrada e, ao
longe, outro blindado queimava. Havia um assento carbonizado
jogado de lado na estrada. O especialista Farley estava lá, olhando.
Perguntei: “Onde estão os feridos?”. Ele respondeu: “Todos
morreram, seu idiota”. Olhei de novo e vi o corpo do operador de
metralhadora. Ele estava todo queimado, pedaços do seu colete
ainda presos ao torso, pernas dobradas, fêmures e tíbias e fíbulas
com tecido preto, braços derretidos, o corpo esviscerado caído
sobre as próprias tripas, rosto destruído; a cabeça, um crânio. O
cheiro é algo que você já conhece. Já está gravado no seu sangue.
A fumaça entra em cada poro e cada glândula, sua boca fica tão
cheia dela que é como se você estivesse comendo. Os soldados
estão usando um cooler, latas de munição, qualquer coisa quem
tenham à mão para levar água, numa corrente, até o incêndio. Os
extintores acabam rápido. O novo médico do Primeiro Pelotão, um
veterano chamado Jackson, está gritando sobre como todos
precisamos ficar em alerta. Ele é o único na estrada preocupado
com a segurança e ele está certo, mas ninguém dá a mínima. Tirei
meu capacete e fico indo e voltando entre a água e o fogo, levando
água, e não me dou conta do quanto isso é idiota; mas estamos
todos obcecados em apagar o incêndio, mesmo que todos estejam
mortos pra caralho e que não haja qualquer motivo para ter pressa.
O fogo foi apagado e, com os três corpos, mais o da estrada, são
quatro baixas: Caves, Rodgers, Clover e o quarto eu não sei quem
é. Metade do batalhão está em fila na estrada. Desço andando por
ela e aceno para o primeiro operador de metralhadora que vejo.
Levanto quatro dedos para o operador, e mexo a boca dizendo sem
som: “Sacos para corpos”. Viro para voltar, mas então olho duas
vezes, porque Clover vem caminhando pela estrada. Digo, Achei
que você estava morto. Digo que tinha achado que ele estava no
caminhão. Ele diz que naquela manhã era pra ele ter saído para
duas semanas de folga; mas no fim, o voo foi cancelado. Respondo,
Porra, achei que você já era um fantasma, e porra, sinto muito pelos
outros caras porque sei que vocês eram todos próximos, e quem era
o operador de metralhadora? Ele diz que era Dewitt. Os quatro
sacos para corpos chegam. O capitão agora está perto do
caminhão. Dewitt estava encolhido na plataforma da torre. Como
não tinha rosto, não tinha como saber quem era, a menos que
Clover tivesse acabado de te contar. Um crânio fumegante e
carbonizado, as órbitas vazias, os dentes fechados como se fossem
trincar. O capitão lança um olhar para dizer, Recolha o corpo. Pego
a parte de cima, e ele, as pernas. O tecido muscular está todo preto
e liso, quente o suficiente para romper minhas luvas de látex. As
mãos queimando demais, tenho que colocar ele no chão. Botar o
corpo no chão. Colocar ele no chão. Levantar de novo. Alguém vem
ajudar, segurando o traseiro carbonizado. O pênis e os testículos,
pau e bolas, totalmente queimados; sobrou um cotoco de carne de
menos de um centímetro. Chegamos aos tropeços até o saco para
corpos aberto no chão. Colocamos ele no saco. Fechamos o saco.
Vou até a água. Jogo fora o que restou das luvas de látex. Na
estrada, alguns sujeitos estão recolhendo Easton. Pararam de
repente, e um deles está dizendo Segurasegurasegura. As vísceras
estão saindo para fora. Deitaram Easton no chão. A parte do rosto
em contato com o asfalto não queimou inteira. É um círculo de
carne. O olho direito não queimou inteiro. Dá para perceber que é o
olho de Easton — um olho azul — e tem um cara olhando pra ele e
chorando, dizendo: “É o Easton. É o meu amigo”. Caves e Rodgers
estão nos assentos da frente, Caves caído sobre o painel. É fácil
tirar ele porque o colete está praticamente intacto, o que manteve as
vísceras no lugar. Ainda tem uma granada presa no colete. Não me
lembro de o lugar ser ali. Mando seu corpo para o posto de
emergência com a granada ainda presa. Precisam chamar a
Unidade Antibombas para resolver. Rodgers está no banco do
motorista, mas só sei disso porque sei que ele era o motorista de
Caves. Do contrário, não teria como. Não tem mais rosto. Caves e
Rodgers não têm rostos. Totalmente queimados. Um sargento
chamado Edwards, abalado, me diz que acha que ainda há restos
de Rodgers no caminhão. Ele aponta para um cordão de gordura
descendo pelo lado da estrutura remanescente do banco,
basicamente só metal. Não sei o que fazer. Recolho a gordura com
os dedos, enrolo numa bola e jogo na água. Aí desço a estrada,
todo ensanguentado, incapaz de compreender.
CAPÍTULO TRINTA E UM
Após algum tempo no Iraque, ficou claro que não iriam testar a urina
de nenhum de nós. Algo decente que resolveram fazer por nós,
imagino.
Ou seja, a gente podia se chapar.
Mas, ainda assim, havia a questão de como fazer isso.
Com o intérprete certo, você podia descolar narcóticos, mas aí
você podia ter um derrame, ou cair de uma porra de uma torre de
vigia ou algo igualmente ridículo. E ninguém queria isso. Então o
jeito era conseguir que o lance fosse enviado de algum lugar do
mundo. O pessoal do correio passava tudo pelo raio x, e tinha cães
farejadores também, mas não era muito sério. Dava para receber
um pouquinho de maconha. Um pouquinho de pó. Remédios que
precisavam de receita estavam por toda parte (dentro do razoável).
Se você conseguisse alguém para enviar pra você, e a pessoa
tivesse um pouquinho de noção, dava certo.
Claro que não era todo dia que você recebia um mimo desses. O
que acontecia era que você formava pequenos grupos, com
pessoas que pensavam parecido, para descolar maconha, boletas,
álcool ou o seja lá o que te mandassem do mundo. O álcool
normalmente vinha em frascos de enxaguante bucal. Pequenas
porções de maconha eram enviadas de todo jeito.
Tinha deixado algum dinheiro com Roy quando voltei pra casa.
Roy me mandou 25 gramas de maconha assada em cookies. Ele
pediu para a namorada fazer os biscoitos. Era um pacote e tanto:
além dos brownies, Roy colocou um pôster do Johnny Cash, três
maços de Winston e alguns comprimidos de oxicodona disfarçados
num frasco de Advil. Foi realmente foda da parte dele. Eu disse:
Roy, você fez bem.
Ele mandou a namorada postar no correio e ela fez isso, e aí ele
descobriu que ela havia colocado o endereço real dele na caixa. Aí
ele mandou ela voltar no correio e pegar o pacote de volta. Aí ela
levou o pacote de volta para Roy, Roy mudou o endereço, e eles
mandaram de novo, dessa vez com um endereço falso. Esse era o
Roy.
Tínhamos quase sido linchados depois da explosão de um carro-
bomba naquela tarde. O carro-bomba fez o que carros-bomba
fazem, e quatro tinham morrido no mercado. O número teria sido
maior, mas o impacto atingiu principalmente algumas ovelhas. Tinha
carne, sangue e lã pelo asfalto. Manchas de sangue no asfalto que
pareciam pequenos lagos. E todos os hajis estavam lá, parecia uma
macabra festa de rua. Um adolescente haji estava socando um
garoto na cara. Ele empurrou o garoto pra cima do lixo que havia
amontoado nas sarjetas. O garoto levantou com um pedaço de pau
cheio de farpas, balançando a madeira e gritando em árabe com
sua voz desafinada de moleque, lágrimas nos olhos, mas aí o haji
adolescente pegou a tora e bateu nele. E os outros hajis velhos
ficaram em volta e não fizeram nada, para que não achassem que
eram homens desacostumados à brutalidade.
Sobrou pouco do carro. Nossa patrulha estava próxima quando o
batalhão ordenou que impedíssemos a polícia iraquiana de se livrar
dos destroços antes que a Unidade de Resposta Rápida pudesse
trazer a Unidade Antibombas para dar uma olhada e procurar pistas
sobre quem tinha montado aquela bomba. Assim, estávamos
aguardando a Resposta Rápida. E mais hajis começaram a chegar.
Só tinha dois soldados na rua. Eu era um deles, e o outro, Lessing,
estava a trinta metros de mim. A artilharia e os motoristas não
podiam deixar os caminhões. Os comandantes dos veículos
poderiam ter saído dos caminhões, mas não saíram, mesmo que
devessem ter feito isso. Eu estava tentando ficar de olho em todos
os telhados, em todas as janelas sem luz e em todos os cantos de
uma vez só, procurando o haji que tentaria me dar um tiro na cara.
Era começo da tarde, o céu estava limpo e o sol, ofuscante. E todos
esses hajis estavam começando a perder o controle. Eu queria
poder ter dito foda-se e simplesmente deixado eles fazerem a
baderna que quisessem no lugar, assim ficaria claro para os
comandantes nos veículos que um pouco mais de efetivo na rua não
teria sido exagero.
Ou seja, Lessing e eu estávamos putos quando voltamos pra
base, mas tinha esse pacote do Roy com os brownies de maconha,
e os maços de Winston… Era exatamente o remédio de que
precisávamos.
Lessing e eu ficamos chapados pra caralho. Os brownies eram
mesmo de lascar. Tinham gosto de maconha pura, só um gostinho
leve de chocolate. Ficamos totalmente retardados depois de comer.
Se tivéssemos que lidar com qualquer pessoa que não fosse Borges
ou Burnes naquela tarde, estaríamos fodidos. Qualquer outro
provavelmente teria nos mandado de volta para a porra de Fort
Leavensworth, ou atirado na gente lá mesmo, uma execução
sumária, para nos usar de exemplo. Foi sério assim. Ficamos
totalmente chapados.
Burnes e Borges chegaram quando eu estava experimentando a
oxicodona. Falei para Lessing: “Toma um desses”.
Ele disse: “Não, obrigado”.
Falei: “Qualé, seu merda. Não menospreze meus presentes. Você
tá sempre esperto. O que é meu, é seu”.
Ele disse: “Fui viciado em heroína”.
“Mas isso não é heroína.”
“Eu roubava lojas de conveniência.”
“Bom, cê que sabe.”
Burnes e Borges disseram que tomariam algumas oxicodonas, já
que eu estava oferecendo. Falei: “Que se foda. Comam uns
brownies”.
Eles comeram. E também ficaram retardados. Acabei guardando
as pílulas todas para mim. Dei uma para Borges, já que tinha
oferecido, mas foi só; guardei o resto. Mesmo assim, elas duraram
pouco tempo. Quando não tínhamos drogas de verdade, sempre
rolava algum solvente de limpeza para cheirar. Era verão, e muita
gente estava morrendo. As pessoas eram mortas com mais
frequência no verão. E nós poderíamos morrer. Não tinha como ter
certeza.
Quanto à Emily, acho que estava me iludindo. Meio que de
propósito. Ou simplesmente de propósito. Ou talvez eu não
soubesse direito. Não consigo lembrar.
Diversas vezes, chegava pela manhã vindo de emboscadas com
explosivos e olhava meu e-mail. Muitas vezes, ela não escrevia,
mas quando escrevia normalmente não era bom. Ela dizia que
sentia vergonha do que eu estava fazendo, mas eu nunca contava o
que estava fazendo. Ela sabia tanto quanto antes de eu partir.
Comprei um pirata de uma loja haji. Era um filme sobre a vida
dos pinguins-imperadores, e tudo que enfrentavam para continuar
vivendo na Antártica, se reproduzindo e tudo mais. Adorava a porra
daqueles pinguins. Escrevi para Emily e disse que ela precisava ver
aquele filme dos pinguins. Ela não assistiu. Falei para mim mesmo,
Claro que ela não tem como ver o filme. Ela está na porra da
natureza selvagem. Então encomendei o filme para ela na Amazon.
A Amazon despachou o filme sobre pinguins para ela na natureza
selvagem. Ela me mandou um e-mail dizendo que o filme era idiota,
e que os pinguins eram idiotas. Foi exatamente o que ela escreveu.
“Idiota.” Pensei, Tudo bem, então eu fiz algo errado.
Após ter meu coração partido por e-mail, eu costumava tomar café
e fumar. Se tinha algum jogo de cartas rolando, jogava um pouco e
perdia alguma grana. Quase sempre tinha azar com cartas. Mas, de
manhã cedo, muitas vezes não tinha jogo nenhum. Não tinha nada
de interessante para ler. Ninguém acordado. Então eu ficava
olhando o catálogo de móveis da . Tinha copiado e colado um
bocado de coisas sobre os móveis da num documento do Word
e ficava olhando isso e imaginando que tipo de móveis eu e Emily
compraríamos quando fôssemos morar juntos. Eu pensei que se
terminasse essa merda no Iraque, sobrevivesse e economizasse
uma grana, seria o suficiente para eu e Emily começarmos uma vida
juntos. Teríamos uma poupança, ela teria um diploma, eu poderia
voltar a estudar e tudo daria certo, porque era algo que eu tinha
conquistado. Precisaria ser tão inteligente quanto a Emily. Ela se
tornaria alguém e eu me tornaria alguém, talvez um bibliotecário;
teríamos dinheiro suficiente, seríamos de classe média, sem
dificuldades, independentes de todo mundo; e nenhum filho da puta
que votava a favor de guerras poderia me dizer nada, porque eu já
teria feito o que eles queriam. Fumava Miamis, bebia café e ficava
tenso depois de passar a noite em missão, me esgueirando pelos
campos ao norte da base. Nem via muita pornografia, sabe. Quer
dizer, via; tinha visto A Van da Foda e tudo mais, só que em geral
não me agradava. Era como traição. E quando eu batia punheta nos
banheiros químicos, não pensava em outras mulheres. Não tenho
vergonha disso. Tentei fazer tudo certo.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
O avião tocou a pista em Fort Hood por volta das onze da manhã de
uma terça-feira. Fomos levados de ônibus do campo de pouso até
um estacionamento na avenida do Batalhão. Nos mandaram
esperar em fila na calçada, porque deveríamos entrar correndo num
ginásio onde as famílias de vários caras estariam. Tinha um
subwoofer ligado no ginásio, e dava para ouvir o bumbo a cem
metros na avenida. Eu estava no fim da fila. Começamos a andar. À
minha frente, os caras corriam para dentro do ginásio. Agora a linha
de baixo havia entrado, junto com bumbo. Mais para o fim da fila
eram todos manés, em sua maioria manés que odiavam esse tipo
de merda. Bancar o mico de circo. Não sentia que tivesse feito
qualquer coisa que justificasse ficar correndo por um ginásio.
Tinha máquinas de gelo seco, atravessamos a fumaça. O
estava tocando o refrão de “Disco Inferno”, do The Trammps, em
loop:
Gilda estava trepando com Roy. Ela também andava trepando com
um cara de Israel chamado Ricky. Ricky usava uma jaqueta de
couro, mas ele não era de nada. Libby me falou do Ricky, mas já
conhecia ele e sabia que ele não era de nada. Ele é um desses
caras que só diz mentiras e sai por aí dizendo para as minas que
tem 27 anos, quando na verdade está mais para 40. Usava aquela
jaqueta de couro. E não era de nada. Uma noite, Gilda, Roy, Libby e
eu fomos a um bar, e Ricky chegou e parecia que a coisa poderia
ficar violenta.
Ricky me falou: “Por que seu camarada fica me olhando desse
jeito? Ele precisa parar com isso. Vou arrebentar ele, bróder. Estive
no Exército israelense”.
Roy era um bosta, e eu sabia disso. Já tinha visto ele roubar
sedativos de um border collie com câncer terminal. Mas a gente se
conhecia fazia muito tempo, e eu tinha a obrigação de fazer o que
fosse necessário. Tinha isso, e o fato de Ricky ser um otário, eu não
acreditava naquela merda que ele tinha dito sobre ter servido no
Exército.
Disse para Ricky: “Não me entenda mal, mas vou te arregaçar”.
Ele disse: “Não quero briga com você, brou. Só tô dizendo que seu
camarada deveria ter mais cuidado”.
“Ninguém quer você aqui.”
“Vai se foder, bróder”, ele disse. “Quem você pensa que é, porra?
Você é um escroto da porra, bróder. Tô sabendo que você tá dando
droga pra essas minas. Você é um lixo!”
Ele tinha decidido que não ia a lugar nenhum. Talvez ele fosse o
anfitrião. Quem pode saber o que se passa no coração de um
sujeito. De qualquer forma, nós mandamos tudo à merda e voltamos
para o meu apartamento, e tinha esquecido a chave do lado de
dentro; chutei a porta, entramos, injetamos heroína e tal. Era tarde,
e Gilda derramou vinho no tapete de novo.
Ela disse: “Sou tão desastrada”.
Eu falei: “Não se preocupe, Gilda. Tá tudo bem. Mas, por favor,
tenha cuidado. Eu gosto desse tapete”.
Roy falou que era um tapete de festa.
Foi nessa noite que disse a Libby que a gente deveria casar. E ela
concordou que precisávamos nos casar. Contamos para Gilda e
Roy. Gilda falou: “Que amor! Eu vou ser a dama de honra!”.
Depois tentei transar com Libby, mas não consegui ficar de pau
duro porque tinha usado drogas demais.
CAPÍTULO QUARENTA E SETE
contei a Libby que não iria casar de verdade com ela, ela
ficou de cara. “Por que você tá fazendo isso comigo?”, ela disse. “Eu
te amo.”
Falei: “Sinto muito, mas não é como você tá pensando. Toda essa
bobagem de eu-te-amo-e-quero-casar-com-você, é só uma puta
bobagem. Sinto muito, mas é a verdade. Eu sei que falei essa
merda. Mas não tava falando sério. Não na vida real”.
“ .”
“Essa é a verdade, sinto muito. Por favor, acredita em mim. Queria
que as coisas fossem diferentes, mas não são. Não é nada legal e
preciso te contar, sabe? Depois seria pior, entende?”
“Do que você tá falando?”
“Não sei do que tô falando. Mas é como me sinto. Não ia fazer
uma coisa dessas com você só de sacanagem. Não tô tentando ser
babaca. Eu falo que te amo, não é? Queria que fosse verdade. Mas
é uma idiotice e eu deveria ter percebido antes.”
“Você tá dizendo que não quer ficar comigo?”
“Não. Eu quero. Não é esse o problema. É só que sei que vai ser
ruim, e não consigo acreditar nessa bobagem.”
“Você não confia em mim?”
“Honestamente?... Não, não muito. Mas...”
“ ? ?”
“Não é nada que você fez. Então não se preocupa. Tá tudo bem,
mesmo. Mas um cara tem que ser louco pra confiar numa garota
hoje em dia. Nada pessoal.”
“Alguém falou pra você algo sobre mim? Foi a Gilda? Ela tá
.”
“Ninguém disse nada.”
“ .”
“ , . Por que você tá puta comigo? Tô tentando ser
honesto com você, caralho.”
“ . .
,
?”
“Mas eu te amo. Porra! Quer dizer, eu gosto muito de você. Muito.
Gosto muito de você. Você é incrível. Você sabe disso. Você é
gostosa pra caramba e super boa pra mim. Mas não consigo. Olha
em volta. Moro nessa merda de apartamento faz dois meses, e as
luzes ainda nem foram ligadas. Isso não te diz nada? Noventa por
cento do tempo fico chapado demais pra transar, e sei que você
gosta de pica, e ficar chapado demais é vergonhoso. Eu entendo
por que você trepa com outros caras.”
“Eu não trepo com outros caras.”
“Trepa sim. E não precisa mentir sobre isso. Quem sou eu pra
você ter que se justificar pra mim? Você trepa com outros caras e
tem minha bênção. Você gosta de pica e não tenho qualquer dúvida
que esses merdas combinam mais com você do que eu. Você devia
casar com um deles.”
“Mas eu quero ficar com você!”
“Como você pode dizer isso? Você não sabe nada sobre mim.”
“Sei sim.”
“Qual meu último nome?... Tá vendo?”
“ .”
“Escuta. Eu acabaria com a sua vida. Essa é sua chance. Confia
em mim, você vai superar.”
“Você tá terminando comigo?”
“Não sei.”
Gilda estava na sala o tempo todo, e Libby e eu nos sentíamos
cretinos por ela ter escutado todas as merdas doidas que dissemos.
E Gilda estava entediada. Então decidimos que todos nos
sentiríamos melhor se tomássemos um pouco de heroína.
Liguei pro Trezentos. Eram três da manhã, mas Trezentos
atendeu, e falei para ele que sentia muito por ligar tão tarde. Ele
disse que tudo bem, ele ficava sempre acordado e eu podia ir até lá.
Libby e Gilda quiseram ir junto. Então fomos todos de carro até
Buckeye, encontrar o Trezentos numa das ruas laterais daquela
área. Ele sentou no banco do carona, olhou para trás e disse: “Boa
noite, senhoras”.
Trezentos sempre cheirava a merda, era um cara gordo com o
hálito de quem come merda no café da manhã, no almoço e no
jantar.
Falei: “Trezentos, essas são Libby e Gilda. Libby, Gilda, esse é o
Trezentos”.
“Oi, Trezentos.”
“A gente adora heroína.”
Na volta Libby me perguntou se Trezentos era o nome de verdade
dele. Falei que provavelmente não.
Gilda disse: “Ele tinha cheiro de zoológico!”.
Dez minutos depois nossa heroína tinha acabado, mas estávamos
super chapados e aí a Gilda deixou cair um cinzeiro em cima do
tapete e disse: “Droga”.
Falei: “Gilda, você é uma vaca do caralho”.
Libby perguntou se devíamos ligar para o Trezentos de novo.
Falei que não tínhamos nenhum dinheiro.
Ela disse: “Talvez a gente possa pegar e pagar ele depois?”.
Falei que achava que ele não aceitaria. Já era bem tarde.
CAPÍTULO QUARENTA E OITO
que iria rolar uma festa alguns dias depois. Mas não fui. Não
tinha sido convidado, mas não teria ido de qualquer forma. A festa
era do Ricky. Roy foi. Não fiquei surpreso.
Roy foi ao meu apartamento para ser apresentado a um cara
chamado Coca e Boleta. Era uma questão de conveniência, já que
Coca e Boleta pagava o meu aluguel para manter um cofre na
cozinha. Roy vestia um blusão com uma rena na frente. Ele parecia
um babaca completo, senti vergonha por ele.
Ele falou: “Tá de bobeira sozinho?”.
Disse que sim.
Ele falou: “Beleza. Como vão as coisas entre você e a Libby?”.
“Bem.”
“A Libby é uma mina massa.”
“É.”
“Vejo que você gosta muito dela. Ela tem essa vibe de puta
maquiada... Me diz uma coisa, velho. Você por acaso tem alguma
seringa nova por aqui?”
Disse que não, mas que tinha algumas que mal tinham sido
usadas, e desinfetante. Ele refletiu e disse que teria que ser isso
mesmo. Limpei um par de seringas. Coca e Boleta apareceu e Roy
comprou um Oxy 80 mg dele. Se ninguém avisasse, dava até pra
confundir o Coca e Boleta com o Biff de De Volta para o Futuro, mas
não era ele; ele era o Coca e Boleta, já era quase 2009 e Coca e
Boleta sequer tinha idade para ter participado de De Volta para o
Futuro. Tinha decidido que também precisava de uma 80 mg e pedi
para Coca e Boleta que abatesse do que ele ainda me devia em
aluguel do cofre. Ele disse que já tinha pago tudo. Então pedi para
me fazer fiado por um dia ou dois. Ele disse que tudo bem.
Coca e Boleta foi embora e Roy e eu injetamos nossas boletas.
Roy injetou metade da sua 80 mg, eu injetei a minha toda. Roy
disse: “Queria ter grana pra injetar uma 80 inteira assim”.
Eu falei: “Trabalhe duro, junte dinheiro, e talvez consiga”.
“É mesmo?”, ele falou. “É isso que você faz?”
“Mais ou menos.”
“Por que você não foi pra festa?”, ele falou. “A Libby tá lá.”
CAPÍTULO QUARENTA E NOVE
Por volta das dez da noite, Ari me ligou de volta. Estava onde Ari
tinha dito para eu ir. Saí da rodovia na avenida Fleet, dobrei
algumas esquinas e estacionei na rua. A casa cheirava a mijo de
gato. Ari era a cara do Justin Bieber. Ele disse que Gary estava a
caminho. A casa não era de Ari, mas sim de Gary. Eu não conhecia
Gary; conhecia Ari. Ari vinha de Shaker. Na verdade, também não
conhecia nem o Ari. Ele costumava ir à Noite Anos 80. Só esperava
que ele me arranjasse heroína. Eu estava precisando de um
contato. Conseguia Oxys superbaratos, 50 centavos por miligrama,
e eram ok, mas eu queria o lance de verdade. E lá estava eu.
Ari e eu estávamos esperando na sala. Uma mulher retardada
assistia à . O carpete da sala era vermelho. A retardada tinha um
mullet loiro que ia até o meio das costas. Ari a chamava de Shelley.
Shelley estava assistindo . Ela não queria mudar de canal. Tinha
uma voz rouca e as consoantes dela eram zoadas, mas deu para
entender o que ela disse, e dava para sentir o desespero. Shelley
era desesperadamente retardada.
Gary apareceu com a heroína. Fiquei surpreso, porque Gary tinha
nanismo. Ari não falou que Gary tinha nanismo. Ari me odiava. Gary
tirou a heroína de uma caixinha metálica com um ímã nela. Ele
disse: “Saca só”.
Não tinha muita heroína. Só dois gramas. Gary falou: “É pra essa
parada ser boa. Foi o que meu chegado falou”.
Paguei a Gary 140 dólares por um grama. O preço era de foder.
Queria pagar só 100. Mas se Gary dizia, confiava na qualidade. Nos
injetamos perto da pia da cozinha: Gary, Ari e eu. A cozinha estava
em frangalhos. Shelley observou enquanto injetávamos.
“Zê dive u bogo bra mi, Gary.”
“Já vejo pra você num minuto”, ele falou.
“Zê dive u bogo bra mi.”
“Dá pra calar a boca, vaca retardada do caralho?”
A heroína era ok. Não valia o preço. Mas todos sentimos. Eu ainda
tinha 0,7 gramas. Ia levar pra casa. Gary falou: “Você curte
Dilaudid?”.
Disse que compraria todo Dilaudid que ele tivesse.
Ele disse legal.
“Zê dive u bogo bra mi, Gary.”
“Vai ver .”
Gary me vendeu dez Dilaudids de 4 mg por 7 dólares cada, e
fiquei feliz de vazar daquele lugar. A noite estava bem fria, e o frio
era bom. O frio era familiar. Liguei para Emily e dirigi de volta pra
casa.
Emily estava na cozinha. Ela disse: “Feliz Dia dos Namorados”.
Não me cansava de voltar pra casa e pra ela. Nos injetamos e
vimos tarde da noite. Talvez devêssemos ter trepado, já que era
Dia dos Namorados e tudo mais, mas a gente estava se lixando
para o Dia dos Namorados. Só tinha uma coisa que nos interessava.
Foi assim que acabamos juntos.
CAPÍTULO CINQUENTA E
QUATRO
Quando os pais de Ari chutaram ele, ele foi procurar Gary, e Gary
colocou ele numa casa abandonada. E lá era congelante. Mas Gary
tinha feito um gato na linha de gás, então o fogão funcionava. Tinha
um sofá perto do fogão. As quatro bocas do fogão estavam acesas.
Da cintura para cima, a cozinha era um inferno, mas se ficasse
muito tempo sentado, podia morrer congelado. Estávamos
esperando Gary. Dei cigarros a Ari. Ari estava ficando doente.
Estava se sentido mal. Esse era Ari na pobreza. A pobreza de Ari
era baseada na crença de que não tinha que pagar por nada a
ninguém, nunca, ou mesmo ser útil para qualquer outra pessoa. Ele
estava ficando mal, vestindo um saco de dormir como se fosse uma
capa, e as coisas não estavam particularmente boas para ele.
Eu não estava muito melhor. Emily e eu tínhamos injetado, cada
um, 20 mg de Oxy naquela manhã, mas aquilo só nos manteria de
boa por algumas horas. Vinte miligramas deixavam você doido
quando não se é viciado, mas não era quase nada depois de se
acostumar, como era o nosso caso. Era esse o ponto ao qual a
droga tinha nos levado. Um ponto em que, se não estivéssemos
metendo 45 dólares nas veias, era como se estivéssemos
desperdiçando tempo, e mesmo assim era só um breve momento
antes de ficarmos mal de novo.
Então. Emily estava na faculdade e logo ficaria mal, ela estava
contando comigo para arranjar algo. Ainda não tinha dado sorte,
mas tinha duas coisas engatilhadas: essa parada do Gary, e Big
tinha ficado de me avisar sobre alguns Oxys. Faltei à aula. Sempre
faltava à aula para ir atrás de bagulho.
Era mais importante Emily ir para a aula, já que ela era a mais
esperta de nós dois. Ela era assistente de graduação, e seria pior se
ela faltasse. As pessoas perguntariam: Cadê a assistente de
graduação?
Ari me ligou num domingo à noite e disse que estava mal. Ele disse:
“Você tem alguma coisa?”.
Falei: “Cara, mas que porra?”.
Ele disse: “Por favor. Tô fodido”.
Falei: “Ok, tô indo aí”.
Dirigi até a casa abandonada e Ari estava bem mal, um frio do
caralho na casa. Ari parecia péssimo, andando com o saco de
dormir daquele jeito, a barriga se contorcendo, o nariz escorrendo
direto. Sabia pelo que ele estava passando. Eu passava por aquilo o
tempo todo. Acontecia toda semana. Por isso odiava ver outras
pessoas na merda; me lembrava de como eu estava fodido.
Falei: “O que aconteceu com seu camarada? Ele não devia estar
cuidando de você?”.
“Sinto muito por aquele dia”, ele falou. “Eu não sabia.”
“Aqui tem uma de oitenta”, falei. “É pra você. Pode ficar, é sua, e
você não me deve nada. Mas precisa me arranjar outro contato,
alguém que não seja um bosta. Se me arranjar outro filho da puta
que nem o Gary, vou voltar aqui e queimar essa casa toda com você
dentro. Por favor, acredite. E preciso tratar direto com o cara. Não
falo através de você. Deixa isso claro pra ele.”
“Ok, pode ser”, ele disse. “Certo. Valeu.”
Ari injetou 40 mg e se salvou. Aí ele ligou para Manny, e Manny
disse para eu visitar ele. Ele estava em Painesville. Não fiquei muito
empolgado sobre Painesville, mas fui.
Encontrei ele num posto de gasolina na saída da Rota 2. Liguei
para ele do estacionamento. Disse para entrar. Ele estava parado no
corredor de salgadinhos, extremamente paranoico. Estava chapado
de metanfetamina e tinha feito alguns buracos no rosto. Usava um
chapéu puxado bem baixo, com a gola do casaco para cima. Ele
falava sussurrando, e eu não conseguia entender. Fiquei frustrado.
Falei: “Olha, velho. Tenho isso aqui de dinheiro”.
“Aqui não. Vai até ali e deixa do lado dos Doritos.”
“Ahm...”
“Dos Doritos.”
“Velho, não vou deixar o dinheiro nos Doritos.”
“Dá pra falar baixo, porra? Todo mundo consegue ouvir você.”
Enrolei minha manga esquerda e mostrei a ele meu braço. Meu
braço esquerdo estava fodido. Meu braço direito também, mas só
mostrei meu braço esquerdo.
Falei: “Olha, velho. Não tô de sacanagem. Sou do rolê”.
“Você não tá me ouvindo.”
Quando cheguei em casa com a heroína, Emily perguntou porque
tinha demorado tanto. Disse que tinha comprado um grama de um
novo contato. Ela perguntou se ele era ok. Disse que era ok o
suficiente. Foi barato, considerando a qualidade da heroína. Emily e
eu ficamos felizes. Naquela noite dançamos na sala. Dançamos
uma meia hora, direto. Dançamos feito dançarinos de terceira. A
gente improvisou.
Let’s sing another song, boys, this one has grown old and bitter. [ 05
]
Foi uma bela noite. Simplesmente aconteceu.
CAPÍTULO CINQUENTA E SETE
Manny devia a Cookie 600 dólares pela heroína que Cookie tinha
adiantado para ele. Mas Manny não tinha a grana, e nem iria
conseguir. Normalmente, Manny sacaneava o contato a essa altura.
Mas ele esperou demais.
Num domingo de manhã, Manny me ligou. Disse que precisava
falar comigo sobre algo importante, mas que precisava ser
pessoalmente. Não estava com uma voz normal. Pensei que talvez
estivesse arranjando para eu me foder também, mas precisava
comprar heroína e Manny disse que era muito importante. Então eu
disse ok. Gostava do Manny, afinal de contas. Manny era um ser
humano. Era um bosta, mas um ser humano.
Disse para Emily: “Melhor você ficar. Posso ser preso”.
Ela perguntou: “O que tá acontecendo?”.
Disse que não sabia, provavelmente nada.
Quando cheguei ao shopping Richmond, liguei para Manny. Ele
me mandou ficar onde tinha estacionado. Ele chegou num Ford
Explorer azul que eu nunca tinha visto na vida. Havia outro cara
dirigindo. Manny estava no banco do carona.
Estacionaram na vaga ao lado da minha e entrei no carro deles.
Manny usava um boné dos Yankees puxado bem para baixo, mas
dava para ver que a cara dele estava inchadaça, e isso era péssimo
porque o motorista de Manny parecia o Muhammad Ali, na época
que ainda era Cassius Clay. Manny disse: “Esse é o Cookie”.
Cookie disse que agora eu podia comprar com ele.
Eu disse ok.
Tinha o suficiente para um grama — 120 dólares — então comprei
um grama, levei pra casa e injetei junto com Emily. Era decente, não
incrível.
Meu telefone tocou. Era Cookie.
Ele disse: “Que tal?”.
Falei que era decente.
Raul tinha dito que iria me devolver parte do dinheiro que tinha
pego. Ia me pagar em heroína. O que era ok, se ele me desse
dinheiro, gastaria em heroína, de qualquer forma. Seis por meia
dúzia.
Era noite. Ele me ligou e disse que o moleque dele estava no
hospital, iria se atrasar um pouco. Ele estava indo ou voltando do
hospital quando foi parado. Me ligou de novo. Era difícil de escutar.
“Tô prestes a ser preso”, ele disse. “Tão revistando meu carro nesse
momento. Passa na casa da minha mãe, diz que fui preso.”
A ligação caiu. Coloquei meu casaco e fui embora. Cheguei na
casa da mãe de Raul dez minutos depois. Bati na porta lateral.
Ninguém respondeu, então continuei batendo. Por fim, ela abriu a
porta.
Falei: “Sinto muito por incomodar a senhora. Mas o Raul me ligou
uns minutos atrás, e disse que tava sendo preso. Ele pediu para
avisar a senhora.”
‘’... Ok.”
“Quando falei com ele, ele disse que a polícia tava revistando o
carro dele, e que iriam encontrar heroína.”
“Ok.”
“Me avise se tiver algo que eu possa fazer.”
“Certo. Obrigada.”
Ela fechou a porta com cuidado e passou a tranca. Pistol
estacionou na entrada da garagem. Fui até o carro dele. Ele abriu a
porta do motorista.
“Que você tá fazendo aqui?”
Contei o que tinha acontecido com Raul.
Pistol não disse nada.
Falei: “Tem um grama pra eu te pagar amanhã? Saí na pressa e
não trouxe nenhuma grana comigo. Mas com certeza te pago
amanhã”.
Ele não disse nada.
Pesou um grama.
Agradeci e caminhei até a esquina onde tinha estacionado, entrei
no carro e fui embora. Pensei sobre minha teoria novamente. Me
avise se tiver algo que eu possa fazer. Eu era um cuzão completo.
Tinha passado na casa dessas pessoas, tentando agir como se me
preocupasse com o Raul, quando na verdade estava cagando para
ele, que provavelmente se recusaria a mijar em mim se eu estivesse
pegando fogo. E eles sabiam disso. Pensei: Estou apenas sendo
educado? E a resposta era não, só estava sendo um cretino. Que
zumbi de merda eu era. Mas, ao mesmo tempo, não entendia qual
era a porra do problema deles, porque ambos tinham agido como se
fosse minha culpa. É assim que é. As pessoas que te sugam e te
fodem e se ressentem de você, como se você estivesse tentando
passar por cima delas. E eles meio que estão certos, e você meio
que está errado. É isso que fazemos uns com os outros.
CAPÍTULO SESSENTA E CINCO
Diretor Editorial
Christiano Menezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Gerente Comercial
Giselle Leitão
Gerente de Marketing Digital
Mike Ribera
Gerentes Editoriais
Bruno Dorigatti
Marcia Heloisa
Editora
Nilsen Silva
Editor Assistente
Paulo Raviere
Adaptação de Capa e Projeto Gráfico
Retina 78
Coordenador de Arte
Arthur Moraes
Designers Assistentes
Eldon Oliveira
Sergio Chaves
Finalização
Sandro Tagliamento
Revisão
Monique D’Orazio
Retina Conteúdo
Produção de ebook
S2 Books
Walker, Nico
Cherry : inocência perdida / Nico Walker ; tradução de Diego Gerlach. — Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2021.
ISBN: 978-65-5598-082-0
Título original: Cherry
[2021]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua General Roca, 935/504 — Tijuca
20521-071 — Rio de Janeiro — RJ — Brasil
www.darksidebooks.com
[ 01 ] Termo pejorativo/homofóbico utilizado para descrever funcionários no Exército dos
sem treinamento em combate. [ ]
[ 02 ] Celebração dos muçulmanos xiitas pelo martírio de Huceine ibne Ali, neto do profeta
Maomé. [ ]
[ 03 ] No futebol americano, trata-se do jogador encarregado sobretudo de correr com a
bola e conquistar jardas. [ ]
[ 04 ] Médicos que acompanham missões de combate. [ ]
[ 05 ] "Vamos cantar outra canção, garotos, essa ficou velha e amarga", em tradução livre.
Trecho de “Sing Another Song, Boys”, do cantor canadense Leonard Cohen. [ ]
[ 06 ] Referência ao bordão gritado pelo assaltante de banco Sonny Wortzik (interpretado
por Al Pacino) no clássico filme Um Dia de Cão (1975). O bordão, por sua vez, era uma
referência a uma violenta rebelião ocorrida no presídio de Attica, em Nova York, em 1971.
A guerra que salvou a minha vida
Bradley, Kimberly Brubaker
9788594541048
240 páginas