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SUMÁRIO

Capa
Mídias sociais
Folha de rosto
Citação
Nota do autor
Prólogo
Parte 1. Quando a vida estava só começanco, vi você
Capítulo um
Capítulo dois
Capítulo três
Capítulo quatro
Capítulo cinco
Capítulo seis
Capítulo sete
Capítulo oito
Parte 2. Aventura
Capítulo nove
Capítulo dez
Capítulo onze
Capítulo doze
Capítulo treze
Capítulo quatorze
Capítulo quinze
Capítulo dezesseis
Capítulo dezessete
Capítulo dezoito
Capítulo dezenove
Capítulo vinte
Capítulo vinte e um
Capítulo vinte e dois
Parte 3. Cherry (cabaço)
Capítulo vinte e três
Capítulo vinte e quatro
Capítulo vinte e cinco
Capítulo vinte e seis
Capítulo vinte e sete
Capítulo vinte e oito
Capítulo vinte e nove
Capítulo trinta
Capítulo trinta e um
Capítulo trinta e dois
Capítulo trinta e três
Capítulo trinta e quatro
Capítulo trinta e cinco
Capítulo trinta e seis
Capítulo trinta e sete
Capítulo trinta e oito
Capítulo trinta e nove
Capítulo quarenta
Capítulo quarenta e um
Capítulo quarenta e dois
Parte 4. Colibri
Capítulo quarenta e três
Capítulo quarenta e quatro
Capítulo quarenta e cinco
Capítulo quarenta e seis
Capítulo quarenta e sete
Capítulo quarenta e oito
Capítulo quarenta e nove
Capítulo cinquenta
Capítulo cinquenta e um
Parte 5. O grande romance de um viciado
Capítulo cinquenta e dois
Capítulo cinquenta e três
Capítulo cinquenta e quatro
Capítulo cinquenta e cinco
Capítulo cinquenta e seis
Capítulo cinquenta e sete
Capítulo cinquenta e oito
Capítulo cinquenta e nove
Capítulo sessenta
Capítulo sessenta e um
Parte 6. Declínio
Capítulo sessenta e dois
Capítulo sessenta e três
Capítulo sessenta e quatro
Capítulo sessenta e cinco
Capítulo sessenta e seis
Capítulo sessenta e sete
Capítulo sessenta e oito
Capítulo sessenta e nove
Capítulo setenta
Agradecimentos
Créditos
“Assim é nossa época: ninguém precisa mendigar,
exceto aqueles que podem esbanjar braços jovens.”
— THOMAS NASHE, Summer’s Last Will and Testament

“E parecia que o mundo todo estava chovendo em você.”


— TOBY KEITH, “Courtesy of the Red, White and Blue”
NOTA DO AUTOR
Este livro é uma obra de ficção.
Essas coisas nunca aconteceram.
Essas pessoas nunca existiram.
Emily tinha ido tomar banho. O quarto estava meio escuro e eu
estava me vestindo, procurando em vão por uma camiseta sem
manchas de sangue. As calças também estavam zoadas — buracos
de cigarro na virilha. Tudo muito heroin chic, como se eu já fosse
famoso.
Desço as escadas. Livinia tinha mijado na sala. Tinha um lago de
mijo. “Porra, Livinia”, reclamo, baixo o suficiente para ela não me
ouvir. Ela é uma boa cachorra; nós é que fomos uns merdas na hora
de adestrar ela.
Pego papel toalha e um frasco de spray. Tem um maço de Pall
Mall no balcão da cozinha. Puxo um para fora do maço e acendo no
fogão. Checo as seringas dentro do armário. Estão empenadas e
sujas de sangue, parecem instrumentos de tortura. No armário tem
também dois pedaços de náilon, uma caixa de cotonetes, uma
balança digital, duas colheres com algodão velho. As agulhas das
seringas estão cegas, mas vão ter que servir. Emily tem que estar
na aula às dez; vai ser corrido. Não vai dar tempo de comprar
seringas novas até mais tarde. Vinte para as nove agora, mas acho
que conseguimos. O Black deve chegar na hora hoje, e ele vai ter
alguma coisa para nós, então estou tranquilo. Enxugo o mijo com as
toalhas de papel. Limpo o local com desinfetante, jogo as toalhas
usadas fora.
Black estaciona na entrada da garagem, e abro a porta lateral para
ele. Ele me entrega uma pistola .45 enrolada num trapo azul; eu
falo: “Me deixa pegar mais um grama”.
Ele diz que tudo bem. “Com isso, vamos a 27”.
“Sem problema.”
Pego a balança e ele começa a pesar um grama. Digo: “Ontem
veio três gramas a menos”.
Ele sabe. Mas não fala nada. É assim que fazem: te dão menos,
sabem que deram menos, e agem como se você fosse o culpado da
cagada.
“Lembra que te liguei falando disso?”
Ele lembra. Mas tem que bancar o idiota, porque é um trafizinho.
Falo: “Qualé. Não seja pau no cu. Você me falou que eu estava te
devendo como se estivesse tudo bem. Você sabe que vou pagar
logo”.
Ele diz que tudo bem.
Vou até as escadas e chamo Emily. “Ei, benzinho. O Black tá aqui.
Desce e vem se chapar um pouco comigo.”
Ela diz que desce em um segundo.
Divido a heroína e pego colheres limpas: uma pra mim, uma pra
minha gata. Encho um copo com água e sugo um pouco com uma
seringa. Pressiono com força para a água romper qualquer sangue
seco na agulha. Puxo um pouco mais de água e passo pra colher.
Escuto Emily nas escadas, misturo a heroína com a água e chego
perto do fogão. Emily diz oi para Black. Black diz oi. Digo a Emily:
“Tá ali no balcão”.
Ela responde: “Obrigada, bebê”.
Acendo o fogo baixo no fogão e cozinho a dose sobre a chama até
que comece a borbulhar um pouco; sugo em seguida. Emily enrola
um pouco de algodão pra mim. Ela sabe que estou com pressa. O
cabelo dela ainda está molhado. Pego o algodão e ponho na colher.
O algodão escurece e incha. Puxo a dose através do algodão e tiro
o ar da seringa. O que sobra é bem escuro.
Ela diz: “Você vai usar toda sua parte agora?”.
“Aham.”
“Tem certeza de que é uma boa ideia, bebê?”
“Vai dar tudo certo. Se eu não conseguir mais muito em breve, não
faz diferença.”
Dói ainda mais quando a agulha está assim, meio cega. Fica difícil
de acertar a veia. Mas acho ela sem problema; é um bom presságio.
Vai ser um dia de sorte.
Injeto.
Primeiro vem o gosto, e aí a viagem começa. E tudo parece certo,
o conforto vai se espalhando por mim. Aí o gosto fica mais forte que
o normal, tão forte que provoca náusea. E então me dou conta:
sempre estive morto, minhas orelhas zunem.

piso da cozinha e minhas bolas estão geladas.


Emily está em cima de mim: “Vamos lá”.
Ergo a cabeça. Olho pra Emily. Olho pro Black. Black está acuado
contra o balcão. Quero rir da cara dele, mas não consigo.
As mãos de Emily estão frias. “Fala comigo!”
Minha calça está aberta, e tem cubos de gelo na minha cueca.
“Você pôs gelo na minha cueca?”
“Achei que você ia morrer.”
“O dia mal começou.”
Percebo que ela está prestes a chorar. Digo: “Desculpa. Tava só
brincando. Foi bom o que você fez. Não tem motivo pra se
envergonhar. Fez um bom trabalho”.
“Seu monte de merda!”
“Mas que droga, mulher. O que você quer de mim?”
Levanto do chão, vou até a pia e começo a catar os cubos de gelo
da minha cueca. Meu pau está à vista; o frio não privilegia a
aparência dele.
“Se soubesse que isso ia acontecer, teria aparado os pentelhos.”
Black sai da cozinha.
“Você tá bem?”
“Tô bem. Tome a sua, bebê. Você tem que ir pra aula e já são
quase nove horas.”
Recolho as formas de gelo do chão. Há diferentes tipos de formas:
verde, azul e branca. Encho todas na pia e as coloco de volta no
freezer.

mal pela cachorra às vezes. A gente dizia: Vamos pegar


um cachorro e deixar de ser dois viciados. Aí pegamos a cachorra,
mas continuamos viciados. E agora somos viciados com uma
cachorra.

na sala. Faço um desenho pra ele: “Aqui é Lancashire,


aqui é Hampshire e aqui é Coventry. Vou estacionar aqui, depois da
placa de , onde é mão única. Você me pega e me deixa em
Lancashire. Você para uns dois edifícios antes da esquina e eu
desço. Aí você dirige até o estacionamento que fica atrás dessa loja.
Me espera lá. Vou entrar e sair rápido, e vou dar a volta por aqui. Aí
tudo que você tem que fazer é me levar até o lugar onde estacionei,
desço e pronto. A gente se encontra de novo aqui, divide o dinheiro,
blábláblá. Que tal?”
“É. Parece bom.”
“Então você tá dentro?”
“Tô.”
“Beleza. Me dá só um segundo e vamos. Emily tem que dar aula
às dez.”
Ela está na cozinha; já tá se sentindo melhor.
Digo: “Vou sair. Volto já”.
Ela diz: “Toma cuidado”.
Digo que vou tomar cuidado.

numa rua de casas vermelhas e brancas, um lugar que


não tem nada a ver comigo e com a Emily. Mas até que somos
felizes, embora a gente fique triste com frequência porque sente que
está perdendo tudo.
Às vezes ela começa a falar alto e a gritar comigo como se eu
pudesse fazer algo a respeito; e tenho que dizer pra ela: “Qual é o
seu problema? Você é doida? Por que fica gritando como se
estivesse sendo morta? Você tá sendo morta? Eu tô matando você?
Os vizinhos vão achar que tô matando você. E vão ligar pra porra da
polícia. E aí a polícia vai vir aqui, vai me ver e vai dizer: ‘Esse cara
parece aquele que tem feito todos esses malditos assaltos’. E aí vou
pra porra da prisão, e aí você vai se sentir um lixo”.
Às vezes ela pede desculpas. Às vezes ela não diz nada. E às
vezes me dá um soco no pescoço. E eu digo: “Ai, merda! Bebê, pra
que me socar no pescoço?”.
E aí ela sobe as escadas correndo, se tranca no banheiro e não
sai por horas, enquanto fico no térreo, chorando e chorando. Amo
tanto a Emily que parece que estou morrendo toda vez que ela faz
isso. Ela é linda, e digo isso pra ela o tempo todo. Acho que ela faria
tudo por mim.
no carro e saio rua afora de ré. Paro atrás do Black no sinal.
Não gosto muito do Black porque ele sempre tá em alguma treta.
Ainda assim, ele é de boa, em se tratando de trafis. Todos os irmãos
dele estão presos.
O sinal abre e Black vira à esquerda. Sigo ele e o ultrapasso em
direção a Cedar. A manhã está nublada, mas está claro mesmo
assim — uma manhã nublada clara! No começo da primavera! E
talvez fique assim pra sempre. Seria bom, mas é uma coisa infantil
de se desejar.
Passo por South Taylor, depois pela farmácia, depois pelo
abandonado, depois pelo Wendy’s, depois pelo colégio, depois pelo
cinema, depois pela Lee Road, outra farmácia, mais casas. Tenho
25 anos e não entendo o que é que as pessoas fazem. É como se
tudo isso tivesse sido construído no nada, e esse nada fosse o que
segurava tudo isso junto. E quando escuto pessoas falando é ainda
pior.
Não chego a tempo no sinal da Meadowbrook. Viro à direita em
Coventry, desço até a Hampshire e viro à esquerda. Aqui todas as
placas de sinalização da rua são pintadas para parecerem tie-dye.
Morava aqui antes de terem feito isso. E aí não consegui mais. Foi
como descobrir que você tinha alguma merda no rosto durante todo
o tempo em que estava falando com alguém.
Sigo pela Hampshire até onde a rua passa a ser de mão única,
com apartamentos de tijolinhos dos dois lados. Alguns dos
apartamentos têm sacadas. E as árvores são bonitas. Também não
entendo elas, mas gosto. Acho que gosto delas todas. Teria de ser
uma árvore bem zoada pra eu não gostar.
A pista é dupla, com casas de ambos os lados depois da placa
. Algumas são geminadas, algumas são casas individuais, e
todas são bonitas; as árvores são mais numerosas e maiores. Dou
meia-volta e estaciono na beira da calçada. Black para do lado e
entro no carro dele. Ele corta e vira à esquerda na Lancashire. Ele
desce a rua e para um pouco antes da esquina. Não há nada mais a
fazer agora.

da vida entrei nessa, e virou um hábito meu.


Uma coisa leva a outra, que leva a outra. As coisas ficam boas, as
coisas ficam ruins. Até que um dia você vai parar no lixo, antes
mesmo de perceber que o lance era sério. E aí você pode ser doido,
pode ter uma arma; mesmo assim nunca é nada muito sério.
Abro a porta e o carro fica apitando. “Vou ser rápido, então pode
começar. Sabe pra onde ir, não sabe?”
“Sei.”
“Só virar à primeira esquerda três vezes que não tem erro.”
“Sei.”
“Tem certeza de que quer fazer isso? Porque não parece. Ainda dá
tempo de mudar de ideia.”
“Tô de boa.”
“Ok. Te encontro no estacionamento em dois minutos, mais ou
menos. Por favor esteja lá.”
Ele diz: “Pode deixar.”
“Moleza, né?”
“Moleza.”
calçada. Uso um boné dos Indians e um cachecol
vermelho. Uso moletom azul de capuz, camisa branca, jeans,
Adidas branco, nada fora do comum. A arma na cintura. Puxo o
cachecol enquanto passo pelos caixas eletrônicos, e ele cobre a
parte de baixo do meu rosto. É meio tarde pra que faça diferença; já
estou nessa faz um tempo, meu rosto não é mais nenhum segredo.
Um cara sai quando chego à porta, e entro sem preocupação.
Passo pela porta e a arma está à mostra pra que todo mundo veja:
“ . , ”.
Estou só brincando. E sinto que todos percebem isso. Mas mesmo
assim é um assalto, e vou precisar de dinheiro antes de cair fora.
Vou até o balcão, com a arma baixa, apontada para o chão. Não
tem por que dar show. O lance de roubar bancos é que na maioria
dos casos você está roubando mulheres, então não quer ser
violento. Em 80% das vezes, se você não for violento, as mulheres
não se importam que você assalte o banco; provavelmente quebra a
monotonia para elas. Claro que há exceções, uns 20% delas têm
uma visão ruim das coisas. Como uma senhora parecida com a
Janet Reno, que não queria me dar nenhum centavo a mais do que
1.800 dólares; ela preferiria ver todo mundo morto a me dar um
centavo a mais. Ela achava que o banco é que estava certo, mas
essa era uma fanática. Normalmente as caixas são muito tranquilas:
você entrega um bilhete ou diz que é um assalto e elas pegam a
grana das gavetas e colocam no balcão; aí você pega, vai embora e
pronto. É tudo muito civilizado. É como uma piada silenciosa que
você compartilhou com elas. E digo piada porque, no meu caso, não
consigo imaginar que qualquer uma tenha acreditado que eu faria
algo sério, mesmo que fosse necessário; mas eu me esforço para
ao menos parecer um lunático e assim ninguém se dar mal por
minha causa. Tenho muita tristeza no meu rosto para compensar,
então tenho que fazer cara de louco ou vão achar que sou um
covarde. O risco que você corre é de as pessoas acharem que você
é um covarde lunático, mas faço o que posso; do contrário, o
gerente poderia gritar para elas: “Por que deu o dinheiro pra esse
covarde? Você está demitida!”. E aí ela tem que ir para casa e dizer
que o Natal foi cancelado.
Não importa. Chego no caixa. Digo a ela: “Não é nada pessoal”.
E veja só, nós já nos conhecíamos! Teve outro roubo, na zona
oeste da cidade, Lakewood, acho que um mês antes (os dias
parecem uma coisa só). A caixa que assaltei era outra, mas ela
também estava lá. Foi engraçado. A outra caixa colocou 1.400
dólares no balcão e disse que era tudo que ela tinha. Lembro da
falsidade na voz dela e de pensar, pobre dessa mulher, achando
que sou retardado. Mas é claro que não me importei. Ela era bonita
e eu nem queria tudo, sempre quis apenas o suficiente para o
momento.
Então cá estou eu roubando essa caixa, reconhecemos um ao
outro, e não tem nada de mais. Não acho que ela tenha algo contra
mim. Creio que temos quase a mesma idade. Ela é pálida como eu.
O cabelo dela é escuro. Os olhos são azuis com manchas douradas,
e eu poderia ter me apaixonado por ela se as coisas tivessem sido
diferentes. E quem sabe talvez estivéssemos em algum lugar.
“Desculpa”, digo.
“Tudo bem.”
“Qual seu nome?”
“Vanessa.”
“Desculpa, Vanessa.”
“Qual seu nome?”
“Muito engraçado, Vanessa.”
Ela esvazia os caixas rapidamente, o que é bom, já que não quero
me estender — tem uma delegacia a menos de quinhentos metros
daqui. Pego as pilhas de dinheiro do balcão e enfio nos bolsos.
Parecia tudo certo; não importava mesmo, nunca é muito. É meio
entra e pega, bate e corre: o importante é escapar.
O importante é correr rápido.
Me lanço porta afora e corro em direção à esquina, passando
pelos caixas eletrônicos, mas não volto correndo pela rua. Dobro e
corro atrás do banco, passo a lixeira, passo o apartamento onde eu
morava, desço as escadas nos fundos do restaurante quase
vegetariano, até chegar numa cerca de arame. O estacionamento
está lá, mas não vejo o Black. E não estou nem um pouco surpreso,
já que esse é o típico comportamento de trafizinho.
O importante agora é não correr.
Meu carro está a um quarteirão e acho que consigo chegar lá. Não
é o fim do mundo. As três laterais do estacionamento são três
paredes cheias de janelas com visão privilegiada de mim. Tiro o
boné e ponho a arma dentro dele. A arma é pesada por estar cheia
de balas. Está cheia de balas porque não poderia ser diferente. É
pesada demais para carregar no boné, mas vai ter que servir, já que
tenho um caminho a percorrer e não quero que a arma me deixe
sem calças na fuga.
Desço os degraus que levam ao estacionamento, carregando o
boné, com a arma no boné, o boné na mão esquerda. Não tem mais
ninguém no estacionamento quando atravesso. A arma no boné
ainda está mal escondida. Tiro o cachecol enquanto caminho, enrolo
ele um pouco e ponho em cima da arma no boné; assim fica um
pouco melhor. E ainda tem o dinheiro escapando dos bolsos;
preciso ter cuidado pra que nada caia. Dobro à esquerda quando
chego à calçada e subo a Hampshire. Eles vão chegar pela
Mayfield, e se me pegarem estou fodido.
Às vezes me pergunto se desperdicei a juventude. Não é que eu
seja tapado quanto à beleza das coisas. Levo as coisas belas tão a
sério que elas fodem meu coração, quase me matam. Então não é
disso que se trata. É só que algo em mim sempre me afastou de
mim mesmo, e é essa parte de mim que não sei explicar.
Não tem ninguém na rua exceto eu e outro cara; ele tá na mesma
calçada que eu, vindo do fim do quarteirão na minha direção. Em
algum momento, vamos nos encontrar. Ele se veste como um velho,
e isso é bom: se é velho, duvido que se importe comigo. O
importante é agir como se não tivesse roubado um banco.
Aja como se tivesse lugares aonde ir e pessoas a visitar.
Aja como se adorasse a polícia.
Aja como se nunca tivesse usado drogas.
Aja como se amasse os Estados Unidos ao ponto do
retardamento.
Mas não aja como se tivesse roubado um banco.
E não corra.
O importante é não correr.
As sirenes sobem pela Mayfield, a grama é como uma garota
adolescente. E as entradas! — as entradas são maravilhosas! Tem
uma caralhada de estorninhos se bicando em cima de um saco de
lixo inchado e gotejante — olha só pra eles! O estorninho mais
picudo assusta todos os outros. Ele vai comer o melhor lixo!
Taí a beleza das coisas fodendo meu coração. Queria poder me
deitar na grama e relaxar um pouco, mas claro que é impossível, a
arma no meu boné poderia ser um pouco demais, além do dinheiro
caindo dos meus bolsos. E as sirenes alardeando pra todo mundo
que sou um monte de merda. Aposto que eles querem que eu tente
algo para poderem beber meu sangue e depois contar para as
mulheres deles.
Dou bom-dia ao velhote. Ele responde bom dia. Se suspeita de
mim, é bondoso o suficiente para não dizer nada. Seguimos cada
um seu caminho.
Três quartos do caminho já foram.
Talvez eu escape.
E lá vêm as sirenes.
Aí vêm os gângsteres de merda.
As sirenes agora gritando, dobrando a rua.
Me sinto em paz.
CAPÍTULO UM

Emily costumava usar um laço branco no pescoço e falar em fôlegos


e sussurros, sendo gentil, como sempre era, de um jeito que não
dava para saber se era uma piranha ou apenas uma pessoa com os
pés realmente no chão. Desde o começo estava doido para
descobrir, mas ainda achava que tinha uma namorada e que era
tímido.
Tínhamos 18 anos. Nos conhecemos na escola. Ela se
preocupava com dinheiro e eu fumava 7 dólares em cigarros todo
dia. Ela disse que gostava do meu blusão, que era o que tinha
notado primeiro, o motivo de ela ter vindo falar comigo. Um cardigã
cinza — de lã, três botões, da Gap —, ela dizia que era um blusão
de velho triste. Não liguei.
Ela gostava de Modest Mouse e tocava “Night on the Sun” pra
mim. Ela me fez ler duas peças de Edward Albee. Achei Albee um
safado. Eu tinha curiosidade sobre ela. Os olhos — verdes — eram
brilhantes, bondosos, às vezes melancólicos, não inteiramente
inocentes. Ela me contava sobre fábricas abandonadas e o
cemitério onde ela havia crescido, os lugares onde tinha esfolado os
joelhos. A voz dela me dominou.
É assim que você descobre a pessoa que vai partir seu coração.

eu não sabia de nada, estava na onda de tomar


ácido, e Madison Kowalski me achava insuportável. A culpa era
minha, mas ela ainda assim foi babaca comigo, já que em tese era
minha namorada. E ela pagou um boquete para o Mark Fuller no
estacionamento de um restaurante. Fiquei na merda quando
descobri, mas perdoei.
“Só porque te amo”, eu disse.
“Também te amo”, ela respondeu.
Mark Fuller era um bom jogador de lacrosse, essa era sua fama. E
ele tinha luzes no cabelo. Talvez devesse ter feito luzes também,
mas não fiz. E tinha outras garotas que queriam ficar com Mark
Fuller, então ele podia se dar ao luxo de empurrar a cabeça da
Madison Kowalski na pica dele até ela engasgar. Foi por isso que
ela me disse: “Eu gosto que você não empurra minha cabeça pra
baixo”.
Me deixava zoado pensar nisso, mas eu pensava mesmo assim.
Às vezes ficava mal pensando, como quando costumava pensar que
você sempre tinha que amar sua garota. Recebi muitos conselhos
ruins. Era 2003. Tudo indicava que algo estava prestes a terminar.

ido fazer faculdade em outra cidade, estudar na


Rutgers, em New Jersey. Eu não sabia por que ela tinha escolhido
esse lugar; não entendia de faculdades. Mas ela era esperta, ou ao
menos tirava notas boas. Comigo era diferente. Continuei nos
subúrbios na zona leste de Cleveland, Ohio, onde vivia desde os 10
anos. Frequentava uma das universidades locais, a dos jesuítas,
onde a maioria dos garotos eram uns merdas. Uma boa escola. Não
era para eu ter ido estudar lá. Só que os meus pais tinham dinheiro
suficiente para pagar, então era o esperado. Não éramos ricos, e
meus pais também não me viam como o legado deles ou qualquer
coisa do tipo. Era mais a realização de um desejo deles, o tipo de
coisa que pode determinar o fracasso de um moleque: diziam que
gostariam de ter ido pra uma faculdade para se divertir lendo sobre
sir Francis Bacon e todas essas merdas. Então por que eu não me
sentia feliz? Não sabia dizer. Só sabia que o mundo era zoado e eu
fazia parte dele. Então fui para a faculdade porque as pessoas me
disseram que tinha que ir. O que foi um erro; mas, ainda assim,
nunca é a gente que escolhe.
Eu vendia drogas, mas não era uma pessoa ruim. Não
incomodava ninguém; eu nem comia carne. Trabalhava em uma loja
de sapatos. Outro erro que cometi. Zero interesse em sapatos.
Estava destinado ao fracasso. Mas mesmo assim tentei. Ia trabalhar
quase toda tarde, quando poderia estar fazendo coisa melhor,
basicamente qualquer outra coisa (o salário era de 6 dólares por
hora). Tinha um senso de vergonha muito bem cultivado, e era o
que me fazia continuar; nunca nem liguei mentindo que estava
doente.
Ia à aula pela manhã, às vezes faltava. Novamente, a vergonha; a
vergonha me fazia matar aula às vezes. Mas nunca faltei às aulas
de inglês. Emily estudava na minha turma de inglês. A aula era uma
bosta, mas eu ia sempre porque Emily estaria lá. E nos sentávamos
próximos; foi assim que começamos a nos falar.
Ela era de Elba, Nova York, cidadezinha que beirava o mesmo
lago que Cleveland, era o mesmo tipo de cidade, só que um pouco
mais merda. Ela achava impressionante eu ter um emprego na loja
de sapatos, impressionante que vendesse drogas. Dizia que tinha
sido educada por freiras e nunca tinha frequentado uma escola com
garotos. Parecia não saber nada sobre garotos. No fim das contas,
isso não era verdade, mas não importa. Ela era boa, eu gostava
dela. Gostava mais do que gostava de Madison Kowalski. Mas ainda
estava triste por causa da Madison. Até mostrei uma foto dela pra
Emily.
“Essa é a Madison”, falei.
Ela disse: “Ela é tão bonita”.
Madison era bonita.

mulheres no mundo. Às vezes é mais do que consigo


suportar: pensar que existem tantas delas, e que elas todas
começam a vida assim, cheias de energia e mundos invisíveis,
cheias de linguagens secretas ou seja lá o que façam, e então a
gente destrói tudo. Fui destruído por assassinas impiedosas nessa
vida, mas nunca duvidei de que alguém as tivesse destruído antes.
Alguém como eu.
Não quero contar mentiras, ao menos não mais do que o
necessário. A primeira coisa que pensei sobre Emily foi que gostaria
de trepar com ela. É, eu era um merda. Mas foi o destino, ou algo
assim, que nos uniu — independentemente de eu merecer ela ou
não. E, se minha vida virou uma bosta, não foi culpa dela. Preciso
deixar isso claro.
CAPÍTULO DOIS

Peguei um ônibus para ir ver Madison na Rutgers. Ela morava no


dormitório e a cama dela era pequena para duas pessoas; era
desconfortável. Mas pelo menos a colega de quarto tinha ido passar
o fim de semana em casa. Madison não gostava dela. Dizia que era
arrogante. Perguntei por que a companheira de quarto tinha ido para
casa. Ela contou que a avó da garota tinha morrido. Falei: “Que
triste”. E ela disse: “Ela que se foda”.
Eu ficaria por duas noites. Madison me levou a festas. Mas a
verdade é que eu ficava seguindo ela pelas festas. Saímos com
todas as novas amigas de dormitório dela. Todas já eram melhores
amigas. Conversavam noite afora. Gritavam com os carros que
passavam. Madison gritava para todos os carros.
As festas eram um lixo. A garotada não se chapava; só bebia
cerveja. Caras aleatórios conheciam a Madison. Fazia apenas um
mês que ela estava na Rutgers e eles conheciam ela. Tudo porque
a Madison sabia dançar feito uma piranha fodona. Era o jeito dela, e
era de boa, mas ficava um pouco esquisito quando você era o cara
que tinha ido à festa com aquela mina que estava dançando em
cima do balcão, se roçando numa garrafa de destilado. Acabava que
você ficava sem ter o que fazer nesse meio-tempo.
Tínhamos ido até uma fraternidade, um porão de madeira
compensada, uma espécie de calabouço do sexo e do pingue-
pongue, sinistro feito uma cena de crime. Estava tocando uma
música de sucesso da época. Era uma música sobre fazer as minas
rastejarem no chão e gozar em cima delas e coisas assim. Madison
não conseguia se aguentar. A certa altura perdi ela de vista. Fiquei
parado num canto da sala esperando que tudo acabasse logo.
Eu só tinha um caneco daquela cerva Natural Ice, mas estava bem
gelada e eu tinha tão pouca grana que o gosto parecia realmente
bom. E aí a Jessie apareceu. Jessie era uma das amigas do
dormitório da Madison. Sempre vou me lembrar da Jessie: ela tinha
peitos incríveis e me tratou bem. Ficou me olhando ali, toda triste; e
então falou: “Más notícias, moleque. A Madison tá só te enrolando”.

em que eu deveria voltar pra Cleveland, não tínhamos


mais camisinhas, e Madison fazia questão que usássemos, mesmo
com ela tomando anticoncepcional. Não conseguia entender. Disse
para ela: “Não precisamos dessa porra de camisinha, né?”.
Ela disse que precisávamos. Disse que tinha uma máquina de
camisinhas no banheiro. O que era bom, já que eu só tinha moedas
mesmo. Mas era um dormitório feminino e, portanto, um banheiro
feminino.
“Você não pode ir pegar?”, falei.
“Pega você”, ela disse.
Me vesti mais ou menos e achei a máquina, mas estava tudo
esgotado exceto por uma parada chamada Black Velvets. Só queria
cair fora do banheiro feminino, então peguei uma dessas mesmo e
voltei para a cama apertada da Madison, onde retomamos de onde
tínhamos parado.
Tinha chegado a hora de pôr a camisinha.
A camisinha era preta como uma jujuba de alcaçuz. Minhas
pernas, brancas. A camisinha era feita de algum material que usam
para fazer galochas. Parecia que meu pau era de mentira.
Não me importava se iria trepar com ela ou não. Estava cansado
de comer ela. Era sempre uma superprodução: ela precisava de
camisinha, de uma playlist, de uma frasqueira com coisas para a
viagem. Uma vez, fui até a casa dela porque ela disse que ia me
chupar, e chupou, mas antes me fez comer um pacote de pipocas e
assistir a um jogo de beisebol inteiro.
Isso não é amor, pensei.
Chupei ela uma última vez.
Na viagem de ônibus de volta pra Cleveland, estava faminto.
CAPÍTULO TRÊS

A loja de sapatos era no fim do Passeio 3, perto de uma daquelas


lojas de departamentos Dillard’s. Meu chefe estava me dando uma
dura porque eu tinha vindo de chinelo.
“Essa é uma loja de sapatos”, ele disse.
Eu sabia que ele sabia que eu estava chapado de ácido.
E então um sujeito que era a cara do Johnny Carson entrou. Ele
disse: “Garoto, preciso de ajuda”.
Ele precisava de um par de tênis brancos.
“Todo branco. E nenhum modelo esquisito. Número 41, e que seja
largo. Tenho o pé largo.”
Disse que ia faria o possível. “Mas a maioria dos calçados têm
modelos esquisitos hoje em dia.”
Ele disse que compreendia.
“Faça o melhor que puder.”
Levou duas horas, mas consegui. Era difícil de ler as caixas. E,
além disso, não era bom com cores. Ficava o tempo todo checando
minha virilha porque achava que tinha mijado nas calças.
Sentia uma ansiedade no cliente.
Queria contar tudo a ele.
Queria ficar limpo.
Quando terminei, senti que aquilo tinha sido um desafio. Caixas de
sapato por toda parte. Papel por toda parte. Os resquícios do
desespero e da hesitação. Ele quase foi embora mais de uma vez,
mas implorei para que não fosse. “Eu entendo perfeitamente”, falei.
“Eu sou como você.”
E então ele estava satisfeito por ter ficado. Tinha conseguido o
tênis que queria, ou algo muito próximo. Ele estava mais completo
agora. Me disse: “Vou te contar um negócio, rapaz… Você vai
longe… Se continuar nas vendas… Você vai longe”.
Quando o trabalho terminou, peguei o ônibus 32X, desci na South
Belvoir e comecei a caminhar. Tinha sido um dia quente. O sol
estava se pondo. Via as sombras dos pássaros nas cercas. Acho
que eram pardais. As luzes das casas começavam a se acender, e
eu estava chegando ao momento de euforia pós-pico. Estava com
uma música da Rubella na cabeça, uma do álbum William Whale:
“The Great Pink Hope”. Disse pra mim mesmo, vou cantar um
pouco.
E foi o que fiz:

Said I could disappoint you with a smile


Found out that’s true
After swimming forty miles
Yer ghost is my biggest fear
I’ve heard that it’s nice in Greenland this time of year

I ran in—to an elec-tric eeeel


Tried to teach me—about a scarlet whee-el

(Você disse que eu poderia te decepcionar com um sorriso


Descobri que é verdade
Após nadar sessenta quilômetros
Seu fantasma é meu maior medo
Ouvi dizer que é bonito na Groenlândia nessa época do ano

Esbarrei nu-ma enguia elééétrica


Ela tentou me falar — sobre uma roda vermelha)

E assim segui, enquanto o céu à minha direita ardia em chamas. E


então senti algo. Meu coração estava contraído. Eu queria
desesperadamente ser bom para alguém.
Liguei pra Madison.
Eu disse: “Sinto sua falta. O que você está fazendo?”.
Ela disse: “Ai, que horror. Pela voz, você está chapado”.
“Na verdade, não.”
“Então por que tá falando assim?”
“Porque sinto muito sua falta.”
“O que você quer?”
“Quero conversar com você.”
“Não posso falar agora.”
“Por que não?”
“Tenho que desligar.”
“Não.”
“Tchau.”
“Espera…”
“Que é?”
“… Tô assustado.”
Ela desligou.
Cheguei a Fairmount. Entrei no Russo’s pra comprar mais cigarros
e encontrei alguns moleques que conhecia lá do bairro. Eles me
deram Xanax. Eu tinha algumas pastilhas de ecstasy, então vendi
duas e tomei uma. Estava escuro do lado de fora. Os moleques
disseram que iam numa festa na casa da Maggie. Fui com eles. Não
era longe. A casa era na rua Inverness, uma casa de tijolinhos.
Entramos pela garagem nos fundos, depois passamos por um
portão no jardim e então vi Emily. Ela estava debaixo de uma treliça
feita de luzes, com um vestido de verão branco. E estava rindo.
Ela disse: “É você?”.
Falei que era.
“Conhece esse pessoal?”
“Mais ou menos.”
Ela disse: “Mundo pequeno, hein?”.
“É. Então você conhece a Maggie, ou…?”
“Caraca! Suas pupilas tão enormes.”
“Tomei ecstasy.”
“E como é?”
“É bem bom. É uma pena eu não ter mais nenhum, senão te
daria.”
Ela disse que tudo bem. “Já recusei alguns. Um cara esquisito me
ofereceu. Ele disse que eu deveria colocar a pílula no rabo. Falou
exatamente isso. Pra colocar no meu rabo.”
“Quem foi? Vou quebrar esse cara.”
“Não. Ele só tava sozinho. Podia ter acontecido com qualquer um.”
“É meio desrespeitoso pra caralho.”
“É só o jeito que alguns caras falam.”
“Quem é esse filho da puta?”
“Não sei. Ele não tá mais aqui. Por favor, não se preocupa com
isso. Achei engraçado. Não queria que ficasse chateado.”
“Desculpa. É só que isso é um vacilo do caralho, saca? Esse filho
da puta falar algo assim pra você.”
Ela segurou minhas mãos. “Esquece.”
Eu disse: “Estou muito feliz que esteja aqui”.
“E por quê?”, ela perguntou.
“Porque gosto muito de você.”
“Cala boca.”
“Não, gosto mesmo.”
“Hmmm.”
“O quê?”
“Tava só pensando.”
“E…?”
“Tava pensando que… você é meio sinistro.”

juntos, Emily e eu, andando por três quintais, os faróis


dos carros passando do nosso lado. Nenhum dos dois usava
calçados. Ela foi sem sapatos para a festa e eu estava carregando
meus chinelos porque queria que ela me achasse legal.
“Você não precisa fazer isso”, ela disse.
“Acho que preciso.”
“Olha pra você”, ela falou. “Você é sinistro, não é?”
“Você me entendeu errado.”
E assim continuamos. E então fomos para o quarto, onde nos
beijamos pela primeira vez. Onde ela olhou para longe e disse: “Faz
tudo que quiser, cara”.

acordados pela manhã. Tinha que ir para o trabalho em


duas horas, mas aí ligaram da loja de sapatos e disseram que eu
estava demitido. Respondi que tinha entendido e voltei para a cama.
Disse para Emily: “Mudança de planos. Acabo de ser demitido”.
Ela disse: “Ah, merda. Sinto muito”.
“Não, tá tudo bem”, falei. “É uma coisa boa. Agora não tenho que
trabalhar.”
“Quem ligou foi o tal gordo nazista de que você me falou?”
“A mãe dele.”
“Seu chefe fez a mãe dele demitir você?”
“Foi.”
“Que covarde de merda!”
“Não é? Falei que ele era um bosta, não falei?”
“E o que você vai fazer?”
“Sei lá, mas vou pensar em algo… Ei.”
“Quê?”
“Obrigado por ficar do meu lado nesse lance da demissão. Você é
uma moça muito legal.”
Ela sorriu.
Eu disse: “Acho que adoro você”.
“Para com isso. Viu meu sutiã?”
Ela se abaixou para tatear ao redor da cama e eu pensava,
ninguém nunca teve uma melhor que essa.
Coloquei a mão no quadril dela. “Você é linda pra caralho.”
“Hmm… porra! Onde foi parar?”
“Você não precisa dele.”
“Preciso sim. É meu melhor sutiã.”
“Você é um anjo.”
“Me ajuda a encontrar.”
“Não. Não ajudo. Desculpa.”
“Vai se foder.”
“… Assim você me mata.”
“Puta merda.”
“Volta… Por favor. É sério, porra.”
“Ah, é?”
Ela estava molhadíssima.
CAPÍTULO QUATRO

Você tem amigos e eles normalmente não são grande coisa, mas
James Lightfoot era de boa. Ele lembrava do seu aniversário e era
tranquilo. Estritamente pacifista. Tinha um olho meio caído e só
metade do coração. Tinha nascido assim. Usava o cabelo comprido.
Cabelo castanho. Vivia com a mãe. Já fazia um tempo que a mãe
dele não morava na casa dela, mas ainda assim parecia uma casa
de família. Tinha fotos nas paredes que mostravam o cabelo de
James crescendo, ano após ano. Fotos de escola. E aquele olho,
zoado desde sempre.
Numa terça, ele me levou de carro até o banco. Tinha acabado de
comprar um Golf por 300 dólares. Azul-claro. Podia ter andado
até o banco, mas gostava do James e gostava do dele, então fui
de carona. O sol estava brilhando para nós naquele dia: a gente
tinha fumado um blunt sabor pêssego com uma pitada de sativa,
então estávamos superchapados. Roy estava com a gente. Roy
trabalhava pintando casas, mas estava de folga naquele dia, e ia
sentado no banco do carona. Roy era alto. Cabelo preto. Eu estava
sentado atrás. James Lightfoot tinha colocado um disco de noise
para tocar no som do carro; era como estática de com uma
bateria death metal; achei que era impossível ele gostar de verdade
daquele disco. Achei que ele estava bancando o babaca, mas era o
carro dele.
James Lightfoot gritava com Roy. O primo do Roy, Joe, tinha dito
por aí que ia entrar pros Fuzileiros Navais. E James Lightfoot não
queria que Joe se alistasse, mas o Roy meio que estava de boa, e
James estava gritando com o Roy por causa disso. Antes ele tinha
dito que Roy precisava convencer Joe a não entrar para os
Fuzileiros.
“ ”, ele disse. “ ,
.”
Ele estava gritando de novo sobre aquela merda do Joe e dos
Fuzileiros e eu não conseguia ouvir o que ele dizia, mas vi James
sacudindo os braços e não conseguia deixar de pensar que ele era
incorrigível, e que provavelmente ninguém nunca daria ouvidos a
ele.
Eu tinha recebido uma carta no começo da tarde. O banco dizia
que eu devia dinheiro. Era um engano. Estava indo lá resolver isso.
James Lightfoot estacionou o carro e Roy saiu e baixou o banco da
frente para eu poder desembarcar, aí entrei no banco e fui para a
fila. Não tinha me dado conta de que estava fedendo a maconha.
Um dos meus tênis estava se desmanchando, e a minha aparência
indicava uma vida ainda mais zoada do que de fato era, mas eu
estava do lado certo. Tinha comigo um recibo que dizia a verdade.
Tinha a carta comigo, e o recibo, e ia corrigir o engano. Não tinha
problema algum.
Disse à mulher atrás do balcão: “Vocês me mandaram esse aviso
de saldo negativo, mas não tá certo. Já paguei isso”.
Mostrei a ela a nota. A nota já tinha alguns dias. Não tinha usado
qualquer dinheiro desde então. Ela digitou meus dados no
computador.
“Esse é um novo saldo negativo”, ela disse.
“Mas é impossível. Eu não saquei nenhum dinheiro desde o último
depósito. Depositei 160 dólares.”
“Esse depósito deixou sua conta com um saldo de 10 dólares
positivos, mas tinha uma tarifa adicional de juros que deixou sua
conta no negativo.”
“Mas como vocês me cobraram mais juros de cheque especial
depois de eu ter pago?”
“O depósito não compensou a tempo.”
“Mas paguei em dinheiro. Aqui mesmo.”
“Não compensou, senhor.”
“Foi dinheiro vivo, porra.”
“Não. Com. Pen. Sou.”
Saí do banco e o carro estava em chamas. Fumaça escapava de
debaixo do capô. James e Roy observavam. Caminhei até eles e
fiquei parado junto.
Disse para James: “Sinto muito pelo carro”.
Ele perguntou se eu tinha pego minha grana de volta.
Disse que não.
Tiramos tudo que conseguimos do carro: as placas, os s, todo
equipamento de som que conseguimos carregar. Caminhamos em
direção à casa da mãe de James. Roy ainda tinha um pouco de
sativa, que colocou num cachimbo e ofereceu para James.
Não falamos nada.
Mandamos ver na sativa e sentimos como se estivéssemos
vencendo novamente.

Emily deixava os elásticos de cabelo dela na minha cama,


e eu devolvia. Um fato a respeito de Emily é que os pais dela se
separaram quando ela tinha 13 anos. Ela sempre falava sobre como
achava que o amor não existia, como tudo não passava de
feromônios pregando peças nas pessoas, e que eu provavelmente
era cachorro e mentiroso. Ela me dizia que tinha sido a primeira da
família a descobrir que seu pai tinha um caso; ficava escutando
enquanto ele falava no telefone. Perguntei por que tinha decidido
bisbilhotar.
Ela disse: “Você tá sendo babaca”.
“Desculpa”, falei. “Quer dizer, deve ter sido terrível.”
“Perguntei pra ele sobre o assunto, e aí ele tentou me subornar.
Disse que me deixaria ir pro acampamento de vôlei se prometesse
não contar pra minha mãe.”
“Porra.”
“Eu queria ir pro acampamento de voleibol”, ela disse.
“O que você fez?”
“Contei pra minha mãe.”
“E você foi pro acampamento no fim das contas?”
“Não.”
Emily tinha a mania de sumir. Às vezes eu saía à procura dela.
Nem sempre era fácil; ela sabia ser difícil de achar. Já tinha
acontecido de encontrar ela embaixo de um desses respiradouros
de calçada. Perguntei como tinha ido parar lá embaixo. Ela disse
que não sabia.
“Vamos dar uma volta”, falei.
Ela respondeu que precisava pensar a respeito.
“Mas o que você tá fazendo aí embaixo?”, perguntei.
“Estudando.”
“Faz tempo que você tá aí?”
“Aham.”
“Tá com fome?”
Ela ergueu algo em direção à luz.
“Trouxe um pacotinho de Cheerios.”
“E se chover?”
“Acho que aí vou me afogar.”
E tinha também o tal do Roller. Ela via ele mais do que eu gostaria.
Aí eu falei: “Por que aquele otário cuzão tá sempre com aqueles
rollers cretinos?”.
Ela disse que o cuzão era eu, que eles eram só amigos e que
nunca tinham ficado.
“Ele é supereducado”, ela disse.
Falei: “Você não acredita nisso de verdade, acredita? Tá na cara o
que ele pretende”.
“E a sua namorada?”
Ela era capaz de ser cruel desse jeito.

um dos elásticos de Emily no feriado de Ação de


Graças, mas não fez drama, porque tinha todo o resto e ambos
sabíamos disso. Então estávamos de acordo.
Era impossível magoar Madison.
Não era o jeito dela.
Ela tinha sangue-frio.
Ela era uma verdadeira matadora.
Mas, mesmo sendo uma matadora, sabia ser adorável. Lembrei de
um dia, algum tempo antes, quando tomei uma tira de ácido e ela
ficou brincando num trampolim. De como foi ver ela daquele jeito,
com a camisa azul-clara deixando rastros rodopiantes pelo ar. A
risada dela ecoando pelo topo das árvores. Como isso me fez
chorar. Mas ela não era a colina em que eu estava destinado a
morrer.
CAPÍTULO CINCO

Emily trabalhava à noite no Centro de Ciências. Ela limpava as


jaulas e matava os ratos de laboratório com uma pequena guilhotina
que os cientistas a ensinaram a usar. Ela cortava a cabeça dos ratos
e espremia o sangue dos corpos. Ela não gostava de fazer isso,
mas pensava que os ratos morreriam de qualquer modo, e ela
precisava da grana. O pai dela era algum tipo de dentista-
especialista e ganhava o suficiente para garantir que ela nunca
fosse receber qualquer tipo de empréstimo estudantil, mas ele não
dava nenhum dinheiro para ela. E a mãe também não ajudava.
Então Emily fazia coisas como caminhar meio quilômetro a mais
numa chuva do caralho só porque a pipoca e o refrigerante do
Marc’s eram alguns centavos mais baratos que no Russo’s. Ela fazia
esse tipo de coisa enquanto eu andava por aí fazendo o que
quisesse, porque era um moleque meio mimado e meus pais me
davam tudo que eu precisava. E o que não ganhava deles podia
ganhar vendendo drogas para a garotada na escola. O que era bem
fácil de fazer. Emily intuiu que eu era um escroto, mas meio que
gostava disso, então tudo bem. Ao mesmo tempo, ela fazia questão
de dizer que não confiava em mim nem um pouco. E quando eu
tentava dizer algo romântico, ela tinha o costume de rir da minha
cara. Não conseguia evitar. Ela era durona.
E assim foi até o final do primeiro semestre. Emily viajaria para
Elba durante as férias de inverno. Ela tinha vindo me visitar. Estava
deitada na minha cama. Não estávamos fazendo nada além de
esperar o momento de nos despedirmos. E eu ficava só olhando
para ela e para seu corpo tão leve e delicado, a expressão no rosto
calma e enigmática; sabia que aquela garota podia me pedir a vida
se quisesse, e ainda assim tudo em que conseguia pensar era que
não queria que ela se machucasse nunca.
E, como um imbecil de merda, falei: “Eu te amo”.
As palavras saíram sozinhas, então deve ter sido verdade. E ela
ficou me encarando, sem dizer nada.
Aí, depois de um tempo (não sei quanto, porque o tempo parou),
ela disse: “Valeu”.
E foi isso. Ela foi embora. A gente não se veria até meados de
janeiro, quando as aulas começavam de novo.
E o tempo todo em que ela ficou fora, pensei, ela ama você.
CAPÍTULO SEIS

Você consegue olhar pra trás e lembrar de quando conheceu a


pessoa que mais amou, lembrar exatamente de como foi? Não onde
foi, ou o que ela estava vestindo, ou o que você comeu no almoço
naquele dia, mas o que foi que você viu nela que fez você dizer, sim,
foi por isso que vim aqui.
Eu até poderia dizer alguma merda elaborada, mas sei lá.
Gostei do jeito que ela xingava. Ela xingava com grande beleza.
E o corpo dela.
Ela era a melhor trepada. Realmente te fodia, ou deixava você
foder ela. Ela não tinha limites. Sempre dava tudo pra você e não
tinha um pingo de fingimento.
O jeito que ela sorria quando ficava nervosa.
Não sei o que ela viu em mim. Quando começamos a ficar, nos
encontrávamos numa capela vazia da faculdade. Tinha um altar lá.
Na parede atrás do altar tinha uns ornamentos. Esses ornamentos
eram figuras feitas de palito retratando a Via Crucis, diversas figuras
metalizadas de Jesus feitas de palitos, arrastando cruzes. Em
algumas das imagens, a cruz aparecia ereta ao lado de Jesus. Em
outras, Ele estava prestes a tombar sob seu peso. Falei para Emily
que parecia alguém que tinha se acidentado tentando instalar uma
tabela de basquete. E ela gargalhou como se fosse morrer
gargalhando. Talvez tenha sido isso.
No dia em que a conheci, saímos para dar uma volta depois da
aula e acabamos no dormitório dela. A gente conversou um pouco e
então, por algum motivo, comecei a chorar, tipo me esgoelando de
chorar mesmo. Falei que não queria mais viver porque já tinha visto
tudo que tinha para acontecer, e era um pesadelo. Ou algo assim. E
ela foi superdoce comigo. Acho que nunca houve alguém com mais
compaixão por cuzões fracassados.
CAPÍTULO SETE

Em janeiro, Emily voltou. Ela queria que assistíssemos a um filme


juntos. No Natal, sua mãe tinha lhe dado um vale-presente de 20
dólares, e ela tinha comprado o tal filme em . Ela disse que era
seu filme predileto. O filme era sobre pessoas diferentes, que tinham
um monte de experiências complicadas e profundamente tristes, e
algumas delas fumavam orquídeas. E tinha acidentes de carro.
Estávamos numa sala da escola que tinha uma e um sofá. E
tinha um micro-ondas também, mas a sala não era maior do que um
armário grande. Parecia que ninguém nunca ia lá. Uma sala que
ninguém conhecia. Emily tinha um dom para encontrar salas que
ninguém conhecia.
Chequei meu celular e vi que tinha uma mensagem de voz.
Ninguém tinha tentado ligar; de algum jeito, só tinha a mensagem de
voz. Escutei a mensagem. Era Madison Kowalski trepando. E tinha
um cara dizendo: “A Madison é uma gostosa. A Madison é uma
gostosa. A Madison é uma gostosa”.
O cara parecia um débil mental.
E então Madison pegava o telefone:
“E você só está puto comigo”, ela disse. “Porque isso é o que você
não tem.”
Falei para Emily: “Você precisa ouvir isso aqui”.
Voltei a mensagem para o começo. Ela escutou.
“Puta merda! Que vaca… Bebê, sinto muito... Sinto muito que você
tenha ficado com ela.”
“Já falei que não importa. Essa mina é uma puta. Sempre foi. Só
eu não sabia.”
Emily ficou calada.
“Que foi?”
Ela olhou para o lado.
Falei: “Qual o problema? Que foi que eu fiz?”.
“… Espero que você nunca me chame de puta.”
“Óbvio que nunca vou chamar você de puta. Eu te amo. É o que
fico tentando te dizer.”
“Também te amo.”
E estávamos um em cima do outro.
Comecei a tirar o cinto dela.
Ela disse: “Espera… Tô menstruada”
Falei que não me importava.
Ela disse: “Dane-se… Não, espera.”
“Que foi?”
“Não dá. O sofá. Não quero que fique sangue nele.”
“Porra, é verdade.”
“Vem. Levanta”, ela falou.
Ela mandou ver. Trabalhou tanto quanto pôde e aí parou para
respirar.
“Faz o que precisar pra gozar”, ela falou.
Segurei o cabelo dela pra trás e tentei ser gentil, aí gozei e ela
engoliu.
Beijei o queixo dela. Estava molhado.
Disse obrigado.
Ela respondeu: “De nada”.

quando a gente estava apaixonado. Me senti sortudo por


um tempo. Até que tudo foi pras picas, cerca de um mês depois,
quando ela disse que estava indo embora de vez no fim do
semestre. Queria ir estudar no Canadá. Foi o que ela disse. E achei
que era típico de uma garota chegar e dizer uma merda dessas.
CAPÍTULO OITO

Eu estava bombando feio na faculdade e tentei equilibrar as coisas


arranjando um emprego de pizzaiolo no Gerasene’s. Era ok desde
que o Velho Gerasene não estivesse por perto. Mas, quando estava,
cuidado.
Mal tinha começado quando ele me pegou tentando fazer a massa
girar no ar e essas coisas. Ele não tinha nem bem um metro e meio
de altura e era magro, usava um terninho cinza que fazia ele
parecer um boneco. Quando vi, pensei, ah, lá vem um velhinho
gente fina.
Ele falou: “Vamos, me deixa ver você fazer”.
Aí até tentei, mas a massa não girou muito, e desceu mais ou
menos na mesma forma de antes. Rolou uma tristeza ostensiva
nessa trajetória. Eu não tinha a mágica. O velho ficou doido comigo.
“ , ? , .
. , , .”
Tentei de novo. Ainda pior.
“ . . . . . ,
.”
Tentei de novo, mas me saí tão mal quanto antes, e o velho
maldito gesticulou uma série de movimentos afetados de modo a
insinuar que eu jogava a massa feito uma bicha. Ele ficou andando
em volta de mim e dizendo: “ . .
”.
Não estava entendendo nada.
Ele disse: “ ?
?”.
Obviamente, o salário não era bom, mas o lado positivo era que
ninguém além do Velho Gerasene parecia se importar se você
parasse um milhão de vezes para fumar. Isso era bom, e eu
passava um monte de tempo nos fundos do restaurante sem fazer
porra nenhuma.
Tinha um garçom novinho que estudava na mesma escola que eu.
Ele era um branquelo franzino que nem eu, só que fumava Newport
e eu fumava Winston. Ele me disse que comia uma das netas do
Gerasene.
O Velho Gerasene tinha meia dúzia de filhas e netas. Elas todas
dirigiam carrões e gostavam de novelas, Família Soprano e coisas
assim. Elas trabalhavam no restaurante, sem fazer muito. Não sei
se o Velho Gerasene tinha algum filho ou neto, mas se tinha, não
iam ao restaurante.
Enfim. O garçom me contou que estava comendo a Gabriella.
Gabriella tinha 21 anos. Tinha um rosto bonito e tetas grandes. Ela
sempre calçava sapatos do tipo “me come”, fizesse chuva ou fizesse
sol. Parecia ser legal, não que o garçom se importasse.
“Ela é burra feito uma porta”, ele disse.
Eu não entendia que diferença isso fazia.
“Mas ela gosta de dar o rabo”, ele falou. “E me compra roupas.”
Não tinha nada a dizer, então só olhei para o céu. Esse cara
claramente tinha a mágica.
Voltei para dentro e tinha alguns pedidos, então comecei a jogar a
massa de novo, e cada vez que jogava e ela afinava no ar, não
conseguia deixar de pensar em Gabriella e seu cu flexível.

era abandonar a faculdade, mas tomei um Clonazepam


5 mg, bebi meio litrão de Olde English e apaguei no museu de arte.
Então acabei perdendo o prazo para trancar o curso e acabei
rodando.
Recebi uma carta dizendo que tinha que ir conversar com Padre
Não Sei-Quem para ele me dizer pessoalmente que minhas
chances universitárias já eram. E foi o que ele fez. E então me
perguntou se alguma vez eu já tinha viajado para fora dos Estados
Unidos. Respondi que tinha ido à Espanha uma vez. Ele disse que
eu tinha sorte. Falou que já tinha 60 anos quando viajou ao exterior
pela primeira vez. E lá estava eu, tão jovem, e já tinha visitado a
Espanha! Aí ele me perguntou o que eu iria fazer, e disse a ele que
provavelmente cuidar da minha própria vida.

eu já tinha saído da casa dos meus pais e ido morar em um


apartamento em Murray Hill com meu amigo Roy, seu primo Joe e
quem quer que passasse por lá (principalmente James Lightfoot).
Roy era um moleque irlandês grandão, usava o mesmo agasalho
esportivo fodido todo santo dia, bebia cerveja de litro e enrolava
cigarros com tabaco para cachimbo. Joe era uma miniatura de
carcamano. Ele não conseguia deixar de trepar o tempo todo. Era
de outro mundo. Era adotado; por isso era primo de Roy. Era o mais
durão de nós três. Durão pra caralho. A gente costumava encher
uns aos outros de porrada pra descobrir o quanto cada um era
durão, e foi assim que a gente descobriu.
Joe pintava casas junto com Roy. E eles na real faziam um
dinheiro até que bom, mas aí Joe se alistou nos Fuzileiros, e não
poderia pintar por um tempo. Ele iria para a Parris Island dali a
algumas semanas.
Roy nunca chegou a se alistar nos Fuzileiros, mas ligou para o
Gerasene’s por mim e mentiu dizendo que eu tinha quebrado o
braço andando de skate em Cain Park. Eles disseram que tudo
bem. E me conseguiu um emprego num restaurante em Mayfield,
um lugar bacana com dois ambientes, teto em forma de arca, alto e
decorado, e um único banheiro. O dono era um babaca, mas nada
de mais, e todas as garçonetes eram maravilhosas e dava para
ganhar dinheiro lá. Tinha uns caras turcos trabalhando na cozinha
que puxavam uma faca para você por nada, então você se sentia
realmente vivo. O gerente no começo me colocou para limpar
mesas, mas eu não tinha a personalidade certa para isso e meus
sapatos não eram adequados, então ele me pôs para fazer saladas.

em três dias. Voltaria pra casa, em Elba. No fim do


verão ela iria para Montreal. Preparei um almoço-piquenique: frutas,
ravióli frio, salada caprese, garrafas de vinho barato. O plano era
fazer um piquenique, eu e Emily, perto do lago atrás do museu de
arte, mas em vez disso fomos para o sótão de Roy. Bebemos uma
das garrafas de vinho e transamos lá, no sótão. Ela ficou por cima,
concentrada. Dava para ver que estava concentrada porque mexia o
queixo para o lado quando se concentrava. E era a coisa mais linda
do mundo.
Era um dia claro e o sol estava ótimo, o que deixou o sótão um
forno insuportável, e em certo momento descemos para o lago,
onde havia um bom número de pessoas de todos os tipos e
intenções aproveitando o calor. Emily e eu sentamos na beira da
água e conversamos sobre todas as coisas que achávamos que
iríamos fazer. Disse a ela que só iria se ela fosse.
“Vai se foder”, ela respondeu.
Acho que foi errado testar ela assim, mas o dia tinha sido tão bom,
e achei que todos os dias deveriam ser tão bons quanto esse.
que trabalhar às seis. Era para ser uma grande noite. O
dono daria uma festa depois de fechar, à meia-noite, no balcão de
saladas que estava sendo convertido em um bar adicional, onde eu
serviria os drinques. Avisei Emily e Roy para ter certeza de que eles
viriam beber de graça. Disseram que sim. E vieram.
Primeiro vi Roy e Joe. Eles estavam falando com o dono. Joe
contava que em três semanas iniciaria o treinamento básico. O dono
ouvia com atenção. Ele gostava de Joe porque parecia um
estereótipo da ; ele disse: “Parris Island… Fuzileiros Navais,
certo?”.
“É”, disse Joe.
“Esse é um bom jeito de chegar ao paraíso.”
Com isso, consegui a atenção de Roy. Perguntei onde Emily
estava.
Ele disse: “Por aqui, em algum lugar”.
“Ok. Isso não me ajuda muito, mas valeu.”
“Nossa, tá menstruado?”
“Cara, que porra!”
“Que foi?”
“Que merda é aquele cara ali?”
“Como é que vou saber, porra?”
O cara estava muito próximo a ela. E ela levou ele até o bar/balcão
de saladas.
Ela disse oi.
Olhei para ela.
“Esse é o Benji”, ela disse. “Benji é de Gana. Ele estuda na
faculdade.”
Falei e aí Benji. Ele sorriu para mim e imediatamente virou para
Emily.
“Conheço um restaurante ótimo”, ele falou. “Chama Mi Aldea. A
comida é muito boa lá. Preciso te levar um dia.”
Ela disse: “Hmm, parece bom”.
Dei a volta no bar/balcão de saladas, coloquei o braço em volta
dela e lhe dei um beijo no alto da cabeça, mas como eu estava
bêbado, sem querer deixei cair um cigarro aceso no capuz do
casaco dela.
Benji disse: “Cuidado, ele deixou cair o cigarro no seu capuz”.
“Apaga, cara!”, ela me disse.
Não saquei na hora. Consegui apagar o cigarro, mas não antes
que queimasse um buraco no tecido.
“Tudo certo?”, ela perguntou.
“Tudo”, respondi. “Podemos ir pra outro lugar, por favor?”
“Quê?”
“Vamos pra lá.”
“Você tá bancando o idiota.”
“Shh. Escuta. Ninguém gosta da comida do Mi Aldea. Ele só quer
ir lá porque sabe que não pedem identidade, e ele quer te
embebedar e comer seu rabo.”
“Qual é o seu problema, cara?”
Eu não conseguia dizer nada certo.
Roy veio até nós.
Falei: “E aí, Roy”.
Ele respondeu: “Quer que eu acerte um soco nos bagos daquele
cara?”.
“Ainda não.”
Emily disse: “Pra mim já chega dessa porra.”
Ela saiu andando rápido. Roy e Joe foram atrás. Eles disseram
que achavam que ela ia ficar bem. Eu não sabia naquele momento,
mas tinha que ficar lá. Tinha que cuidar do bar/balcão de saladas. E
foi o que fiz. Me senti um merda. Por volta de uma e meia da
manhã, o gerente disse para fechar. E aí um dos bartenders de
verdade, um cara chamado Chris, me falou pra ficar de olho em um
dos clientes, um cara chamado Tommy.
“Tommy acabou de sair da prisão”, ele disse. “Tommy é gente boa
pra caramba.”
Tommy estava bêbado pra caralho. Era para eu ajudar ele a não
vomitar em ninguém ou passar a mão em alguma piranha ou sei lá o
que achassem que ele iria fazer. Tommy havia passado vinte anos
na prisão, o que significava que ele tinha sido preso no começo dos
anos 1980, o que significava que ele tinha passado mais tempo na
cadeia do que eu tinha vivido. Ele usava óculos de plástico grandes,
um corte estilo cuia grisalho e uma jaqueta de boliche vermelha
brilhante. Disse que todo mundo era cheio de merda, um monte de
falsos. Ele se referia a alguns dos caras que a gente via na região,
que agiam como se fossem uns fodões da Cosa Nostra. Tommy
disse que todos esses caras gostavam de bancar os grandões. “Mas
eles não têm colhão… de encostar a arma na cabeça do cara e
.”
Ele ficou repetindo isso, o lance dos miolos. Começou a falar de
um cara, de outro mané e de mais outro otário, e sempre concluía
dizendo que eles não tinham colhões para encostar a arma na
cabeça de um cara e .
E aí ele começou a me perguntar o que eu fazia. Falei que não
fazia muita coisa, mas que logo iria entrar para o Exército.
“Não seja idiota”, ele falou. “Esses caras não dão a mínima pra
você.”
Disse que sabia disso.
“Então que merda você tá pensando?”
“Não sei, mas não tenho nenhuma outra ideia.”
“Mas você tem colhão… de encostar a arma na cabeça de um
cara e ?”
“Não sei.”
“ ! Você vai ficar bem.”
A noite tinha acabado, então falei: “Olha, Tommy, tenho que ajudar
a fechar. Se precisar de algo, me avisa, beleza?”.
E lá fui eu, empurrando mesas e cadeiras, borrifando em coisas,
esfregando, varrendo e lavando. Estava me mexendo de verdade
porque precisava sair de lá e achar a Emily.
Terminei e saí, e Tommy estava na calçada em frente ao
restaurante, parecendo uma criança perdida.
“Tommy”, falei, “tudo bem?”
“Tudo. O que você tá fazendo?”
“Acabei de terminar. Vou pra casa.”
“Precisa de carona? Te dou uma.”
“Vou caminhar. Não dá nem cinco minutos.”
“Ah, qualé, te dou uma carona.”
“Tudo bem, mas espera um pouquinho porque vou até a padaria
comprar um bolo.”
“Comprar bolo pra quê?”
“Minha gata. Ela vai embora e quero comprar um bolo pra ela.”
“Não gasta seu dinheiro, não.”
“Vai ser rapidinho.”
Tinha uma padaria 24h do outro lado da rua, subindo um pouco
em direção à colina. Não tinham mais nenhum bolo e tive que me
conformar com uma dúzia de bolinhos de cheesecake, mas eram
bolinhos bonitos, e achei que dava no mesmo.
Tommy falou: “Vamos nessa. Tá pronto ou qualé?”.
Ele tinha um Chevy Astrovan azul estacionado perto do
restaurante. Entramos e Tommy ligou o motor. Ele bateu no carro da
frente e no de trás antes que conseguisse sair da vaga. Olhei para
ele; parecia bem mareado. De repente, parou a van e abriu a porta
para vomitar. Vomitou por um tempo. Violentamente. Quando
terminou de vomitar, se recostou no banco do motorista. Ficou
repetindo: “Ai, Jesus. Ai, Jesus, Jesus, Jesus”.
Com a luz do poste, dava para ver que ele tinha vomitado um
bocado em si mesmo.
Falei: “Más notícias, Tommy. Você vomitou na sua manga”.
Tommy olhou e viu o que tinha feito com a manga direita de sua
jaqueta vermelha brilhante.
Ele falou: “ !”.
Respondi: “Não se preocupa, Tommy. Vamos dar um jeito”.
Tinha uma sacola de papel no piso da van. Rasguei ela em
pedaços do tamanho de guardanapos para Tommy usar para limpar
a maior parte do vômito da manga. Não era nenhuma maravilha,
mas funcionou.
Tommy disse: “Melhor, impossível”.
Seguimos de carro rua acima. Tinha só mais umas dez casas, e
então chegamos. Tommy subiu na calçada para garantir. Agradeci a
carona e pedi que tivesse cuidado indo para casa. Ele disse que
ficaria bem. Dei um dos bolinhos para ele e nunca mais o vi.

acordada quando cheguei ao apartamento. Estava


bebendo e eu me juntei a ela. Dei a caixa com bolinhos e pedi
desculpas por ter sido um cuzão. Disse que entendia que não tinha
nada de mais em ela ter trazido Benji, que ela era uma pessoa doce
que acreditava na diversidade, nos países em desenvolvimento e
coisa e tal, e que ela gostava de ter amigos. Falei que era para ter
doze bolinhos, mas tinha dado um para Tommy e Tommy era um
sujeito legal que precisava de algo pra comer. Ela disse que era
tudo muito gentil da minha parte e que estava perdoado. Então vi
que ela estava chorando. Nunca tinha visto ela chorar e perguntei
qual era o problema, o que a fez chorar mais ainda. Ela disse que
não sabia o que era. Levou um tempo até parar. Perguntei se ela
estava bem. Ela disse que estava.
Falei: “É tudo uma loucura, né?”.
Ela disse: “É. É sim”.
E demos risada.
Ficamos só passando o tempo.
E fomos dormir.
CAPÍTULO NOVE

O segundo-sargento Kelly tinha cara de morte, e a palavra que mais


repetia era palhaço; usava um suéter preto com calças verdes e
sapatos de couro brilhante. Ele tinha uma caralhada de copos para
coleta de urina na gaveta da mesa dele. Explicou que o banheiro era
no fim do corredor. “Primeira porta à esquerda”, ele disse. “Não tem
como errar.”
Meu mijo saiu claro, e Kelly me contou que sua esposa era
coreana. Ele me contou que dirigia um carro dado pelo governo,
ganhava auxílio-moradia e tinha plano de saúde. Parecia realmente
bom. Tive que mostrar para ele que conseguia fazer vinte flexões e
vinte abdominais; depois ele me levou numa academia que ficava
logo ao lado para me ver correr na esteira. Eu estava usando um
par de Vans (modelo Geoff Rowley vegano) e minhas calças ficavam
caindo, mas me saí bem. Voltamos para a Central de Carreiras das
Forças Armadas, onde fiz um teste vocacional militar básico para se
certificarem de que eu não era um anormal. Ele conferiu quando
terminei e disse que meu resultado tinha sido 85%. Falou que eu
poderia escolher qualquer tipo de cargo, se me saísse bem quando
fosse de verdade. Dava para ver que ele estava empolgado. Isso foi
na primeira semana de 2005, quando o noticiário só falava de
moleques sendo mandados ao exterior para serem mortos ou
aleijados, de modo que Kelly e o Exército vinham tendo dificuldade
em alistar mais desses moleques. Porém, ali estava eu, disposto;
ele tinha ganhado o dia.
Fomos falar com seu superior, o primeiro-sargento Space, e Kelly
falou: “Com licença, sargento, tem um palhaço aqui que quer virar
especialista em saúde do exército, e ele tem pressa”.
Todos os dentes de Space eram de ouro, era um filho da puta alto
e magro pra caramba. Não sabia que uma pessoa podia ser
batizada Space. Ele disse: “Senta aí, sr. Especialista”.
Contei pra ele todas as coisas que tinha dito a Kelly, e Space
concordou que minha decisão era acertada. Ele disse que eu tinha
feito a escolha mais inteligente, porque especialista em saúde era o
cargo dos sonhos; aí ele discou um número de telefone, e quando
atenderam ele disse: “Hambúrguer, Hambúrguer, Hambúrguer”, e riu
como se isso fosse realmente engraçado.
Por algum motivo, senti vontade de dizer hambúrguer,
hambúrguer, hambúrguer também, mesmo sabendo que era de mim
que ele estava rindo.

me pegar quando recebi a rescisão e fomos encher a cara


com Roy. Nós bebemos com vontade, do jeito que a gente bebe
quando é jovem e parece ser um dia importante. Joe tinha acabado
de voltar de Camp Lejeune, e ficaria na cidade por umas semanas
antes do seu batalhão de reserva partir para Fort Irwin, e então para
o Iraque. E eu estava me alistando no Exército porque tinha dito que
iria fazer isso. Então a gente estava se achando grandes bostas.
Era uma terça à noite.
Acabamos em um bar em Mayfield. O lugar estava morto, mas
acabamos conhecendo um Cavaleiro de Colombo. Ele usava uma
jaqueta de couro preta e o cabelo para trás feito Frankie Avalon ou
Robert Blake ou um desses caras. Parecia que tinha uns 50 anos.
Perguntou o motivo da nossa comemoração e, quando Roy
explicou, ele aprovou. Ele disse: “Sabe, eu costumava ensinar
combate corpo a corpo pro pessoal das Forças Especiais em Camp
Li-Jun”.
Joe disse que tinha acabado de fazer lá.
“O que é ?”
“Escola de Infantaria.”
“Ah, tinha esquecido.”
O Cavaleiro de Colombo gostava do Joe porque ele parecia um
italiano televisivo estereotipado, então ele ficou com a gente.
Já a bartender tinha uns vinte e tantos anos. Seu cabelo loiro era
quase branco, e seu bronzeado tinha custado dinheiro. E era
magrela exceto por uma barriguinha que dava a falsa impressão de
alguns meses de gestação. Já tínhamos ido lá e visto ela; a barriga
era a mesma e ela era sempre muito esnobe, como se servisse os
drinques do Ben Affleck ou algum babaca do tipo. A princípio achei
que só fosse uma vaca, mas aí comecei a me perguntar se ela não
era uma pessoa triste.
O Cavaleiro de Colombo estava nos mostrando movimentos de
luta e queria nos pagar uma rodada. Foi aí que percebi que a
bartender não era babaca com ele. Ela até chamou ele de sr.
Alguma-Coisa. E pensei, tem algo a ser aprendido aqui, mas antes
de eu entender o que era, o Cavaleiro de Colombo fez um brinde.
“Aposto que você vai voltar pra casa vivo, Joe”, ele disse. “Já seu
amigo não tenho certeza… Sa-lut!”
Tomamos a birita. Roy falou que iria se alistar nos Fuzileiros como
operador de metralhadora. Todos concordaram que seria algo bom a
se fazer. Falei que tinha que ir mijar. E fui. Sem querer, bati no
espelho enquanto lavava as mãos. O espelho despencou da parede
e derrubou a pia junto.
Caí fora.
Tinha feito um estrondo do caralho e eu precisava avisar meus
amigos. A bartender foi em direção aos escombros. “Temos que ir”,
falei. “Tipo, temos que ir nesse instante, porra.”
A bartender estava gritando no banheiro e nos despedimos do
Cavaleiro de Colombo. Ele disse pra não nos preocuparmos com
ela. “Aquela puta já fez dois abortos”, ele disse.
Não estávamos longe de casa e trocamos murros na entrada da
garagem até que um dos vizinhos desceu e falou que se não
ficássemos quietos e fôssemos dormir, ele iria atirar na gente.
Entramos.
Liguei pra Emily. Queria que ela me dissesse que eu era bom,
talvez me agradecer ou algo assim, mas ela tinha decidido me fazer
sofrer, e eu só balançava a cabeça sem entender. Falei: “Amor, eu já
tinha dito que ia fazer isso, e você não falou nada”.
Ela respondeu: “Isso porque achei que era mentira sua, bebê”.

meus pais na tarde seguinte. Estavam bem. Eles achavam


esse lance de Exército uma idiotice, mas estavam bem. Tinham
acabado de comprar uma casa, uma bela casa bem espaçosa. Eu
não queria nada disso.
Disse a eles que na quinta-feira ingressaria no estágio inicial de
treinamento físico, além de outros testes, e, se tudo desse certo,
passaria ao treinamento básico em duas semanas. O primeiro-
sargento Space tinha dito para preencher uma lista em ordem de
preferência com as bases para onde eu gostaria de ser
encaminhado, e como a maioria das pessoas tinha sido mandada
para uma das três primeiras escolhas, era quase certo que eu
continuaria perto de Ohio. Então poderia visitar eles bastante. E o
seguro de vida era de 300 mil dólares se eu pagasse a primeira
parcela.
Meu pai disse: “Tem certeza que não tem nenhuma outra coisa
que você preferiria fazer?”.
Falei que não sabia o que mais tinha para se fazer.
Minha mãe disse: “Não sei por que você não quer continuar
estudando”.
“Estudando? Fui reprovado oito meses atrás.”
“Você pode começar de novo”, ela insistiu.
“Talvez faça isso. E, se fizer, vai ser pago pelo Exército. O
primeiro-sargento Space disse que…”
“E quem é esse filho da puta? Gostaria de falar com ele.”
Disse que isso não seria possível.
Ela perguntou: “Por que não?”.
Eu disse que era algo que estava fazendo por conta própria.

descobri que era daltônico. Não seria problema, porque


especialista médico é um dos poucos cargos militares que admite
daltônicos. “Porque você já sabe qual a cor do sangue”, me
disseram.
Tinha um monte de filas, e nossas pernas doíam porque não
estávamos acostumados. Fizeram a gente ficar de cueca e
caminhar agachado num trajeto dentro de uma sala grande. A sala
cheirava a saco (não lavado), pés (idem) e cu aberto
(independentemente). Tinha um bocado de inadequação a ser visto
naquela sala. Caras gordos. Espinhas. Espinhas no rosto. Espinhas
no corpo. Caras magricelas. Eu era magricela. Não era forte.
Parecíamos uns merdas. Tínhamos sido criados à base de xarope
de milho, rico em frutose, e muita ; nossos corpos eram cheios de
pus; nossos cérebros tinham espasmos. Eles nos chamaram um por
um para outra sala, uma sala menor onde tinha um sujeito cujo
trabalho era checar o cu de todos. Ele fazia você se curvar e
separar as nádegas com as mãos pra poder dar uma boa olhada, e
quando já tinha visto o suficiente, dizia: “Ok”.
Me aceitaram. Às três da tarde, eu já tinha assinado o contrato e
feito o juramento. Roy veio me pegar e me levou até Elba para que
eu passasse com Emily minhas duas últimas semanas como civil.
Joe veio junto. Estava nevando quando passamos por Erie. Quando
passamos pela saída para Jamestown, já era noite e o trânsito na
rodovia estava sob uma legítima nevasca. Ficamos engavetados
entre carretas enormes. Estávamos cercados, com o barulho do
vento nas caçambas. Se um deles cortasse nossa frente, se um
deles não nos visse antes de trocar de faixa, havia uma chance real
de morte mecânica na estrada. Mas não nos preocupamos.
Tínhamos o carro do Roy, cigarros, ar-condicionado, música, e
durante o caminho todo até o pedágio na entrada para Elba, nunca
duvidamos de que estaríamos entre aqueles que não seriam mortos.
Eram dez horas quando chegamos na casa da Emily. Eles me
deixaram, deram meia-volta e foram pra casa.

a primeira vez que eu visitava Emily em sua cidade natal.


Ela havia passado todo verão anterior economizando para ir a
Montreal. Tinha trabalhado seis noites por semana num Walgreens.
Morava na casa de uma tia, e essa tia era religiosa. Por isso, não
tinha nem tempo nem lugar para mim.
Fui visitar ela em Montreal assim que ela se mudou para lá. Isso
foi no final de agosto. Vinte horas de ônibus para ir e outras vinte
para voltar, mas valeu a pena: estar sozinho com ela em uma cidade
desconhecida (a Paris canadense), conhecendo um ao outro,
fumando Player’s que vinham em maços com fotos de tumores e
corações enegrecidos. Colocar a cabeça para fora da saída de
incêndio, fazer o jantar na quitinete dela, beber licor e ter discussões
absurdas sobre diferentes assuntos — Deus, Oasis, minha
arrogância insuportável —, sobre tudo que ela quisesse. Gritávamos
um com o outro, e aí trepávamos e dormíamos como se fôssemos
filhotes de lobo numa caixa de sapatos. Era como um sonho. E,
como nos sonhos, não pude ficar. Ela também não. Algo a ver com
grana. Ela abandonou a faculdade e voltou para Elba. Alugou um
apartamento e arranjou um emprego num supermercado. Estava
esperando o semestre da primavera começar na faculdade de lá.
Era estranho ficarmos juntos sem brigar. De vez em quando, ela
dizia que achava o Exército uma má ideia. Mas eu também não
achava exatamente uma boa ideia; era só uma coisa que estava
acontecendo. Então não tinha por que brigar.
Quando ela saía para trabalhar, eu fazia polichinelo, lia os livros do
Kurt Vonnegut e fumava um cigarro atrás do outro. Quando ela
voltava, trepávamos, tirávamos sonecas, ouvíamos o do Lead
Belly que ela havia comprado numa livraria da rua e bebíamos gim.
Aquela mina amava gim; ela bebia gim e aí queria me beijar.
No fundo sabia que seria melhor ficar por lá, mas o que estava
feito, estava feito e não era para eu ficar. Os dias passaram e ela
me levou de carro até Cleveland.
Colocaram todos os recrutas num hotel do centro. Fiquei num
quarto com um cara da minha idade, de Steubenville, que tinha se
alistado como policial militar na Guarda Nacional em Ohio. Ele disse
que quando voltasse para casa depois do treinamento, usaria seu
uniforme Classe A cheio de insígnias e cordões e levaria a noiva
para jantar.
Desejei boa sorte para ele.
Ele me desejou boa sorte.
CAPÍTULO DEZ

Fort Leonard Wood, Missouri. Os caras que raspavam nosso cabelo


eram civis — um gordo de merda e as mulheres dele. As mulheres
tinham permanentes cinza-azulados; havia duas e elas eram
terríveis. Assim como o gordo de merda. O fato de termos sido
obrigados pelo Exército a pagar pelo corte não era o suficiente para
eles; também tinham que falar merda. Eles furaram a cabeça de um
cara, chegou a sangrar bastante; o cara falou que tinha doído
mesmo, e aí o chamaram de bicha. Perguntaram se ele era de San
Francisco. Aí machucaram outro moleque e começou a sangrar, e
eles acharam engraçado. Não se cansavam disso. Eles tinham um
aspirador especial que sugava os cabelos enquanto cortavam. A
sucção puxava o couro cabeludo até as lâminas; por isso sangrava
tanto. O gordo de merda e as mulheres tinham que gritar para
escutar uns aos outros com o barulho do aspirador. Desejei a morte
aos três.
E aí ganhamos cem balas. Ganhamos todas as nossas coisas do
Exército: uniformes, botas, capacetes, essas paradas todas.
Levávamos nossos documentos junto com a gente por toda parte.
Eles assinavam nossos papéis. Isso era o processo de entrada.
Quando não estávamos em processamento, nos colocavam num
auditório onde nos ensinavam coisas: “esquerda e direita volver”, a
canção do Exército, enfim. Quando chegava a hora de comer, todos
agíamos como se a comida fosse péssima, mesmo que não fosse
tão ruim assim.
Um dos caras disse: “Sou espião. Serviço de contrainteligência”.
Outro falou: “Eu sou da Bravo 11”.
Código de infantaria.
Mas ele não tinha como ser um Bravo 11, porque todos os Bravo
11 vinham de Fort Benning. Agora sabíamos que ele era mentiroso.
Fui colocado no grupo B1, ou Bravo 1. Naquela noite chegou outro
grupo, o B2.
Nós achávamos que os B2 eram um bando de mimados.
Dissemos: “Esses B2 são uns retardados”.
Dissemos: “Com toda certeza”.
Os B2 achavam que éramos um bando de perdedores esquisitos.
A inimizade mútua entre B1 e B2 durou três dias, quando fomos
redistribuídos aleatoriamente em três pelotões chamados
Companhia Alfa, e ninguém lembrava mais de ninguém. A total falta
de cabelo em todos tornava difícil reconhecer um ao outro. Eles nos
colocaram juntos feito gado e aí subimos a colina para o
treinamento.

o tempo todo. Eles nos colocavam apelidos como


Alta Velocidade ou Pau de Orelhas. Nossas mãos eram
“descascadores de rola”. Nossas bocas “suportes de pica”. Nosso
inimigo se chamava Haji. Nossos amigos eram companheiros de
batalha. Era bem lixento.
Tinha garotas na nossa companhia. Elas não conseguiam fazer os
exercícios. Nós carregávamos o equipamento para elas. Era dureza.
Tinha caras que também eram zoados, mas nada que se
comparasse às garotas.
Os sargentos de treinamento fingiam estar sempre bravos. Eles
diziam pra não chegarmos perto porque poderiam surtar e quebrar
nosso pescoço. Transtorno de estresse pós-traumático ( ),
disseram. Um sargento deu uma gravata num recruta. O moleque
ficou inconsciente. Ele fez o moleque desmaiar. Não teve nada a ver
com o ; o sargento não tinha nenhuma insígnia de combate,
nunca tinha viajado para lugar nenhum. Ele só era um merda.
Tínhamos sargentos de treinamento que tinham ido ao Iraque e
que também eram uns merdas. Diziam ter matado crianças por lá.
Disseram que no Iraque tinha crianças que tentavam chegar perto
dos soldados americanos para explodir eles com granadas de mão.
Quando esse tipo de situação acontecia, eles diziam, era você ou a
criança, então era melhor matar a criança. Um dos sargentos era
88M, motorista de caminhão. Ele disse que tinha passado com o
caminhão por cima de crianças que carregavam granadas. Disse
que era por isso que tinha ficado louco.
Eu ficava na minha a maior parte do tempo, então não mexiam
muito comigo. Mesmo assim, não tinha como ficar completamente
em paz. Como quando falei ao sargento instrutor Cordero que
precisava substituir minha porção de frango por uma vegetariana,
porque eu era vegetariano. Cordero ficou puto. “
, ? ?”
Ele falava feito um lutador mexicano cheio de testosterona.
Falei que não era rico.
Ele disse: “ .
.
.
”.
“ , .”
Um dia estava atirando com meu rifle no estande de tiro, e estava
errando muito porque não conseguia enxergar os alvos direito. Os
alvos no estande eram verde-claros, sendo que normalmente eram
mais escuros (pretos, acho). Cordero estava lá, na minha cola,
ficando bem puto comigo. Ele disse: “ , .
?”.
Eu disse: “ ,
”.
“ ?”
“ , . .”
“ , ,
! ! ! !”
Ele entortou uma vareta de limpar armas ao acertar minha cabeça.
Mas não machucou, porque eu estava de capacete. Saí do estande.
Fui revistado: , . O sargento
instrutor Cole me acertou um soco no pau, por nada, mas fazia
parte. Era preciso lembrar que tudo não passava de faz de conta.
Os sargentos de instrução só fingiam serem sargentos de instrução.
Nós fingíamos que éramos soldados. O Exército fingia ser o
Exército.
A única coisa que me preocupava era Emily. O tal Dave do
supermercado iria tentar trepar com ela. Conheci ele duas noites
antes de ir embora de Elba. Emily tinha trazido ele junto, depois que
terminaram o expediente. Ele foi grosso pra caralho comigo. Saquei
qual era a dele. Disse para Emily: “Esse cara vai tentar te comer”.
Ela falou que ele não era desses.
Eu disse: “Ele é exatamente desses”.

para fora da janela do quartel para usar um orelhão.


Era noite. Eu tinha um cartão telefônico. O telefone chamou. Ela
atendeu. “Alô?”
“Consegue me ouvir?”
“Alô?”
Eu estava falando baixo. “Sou eu.”
“Ah, oi!”
“Como você tá?”
“Quê?”
“Como vai você?”
“Bem. E você? Que surpresa me ligar.”
“Fugi do alojamento.”
“Tá tudo bem?”
“Agora sim. O que cê tá fazendo?”
“Ah, nada. Só passando tempo com o pessoal do trabalho… Alô?”
“Sim.”
“Você tá bem?”
“Sim. Tô bem. Sinto saudade.”
“Também sinto saudade.”
“Não consigo não pensar em você. Fugi pela janela pra te ligar.”
“Você pode esperar um segundinho?”
“Sim, claro.”
“…”
“…”
“…”
“…”
“… Ainda tá aí?”
“Sim, tô aqui.”
“E aí, como vão as coisas? Como vai tudo? O que tem feito?”
“Ah, tô bem. Não é ruim de verdade. É só um monte de coisinhas
somadas, sabe? Saí pela janela. É no terceiro andar. Não foi difícil.
Tem beirais. Não era pra eu estar aqui fora.”
“Mal consigo ouvir você.”
“Preciso falar baixo. Se me pegarem, tô fodido.”
“Você disse que saiu pela janela? Mal consigo te ouvir.”
“Merda.”
“O que você falou?”
“Nada. Sinto sua falta.”
“Sinto sua falta também.”
“Queria estar aí agora.”
“Eu também queria.”
“Escuta, tenho que ir. Se me pegarem, tô totalmente fodido. Tenho
que voltar.”
“Ok.”
“Tento ligar de novo em breve.”
“Ok.”
“Te amo.”
“Também te amo.”
“Bons sonhos.”
“Pra você também.”
CAPÍTULO ONZE

Os domingos eram tranquilos porque tínhamos a manhã de folga


para limpar o quartel e fazer o que a gente quisesse, podíamos ir no
culto também. Me identificava com os Hare Krishnas, mas eles não
tinham nenhum culto Hare Krishna, então fui no budista. A gente
não podia ir sozinho; tinha que ir com um companheiro de batalha.
O especialista Kovak também era budista. Fomos falar com nosso
superior.
Falei: “Vamos ao culto, sargento instrutor”.
Ele disse: “Em que tipo de culto vocês vão?”.
“Budista, sargento.”
“Podem ir.”
Nós fomos, e foi legal, tinha um bocado de gente porque os
budistas distribuíam chocolates. Mas os cultos eram mais do que
isso. Começávamos com exercícios de respiração profunda. Aí
cantávamos por um tempo, vinte minutos de respiração e cantoria.
Depois os budistas nos contavam sobre o budismo e faziam
perguntas, e se você soubesse a resposta, só então eles te davam o
bombom.
Nesse dia, o segundo-sargento Rockaway foi com a gente. Disse
pra chamarmos ele de sargento Rock. Ele era budista de verdade.
Disse que desde que tinha se tornado budista tinha comprado um
carro (já quitado) e uma moto (já quitada). O budismo tinha mudado
sua vida para melhor. Ele disse que tinha começado no budismo
durante o treinamento, frequentando o culto dominical.
“Exatamente como vocês agora”, ele concluiu.
seguinte, aprendemos combate desarmado. O sargento
instrutor Cole era quem estava no comando. Nos ensinou a Gravata
Sem Mangas. Ensinou a Gravata de Tóquio. Havia todo tipo de
gravata que se podia dar. Sentamos em círculo e tínhamos de nos
revezar dando gravatas uns nos outros. Dois de cada vez no centro
do círculo, e o objetivo de cada um era sufocar o outro. Fui colocado
com o especialista Kovak porque tínhamos quase o mesmo
tamanho. Sufoquei ele pra caramba. Quando terminou, tive a
impressão de que tinha pego ele de surpresa e me senti mal com
isso. Na rodada seguinte, deixei ele me estrangular pra caramba.
Mesmo assim, me senti mal. Kovak era meu companheiro de
batalha, e eu tinha sufocado ele.

jeito de não ser aprovado no treinamento básico era


tentando se matar. Um cara tentou se enforcar usando a estrutura
do forro no banheiro. Não deu certo. O forro despencou. Ele não
morreu, mas também não foi aprovado.
Meus pais vieram para a formatura. As famílias de muita gente
vieram. Muitas não compareceram. Marchamos pelo palco do
auditório e fizemos manobras. Tocaram “American Soldier”, do Toby
Keith, e aí fomos todos dispensados, com folga até as nove da
noite. Meus pais me levaram num restaurante mexicano. Pedi um
hambúrguer vegetariano.
Minha mãe disse: “Aposto que é o primeiro hambúrguer
vegetariano que você come em um bom tempo”.
“Na verdade, não”, falei. “Eles têm hambúrguer vegetariano com
molho barbecue. Não é ruim, mas esse aqui é muito melhor.”
Tínhamos tempo de sobra, então ficamos no quarto de hotel em
que eles tinham se hospedado perto da base. Minha mãe tirou um
monte de fotos minhas vestindo meu uniforme Classe A. Fumei
alguns cigarros (Winston vermelho), o que foi muito bom. Depois de
algum tempo, voltamos a Fort Leonard Wood, e lá nos despedimos.
CAPÍTULO DOZE

estavam sendo treinados como especialistas em saúde


foram colocados num ônibus. Iríamos até Fort Sam Houston, em
San Antonio, Texas. O motorista era veterano do Vietnã; sua mão
direita tinha sido derretida por fósforo branco e assumido o formato
de uma garra avermelhada. Era um sujeito agradável, nos
incentivou a beber e fumar no ônibus. Quando chegamos a Fort
Sam, havia novos sargentos prontos para gritar com a gente, mas a
essa altura sargentos já eram notícia velha, não importava que
gritassem. Mesmo assim, fingíamos estar nos cagando de medo,
para que não percebessem que estávamos bêbados e fedendo a
cigarro.
Ficamos em período de admissão por alguns dias, esperando os
grupos chegarem de outras centrais de treinamento básico. Depois
que todo mundo chegou, descobrimos que nosso nome era
Companhia Charlie e entramos no ônibus para seguir até o próximo
quartel. Tinha uma garota da Dakota do Norte chamada soldado
Harlow, e ela falou para todo mundo que gostava de mascar
alcatrão e ser comida por vários caras ao mesmo tempo. Ela era
popular. Ficamos todos imaginando como seria uma suruba com a
soldado Harlow.

à companhia. Já tinha outros soldados lá. Esses


estavam lá para mudar de divisas e patentes, ou então eram
militares da reserva que tinham se alistado de novo, após terem
fracassado no mundo civil. Eles treinavam com a gente. A maioria
parecia péssima. E eles prejudicavam o moral; destruíam nossas
expectativas quanto ao que achávamos que iríamos nos tornar.
O batalhão de treinamento tinha um bordão: Médico Guerreiro.
Claro que todos achavam ridículo. Mas todos os quadros tinham que
nos chamar de Médicos Guerreiros. E era isso. Durava quatorze
semanas. Diziam que ganharíamos folga nos fins de semana depois
de um tempo.
No começo, eram só instruções em sala de aula, uma mudança
bem-vinda em relação ao treinamento básico, que consistia em
cavar covas, congelar o rabo na floresta e enfrentar ataques de gás.
Tínhamos livros e escutávamos palestras. Era um monte de
PowerPoint, e de vez em quando um pouco de Faces da Morte.
Faces da Morte era para que nos acostumássemos à mortalidade.
Vimos um cara quebrar o pescoço quando seu carro capotou. Vimos
um motoqueiro esviscerado. Vimos uma mulher que tinha tomado,
tipo, um milhão de facadas.
Tinha dois instrutores por pelotão, um sargento e um paramédico
civil. Nossa paramédica civil era a srta. Grey. Ela era gostosa,
provavelmente lésbica. Não importava. Era uma especialista. Tinha
trabalhado no transporte de emergências de um hospital em San
Antonio e sabia mais do que todos os médicos do Exército juntos.
O sargento parecia o Harold Ramis e fumava um Camel
mentolado atrás do outro. Tinha quinze anos de Exército e nos
contou tudo que achava que precisávamos saber sobre a
corporação: isto é, que muitas pessoas morriam no Exército.
Também nos explicou que podíamos usar absorventes internos para
tratar ferimentos de bala. Disse que precisávamos de absorventes
não perfumados. Perguntei se alguma vez tinha sido alocado em
Fort Drum. Ele disse: “Por que a pergunta, Médico Guerreiro?”.
Falei que queria ir para Fort Drum porque minha namorada
morava em Elba, Nova York, e eram só duas horas de distância.
Ele disse: “Nunca tente ir para Fort Drum. Você vai passar mais
tempo em treinamento lá do que em qualquer outro lugar, lá é frio
como o diabo, e ela vai te trair de qualquer jeito”.
CAPÍTULO TREZE

O sargento instrutor Masters era um mala completo. Ele se dirigiu à


companhia: “ ,
.
. .
… .”
Respondemos: “ ”.
“ … .”
Viramos para a esquerda. Más notícias. O desgraçado ia acabar
com a gente.
“ .”
Isso era ainda pior. Significava Frente-Costas-Vai. Quando ele
dizia “ ”, tínhamos que fazer flexões até que ele dissesse
algo.
Foi o que fizemos.
“… !”
E então abdominais. Eu não gostava de fazer abdominais,
especialmente no concreto. Minha bunda ficava doendo.
“… !”
Aí tínhamos que saltar em pé e correr no mesmo lugar, como num
vídeo de aeróbica. E aí fazíamos isso até que ele dissesse “ ”
ou “ ” de novo. Frente, Costas e Vai eram palavras ditas a
qualquer momento, em qualquer ordem, sem duração definida.
“ … … ! ! !… !— … !
— — ! — !”
Etcetera, etcetera.
Isso continuou até que a companhia toda ficou estirada no
concreto numa poça de suor, incapaz de atender a qualquer
comando.
Então Masters mandou que entrássemos em formação de novo.
“ ,
,
.
.”
Foi isto que ele inventou:

Na luta Médicos Guerreiros!


Dando duro o dia inteiro!
Nós vamos vencer sem dó!
A Companhia Charlie é a melhor!
Vamos, vamos! Não desista!
Médico Guerreiro, persista!
Vamos, vamos! Não desista!
Wooooooooooooooooooo-
Ooooooooooooooooooooo-
oooooooooooooooooaah!
abram! Caminho! Aí vem os Médicos Guerreiros!
Oo! Ta-ah! Aí vem os Médicos Guerreiros!
abram! Caminho! Aí vem os Médicos Guerreiros!
Oo! Ta-ah! Aí vem os Médicos Guerreiros!
abram! Caminho! Aí vem os Médicos Guerreiros!
Oo! Ta-ah! Aí vem os Médicos Guerreiros!

O refrão tinha que ser repetido até que ele mandasse parar. E era
assim. A partir daquele dia, sempre que a companhia era
repreendida (algo que acontecia um milhão de vezes por dia), o grito
de guerra tinha que ser recitado integralmente. Sem exceções. Para
piorar, depois de um tempo também foi combinado que o porta-
estandarte do dia tinha que fazer a “dança do robô” durante o refrão.
Por isso nunca se aliste na merda do Exército.
CAPÍTULO QUATORZE

A soldado Harlow era do meu pelotão e arranjava encrenca por usar


maquiagem.
Diziam: “Harlow, acha que não estou vendo essa sua
maquiagem?”.
“Harlow, acho bom você ir lavar essa cara!”
“Não quero pegar você usando maquiagem novamente, soldado!”
Quando aprendemos a medir sinais vitais, ficamos em dupla. Ela
fez o papel de ferida primeiro. Deitou de costas. Tinha tirado a
jaqueta militar para que fosse mais fácil eu medir sua pressão; ela
estava só com uma camiseta marrom e estava passando frio,
porque deixavam o ar-condicionado no máximo nas salas de aula.
Eu estava de joelhos ao lado dela com o estetoscópio nos ouvidos,
colocando a tira de medir pressão em volta do braço dela.
Ela disse: “Estou congelando, não olha pros meus peitos”.
Eu não tinha olhado para os peitos dela.
Mas aí olhei.
Ela tinha belos peitos.
Não ficavam de lado e achatados quando ela se deitava.
“Parece que as suas bolas vão entrar na minha boca”, ela falou.
Inflei a tira de medição.
“Você depila suas bolas?”
“Puta que pariu.”
“Isso é um sim!”
“Não consigo escutar o treco com você falando.”
“Perdão. Vou ficar quieta… O sargento instrutor Masters depila as
bolas.”
“Onze por seis.”
“Você e o sargento Masters têm algo em comum.”
“Por favor, não diga esse tipo de coisa.”
“Perdão. Não vou dizer nunca mais.”
Achei que ela provavelmente estava falando a verdade sobre as
bolas do sujeito. Era fato conhecido que os instrutores trepavam
com as soldados de vez em quando. Sabíamos que isso acontecia
em Leonard Wood. Era uma troca, acho: as mulheres não
carregavam os equipamentos, mas os sargentos podiam comer
elas, ou ao menos algumas delas. Fiquei deprimido.
Quando estávamos entrando em formação para retornar ao
quartel, Harlow ficou enrolando. Masters puxou ela de lado. Ela
tinha um pouco de alcatrão na boca. Tinha sido pega. Masters
mandou ela engolir. Ela pegou o alcatrão com os dedos pra jogar
fora mas ele disse que não, ela tinha que engolir. Ela colocou de
volta na boca e engoliu. Sorriu para ele. Quando ele se afastou, ela
vomitou na grama.
CAPÍTULO QUINZE

Era quarta-feira. Já tinham se passado cinco semanas, e teríamos


nossa primeira folga. Emily viria de avião me visitar. Ela chegaria na
sexta. Ia ser incrível. Ela era a mulher mais gata do universo, e eu
estava morto por uma trepada.
Mas ainda era quarta, quatro da tarde, então tivemos que entrar
em formação para o Fechamento. O primeiro-sargento chegou e
basicamente disse que ia foder com a nossa vida. Disse que ainda
não nos daria o fim de semana inteiro de folga. Falou que nos daria
apenas o sábado, para ver como nos sairíamos. Se tudo corresse
bem, aí nos daria o fim de semana todo de folga. Ele disse isso
como se fosse tranquilo, como se não estivesse nos fodendo, como
se não fosse uma enrabada aleatória, em plena luz do dia, às quatro
da tarde.
“Sei o que estão pensando”, ele falou. “Estão pensando que não é
justo. Vocês estão pensando que nas outras companhias não é
assim… Bom, tenho notícias, Médicos Guerreiros. Esta companhia
não é como as outras. Esta é a Companhia Charlie e aqui fazemos
diferente. E é por isso que somos os melhores.”
Liguei pra Emily e dei a ela a má notícia. Ela ficou putaça, mas
disse que viria mesmo assim. Já tinha pedido folga do serviço. Disse
que chegaria à cidade na sexta.
Quando a sexta chegou, não tinha como eu não ver ela. Ela
estava num hotel Super 8, na rodovia próxima da base. Estava
muito perto. Liguei o foda-se. Nós tínhamos uma hora de folga da
companhia todo dia pela tarde, para cuidar da correspondência e
coisas assim. Uma hora era o suficiente. Quinze minutos de ida.
Quinze minutos de volta. Meia hora com a Emily. Não havia escolha.
Tinha que tentar.
Peguei um táxi em frente ao centro postal. Pedi para me levar para
o hotel Super 8. Ficava a menos de cinco minutos do portão da
base. Fui procurar o quarto dela; era no segundo andar. Achei. Ela
abriu a porta, e aquele jeito dela, não tinha nada no mundo como
aquilo.

ela disse: “Odeio isso”.


Eu disse: “O que posso fazer? Agora estou dentro.”
“Merda!”
“Quê?”
“Você fala como se não tivesse escolha, mas tinha.”
“Você age como se eu é que tivesse ido embora.”
“Não dá nem pra comparar as duas coisas”, ela respondeu.
“Por que não?”
“Eu acabei não indo pra escola que iria. Você ainda poderia me
visitar quando quisesse, não teria sido assim. Eu não teria que dizer
pra você: ‘Olha, meu bem, eu gostaria de poder ficar, mas o
sargento Come-Cu disse que tenho que ir dormir às
’.”
Ela havia passado a noite de sexta sozinha no hotel. Teria que
passar a noite de domingo sozinha também. O voo de volta para
Elba era na segunda de manhã. Só tínhamos o sábado.
Ela disse que eu era um babaca.
Eu disse para ela que entendia, mas tinha feito o melhor que
podia, e que também não tinha sido fácil sair da base na sexta à
tarde. Se eu não tivesse chegado a tempo, teria me fodido de
verdade.
Sobre sexta, ela disse que gostaria de ao menos ter conversado
um pouco antes.
Falei que não sabia que ela tinha se sentido mal.
Falei que achava que era a coisa romântica a se fazer.

manhã, Emily veio comigo até a companhia. Eu tinha


que subir até o quartel e colocar a roupa de treinamento para estar
pronto quando nos mandassem entrar em formação. Voltei usando a
camisa e o calção de treinamento e um tênis de corrida . No
calção estava escrito: . Na camisa estava escrito:
. Eu usava a faixa fosforescente que tínhamos de usar
sempre, em diagonal sobre o peito. Eu parecia um completo idiota.
Emily começou a chorar. Ela chorou até a hora de entrar no táxi e ir
embora. E, o tempo todo, tentei bancar o durão porque achava que
era durão, e que se esperava que eu fosse durão. Mas eu não era.
E posso dizer agora que tem muitas coisas melhores do que tentar
ser durão, incluindo o lance de ser jovem, trepar com minha
namorada e ter que parar por aí.
CAPÍTULO DEZESSEIS

Tinha um rio fajuto em San Antonio. Era como o passeio dos Piratas
do Caribe na Disneylândia, só que em vez de piratas e navios
piratas você tinha bêbados e franquias de restaurantes.
Eu estava próximo do Rio Fajuto. Kovak estava comigo.
Estávamos dando uma volta. Era noite, o fim de semana pós-Emily.
Nosso primeiro fim de semana completamente de folga. Era sexta-
feira.
Kovak era filho de militar da Força Aérea. Vinha de Nevada e tinha
o azar de gostar demais de drogas injetáveis. Então ele se alistou
no Exército. Tinha 23 anos e por isso foi ele quem comprou a bebida
no começo daquela tarde. Eu já tinha tomado um quinto de uma
garrafa de gim. Sentia falta da Emily. A falta devorava meu fígado;
me sentia feito Prometeu com seus pássaros malditos. Estava
ficando tarde, e decidi que precisava comer alguma coisa.
Passamos em frente a algo que se anunciava como um bar-grill.
Dava para ver do lado de dentro. Tinha gaitas de fole nas paredes,
diferentes bandeiras, enfim. As garçonetes usavam saias de flanela.
Eu não ligava. Tinha hambúrguer vegetariano no cardápio, então eu
queria entrar, mas o cara na porta, que usava um kilt, não me deixou
entrar porque eu só tinha 20 anos. Falei que não queria beber, só
queria o hambúrguer vegetariano. Ainda assim ele disse que não.
Eu disse que pediria para viagem. Também não deixou. Fiquei sem
repertório. Falei para Kovak entrar sozinho. Quase caí de costas no
Rio Fajuto, mas por sorte não caí. Subi os degraus até chegar ao
nível da rua, e lá estava Fort Alamo. Um mendigo pediu um cigarro.
Dei um para ele e falei sobre como tinha sido sacaneado no Rio
Fajuto. Ele respondeu que tinham sido uns escrotos filhos da puta
por me sacanearem daquele jeito. Ele usava um boné velho puxado
bem para baixo, então eu não conseguia ver os olhos; mas, pelo
jeito de falar, ele parecia sincero. Ele disse que tinha um Denny’s
perto. Falei que um Denny’s seria bom. Perguntei se ele também
queria pegar algo lá. Ele disse que não tinha dinheiro. Falei que
pagaria.
Sentamos numa mesa na seção de fumantes e a garçonete
anotou nossos pedidos imediatamente. A bebedeira me deixou
falante, então perguntei ao mendigo sobre a situação dele, como ele
tinha se tornado mendigo. Ele disse que a vida dele foi pro brejo na
época em que ele foi parar na prisão.
“Por que você foi preso?”
“Assassinato.”
As panquecas chegaram.
“Um otário estuprou minha irmã. Aí meti bala nele.”
“Compreensível.”
O mendigo estava em condicional, e o agente de condicional
sempre dava uma dura por ele não ter um emprego. E ele não
conseguia arranjar emprego porque tinha problemas mentais.
Falei: “Deixa seu agente comigo. Sou do Exército. Temos bastante
influência hoje em dia. Qual é o nome dele?.”
Ele me deu o nome e o telefone do agente de condicional. Nos
despedimos na frente do Denny’s. Garanti que iria dar um jeito nas
coisas para ele em breve.

à tarde, a srta. Grey nos contou sobre o péssimo fim


de semana que teve. Ela atendeu uma emergência em um
churrasco no interior. Uma mulher, mãe de crianças pequenas, havia
batido de quadriciclo num quiosque e sangrado pela cabeça até
morrer lá mesmo, na frente de todos os participantes do churrasco.
A cabeça dela ficou toda roxa. Tinha crianças e tudo mais. A srta.
Grey disse que esse tipo de coisa acontecia o tempo todo.
Todos preenchemos nossas listas. Eu tinha pensado muito a
respeito e decidido que gostaria de ser alocado no Hospital Militar
Walter Reed ou no Centro Médico do Exército de Brooke, ou ainda
em Fort Drum. O sósia do Harold Ramis tinha dito que Fort Drum
não era nada divertido, mas era perto de Elba, e ficaria perto da
Emily, e se era tão ruim quanto diziam, eu era forte candidato.
Liguei para o agente de condicional do vagabundo naquela noite.
Tentei deixar uma mensagem, dar alguma explicação. Falei meu
nome, disse que era do Exército e tinha interesse no bem-estar do
sr. Charley Pride. Disse que o sr. Pride tinha algum tipo de doença
mental grave, não podia ser responsabilizado por não conseguir
emprego, e se essa situação não se resolvesse rápido, eu estava
disposto a acionar os canais necessários.

atividades com manequins. Tinha manequins que


eram só troncos com cabeças. Tinha manequins completos com
braços e pernas. Tinha manequins com pulmões de borracha. Tinha
manequins com ossos de borracha saltados pra fora da perna.
Tinha manequins que esguichavam sangue. Tinha até pequenos
bebês-manequim com rostos angelicais. Todo tipo de manequim que
se possa imaginar tinha sido usado no treinamento dos Médicos
Guerreiros, e passávamos de um manequim a outro enquanto os
instrutores nos liam cada situação:
“Pressão sanguínea caiu pra sete por dois.”
(Você finge um procedimento no manequim e injeta fluídos
imaginários.)
“Seu paciente está vomitando.”
(Você vira o manequim de lado e limpa as vias aéreas de faz de
conta antes que ele aspire de faz de conta o vômito de faz de conta
e morra de faz de conta.)
“Pulmão perfurado.”
(Era só fazer uma sutura oclusiva.)
“Paciente demonstra desvio da traqueia.”
(Um pneumotórax de faz de conta exigia a inserção de uma agulha
de descompressão de faz de conta na linha clavicular do espaço
intercostal de faz de conta.)
“Queimaduras severas em torno da boca e do nariz.”
(Esse manequim precisaria de uma cricotireodotomia de faz de
conta.)
Por fim, furamos nossas veias de verdade com agulhas cateter
14g, e tiramos sangue uns dos outros com agulhas borboleta de
verdade. Tirei um pouco do sangue da Harlow. Ela não gostava de
agulhas; ficava trêmula.
Ela disse: “Por favor, seja delicado”.
CAPÍTULO DEZESSETE

Tentei me comportar, mas eu era um fodido. Emily tinha descolado


um emprego como garota dos shots, e aí fui encher a cara. Estava
vagando pelos corredores do Rio Fajuto e Kovak estava me
ajudando a não ser preso. Eu ficava repetindo o quanto soava
escroto: garota dos shots. E Emily não estava atendendo o telefone.
Falei, Kovac, não parece escroto pra caralho? Ele falou que não
sabia o que dizer. Falei que ele era um filho da puta inútil. Falei, Se
você só vai falar merda, melhor ficar quieto.
Aí vi Harlow descendo o corredor. Ela estava com cinco veteranos,
cinco homens. Perguntou o que eu estava fazendo. Falei que o Rio
Fajuto era uma merda, porque pediam identidade em todos os
lugares. Ela respondeu, É mesmo? Ela disse que nunca tinham
pedido para ela. Perguntou se era o Kovak comigo. Falei que sim,
era o Kovak. Ela disse, Oi, Kovac. Kovac disse oi. Os veteranos
ficaram impacientes e ficaram falando merda. Falei para um dos
caras que ele era um estuprador. Ele perguntou quem eu era, o
Capitão Salva-Puta? Acertei um soco na boca dele. Ele me agarrou.
Tentei dar a volta para fazer ele apagar, mas só consegui dar meio
mata-leão. E aí não consegui fazer mais nada. Tentei bater a cabeça
dele numa porta, mas não deu certo; não tinha impulso suficiente.
Me solta, ele disse. A voz estava rouca, e isso fez eu me
desconcentrar. Esse estuprador de merda já tinha sido uma criança
um dia, pensei. Os amigos dele me acertaram. Me socaram no
queixo, que ficou estalando por vários dias. Kovak tentou ajudar e
me acertou um soco no pescoço. Uma mulher atrás da porta estava
gritando: “ ”. Nos espalhamos. Harlow,
Kovak e eu descemos as escadas e saímos do hotel. Voltamos pro
Rio Fajuto. O Rio Fajuto era uma merda. Só tocavam as mais
pedidas. Era Bud Light choca e bermudas com bolsos laterais. Era
quesadillas e desodorante Axe. Era só disso que eu era culpado.
Harlow tinha um certo brilho. Ela era bem limpa. Me pediu um
cigarro e segurou meu braço pelo cotovelo quando se inclinou na
minha direção. Conversamos por uma hora antes de sentirmos que
era seguro voltar para o hotel. Ela ficou bem perto de mim no
elevador. O quarto era no sétimo andar. Kovak alugou um filme no
pay-per-view. Preparei um gim tônica. Harlow pediu um para ela
também. Sentou perto de mim na beirada da cama. Ela ficava
roçando os peitos no meu braço e respirando em cima de mim. Falei
pra ela que tinha namorada, que era sério. Mas acabamos de tomar
um susto, ela disse, e tudo bem fazer certas coisas quando se toma
um susto. Falei que sentia muito. Ela transou com Kovak no
banheiro. Dava para ouvir que ela estava dando tudo de si. Ela
gostava muito de pica.
CAPÍTULO DEZOITO

Recebemos nossas ordens todos no mesmo dia. Minhas ordens


diziam que eu iria para Fort Hood em Killeen, Texas.
Fort Hood não estava na minha lista.
Tinha duas divisões em Fort Hood, a Primeira Divisão de Cavalaria
e a Quarta Divisão de Infantaria. Sabia que não iria para a Primeira
Divisão porque as pessoas que iam tinham recebido ordens
diferentes das minhas. As deles diziam Primeira Divisão, e as
minhas não. As minhas diziam apenas Corpo , mas isso
significava Quarta Infantaria.
Não levou nem cinco minutos até que descobrisse que a Quarta
Infantaria seria mandada ao Iraque no outono. E pensei, Emily vai
ficar puta comigo.
As ordens de Kovac diziam que ele trabalharia no hospital de uma
base no Alasca. Ele não estava feliz com isso, mas senti inveja dele.
Fui até as escadas. Tinha uma garota lá. Ela estava chorando no
celular. “Vão me mandar pra um centro médico, mãe… Não... mas
mãe… … Mãe, eu sou uma Médica !”
A vida é estranha.

no jornal que o batalhão de Joe havia se metido em


merda das grossas durante o verão. Houve uma semana em que o
batalhão dele teve dezenove mortes, todos garotos de Ohio.
Tinha tentado falar com Joe por e-mail, não recebi resposta, mas
consegui falar com Roy. Ele disse que o primo dele continuava vivo
e inteiro. Disse que avisaria conforme recebesse notícias.
de fim de semana tinham acabado porque o treinamento
clínico começaria naquela semana, então estávamos presos ao
posto. Eram nove da noite. Estávamos em formação e aguardando
o sargento Masters chegar para fazer a inspeção. Masters era um
bosta, e tinha insistido em subir e inspecionar o quartel. Eu não
lembrava se tinha trancado minha bolsa de primeiros-socorros e,
dito e feito, ele desceu as escadas com ela na mão como se fosse
um prêmio.
“ ?”, ele perguntou. “
?”
Levantei a mão, e ele me mandou sair da fileira e fazer posição de
sentido.
“ … .”
Me coloquei na posição e ele me deixou daquele jeito enquanto
explicava para todos o que era o mercado clandestino.
“ ?”
Todos entendemos como uma pergunta retórica.
“ ,
. , ,
.
.
.”
Ele pegou minha bolsa, abriu e esparramou o conteúdo no chão. O
conteúdo — alguns curativos, esparadrapos, uma bandagem de
emergência israelense, uma caixa empoeirada de combitubos
esofagotraqueais, um tubo nasofaríngeo, uma seringa sem
embalagem, tubos intravenosos, duas bolsas de lactato de sódio,
talvez uma meia dúzia de agulhas cateter 14g — tinha pouco ou
nenhum valor monetário.
Ele jogou a bolsa de lado: “
”.
Ele se curvou para falar na minha cara. “ ,

.
. ,
.
, .
?”
Ele me obrigou a fazer flexões até eu chegar à falência muscular.
Levou menos de três minutos. Mesmo assim, fiz muitas flexões. Era
bom nisso. A maioria de nós conseguia fazer flexões. Se as guerras
fossem vencidas com flexões e papo-furado, os Estados Unidos
nunca perderiam.
CAPÍTULO DEZENOVE

O Centro Médico do Exército de Brooke era o hospital de Fort Sam.


Tratava civis e militares. Os pisos eram muito limpos. Um belo
hospital. Fizemos treinamento clínico lá por duas semanas.
Tínhamos que chegar ao Centro Médico como se soubéssemos o
que estávamos fazendo. Éramos cinco no meu setor, cinco
residentes. Nos dividiram. Cada um fazia sua ronda.
Um cara tinha sofrido um acidente de moto. Quebrado a perna. A
esposa estava com ele no quarto. Coloquei o aparelho de medir a
pressão ao contrário, e ele inflou feito um bote quando bombeei
pressão. O cara não reclamou, mas a mulher dele me achou um
cretino completo. Segui com minhas rondas. Um homem tinha sido
esfaqueado numa guerra entre desabrigados. O cheiro dele era
sufocante. Tive que dar um banho de esponja. Cheguei até a
levantar o saco dele. Estava comprando meu lugar no céu, que é
algo que nenhum ladrão pode roubar.
Um dos pacientes era um cara meio molenga de uns trinta e
poucos anos que tinha sido atropelado atravessando a rua. O carro
arrancou o pênis dele e ele tinha ficado absolutamente retardado. A
mãe estava ao lado da cama, e a dor no rosto dela era tão intensa
que era como olhar para o sol. Fiquei feliz de já ter aprendido a usar
o esfigmomanômetro a essa altura, porque eles eram boas pessoas,
e teria me odiado se desse mais alguma tristeza a eles.
No fim de um dos corredores, num quarto trancado, havia um
garoto que tinha sido queimado no Iraque. Um soldado, um garoto:
não tinha diferença. O acesso ao quarto era proibido porque as
queimaduras o tinham deixado ultravulnerável a infecções, mas
havia uma janela, e dava pra olhar ele de lá, o lugar onde uma vida
inteira o tinha colocado.

treinamento sem matar ninguém por acidente. Acho


que estava orgulhoso. A sensação durou até sexta de noite,
momento em que minhas bolas súbita e inesperadamente
morreram.
Tomei um soco nas bolas.
Era uma piada.
Uma piada do Exército.
Sabia que tinha algo errado, mas esperei até que minhas bolas
inchassem pra valer antes de contar ao instrutor. Voltei ao Centro
Médico, dessa vez como paciente. Fiz um raio x na emergência. O
médico disse algo sobre uma hérnia inguinal. Eu não sabia o que
era aquilo. Ele falou que não precisaria operar, ao menos até onde
ele previa, mas ainda assim as bolas estavam inchadas, e era uma
dor filha da puta.
Estava deitado em uma maca na emergência, e um pessoal do
hospital passou levando numa cadeira de rodas um sujeito que
haviam recolhido da rua. O cara tinha sido espancado pra valer e
soluçava. Deixaram ele perto de mim. Pela cortina, ouvia as
enfermeiras conversando. Elas disseram que o cara tinha sofrido
uma concussão, engolido dentes, tinha costelas quebradas e
alguém tinha jogado água sanitária nos olhos dele.
Ligaram para a mãe.
A mãe dele foi até lá.
Ela não parava de falar.
“Quem fez isso com você, querido?… Querido, eles levaram a sua
carteira?… Levaram a sua carteira? Hein? Querido, eles levaram a
sua carteira?”
Jesus.
De manhã cedo, saí do hospital com um suprimento de ibuprofeno
800 mg para uma semana e um atestado para trabalho leve. Estava
feliz por ainda ter as bolas, mas não sabia se poderia participar dos
exercícios de campo na semana seguinte. Era a última etapa antes
da formatura, e eu achava que não poderia me formar se não
participasse. Seria chutado para a Companhia Delta e eles estavam
um mês atrasados, e aí ficaria preso em Fort Sam por mais um mês.
Não podia deixar isso acontecer. Iria para casa por três semanas
depois da formatura. Tinha de dar um jeito. Azar das bolas.
Não consegui atravessar nem o primeiro dia de exercícios de
campo. Era um daqueles lances onde dão a você uma M16 e você
tem que ir andando e falando . Estava com meu
esquadrão subindo um monte, e quando chegamos ao alto
devíamos todos pular e ficar prontos para dizer ,
mas quando pulei, algo deu errado na minha virilha e eu caí no chão
em posição fetal. Me tiraram do campo numa maca e me levaram ao
posto de socorro. Os médicos olharam minhas bolas. Minhas bolas
não estavam indo muito bem. Tinha sangue nelas, e agora tinham
ficado azul-marinho. O supervisor médico do posto chamou todos os
médicos para olharem minhas bolas. Eles discutiram minhas bolas
bem na minha frente. O sargento da primeira companhia chegou e
olhou minhas bolas. Achou engraçado. Fui para o hospital e um cara
enfiou o dedo no meu cu. Ele não avisou que faria isso; me deixou
sentir primeiro. E aí outro sujeito veio falar comigo, e disse que o
sangramento nas bolas tinha inflamado meu epidídimo. Finalmente
me deram morfina. Aí me senti melhor: morfina era bom demais. A
cama era muito confortável. O cardápio do hospital tinha
hambúrguer vegetariano. Pedi um e era gostoso, e quando estava
me aprontando para uma boa noite de descanso, um médico
apareceu com um grupo de residentes para que todos pudessem
olhar minhas bolas e falar sobre elas.

campo no dia seguinte com uma garrafa de penicilina,


suprimento de três dias de Percocet e um atestado de repouso para
ficar de cama. A companhia teve que entrar em formação. O
primeiro-sargento e o capitão estavam lá sendo cuzões, e o
sargento falou: “Ei, cadê o Bolas de Smurf? Já voltou?”.
Me vi obrigado a erguer a mão.
O primeiro-sargento disse para o capitão: “É dele que eu estava
falando. O saco dele ficou azul”.
A formação foi dispensada e me disseram para ir falar com o
primeiro-sargento e com o capitão.
“Bom, Bolas de Smurf”, disse o primeiro-sargento, “você gostou do
Centro Médico?”
“Foi bom, primeiro-sargento.”
“Ótimo. Cuidaram bem de você, não foi?”
“Sim, primeiro-sargento.”
O capitão disse: “Deram algum tipo de atestado para você?”.
“Repouso, primeiro-sargento.”
Eu tinha cometido uma cagada. Não se chama um capitão de
primeiro-sargento, você o chama de senhor, mas eu estava
desidratado e tinha tomado dois Percocets, então o rebaixei sem
querer.
Ele ficou irritado. “Sou o capitão, rapaz. Você me chama de
senhor. Entendeu?”
“Eu é que sou o primeiro-sargento, rapaz. Qual é o seu problema?”
“Deram alguma medicação para a dor?”
“Percocet, senhor.”
Estava desidratado e assustado, mas também recebi uma boa
notícia. A boa notícia era que eu iria me graduar no tempo certo,
mesmo sem tomar parte no treinamento de campo. E aí poderia ir
para casa. Veria a Emily.

em que a companhia fez o exercício de baixas em massa, o


figurino era um monte de uniformes da Força Aérea rasgados e com
sangue falso, para que os falsos feridos parecessem mais
falsamente ensanguentados.
Eu era como uma lavanderia ambulante lavando esses uniformes.
Não haveria qualquer repouso para mim, mesmo que fosse
praticamente a porra de um aleijado. Estava carregando um monte
desses uniformes sujos de sangue falso para a cabana onde ficava
a máquina de lavar, quando encontrei uma patrulha de perímetro de
faz de conta, vinda da base de operações de faz de conta.
Alguém disse: “ !… !… !… , ”.
E é claro que conhecia o cara. Eu tinha dado um soco na boca
dele no hotel no Rio Fajuto. Não gostávamos um do outro, e ele era
de patente mais alta que a minha. Ele era E-5, sargento; eu era E-2,
um nada. Estava em desvantagem. Disse para ele: “Não faço parte
dessa merda. Estou na lavanderia”.
“Que lavanderia?”
“Esta lavanderia. Por que acha que tô carregando esses
uniformes?”
“Quem autorizou?”
“Você é doido e nem faz ideia.”
“O que você disse?”
“Vai chupar uma rola.”
Ele virou para um recruta e entregou seu M16 de borracha.
“Segure minha arma, Médico Guerreiro.”
“Merda”, falei.
Ele me levantou e me jogou no chão. Os uniformes com sangue
falso se espalharam por toda parte. Ele segurou meus dois braços
para trás e enterrou o joelho no meu rim direito com toda a força que
tinha. Minha cara estava em cima de um pequeno formigueiro, e as
formigas caminhavam por todo meu rosto, me mordendo. Acho que
mereci aquilo.
“Cansou de tagarelar?”
“Vai. Se. Foder. Viado.”
Não me soltava. Conseguia ver parte da patrulha de faz de conta.
Kovak estava entre eles.
Falei: “Kovak, qual é o seu problema?”.
Ele disse: “Ei, pare. Esse é o cara que machucou as bolas”.

. Tocaram a música do Toby Keith. Podíamos ir


embora. Minhas bolas estavam voltando ao normal, mas a penicilina
que eu estava tomando para a epididimite me deixava sensível à luz
do sol, então me queimei feio. Além disso, tinha as picadas de
formiga. Cruzei com a soldado Harlow quando estava saindo para o
aeroporto, ela me viu e riu da minha cara.
CAPÍTULO VINTE

Emily estava dirigindo.


Ela disse: “E se eu cortasse seu pé fora?”.
“Não.”
“Quê? Você ia gostar. Você é preguiçoso pra caralho. Podia ficar
sentado fumando maconha o dia todo. Pensa nisso. Você
economizaria a viagem.”
“Acho que você se encrencaria se cortasse meu pé, amor.”
“Não se você não der queixa.”
“Destruição de propriedade do governo.”
“Sério?”
“Infelizmente. Estaria fora das minhas mãos.”
“Hmm.”
“Eles pensam em tudo.”
“Queria poder cortar seu pé fora.”
“Eu sei, amor.”
“Não é justo.”
“Não, não é.”
Emily ficou comigo todo o tempo que passei em casa, e me levava
de carro quando eu tinha que ir a algum lugar. As coisas andavam
boas. Ela estava trocando de emprego. Não era mais a garota dos
shots. Tinha guardado dinheiro. Tinha pagado todos os
empréstimos. Estava bem na faculdade. Só tirava nota máxima.
Fiquei muito orgulhoso dela. Estava feliz por ela não ser mais a
garota dos shots.
Tinha três semanas. A única pegadinha era que precisava passar
duas semanas participando do recrutamento na cidade. Encontrei
Kelly e Space de novo. Eles não se lembravam de mim. Tudo bem.
Tinha recrutamento a ser feito em uma feira em Mayfield. O
sargento Bellamy e eu tínhamos trazido uma parede de escalada
indoor, mas as únicas pessoas na feira que se interessaram por ela
foram bebês. Eu afivelava os bebês no cinto de escalada preso ao
mecanismo de roldanas no alto da parede. Esses mecanismos eram
bons, porque nenhum bebê quebrou o pescoço. O problema era que
os bebês não eram pesados o suficiente e o mecanismo puxava
eles direto para o topo da parede. Eu prendia o bebê e ele disparava
parede acima. Perguntei a Bellamy o que deveria fazer. Bellamy era
um recrutador que, depois da minha visita em janeiro, tinha passado
para a Central de Carreiras e Aposentadoria das Forças Amadas.
Era baixinho e barrigudo, tinha olhos sujos e a boca cheia de ouro,
como Space.
Falei: “O que eu faço, sarja? Essas crianças não dão certo nesse
troço. São leves demais. Elas sobem direto e ficam presas no alto”.
Ele disse: “Só faça com que funcione, soldado”.
Então fiz o que o sujeito disse, prendia os bebês na corda e os
bebês voavam para o alto, e aí eu escalava a parede e os trazia
para baixo de novo. Isso durou um bom tempo. Não sei de onde
tiraram tantos bebês, mas tiraram. Continuaram trazendo um bebê
depois do outro até que uma tempestade começou a mandar todo
pessoal embora da feira. Desmontamos a parede para que ela não
fosse atingida por um raio.
Bellamy foi embora num Dodge Durango novinho. Fiquei para trás,
no dilúvio, e esperei Emily vir me buscar. Eu gostava de chuva e já
estava ensopado, então não fazia diferença se ficasse na chuva ou
não. Quando Emily chegou, parecia perfeita. Ela era muito boa
comigo.
Fomos encontrar meus pais em um restaurante mexicano. Meu pai
perguntou como tinha sido na feira. Contei dos bebês e todos
acharam engraçado. Todos nos divertimos. Eu não conseguia deixar
de pensar que seria uma droga ir para o Iraque em poucas
semanas, mas não dava mais para evitar. Quem semeia vento,
colhe tempestade.

testariam minha urina assim que chegasse a Fort


Hood, então estava tentando fumar toda a maconha logo no
começo. A maioria das pessoas que eu conhecia morava próximo a
Severance, então era fácil.
Tinha uma hora antes de precisar voltar para a Central de
Carreiras. Emily me pegou de carro e me levou até a casa da mãe
de James Lightfoot. James Lightfoot e eu ficamos retardados de tão
chapados. Emily não fumava maconha. Só gostava de boletas.
Tinha trazido uma gilete comigo, então fui me barbear na pia da
cozinha. Estava me cortando todo, e James Lightfoot me contava
sobre Kashi, o indiano. Kashi morava em Cleveland fazia quatro
anos, estudando em Case. O visto de estudante dele estava
expirando, e ele teria que sair do país se não fizesse alguma coisa.
Por isso, estava pensando em se alistar no Exército para se tornar
cidadão dos Estados Unidos.
“Por que ele quer se tornar um cidadão dos Estados Unidos?”
“Nem faço ideia. Acho que ele gosta mais daqui do que da Índia.”
“Ahm… Você tem colírio?”
Cheguei cinco minutos atrasado. Precisei do tempo extra para me
recompor. Ainda estava muito brisado. Bellamy era o único no
escritório quando cheguei, pois o resto dos recrutadores já tinha ido
para um torneio de basquete no centro. Bellamy estava puto
comigo. Ele me disse para começar a fazer flexões, e eu comecei,
mas então falei: “Peço desculpas pelo atraso, sarja, mas foi por um
bom motivo. Acho que encontrei alguém que quer se alistar”.
“De pé”, ele disse. “Me fala sobre isso no carro.”
No caminho, contei a Bellamy sobre Kashi, e ele me fez prometer
que não contaria nada para os outros recrutadores. Falei que não
contaria.
Nosso estande tinha sido instalado do outro lado da rua, em frente
à arena. Tinha muitas coisas relacionadas a basquete acontecendo.
Dei uma volta pela multidão e distribuí alguns folhetos. Alguém
perguntou de que bairro eu era. Ele tinha um rosto que parecia
jovem num primeiro momento, mas aí vi as rugas em volta dos
olhos, os pés de galinha. Um dente da frente estava faltando. Tinha
o cabelo loiro-escuro, preso em trancinhas, vestia uma bermuda de
basquete e uma camiseta Tall T. Disse que seu nome era Jug. Tentei
recrutar Jug para o Exército, mas ele recusou porque o vice-
presidente Cheney tinha conspirado com os Illuminati para derrubar
as Torres Gêmeas e assumir o controle das reservas de petróleo
mundiais. Confesso que nunca tinha ouvido essa antes.
“E, ainda assim, aqui tá você”, ele disse, “um ignorante tentando
convencer a molecada a derramar o próprio sangue em nome de
Dick Demônio e dos Illuminati.”
Falei que precisava ir porque o sargento Bellamy estava
provavelmente me procurando.
Ele perguntou se eu já tinha estado no Iraque.
“Vou pra lá nesse outono.”
“Melhor dizer ao pessoal que você é gay. Vai pro Canadá, ou algo
assim.”
Respondi que não achava que tinha algum modo de evitar.
Ele disse: “Você vai morrer”.
CAPÍTULO VINTE E UM

Fort Hood era sinistro, um novo tipo de deserto, criado para induzir o
fatalismo nos jovens. Funcionava perfeitamente.
Meu código da Quarta Infantaria me colocava no batalhão de
tanques. Não eram só tanques. Havia duas companhias de tanques
(Alfa e Bravo), duas companhias de infantaria (Delta e Eco), uma
companhia de engenharia (Charlie), além de uma companhia de
apoio (Foxtrot) e uma companhia-quartel-general ( ). Essa última
tinha um monte de coisas diferentes: cozinheiros, mecânicos,
batedores, morteiristas, oficiais de inteligência, financeiro. O pelotão
médico era parte da . Fui até lá primeiro. Ficaria lá, como parte
do posto de socorro, ou seria incluído em uma das companhias de
linha (a lista que ia de Alfa até Eco).
Não gostava do pelotão médico; quase todo mundo era mais
velho, e eles tinham preferência por um tipo de conversa no qual eu
não era bom. Então disse ao encarregado do pelotão que queria ir
para uma das companhias de linha, e ele me anexou à Eco. Foi
assim que entrei para a infantaria.
Era setembro. Seríamos enviados em novembro. A companhia era
um grupo coeso, então algumas coisas eram esperadas. Rolavam
muitos Quem é você, porra?
O sargento Shoo era meu superior. Um filho da puta grande, com
jeito de irmão mais velho. Os outros dois médicos da Bravo eram
zés-ninguém, de baixa patente, como eu. Soldado de primeira
classe Yuri e soldado de primeira classe Burnes. Eram gente boa.
Yuri era arrogante pra caralho, mas era tranquilo, e todos os 11B
gostavam dele porque ele era completamente insano, de um jeito
bem heavy metal. E quanto a Burnes, ele talvez fosse esperto
demais para o Exército. Dava para ver que ele estava de saco cheio
da idiotice que era tudo aquilo. Ele ficava na dele a maior parte do
tempo, estudando cálculo diferencial e bebendo cerveja Icehouse.
Planejava seguir carreira política. Tinha trinta e poucos anos e
parecia velho pra caralho pra nós, que não passávamos de
moleques.

de pegar companheiros de quarto calmos, que não eram


patrióticos em excesso. Eles eram da infantaria da Companhia
Delta: soldado Grace e soldado Carranza. Grace era de Oregon.
Tinha 20 anos, como eu. Era a cara do Jean-Michel Basquiat e
falava como um surfista. Meu colega de quarto. Carranza estava lá
em caráter não oficial, a convite de Grace. Carranza era casado,
então recebia auxílio moradia básico, o que significava que ele não
podia ficar no quartel. Ele tinha um apartamento civil em Killeen;
mas, por algum motivo, a sra. Carranza estava puta com ele e ele
tinha meio que ficado desabrigado.
O lance era que Grace e Carranza estavam comendo a mesma
garota de 17 anos de Harker Heights. Carranza me explicou tudo.
“Ela é meu coelhinho branco”, ele disse. “Tô dando um gelo nela.”
E aí Grace se casou com ela e resolveu tudo, mas os três ainda
passavam tempo juntos, e assistiam Cassino cinco ou seis vezes
por semana. Grace morreria no Iraque e Carranza teria seu rosto
destruído por lá, mas isso foi antes de tudo acontecer, então
estávamos de coração leve.
Aparentemente, Grace era algum tipo de ás da foda, porque a
garota ficava doida quando trepava com ele. Dava para ouvir pelas
paredes. Durava horas. Você sentia que era amor de verdade,
sagrado e desinibido, mas não era da minha conta. Meu lance era
ficar sozinho o tempo todo. Nos fins de semana, eu ia ao cinema em
Killeen. Era um desses cinemas de shopping, e eu ia tanto lá que
acabaram os filmes que eu não tinha visto.
Falava com Emily sempre que podia. Ligava depois das nove,
quando não era cobrado por minuto e ela já tinha voltado para casa.
Ela trabalhava de garçonete num restaurante de comida caribenha.
Ela dizia que era boa. Trabalhava em tempo integral. Estudava em
tempo integral. Fazia todo o dever de casa. Era difícil de imaginar
ter energia para tudo aquilo. Ela estava dando tudo de si. Era bom
que pudéssemos ao menos nos falar, mas havia a distância. Eu já
estava no Exército fazia nove meses.
“As pessoas acham que você não existe”, ela disse. “Acham que
inventei você.”
Respondi que sentia muito por isso.
“Nunca te vejo”, ela disse. “Não é normal. Por que não tenho um
namorado que eu possa ver?”
Falei: “Acho que talvez consiga voltar até o Dia de Colombo, em
outubro. Talvez, no mais tardar, no Dia do Veterano, em novembro”.
“… Tá.”
“Só me espera, tá?”
“Sinto sua falta.”
“Também sinto sua falta.”
E era sempre assim. Era basicamente isso que dizíamos um ao
outro.

eu era o Merda do Cara Novo, fui mandado junto com a


companhia para treinamento de campo. Todo mundo achava uma
chatice passar dias lá, sentado sem fazer nada, e até teria sido uma
chatice para Shoo, Yuri ou Burnes, mas eu não ligava. Ficava
totalmente sozinho e podia fumar quantos cigarros quisesse.
O clima andava seco havia meses, e quando a companhia treinava
com munição real, as rajadas de traçante faziam a grama pegar
fogo. Eu corria com um tapete de borracha quadrado para apagar o
fogo. Às vezes o incêndio na grama se propagava até alguma
árvore, e a árvore acendia feito um fósforo. Eu adorava.

certo para eu sair sem ser notado. Não tinha nenhum


treinamento agendado para o fim de semana do Dia de Colombo,
então dava tempo. Desde que eu conseguisse voltar para a
formação das seis horas na terça, ninguém daria falta de mim.
Já que estava saindo sem autorização, não tinha como usar o
aeroporto de Killeen; podia ter algum capanga do Exército para
checar documentos. Felizmente Yuri tinha uma aversão patológica
por autoridades, e disse que me levaria até o aeroporto local, em
Temple. De lá, eu voaria para o Bush Intercontinental em Houston,
onde pegaria uma conexão rumo ao norte.
Quando o serviço terminou, saímos da cidade, escutando Lamb of
God no talo, dentro do Honda Accord. Não sei como ele podia ouvir
aquela merda e não se matar, mas era grato a ele.

fim de semana inteiro em Elba. Emily e eu só ficamos na


cama, dormindo quase o tempo todo. Saíamos para dar uma volta
de carro à noite. Era outono, e realmente dava para sentir que era
outono. Havia aquela dor no ar. Você se via esmagado pela beleza
de tudo: as árvores nuas, o céu carregado e as luzes da rua. Fazia
dois anos que tínhamos nos conhecido. Éramos mais velhos agora;
os dois tinham dinheiro guardado, empregos, e estávamos
basicamente por conta própria. Ela faria 21 anos dali a um mês.
Estávamos certos de que tínhamos crescido. A gente ia se casar
antes de eu ir para o Iraque. Dessa vez foi ela quem tocou no
assunto. Ela disse que havia um sentido prático. Se a gente se
casasse, me pagariam mais e eu poderia incluir ela no meu seguro
de vida. E ainda por cima eu me casaria com a Emily.
“Mas a gente vai se divorciar”, ela disse.
Falei que tudo bem.
Falei: “A gente se divorcia, se você quiser”.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

Emily e eu nos casamos com um juiz de paz em Elba, na terça após


o Dia do Veterano. Joe e Roy tinham vindo de Cleveland visitar a
gente na sexta anterior, e Joe tinha me acertado uma cabeçada na
cara. Foi só de brincadeira, ele não tinha feito por mal. Ele não sabia
que eu e Emily iríamos nos casar. Ninguém sabia. Ela não queria
que ninguém soubesse.
Meu nariz estava machucado, ainda tinha sangue no meu blusão,
e não tínhamos alianças. Emily usava uma jaqueta de mecânico que
tinha uma etiqueta com o nome . Ela parecia um anjo. E
sabíamos que, naquele momento, éramos as duas coisas mais
lindas do mundo. Quanto tempo durou, eu não sei, mas foi verdade
por pelo menos alguns minutos. Seis bilhões de pessoas no mundo
e ninguém se comparava.
Depois de nos casarmos, ela me levou de carro para o aeroporto.
Ficamos no estacionamento e choramos feito crianças até chegar
minha hora de partir.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

A menos que por acaso já tenho ido lá, você nunca ouviu falar do
lugar, então o nome não importa. Havia uma base operacional
avançada. A base tinha sido construída no entorno de uma usina de
energia, próximo ao rio. A usina era uma coisa monstruosa que fazia
todo tipo de barulho. Funcionava com petróleo, então havia petróleo
por toda parte. Petróleo no ar. Petróleo cobrindo o chão. Vivíamos à
sombra da usina de energia, perto do Portão Norte, na Vila Russa,
composta por uns poucos edifícios de concreto agrupados. Aquela
era a área da nossa companhia, onde vivíamos, dormíamos e tudo
mais. A Companhia Delta ficava do outro lado da fileira de veículos.
O posto de emergência também era naquele lado, perto da área de
pouso. O resto do batalhão ficava no acampamento militar, na
extremidade leste da base, do outro lado da usina, passando as
lojas dos hajis, perto do Portão Principal. O Centro de Operações
Táticas ( ) era daquele lado, perto do acampamento. O batalhão
tinha um . Cada companhia tinha seu próprio . Tinha muitos
s. s em abundância, mas o maior era o do batalhão, de
dois andares. A fachada dava para a estrada, que acompanhava o
muro ao norte da base. A estrada ia para oeste de onde estávamos,
passando pelo Portão Norte, de onde dava para ver o rio à esquerda
e a Rota Martha subindo pelo campo, entre as fileiras de palmeiras.
A Rota Martha era uma pista única de asfalto.
Chegamos em dezembro. Assumiríamos o lugar de uma divisão
da Guarda Nacional, os Rifles de Mississippi. Eles não perderam
tempo. Disseram que a gente não dava nem pro cheiro. Eles tinham
fotos de todas as mortes deles, tinham juntado tudo num
PowerPoint intitulado “A Derrubada dos Cabeças de Toalha”. Nós
entramos e eles saíram. Nos passaram todos os procedimentos. O
último dos Rifles de Mississippi pegou o caminho de casa no Natal.
O Natal foi nosso primeiro dia por conta própria.
O Terceiro Pelotão ficava na Unidade de Resposta Rápida 1
( 1). Eu era o médico do Terceiro Pelotão. Estávamos treinando
perto da usina de força quando os hajis dispararam um foguete
contra o do batalhão. Três feridos. Nem vimos nada. Estávamos
a duzentos metros do ponto de disparo, e tinha prédios na nossa
frente. Foi uma grande decepção. No começo, você queria estar
onde a ação estava.
“Resposta Rápida” significava que deveríamos sair se qualquer
coisa acontecesse na área de operações do batalhão. Se uma
patrulha fosse atingida ou fizesse contato, nós éramos o apoio. Se a
Unidade Antibombas fosse acionada, nós fazíamos a escolta. Então
não fez sentido nenhum termos sido encarregados da segurança de
um sargento aleatório do nosso pelotão, enquanto ele pilotava um
aviãozinho de controle remoto do lado de fora da base. O
aviãozinho era chamado de Raptor. Eu não gostava dele.
Você ficava totalmente ligado quando pisava no solo do outro lado
da cerca de arame pela primeira vez. Esperava levar um tiro a
qualquer momento. Paramos em um ponto aleatório, onde não dava
para ver ninguém. Mesmo assim, você tinha certeza de que havia
algum haji por lá, esperando o dia inteiro só para atirar em você. E
você estava tão pronto para isso quanto poderia, mas nunca
acontecia. O sargento brincou com o aviãozinho. O sol se pôs. O
sargento voltou com o avião, embarcamos e voltamos. Tinha
escurecido rápido. No trajeto de volta, ouvimos no rádio do batalhão
que uma patrulha da Companhia Charlie tinha sido atacada na Rota
Polk. Precisávamos ir para lá. O problema é que havíamos ficado de
palhaçada com aquele avião do outro lado da base. Tivemos que
entrar pelo Portão Principal no lado sudeste e atalhar pela base até
o Portão Norte. Subimos meio quilômetro pela Rota Martha e
dobramos na Rota Grove, que nos levou até a Polk. Se
estivéssemos na base, teríamos chegado em cinco minutos, mas
levamos trinta. Metade do batalhão chegou ao local antes de nós.
Havia uma longa fila de veículos entre nós e a patrulha da
Companhia Charlie.
Falavam de cinco baixas causadas por dispositivo explosivo: três
mortos, dois feridos. Eu estava no caminhão do tenente Heyward.
Perguntei a ele se deveria tentar ir ajudar, mesmo que eu fosse um
médico. Fomos eu e o especialista Sullivan.
Tinha um veículo de alta mobilidade, tombado e pegando fogo, em
uma cratera de bomba. Havia três feridos caídos perto da estrada e
dois mortos no caminhão em chamas. Os feridos estavam estáveis
— fraturas, queimaduras leves, concussões e coisas assim, nenhum
correndo risco de morte. O médico da Companhia Charlie tinha feito
um bom trabalho em preparar os feridos para o resgate. Alguns
médicos do quartel-general tinham vindo e ajudado.
O helicóptero de resgate médico aterrissou em um campo à
esquerda da estrada. Erguemos as macas com os feridos e os
carregamos no escuro pelo terreno acidentado. Já estávamos todos
bem curvados antes mesmo de passarmos embaixo das hélices do
helicóptero, e, com a pouca luz, eu conseguia ver o homem na
maca que eu estava ajudando a carregar. Seus olhos pareciam
insanos e tristes. O cérebro reptiliano tinha assumido o controle.
Fizemos contato visual. Falei: “Vou te ajudar”.
Disse isso bem alto para que ele conseguisse escutar com o
barulho das hélices. E então fiquei com vergonha porque era uma
coisa estúpida e melodramática de se dizer, e eu tinha dito.
Na estrada, o veículo capotado já não estava mais em chamas.
Tinha um guindaste tentando tirar ele da cratera, e um monte de
pessoas olhava os corpos ainda dentro do caminhão. Um sargento
estava comandando o guincho, e começou a gritar: “
. ”.
Sullivan e eu estávamos no caminho. Voltamos para o caminhão
de Heyward, e Sullivan falou: “Você viu os corpos? Dava pra ver
todos os ossos”.
Quando voltamos à base, alguns caras nos esperavam perto da
fileira de veículos. Eles perguntaram o que tinha acontecido, quem
tinha morrido e o que tínhamos visto. Eu não soube contar muito
bem. Fui falar com Shoo. Shoo achou engraçado que eu tinha ficado
abalado. Até riu de mim. Falou que eu tinha acabado de perder o
cabaço. Voltei para o meu quarto e fiquei lá. Alguns dos meus
companheiros de quarto também estavam. Burnes, Yuri, Lessing,
Fuentes, Cheetah: todos lá. Todos menos Arnold. Eles queriam
saber tudo que tinha acontecido. Na verdade, eu não sabia muito
bem, mas contei para eles mesmo assim. Fuentes saiu para ir ao
. Ele tinha que ficar na escuta do rádio. Saiu do quarto
solenemente, como se estivesse indo embalsamar a própria avó.
Arnold chegou. Fuentes havia contado tudo para ele. Ele tinha
ouvido falar que os três caras que colocamos no helicóptero haviam
morrido. Isso acabou comigo; me senti meio que arrasado. Não
parecia que eles iam morrer. O que foi que não percebemos?
O superior de Arnold, sargento Drummond, chegou, e falei: “Sarja,
é verdade que os caras que resgatamos morreram?”.
“Não. Quem te disse isso?”
“Arnold disse que ouviu no rádio que eles morreram.”
“Arnold é retardado.”
“Achei que tinha escutado isso, sarja.
“Cala a boca, Arnold. E você, vê se se acalma, controla a agitação.
Tá agindo feito mulher.”
Drummond saiu.
Yuri disse: “Aquele cara é um cuzão”.
Estávamos todos fumando.
Lessing estava puto; ele disse: “Nós tomamos uma sova hoje”.
Lessing era de Chicago.
Burnes estava fazendo as contas. “Tivemos oito baixas hoje, num
contingente de o quê? Talvez uns oitocentos?.”
“E vamos ficar aqui a porra do ano todo”, falei, “um ano todo, cheio
de uma porra de dias.”
Yuri disse que estávamos fodidos.
Lessing falou: “Pra que vocês acham que vieram pra cá?”.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Alguns dias depois do Natal, o Segundo Pelotão mandou uma


Unidade de Resgate em Trânsito para ajudar uma de suas
patrulhas. Um veículo havia sido destroçado e estava em chamas.
Todos os soldados tinham saído do caminhão sem problemas, mas
um repórter ficou. A cabeça do repórter estava bem zoada da
explosão, ele estava inconsciente no banco de trás do veículo em
chamas, próximo a caixas de munição. O sargento Thorpe voltou
até o caminhão para tirar o repórter. Foi corajoso da parte dele, já
que o caminhão estava pegando fogo, além de parecer que estava
levando tiros. Os tiros que ouvíamos eram só a munição estourando
por causa do calor.
Thorpe tirou o repórter pela parte de trás do caminhão, e acabou
sendo atingido pela munição que estava explodindo, mas não foi
nada sério — só um “ferimento superficial”, como dizem.
O repórter estava muito pior. O rosto e o torso estavam queimados
e havia também algum dano cerebral, descoberto depois, mas
Burnes, que era o médico do Segundo Pelotão, cuidou dele e o
manteve vivo até que pudéssemos colocar ele no helicóptero. O
cara acabou sobrevivendo. Então Burnes tinha se saído bem, e
Thorpe era um herói — um herói de verdade, que tinha até tomado
tiro.

de Thorpe estava grávida. Ela também era do Exército.


Estava na Quarta Infantaria, mas não tinha sido enviada em missão.
Continuava com o destacamento de retaguarda em Fort Hood, onde
tinha engravidado.
Tendo em vista que o sr. e a sra. sargento Thorpe tinham se
despedido em novembro, e que já era dezembro, seria natural que
ela tivesse tentado contar a ele que o bebê era dele, mas ela não
podia. A razão era que o sr. e a sra. sargento Thorpe eram brancos,
e a sra. sargento Thorpe tinha engravidado de um cara negro.
Quando ela contou isso ao marido, disse que tinha sido uma coisa
consensual entre ela e o cara negro. Depois, disse que o cara negro
tinha estuprado ela. A polícia deve ter acreditado, porque o cara
negro estava preso.
O sargento Thorpe meio que perdeu a cabeça com essa história. E
ele contava para todo mundo. Ficava todo filosófico e citava alguma
música melosa no meio do papo. Ficava com um certo olhar, como
se tivesse morrido; ela quase tinha matado ele.
O sargento Drummond disse: “Eu sabia que a garotona era uma
vadia”. Thorpe estava de plantão no rádio, e estávamos falando dele
pelas costas porque todos nos sentíamos mal por ele; até o
Drummond, que não era muito bom em termos de empatia. Ele
disse: “Eu e minha esposa convidamos eles pra jantar uma vez, isso
foi em setembro; e ela contou pra minha esposa, na frente de todo
mundo, que tinha trepado com um supervisor num banheiro
químico, quando estava em missão, em 2003. Falou isso na mesa,
durante o jantar. Minha esposa não conseguia acreditar. Ela acha
aquela mulher uma piranha. Me senti mal pelo Thorpe. Sabia que ia
acabar mal pra ele, mas o que eu podia dizer? Sua esposa é uma
puta de uma vadia? Não! E o pobre do Thorpe não é exatamente
um cara esperto. Ele é um bom sujeito, não me entendam mal. Ele é
melhor que a maioria dos idiotas na companhia, mas devia ter sido
mais esperto, e não se juntar com uma puta daquelas. Meu Deus do
céu! Trepar com um maldito macaco”.
fileiras de banheiros químicos: uma em frente à área da
companhia, em cima do acostamento que ia até a fileira de veículos;
a outra era nos fundos, em cima do acostamento que ia até a
estrada que atravessava a usina de energia. No total, era uma dúzia
de banheiros químicos. Quase toda merda, mijo e punheta entre as
cercas ocorria neles.
Uma vez por semana, um russo perpetuamente queimado de sol
vinha em um caminhão especial sugar todo mijo, merda, porra e etc.
dos banheiros com uma mangueira grandona, e lavava os banheiros
com um jato de pressão, parecendo um velho pescador todo
equipado. Era bem amigável. Sempre sorria e fazia positivo com o
polegar se você acenasse para ele. Várias vezes, me perguntei se
ele era um espião.
Se você quisesse comprar alguma coisa, tinha que ir nas lojinhas
dos hajis, barraquinhas de compensado que basicamente vendiam
todas as merdas de que você precisava e algumas merdas de que
você não precisava. Comprei um pacote de maços de Miami por 5
dólares. Era um bom preço, 50 centavos por maço, tão bom que
dava para relevar o gosto de veneno de barata dos cigarros.
Também comprei três latas de energético Wild Tiger e uma caixa de
barras de chocolate. O chocolate era passável. O energético era
fantástico. Era como Red Bull misturado com nicotina. Custava caro
pros padrões de uma lojinha haji, mas era tão bom que não
importava. Era Ano-Novo. Feliz Ano-Novo.
Fui à barraca dos telefones, porque eles tinham voltado a
funcionar e eu podia ligar para a Emily. Os telefones estavam
cortados desde o Natal por causa das baixas. Tinha fila, precisei
esperar até que um telefone fosse liberado, e aí me sentei. Estava
com o cartão telefônico na mão já fazia meia hora; digitei o número
do cartão, disquei o número da Emily, e ela atendeu.
“Como você está?”, ela perguntou.
“Melhor agora. Bem melhor. Caramba. O som da sua voz, sabe.
Sinto sua falta.”
“Também sinto. Tava esperando você ligar. Você tá bem?”
“Tá tudo bem.”
“Alguma novidade?”
“Não muito. Fiz um novo amigo.”
“Que bom”, falei. “Quem é o amigo?”
“Ele é um cara interessante. Ele é de Porto Rico e rouba caixas
eletrônicos.”
“Fala sério.”
“É, ele rouba caixas eletrônicos, mas não se preocupa, ele é muito
legal. É um cara bacana.”
“Você tá de sacanagem?”
“Que foi?”
“Nada. Qual é a idade desse cara?”
“Vinte e cinco.”
“Aham. Que legal. Como conheceu ele?”
“Numa festa do trabalho.”
“Demais. Posso perguntar uma coisa?”
“Claro que sim.”
“Você realmente acha que um porto-riquenho de 25 anos que
rouba caixas eletrônicos quer ser seu amigo? Não acha mais
provável que ele esteja querendo te comer?… Ainda tá aí?”
“Ele é só um cara legal. Ele é massa.”
“Amor, eu te amo, mas essa é a merda mais cretina que já ouvi
você dizer.”
“… Qual é seu problema, cara? Não confia em mim?”
“Confio. Só que não existe essa de cara legal. Acredita em mim.
Eu sou um dos caras mais legais, e ainda assim sou um merda
completo.”
“Não precisa se preocupar comigo.”
“Não tô preocupado com você. Tô preocupado é com esse filho da
puta.”
“Você não confia em mim.”
“Eu confio em você”
“Só que não.”
“Confio. Eu confio, porra. Amo você, cala essa boca, tá?”
“Também te amo.”
“É sério. Pra mim só existe você, entende? Você é tudo pra mim.”
“Eu sinto o mesmo.”
“Só tenha cuidado, tá? Porque tenho a sensação de que esse cara
é encrenca.”
“Vou ficar bem. Pode confiar em mim.”
“Confio em você. Não é isso. Só acho que ele pode ser encrenca.”
CAPÍTULO VINTE E CINCO

A infantaria estava empolgada e pronta para matar. Impacientes


para começar a matar. Queriam muito matar. Havia uma confiança
meio imoral em nosso poder de fogo. Uma certa camaradagem
fajuta. Às vezes, ter tantas armas e munição por perto era um
problema, como quando o soldado de primeira classe Borges
chamou o cabo Lockhart de viado e disse que a esposa de Lockhart
sabia que ele era viado, mas tinha se casado para poder ficar com o
dinheiro dele. Borges era meio gordo, e sabia ser um escroto
completo. Além disso, a metanfetamina tinha zoado a cara dele.
Tinha sido cafetão antes de entrar para o Exército. Gostava de
cafetinar, mas o país precisava dele. Falou que as putas dele ainda
mandavam cartas. Borges tinha uma sorte dos diabos, mas
Lockhart, não. Lockhart dizia que as pessoas confundiam sua
bondade com fraqueza. Mas, falando sério, o que as pessoas
tomavam por fraqueza era só fraqueza mesmo, como sempre
acontece. Naquela noite, Lockhart apontou a espingarda calibre .12
para Borges, e Borges falou: “Atira, viado”.
Lockhart disse que ia atirar.
Mas não atirou.
Eu estava me deslocando com o sargento North e seu esquadrão
no veículo principal. Íamos a uma base do Exército iraquiano Nossa
missão era conquistar os corações dos prestadores de serviço de lá.
Não sabíamos o que isso significava, mas tínhamos que tentar.
Chegamos na base sem incidentes, comemos falafel e bebemos
refrigerante Zamzam junto com os prestadores. O líder da patrulha
foi falar com não sei quem. Quando terminou, embarcamos de novo
e voltamos para a base. Isso foi após o toque de recolher.
Pegamos o caminho errado em algum ponto e nos perdemos,
então fomos parar do outro lado do rio, em frente à base.
Conseguíamos ver a base de lá, mas ninguém sabia como tínhamos
ido parar naquele lugar. Estávamos dirigindo por uma faixa estreita
de estrada, rápido e sem faróis. (Não usávamos faróis nunca.) Um
sedã branco apareceu em uma curva na estrada, e North se
comunicou pelo rádio. O último veículo virou para bloquear a
passagem, e o sedan não tentou contornar. Se tivesse tentado, teria
sido destruído. Foi por isso que não tentou.
North e eu saímos do caminhão e andamos até o sedan branco.
North parecia o Morrissey. Até onde sei, isso era tudo que ele tinha
em comum com o Morrissey. North era um matador. Era de Idaho,
mas se parecia com o Morrissey. Acho que ele tinha uns 23 anos.
Dois hajis estavam parados na estrada com as pernas e braços
afastados do corpo, sendo revistados. O mais velho tinha os pulsos
grossos de um estrangulador e um bigode severo. O mais novo era
agitado e sem barba, com aquele cabelo de jovem Elvis que tantos
hajis tinham.
Alguns soldados revistaram o carro. Dois cobriram os hajis. Um
dos soldados estava dizendo que os dois hajis provavelmente eram
namorados, e o outro soldado achou isso engraçado e disse que as
duas bichas nem faziam ideia de como tinham chegado perto de
serem metralhadas.
O líder da patrulha fez algumas perguntas ao haji de bigode sobre
o que eles estavam fazendo na rua tão tarde, de onde vinham e pra
onde iam. Um intérprete traduzia.
O carro estava limpo.
O rádio disse para deixar os hajis seguirem viagem.
O líder da patrulha falou ao intérprete: “Diga a eles que, a partir de
agora, precisam respeitar o toque de recolher. Para sua própria
segurança. Eles poderiam ter sido feridos aqui, e não queremos que
isso aconteça”.
Aí o intérprete disse alguma coisa. Não sei o que ele disse, mas
tínhamos que confiar. E foi isso.
O sedan branco seguiu viagem, rumo ao sul via sudeste.
Embarcamos e continuamos o trajeto, rumo ao norte via nordeste.
Não fazia nem um minuto que North estava dirigindo, quando disse:
“Para para para”.
Tinha um penetrador de forma explosiva ao lado da estrada.
Penetradores atravessam qualquer coisa. Os iranianos gostavam
deles, mas isso não é nada de mais. North viu o penetrador, e o
motorista parou antes de chegarmos ao mecanismo de ativação. Foi
por pouco, mas por pouco é só um jeito de dizer nada. Então nada
aconteceu. E conseguimos voltar à base naquela noite.

[ 01 ]a primeira pessoa a matar alguém.


A era cozinheira.
Ela usou uma calibre .50.
A Companhia Foxtrot estava trazendo um comboio de caminhões
com mantimentos de Bagdá, para montagem de um restaurante na
base. A soldado de primeira classe Livingston estava na torre de
metralhadora no alto do veículo. Provavelmente, alguém tinha
colocado ela ali como piada, porque ela não devia pesar nem
cinquenta quilos, a calibre .50 pesava, tipo, uma tonelada, e a torre
em si era difícil de movimentar.
De modo que.
O comboio foi emboscado — algum dispositivo explosivo, e então
tiros, mas Livingston se manteve calma. E talvez até tenha visto o
haji entre as palmeiras antes de acertar ele…
A infantaria toda ficou doente ao saber sobre a primeira morte.
Uma desonra: uma porra de uma , uma porra de uma garota.
E ela teria sido promovida, mas o lance é que ela foi pega
trepando várias vezes, porque ela trepava por dinheiro. Teve um
sargento que perdeu a insígnia por trepar com ela numa torre de
vigia.
(O sargento da guarda.) Disseram que ele ficava batendo na
bunda dela.
Ela era definitivamente comível.
Tinha um rosto bonito.
E era casca-grossa.
Um dos diamantes de Deus.
CAPÍTULO VINTE E SEIS

A Grande Cidade de Shia ficava bem ao sul da base. Ir até lá


significava dirigir por uma hora numa rodovia de quatro pistas
chamada Rota Carentan. O trânsito normalmente era pesado na
Carentan, mas isso tornava a rota segura, porque não era preciso
se preocupar com explosivos de solo.
Tinha um ponto em que a Carentan cruzava o rio, e você precisava
atravessar uma ponte flutuante, já que a antiga tinha sido
bombardeada durante a invasão. A Companhia Bravo vigiava a
ponte, e durante o dia muitos moleques haji ficavam por perto para
mendigar comida na margem do rio. Os garotos eram, em sua
maioria, franzinos e descalços. Tinha também uma garotinha às
vezes, que devia ter 7 ou 8 anos, ou que talvez fosse mais velha,
mas desnutrida. Tinha cabelo castanho, empoeirado feito um ninho
de passarinho, e o vestido parecia algo saído dos Flintstones.
Apelidamos de Pedrita.
Mantínhamos dois esquadrões de atiradores na delegacia da
polícia iraquiana, no centro da cidade, mas não importava. Não
comandávamos a cidade. Nem a polícia iraquiana. Era a milícia
Mahdi quem comandava. Tínhamos um cessar-fogo com os Mahdi
porque o alto escalão tinha decidido que eles eram uma dor de
cabeça grande demais para enfrentarmos. Os Mahdi eram Shia. E
tinham o apoio do Irã. Então não podíamos sacanear os Mahdi, e
não podíamos patrulhar a cidade. Podíamos ir até a central de
polícia e partir do mesmo jeito que tínhamos chegado. E isso era
tudo.
A delegacia tinha três andares, um jardim murado na frente e outro
nos fundos. Tinha uma cadeia lotada de presos. Uma vez os presos
cantaram todos juntos, e dava para ouvir do lado de fora; era lindo,
e você se sentia um cuzão.
Alguns dos policiais eram ok. Alguns eram uns desgraçados, mas
também nada de mais. E tinha, além disso, uma equipe que era
meio que uma haji, e os hajis na haji se achavam
grandes bostas; eles eram total e irremediavelmente iludidos, mas
se achavam bons. Usavam uma caminhonete compacta vagabunda
com uma metralhadora na parte de trás, todos empilhados uns em
cima dos outros parecendo idiotas completos. Nós odiávamos eles
pra valer, porque tinham tirado onda com a nossa cara, nos
mostrado vídeos de bombas improvisadas num player portátil.
Eles apontavam para a tela e diziam: “Você vê? Bom. Você vê?
Você vê? Bom, não?”.
Sim, sentíamos vontade de matar eles, e teria sido fácil, mas
ordens eram ordens, e tinham nos dito para aturar eles para o
benefício de seus corações e mentes. Foi o que fizemos.

no telhado da delegacia, de plantão, tentando entender a


mira de uma M14. Esse não era meu trabalho, mas tinha acabado
no telhado da delegacia com uma M14, e estava fazendo meu
melhor. Nunca tínhamos nem de perto o número de soldados que
deveríamos ter.
Um policial chegou e disse: “Senhor”.
Me ofereceu um cigarro, um Miami. Me chamou de irmão. Era um
dia de vento. Era preciso ser cuidadoso ao fumar um Miami num dia
de vento; um movimento errado e o Miami virava um monte de
cinzas num fulgor. Protegi o cigarro com as mãos. O policial haji
admirava minha forma. Ele ria de um jeito que fazia parecer que
queria me pedir algo. Eu disse que ele podia falar.
Me contou uma longa história sobre sua esposa aleijada: “A perna
está muito doente, entende?”.
Ele perguntou se eu tinha alguma morfina para dar.
“Você quer que eu te dê morfina?”
“Aha! Você não sabia, mas veja, eu também sei coisas de
medicina.”
“Sinto muito, mas não tenho nenhuma morfina que possa te dar.”
“Você tem morfina, sim?”
“Se te der morfina, vou arranjar problemas.”
“Você pode me dar a morfina?”
“Não.”
Ele parou de sorrir e disse algo em árabe. Soava como: “Filho da
puta”.
Na volta, os veículos pararam para aguardar na ponte flutuante. O
sargento North viu os moleques descalços e a Pedrita, e teve uma
ideia. Ele abriu a porta e chamou a Pedrita. Acenou com uma
refeição do Exército na mão, acenou para ela. Ela correu para pegar
a refeição, e North, que aliás sobrevivera à missão sem um único
arranhão, puxou a refeição das mãos dela e fechou a porta do carro
blindado, achando que era engraçado.
Nos dias em que não era nossa vez de ir até o posto de polícia,
éramos mandados para o meio do nada, para recolher projéteis não
detonados. Levávamos detectores de metais. Às vezes,
encontrávamos velhos campos minados. Era chato pra caramba.
Estávamos fazendo isso perto de um antigo quartel. Tinha sido
bombardeado em uma das guerras, e todos os prédios foram
reduzidos a ruínas. Eu estava dando uma olhada. Comecei a pensar
em Emily, tentei imaginar o que ela estava fazendo. Imaginei ela
almoçando, provavelmente comendo algo com lentilhas. Aí lembrei
que no lugar onde ela estava não era horário de almoço.
Tinha uma bomba antiga da Força Aérea no chão do deserto. Não
tinha explodido quando foi lançada. Tinha rachado, e uma espuma
verde tinha saído dela. Nosso pessoal se revezou posando para
fotos ao lado da bomba.
O tenente ligou solicitando nossa presença.
No rádio avisaram para sair de perto da bomba.
Naquele mesmo dia, três vans com explosivos mataram 140
pessoas do lado de fora de uma mesquita próxima à delegacia. O
Primeiro Pelotão estava lá quando aconteceu. Alguns foram para o
teto da delegacia e filmaram tudo que conseguiram com suas
câmeras digitais. Assisti aos vídeos, mas na verdade não dava para
enxergar nada.

patrulha aconteceu em um conjunto de


apartamentos ao norte da Grande Cidade de Shia. Nos movemos
em formação em V por um longo trecho de terreno aberto, com um
monte de janelas logo acima de nós. Tinha chovido. Pensei, Essa é
uma bela maneira de ser baleado.
Tudo que tinha era uma pistola 9mm, enquanto todos os outros
tinham armas de verdade; me senti um idiota. Perguntei ao sargento
mais próximo de mim: “Eu devo ficar com minha arma empunhada?
Porque sei lá. Parece meio estúpido”.
O sargento Green tinha sido policial em Nova York. Ele havia se
alistado após o 11 de Setembro. Diziam que tinha matado quinze
hajis em 2003. Ele não era de brincadeira.
Ele disse: “Cala a boca”.
Então saquei a pistola e fiz meu melhor, mas tinha decidido
arranjar uma arma mais potente quando voltasse para a base.
Encontramos um bocado de material para bombas no apartamento
de um capitão da polícia iraquiana, e ele foi preso. Encontramos
também uma dúzia de morteiros e cápsulas de 155mm no terreno
atrás dos edifícios. As 155 eram as grandonas. Se uma bomba
fosse atingida por dois projéteis 155 e você estivesse num dia ruim,
esse provavelmente seria seu último dia ruim. Voltamos para a base
com tudo que recolhemos rolando pelo assoalho do veículo,
imaginando se iríamos pelos ares de repente.

Grande Cidade de Shia para a Ashura. [ 02 ] Cem mil


peregrinos estariam lá. No mínimo cem mil, por isso esperávamos
ataques. Naquela semana, um pelotão inteiro ficou na central de
polícia.
Eu estava de guarda junto ao rádio. Era madrugada. O Dia dos
Namorados estava próximo e tinha um laptop com internet na sala
de rádio, então tive a ideia de encomendar umas flores para Emily.
Tinha meu cartão de débito comigo. Pedi para o sargento Castro, e
ele disse que podia usar o computador. Castro era tranquilo. Entrei
na internet e achei uma orquídea pela qual eu podia pagar: 110
dólares. Tinha que ser uma orquídea; nada mais serviria.
Não consegui bolar nada decente para escrever no cartão. Acho
que estava cansado. Acabei digitando o buquê de parênteses de
Seymour: Uma Introdução, de J.D. Salinger. Achei que ela
entenderia. Escrevi “amor” e minhas iniciais.
O sargento Castro perguntou se eu era um moleque rico.
Disse que não muito, mas também nunca tinha passado fome nem
nada.
De manhã, fiquei no jardim dos fundos, de vigia, como acontecia
com frequência, e percebi que era manhã porque as varejeiras
começaram a voar. As varejeiras pousavam nos seus lábios e aí
davam uma volta. Aí elas iam encher as patas de merda mais um
pouco. Tinha merda por tudo, então era fácil, e aí elas voltavam e
ficavam mais um pouco nos seus lábios. Era tão intenso que você
só percebia quando elas não estavam por perto.
Ouvi uma gritaria, e logo dois policiais iraquianos passaram pela
porta, entrando no jardim. Brigavam um com o outro por uma Glock
9mm. Pareciam detetives de dos anos 1970, com suas calças de
tergal, bigodes e jaquetas de couro. Eu sabia que a arma estava
carregada; pessoas não lutam por armas descarregadas. E era uma
Glock, então não tinha trava de segurança. Não sabia se devia atirar
neles.
Então só assisti. Outros policiais haji apareceram e separaram os
dois, e aí um deles fugiu e alguém atirou um sapato.

chegaram sob um céu branco. O imã tinha sido


martirizado no local em que ficava a grande mesquita mil anos atrás,
a mesquita tinha seu nome. Foi isso que o oficial de inteligência
falou.
O minarete tocava versos, e aí uma enorme e lenta batida soava e
os homens atingiam a si mesmos com facas, em uníssono. Eu
estava no alto da barricada e vi isso tudo. Um mar de negro. Nuvens
de poeira desapareciam no ar. Nada tinha mudado em mil anos.
Quando tento me lembrar de como eram os versos, ou da batida,
não consigo voltar inteiramente. Estou sempre à margem daquilo.
Sei como foi, qual a aparência, mas não consigo ver. Não tinha uma
câmera. Não gostava de levar câmeras comigo. Creio que eu
achava que, se os hajis me pegassem vivo, não gostaria que me
filmassem com minha própria câmera quando me decapitassem
com uma serra.
Alguns dos policiais iraquianos me mostraram os cortes onde
tinham se golpeado. Os cortes eram medíocres. Era como se quase
os tivessem feito de verdade, só que não.
Na última noite de Ashura, um haji tentou pular o muro dos fundos
da delegacia, e o sargento Bautista acertou o traseiro dele com um
rojão sinalizador. Eu estava lá. O haji fugiu. Poderíamos ter atirado
mais vezes nele, com balas de verdade, e ninguém teria reclamado,
mas éramos molengas, então não atiramos.
Na ponte, no caminho de volta, dei uma refeição para Pedrita. Ela
segurou com força contra o peito e saiu correndo, mas um dos
garotos descalços alcançou, acertou um soco na cabeça dela e
pegou a refeição. Ela estava sentada na poeira quando nos
afastamos.
CAPÍTULO VINTE E SETE

Não teve qualquer aviso prévio; os sargentos chegaram dizendo:


“Peguem as merdas de vocês.”
“Vamo vamo, bora bora.”
E assim por diante.
O soldado de primeira classe Borges estava inalando o detergente
em gás usado pra limpeza de computadores quando o sargento
Castro começou a bater na porta. Borges levantou para atender,
mas estava chapado demais, caiu e cortou o lábio. Teve que ir ao
posto de emergência para ser costurado bem rápido.
Foi um mau começo para a Operação Honra Brilhante. Mesmo
assim, partimos para o norte via nordeste.
Nosso trabalho era cansativo e não teríamos muita sorte, porque
os haji sabiam que estávamos chegando; não dá pra surpreender
ninguém chegando num blindado.
Tinha um monte de mulheres e crianças, e alguns velhos. Não se
via homens em idade de combate por lá. Ou eles tinham virado
prestadores de serviço para o Exército, ou estavam na polícia, ou
estavam mortos, ou estavam detidos, ou estavam se escondendo
em algum outro lugar.
Um grupo de combate se deslocava pela estrada que costeava o
rio. Granadas explodindo, artilharia de metralhadoras — parecia
algo sério. Nosso grupo se abrigou do outro lado da estrada. Menos
Borges e eu. Nós rastejamos para o lado do combate e visualizamos
a margem mais afastada do rio. Era meu primeiro dia armado com
um rifle. Tinha trocado com Yuri pela minha pistola. Estava vendo se
tinha alguém em quem pudesse meter chumbo.
Não levou nem um minuto, nem trinta segundos. Os disparos
pararam. Os tiros tinham sido reais, mas não tiveram nada a ver
conosco. Os sargentos North e Castro estavam rindo do outro lado
da estrada. Eles já tinham feito esse tipo de coisa antes. North, que
acabava de ser promovido, tinha feito parte de um batalhão em
2003, quando havia acertado um haji em cima de um telhado.
Castro era ex-fuzileiro naval, e tinha estado em Fallujah em 2004.
Ele disse: “Vamos lá, doutor. Não banque o idiota. Você não deve ir
em direção aos tiros”.
Falei alguma coisa. Ainda assim sabia que parecia um idiota
falando.
“Ok”, ele respondeu. “Se você diz. Mas, da próxima vez, corra no
sentido contrário.”
Até Borges estava rindo de mim, e ele tinha feito exatamente a
mesma merda que eu. Na verdade, apenas o segui. E ele tinha
deslizado por aquele acostamento rápido pra valer, mas ninguém
iria tirar onda com a cara dele; Borges já não era novato, então se
ele quisesse pisar na bola e tomar um tiro, era por conta dele.
Voltamos por onde tínhamos vindo, e paramos numa casa vazia
que fazia frente para o rio. No meio do rio, tinha uma ilha lotada de
tamareiras. North carregou seu lança-granadas com uma carga
explosiva e disparou na ilha, e funcionou exatamente como
esperado. Esse era North se comportando mal. Decepcionado
porque estava no lado errado do rio, e porque sabia que não iria
matar ninguém.

Heyward tinha sido demitido. O motivo era que ele ficava


envolvendo a gente em relatórios fictícios. Tinha feito várias
declarações oficiais relacionadas a todos que integravam a Unidade
de Resposta Rápida 1, no Natal. A declaração oficial dizia que
estávamos todos a, no máximo, cinquenta metros do do
batalhão quando o foguete o atingiu. E isso não era verdade.
Estávamos muito mais longe. Se estivéssemos mesmo a menos de
cinquenta metros, teríamos ganhado crédito por combate, e
Heyward, uma Insígnia de Combate em Infantaria, o que era bom
quando se queria acumular pontos para uma promoção. Ele fez
todos assinarem declarações que ele tinha escrito sozinho, e aí
entregou elas. Quando essas declarações bateram na trave e
voltaram, ele fez tudo de novo, e nos fez assinar de novo. E aí,
quando ele entregou os relatórios de novo, foi demitido por isso.

as pessoas atiravam, meu cérebro estava em


outra parte. Eu meio que estava fora de tudo. Perguntei se a Emily
tinha recebido a orquídea que eu encomendei e ela disse que sim.
Bom, e o que ela tinha achado? Tinha achado idiota. Por que tinha
achado idiota? O que o cartão queria dizer? Era o buquê de
parênteses de Seymour: Uma Introdução. Dei esse livro para ela na
época em que nos conhecemos. Achei que ela gostaria da história
do velho calado, que fumava e bebia. Ela disse que havia gostado
do livro. Será que tinha chegado a ler?
Contei sobre isso para Yuri. Ele falou: “Ela tá escondendo alguma
merda, não tá não?”.
Ele disse que eu era um imbecil da porra.
Isso queria dizer que ela estava escondendo alguma coisa?
Falei: “Yuri, só me responde sim ou não. Ela tá escondendo
alguma coisa?”.
CAPÍTULO VINTE E OITO

Eram dez da noite, e a Companhia Delta tinha acabado de ser


atingida pelo enésimo explosivo improvisado num período de oito
horas. O batalhão estava acumulando baixas. Fomos enviados em
patrulha. Quando a rampa baixou para desembarcarmos,
estávamos perto de algumas casas. O primeiro-sargento da nossa
companhia, sargento Hightower, tinha vindo junto. Ele era um sujeito
grande e durão; parecia empolgado. A porta na primeira casa era
feita de folha de metal, como a maioria das portas por lá, mas essa
estava cheia de buracos de bala, e a luz de dentro escapava pelos
buracos. Erguemos nossos visores noturnos, estávamos hesitantes;
aí o sargento Hueso-Santiago chegou correndo, como nos filmes,
arrombou a porta, e entramos atrás dele. Do lado de dentro, havia
as onipresentes mulheres e crianças e o eventual sujeito velho.
Estavam todos juntos contra a parede. A estava ligada.
Revistamos a sala. Um baú de madeira em cima de uma mesa
estava cheio de roupas, e tinha uma -47 enrolada numa camisa
com dois cartuchos. Não era nada de mais, era permitido que
tivessem uma dessas, mas o sargento não sabia disso, ou
momentaneamente esqueceu, porque ele pegou a -47 e parecia
conversar com ela quando saiu da casa, dizendo: “Ah sim, te
peguei. Peguei você”.
Era a primeira missão do sargento.
Ainda havia terreno a percorrer antes da próxima casa, mas
mantivemos a calma e logo chegamos lá. Nos reunimos e
arrebentamos a porta da frente, e a sala dava para outras quatro
portas. Todos estavam usando visão noturna. Ninguém falava nada.
Fomos avançando sem pensar muito; cada um derrubava uma
porta. Eu estava na frente de uma delas; nunca tinha arrombado
uma porta antes e tive receio que meu chute fosse insuficiente. A
folha de metal cedeu fácil, e as dobradiças desmontaram. Era uma
sala pequena. Não tinha nenhum haji, apenas cabras: uma mamãe
cabra e seus bebês cabritinhos.
Alguma coisa estava acontecendo atrás de mim. Quando me virei,
vi um haji pelado lutando com o soldado Miller. Miller estava na
Companhia Eco havia apenas três dias. Tinha acabado de sair do
treinamento. E agora isso. Ele pisou com a bota na parte de trás do
joelho do haki e puxou pelo comprimento da tíbia. Mesmo antes de
Hueso-Santiago poder fazer alguma coisa, a luta tinha acabado. O
haji pelado ficou no chão. Ele era jovem, em idade de combate.
Tinha uma mulher, também. Ela estava contra a parede mais
afastada do quarto. Estava enrolada em um lençol. Havia uma -47
pendurada na parede próxima à porta.
Miller disse: “Ele tava tentando pegar a , sarja”.
Ele falou como se achasse que isso era um problema.
Hueso-Santiago respondeu: “Você fez certo”.
Alguém trouxe um velhote e sua esposa para fora do quarto. O
velhote e a esposa viram tudo que tinha acontecido, o velho
começou a gritar, e a senhora, a tremer. O primeiro-sargento queria
interrogar o velho, mas o velho não cooperava. Ele disse algo ao
intérprete; soava como Que porra é essa? O primeiro-sargento
apontou para mim e disse ao velho que eu era médico.
Alguém perguntou se a perna estava quebrada.
Mexi na perna. Senti. Prestei atenção no som. Tive a impressão de
que não sabia o que estava fazendo. Falei: “Pode estar quebrada”.
Mexer na perna causou muita dor a ele.
E ele continuava pelado.
Falei: “Será que alguém pode arranjar uma porra de um vestido de
homem pra esse cara ou algo assim?”.
Pedi ao intérprete para dizer que o haji precisava ir a um hospital.
O intérprete usava uma máscara de esqui.
Dei ao haji alguns ibuprofenos de 800 mg. Miller tinha enrolado um
lençol em volta da cintura do cara. Coloquei mais alguns
ibuprofenos num ziploc, e deixei o saquinho do lado dele no chão,
porque tinham algemado as mãos dele para trás, com aquele lacre
de plástico.
Os hajis todos estavam sentados no chão, sob a mira dos rifles,
todos de cara fechada. Os soldados fumavam cigarros e o sargento
fazia perguntas.
No rádio, disseram para não prender ninguém.
Era hora de ir embora.
“Nenhum mal, nenhum crime”, disse o primeiro-sargento.

passamos à casa seguinte.


O sol tinha nascido. Alguns de nós fomos apresentados ao novo
líder do Terceiro Pelotão. O segundo-tenente Evans. Era um filho da
puta de aparência meio engraçada, tipo um jovem Tom Hanks, mas
parecia sensato.
Estávamos na área de encontro, no deserto no limite da cidade.
Eu estava no compartimento de tropa do veículo blindado, agora
sob o comando de Evan, ouvindo o rádio do batalhão. No rádio
disseram que um de nossos caras tinha sido ferido em algum lugar.
Comunicaram o código de combate: hotel hotel charlie eco yankee
três três meia meia.
Falei: “Esse código é do Yuri!”.
Miller não sabia quem era Yuri.
Revistamos casas o dia todo.
Borges atirou na cara de um cachorro.
Tiro de projétil encamisado.
Nada mais aconteceu.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

No último dia da Operação Honra Brilhante, alguns de nós foram


mandados a uma escola, para montar uma clínica para os hajis. Um
monte de hajis esperava numa fila do lado de fora. Um haji mais
velho tinha lacerações nos pulsos. Ele disse que as lacerações
eram por causa de algemas plásticas usadas nele alguns dias
antes. Lavei os machucados com solução salina, apliquei
bactericida e fiz curativos. Uma de suas mãos estava inchada e
tremia muito. Parecia sério, mas eu não tinha certeza, e não sabia o
que dizer pra ele. Então fui perguntar aos médicos seniores do
quartel-general que tinham vindo junto para ajudar com a clínica.
Eles estavam dormindo num caminhão. Acordei eles e contei sobre
o haji velho, perguntei o que achavam que tinha de errado com ele.
Um dos médicos disse que era celulite infecciosa.
Falei: “Não tenho antibióticos nem nada. Você tem?”.
Ele disse: “Não”.
“O que posso fazer por ele?”
“Nada.”
“O que digo pra ele?”
“Diz pra comer merda e morrer.”
Voltei e pedi ao intérprete que dissesse ao velho haji para ir ao
hospital e tentar conseguir antibióticos com um médico, porque eu
não tinha medicamentos.
Eu não tinha nada.
Eu não sabia nada.
Uma mãe trouxe o filho, de uns 7 anos. Ele tinha uma laceração
profunda na mão direita. Não havia nada que eu pudesse fazer além
de um curativo.
Um fotógrafo do Army Times, o jornal do Exército, tirou uma foto
enquanto eu fazia o curativo. Esse era o tipo de merda que
acontecia.
A infantaria estava fazendo a segurança do lado de fora. Tinha
uma dúzia de moleques em volta, e Borges estava mostrando a eles
o gesto popularmente conhecido como “shocker”. Ele pôs os dedos
na posição.
E disse: “Dois no rosinha, um no marrom”.
E o pessoal todo: “ !”.

estrada, voltando para a base. Eu ia no


compartimento da tropa do caminhão de Evan, e me dei conta de
que era a primeira vez que eu tinha ficado inteiramente sozinho
desde que deixamos Fort Hood. Então bati uma punheta num
guardanapo. E aí mijei numa garrafa plástica. Ela ficou bem cheia, e
aí coloquei a porra na garrafa também, e joguei tudo fora pela
escotilha da rampa. Deitei e dormi. Não tive sonhos. Quando
acordei estávamos parados. Bati na porta da torre. O vigia disse que
tínhamos passado por cima de algum dispositivo explosivo, mas que
não tinha detonado. A Unidade Antibombas estava desmontando ele
com um robô. “Dois dispositivos de 155mm”, ele explicou.
Jesus.
CAPÍTULO TRINTA

O soldado de primeira classe Cecco e o especialista Greenwald


estavam passando a noite no posto de emergência. Helicópteros
Black Hawk os levariam a Bagdá na manhã seguinte. De Bagdá,
iriam para o Kuwait, do Kuwait para a Alemanha e da Alemanha
para os Estados Unidos. Em algum ponto do caminho,
providenciariam caixões para eles.
Tinha um batalhão em formação na zona de pouso. Era apenas
nosso segundo recebimento de corpos, e os veteranos ainda faziam
um estardalhaço como se o cuzão fosse você. E você se
acostumava.
Cecco e Greenwald. Eram apenas nomes pra mim. Nunca tinha
falado com eles. Não sabia se já tinha visto eles. Mortos por policiais
iraquianos. Foi na Rota Carentan. O penetrador de forma explosiva
atravessou a blindagem sem problema nenhum. Esmagou a cabeça
de Cecco. Cortou Greenwald ao meio — ele se espalhou todo pela
torre de metralhadora.
Os Black Hawks não ficaram nem dois minutos na zona de pouso.
Alguns médicos trouxeram os sacos com os corpos. Quando os
médicos terminaram, os Black Hawks partiram. O sargento do
batalhão nos dispensou. E então outros dois helicópteros
começaram a se aproximar. Eles apareciam de longe contra o céu
cinzento, e ficamos fazendo hora para ver o que estavam trazendo.
Os dois novos Black Hawks pousaram, e um monte de mulheres
lindas saíram deles. As mulheres acenavam, saltavam e tinham
dentes muito brancos. Não sabiam de nada do acontecido; mesmo
assim foi péssimo.
As líderes de torcida do Denver Mustangs se apresentariam no
refeitório por uma hora, conversando com os soldados, tirando fotos
com eles. Mulheres lindas, com a pele dos mais caros cremes. Elas
nos visitaram, mesmo que não por muito tempo.
Não fui ver elas. Elas não iam trepar com a gente. E era disso que
se tratava: era para você sentir vontade de trepar com elas, mas
elas não podiam trepar com você.
Se você fosse um jogador de beisebol, elas trepariam com você.
Elas permitiriam que você as desgraçasse.
Mas você não era um jogador de beisebol.

nada com os policiais iraquianos, mas, uma noite,


parte da Companhia Eco foi colocada como barreira nos limites da
Grande Cidade de Shia, cerca de uma semana depois das mortes
de Cecco e Greenwald. Tínhamos de bloquear e impedir qualquer
pessoa de entrar ou sair enquanto as Forças Especiais revistavam
um complexo Mahdi.
Uma voz no rádio, em tom infernal, disse que estavam prontos.
Eles mataram um monte de hajis, quarenta dos pobres diabos.
Levou apenas alguns minutos. Não fizemos nada além de aguardar
em nosso posto. Nem ouvimos nada. Nem teríamos ficado sabendo
dos quarenta hajis mortos se eu não tivesse lido no site do Yahoo!
News no dia seguinte. Me perguntei como tinham feito.
Enfim. Foi quando me dei conta de que não estávamos lá para
fazer porra nenhuma. Servíamos para propósitos como ser
explodidos por uma bomba ou ter o nosso tempo desperdiçado com
todo tipo de baboseira, mas ninguém achava que poderíamos servir
para combate de verdade, seja lá o que isso significasse.
fora da jogada, todo zoado e incapacitado de retornar, o
Primeiro Pelotão estava novamente sem médico próprio, e acabei
sendo utilizado na maioria das patrulhas deles, além das que já
fazia com o Terceiro Pelotão. Então eu estava em um porrilhão de
patrulhas. Já estava bastante exausto; mas, por outro lado, me
sentia assim o tempo todo, porque estava esperando a guerra
finalmente acontecer para mim.
Quando saía com o Primeiro Pelotão, normalmente ficava no
blindado do sargento Cave. O soldado Rodgers dirigia. O
especialista Clover ficava na artilharia. Eram todos caras durões,
sem meias-palavras. Diziam que queriam matar alguém, qualquer
um. Era simples assim, mas não tinha ninguém para matar, então só
zanzavam e, quando não estávamos circulando, falávamos sobre as
drogas que já tínhamos tomado, que tipo de merda já tínhamos
feito, quanto pagávamos por uma pastilha de ecstasy quando ainda
fazíamos parte do mundo, coisas desse tipo. Clover era quem tinha
descolado o ecstasy mais barato, mas Rodgers tinha visto um cara
ser metralhado por uma Uzi uma vez. Então essa ele ganhou.
Tirei meu capacete. Clover, do compartimento da artilharia, viu o
cartão que eu tinha colado com fita na frente do capacete.
“O que é?”
“É um card do Herman Thompson, aquele running back”. [ 03 ]
“Por que você tem o Herman Thompson dentro do seu capacete?”
“Minha esposa tinha uma queda por ele na época da escola,
começo dos anos 1990, quando ele jogava no Buffalo Bills e eles
estavam no campeonato todo ano. Uma vez fiz piada com isso, e
ela me mandou esse card junto com uma carta onde dizia pra eu
tomar cuidado e não ser morto, ou ela iria trepar com o Herman
Thompson. Aí eu colei o card no capacete como um lembrete pra
não morrer.”
“Isso é zoado.”
“Paguei 110 dólares por uma orquídea no Dia dos Namorados, e
ela deu pra vó dela.”
“Que merda.”
Rodgers me perguntou se eu tinha medo de ser ferido. Respondi
que preferia não me ferir, se tivesse escolha. Rodgers disse que
queria ser ferido porque se você é ferido, é condecorado e ganha
licenças de caça e pesca gratuitas pelo resto da vida.
Clover perguntou: “Você não quer ganhar a medalha de Coração
Púrpura, doutor?”.
“Não muito.”
“Ei, doutor”, Caves disse, “saca isso aqui.”
Ele estava segurando uma granada pelo pino.
Falei: “Bela granada”.
Sabia que estavam de sacanagem comigo. Me achavam um
cuzão. Eu tinha feito umas cagadas, e eles ficaram sabendo. Tinha
saído junto com a equipe de Resposta Rápida, algumas noites
antes, para atender um dos snipers do batalhão que tinha caído de
um telhado e dizia estar ferido. Ele disse que estava tão machucado
que precisava de morfina antes de ser levado para o posto de
emergência. Eu não era de negar morfina para ninguém e estava
prestes a usar a pistola de injeção de 15mm na perna dele, mas
estava segurando o negócio ao contrário, e a agulha entrou no meu
polegar e atravessou a unha, esguichando a morfina no chão.
Várias pessoas viram isso acontecer. E teve outra cagada, quando
entendi como é difícil achar uma veia numa vítima de queimadura
da vida real. A pele parece borracha, e a agulha parece tão cega
quando uma colher. Evans tinha me visto furar um ferido cinco
vezes sem achar a veia. Tive certeza de que me mandariam de volta
para o posto de emergência, mas não mandaram.

, cabaços, recebemos nossas insígnias de combate na


Páscoa. Não era o tipo de insígnia como o Distintivo de Médico de
Combate, ou algo que você pelo menos tinha que tomar um tiro ou
sei lá para ganhar. A insígnia de combate não tinha nada a ver com
combate de verdade. Era só uma insígnia de unidade, em geral a da
divisão, e você a usava na manga direita para todos saberem que
você tinha sido enviado a uma área de guerra e tinha ficado lá ao
menos um pouquinho, uma vez. Em resumo, era um grande nada,
mas todos da companhia que estavam na base — só matando
tempo, ou talvez dormindo um pouco, ou limpando as armas, ou
fazendo manutenção, ou vendo pornografia, ou jogando cartas, ou
inalando solvente — foram convocados pelos líderes de esquadrão
a pararem de fazer o que estavam fazendo e irem até a fileira de
veículos para se reunirem em formação.
Trouxeram uma caixa de som. Estava sobre o concreto, ligada
numa extensão que vinha do galpão dos mecânicos. Sacamos que
algo estava rolando, e aí descobrimos que iríamos receber nossas
insígnias de combate. Ninguém se importava. Era só inconveniente,
então reclamamos. Rodgers falou bem alto que podiam ficar com a
insígnia, se ele pudesse participar de algum combate real.
O primeiro-sargento Hightower chegou e pôs a companhia em
sentido; então veio o capitão e disse algumas palavras. Ele
agradeceu nosso trabalho duro e falou algumas outras coisas.
Quanto disse tudo que tinha para dizer, mandou o sargento ligar a
caixa, e a música do Toby Keith começou a tocar. E aí, quando a
música atingiu um crescendo, quando Toby fala sobre chutar
traseiros e como isso é o que os fazem melhor, o capitão deu a
ordem: “Apresentar… insígnias!”. Foi engraçado demais, e não
conseguimos controlar o riso. Não queríamos participar daquilo; mas
não podia ser evitado. Entregaram as insígnias. Foi estranho, mas
nos deram as insígnias. Dava para perceber que o primeiro-
sargento estava irritado por não temos sido tão solenes quanto ele
gostaria, e depois de nos entregarem todas, ele nos fez ficar em
fileira e mandou um direita, volver, e nos fez marchar até a fileira de
veículos, onde ele basicamente nos fritou no calor da tarde. Ele
realmente mandou ver: muitos Frente-Costas-Vai e os polichinelos-
estrela — estes sendo simplesmente a forma mais infame de
exercícios. O mais louco foi que ele obrigou não só nós, mas
também vários subsargentos a fazer os exercícios. Para nós
soldados foi a coisa mais doida do mundo, já que nunca tínhamos
visto suboficiais sendo mal utilizados daquele jeito.

bem, mas acho que foi umas duas semanas depois disso.
Saí em uma patrulha de recenseamento com o Terceiro Pelotão.
Cheetah estava dirigindo. Cheetah era um merda. Ele adorava
Faces da Morte, e era quase certeza que pornografia infantil
também. Ele comprava todas as facas bregas que encontrava nas
lojinhas hajis, e colocava elas todas numa chapa de compensado,
na parede em cima da cama dele. Naquela manhã ele estava
dirigindo, e achei que isso era idiotice, ele nem sequer era da
infantaria. Tinha o ranking mais baixo de todos os s na
companhia, e ele sequer era bom em sua função, porque era punido
pelos superiores o tempo todo, sendo o tipo de desgraçado que
puxava uma faca por qualquer bobagem. Mesmo assim, ele saiu da
base com a gente, e inclusive estava dirigindo. Tinha algo a ver com
ele ter prometido ao primeiro-sargento que não seria um merda o
tempo todo, se ao menos pudesse sair da base um pouquinho e se
sentir parte do time.
O tenente Evans estava no banco do carona. Perez, na torre. Eu
estava na parte de trás. Nem Cheetah, nem Perez eram cidadãos
americanos. Cheetah era da Somália. Perez, de algum lugar no
México. Me perguntei sobre as implicações disso. Acho que os dois
gostavam mais dos Estados Unidos do que eu. Qual era o meu
problema? Conduzíamos o blindado líder em uma patrulha com três
veículos. Era meio da manhã. Os três veículos seguiram para o
norte na Rota Polk e viraram à direita, saindo da rodovia e
acessando uma trilha que contornava um importante canal de
irrigação. A trilha terminava a 150 metros de algumas casas onde
seria realizado o censo daquele dia. Falei a Evans que ele não
deveria dirigir pelo terreno entre a estrada e as casas. Disse que
precisávamos desembarcar e ir andando pelo resto do caminho.
“Por que não vamos de carro?”
“Os caminhões não podem passar por ali, senhor. São pesados
demais. Vamos ficar atolados.”
“Acho que não vamos atolar.”
“O terreno parece bom porque a parte de cima seca com o sol,
mas é pura merda abaixo da superfície. Confia em mim. Já vi isso
antes. O tenente Heyward atolou três veículos num trajeto idêntico a
esse. Você não lembra do tenente Heyward porque ele foi demitido
antes de você chegar na companhia, senhor.”
“Não sei não”, ele disse. “Acho que vamos tentar mesmo assim.”
O caminhão não andou nem vinte metros e atolou. Evans avisou
Cheetah para voltar, mas o caminhão não tinha como voltar, e
Cheetah também não sabia o que diabos estava fazendo. Aí Evans
queria que o caminhão de North viesse para nos rebocar. “Não é a
melhor ideia, senhor. Foi isso que o tenente Heyward fez, e não
funcionou. Só vai dificultar mais as coisas para a Unidade de
Resposta Rápida quando chegarem aqui. Precisamos de um tanque
com um cabo de aço.”
“Quieto.”
Aí depois que os três caminhões estavam atolados, Evans
contatou a base para que a Unidade de Resposta Rápida nos
tirasse dali. Era tudo que ele podia fazer; ou isso, ou desertar e se
juntar aos hajis.
A Resposta Rápida chegou. Eram do Primeiro Pelotão, um tanque
seguido de três blindados. O tanque Bradley chegou destruindo a
trilha, foi direto para o lodo e ficou enterrado até a metade. Foi o fim
do resgate. Parecia que ficaríamos atolados o dia inteiro, então subi
para a torre. Tinha um haji observando a gente de uma das casas.
Pensei que ele devia ter achado nossa situação curiosa, então não
liguei. Ele ficou entediado e depois de um tempo foi embora.
O sargento Caves estava lá. Ele tinha vindo com a Unidade de
Resposta Rápida e estava falando merda com North. Comentavam
a merda que o dia havia se tornado. Conversavam sobre os lugares
onde iriam caçar quando voltassem aos . O batalhão nos
contatou por rádio e disseram que a Resposta Rápida deveria voltar
à base e depois nos buscar com um caminhão-guindaste. O tanque
teria que esperar.
A ordem foi passada. A Resposta Rápida partiu, e Caves foi com
eles.
Ouvimos uma pancada seca. Havia fumaça subindo rumo ao céu.
Perguntei a Evans se a Resposta Rápida tinha um médico com eles.
Ele falou no rádio: “Eco um meia, aqui é eco três meia”.
Uma voz respondeu no rádio. Era o tenente Nathan. “Ahm…
esse… ahm… não é um bom momento.”
A Resposta Rápida não estava longe. Evans mandou North e
alguns soldados com extintores de incêndio para tentar ajudar. O
meio mais rápido de chegar à estrada de terra era através do canal
de irrigação. Como era profundo, tivemos que nadar para
atravessar. Estávamos pesados por causa dos extintores, armas,
coletes, equipamentos, toda essa merda, e tivemos dificuldade em
não afundar naquela porra. Perez quase se afogou, e Cheetah teve
que puxar ele pra fora. Fui o primeiro a chegar do outro lado.
Rastejei barranco acima e, assim que me coloquei de pé
novamente, vi um caminhão branco descendo pela estrada, vindo
na nossa direção. Saquei meu rifle e apontei para onde achei que
estaria o rosto do motorista. Tirei a mão esquerda da arma e fiz sinal
para que parasse. Se ele não parasse, ia tentar matar ele, mas ele
parou. Fui até a porta do motorista. Tinha dois hajis na cabine. Vi
North e o intérprete chegando à minha direita. North pediu ao
intérprete para dizer aos hajis que nos dessem carona. Subimos na
caçamba do caminhão. Descemos a uns cem metros do local onde
estava a Unidade de Resposta Rápida e corremos pelo restante do
caminho.
Perto da traseira do blindado, tinha um buraco na estrada e, ao
longe, outro blindado queimava. Havia um assento carbonizado
jogado de lado na estrada. O especialista Farley estava lá, olhando.
Perguntei: “Onde estão os feridos?”. Ele respondeu: “Todos
morreram, seu idiota”. Olhei de novo e vi o corpo do operador de
metralhadora. Ele estava todo queimado, pedaços do seu colete
ainda presos ao torso, pernas dobradas, fêmures e tíbias e fíbulas
com tecido preto, braços derretidos, o corpo esviscerado caído
sobre as próprias tripas, rosto destruído; a cabeça, um crânio. O
cheiro é algo que você já conhece. Já está gravado no seu sangue.
A fumaça entra em cada poro e cada glândula, sua boca fica tão
cheia dela que é como se você estivesse comendo. Os soldados
estão usando um cooler, latas de munição, qualquer coisa quem
tenham à mão para levar água, numa corrente, até o incêndio. Os
extintores acabam rápido. O novo médico do Primeiro Pelotão, um
veterano chamado Jackson, está gritando sobre como todos
precisamos ficar em alerta. Ele é o único na estrada preocupado
com a segurança e ele está certo, mas ninguém dá a mínima. Tirei
meu capacete e fico indo e voltando entre a água e o fogo, levando
água, e não me dou conta do quanto isso é idiota; mas estamos
todos obcecados em apagar o incêndio, mesmo que todos estejam
mortos pra caralho e que não haja qualquer motivo para ter pressa.
O fogo foi apagado e, com os três corpos, mais o da estrada, são
quatro baixas: Caves, Rodgers, Clover e o quarto eu não sei quem
é. Metade do batalhão está em fila na estrada. Desço andando por
ela e aceno para o primeiro operador de metralhadora que vejo.
Levanto quatro dedos para o operador, e mexo a boca dizendo sem
som: “Sacos para corpos”. Viro para voltar, mas então olho duas
vezes, porque Clover vem caminhando pela estrada. Digo, Achei
que você estava morto. Digo que tinha achado que ele estava no
caminhão. Ele diz que naquela manhã era pra ele ter saído para
duas semanas de folga; mas no fim, o voo foi cancelado. Respondo,
Porra, achei que você já era um fantasma, e porra, sinto muito pelos
outros caras porque sei que vocês eram todos próximos, e quem era
o operador de metralhadora? Ele diz que era Dewitt. Os quatro
sacos para corpos chegam. O capitão agora está perto do
caminhão. Dewitt estava encolhido na plataforma da torre. Como
não tinha rosto, não tinha como saber quem era, a menos que
Clover tivesse acabado de te contar. Um crânio fumegante e
carbonizado, as órbitas vazias, os dentes fechados como se fossem
trincar. O capitão lança um olhar para dizer, Recolha o corpo. Pego
a parte de cima, e ele, as pernas. O tecido muscular está todo preto
e liso, quente o suficiente para romper minhas luvas de látex. As
mãos queimando demais, tenho que colocar ele no chão. Botar o
corpo no chão. Colocar ele no chão. Levantar de novo. Alguém vem
ajudar, segurando o traseiro carbonizado. O pênis e os testículos,
pau e bolas, totalmente queimados; sobrou um cotoco de carne de
menos de um centímetro. Chegamos aos tropeços até o saco para
corpos aberto no chão. Colocamos ele no saco. Fechamos o saco.
Vou até a água. Jogo fora o que restou das luvas de látex. Na
estrada, alguns sujeitos estão recolhendo Easton. Pararam de
repente, e um deles está dizendo Segurasegurasegura. As vísceras
estão saindo para fora. Deitaram Easton no chão. A parte do rosto
em contato com o asfalto não queimou inteira. É um círculo de
carne. O olho direito não queimou inteiro. Dá para perceber que é o
olho de Easton — um olho azul — e tem um cara olhando pra ele e
chorando, dizendo: “É o Easton. É o meu amigo”. Caves e Rodgers
estão nos assentos da frente, Caves caído sobre o painel. É fácil
tirar ele porque o colete está praticamente intacto, o que manteve as
vísceras no lugar. Ainda tem uma granada presa no colete. Não me
lembro de o lugar ser ali. Mando seu corpo para o posto de
emergência com a granada ainda presa. Precisam chamar a
Unidade Antibombas para resolver. Rodgers está no banco do
motorista, mas só sei disso porque sei que ele era o motorista de
Caves. Do contrário, não teria como. Não tem mais rosto. Caves e
Rodgers não têm rostos. Totalmente queimados. Um sargento
chamado Edwards, abalado, me diz que acha que ainda há restos
de Rodgers no caminhão. Ele aponta para um cordão de gordura
descendo pelo lado da estrutura remanescente do banco,
basicamente só metal. Não sei o que fazer. Recolho a gordura com
os dedos, enrolo numa bola e jogo na água. Aí desço a estrada,
todo ensanguentado, incapaz de compreender.
CAPÍTULO TRINTA E UM

Recebi uma folga de meio de temporada em maio, e voltei para


casa. Por duas semanas. Foi uma decepção: Emily ficou comigo
pouco tempo. Ela disse que não podia ficar muito em Cleveland,
porque tinha conseguido um emprego em algum lugar no estado de
Washington que era urgente. Algo a ver com preservação ambiental.
O que quer que fosse, ela não podia perder. Tinha outras garotas
que teriam transado comigo. E eram lindas. Devia ter transado com
todas, mas não fiz isso porque era casado, mesmo que não
pudesse contar para ninguém. Voltei.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS

Em algumas noites, parecia que íamos caminhar pra sempre; em


algumas noites, não íamos muito longe; em algumas noites, alguém
atirava num cachorro por puro tédio. Naquela noite, éramos uma
subunidade de cinco. North era o líder. Seguimos pela estrada até o
Posto de Observação 1, e aí dobramos à direita e descemos pelo
terreno entre as Rotas Martha e Polk.
Paramos num descampado, de onde não conseguíamos ver
nenhuma das duas estradas. North não tinha interesse nas
estradas. Achava que encontraríamos algum haji pelos campos. O
toque de recolher era ao pôr do sol, e nossas regras de
engajamento para combate eram atirar em qualquer pessoa depois
que anoitecesse. Mesmo com as varejeiras, era fácil pegar no sono.
Usar a visão noturna era entediante, e tudo isso não servia pra coisa
nenhuma. Sentamos sem fazer nada por horas. Ninguém falava.
Ninguém se mexia. Os insetos nos devoravam.
North levantou para ir embora, e seguimos ele. Fomos para o
limite do campo e passamos perto de mato alto e da entrada de um
jardim. Tinha um haji numa cama do lado de fora, em frente à casa.
Ouvi a respiração e os tropeços quando ele começou a correr. North
se comunicou por rádio com a base, e da base mandaram atirar.
O haji tinha corrido para a esquerda, e tínhamos nos espalhado
em uma coluna para tentar pegar ele. Eu estava olhando uma vala,
torcendo para não avistar ele, já que não me sentia especialmente
preparado para atirar naquele momento. Foi Sullivan quem o viu e
gritou avisando. O haji estava correndo, trinta metros à nossa frente.
O soldado Dallas, um cabaço recém-chegado que estava com a
gente, foi atrás dele. Dallas passou em frente à minha linha de fogo
e não disparei, mas o resto da equipe disparou. Azar do cabaço.
Nos aproximamos com os rifles apontados, e o haji estava caído
de costas. Tinha sangue na sua regata branca. Estava descalço.
Tinha boa aparência, jovem. No máximo uns 25 anos. Estava quieto,
nos encarando, provavelmente achando que ia morrer.
Eu tinha que cuidar dele. A bala talvez tivesse entrado acima do
estômago. Eu não sabia. Tinha uma mancha de sangue no
ferimento, mas não tinha sangue escorrendo. Só um pouco de
gordura. Enrolei um pouco de gaze e pressionei no ferimento. Cobri
a gaze com um ziploc, passei esparadrapo em três lados do
plástico, e pedi que Sullivan pressionasse o curativo. Eu estava
procurando por onde o projétil tinha saído. Não tinha nenhum
buraco no torso e, tendo em vista como a munição calibre 556 é
instável, não tinha como saber para onde a bala havia seguido após
a entrada. Cortei as calças do haji com uma tesoura. O haji tinha um
pau grande e era depilado. Isso arrancou uma risada do sargento
Bautista, mas não tinha nenhum ferimento de saída.
Eu deveria ter enchido o haji de gaze. Deveria ter enfaixado o
ferimento até não poder mais, até estar bem apertado, mas não fiz
isso. Deveria ter feito ele deitar virado para o lado do ferimento, mas
esqueci. Falei que ia colocar os pés do haji sobre o meu capacete,
porque ele poderia entrar em choque se os pés não ficassem
apoiados daquele jeito. E, mesmo que isso fosse verdade, eu só
estava dizendo para ter algo a dizer, porque não havia ferimento de
saída e eu não sabia o que fazer. Os olhos do haji viraram
totalmente para cima, focaram de novo, viraram de novo. Eu estava
tentando achar uma veia, mas as veias dele eram difíceis de achar.
Falei que ia dar morfina para evitar que ele entrasse em choque.
North disse: “Faz o que tiver que fazer, doutor. Não precisa nos
contar”.
Apliquei a morfina no haji, para que parecesse que estava fazendo
algo certo. Injetei na coxa direita e comecei a tentar achar uma veia
de novo. Tinha o braço magro. Eu não conseguia acertar. Aí acertei,
mas ele se mexeu e perdi novamente.
Falei: “Fica parado, seu merda! Tô tentando ajudar!”.
North falou: “Fica quieto, doutor”.
North tinha chamado o resgate médico. Essa era uma das
primeiras coisas que a gente deveria fazer. Disse para ele requisitar
cirurgia urgente, mas o resgate não chegava.
O haji começou a sufocar em vômito. O vômito era branco e
viscoso, eu estava tirando da boca quando ele perdeu a
consciência.
Parou de respirar. Não tinha pulso. Coloquei o respirador manual e
a máscara de reanimação cardiovascular. Pedi a Bautista que
fizesse massagem cardíaca enquanto eu manuseava o respirador.
Depois de um tempo, o haji voltou a si e começou a respirar sozinho
de novo.
E aí ele morreu.
Tentamos a massagem por mais alguns minutos. As costelas dele
estavam quebradas por causa das compressões, dava para ouvir
elas se partindo. Tinha acabado.
North contatou a companhia na base, disse que o haji estava
morto e não precisávamos mais do resgate. O haji era um cadáver,
e não tínhamos como levar ele de volta para a base conosco. A
Unidade de Resposta Rápida precisava nos buscar, e precisariam
trazer um saco para corpo com eles, porque também não tínhamos
nenhum. A base falou que a Resposta Rápida não poderia ir antes
do nascer do sol. Era mais seguro se conseguissem enxergar a
estrada, então melhor prevenir do que remediar. Permanecemos em
posição.
O sol nasceu. Foi quando vi a outra casa. Uma senhora de preto
saiu e viu o haji morto no chão.
North falou com ela: “Você conhece?”.
Ele apontou o corpo nu.
Ela se virou e entrou na casa de novo.
North falou: “Ela conhece ele”.
Alguns membros da Resposta Rápida se aproximaram a pé.
Castro foi o primeiro a chegar. Ele viu minha cara e perguntou:
“É seu primeiro cadáver, doutor?”
Disse que não. Como se ele não soubesse.
Alguém me deu um saco para corpos. Estendi ele no chão,
próxima ao haji morto e nu, e rolei ele para cima do plástico. Foi aí
que as coisas pioraram.
A senhora saiu da casa de novo, gritando a plenos pulmões. Ela
tentou pegar o saco, mas dois soldados seguraram ela, e ela caiu
de joelhos, gritou e continuou gritando. Ela começou a pegar
punhados de terra e jogar sobre a cabeça. Batia no chão com o
rosto. Aí ela se levantou e começou tudo de novo. Fechei o saco.
Uma mulher mais nova com uma barrigona de grávida saiu da casa
e começou a fazer a mesma coisa que a senhora estava fazendo. E
tinha dois meninos. Bem jovens. Estavam gritando. Quatro soldados
pegaram o saco, e a senhora se levantou e correu atrás. Ela tentou
arrancar deles o saco com o corpo. Eu estava prestes a chorar,
quem sabe até me dar um tiro, quando ouvi uma -47. Automática.
Três longas rajadas. Tudo mais cessou. Todos se espalharam.
Nos abrigamos em uma vala. A infantaria estava revidando. Eu era
o último à esquerda em nossa coluna, checando o flanco esquerdo
porque achei que um haji poderia nos pegar daquele lado.
Castro estava no comando porque tinha mais tempo de nomeação
na sua categoria. Ele usou o rádio, e no rádio disseram para
assegurar o corpo do haji morto. Ordenou cessar fogo: “
.
”.
Apenas três ergueram a mão. Esperei. Nenhuma outra mão. Então
ergui a quarta mão porque, no fim das contas, era minha obrigação.
Não sabia onde o atirador estava, então esvaziei um cartucho de
munição em uma vaca parada em frente à casa, imaginando que
essa seria a ação mais segura. O soldado Dallas estava à minha
esquerda, de joelhos, atirando com uma M14. Ele disse: “ ,
!”.
Deixei a bolsa de primeiros socorros na vala e lancei a bomba de
fumaça o mais longe que consegui. Quando a fumaça começou, nos
movemos. Estávamos a vinte metros do corpo. A senhora estava lá.
Ela era um monte de tecido preto no chão.
Correr até lá não foi difícil. Voltar já foi mais interessante. Esperava
a ser disparada, fazendo meu cérebro sair todo pelo rosto. Ainda
assim estava calmo, nunca fiquei tão calmo. Fechei os olhos e vi
Emily, tão clara quanto a luz do dia.
Mas não houve disparo, e consegui voltar para a vala. Mais tiros.
Empregamos a “vigia saltitante alternada” entre nós para chegarmos
até a vala seguinte. Dallas correu atirando e veio até mim. Minha
sacola de primeiros socorros estava com ele. Tinha vacilado feio
deixando a sacola para trás, na primeira vala. Meu visor noturno
estava na sacola, nunca teriam me perdoado se tivesse deixado
eles pra trás. O cabaço salvou meu pescoço.
Eu disse: “Obrigado”.
Recuamos mais um pouco, atirando em tudo e nada ao mesmo
tempo. Disparei mais um cartucho na vaca. Agora helicópteros
Apache sobrevoavam, o atirador tinha sumido, e estávamos
bancando os idiotas. Ninguém estava atirando em nós.
No caminho de volta, tinha um canal de esgoto. Fizemos uma
ponte com alguns galhos e tentamos carregar o saco com o corpo
por ela, mas o saco rolou de cima dos galhos e caiu na merda. Pulei
atrás. Não foi fácil sair da água. O corpo era pesado e tinha furos no
saco, e a água escorria desses furos direto no meu rosto, como se o
haji morto estivesse mijando em mim.
Tínhamos quase chegado à estrada e eu arrastava o saco com o
haji nela; dava para sentir a cabeça dele balançando nos sulcos do
terreno descampado e estávamos em espaço aberto, minhas mãos
ocupadas, meu rifle pendurado; tinham atirado na gente, meu karma
seria fodido e eu estava nervoso. Dallas falou alguma coisa, mas
não entendi. Eu disse: “Não fala comigo, porra! Fique alerta!”.
Você não podia se deixar afetar dessa maneira.
Quando voltamos para a estrada, alguém me disse para prender o
haji morto na frente do blindado da Resposta Rápida, para que a
tropa não tivesse que viajar com o haji morto no compartimento.

café da manhã porque estava no Portão Principal


esperando os policiais iraquianos virem pegar o haji morto. O
sargento Castro também estava lá. Ele ficou para ver se tudo tinha
dado certo. Eu estava tão cansado que meu rosto doía. Eu acabava
de fazer minha nona patrulha em quatro dias. Os policiais iraquianos
chegaram.
Ninguém disse nada. Abri a sacola. Olhamos o haji morto. Os
policiais pegaram ele, colocaram no carro e foram embora. Castro
viu minha cara e disse: “Você fez o que pôde por ele, não fez?”.
Disse que sim.
“Então não se torture por isso.”
Evans foi o primeiro que vi quando voltei para a companhia. Ele
falou que estava no enquanto estávamos matando o haji.
“Sei que é uma coisa escrota de dizer, mas estava torcendo pra
que ele não sobrevivesse. Quem sabe o tipo de coisa que ele teria
contado.”
“É”, falei. “Compreensível.”
“O pessoal lá estava em polvorosa”, ele continuou. “Disseram que
deixamos outro corpo pra trás.”
“Quem?”
“Não sabemos, mas vamos voltar lá hoje à noite. Eu mesmo vou
levar dois esquadrões. Estamos esperando retaliação. Você está
pronto pra ir junto?’
Respondi: “Claro, sem problema”.
E voltamos naquela noite.
E nada aconteceu.

quem me disse que viu aquela senhora ser atingida


por disparos nossos naquela manhã. Eu sabia que era verdade,
porque Sullivan não mentia, e ele não teria dito se não fosse
verdade.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

A identificação de combate era -0888 e tentávamos descobrir a


quem pertencia. Sabíamos que era de alguém do Primeiro Pelotão
porque o sargento White falou. Sabíamos que não era do
especialista Jackson, o médico do Primeiro Pelotão, porque médicos
de linha [ 04 ] eram vinculados ao quartel-general, e se o sujeito
morto fosse Jackson, sua identificação teria outra letra inicial. O “A”
também não tinha muita utilidade, porque não costumávamos
chamar uns aos outros pelo primeiro nome. Levou uns dez minutos
até pensarmos num sujeito do Terceiro Pelotão que tinha
sobrenome com “J”.
Soldado Jimenez.
Estávamos revisando casas como normalmente fazíamos quando
aconteceu. Tinha sido a apenas um quilômetro de distância, a sul de
onde estávamos, passando a curva da estrada, um pouco depois do
Posto de Observação 1, então não precisávamos ir longe.
Tinha um retardado cego acorrentado a uma palmeira na frente da
primeira casa que visitamos. Uma velha, provavelmente a mãe do
retardado, ficou próximo ao portão do pátio, e alguns de nós
entraram. Tinha quatro salas pelo pátio, então nos dividimos para
checar cada uma. Chutei a porta e entrei na sala escura. Estava
vazia, exceto por um haji deitado no chão, de olhos fechados. Falei:
“Levanta, filho da puta”.
Mas ele não se mexeu.
Cheguei mais perto, o rifle apontado para ele. “ ,
.”
Ele abriu um olho e me olhou, mas permaneceu imóvel, e então
fechou o olho. Aí pensei em chutar ele na cara. Não costumava sair
por aí chutando hajis na cara sem motivo, nem conhecia ninguém
que fazia isso, mas Jimenez estava morto e eu ia chutar o haji na
cara. Preparei meu chute mais forte, mirando bem no centro, mas
parei no meio do caminho, antes do impacto. Foi superdifícil
continuar em um pé sem cair de bunda. O haji se levantou, se
esticou e então se arrastou para fora da sala. Não sei exatamente
quando me ocorreu que talvez ele também fosse retardado. Me
acalmei e fui ver para onde o haji tinha ido. Estava indo em direção
ao campo, olhando para o sol. Ninguém encostou nele.
Jimenez era um cabaço. Era um dos substitutos mandados para a
companhia depois do Primeiro Pelotão perder quatro caras, mortos
na Rota Polk. Não fazia nem dois meses que tinha chegado, e
estava morto. Era muito azar.
Às vezes, quem morria era um puta de um cuzão, ou ao menos
você poderia argumentar que era, mas não o Jimenez. Jimenez era
praticamente um santo. Por isso tinha chamado tanta atenção numa
companhia de infantaria.
O lance é que o membro de infantaria médio não é nada além de
um filho da puta típico. Se expressa por meio de piadas fálicas,
deseja matar e não passa a impressão de ser alguém virtuoso, mas
ainda assim Jimenez era um santo. Não que ele fosse molenga, ou
algo assim; ele era um moleque durão. Tinha acabado de fazer 19
anos mas era forte, com um peitoral enorme e os pulsos grossos
que você desenvolve fazendo trabalhos manuais. E ele trabalhava.
Os sargentos gostavam dele por isso. Era tão bondoso que às
vezes deixava as pessoas loucas. Tipo quando jogava pôquer com
o pessoal e os deixava ganhar. Se ele recebesse quatro rainhas de
uma vez, blefava até ficar evidente. E quando ficavam putos por ele
jogar tão mal, tentava devolver as fichas de todos, mas não era
assim que funcionava.
A última vez que vi Jimenez foi cerca de oito horas antes de ele
ser morto pelos hajis. Ele estava praticando boxe com o sargento
Castro na academia, fazendo sparring, e Castro o acertou em cheio
no nariz. O nariz estava sangrando — não tinha quebrado nem
nada, só estava sangrando. Castro o mandou ver um médico e
Jimenez obedeceu, e quando ele apareceu procurando por um
médico dei uma dura nele. Falei: “Por que você vem me ver com
uma porra de um nariz sangrando, cabaço?”.
E ele não disse nada. Só sorriu, todo sem graça, como se tivesse
ficado com vergonha de mim.
Falei: “Qualé, cabaço. Tô cansado. Por favor, não venha me ver
por causa de frescura, ok? Já tô cansado pra caralho, saca?”.
Ele tinha saído com uma subunidade de manhã. Tinham montado
um ponto de controle de tráfego na Rota Martha. Saíram quando
ainda estava escuro, não checaram direito o local onde se
instalaram e não perceberam que os hajis tinham colocado um
dispositivo de 155mm debaixo da estrada. A estrada era só um
acostamento pavimentado então era fácil de escavar. E os hajis
ficaram observando eles. Viram Jimenez parado bem no lugar que
tinha sido minado.
Ouvi Koljo comentando. Isso foi mais tarde, no mesmo dia. Ele
estava contando para alguns soldados como tinha sido. Ele disse:
“Parecia um treco saído de um filme de terror”.
A munição 155 arrancou as pernas de Jimenez e um de seus
braços quase completamente, mas ele ainda estava consciente, e
sabia o que estava acontecendo. Estava berrando. A subunidade
trocava tiros com os dois assassinos de merda, mas eles
escaparam rumo ao norte, por uma plantação de palmeiras. A
subunidade não podia ir atrás deles, porque não podia deixar
Jimenez sozinho para trás.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Tinha um monte de pornografia baixada circulando pela base. O


maior arquivo foi passado pra nós pelos Rifles de Mississippi, que
tinham herdado dos fuzileiros, que tinham herdado da 10a Divisão
de Montanha, que tinha herdado de sabe-se lá de quem. A gente
assistia A Van da Foda um bocado. A Van da Foda era a última
coisa que deveríamos assistir. A Van da Foda funcionava assim: a
van saía por aí procurando mulheres jovens que topassem ser
fodidas na Van da Foda. Vários caras andavam na Van da Foda, em
estado de alerta. Até que um dos caras gritava “olha!” e apontava
para alguma mulher caminhando na calçada; às vezes ela tinham
uma sacola de compras ou algo assim. Sempre começava de
maneira inocente. Os caras chamavam a mulher e ofereciam uma
carona. Num primeiro momento, ela relutava em aceitar, porque a
Van da Foda não tinha janelas e ela associava esse tipo de van com
estupradores e trabalhadores braçais, e também porque os caras
eram esquisitos, mas eles contornavam as ressalvas dela com
charme, e ela inevitavelmente aceitava a carona. Assim que ela
entrava na Van da Foda, os caras começavam a rir da mulher, a
chamar ela de idiota para que se sentisse insegura, e a fazer
perguntas bastante íntimas; depois de alguns minutos, mandavam
ela tirar a blusa. Ela recusava, a princípio. Aí os caras ofereciam
dinheiro. Quando o dinheiro entrava em cena, as coisas mudavam.
Em pouco tempo, a mulher estava completamente nua, chupando
vários caras por vez; mandavam ela fazer coisas como dizer o
abecedário com um pau na boca, e ela fazia. Quando os caras se
cansavam, se revezavam gozando na cara dela. E aí ela se vestia, a
Van da Foda encostava em um lugar aleatório qualquer, os caras
chutavam a mulher pra fora da Van da Foda, atiravam a sacola de
compras nela, chamavam ela de puta e caíam fora.
Um dia estávamos assistindo à Van da Foda num laptop, em cima
da mesa de jogos, e o sargento Thorpe acabou vendo. Uma jovem
de sotaque britânico recebia dupla penetração de alguns caras na
Van da Foda. Thorpe percebeu algo e pausou o vídeo.
“Ela é uma vadia”, ele falou. “Olha! Ela usa aliança!”
Ele voltou o vídeo até uma parte em que tinha um close da mulher
masturbando o clitóris, e dava pra ver que ela definitivamente usava
uma aliança.
Uma mulher casada na Van da Foda!
Thorpe não conseguiu mais assistir à Van da Foda depois disso.
Era demais para o Thorpe. Ele ainda estava todo esculhambado
por aquilo que a esposa tinha feito. Foi triste pra caralho. E ele não
era o único. Vários de nós estávamos sendo corneados.
A Van da Foda eram ruim para o moral. O pessoal debatia se a
Van da Foda era de fato real, mas tinha que ser de verdade, porque
estava ali e a gente podia ver. E aí nos demos conta de que a vida
era só uma foda mórbida, e que tínhamos sido cretinos o suficiente
pra acreditar nessa baboseira.

Pelotão estava na Unidade de Resposta Rápida 1 na


noite que os hajis capturaram alguns paraquedistas com vida no
Posto de Observação, ao norte do Ponto de Checagem 9. Era só
seguir em linha reta pela Rota Martha, e poderíamos ter chegado
rápido, mas nos atrasamos por causa de todos os acréscimos de
pessoal na patrulha, feitos de última hora. E aí o rastreador parou de
funcionar. Não tínhamos permissão para sair da base se o não
estivesse funcionando. Então ficamos presos, aguardando junto
com os caminhões posicionados no Portão Norte.
O especialista Jeffries disse: “Somos alvos fáceis aqui”.
Jeffries era um borra-botas que sequer fazia ideia do quanto era
um soldado de merda. Ele se achava ok porque tinha passado pela
82a Divisão Aérea uma vez, mas todo mundo cagava e andava para
o fato de ele ter passado pela 82a. A única razão para Jeffries estar
na patrulha naquela noite era porque o motorista de sempre do
capitão estava de folga e precisavam de um substituto. E Jeffries
estava preocupado com disciplina de luz.
“Tenho que dizer um negócio pra eles!”, falou. “Tenho que dizer.”
Ele foi avisar a não sei quem que éramos alvos fáceis. Quando
voltou, parecia ter tomado um esporro.
“Não dá pra acreditar!”, reclamou. “Amadores de merda!”
Levou mais de uma hora antes de começarmos a rodar. Fomos
para o norte, depois do Ponto de Checagem 9. Os caminhões nos
deixaram passar. Hueso-Santiago comandava um esquadrão nos
campos, a oeste da estrada. North conduziu uma subunidade rumo
à direção nordeste. O tenente Evans, o primeiro-sargento Hightower,
Castro e eu seguimos para o leste. Havia todo tipo de aeronave nos
sobrevoando. Uma delas nos avisou quanto a uma casa-alvo.
Iríamos inspecionar.
Evans disse: “Essa é a casa-alvo”.
O primeiro-sargento perguntou se ele tinha certeza.
“Eles disseram que estamos praticamente do lado dela.”
A casa-alvo estava a 25 metros. Sem luzes acesas. Sem o uso de
qualquer palavra, foi determinado que o tenente e o primeiro-
sargento dariam cobertura para Castro e eu no mato alto no final do
quintal, enquanto arrombávamos a porta e revistávamos a casa.
Castro e eu cruzamos o quintal e paramos perto da porta. Eu estava
prestes a chutar. Tinha certeza de que estava prestes a morrer, mas
teria sido ridículo se me acovardasse, então mudei a trava de
segurança da arma para a posição “fogo” e parei de pensar.
Entramos. Fui para a esquerda e Castro foi para a direita. Não havia
ninguém na sala. Verifiquei uma sala menor, olhando da porta, e
também não tinha ninguém. Havia uma escada num canto nos
fundos da sala e, quando a vimos, não hesitamos em subir, porque
não nos importávamos de morrer e porque tínhamos entendido que
aquela casa-alvo era só papo furado.
De volta à estrada, Green estava dando uma dura em Jeffries. Ele
disse que ele mesmo meteria bala em Jeffries se ele encostasse no
rádio novamente. Disse que estava falando sério.
Perguntei a Sullivan o que tinha acontecido.
Ele disse: “O cu de apito aí autorizou um ataque aéreo ao
esquadrão do Hueso. Quase matou eles todos”.
“Sério?”
“Sério. Eles não têm sinalizadores infravermelhos no uniforme
porque são equipes de tanque. Do ar, pensaram que eram hajis,
mas é isso que acontece quando você manda equipes de tanques
saírem dos tanques. Bando de bundas-sujas. A porra da aeronave
chamou o capitão no rádio pra ver se todos os nossos tinham sido
recolhidos, mas o capitão não estava no caminhão, e o cu de apito,
o maldito Jeffries aqui, respondeu que todos tinham sido checados.
Hueso estava lá e de repente um grande feixe de infravermelho
baixou nele como se fosse uma porra dum , e aí ele chamou a
companhia pelo rádio e disse, Ahm, acho que vou ser fuzilado por
uma das nossas aeronaves. Aí o Green se deu conta do que estava
acontecendo e correu até o caminhão do capitão, gritando como se
tivesse ficado doido, tirou o cu de apito do rádio e mandou pararem
tudo a tempo, graças a Deus.”
“Porra.”
Nos reagrupamos na estrada. A casa-alvo foi liberada. Então não
tinha nada a fazer, a não ser procurar em todos os outros lugares
até encontrar os paraquedistas desaparecidos.
E esses outros lugares todos eram conectados por trilhas no mato
alto, palmeiras e canais de esgoto. As trilhas eram bastante
estreitas, com várias curvas; não tinha como ver para além de cada
uma delas. Checamos algumas casas. A maioria estava vazia. Não
achamos nada. Um grupo de soldados entrou numa casa, cerca de
cinquenta metros ao norte de nós. Tínhamos revistado todas as
casas da nossa área, então fomos na direção deles para ver o que
estavam fazendo lá. North e eu seguimos enquanto o primeiro-
sargento reunia o resto do pessoal. Quando North e eu chegamos
na casa, já tinha sido liberada. Havia alguns hajis sentados na sala
de estar. Três crianças pequenas — um garoto e duas meninas — e
o pai e a mãe. A estava ligada. Quatro paraquedistas e um
intérprete estavam na sala também. E um dos paraquedistas, um
sargento, puxou uma pistola e tirou a trava. Ele pegou o garoto pelo
pescoço e jogou ele contra a parede. Pegou o moleque pela parte
de trás do pescoço e disse: “Estou procurando por alguns amigos
meus”.
Ele acertou três coronhadas com força nas costelas do garoto. O
pai, a mãe, as duas irmãs: nenhum deles sequer piscou.
Ele disse: “Tem alguma coisa pra me contar?”.
Bateu no garoto mais um pouco. O moleque aguentou quieto.
Suas pernas fraquejaram, mas o sargento estava segurando ele
pelo pescoço. Ninguém disse nada. O sargento bateu no garoto
ainda mais. Ele tinha decidido que ia bater no garoto por um tempo,
e foi o que fez. Não fazia sentido, porque estávamos procurando por
homens mortos. Tinham sido mortos e ido parar na internet. É o que
acontece quando se morre hoje em dia. Ao menos quando se morre
do jeito que morreram.
Andei pela casa e encontrei o tenente Evans.
Falei: “Melhor não entrar aí, senhor”.
Ele disse: “Por que não?”.
Falei: “Um dos caras do reforço aéreo está espancando um
moleque”.
Ele disse: “Ah”.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Após algum tempo no Iraque, ficou claro que não iriam testar a urina
de nenhum de nós. Algo decente que resolveram fazer por nós,
imagino.
Ou seja, a gente podia se chapar.
Mas, ainda assim, havia a questão de como fazer isso.
Com o intérprete certo, você podia descolar narcóticos, mas aí
você podia ter um derrame, ou cair de uma porra de uma torre de
vigia ou algo igualmente ridículo. E ninguém queria isso. Então o
jeito era conseguir que o lance fosse enviado de algum lugar do
mundo. O pessoal do correio passava tudo pelo raio x, e tinha cães
farejadores também, mas não era muito sério. Dava para receber
um pouquinho de maconha. Um pouquinho de pó. Remédios que
precisavam de receita estavam por toda parte (dentro do razoável).
Se você conseguisse alguém para enviar pra você, e a pessoa
tivesse um pouquinho de noção, dava certo.
Claro que não era todo dia que você recebia um mimo desses. O
que acontecia era que você formava pequenos grupos, com
pessoas que pensavam parecido, para descolar maconha, boletas,
álcool ou o seja lá o que te mandassem do mundo. O álcool
normalmente vinha em frascos de enxaguante bucal. Pequenas
porções de maconha eram enviadas de todo jeito.
Tinha deixado algum dinheiro com Roy quando voltei pra casa.
Roy me mandou 25 gramas de maconha assada em cookies. Ele
pediu para a namorada fazer os biscoitos. Era um pacote e tanto:
além dos brownies, Roy colocou um pôster do Johnny Cash, três
maços de Winston e alguns comprimidos de oxicodona disfarçados
num frasco de Advil. Foi realmente foda da parte dele. Eu disse:
Roy, você fez bem.
Ele mandou a namorada postar no correio e ela fez isso, e aí ele
descobriu que ela havia colocado o endereço real dele na caixa. Aí
ele mandou ela voltar no correio e pegar o pacote de volta. Aí ela
levou o pacote de volta para Roy, Roy mudou o endereço, e eles
mandaram de novo, dessa vez com um endereço falso. Esse era o
Roy.
Tínhamos quase sido linchados depois da explosão de um carro-
bomba naquela tarde. O carro-bomba fez o que carros-bomba
fazem, e quatro tinham morrido no mercado. O número teria sido
maior, mas o impacto atingiu principalmente algumas ovelhas. Tinha
carne, sangue e lã pelo asfalto. Manchas de sangue no asfalto que
pareciam pequenos lagos. E todos os hajis estavam lá, parecia uma
macabra festa de rua. Um adolescente haji estava socando um
garoto na cara. Ele empurrou o garoto pra cima do lixo que havia
amontoado nas sarjetas. O garoto levantou com um pedaço de pau
cheio de farpas, balançando a madeira e gritando em árabe com
sua voz desafinada de moleque, lágrimas nos olhos, mas aí o haji
adolescente pegou a tora e bateu nele. E os outros hajis velhos
ficaram em volta e não fizeram nada, para que não achassem que
eram homens desacostumados à brutalidade.
Sobrou pouco do carro. Nossa patrulha estava próxima quando o
batalhão ordenou que impedíssemos a polícia iraquiana de se livrar
dos destroços antes que a Unidade de Resposta Rápida pudesse
trazer a Unidade Antibombas para dar uma olhada e procurar pistas
sobre quem tinha montado aquela bomba. Assim, estávamos
aguardando a Resposta Rápida. E mais hajis começaram a chegar.
Só tinha dois soldados na rua. Eu era um deles, e o outro, Lessing,
estava a trinta metros de mim. A artilharia e os motoristas não
podiam deixar os caminhões. Os comandantes dos veículos
poderiam ter saído dos caminhões, mas não saíram, mesmo que
devessem ter feito isso. Eu estava tentando ficar de olho em todos
os telhados, em todas as janelas sem luz e em todos os cantos de
uma vez só, procurando o haji que tentaria me dar um tiro na cara.
Era começo da tarde, o céu estava limpo e o sol, ofuscante. E todos
esses hajis estavam começando a perder o controle. Eu queria
poder ter dito foda-se e simplesmente deixado eles fazerem a
baderna que quisessem no lugar, assim ficaria claro para os
comandantes nos veículos que um pouco mais de efetivo na rua não
teria sido exagero.
Ou seja, Lessing e eu estávamos putos quando voltamos pra
base, mas tinha esse pacote do Roy com os brownies de maconha,
e os maços de Winston… Era exatamente o remédio de que
precisávamos.
Lessing e eu ficamos chapados pra caralho. Os brownies eram
mesmo de lascar. Tinham gosto de maconha pura, só um gostinho
leve de chocolate. Ficamos totalmente retardados depois de comer.
Se tivéssemos que lidar com qualquer pessoa que não fosse Borges
ou Burnes naquela tarde, estaríamos fodidos. Qualquer outro
provavelmente teria nos mandado de volta para a porra de Fort
Leavensworth, ou atirado na gente lá mesmo, uma execução
sumária, para nos usar de exemplo. Foi sério assim. Ficamos
totalmente chapados.
Burnes e Borges chegaram quando eu estava experimentando a
oxicodona. Falei para Lessing: “Toma um desses”.
Ele disse: “Não, obrigado”.
Falei: “Qualé, seu merda. Não menospreze meus presentes. Você
tá sempre esperto. O que é meu, é seu”.
Ele disse: “Fui viciado em heroína”.
“Mas isso não é heroína.”
“Eu roubava lojas de conveniência.”
“Bom, cê que sabe.”
Burnes e Borges disseram que tomariam algumas oxicodonas, já
que eu estava oferecendo. Falei: “Que se foda. Comam uns
brownies”.
Eles comeram. E também ficaram retardados. Acabei guardando
as pílulas todas para mim. Dei uma para Borges, já que tinha
oferecido, mas foi só; guardei o resto. Mesmo assim, elas duraram
pouco tempo. Quando não tínhamos drogas de verdade, sempre
rolava algum solvente de limpeza para cheirar. Era verão, e muita
gente estava morrendo. As pessoas eram mortas com mais
frequência no verão. E nós poderíamos morrer. Não tinha como ter
certeza.
Quanto à Emily, acho que estava me iludindo. Meio que de
propósito. Ou simplesmente de propósito. Ou talvez eu não
soubesse direito. Não consigo lembrar.
Diversas vezes, chegava pela manhã vindo de emboscadas com
explosivos e olhava meu e-mail. Muitas vezes, ela não escrevia,
mas quando escrevia normalmente não era bom. Ela dizia que
sentia vergonha do que eu estava fazendo, mas eu nunca contava o
que estava fazendo. Ela sabia tanto quanto antes de eu partir.
Comprei um pirata de uma loja haji. Era um filme sobre a vida
dos pinguins-imperadores, e tudo que enfrentavam para continuar
vivendo na Antártica, se reproduzindo e tudo mais. Adorava a porra
daqueles pinguins. Escrevi para Emily e disse que ela precisava ver
aquele filme dos pinguins. Ela não assistiu. Falei para mim mesmo,
Claro que ela não tem como ver o filme. Ela está na porra da
natureza selvagem. Então encomendei o filme para ela na Amazon.
A Amazon despachou o filme sobre pinguins para ela na natureza
selvagem. Ela me mandou um e-mail dizendo que o filme era idiota,
e que os pinguins eram idiotas. Foi exatamente o que ela escreveu.
“Idiota.” Pensei, Tudo bem, então eu fiz algo errado.
Após ter meu coração partido por e-mail, eu costumava tomar café
e fumar. Se tinha algum jogo de cartas rolando, jogava um pouco e
perdia alguma grana. Quase sempre tinha azar com cartas. Mas, de
manhã cedo, muitas vezes não tinha jogo nenhum. Não tinha nada
de interessante para ler. Ninguém acordado. Então eu ficava
olhando o catálogo de móveis da . Tinha copiado e colado um
bocado de coisas sobre os móveis da num documento do Word
e ficava olhando isso e imaginando que tipo de móveis eu e Emily
compraríamos quando fôssemos morar juntos. Eu pensei que se
terminasse essa merda no Iraque, sobrevivesse e economizasse
uma grana, seria o suficiente para eu e Emily começarmos uma vida
juntos. Teríamos uma poupança, ela teria um diploma, eu poderia
voltar a estudar e tudo daria certo, porque era algo que eu tinha
conquistado. Precisaria ser tão inteligente quanto a Emily. Ela se
tornaria alguém e eu me tornaria alguém, talvez um bibliotecário;
teríamos dinheiro suficiente, seríamos de classe média, sem
dificuldades, independentes de todo mundo; e nenhum filho da puta
que votava a favor de guerras poderia me dizer nada, porque eu já
teria feito o que eles queriam. Fumava Miamis, bebia café e ficava
tenso depois de passar a noite em missão, me esgueirando pelos
campos ao norte da base. Nem via muita pornografia, sabe. Quer
dizer, via; tinha visto A Van da Foda e tudo mais, só que em geral
não me agradava. Era como traição. E quando eu batia punheta nos
banheiros químicos, não pensava em outras mulheres. Não tenho
vergonha disso. Tentei fazer tudo certo.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Um dos meus trabalhos era remover o pus do abcesso no traseiro


do sargento Bautista. Ele era um cara grande, com uma bunda
grande. Era de Nova York. Nenhum de nós gostava daquilo, mas
não tínhamos opção. Eu ia até o quarto dele por volta das oito da
noite. Ele normalmente estava jogando videogame, e então virava
de bruços, abaixava a calça até ficar com o traseiro de fora, eu
retirava a gaze do dia anterior do abcesso em seu traseiro e removia
o pus do abcesso.
“O cheiro não está tão ruim quanto ontem”, falei.
“Que bom”, respondeu.
Falei: “É um bom sinal”.
Aí colocava gaze esterilizada no abcesso, dobrando a gaze em
triângulo e enfiando ela no buraco com uma pinça.
Disse: “Ok, até amanhã”.
E aí tinha que distribuir remédio para caganeira.
Alguns caras tinham micose nas virilhas.
E isso era a maior parte do que eu fazia.
Eu não era nenhum herói.
Um mês antes de ser incinerado na Rota Polk, o sargento Caves
tinha achado um cachorro haji perdido na área da companhia. O
cachorro tinha poucas semanas de idade. Cabia na palma da mão.
Ele precisava de comida, e Caves deu comida para ele e o adotou;
deu o nome de Sonny.
Depois que Caves foi morto, o Primeiro Pelotão cuidou de Sonny,
e Sonny ficou por lá. Todos gostavam de Sonny porque ele era um
bom cachorro, corajoso, mas dócil. Quando as patrulhas deixavam a
base a pé durante o dia, não era incomum ver Sonny seguindo
atrás.
Certa manhã, uma da Companhia Foxtrot, a sargento Teague,
estava do lado de fora, em exercício ao redor do perímetro da base,
e ela passou pela área da nossa companhia. Preferíamos que ela
não passasse por lá; ela parecia a porra duma gárgula. Enfim.
Sonny latiu para ela, e ela ficou tão traumatizada que foi ao do
batalhão reclamar de Sonny. E aí o que aconteceu foi que dois
heróis da Companhia Eco se voluntariaram para atirar em Sonny.
Quando chegaram, encontraram Sonny deitado no seu lugar
predileto, sob a sombra das árvores perto da cancha em que
jogávamos ferradura. Foram direto até ele. Sonny não tentou fugir,
porque não tinha medo de soldados. Talvez tenha achado que iria
ganhar comida, talvez um cheeseburguer. Em vez disso, atiraram no
focinho dele. Ele fugiu e tentou se esconder debaixo de algumas
tábuas. Os dois oficiais tiveram que assumir posição horizontal pra
terminar o serviço. Estavam usando seus óculos de proteção
balística, então tudo certo.
Não lembro exatamente o que eu estava fazendo quando isso tudo
aconteceu, mas não estava lá. Provavelmente arrombando a porta
de alguma casa. Nada nunca muito empolgante. Eram só portas.
Devo ter chutado umas cem portas. Talvez umas duzentas. Nada
nunca acontecia depois disso. Nem mesmo uma vez. Eu não era
morto. No dia seguinte, estava jogando pôquer com o pessoal.
Tinha passado a noite em patrulha e deveria estar dormindo, mas só
conseguia dormir quando estava em patrulha; era o único horário
em que eu tinha vontade. Não tinha dormido, estava esgotado, e
puto por causa do cachorro, e aí Arnold veio da sala do rádio me
avisar. Ele disse: “Pega suas coisas. Resposta Rápida solicitada”.
Eu não estava na Resposta Rápida naquele dia.
Poderia ter ido mesmo assim, mas não senti vontade.
Falei: “O sargento Garcia do está na Resposta Rápida hoje.
Ele tá cobrindo o sargento Shoo, que tá de folga. O sargento Garcia
tá no posto de emergência. Você pode chamar ele lá”.
“Mas…”
“Vai se foder, Arnold! Vai se foder, seu merda! Bicha do caralho!
Você nunca sai da base. É por isso que adora essa merda. Bom, vai
se foder, Arnold. Não tô na porra da escala, e não vou.”
Arnold saiu para chamar Garcia. Garcia foi com a Resposta
Rápida. Fiquei na base jogando pôquer. E foi assim que perdi a
grande batalha, onde mandaram quarenta hajis para o “jardim com
rios subterrâneos”. Fiquei feliz de ter perdido a batalha, porque
provavelmente era bobagem, e o Exército tinha matado nosso
cachorro, de qualquer forma.
CAPÍTULO TRINTA E SETE

O especialista Grace era a cara do Jean-Michel Basquiat e era o


operador de metralhadora no tanque. Seu amigo Carranza dirigia o
tanque. Não tinha visto muito os dois desde Fort Hood. Eles
estavam na Companhia Delta. Tínhamos recebido ordens diferentes
do Exército, mas às vezes eu via eles na base. Quando a gente se
topava, dizia oi uns para os outros. Eles eram gente boa.
Eis o que aconteceu: eles passaram sobre um dispositivo
explosivo nas proximidades do Ponto de Checagem 9, durante uma
das operações graúdas. Não lembro em qual operação. Eram
tantas. Todas as operações grandes tinham nomes. E tinham nomes
para que você soubesse que eram grandes operações, mas nada
nunca acontecia. Só bombas improvisadas. Só arrombar portas.
Mais bombas. Mais portas.
Grace e Carranza passaram por cima de um explosivo. Carranza
estava ferido. Ele estava na escotilha do motorista e sua cara estava
toda zoada, tinha ficado cego e o tanque havia pegado fogo. O rosto
de Carranza já era, mas ainda assim ele conseguiu baixar a rampa
para os caras no compartimento saírem rápido. Grace tinha sido
atingido por um fragmento da explosão, mas o fragmento acertou
uma de suas ombreiras de kevlar, então ele não se machucou.
O batalhão tinha que reiterar a ordem para usarmos as ombreiras
de kevlar, porque não queríamos usar e ficar parecendo um bando
de retardados. Já era complicado fazer os hajis levarem você a sério
sem ombreiras; se estivesse usando, podia esquecer. Eram uma
bosta: com elas, era difícil posicionar o rifle contra o ombro, e elas
ficavam enroscando nas fivelas do kit de combate. Faziam os dias
parecerem ainda mais quentes, e os dias já eram quentes o
suficiente. Agora, a pior coisa a respeito das ombreiras era que elas
só te protegiam de coisas menores, que seriam ideais para te
mandar pra casa mais cedo e relativamente inteiro. Eram inúteis
quando se tratava de te proteger das merdas realmente sérias. O
único uso que encontrei para as ombreiras foi empilhar uma em
cima da outra e sentar em cima delas quando andava de blindado.
Afinal, quando as nossas bolas estavam em jogo, mesmo o menor
fragmento poderia ser crucial; fora isso, as ombreiras eram um lixo.
A maioria do pessoal preferia encarar a Corte Marcial a usar, mas
Grace usava as ombreiras. Os destroços teriam ferido ele. Talvez
ele tivesse de ser mandado para o hospital por um tempo, mas com
descanso ficaria bem. Poderia até ter sido mandado para casa, mas
os destroços não o feriram por causa das ombreiras, e o povo pró-
ombreiras fez o maior estardalhaço em torno disso.
A última vez que vi o especialista Grace foi no dia em que ninguém
na base tinha algo de importante para fazer e fomos chamados ao
refeitório para ver o sargento-mor do Exército. Ele tinha vindo nos
fazer uma visita. Fui obrigado a ir, estava na fila esperando para
entrar no refeitório. O sargento-mor do batalhão estava lá papeando
com Grace, e queria que todos ouvissem ele falando. Ele disse para
Grace: “Você se safou por pouco, hein?”.
Grace respondeu: “Sim, sargento-mor”.
“Ainda bem que você estava vestindo sua proteção corporal
completa, não?”
“Sim, sargento-mor.”
“O que você pensa dessas prima-donas que não querem usar a
proteção porque acham que prejudica o visual?”
“Não sei, sargento-mor.”
Em nenhum momento o sargento-mor mencionou que o dispositivo
que atingira Grace de raspão tinha perfurado diversos centímetros
de blindagem do tanque, ou que o soldado Carranza não tinha mais
a maior parte do rosto, ou que as pernas dele também tinham sido
destruídas.
Enquanto estávamos no refeitório, o sargento-mor do Exército nos
foi apresentado e disse algumas palavras. O sargento-mor do
Exército é o ranking mais alto que se pode atingir sem ingressar
através de uma academia militar. Então era meio que para ser uma
honra para nós. Ele era um completo merda. Agradeceu a todos
pelo trabalho duro, e aí nos falou de uma mudança que estava
sendo feita nos planos de aposentadoria dos soldados. Disse que o
Exército adiaria o pagamento de pensões para aposentados até que
chegassem à idade de aposentadoria, ou seja, 60 anos. Disse que
as mudanças só afetariam novos recrutas;
mesmo assim, alguns veteranos deram uma prensa no sargento-
mor do Exército.
Um veterano ergueu a mão e disse: “O que exatamente vai
acontecer, sargento-mor?”.
E o sargento-mor do Exército respondeu: “Nós andamos
pesquisando e descobrimos que, já que tantos ex-militares acabam
virando chefes de empresas, as pensões poderiam ser proteladas,
mas lembrem-se de que essas mudanças não afetam ninguém aqui.
Próxima pergunta”.
“Nós vamos receber as nossas pensões ou não, sargento-mor?”
“Todo mundo vai receber pensão. Isso está garantido. Nós
investigamos e, já que tantos ex-militares se tornam líderes
empresariais, o pagamento dessas pensões pode ser adiado.”
Após o grande evento, o sargento Koljo puxou o sargento-mor do
Exército para fora do refeitório e disse que ele precisava fazer
alguma coisa, porque o Exército não nos deixava matar pessoas o
suficiente.
“Não deixam a gente fazer nosso trabalho, sargento-mor.”
Queria que vocês tivessem visto a cara daquele velho filho da
puta. Foi lindo.
E aí Grace foi morto em uma patrulha a pé, duas semanas depois.
Outra bomba. Ele estava usando as ombreiras, mas não adiantou
merda nenhuma.
CAPÍTULO TRINTA E OITO

Em certos dias, não conseguia lembrar da última vez que tinha


chovido. Era um desses dias, mas acabou sendo um dia muito bom,
porque houve uma tempestade de areia. As tempestades de areia
eram maravilhosas; as equipes médicas não podiam voar quando
elas ocorriam, então todas as patrulhas foram canceladas. Essa foi
uma das boas. O vento soprava e soprava, não tinha como ver
merda nenhuma.
Alguém disse: “Olha essa porra”.
E alguém disse: “É mesmo impressionante”.
E então alguém disse: “Tá chovendo”.
“Chovendo!”
Corremos todos para fora, e estava mesmo caindo algumas gotas.
As gotas eram uma delícia no meu rosto. Não conseguia lembrar a
última vez que tinha chovido. O desejo de que chovesse era
tamanho, e lá estava ela. Conseguimos. Chuva.
Todo mundo começou a vir para fora.
“Tá chovendo!”
“Tá chovendo!”
“Tá chovendo, porra!”
“Nem acredito!”
“Não consigo acreditar que tá chovendo, porra!”
E aí alguém falou: “Não é chuva”.
“Não é chuva?”
Disseram:
“Não é chuva!”
“Não é chuva!”
“Não é chuva?”
“Não”, ele disse. “Todos os banheiros químicos foram arrastados.”
“Porra.”
“Não é chuva.”
“É a porra do banheiro químico.”
“Porra.”

teve outro dia de merda. O calor e a luz faziam o cérebro travar


quando eu tentava pensar. Os pensamentos não seguiam uma linha
coerente, e eu enxergava estrelas vermelhas translúcidas. Era
sacanagem eu estar de patrulha, para começo de conversa. Tinha
passado a noite anterior toda numa emboscada com explosivos, e
estava fodido. Além disso, Koljo atirou num cachorro quando
voltávamos, e gosto de cachorros.
Shoo me encontrou de manhã, depois de eu voltar.
“Más notícias”, ele disse. “Você vai ter que sair de novo em uma
hora.”
Encarei ele.
“Já fui dez vezes nessa semana, porra. Que dia é hoje? Esses
desgraçados vão me matar de tanto trabalhar, sabe?”
Ele conteve um sorriso. “Foi mal, cara. Colocaram você na lista de
patrulha. Mas vai ser fácil. É uma patrulha de censo. Já falei com o
tenente Evans e ele sabe da sua situação. Você só tem que ficar
com os veículos na estrada.”
Assenti com a cabeça.
A patrulha de censo saiu lá pelas nove. Por volta do meio-dia, os
que desembarcassem estariam sofrendo. Estava feliz porque não
estaria junto com eles. Em vez disso, ficaria dormindo em algum dos
caminhões. E aí voltaria. Talvez fosse jogar um pouco de carta.
Talvez fosse a uma lojinha haji comprar um pirata, alguns
cigarros. Talvez um pouco de energético. Jantar. O comboio de três
caminhões foi devagar de verdade pela Rota Martha; tínhamos
passado do Ponto de Observação 2, o último da Rota, e não tinha
como saber o que havia na estrada. O comboio parou. Parte da
tropa se agrupou na estrada. Fiquei onde estava, na parte de trás do
caminhão de Evans, quieto. Não queria atrair nenhuma atenção
para mim.
Comecei a acreditar que realmente me safaria. Então o soldado
Dallas bateu na janela: “O tenente precisa de você”.
“De mim?”
“Sim. Disse pra trazer suas coisas. Vamos nos mexer.”
“Não. Era pra eu ficar aqui, com os veículos.”
“O tenente disse que você vai junto.”
Patrulhas de censo eram as piores para mim. Quando entrávamos
em alguma casa onde havia alguém indisposto, doente ou ferido, o
líder de patrulha sempre dizia aos hajis que eu era médico e tinha
remédios. E aí eu tinha que examinar todo mundo. Não importava
que eu não tivesse remédios, antibióticos ou qualquer outra droga
além de ibuprofeno, uns dois comprimidos ruins e injeções de
morfina. Não importava que eu não fosse médico. Não importava se
o haji tinha um tumor no cérebro. Tinha que fingir ser algum tipo de
grande curandeiro.
Na primeira casa daquele dia, tinha um velho haji com algum tipo
de reumatismo avançado. Dei uma olhada nele. A principal
reclamação eram os joelhos. Ele sentou e puxou seu vestido de
homem tão alto que os testículos dele apareceram de modo
proeminente.
Dallas disse: “Acho que ele quer que você chupe as bolas dele”.
Dei ao velho haji um suprimento de três dias de ibuprofeno e disse
a ele para procurar um hospital.
A patrulha prosseguiu.
O tenente Evans era cheio daquele tipo de intenção com o qual se
pode pavimentar uma estrada até o inferno. Mas eu o detestava. E
detestava a patrulha dele. O sol estava torrando a gente, torrando
toda a paisagem. Após horas com nossos cérebros cozinhando e
arrastando todo nosso equipamento cretino, sabendo que era tudo
inútil, estávamos exaustos. Alguns dos caras pareciam não
conseguir mais.
Eu disse: “Senhor, está quente de verdade, o pessoal tá detonado,
e não estamos fazendo nada aqui. Talvez devêssemos pensar em
voltar”.
“Não.”
“Senhor...”
“Eu disse não.”
“Ok... tudo bem. O senhor tá certo. Vamos continuar. Perguntar pra
esses hajis de merda quantos bodes de merda eles têm, até que um
dos caras tenha insolação aqui.”
O tenente ficou surpreso.
Percebi que o que estava fazendo era loucura. Mas já que tinha
começado, continuei. “Quantas vezes, porra, você vai me ignorar
quando tento dizer algo que precisa saber? Não fico dizendo essas
coisas porque gosto de me ouvir falando. Digo essas coisas porque
quero ajudar você. Quero ajudar você, tenente. Lembra quando
disse pra você não dirigir no lodo, porque a gente ia ficar atolado? E
o que aconteceu? Nós atolamos, não foi? E quatro caras morreram.
Você matou meus amigos.”
A parte final foi um pouco demais. Ele não tinha matado eles, e
eles não eram meus amigos. Eram mais conhecidos, na verdade. E
tinha mais uma coisa: se não tivéssemos atolados por causa dele,
nós é que teríamos morrido. Mas essas coisas eu não disse.
Não entendi o que ele dizia. Não conseguia escutar nada. Ergui o
dedo do meio para ele e disse: “Foda-se você e a sua patrulha”.
Me afastei. Voltei para a estrada. Quando cheguei lá, entrei no
caminhão de Evans. O especialista Sullivan estava na torre de
artilharia. Estava monitorando o rádio. Ele disse: “O tenente disse
que é pra você voltar”.
“Diz pra ele ir se foder.”
“Mesmo?”
“Diz pro tenente Evans ir se foder.”
Sullivan ligou o rádio: “Ahm... ele disse que não vai”.
Evans disse que tudo bem.
Dez minutos depois a patrulha voltou para a estrada. Tinha me
acalmado um pouco e estava preparado para que algo ruim
acontecesse comigo. Evans acenou para mim, fui até ele e
caminhamos até nos afastarmos de todos. Ele disse: “Aquilo que
você fez não foi uma coisa boa”.
Não queria olhar para ele. Falei: “Não sei, senhor. Pra mim parecia
muito zoado. Peço desculpas. Não sei o que aconteceu. Acho que
pirei por um minuto, sabe?”.
“Você sabe que eu poderia te levar a uma corte marcial pelo que
acabou de fazer?”
“Sim.”
“Não vou fazer isso, não precisa se preocupar.”
Eu disse: “Obrigado”.
“Não vou dizer nada sobre isso a ninguém quando voltarmos.
Ninguém vai dizer nada sobre você.”
E ele não disse nada.
E ninguém mais disse.
E nada me aconteceu.
um cheque para Roy com um bilhete: mais relaxantes
musculares, oxicodona seria ótimo.
E imagina se ele não me mandou quatro caixas de 80 mg.
Naquela época, Roy pagava 60 dólares por uma caixa de Oxycodin
80 mg. Nada barato.
Na época, eu só cheirava a de 20 mg. Era o suficiente. As de 80
mg durariam quatro dias para mim. O correio era lento pra porra.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE

Quando Arnold foi morto, tivemos que empacotar as coisas dele.


Arnold estava morto pra caralho. Empacotar as coisas dele era uma
bosta. Ele não precisava delas. Quem precisava?
Antes éramos sete no quarto.
Agora éramos cinco.
Shoo estava na patrulha em que Arnold foi morto. Ele me contou o
que viu. Disse que tinha sido feio, uma bagunça completa. Como se
alguém tivesse passado ele num moedor.
“Que azar”, falei. “Ele quase nunca saiu da base.”
Shoo disse que sim: “Foi a terceira vez que saiu”.
“Puta merda.”
E aí tive o dia de folga. Foi bom. Burnes estava por lá também, me
falando sobre as merdas que tinha feito. Ele costumava fumar
maconha quando trabalhava num aeroporto em Boston, e bateu
num avião com o caminhão de combustível que estava dirigindo. Eu
estava superchapado. Burnes deu um pega no seu Miami e bebeu
um gole de café.
E aí Shoo chegou. “Más notícias, pessoal. Vocês vão ter que parar
de fumar aqui.”
Essa foi a pior notícia. Burnes e eu fumávamos uns quatro maços
de Miami por dia.
Burnes disse: “Você tá de sacanagem. Por quê?”.
Falei: “Sarja, isso é ridículo”.
“Tem um cara novo chegando, vindo do Quartel-General. Ele é
peixe do sargento Drummond. O nome dele é especialista Branson
ou algo assim. Vem pra cá hoje.”
Burnes falou: “Qualé, você tá de zoeira”.
Falei: “Sarja, a gente fuma. O Lessing fuma. Cheetah fuma. Todos
nós fumamos, com exceção do Fuentes”.
“E eu não me importo”, disse Fuentes, de um canto do quarto. “O
cheiro aqui não é pior do que seria se eles não fumassem.”
Shoo disse: “Chega de papagaiada! Não tô pedindo, tô mandando.
Está proibido fumar”.
O especialista Branson apareceu uma hora depois. Entrou no
quarto como se fosse dono da porra do lugar, o quarto que tínhamos
dividido por oito meses. Ele era um filho da puta grande, com uma
cabeça rosa e um bigode loiro. Ele nem disse oi.
Lessing tinha voltado nesse meio-tempo. Nós contamos a ele o
que nos tinha sido imposto. Ele disse: “É esse o merda?”.
Fiz que sim com a cabeça.
Burnes baixou o livro que estava lendo e olhou para Branson.
“Qual é o problema, cara? Tô falando sério. Quem diabos você
pensa que é?”
Branson olhou ao redor do quarto. Ele não parecia preocupado
com o rumo das coisas. Dava para ver logo de cara que ele não
perdia muito tempo se preocupando com as coisas.
Falei: “A gente fuma aqui, foda-se você”.
Branson foi até o beliche e ficou olhando a parede onde Lessing
tinha grampeado cinquenta pôsteres de mulher pelada.
Lessing falou: “Ei, bichona. Dá licença?”.
Branson saiu. Não disse nada, nem uma palavra.
Dez minutos depois o sargento Drummond apareceu. “Lessing, tire
essas garotas da sua parede.”
“Como é, sarja?”
“Você me ouviu, Lessing. Branson é cristão, essas mulheres na
parede são uma ofensa pra ele.”
“Diz pra ele ir se foder.”
“Ora, vamos. Não vai doer em você tirar essas garotas da parede.
Ponha elas num livro, e aí você pode olhar pra elas quando quiser.
Que tal?”
Lessing acendeu um Marlboro vermelho e ficou olhando para suas
botas. Estava irritado demais pra continuar a conversa. Drummond
estava satisfeito. Quando foi embora, estava rindo de nós.
“Aí vem o velho Branson”, falou. “Deem espaço para o velho
Branson. Aí vem ele.”
Shoo voltou. “Qual é a porra do problema agora?”.
Lessing disse: “O sargento Drummond disse que tenho que tirar as
fotos por causa do cara novo, sarja”.
Shoo disse: “Você tá de sacanagem”.
Ele disse que não, não estava de sacanagem.
Burnes falou: “Esse cara é um bosta. Por favor, não nos obrigue a
isso, sargento”.
Falei: “É verdade o que ele está dizendo, sarja. Esse tal de
Branson chega, não diz oi pra ninguém, olha tudo, vai embora e aí
vem o sargento Drummond dois segundos depois dizendo pro
Lessing que ele precisa tirar os pôsteres da parede”.
Shoo refletiu, então falou: “Não, não, isso já é demais”.
Ele saiu e falou para Drummond encontrar outro lugar para colocar
Branson.
Fumamos cigarros como sempre fazíamos.
CAPÍTULO QUARENTA

Quando o outono chegou, dava para perceber que estávamos todos


um pouco fora da casinha. Naquelas condições, nenhum de nós
poderia conviver em sociedade; aqueles de nós que chutavam
portas, reviravam casas e atiravam em pessoas estavam psicóticos.
Estávamos prontos para que isso tudo acabasse. Já não havia nada
de interessante na situação. Não havia nada lá. Tínhamos
desperdiçado tempo. Tínhamos perdido.
As pessoas seguiam morrendo: uma ou duas por vez, sem heróis,
sem batalhas. Nada. Éramos só operários, espantalhos de luxo;
colocados lá pra parecermos ocupados, subindo e descendo a
estrada, dispendiosos e completamente idiotas.
Havia rumores de morte: os assassinatos ocasionais, os finais
horrendos. Na Companhia Bravo um médico desistiu, disse que não
conseguia mais encarar a ideia de sair da base. Na Unidade
Antibombas: uma segunda bomba situada abaixo da primeira. Bum.
Etc, etc. Montamos uma base de patrulha. Os hajis detonaram ela
com um carro-bomba. Mais mulheres mortas: uma delas segurando
um bebê, a outra, grávida. Ao menos era outono. Tínhamos
chegado no outono, então tinha um ponto de referência. Estávamos
perto. Um ano, na verdade, é nada. Leva pelo menos isso para se
aprender qualquer coisa sobre combate, e quando você finalmente
sabe o que está fazendo já é hora de ir pra casa.
Fazia um bom tempo que tinha a sensação de que o sargento
North me odiava. Em mais ou menos 50% das vezes que deixei a
base, estava com North. Acho que fiz parte de todas as patrulhas
que North liderou naquele ano, provavelmente foram mais de cem
patrulhas a seu lado. Tínhamos passado por muita merda e também
ficado entediados pra caralho juntos. E agora o desgraçado não
gostava nem um pouco de mim. Tudo bem. Não tinha qualquer
ameaça nisso. Ele só gostava de falar merda, como quando eu
acendia um cigarro em algum momento do dia, e ele vinha e
bancava o cuzão, dizendo: “Não é hora pra intervalo, caralho”.
E bem na frente dos outros babacas, como se eu fosse a porra
dum cabaço.
Não que ele mesmo não fosse um fodido. Fazia disparos cagados
com o lançador M203, mandando granadas pelo lugar todo sem
qualquer aviso. Dava para sacar quando ele estava de mau humor.
Em dias assim, ele podia acabar metendo a patrulha toda num rio,
onde ficávamos cobertos de merda e parasitas. De qualquer forma,
não era pessoal.
Pessoal era o fato de North ter começado a pegar no meu pé o
tempo todo. Na verdade, tudo começou depois que eu disse aquelas
barbaridades ao tenente Evans e abandonei a patrulha. Se North
tinha algo a dizer para mim, mandava alguém dizer, ou então ficava
olhando para algo bem distante em vez de mim, ou me dava as
costas enquanto falava. Faria sentido se North fosse realmente
disciplinado, não alguém que mandava granadas pelo ar sem
qualquer motivo e falava merda de Evans pelas costas quando ele
não estava por perto; não era como se ele fosse totalmente ok.
Então vai entender.
Parte da questão era que eu não era fanático pelos Estados
Unidos como North era. Era isso e o fato de eu não achar a coisa
divertida. No fim das contas, eram só pessoas morrendo, e Emily
provavelmente dando para outros caras. Provavelmente toda vez
que eu estava entrando em alguma casa, algum merda estava
enterrado até as bolas em Emily. Eu estava doente de saudade. E,
claro, deveria ser ótimo ser North, ser durão, acreditar nisso tudo,
ser um assassino. Mas eu nunca tinha sido durão, nem nunca seria.
Se tinha me tornado algum tipo de veterano, tinha sido pela mera
sorte de não ser morto. Às vezes isso é o suficiente para enganar
alguém. Mas North sabia que eu não era de verdade, porque ele
tinha estado comigo metade das vezes, e tinha se dado conta disso.
Tenho certeza que outras pessoas sabiam disso, mas ninguém
chegava nem perto de me odiar tanto por isso quanto North.

e o especialista Jeffries ficavam num quarto do


outro lado do corredor. Eles tinham morado lá o ano todo. Era um
quarto pequeno; você mal notava se não soubesse que estava lá. O
especialista Haussmann também ficava com eles. Nenhum deles
tinha deixado a base muitas vezes. O especialista Haussmann era
ok, mas tinha a mania de resmungar o tempo todo; ele resmungava
mais do que valia a pena aturar, então o deixavam de lado; as
pessoas tinham esquecido ele, e ele estava travado.
O cabo Lockhart e o especialista Jeffries não resmungavam tanto
quanto Haussmann, mas eram particularmente fracos, e alguém
tinha colocado eles como atendentes na sala de armas da
companhia. Escutavam um bocado de My Chemical Romance e
falavam sobre como a esposa do cabo Lockhart era uma vadia, e
tiveram a ideia de pegar camundongos e fazer filmes deles sendo
mortos.
Vi um dos filmes que fizeram. Um rato numa lata de munição
vazia. Uma mão branca e pequena (acredito que a mão era de
Lockhart) aparece no enquadramento. A mão segura um tubo de
fluído para isqueiro, e espreme ele na lata. O rato fica encharcado.
A mão desaparece de cena. A mão volta; usando um isqueiro,
acende o rato. O rato corre de um lado para outro, uma pequena
bola de fogo que para de súbito e cai para o lado feito uma bicicleta
abandonada.
Sempre tinha uma porrada de camundongos correndo pelo prédio,
então tinham muita matéria-prima, e fizeram nem sei quantos filmes
de ratos sendo mortos. Eles se achavam espertos, e às vezes
contavam sobre como em um vídeo tinham afogado um rato, ou
sobre como em outro tinham desmembrado o rato e cortado a
cabeça dele com um cortador de charutos, ou como em outro (sua
obra-prima) crucificaram um rato com palitos de pirulito e
removeram suas vísceras com ele preso à cruz. Haussmann não
sabia o que fazer. Ele tentava ser mudado para outro quarto, mas
não conseguia. “Não é justo”, disse.
A esposa do cabo Lockhart estava em Killeen, Texas, e tinha se
tornado emocionalmente distante. Desde que ele tinha vindo para o
Iraque, ela tinha passado a ir a um monte de festas, trabalhar como
stripper, trepar com um sujeito chamado Dale e gastar todo o
dinheiro do cabo Lockhart. Ela tinha contado sobre todas essas
merdas em mais detalhes do que seria de se esperar. Parecia um
pouco exagerado, mas, em defesa dela, é preciso dizer que ela era
gostosa e que o cabo Lockhart era o tipo de cara que crucificava
camundongos.
CAPÍTULO QUARENTA E UM

Os hajis acertaram a base da patrulha Delta. A estrada próxima à


margem leste do rio era o único meio de chegar lá; era noite, e
obviamente seríamos atingidos. A ideia dos hajis era disparar alguns
pentes de munição, jogar um morteiro na base e, se matassem
alguém, ótimo. Se não matassem, tinham deixado um dispositivo
explosivo na única estrada de acesso, e a Unidade de Resposta
Rápida certamente seria atingida.
O primeiro veículo errou a placa de pressão. O nosso também. Foi
ótimo para nós, que tenhamos errado, porque era grande o
suficiente para ter nos arrombado de verdade.
A placa de pressão estava num ponto da estrada já semidestruído
por minas antigas. A placa de pressão cobria tudo que tinha restado
do asfalto. Por outro lado, a estrada estava tão detonada naquele
ponto que o motorista poderia decidir simplesmente passar pelo
lado.
O terceiro veículo, o caminhão de Evans, acionou o dispositivo. A
explosão foi chocha, como se tivesse explodido abaixo da terra.
Perez estava na escotilha de artilharia, berrando: “ ! !”.
Sullivan tirou o pé do acelerador e o caminhão foi reduzindo
velocidade até parar. Coloquei minha mochila de socorros no ombro
e abri a porta de trás. Estava com metade do corpo para fora
quando Sullivan pisou no acelerador de novo. O caminhão foi em
frente e aterrissei de cara no chão. Hueso-Santiago passou
correndo por mim enquanto eu tentava voltar à vida. Ele era o
comandante de veículo do primeiro caminhão. Tinha decidido
inspecionar o veículo atingido. Eu também corria naquela direção.
Alcancei Hueso-Santiago. Ele estava se esgueirando pela parte da
frente do veículo atingido. Todos estavam bem, exceto pelo soldado
Miller, e mesmo ele não estava tão mal. Atingido por alguns
estilhaços na coxa esquerda. Hueso-Santiago o puxou pela
abertura.
O buraco na coxa de Miller era grande o suficiente para se colocar
um polegar dentro, com folga. Mas ele ficaria bem. O estilhaço não
tinha atingido a artéria. Enchi o buraco com gaze e coloquei
bandagem em volta da coxa para manter o ferimento pressionado.
Achei uma veia nele e apliquei morfina. Disse a Hueso-Santiago
para chamar a equipe de evacuação para cirurgia urgente, porque
uma vez Shoo havia me dito para sempre alertar a equipe para
cirurgia urgente, mesmo que não fosse o caso.
Esse era um ferido fácil. O ferido tinha rosto. Não tinha sido
queimado. Não tinha sangramento interno. Ficaria bem. Ganharia
uma Coração Púrpura, e a medalha faria com que ele trepasse mais
do que teria trepado sem ela, e ele nem mesmo teve que se
machucar tanto para isso. O lance com a Coração Púrpura é que
você não pode se machucar demais. Se você se machuca demais,
aí as garotas não trepam com você, independente de quantas
Coração Púrpura você tenha.
A Unidade de Resposta Rápida 2 levou um bom tempo para
chegar até nós com a Unidade Antibombas e um caminhão-guincho.
Tinha alguma merda acontecendo na base. As pessoas diziam: “A
base foi invadida!”.
No fim, isso se mostrou exagero. O que de fato aconteceu foi que
alguns dos snipers do batalhão subiram nos andaimes da estação
de força, e um sujeito em frente ao centro de operações da
Companhia Delta viu os snipers e achou que eles fossem hajis. Aí
atirou neles. Os tiros erraram os snipers, mas atingiram o centro de
operações da Companhia Eco. Na Eco, acharam que os tiros
vinham dos andaimes, pois também tinham visto os snipers lá em
cima. A Eco começou a atirar. Os tiros erraram os snipers, mas
atingiram o centro de operações da Companhia Delta. Na Delta,
agora tinham certeza de que se tratava de hajis, e um monte de
caras da Delta dispararam contra os snipers. Um tiroteio se seguiu
entre as duas companhias de artilharia de elite americanas, e os
snipers do batalhão estavam bem no meio do fogo cruzado. No
meio da confusão toda, um dos intérpretes instalou um dispositivo
explosivo na sala de pesos do batalhão. Ninguém se feriu
gravemente.

deixado o estado de Washington. Tinha voltado a Elba.


Iria voltar a estudar. Ela não estava mais no meio da porra da
natureza selvagem, e podia ligar para ela de novo. Então ligava para
ela quando podia, mas não tinha muito o que conversar. Tudo que
podia dizer era que em breve voltaria. Eu falava como se sequer
imaginasse que ela não estava exatamente ansiosa por isso;
embora eu soubesse, e sempre tenha sabido. Ainda assim, você se
agarra à mentira.
Paguei a mensalidade de todo o semestre do outono.
Foi ela quem pediu o dinheiro, então achei que estivéssemos bem.
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

A pior conclusão seria ser morto no final, depois de toda a merda.


Se você não fosse voltar para casa, o melhor era ser morto logo no
começo. Essa era a lógica. Você não queria ser morto no final.
Dois em nosso batalhão foram mortos naquela manhã. Tínhamos
saído naquela noite, um esquadrão de caras do Terceiro Pelotão,
comandados por Evans. Era para ser nossa última patrulha em toda
missão, e o time era um mix de inúteis e gorduchos. Não conseguia
imaginar nossa utilidade. Mas estávamos só saindo em caminhões,
indo e voltando pelo curto trajeto da Rota Martha. Então não
importava.
Não fazia muito tempo que tínhamos saído quando o rádio da
companhia avisou que o Raptor tinha enviado imagens de quatro
homens armados. Os homens armados estavam a leste de nós. As
coordenadas foram passadas. Queriam saber se o tenente Evans
conseguia chegar lá.
Ele olhou no mapa. “Cerca de um quilômetro.”
Falei: “Senhor, essa é uma má ideia”.
“Por que é uma má ideia?”
“Com o devido respeito, senhor, mandaram a gente pra cá com
três dos gordos mais inúteis da companhia, esses são nossos
soldados. Pense nisso. Você acha que esses caras, fora da estrada,
num escuro da porra, conseguem atravessar esses canais de
esgoto por um quilômetro? Vão fazer um barulho danado. Os hajis
vão ouvir a gente chegando o caminho todo. Já vi esses caras em
patrulhas a pé, senhor. Eles são um desastre. Borges sabe atirar,
mas não consegue caminhar, e o resto deles é completamente
imprestável. Zero habilidade. Não dá pra esperar que esses caras e
mais um médico, sem nenhum suboficial, troquem tiros com quatro
caras armados, que vão ouvir a gente chegando a um quilômetro de
distância. Sinto muito, senhor, mas é uma péssima ideia.”
“... Não sei.”
“Senhor, com o devido respeito, seria diferente se tivéssemos
qualquer chance de sucesso. Mas olhe para o que temos à
disposição. Não vai acabar bem. Na melhor das hipóteses, vai ser
perda de tempo. Mas faça o que achar certo, senhor, e eu vou
junto.”
Ele ligou o rádio. “Câmbio, Eco, aqui é eco três seis... Parece que
não temos como chegar lá, de onde estamos.”

noite na base, alguns de nós nos reunimos e


ficamos passando entre nós latas de solvente. Inalamos solvente
até o sargento Bautista perder contato com seu sistema nervoso
central. Ele se balançava para frente e para trás feito um pianista
cego. Um fio de baba escorria do lábio de Bautista, se acumulando
no seu colo.
Dissemos: “Ah, porra. Olha isso”.
Perguntamos se ele estava bem.
Depois de um minuto, ele disse que estava bem.
Aí ele fungou uma última lata de solvente.
E tudo estava bem, como se fôssemos garotos.
CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS

O avião tocou a pista em Fort Hood por volta das onze da manhã de
uma terça-feira. Fomos levados de ônibus do campo de pouso até
um estacionamento na avenida do Batalhão. Nos mandaram
esperar em fila na calçada, porque deveríamos entrar correndo num
ginásio onde as famílias de vários caras estariam. Tinha um
subwoofer ligado no ginásio, e dava para ouvir o bumbo a cem
metros na avenida. Eu estava no fim da fila. Começamos a andar. À
minha frente, os caras corriam para dentro do ginásio. Agora a linha
de baixo havia entrado, junto com bumbo. Mais para o fim da fila
eram todos manés, em sua maioria manés que odiavam esse tipo
de merda. Bancar o mico de circo. Não sentia que tivesse feito
qualquer coisa que justificasse ficar correndo por um ginásio.
Tinha máquinas de gelo seco, atravessamos a fumaça. O
estava tocando o refrão de “Disco Inferno”, do The Trammps, em
loop:

Burn, baby, burn...


Burn, baby, burn...
Burn, baby, burn...

As famílias estavam nas arquibancadas, saudando e gritando os


nomes dos caras todos, acenando, tirando fotos, filmando. Os
soldados formaram fileiras. O primeiro-sargento Hightower nos disse
que todo mundo que morava em cidades que não a da base
estavam livres para partir após recolherem suas mochilas. Todos
que ficariam nos alojamentos precisavam reportar e aguardar pela
definição de seu quarto. Disse que estávamos de folga até o
próximo domingo, porque na quinta-feira era feriado de Ação de
Graças. Ele disse que a gente podia cair fora, e caímos fora. Caras
procuravam suas famílias. Maridos abraçando esposas. Pais
abraçando filhos. Tive que sair daquela merda de ginásio porque
sentia um ataque de pânico chegando. Ânsia de vômito e tudo mais.
E acho que fui ingrato, considerando a quantidade de pessoas no
ginásio, e o . Mas eles não eram minha família e foda-se o .
Você faz o melhor que pode.
Foi tudo mais rápido que o esperado, no quartel. Já tinham
separado tudo, estavam esperando por nós. Só precisávamos ter
nossos quartos definidos. Foi quando deixei a Companhia Eco e fui
reintegrado ao Quartel-General. De repente, não era mais um
médico de combate. Meu colega de quarto era algum merda
aleatório que eu não conhecia. Ele tinha vindo para o batalhão no
meio de nossa missão e tinha ficado no quartel o tempo todo. Não
lembro o nome dele. Lembro que ele comprou um Xbox 360, bebia
Pepsi, usava óculos e tinha cabelo castanho. Ele tinha um fone com
microfone para falar com a namorada na porra do Kansas (acho)
enquanto jogava videogame. É tudo que lembro dele.
Fui até um shopping em Killeen e comprei um celular em um
quiosque. O plano do aparelho acabou sendo um roubo. As pessoas
tinham começado a usar mensagens de texto enquanto estive fora,
e não fazia ideia de quanto as mensagens de texto custavam. Liguei
para meus pais e disse para eles que tinha voltado bem. Minha mãe
falou que ela e meu pai iriam pegar um avião para o Texas, porque
um amigo do meu pai estava prestes a morrer em Dallas. Eles
chegariam em Dallas na quinta, e Dallas fica a apenas algumas
horas de Killeen, então seria fácil ir até lá ver eles. Disse que
tentaria fazer isso.
Fui de táxi até um Walmart e comprei algumas roupas, lençóis e
uma luminária de mesa. Voltei para a base e bebi pra valer. Tinha
um posto de gasolina 24h com loja de bebidas perto do portão
principal da base, então a birita não iria acabar.
Quando estava bêbado, liguei para Emily, e não foi bom. Estava
magoado pra caralho por ela não ter ido pra lá. Sentia tanta
saudade dela. Falei que sabia que ela tinha me traído.
Falei: “Você me partiu o coração, vadia de merda”.
Ela falou: “Do que você tá falando? Bebê, você parece um
psicopata falando”.
Falei: “Por que você fez isso? Que foi que eu fiz pra você, porra?”.
Ela disse que não tinha me traído.
Só que era um momento ruim.

, estava no lado do alojamento da Companhia


Eco, e Borges começou a discutir com Haussmann. Não sei o
motivo. Mas Borges tentou esfaquear Haussmann, e Haussmann
escapou e ligou para a polícia.
A polícia chegou com North. North estava no comando do
alojamento naquela noite. Os policiais não eram da Polícia Militar,
eram do departamento de polícia de Killeen. Já tinha explicado para
Haussmann que ele tinha feito uma cagada e agora precisava
consertar, e Lessing tinha dito o mesmo para Borges, parecia que
estávamos todos de acordo. Os policiais nos separaram. Um deles
estava conversando com Borges e Lessing, e o outro estava falando
comigo e Haussmann, e ajudei Haussmann a contar ao policial que
tinha sido um mal-entendido. Na verdade, ninguém tinha tentado
esfaquear ninguém. Tinha sido só fofoca. Isso era tudo. Uma
infelicidade, com certeza. Mas nada demais. Sentíamos muito pela
inconveniência.
“Fofoca?”
“Sim, senhor. Fofoca.”
Ele disse que a gente estava de palhaçada. Falou: “Acho que você
tá de palhaçada e acho você tá de palhaçada”.
Ele estava apontando o dedo na nossa cara e tudo mais.
Perguntei por que ele estava fazendo isso.
“Eu não falei palavrão pra você, porra”, disse. “Por que caralho tá
me xingando? Voltei ontem, filho da puta. Acho que essa merda
toda é um ‘seja bem-vindo’, não é?”
North mandou eu me acalmar. Percebi algo na voz dele, como se
ele mesmo sentisse vontade de poder me prender, em vez dos
policiais. Senti náusea, tentei ignorar.
Haussmann disse: “Olha, senhor policial. Sinto muito que tenha
sido chamado até aqui, e que eu tenha desperdiçado o seu tempo.
Foi um mal-entendido. Ninguém tentou me esfaquear”.
Borges estava mais adiante no corredor, com Lessing e o outro
policial. Ele se virou para nós e berrou: “
. ”.
De algum modo, ninguém foi preso. E tudo ficou bem. Sem
ressentimentos. Fomos todos para o mesmo restaurante: Borges,
Haussmann, Lessing e eu. A garçonete estava grávida de, tipo, cem
meses. Ela tinha o nome Shawn tatuado em grandes letras no lado
esquerdo do pescoço. Mas nem isso convenceu Borges a não
cantar ela. Não obteve sucesso. E a garçonete disse que não iria
mais servir chá gelado para Borges.
Então Lessing disse: “Não é o porra do tenente Nathan?”.
E era mesmo o tenente Nathan. Fomos até ele e dissemos oi.
Nathan era um sujeito legal. Talvez um pouco zoado por toda a
lavagem cerebral. Mas quem não era? E ele estava feliz em nos ver.
Ele disse: “E como vai esse pessoal?”.
Dissemos que estávamos bem.
Eles nos apresentou um amigo, outro tenente. Nathan disse que o
cara tinha sido o oficial de reconhecimento avançado da tropa.
“Ah”, dissemos. “Certo.”
Nathan foi mijar.
Dissemos ao oficial de reconhecimento: “Vocês encararam uma
puta bronca por lá”.
O oficial de reconhecimento disse: “Vocês também”.
“É. Nós também.”
“Mas acho que a nossa foi um pouco pior”, ele falou.
“Mas tivemos mais baixas do que vocês.”
“É verdade”, ele falou. “Mas perdemos os nossos todos em dois
meses. Para vocês, levou mais tempo.”
Ninguém se ofendeu. Era como as coisas eram. O oficial de
reconhecimento nos contou tudo sobre um subsargento da sua
tropa que explodiu em chamas, saiu de seu caminhão e correu pela
estrada pegando fogo. Disse que, no meio de toda a confusão, não
sabiam para onde o sujeito tinha corrido, e levaram dez minutos
procurando por ele até que o encontraram em um arbusto, em uma
vala ao lado da estrada, queimado até a morte.
Nathan voltou do banheiro e disse: “Vou pagar uma rodada para
todos vocês, certo? Que acham?”.
Dissemos que seria ótimo e agradecemos.
“Qual sua bebida?”
Disse que gostava de uísque Red Label.
Depois de se certificar que cada um tinha uma dose dupla de Red
Label na mão, ele disse que gostaria de fazer um brinde.
“A dois cheiros”, disse, “o de buceta e o de pólvora... Viver por um.
Morrer pelo outro. E adorar ambos.”
Bebemos os tragos. Nathan foi para o lado de fora e vomitou numa
floreira. Borges disse que queria ir a um strip club. Perguntamos aos
tenentes se eles queriam ir, mas eles disseram que não, não
queriam. Então agradecemos Nathan de novo e nos separamos.
Borges foi chutado do strip club depois de derramar chá gelado no
equipamento do , que se tinha se recusado a tocar qualquer
música do Cypress Hill. Lessing e Haussmann foram chutados
porque deixaram escapar que conheciam Borges. Eu estava longe,
tentando conseguir uma bebida no bar, e não vi o que aconteceu.
Depois de um tempo, me dei conta que meus amigos não estavam
mais comigo. Mas não fui procurar eles. Talvez devesse ter ligado
para eles, mas tinha deixado meu telefone no alojamento. Então
disse foda-se, terminei minha bebida e pedi mais uma.
Tinha chegado a hora de fechar. Uma dançarina tinha acabado de
se pintar com vermelho, branco e azul ao som daquela música do
Toby Keith, no grand finale da noite. Estava numa mesa sozinho,
encarando um gim tônica que tinha comprado na última rodada do
bar.
Alguém disse: “Tudo bem com você, meu bem?”.
Ela usava sapatos plásticos. Disse que estava bem. Tinha
acabado de retornar com a Quarta Divisão de Infantaria e estava
meio zoado, mas bem. Ela disse algumas coisas boas e perguntou o
que eu iria fazer no feriado de Ação de Graças. Disse que queria ir
até Dallas encontrar meus pais, porque eles estariam lá. Mas ainda
não tinha carona. Ela disse que estava indo para Dallas ver a família
e que poderia me dar uma carona se eu quisesse. Agradeci e disse
que seria uma boa. Ela me passou o número dela e me pediu para
ligar pela manhã.
Encontrei ela no shopping. Dei algum dinheiro para a gasolina e
pegamos a estrada, seguindo para o norte pela Rodovia 35.
Estávamos na metade do caminho para Dallas quando ela me
perguntou se eu queria um Vicodin. Disse que sim. Vi a cicatriz no
braço dela. Ia do cotovelo até o pulso. Ela me contou sobre o
acidente de carro pelo qual tinha passado. Contou que estava
levando a sobrinha de carro e acabou se envolvendo num acidente
na rodovia. A sobrinha dela também se feriu. Os bombeiros tiveram
que cortar o carro para tirar as duas. Ela disse que a sobrinha dela
ficou aterrorizada, berrando, porque a garota sangrava na cabeça e
o socorro não conseguia alcançar ela. Disse que odiava relembrar o
que fez a sobrinha passar. Falei que ela não tinha sido de propósito,
que esse tipo de coisa acontece.
Meus pais estavam em um hotel em Fort Worth. Ela me deixou no
estacionamento. Desejei boa sorte a ela. Ela disse ok e foi embora.
Passei a ceia de Ação de Graças com meus pais num restaurante
do lado do hotel. Então fomos para o hospital ver o sujeito
moribundo.
A esposa dele era vinte anos mais nova que ele. Era a segunda
esposa. Eles costumavam trabalhar juntos.
Meu pai disse: “Esse é nosso filho. Ele acabou de voltar do
Iraque”.
A mulher não dava a mínima, mas se esforçou.
Ela disse: “Meu irmão está no Exército. Ele é mecânico ou algo
assim. Eles entram em território inimigo”.
Não prosseguimos com o assunto. Meus pais perguntaram como
ela estava se virando. Ela disse que estava se virando bem, apesar
da primeira esposa e dos filhos do primeiro casamento a
atormentarem e do fato de ela estar completamente sozinha.
Meu pai me disse que queria que eu visse o amigo dele. Entramos
no quarto onde ele estava, entubado. Não tinha sobrado muito dele,
e a cada fôlego parecia que ia se partir ao meio. Levando em conta
o que respirar parecia fazer com ele, já parecia morto.
Eles tinham uma filhinha, uma casa e um golden retriever. Fomos
até a casa após sair do hospital, e meus pais conversaram com a
esposa por cerca de uma hora. Eles disseram que fariam tudo que
pudessem por ela. Ela agradeceu, disse que eram muito bondosos.
Mas ela estava só dizendo coisas. Eles estavam apenas falando. E
todos sabiam que nada ficaria bem.

, falei com Emily pelo telefone. Ela me contou o que


eu já sabia, e dormi no chão do banheiro. Meus pais me levaram de
volta para Killeen pela manhã. Demorou muito tempo, porque o
trânsito estava parado por quilômetros devido a um acidente, e
levaria o dia inteiro para desobstruir a estrada. Algumas pessoas
tinham morrido. Meu pai falou mais sobre seu amigo, sobre como
eram antes de ficarem velhos.
CAPÍTULO QUARENTA E
QUATRO

Me aconteceu uma coisa engraçada uma vez: depois que nos


casamos, Emily fez uma depilação definitiva e começou a ter uma
sequência de namorados, e aí descobri que eu era tipo o centésimo
cara a ver sua depilação. E isso me derrubou. Mas, justiça seja feita:
eu é que tinha ido para o Iraque. E, justiça seja feita: nosso
casamento era uma mentira. Talvez ela tenha achado que eu iria
morrer, e nunca descobriria.
Durante meus últimos três meses no Exército, no Texas, bebia
uma garrafa de gim toda noite. Cagava sangue. Peidava sangue.
Batia punheta no banheiro, me sentindo meio mal.
Fui para casa no Natal e tinha uma garota por lá; ela disse que
estava menstruada então fizemos só uma espanhola, e eu queria
morrer. Ela disse: “Você se importa em não me acertar no rosto com
seu pau?”.
Voltei ao Texas, e lá era um pouco melhor. As pessoas sabiam
como era. E tinha um monte delas pirando no Texas, então o Texas
era bom pra isso: você não se sentia zoado contanto que estivesse
no Texas.
Mas eu estava realmente saindo do Exército; meus minutos
estavam contados. Seria de se pensar que tudo estava bem, mas
nem tudo estava bem. Sentia como se estivesse abandonando meu
pessoal. Na verdade, eles estavam cagando se eu ia embora ou
não, mas foi assim que me senti, como se estivesse abandonando
meu pessoal. Pensei, talvez eu devesse ficar.
Mas não fiquei. Fui embora. Os desgraçados me fizeram me
candidatar pra Guarda Nacional antes de me deixarem partir, mas
me deixaram ir embora e aí piquei a mula. Voltei para Ohio. Parei
em Elba no caminho. Emily queria o divórcio. Então nos
divorciamos, e fui para casa. Tinha um pouco de dinheiro, e comecei
a me detonar com drogas. Sentia que, se tivesse um pouco de
dinheiro e pudesse me detonar com drogas, talvez conseguisse
sobreviver, e algo bom acabaria acontecendo. O que aconteceu foi
que uma noite em março me entupi de coca e liguei para Emily no
meio da noite; e eu disse: “Eu perdoo você. Preciso tanto de você.
Tá trepando com alguém agora? Não me importo com o que você
fez. Não vou tocar no assunto. Mas não acho que eu consiga viver
sem você”.
Ela disse: “O que você quer dizer?”.
“Tenho que soletrar pra você, porra?”
Tinha alugado um apartamento em Coventry Road em Cleveland
Heights, e Emily foi morar comigo na primeira semana de abril e
tentou viver comigo. Ela tinha acabado de se formar com honras e
era linda, dourada, e tudo mais: eu tentei pra caralho. Comprei um
monte de mobília cretina. Pensei, é isso que as pessoas fazem
quando chegam à vida adulta. Levei Emily ao teatro e comprei um
vestido para ela. Ela trocou por outro vestido, vestiu esse vestido, eu
vesti o único terno que tinha, tomamos um Xanax de 1 mg cada um
e fomos ao teatro. Era uma peça só com uma mulher, sobre Ella
Fitzgerald. Tinha comprado os ingressos bastante tempo antes.
Emily gostava muito de Ella Fitzgerald. Enfim, quando chegamos
éramos os únicos bem-vestidos. Era um monte de gente de meia-
idade e velhos dos subúrbios, todos usando roupas de montanhista
e coisas assim. Caras de meia-idade endinheirados, que não
conseguiam nem usar um casaco esportivo. Eles mereciam tomar
vômito. Essa era a vida pela qual tínhamos batalhado. A peça foi ok.
Aí Emily e eu fomos para casa, tomamos mais Xanax, apagamos e
fomos dormir, e James Lightfoot tentou me ligar, mas não ouvi o
telefone tocando. Essa foi a noite que ele foi preso tentando entrar
no meu apartamento, só que não era o meu apartamento; ele tentou
arrombar o edifício errado. Os policiais encontraram uma faca com
ele. Tinha droga na parada.

reunião na Guarda Nacional não foi nenhum grande


sucesso. Todo mundo achou que eu era um babaca porque era
péssimo em disfarçar que achava todo mundo babaca. Aparecia
chapado de OxyContin, e tinha esquecido de vestir uma camiseta
por baixo. Sei lá, eu só odiava essa unidade cretina da Guarda
porque não era a Companhia, metade deles eram xerifes de folga e
umas merdas assim, e o jeito que eles falavam me dava vontade de
vomitar.
Tinha começado a estudar de novo. Estava frequentando uma
escola estadual no centro, ia para a escola e Emily cheirava toda
minha coca e deixava um bilhete na gaveta dizendo que queria que
eu parasse de usar cocaína. Ela era uma vaca de primeira classe; é
por isso que amo ela tanto.
Não deu certo. Foi 70% minha culpa. Estava usando OxyContin
pra valer, e isso me deixava inclinado a não aceitar desaforo dela.
Além disso, estava bem zoado da cabeça, tinha virado um merda
triste e doido por causa dos horrores pelos quais tinha passado. É
verdade que passar por coisas horríveis te fode por completo. Não
me interessa o que algum filho da puta violento diga; se não te fode,
é porque você é estúpido pra caralho. Ainda assim, é inútil virar um
merda triste e doido por causa disso, porque é assim que você
acaba se matando. Andava vendo fantasmas. E falava demais. E eu
estava deixando ela deprimida. Acho que queria que ela se sentisse
na merda.
Mas o que acabou com tudo foi que me apaixonei por uma garota
de Barcelona de 18 anos. Zoë. Tecnicamente, ela tinha 17 anos e
350 dias de idade. Mas não fiz nada. Só levei ela para comer
panquecas. E Emily descobriu. De todas as pessoas possíveis, foi
Roy quem contou a Emily que levei Zoë para comer panquecas.
Além disso, ele não contou a história toda, e me fez parecer um
merda. O lance foi: eu estava bebendo na casa do Roy e tinha
perguntado a diversas pessoas se alguém gostaria de ir comer
panquecas comigo, e quase todas as pessoas que convidei eram
caras. Todas, exceto uma, essa garota, Zoë.
Falei: “Roy, quer ir comigo comer panquecas?”.
Ele disse que não.
Falei: “Joe, quer ir comigo comer panquecas?”.
A mesma coisa.
Todos disseram que não queriam panquecas. Só Zoë disse que
queria ir. Aí nós fomos, e íamos só comer panquecas; talvez
estivesse apaixonado por Zoë, mas não tinha nada a ver com isso.
Talvez estivesse feliz apenas por ela ter ido comigo, mas não
aconteceu de propósito. Mas Roy não contou nada disso a Emily.
Ele fez parecer que tinha sido algum tipo de encontro de panquecas
clandestino, e Emily ficou bem puta comigo. Cheguei em casa e ela
atirou um copo na parede e falou: “Como tava a merda da
panqueca?”.
Sem brincadeira. Era o fim. Poucos dias depois, Emily foi embora.
Ela levou as coisas dela junto: as almofadas, a panela elétrica, tudo.
Não tentei impedir; ela ficaria melhor no lugar para onde estava
indo, e eu estava cansado dela.
Zoë fez 18 anos, mas não fez diferença, não tinha como eu
conseguir trepar com ela. Estava acabado. Pensei um bocado em
Emily e seus namorados: o porto-riquenho que trazia Valium, o
fotógrafo de vida selvagem francês, Dave do parque florestal. E
esses eram só os caras dos quais eu sabia. Me perguntei o que eles
fizeram com ela, se tinham feito ela gozar. Tinham se importado, ou
só comido ela? Será que ela havia feito com eles coisas que não
fazia comigo? Será que falava de mim? Será que disse para eles
que eu merecia?
Meio que parei de ir às aulas. Estudar era demais pra mim. Sentia
como se já soubesse demais. Já tinha visto o fim do filme. A única
coisa boa das aulas era que tinha conseguido me livrar de duas
semanas de treinamento de verão na Guarda Nacional. Falei, Não
posso ir porque tô estudando, pagando do meu bolso. Eles
disseram, Fazemos isso todo verão. Falei, Eu não sabia disso. Eles
disseram, Todo mundo sabe. Eu disse, Vocês deviam ter me dito.
Óbvio que eu sabia, mas não tinha a menor chance de eu passar
duas semanas na floresta brincando com um monte de auxiliares de
xerife de folga. Tinha coisas mais importantes pra fazer.
Ficava acordado sozinho até de manhã cedo e cheirava cocaína e
Oxy. Um grama aqui, 40 mg ali. Outros 40 mg. Usava o wi-fi do
vizinho para assistir pornografia. Escrevia poesia. Bebia vodca.
Vodca era boa, porque podia beber o dia todo sem cagar sangue.
Imaginava que todas as atrizes pornôs eram viúvas da guerra, e
isso me deixava triste. Atacava a vodca, cheirava um pouco de pó
na minha mesinha e escrevia cinco ou seis poemas entre as três e
as nove da manhã — poemas em sua maioria sobre a
impossibilidade do amor verdadeiro, poemas principalmente sobre
drogas que gostava de usar, poemas sobre garotas recém-
chegadas à maioridade chupando rolas, poemas sobre como a
morte é uma merda. E aí ia pra cama. Mandei alguns poemas para
a revista The New Yorker, mas não foram aceitos. Aí meu laptop
morreu e perdi meus poemas.

de levar James Lightfoot à estação de polícia em Linndale.


James Lightfoot era um cara legal, mas também fodido da cabeça.
Não sei todos os detalhes de por que ou como ele ficou fodido da
cabeça, ou mesmo se esses detalhes existiam. Ele na certa só tinha
nascido fodido da cabeça. Acho que nasci assim também, foi só
uma coincidência ter ido pra guerra, e a guerra provavelmente não
tinha tanto a ver com eu ser fodido da cabeça. De todo modo,
James Lightfoot não era uma pessoa feliz, porque as pessoas
tratavam ele feito merda porque ele era quase normal só que não;
tinha um olho caído e era franzino de um jeito que dava para ver
que ele não sabia lutar, e tudo que ele tinha eram coisas com as
quais ninguém se importava o suficiente para roubar dele.
Ele precisava pagar uma multa, e eu tive que pegar o dinheiro e
pagar no lugar dele, porque ele tinha outras multas pendentes, e se
entrasse na delegacia poderia ser preso. Cheirei um pouco de coca
antes de sair do apartamento, apanhei James Lightfoot e fomos
para Linndale. Nunca tinha ido a Linndale antes. Era a primeira vez
que ouvia falar de lá. Fomos até a delegacia, James Lightfoot me
deu o dinheiro para pagar a multa, e entrei. Falei para o policial
atrás da divisória de vidro que estava ali para pagar a multa de
James Lightfoot, e ele disse que precisava conferir minha
identificação. Dei a ele minha carteira de motorista e, quando pegou
ela, foi para a parte de trás do escritório; quando olhei para minha
mão, vi que ela estava suja de coca por ter tocado na carteira de
motorista. Senti vergonha e fiquei mais do que um pouco
preocupado, mas não fugi, porque senti que estava fodido de
qualquer jeito; e aí o policial voltou e nem mencionou a cocaína na
carteira. Tudo certo, e a multa foi paga.
Voltamos para a zona leste, e James Lightfoot queria me passar
alguns dos contracheques dele em troca do valor em dinheiro, já
que ele não podia ter conta em banco, porque estava com o nome
sujo e o crédito dele estava totalmente fodido. Fomos ao banco e o
caixa não me deixava depositar os cheques que James Lightfoot
tinha me passado, mesmo com ele estando lá com seu passaporte,
e mesmo com dinheiro suficiente na minha conta para cobrir os
cheques. O pessoal do banco nos considerava clientes indesejáveis.
Não conseguimos fazer nada, e fomos embora. Levei James
Lightfoot até a casa da mãe dele, usei o telefone para ligar para o
0800 do banco e disse a eles que era um veterano de guerra e que
um caixa e o gerente na filial de Warrensville tinham me tratado
como um cliente indesejável e que eu ainda não sabia o que iria
fazer, mas tinha certeza que aquilo não era jeito de tratar pessoas.
Desliguei. Estava na rodovia e o sol queimava meus olhos, tudo
tinha mudado e nada tinha mudado.

ficar comigo alguns dias. Íamos juntos na Noite Anos 80,


todo domingo. Acho que ela gostava de mim, mesmo eu sendo um
merda. Ou isso, ou ela gostava de cocaína. Talvez um pouco de
cada. Mas ela era boa mesmo. Tocava violoncelo, tinha estudado
para isso. E sabia falar três idiomas. Ela falava francês, e eu
gostava do jeito que pronunciava os erres. Pedia para ela falar os
erres, e ela falava. Eu tentava, mas não conseguia de jeito nenhum
fazer igual, e ela achava engraçado. Tentei cheirar uma linha de
coca na barriga dela, mas não tinha ar-condicionado e ela estava
com a pele suada, então não deu certo e lambi.
Fomos até o lago. Ela dirigiu. Ela tinha um Volkswagen branco
pequeno. Eu não conseguia dirigir porque tinha câmbio manual. Ela
passou sem parar por todas as placas de . Essa era
claramente uma questão de princípio pra ela; não sei qual,
exatamente, mas ela quase nunca parava nelas.
Chegamos à margem do lago vestindo nossas roupas de banho.
Ela estava ótima na roupa dela. Tinha uma pele perfeita. Era como
uma garota de revista. Ela parecia ótima no sol, enquanto eu
parecia mal. Eu não saía muito durante o dia, e estava muito pálido.
Dava pra ver as cicatrizes em todo meu corpo nos lugares onde as
varejeiras do deserto tinham me picado no verão anterior, quando
tinha passado por pântanos e córregos de merda e todas aquelas
coisas. Também não andava comendo muito, e tinha aquele físico
de quem usa cocaína. Tinha também as queimaduras de cigarro, já
que naquele tempo tinha a tendência de me queimar com cigarros
quando ficava na fossa mesmo. No fim das contas, eu era só um
vira-lata coberto de sarna.
Havia vários peixes mortos na margem do lago. Eles estavam na
areia ao nosso redor, em diversos estados de decomposição. Mas
era sempre assim na margem do lago. Ele cheirava a gasolina.
Entramos na água e nadamos um pouco. Nos beijamos. Algum
tempo depois, voltamos. E, de repente, era como se ela não
gostasse de mim, como se nunca jamais tivesse gostado de mim.
Ela ficava assim de tempos em tempos; simplesmente mudava de
ideia a meu respeito. Me deixava na merda; mas aí eu dizia para
mim mesmo, Você merece muito isso.
Ela iria voltar para Barcelona no fim de agosto. Sempre soube
disso. Era para isso ter acontecido na primeira vez que a encontrei.
Mas não achei que seria possível que eu vivesse o suficiente para
ver isso acontecer. Mas então aconteceu. Antes de ir embora, ela
me deu uma carta. A carta dizia: “Espere”.
Ela esperou uns dois dias.
Eu esperei três.

. Algumas garotas eu não merecia. Algumas, sim.


Uma constante: eu era sempre um cuzão.
Quando estava prestes a me matar, fui até o Centro de Saúde dos
Veteranos. Aguardei na sala de espera. Tinha mais duas pessoas.
Idosos. Um homem e uma mulher. O homem tinha um tanque de
oxigênio e um daqueles chapéus que dizem em que navio ele ficou.
A mulher — sua esposa, imagino — parecia uma batata tentando
assoviar uma música. Uma música feliz. Quando chegou minha vez,
disse ao pessoal do hospital que estava muito perto de me matar,
mas que não queria fazer isso, e agora não sabia o que fazer. Eles
me disseram para esperar e me mandaram de volta pra sala de
espera, só que numa parte diferente, toda cercada de chapas de
acrílico transparente; fecharam a porta e fiquei sentado um tempo,
afastado das outras pessoas. Aí veio uma mulher e me perguntou
se queria ficar internado, e, como sabia que isso seria ruim, eu disse
que ia embora. Ela disse que iria marcar para mim uma consulta
com um psiquiatra em alguns dias. Eu disse que tudo bem.
Naquele sábado, a Guarda Nacional mandou uns caras até meu
apartamento para me pegarem. Tinha decidido que para mim aquele
negócio de soldado de brincadeira já era. Fui com eles até o arsenal
e disse para um dos caras que, a partir daquele momento, iria me
esforçar de verdade, isso porque estava encurralado e precisava
dizer alguma merda assim, mesmo sabendo que não iria me
esforçar. E não me esforcei. Depois de algum tempo eles perderam
o interesse, e fiquei livre porque eu causava tanto problema que não
compensava.
Quando meu dinheiro acabou naquele inverno, tive que procurar
emprego. Trabalhei num restaurante de novo. Seis noites por
semana, e o salário era uma merda. As garotas me deixaram em
paz por um tempinho.
E aí era primavera de novo. E aí era verão de novo. A primavera
foi como meter um pé na cova. O verão foi uma porra duma piada.
Tinha feito 23 anos. James Lightfoot tinha ido para uma clínica de
reabilitação. Me mudei para Belmar. Belmar era ok, até que o forro
encharcou e despencou. Liguei para o senhorio, disse que o forro
tinha ficado encharcado e despencado. Ele mandou um cara que
colocou um forro modular. Quando o forro modular encharcou e
despencou, soube que era hora de me mudar. Larguei o emprego.
Larguei tudo. Deixei a mobília. Na verdade, joguei no quintal. Atirei
da sacada no segundo piso. Tudo que levei comigo quando me
mudei foi uma cama e um tapete de que gostava.
Estava tomando heroína. Tinha vendido minha e injetado ela.
Tinha achado um cara que vendia heroína decente: ele chamava
Trezentos. Isso antes do Trezentos virar um merda. Me mudei para
um apartamento de um quarto, em cima de uma lanchonete em
Coventry and Mayfield, próximo a uma loja de conveniência que
vendia vinho. Os sanduíches eram excelentes. As coisas estavam
boas. Era outono. Gostava do outono. Eu estava completamente
quebrado e a economia mundial estava em crise. Parecia que o
mundo todo iria parar, e talvez eu ficasse bem. Um fim para todo
fingimento. Fui para a Noite Anos 80 só por ir. Foi quando conheci
Libby.
CAPÍTULO QUARENTA E CINCO

Tinha um monte daquelas velinhas achatadas por toda parte,


porque a eletricidade ainda não estava funcionando, e Libby e eu
cheiramos algumas carreiras. A gente estava bebendo Gato Negro
— a merda mais barata que se pode comprar — e ela estava
falando baixinho, porque não estava certa de si mesma; ela disse
que estava perdendo tempo na escola comunitária:
“Mas minha prima mora na Califórnia. Vou me mudar pra lá e
morar com ela... Ela trabalha num estúdio em Hollywood... Ela me
conta um monte de histórias de bastidores de celebridades, coisas
que o público não sabe, como o fato de que o George Clooney é na
verdade gay... É. Mas ele não sai do armário porque seria ruim pra
carreira... Provavelmente vou morar com minha prima, primeiro. Ela
disse que consegue me arranjar emprego.”
Disse que iria sentir falta. Ela olhou para o copo dela. Usava quilos
de rímel. A mãe tinha morrido quando ela ainda estava no segundo
grau. Nunca perguntei como.
Falei: “Não acho que seja possível você ficar mais gostosa do que
já é. Você é tão gostosa quando uma garota pode ser. Você é tão
gostosa quanto é possível ser”.
Ela disse: “Obrigada”.
E, quando ela ficou pelada, de quatro, cuspi nas costas dela.
Ela disse: “Você cuspiu em mim?”.
“Sim.”
“Você faz tudo o que quer, não é?”
“Às vezes.”
“Acho que isso é bom.”
, fomos a uma festa de Halloween do outro lado
da cidade, em Tremont. Ela tinha levado duas amigas com ela: Gilda
e Megan. Megan era a única fantasiada. Ela tinha se vestido de
nazista. Falei que não tinha certeza de que ela seria bem recebida
na festa, se fosse vestida daquele jeito. Mas Gilda disse era judia e
que a fantasia de Megan não tinha ofendido ela, então a Megan
provavelmente ficaria bem. Cheiramos algumas carreiras e fomos
para a festa. Gilda encontrou Roy por lá e foi embora cedo com ele.
E aí uma garota chamada Jael ficou brava com a fantasia da
Megan. Ela disse que os avós dela tinham ido para os campos de
concentração. Megan tirou a braçadeira de suástica, mas ainda
tinha as botas de couro, a camisa marrom e nenhuma roupa para
trocar. Então fomos embora. Voltamos para o meu apartamento, não
tinha mais coca e a Megan não estava bem. Ela disse: “Me leva pra
casa, Libby”.
“Vamos ficar só um pouquinho.”
“Eu quero ir pra casa”, ela disse. “Quero ir pra casa , Libby!”
“Nossa. Ok. Vamos nessa. Me dá só um minutinho, tá?”
Libby perguntou quando podia me ver de novo.
Disse que assim que ela pudesse seria ideal para mim.
Ela disse amanhã.
Eu disse amanhã.

asas de anjo tatuadas nas costas. Em algumas partes,


a asa era feita de nomes escritos em letra pequena. “São os nomes
de pessoas que amo”, ela disse.
Ela ficava deitada de costas, com a cabeça para fora da cama.
Gostava de ficar desse jeito. Ficava dizendo: sortuda, sortuda,
sortuda, sortuda, sortuda...
Ela tinha 19 anos.
Essas garotas tinham crescido com a internet.
Gozei no rosto dela.
Libby limpou a porra do rosto e lambeu os dedos; aí ela disse: “Os
macaquinhos estão comendo cenoulas e os toelhos estão comendo
bananas!”.
Fiquei deprimido de novo.

tinha dinheiro, e comprei heroína e me injetei com Libby e


Gilda.
Gilda disse: “Nossa. Isso é bom”.
Libby disse: “Sim, bom mesmo”.
Roy apareceu e injetou heroína também. Todos bebemos Gato
Negro. Fumamos todos os cigarros.
Gilda parecia a Sininho quando ficava bêbada.
Eu queria trepar com Gilda.
Ela virou meia garrafa de Gato Negro no tapete.
Disse: “Que trapalhada a minha”.
Falei: “Não se preocupa, Gilda. Acontece”.
Quando os cigarros acabaram, Roy levou Gilda para casa e Libby
e eu morgamos, mas não conseguimos dormir. Então levantamos e
tomamos uma ducha. Foi assim que vi Libby sem maquiagem. Ela
parecia tão jovem que fiquei me cagando de medo, e disse que
amava ela, e estava muito feliz. Ela disse que também me amava.
Esse seria o máximo de felicidade que veria nela. Já sabia que tudo
iria acabar mal, porque eu era um covarde de merda e meu coração
era podre.
CAPÍTULO QUARENTA E SEIS

Gilda estava trepando com Roy. Ela também andava trepando com
um cara de Israel chamado Ricky. Ricky usava uma jaqueta de
couro, mas ele não era de nada. Libby me falou do Ricky, mas já
conhecia ele e sabia que ele não era de nada. Ele é um desses
caras que só diz mentiras e sai por aí dizendo para as minas que
tem 27 anos, quando na verdade está mais para 40. Usava aquela
jaqueta de couro. E não era de nada. Uma noite, Gilda, Roy, Libby e
eu fomos a um bar, e Ricky chegou e parecia que a coisa poderia
ficar violenta.
Ricky me falou: “Por que seu camarada fica me olhando desse
jeito? Ele precisa parar com isso. Vou arrebentar ele, bróder. Estive
no Exército israelense”.
Roy era um bosta, e eu sabia disso. Já tinha visto ele roubar
sedativos de um border collie com câncer terminal. Mas a gente se
conhecia fazia muito tempo, e eu tinha a obrigação de fazer o que
fosse necessário. Tinha isso, e o fato de Ricky ser um otário, eu não
acreditava naquela merda que ele tinha dito sobre ter servido no
Exército.
Disse para Ricky: “Não me entenda mal, mas vou te arregaçar”.
Ele disse: “Não quero briga com você, brou. Só tô dizendo que seu
camarada deveria ter mais cuidado”.
“Ninguém quer você aqui.”
“Vai se foder, bróder”, ele disse. “Quem você pensa que é, porra?
Você é um escroto da porra, bróder. Tô sabendo que você tá dando
droga pra essas minas. Você é um lixo!”
Ele tinha decidido que não ia a lugar nenhum. Talvez ele fosse o
anfitrião. Quem pode saber o que se passa no coração de um
sujeito. De qualquer forma, nós mandamos tudo à merda e voltamos
para o meu apartamento, e tinha esquecido a chave do lado de
dentro; chutei a porta, entramos, injetamos heroína e tal. Era tarde,
e Gilda derramou vinho no tapete de novo.
Ela disse: “Sou tão desastrada”.
Eu falei: “Não se preocupe, Gilda. Tá tudo bem. Mas, por favor,
tenha cuidado. Eu gosto desse tapete”.
Roy falou que era um tapete de festa.
Foi nessa noite que disse a Libby que a gente deveria casar. E ela
concordou que precisávamos nos casar. Contamos para Gilda e
Roy. Gilda falou: “Que amor! Eu vou ser a dama de honra!”.
Depois tentei transar com Libby, mas não consegui ficar de pau
duro porque tinha usado drogas demais.
CAPÍTULO QUARENTA E SETE

Tinha abandonado meu emprego no verão anterior. O emprego


pagava 8 dólares por hora. Tinha gastado quase todo o meu
dinheiro em multas de estacionamento. Tinha um monte de gente
que trabalhava lá. Na real, todo mundo que trabalhava lá era um
merda. Menos Joe. Joe trabalhava lá e era ok. O resto era merda.
Eles te deduravam para o chefe. Eles não usavam drogas. Acho que
boa parte deles até era virgem. Ninguém além de mim e de Joe já
tinha se envolvido com mortes ou qualquer coisa do tipo. O mundo
para eles significava algo diferente do que significava para mim.
Depois de voltar, Joe teve problemas por um tempo. Mas estava
melhorando. Ele tinha parado de pular de carros em movimento
cada vez que brigava com a namorada e estavam bêbados num
carro. Então havia progressos. Em breve, ele seria um ser humano
decente de novo. Não seríamos amigos por muito tempo.
Tinha voltado a estudar, porque precisava de dinheiro pra drogas.
Ia às aulas de poesia duas vezes por semana, e geralmente
chegava em péssimo estado, isso quando conseguia ir. A senhora
que dava as aulas se chamava dra. Archer. Ela tinha um jeito
amargo pra caralho para uma mulher tão jovem, levando em conta
que não era feia nem nada. Levava a poesia muito a sério, também.
Era da Inglaterra.
A turma estava estudando “Ode Sobre uma Urna Grega”, de John
Keats. A dra. Archer estava nos perguntando sobre o final. Eu
estava totalmente zoado por causa da heroína, então não entendi a
maioria do que ela falou. Mas peguei a última parte:
“A beleza é a verdade”, ela disse, “a verdade é a beleza — É tudo
que há para saber, e nada mais.” O que vocês acham que Keats
quis dizer?
Ninguém tentou responder.
Pensei, que diabos. Vou tentar. A frase me tocou, tocou meu
coração, então como poderia ter entendido errado?
Levantei a mão. Archer continuou tentando achar outra pessoa
para responder. Não tinha ninguém. Finalmente ela teve de dizer:
“Você”.
“Sei lá”, falei. “Talvez ele esteja dizendo que todas as coisas que
são verdadeiras são belas, sabe? Então a beleza é a única coisa
pela qual a vida vale a pena.”
Ela só disse que não.
Mas o jeito que ela disse isso foi como se eu tivesse cagado no
chão e arruinado toda a aula de poesia. O que achei um pouco
exagerado da parte dela.
E esse exagero me fez pensar, Por que essa raiva? Por que essa
mulher me detesta?
E aí vi que sabia a resposta.
Ela tinha dois chacais trepando dentro dela.

Gilda tentaram morar juntas. Elas tinham assinado contrato


para alugar um apartamento meses antes. Acho que visitei umas
duas vezes. A única mobília, além das camas delas, era um sofá
inflável. Tinha uma pequena, com um aparelho de acoplado
embaixo. E elas tinham talvez uns cem copos plásticos para
martínis. Eu não gostava de visitar o apartamento delas: lá havia
muitos sonhos que nunca se realizariam.
Elas acabaram rompendo o contrato. Rolou alguma briga grande
ou algo assim; não importa. Elas viraram inimigas.
Libby me contou sobre como Gilda sempre traía Roy com aquele
escroto do Ricky. Libby achava Ricky sinistro. Ela tinha visto Ricky
beijar uma garota de 17 anos!
Ao mesmo tempo, Gilda me contava sobre como Libby era
praticamente retardada, uma psicopata completa, uma puta que
dormiria com qualquer um.
“Você não percebe?”, ela disse. “Impossível que não. Sei que
percebe.”
E Roy também ficava falando merda.
Libby disse: “Ele fala mal de você”.
Eu disse que tudo bem.
“Não te incomoda?”
“Por que me incomodaria? Nove em cada dez amigos acabam
falando merda de você. É o preço de se estar vivo.”
“Ele sabe que a Gilda sai com outros caras?”
“Imagino que ele tenha percebido isso.”
“Ele trai ela?”
“Que você acha?”
“Por quê? Ele te contou alguma coisa?”
“Não.”
“Você não se importa.”
“Isso mesmo.”
“Você não liga pro que ele diz sobre você.”
“Não, não me importo.”
“Porque você tá pouco se fodendo.”
“Porque tô pouco me fodendo.”

eu saímos numa noite de domingo. Noite Anos 80. Gilda foi


também. Roy não foi, disse que estava sem grana. Libby e Gilda
dançaram juntas. Bebi bastante vodca no bar. Kamchatka. Eu era
um dançarino de merda. Fim de noite. Subimos as escadas e
chegamos na calçada. Libby e Gilda estavam empolgadas.
“Dois caras ficaram nos encoxando enquanto a gente dançava!”
“Estávamos dançando sozinhas e dois caras chegaram por trás,
prensaram a gente entre eles e começaram a nos encoxar!”
“Olha! São eles ali!”
Libby apontou pra dois caras que estavam prestes a dobrar a
esquina. Estavam quase indo embora. Percebi que Libby esperava
que eu fizesse algo. E eu não estava empolgado com isso. Mas aí
me dei conta que os caras não eram perigosos, tinha dois deles e
eu era só um, então ela não podia esperar que eu fizesse mais do
que alcançar eles, dizer alguma merda e deixar por isso mesmo. E
foi o que fiz, até que me deixei levar.
Falei: “Quanto dinheiro você tem?”.
“Quê?”
Falei: “Me passa toda a porra do dinheiro”.
Eles pediram ajuda.
Na verdade, não estavam sozinhos. Mais caras apareceram. E aí
tinha seis caras, parecia que iriam me quebrar na porrada. Por
sorte, dois amigos de Libby estavam por lá. Dois caras negros.
Gays. Dois caras gays negros, com casacos de pele e brincos de
diamante. Um deles era gigante. Eles me salvaram. Os outros caras
não fizeram nada. Os caras ficaram assustados com os dois gays
negros. Libby pegou na minha mão.
“Quero que conheça meus amigos”, ela disse.
O gigante devia ter mais de dois metros de altura, tinha um físico
de touro. Agradeci a ele. Ele disse: “Então esse é o seu gatinho,
Libby? Ele é fofo”.
Ela disse que sim.
E aí um cara que eu não tinha visto veio pela rua: “
, . . , .
”. Mais alguns caras chegaram e puxaram ele para longe
enquanto ele repetia: “ ... ... ... ... ...
, ...”.
Ele foi embora.
O gigante disse: “Diz pra mim, Libby. Por que vocês vão se
casar?”.
Ela disse: “Não sabemos ainda”.
Ele disse para mim: “Se algum dia você machucar ela, eu te mato”.

contei a Libby que não iria casar de verdade com ela, ela
ficou de cara. “Por que você tá fazendo isso comigo?”, ela disse. “Eu
te amo.”
Falei: “Sinto muito, mas não é como você tá pensando. Toda essa
bobagem de eu-te-amo-e-quero-casar-com-você, é só uma puta
bobagem. Sinto muito, mas é a verdade. Eu sei que falei essa
merda. Mas não tava falando sério. Não na vida real”.
“ .”
“Essa é a verdade, sinto muito. Por favor, acredita em mim. Queria
que as coisas fossem diferentes, mas não são. Não é nada legal e
preciso te contar, sabe? Depois seria pior, entende?”
“Do que você tá falando?”
“Não sei do que tô falando. Mas é como me sinto. Não ia fazer
uma coisa dessas com você só de sacanagem. Não tô tentando ser
babaca. Eu falo que te amo, não é? Queria que fosse verdade. Mas
é uma idiotice e eu deveria ter percebido antes.”
“Você tá dizendo que não quer ficar comigo?”
“Não. Eu quero. Não é esse o problema. É só que sei que vai ser
ruim, e não consigo acreditar nessa bobagem.”
“Você não confia em mim?”
“Honestamente?... Não, não muito. Mas...”
“ ? ?”
“Não é nada que você fez. Então não se preocupa. Tá tudo bem,
mesmo. Mas um cara tem que ser louco pra confiar numa garota
hoje em dia. Nada pessoal.”
“Alguém falou pra você algo sobre mim? Foi a Gilda? Ela tá
.”
“Ninguém disse nada.”
“ .”
“ , . Por que você tá puta comigo? Tô tentando ser
honesto com você, caralho.”
“ . .
,
?”
“Mas eu te amo. Porra! Quer dizer, eu gosto muito de você. Muito.
Gosto muito de você. Você é incrível. Você sabe disso. Você é
gostosa pra caramba e super boa pra mim. Mas não consigo. Olha
em volta. Moro nessa merda de apartamento faz dois meses, e as
luzes ainda nem foram ligadas. Isso não te diz nada? Noventa por
cento do tempo fico chapado demais pra transar, e sei que você
gosta de pica, e ficar chapado demais é vergonhoso. Eu entendo
por que você trepa com outros caras.”
“Eu não trepo com outros caras.”
“Trepa sim. E não precisa mentir sobre isso. Quem sou eu pra
você ter que se justificar pra mim? Você trepa com outros caras e
tem minha bênção. Você gosta de pica e não tenho qualquer dúvida
que esses merdas combinam mais com você do que eu. Você devia
casar com um deles.”
“Mas eu quero ficar com você!”
“Como você pode dizer isso? Você não sabe nada sobre mim.”
“Sei sim.”
“Qual meu último nome?... Tá vendo?”
“ .”
“Escuta. Eu acabaria com a sua vida. Essa é sua chance. Confia
em mim, você vai superar.”
“Você tá terminando comigo?”
“Não sei.”
Gilda estava na sala o tempo todo, e Libby e eu nos sentíamos
cretinos por ela ter escutado todas as merdas doidas que dissemos.
E Gilda estava entediada. Então decidimos que todos nos
sentiríamos melhor se tomássemos um pouco de heroína.
Liguei pro Trezentos. Eram três da manhã, mas Trezentos
atendeu, e falei para ele que sentia muito por ligar tão tarde. Ele
disse que tudo bem, ele ficava sempre acordado e eu podia ir até lá.
Libby e Gilda quiseram ir junto. Então fomos todos de carro até
Buckeye, encontrar o Trezentos numa das ruas laterais daquela
área. Ele sentou no banco do carona, olhou para trás e disse: “Boa
noite, senhoras”.
Trezentos sempre cheirava a merda, era um cara gordo com o
hálito de quem come merda no café da manhã, no almoço e no
jantar.
Falei: “Trezentos, essas são Libby e Gilda. Libby, Gilda, esse é o
Trezentos”.
“Oi, Trezentos.”
“A gente adora heroína.”
Na volta Libby me perguntou se Trezentos era o nome de verdade
dele. Falei que provavelmente não.
Gilda disse: “Ele tinha cheiro de zoológico!”.
Dez minutos depois nossa heroína tinha acabado, mas estávamos
super chapados e aí a Gilda deixou cair um cinzeiro em cima do
tapete e disse: “Droga”.
Falei: “Gilda, você é uma vaca do caralho”.
Libby perguntou se devíamos ligar para o Trezentos de novo.
Falei que não tínhamos nenhum dinheiro.
Ela disse: “Talvez a gente possa pegar e pagar ele depois?”.
Falei que achava que ele não aceitaria. Já era bem tarde.
CAPÍTULO QUARENTA E OITO

Dezembro. Libby estava me chateando para irmos a Chardon para


eu conhecer o pai dela. No caminho, liguei para ela porque me
perdi. Falei: “Tô perdido, não vejo porra nenhuma. Tá escuro pra
caralho aqui”.
Ela ficou no telefone comigo e me conduziu por todo caminho até
lá, passo a passo. A casa não era grande.
“Ok, cheguei.”
“Eeeee! Tô tão empolgada!”
O pai dela estava na sala de estar. Disse que seu nome era Mark.
Eu disse oi para Mark. Ele era alto e magro, de fala macia,
deprimido, efeminado. Tinha mais um cara e uma mulher no sofá. O
cara tinha cabelo branco estilo escovinha. Parecia um assistente de
xerife. A mulher era um horror. Os dois usavam golas rolê. Mark
também. Mas o mais assustador era que todos estavam bebendo
refrigerante.
O irmão mais novo de Libby veio correndo pela escada. Ele tinha
16 anos e estava seminu. Usava cueca de seda, um chapéu de
Papai Noel e um colar de plástico que piscava. Ele falou: “Vem cá,
garotão”.
Ele me envolveu nos braços e começou a me encoxar pra valer.
Não deixava eu me soltar. Era mais forte que eu. Tive a impressão
de que ele fazia muitas abdominais. Continuou me encoxando. Não
sabia o que fazer. Aí Libby me pegou pela mão.
“Vem comigo”, ela disse. “Quero te mostrar uma coisa.”
Ela me levou até a sala de jantar, onde havia pilhas de revistas
velhas numa mesa e no chão, e contra a parede tinha um armário
de porcelanas com algumas fotografias emolduradas.
“Essa é minha mãe”, disse.
Ela pegou uma das fotos, beijou e passou para mim. Libby era
parecida com a mãe. Mesmos olhos. Mesma boca. Mesmo sorriso.
Devolvi a foto.
“Ela é linda.”
“Obrigada.”
“Você se parece com ela.”
“Obrigada.”
Ela colocou a foto de volta. Então me mostrou outra:
“Aqui sou eu com meus irmãos mais velhos.”
Era ela mais cinco caras de cabeça raspada. Qualquer um deles
parecia capaz de me dar uma bela surra.

que iria rolar uma festa alguns dias depois. Mas não fui. Não
tinha sido convidado, mas não teria ido de qualquer forma. A festa
era do Ricky. Roy foi. Não fiquei surpreso.
Roy foi ao meu apartamento para ser apresentado a um cara
chamado Coca e Boleta. Era uma questão de conveniência, já que
Coca e Boleta pagava o meu aluguel para manter um cofre na
cozinha. Roy vestia um blusão com uma rena na frente. Ele parecia
um babaca completo, senti vergonha por ele.
Ele falou: “Tá de bobeira sozinho?”.
Disse que sim.
Ele falou: “Beleza. Como vão as coisas entre você e a Libby?”.
“Bem.”
“A Libby é uma mina massa.”
“É.”
“Vejo que você gosta muito dela. Ela tem essa vibe de puta
maquiada... Me diz uma coisa, velho. Você por acaso tem alguma
seringa nova por aqui?”
Disse que não, mas que tinha algumas que mal tinham sido
usadas, e desinfetante. Ele refletiu e disse que teria que ser isso
mesmo. Limpei um par de seringas. Coca e Boleta apareceu e Roy
comprou um Oxy 80 mg dele. Se ninguém avisasse, dava até pra
confundir o Coca e Boleta com o Biff de De Volta para o Futuro, mas
não era ele; ele era o Coca e Boleta, já era quase 2009 e Coca e
Boleta sequer tinha idade para ter participado de De Volta para o
Futuro. Tinha decidido que também precisava de uma 80 mg e pedi
para Coca e Boleta que abatesse do que ele ainda me devia em
aluguel do cofre. Ele disse que já tinha pago tudo. Então pedi para
me fazer fiado por um dia ou dois. Ele disse que tudo bem.
Coca e Boleta foi embora e Roy e eu injetamos nossas boletas.
Roy injetou metade da sua 80 mg, eu injetei a minha toda. Roy
disse: “Queria ter grana pra injetar uma 80 inteira assim”.
Eu falei: “Trabalhe duro, junte dinheiro, e talvez consiga”.
“É mesmo?”, ele falou. “É isso que você faz?”
“Mais ou menos.”
“Por que você não foi pra festa?”, ele falou. “A Libby tá lá.”
CAPÍTULO QUARENTA E NOVE

Zoë tinha voltado.


Falei: “Zoë, o que você tá fazendo aqui?”.
“Férias”, ela falou. “Visitando amigos.”
“Zoë, você mora em Barcelona. Quanto tempo faz que você
chegou?”
“Um mês.”
“Por que não me disse que estava vindo?”
“Você não checa seu e-mail.”
“Por favor, venha me visitar.”
Zoë ligou. Queria me ver. Eu estava morrendo de vontade de ver
ela.
Ela era deslumbrante e tão estilosa.
Já tinha transado com ela antes. Talvez pudesse transar de novo.
Talvez isso me salvasse.
Mas tinha uma coisa: quando tínhamos transado antes, tinha feito
tudo errado. Tinha tentado deixar claro o quanto significava para
mim transar com ela, e aí dei uma foda ridícula. Não tinha entendido
que ela não pensava o tempo todo sobre o que isso ou aquilo
significa, e que ela não se sentia triste com tudo. Trepar com os
tristes é como trepar com os mortos; não é algo que pessoas
saudáveis queiram fazer. Tinha cheirado coca e ficado emotivo.
Normalmente é assim que arruinava as coisas. E acho isso tudo
uma tragédia.
Enfim. Zoë apareceu.
Falei: “Zoë, estou feliz que tenha voltado”.
Ela disse: “É, é massa”.
Libby ligou. Não atendi. Ela ligou de novo. Ignorei. E aí Libby
apareceu no prédio querendo entrar. Começou a berrar na janela,
berrando feito a mais linda psicopata do mundo.
Zoë falou: “É sua namorada?’.
“Não.”
“Tô com pena dela. Acho melhor ir embora.”
“Não vai. Ela vai desistir. Vai se cansar. Espera só um minuto. Ela
trepa com um monte de gente.”
“Ela deve me achar uma vaca.”
“Não é nada. Vamos ignorar ela. Vai ficar tudo bem.”
Ainda achava que iria dar tudo certo, mas aí dei azar. Tinha
tomado uma pílula e bebido Gato Negro. Sabia que não podia fazer
uma merda assim; sempre fui peso-pena com a benzodiazepina.
Mas estava sem grana, e as pílulas eram a única droga que tinha.
Zoë queria se chapar, e eu não queria decepcionar ela. Não sou do
tipo que oferece para alguém algo que eu mesmo não tomaria, e foi
por isso que tomei uma pílula e acabei apagando.
A vida era assim. Eu não entendia.
Acordei no chão.
Zoë tinha ido embora.
A linda Zoë.
E Libby estava lá.
A linda Libby.
Ela me deu um chute. “Qual seu problema?”
“Pra onde foi a Zoë?”
“Foi embora.”
“Você estragou tudo.”
“Que foi que eu estraguei?”
“Você nem se importa. Me deixa em paz. Tô triste pra caralho.”
“Por que tá tão triste? Você tá sempre tão triste. O que tem de tão
triste em você? Você é um fedelho. Sua mãe morreu, por acaso?
Você não tem nem que trabalhar.”
“E por que você tá me falando de trabalho? Você nunca teve um
emprego.”
“ .”
“Trabalhar de babá não conta.”
“ .”
“Não conta, porra.”
“Por que você é sempre tão cruel comigo?”
“Não sou cruel com você. Agora cai fora daqui, caralho.”
“Eu te amo.”
“Você não sabe de porra nenhuma.”
Ela me chutou de novo.
Falei: “Porra! E isso é legal?”.
“Desculpa.”
Ela me ajudou a levantar do chão.
Me levou para a cama.
Por mais que tentasse, eu não conseguia trepar.
Falei: “Ei, Libby”.
“Que foi?”
“Acho que a razão para eu ser tão triste é que acabei no lugar
errado por engano. Provavelmente no momento errado também. Sei
lá. É como se eu não tivesse nada em comum com porra nenhuma.
Cem anos atrás eu poderia simplesmente comprar heroína na
farmácia, e as pessoas me deixariam em paz. Mas não é mais
assim. Elas querem que você concorde com elas hoje em dia.”
“Por que você resmunga tanto, o tempo inteiro?”
“Queria poder agir como qualquer imbecil normal, sabe? Mas
quando tento fingir, todos percebem e me julgam. Como todo mundo
sabe que tô contra eles? Que merda. Eles que se fodam, mas é
desanimador.”
“Que chatice.”
“Quero que você me mate.”
“ .”
“É sério.”
“Você tá sendo idiota.”
“Claro que tô bancando o idiota, mas falo sério.”
“Não vou matar você.”
“Caralho, Libby. Tô pedindo pra fazer algo por mim. Dá pra calar a
boca e fazer?”
“Que coisa retardada.”
“Vamos.”
“Não.”
“... Por favor.”
“ .”
“Você diz que me ama, não é? Se for verdade, vai me matar.”
“Não.”
“Vai. Por favor.”
“... Agora?”
“Sim. Agora mesmo. Por que não?”
“... Ok.”
Ela prendeu minha barriga com as pernas. A virilha dela estava fria
e molhada. Ela colocou as mãos no meu pescoço e se apoiou nele.
Ela estava tentando esmagar minha traqueia, acho. Teria sido
melhor se tivesse aplicado pressão nas artérias carótidas. Eu teria
morrido em poucos segundos, e ela teria feito o que precisava ser
feito. Mas a traqueia doía demais, especialmente fazendo tudo tão
devagar. E tinha também a questão de que talvez não conseguisse
esmagar ela totalmente. Estava surpreso por ela estar fazendo
aquilo. Mas eu não tinha escolha a não ser aguentar, porque tinha
sido ideia minha. Então continuei deitado. Os lábios dela tremiam.
Olhamos nos olhos um do outro. Eu não conseguia respirar. Talvez
ela me amasse. Talvez ela fosse a melhor coisa que já tinha me
acontecido. Mas eu precisava respirar. Peguei ela pelos quadris e
joguei ela de cima de mim. Ela caiu mais longe do que o esperado,
e bateu a cabeça no aquecedor. Levantei e ela estava estirada no
chão. Parecia surpresa.
Ela disse: “Por que você fez isso? Você me disse pra matar você”.
Falei: “Era um teste. Você falhou”.
CAPÍTULO CINQUENTA

O resto do inverno foi sem graça.


Saí com Megan: ela não me pagou por uma bucha de pó que
arranjei para ela, então o lance virou um encontro e quando me dei
conta estávamos namorando e eu tinha conhecido a irmã e a mãe
dela.
A mãe de Megan parecia um jogador de boliche.
A irmã de Megan disse que me mataria se algum dia eu
machucasse Megan.
Sabia que tinha que cair fora. Estava entrando em pânico.
Tentei tudo que consegui pensar para que Megan acabasse
comigo, de modo a poupar os sentimentos dela. Eu agia de maneira
insana; ela gostava. Ignorei as ligações dela por dias; ela continuava
ligando. Parei de pagar coisas para ela; ela passou a pagar por
tudo. Meti as meias dela na boca dela; ela teve um orgasmo. Nada
funcionava.
Então tive que dizer a Megan que era um equívoco. Fiz isso na
casa dela. Cheguei e falei isso de cara, esperando que fosse rápido
e indolor. Mas Megan começou a chorar. O chihuahua dela, Tony,
estava lá. Ele viu tudo. Ele estava vestindo uma pequena capa de
Drácula, e Megan estava no sofá. Parecia que alguém tinha morrido.
Ela queria que me sentisse mal por não gostar mais dela. Achei isso
egoísta. Disse que ela estava exagerando, porque meu coração já
estava morto, assim como o de todo mundo que conhecia, então
qual era a desculpa dela? Não fazia nem um mês que estávamos
saindo. Não era nada demais. Mas Megan não parava com o papo
furado. Ela chorava pra caralho, e Tony subiu no ombro dela e
tentou lamber as lágrimas dela, e Megan disse: “ , ”, e jogou
Tony no tapete, e Tony subiu nela de novo e tentou lamber as
lágrimas de novo.
“ , .”
Ela jogou Tony no tapete de novo.
Falei que tinha certeza que era fingimento, porque era impossível
ela estar tão chateada assim. Falei que garotas tinham sido cruéis
comigo o tempo todo, e ninguém nunca se importou com isso. Por
que ninguém dava a mínima quando uma mina cagava na cabeça
de um cara? Já tinham cagado em mim mil vezes, já estávamos no
século e ela estava sendo rude.
A irmã de Megan não me matou.
Até agora ninguém conseguiu.

que tomar algum tipo de opioide, ou não conseguia ir para


as aulas. Tinha ataques de pânico. Foram as pessoas que me
deixaram assim. Ou as pessoas me aterrorizavam, ou me faziam
sentir um merda em comparação com elas. Não tinha meio-termo.
Quando não tinha escolha, tentava ir para a aula sem drogas, e às
vezes pirava em pleno estacionamento; ficava no carro fumando
cigarros e ouvindo o rádio, talvez até cochilando. E aí ia para casa.
Mas era idiotice.

de deixar Joe puto.


Ele veio me ver no Dia de São Patrício. Ele queria sair para beber,
e me encontrou de olhos esbugalhados. E aí a visita virou uma
intervenção.
Ele falou: “Talvez você devesse dar um tempo nessa coisa”.
Falei que usar drogas era a única coisa que não era um problema
para mim.
Ele disse: “Queria que você sacasse como soa louco quando fala”.
“Por que tá me aporrinhando com isso?”
“Você é meu amigo, velho. Tenho que dizer que você tá fodendo
sua vida.”
“Pra mim já chega de amigos.”
“Ok. Então boa sorte.”
“É, pra você também.”

, arrombei o cofre de coca e injetei provavelmente


um total de oito gramas. A noite congelou. Comecei a alucinar. Um
carro estava estacionado distante do poste de luz. Ele me
observava, e meu olho tremia. Escutei um rádio. Tinha homens na
escada. Tinha uma sombra no corredor. Alguém estava chutando
minha porta. Joguei 25 gramas de cocaína na privada, e dei a
descarga. Joguei uma caixa de sapatos cheia de seringas para fora
da janela da cozinha. A caixa de sapato foi parar no telhado da loja
de conveniências ao lado. Me entreguei para uma equipe-fantasma
da .
Falei: “Vamos todos manter a calma”.
Abri a porta.
Não tinha ninguém.
O sol estava nascendo e os carros começavam a circular quando
escalei o telhado da loja de conveniências com uma vassoura e
recuperei as seringas. Coloquei uma roupa que me fazia parecer um
trabalhador. Tentei agir como se devesse estar lá em cima.
CAPÍTULO CINQUENTA E UM

Peguei Emily na rodoviária. Estava a caminho de Elba. Tinha


passado um tempo morando com o pai na Flórida, e começou a
tomar heroína por lá.
Eu não fazia ideia.
Ela tinha que esperar três horas.
Emily disse que queria se chapar.
Ela foi comigo encontrar Trezentos e pagou pela heroína.
Fomos num supermercado comprar seringas.
Disse para ela: “Pode comprar as seringas? Você parece mais
respeitável que eu. Já tô meio queimado aqui”.
Ela disse que tudo bem.
Ela entrou e logo saiu com nossas seringas.
Ela era um anjo.
Só injetamos quando voltamos para o meu apartamento. Limpei
bem algumas colheres. Tínhamos pegado um pouco de soro
fisiológico no supermercado. Dei a ela dinheiro extra para isso. Era
um dia especial.
Ela injetou como se soubesse o que estava fazendo.
Quando a droga bateu, ela disse: “Porra”.
E aí bateu em mim também, e tudo ficou perfeito. Se você
conhece, sabe do que estou falando. Se não conhece, nunca vai
saber.
Beijei Emily.
Disse: “Me tornei um filho da puta completo desde que você foi
embora. Não tô bem”.
Ela falou: “Também senti sua falta”.
Ela estava trepando com algum sujeito da Flórida, tomava pico
junto com ele. Trabalhava no consultório odontológico do pai dela.
Era recepcionista. Disse que estava totalmente entediada. Mas tinha
conhecido esse cara, que era legal e iniciou ela na heroína. E que
uma vez ela havia exagerado na dose. Não tudo de uma vez, mas
no decorrer de uma ou duas horas. Sentiu medo de morrer. Mas
aguentou. O namorado tinha ficado de olho nela.
“Ele disse que fiquei toda azul”, ela falou.
“Puta merda, que horror. Isso me deixa apavorado.”
Fiquei mal pensando nisso, depois de deixar ela na rodoviária.
Fiquei pensando nesse cara, imaginei ele observando ela ficar toda
azul e tal, tentando respirar. Imaginei ela deitada no chão de alguma
casa pré-moldada de merda na Flórida. Carpete por toda casa,
aquela coisa horrorosa.
Ainda amava ela.
Mas ela não quis transar comigo.
Ela me disse para fazer um teste de antes de ela voltar.
Falei que tudo bem. Ela disse que voltaria.

gratuita fazia os testes de com nomes falsos. O nome


que me deram foi Deon Valentine.
“Deon Valentine...”
“Deon Valentine...”
“Deon Valentine...”
A mulher perguntou quantas parceiras tive desde meu último teste.
“Se eu tentei transar, mas não consegui... isso conta?”
“Houve contato de genitais?... Então sim.”
“Isso conta muito?”
“Não. Na verdade não. Você já usou drogas injetáveis?... Já fez
sexo com algum usuário de drogas injetáveis?... Já compartilhou
agulhas com alguém?”
CAPÍTULO CINQUENTA E DOIS

Não existia nada melhor do que ser jovem e viciado em heroína.


Emily e eu estávamos morando juntos. Os dias eram radiantes. Não
nos preocupávamos com emprego, porque não havia nenhum. Mas
dava pra ir pra faculdade e arranjar uma bolsa, dava para pedir
empréstimos estudantis, bolsas por contribuição excepcional. E se
você fosse ex-militar, pagavam seu curso e aí você não precisava
usar a bolsa, e dava para comprar droga com o dinheiro. Que era
tudo o que eu queria. Dava para se matar bem devagar, se sentindo
um milionário. Dava para cultivar maconha de qualidade na
garagem, e pagar o aluguel com ela. Claro que o futuro parecia ruim
— quando você tem dívidas, fica doente o tempo todo, e não
consegue fazer nada. Todos que conhecia eram uns merdas, os
novos amigos comeriam meus olhos da cara em troca de uma
colher ou de 20 dólares, meus antigos amigos mantinham distância.
Mas dava para comprar mais heroína, e isso servia para me
acalmar, quando tinha 25 anos e ainda conseguia fingir, e não
existia nada melhor do que ser jovem e viciado em heroína.
CAPÍTULO CINQUENTA E TRÊS

Por volta das dez da noite, Ari me ligou de volta. Estava onde Ari
tinha dito para eu ir. Saí da rodovia na avenida Fleet, dobrei
algumas esquinas e estacionei na rua. A casa cheirava a mijo de
gato. Ari era a cara do Justin Bieber. Ele disse que Gary estava a
caminho. A casa não era de Ari, mas sim de Gary. Eu não conhecia
Gary; conhecia Ari. Ari vinha de Shaker. Na verdade, também não
conhecia nem o Ari. Ele costumava ir à Noite Anos 80. Só esperava
que ele me arranjasse heroína. Eu estava precisando de um
contato. Conseguia Oxys superbaratos, 50 centavos por miligrama,
e eram ok, mas eu queria o lance de verdade. E lá estava eu.
Ari e eu estávamos esperando na sala. Uma mulher retardada
assistia à . O carpete da sala era vermelho. A retardada tinha um
mullet loiro que ia até o meio das costas. Ari a chamava de Shelley.
Shelley estava assistindo . Ela não queria mudar de canal. Tinha
uma voz rouca e as consoantes dela eram zoadas, mas deu para
entender o que ela disse, e dava para sentir o desespero. Shelley
era desesperadamente retardada.
Gary apareceu com a heroína. Fiquei surpreso, porque Gary tinha
nanismo. Ari não falou que Gary tinha nanismo. Ari me odiava. Gary
tirou a heroína de uma caixinha metálica com um ímã nela. Ele
disse: “Saca só”.
Não tinha muita heroína. Só dois gramas. Gary falou: “É pra essa
parada ser boa. Foi o que meu chegado falou”.
Paguei a Gary 140 dólares por um grama. O preço era de foder.
Queria pagar só 100. Mas se Gary dizia, confiava na qualidade. Nos
injetamos perto da pia da cozinha: Gary, Ari e eu. A cozinha estava
em frangalhos. Shelley observou enquanto injetávamos.
“Zê dive u bogo bra mi, Gary.”
“Já vejo pra você num minuto”, ele falou.
“Zê dive u bogo bra mi.”
“Dá pra calar a boca, vaca retardada do caralho?”
A heroína era ok. Não valia o preço. Mas todos sentimos. Eu ainda
tinha 0,7 gramas. Ia levar pra casa. Gary falou: “Você curte
Dilaudid?”.
Disse que compraria todo Dilaudid que ele tivesse.
Ele disse legal.
“Zê dive u bogo bra mi, Gary.”
“Vai ver .”
Gary me vendeu dez Dilaudids de 4 mg por 7 dólares cada, e
fiquei feliz de vazar daquele lugar. A noite estava bem fria, e o frio
era bom. O frio era familiar. Liguei para Emily e dirigi de volta pra
casa.
Emily estava na cozinha. Ela disse: “Feliz Dia dos Namorados”.
Não me cansava de voltar pra casa e pra ela. Nos injetamos e
vimos tarde da noite. Talvez devêssemos ter trepado, já que era
Dia dos Namorados e tudo mais, mas a gente estava se lixando
para o Dia dos Namorados. Só tinha uma coisa que nos interessava.
Foi assim que acabamos juntos.
CAPÍTULO CINQUENTA E
QUATRO

Quando os pais de Ari chutaram ele, ele foi procurar Gary, e Gary
colocou ele numa casa abandonada. E lá era congelante. Mas Gary
tinha feito um gato na linha de gás, então o fogão funcionava. Tinha
um sofá perto do fogão. As quatro bocas do fogão estavam acesas.
Da cintura para cima, a cozinha era um inferno, mas se ficasse
muito tempo sentado, podia morrer congelado. Estávamos
esperando Gary. Dei cigarros a Ari. Ari estava ficando doente.
Estava se sentido mal. Esse era Ari na pobreza. A pobreza de Ari
era baseada na crença de que não tinha que pagar por nada a
ninguém, nunca, ou mesmo ser útil para qualquer outra pessoa. Ele
estava ficando mal, vestindo um saco de dormir como se fosse uma
capa, e as coisas não estavam particularmente boas para ele.
Eu não estava muito melhor. Emily e eu tínhamos injetado, cada
um, 20 mg de Oxy naquela manhã, mas aquilo só nos manteria de
boa por algumas horas. Vinte miligramas deixavam você doido
quando não se é viciado, mas não era quase nada depois de se
acostumar, como era o nosso caso. Era esse o ponto ao qual a
droga tinha nos levado. Um ponto em que, se não estivéssemos
metendo 45 dólares nas veias, era como se estivéssemos
desperdiçando tempo, e mesmo assim era só um breve momento
antes de ficarmos mal de novo.
Então. Emily estava na faculdade e logo ficaria mal, ela estava
contando comigo para arranjar algo. Ainda não tinha dado sorte,
mas tinha duas coisas engatilhadas: essa parada do Gary, e Big
tinha ficado de me avisar sobre alguns Oxys. Faltei à aula. Sempre
faltava à aula para ir atrás de bagulho.
Era mais importante Emily ir para a aula, já que ela era a mais
esperta de nós dois. Ela era assistente de graduação, e seria pior se
ela faltasse. As pessoas perguntariam: Cadê a assistente de
graduação?

. Ele não tinha droga nenhuma. Disse que teria, mas


não tinha. Havia mentido. Gary era um mentiroso da porra e eu já
sabia disso.
Gary tinha uma pedra de crack de 20 dólares.
Ari disse: “E a heroína?”.
Gary disse: “Ainda tô esperando o Old Boy me ligar.”
O nariz de Ari estava escorrendo. Ele fazia caras tristes.
Acendi um cigarro.
Gary perguntou: “Tem vidro?”.
Eu tinha uma tigela de vidro no carro, mas ele se referia a um
cachimbo.
“Merda!”, ele falou. “Se ao menos tivesse um pedaço de bombril,
dava pra fazer.”
Disse que levaria ele na loja. A gente tinha tempo para matar, e
podia muito bem fumar um pouco de crack enquanto esperava.
Então fomos ao mercado. Gary disse que se eu desse o dinheiro pro
Bombril, ele deixava Ari e eu fumarmos a pedra de crack com ele.
Dei o dinheiro para ele. Gary saiu do carro e entrou na loja. Ele
demorou um século. Voltou. Tinha comprado um pacote de Bombril
e um latão de cerva barata. Não falei nada sobre o latão. Gary
rasgou um pedaço do Bombril, colocou na tigela e pôs a pedra de
crack junto. Deu um pega enorme de fumaça de crack. E aí ele
explodiu. Cuspe por toda parte. Gary abriu a porta e vomitou tanto
que caiu para fora do carro. Tinha um pouco de vômito na roupa
dele. O vômito tinha cheiro daquele molho de Big Mac. Era minha
vez, mas não tinha mais crack para fumar. Gary tinha fumado a
pedra toda em um pega.
O telefone de Ari tocou. Gary atendeu. Era o Old Boy. Tínhamos
nos dado bem. Vinte minutos depois, estávamos de volta à casa
abandonada, nos injetando no inferno. A heroína era superfajuta.
Falei: “Gary, sem querer ofender, mas esse lance é um lixo”.
Gary disse: “Normalmente não pego com esse cara. Só liguei pra
ele porque você precisava de algo rápido. Mas meu outro chegado
disse que tá com uma que é ouro. Só que só vou conseguir falar
com ele bem mais tarde”.
Combinamos de fazer isso. Tinha certeza que Gary era um fodido,
mas ia dar outra chance para ele. Enquanto isso, tinha que me
apressar. Mandei uma mensagem para Emily quando cheguei na
rodovia. Cheguei ao centro, dobrei à esquerda na Chester e esperei
ela descer. Fiquei dirigindo em volta do estacionamento.
“Que tal?”, ela perguntou.
“Mais ou menos.”
“Desde que me deixe bem, cara.”
“Vai deixar. Não é tão ruim assim. É só que foi meio cara pela
qualidade, e Gary e Ari me deixam deprimido pra caralho.”
“Hmm.”
“Que você achou?”
“Já tô um pouco melhor.”
“Como foi seu dia?”
“Totalmente zoado. O Laboratório de Escrita é uma piada fodida.
Tem um aluno lá. Do time de basquete. Ele não faz nada. Ele espera
que eu faça todas as tarefas por ele. Tenho quase certeza que não
sabe ler.”
“Bom, o treinador provavelmente prometeu que você faria o dever
de casa dele. Esse deve ter sido o acordo.”
“Foda-se o acordo deles.”
“É, eu sei.”
“Urg. Não quero voltar pra lá.”
“Então não volta.”
“Claro”, ela disse. “É uma ótima ideia. Quem sabe possa trabalhar
na porra do circo.”
“Tô só falando.”
Meu telefone vibrou. Tinha uma mensagem. Era do Big. Disse que
estava perto da zona leste, caso quisesse encontrar com ele.
Liguei para ele. Estava tudo certo.
Falei para Emily: “O Big vai me encontrar no McDonald’s”.
“Por que lá?”
“Vai dar tudo certo.”
“Quanto você vai pegar?”
“Temos o suficiente pra pegar bastante.”
“Então faz isso. Essa heroína tava uma merda.”
“Você quer vir?”
“Meu Deus. Sei lá.”
“Qualé. Vamos comprar essas pílulas de merda, voltar aqui, injetar
as malditas. Vai ser incrível. Romântico, sabe.”
“Foda-se. Tenho uma hora e meia pra voltar.”
“Vai dar tempo.”
O McDonald’s ficava na Carnegie. Muita droga era comprada e
vendida por lá. Claro que a polícia sabia disso, e sempre tinha um
ou dois tiras à paisana no McDonald’s. Mesmo assim, de tempos em
tempos você tinha que ir lá pra alguma merda, porque, se não fosse,
você não era de nada. Já tinha visto até o prefeito de Cleveland lá
uma vez. Ele furou a fila bem na minha frente, na frente de uns
cinco outros carros no drive-thru. Cleveland era uma cidade
pequena.
Chegamos antes de Big.
Tive uma ideia.
Falei: “Vamos lá dentro”.
“Sério? Você quer entrar?”
“Tô cansado de ficar esperando dentro do carro o tempo todo. E
hoje a gente tem grana.”
“Como quiser.”
“Não pede salada hoje.”
“Vou pedir uma salada.”
“Tá. Mas tem que pegar um milk-shake também.”
“Fechado.”
Entramos e pedimos — hambúrgueres, milk-shakes, batatas fritas,
a porra toda. Emily pediu uma salada. Sentamos onde
conseguíamos ver os carros dobrando. Big chegaria em um minuto.
Ele não era de deixar ninguém esperando. Ele era legal. Em algum
momento no passado, matara pessoas a tiros, mas isso não tinha
nada a ver com a gente; quitara seu débito com a sociedade, então
não tinha nada mais a dizer sobre isso, apenas “obrigado pelas
drogas”. Só gostaria que ele vendesse heroína. Mas não vendia. Só
vendia OxyContin. Ele tinha receita, porque sofria de fibromialgia,
então podia zanzar sem problemas com pílulas por aí o tempo todo.
Vi ele dobrar. Dirigia uma Chevy Blazer branca.
Disse para Emily: “Já volto”.
Saí e fui até a caminhonete de Big.
Ele falou: “Comi uma loirinha noite passada”.
Big era um cara corpulento, de uns 60 anos.
“Ela até que tinha um bom rabo, pra uma mina branca”, falou.
“Muito bem. Me descola vinte.”
Ele disse que sem problema.
Eu tinha dinheiro. Era dinheiro da bolsa de estudo. Contei as
notas. Big contou as pílulas. Big sempre tinha uma caralhada de
pílulas com ele. Era enfermeiro e comprava as pílulas de idosos.
Uma vez perguntei como ele sabia que tipo de velho venderia
pílulas para ele. Ele disse que era fácil — era só pedir aos que eram
pobres.
Falei: “Muito obrigado, Big. Eu te ligo”.
Ele disse: “Beleza”.
Entrei de novo no McDonald’s. Tinha acabado de gastar 900
dólares que não poderia ter gasto. Mas tinha um monte de
OxyContin no meu bolso, o que duraria até segunda pra gente,
então tudo parecia bem. Foi então que percebi que um sujeito tinha
me seguido quando saí. Ele sentou numa mesa logo atrás do meu
ombro direito. Era de meia-idade, branco que nem fantasma, usava
uma jaqueta azul turquesa, jeans desbotados e começava a ficar
careca na parte de trás. Não tinha comida na mesa dele. Emily
também percebeu. Ela olhou para mim, e aí pisquei para ela e ela
nem se mexeu, fiquei orgulhoso. Ela era tão incrível. Era uma
mistura de Mary Poppins e Billie Holiday.
Falei: “Como tá a salada?”.
Ela disse: “Tá ok”.
“Que bom”, falei. “Então, como é mesmo a parada com o idiota
que não sabe ler?”
“Não é justo. Ele é tão arrogante, e completamente burro. Não
entendo como ele pode ser tão arrogante, sendo tão burro.”
Estávamos falando bem alto, para que o policial nos escutasse. E
continuamos falando alto. Falamos sobre as aulas bem alto, falamos
bem alto sobre o jogador de basquete analfabeto, sobre a tese de
mestrado dele, e sobre o que fulano tinha falado de beltrano. Coisas
desse tipo. Do que poderíamos falar? Agimos como se fôssemos
apenas boas pessoas, almoçando fora.
CAPÍTULO CINQUENTA E CINCO

Estava procurando por algo barato, mas bom. Achava que, se


conseguisse achar isso, tudo daria certo, e nos sairíamos bem.
Numa noite, Gary sumiu com 180 dólares meus. Foi uma perda,
com certeza, mas não um desastre completo. Emily e eu tínhamos
pego Oxys mais cedo, com Big. Então ainda tínhamos tempo.
Quanto ao dinheiro, pensei que 180 era justo para nunca mais ter
que ver o filho da puta do Gary de novo.
Tinha deixado Ari na casa abandonada. Tinha dito que voltaria
quando Gary aparecesse. Mas era tarde. Pensei que ele ficaria
bem. Fui para casa. Emily tinha preparado algo para eu comer. Ela
me perguntou como tinha sido o lance da heroína, e contei pra ela.
“Puta que pariu!”, ela disse. “Cento e oitenta dólares?”
Falei que não tinha feito de propósito.
“Eu sei, mas, bebê, tenta entender por que tô de cara. Fiquei aqui
trabalhando, cuidando das plantas, fazendo a merda do seu jantar, e
preciso escrever um artigo enquanto você fica bancando o figurão e
perdendo a porra do nosso dinheiro!”
“Você disse ‘figurão’? Que porra é isso? Você é imbecil, porra? Em
que mundo a gente tá? Acha que gosto dessa merda? Acho que
gosto de arrastar meu rabo moribundo pela cidade, lidando com
esses bostas?”
“Bebê, é sério. A gente tá gastando mil dólares em heroína por
semana. Não podemos fazer isso. É insustentável. É loucura.”
“Ok. Você ganhou o troféu ‘Não me diga!’. O que eu posso fazer?
Parar? E você? Acha que consegue parar? Se acha, me avisa, e
paro agora mesmo. Não seria ótimo? Vamos parar agora mesmo.”
“Seu babaca de merda.”
Ela começou a chorar.
“Merda. Você tá chorando.”
“Vai se foder, cuzão do caralho. Isso é sério, e você não passa de
um cuzão do caralho.”
“Puta que me pariu... Dá pra se acalmar?... Olha... Merda... Por
favor, para de chorar. Eu te amo.”
“Você não entende que a gente tá completamente fodido?”
“Eu sei. Pode acreditar, eu sei. Mesmo. E você tá certa. Sinto
muito. Eu também sinto isso. É só que a gente tá tão fodido que não
sei como vai sair dessa, então o melhor que posso fazer é segurar
as pontas do jeito que dá. A gente tem tanta coisa pra fazer o tempo
todo e, tipo, quando vamos poder ficar mal por um mês inteiro,
sabe? Quando a gente vai ter tempo pra isso? É uma armadilha de
merda, sabe?”
“Mas a gente precisa.”
“Eu sei. Só que não agora. Mas a gente vai. Dá pra gente aguentar
um pouquinho mais. E aí a gente para.”
“Você não tá falando sério.”
“Não. É sério. Não tem nada que eu queira mais. De verdade. Isso
não pode continuar pra sempre. Isso é óbvio pra caralho. Então
alguma coisa vai fazer a gente mudar. A gente só tem que continuar
junto. Isso é o que importa. Vem aqui, por favor.”
Abracei ela.
“... Vai dar tudo certo. Não se preocupa.”
“... Você é um mentiroso.”
“Puta merda.”
“Desculpa, mas é verdade.”
“Me sinto mal pra caralho.”
“Eu também. Odeio essa merda.”
Nos sentimos tão mal que tivemos que injetar mais pílulas. Cada
um tomou uma de 80 mg. Aí nos sentimos melhor. Tinha custado só
90 dólares, e tinha para a noite toda. No dia seguinte, custaria
apenas mais 90 dólares para conseguirmos sair da cama.
Assistimos de novo. Fomos tarde para a cama. Ouvimos um
avião passando por cima da casa. Tinha um avião que voava baixo
sobre nossa casa em algumas noites.
Emily se encostou em mim. “Hmm... por que você nunca mais me
comeu?”
“Te amo demais.”
“Você pode comer meu cu, se quiser.”
“Eu gostaria”, falei. “Mas meu coração está em pedaços.”
“É, o meu também.”
“Eu sei.”
CAPÍTULO CINQUENTA E SEIS

Ari me ligou num domingo à noite e disse que estava mal. Ele disse:
“Você tem alguma coisa?”.
Falei: “Cara, mas que porra?”.
Ele disse: “Por favor. Tô fodido”.
Falei: “Ok, tô indo aí”.
Dirigi até a casa abandonada e Ari estava bem mal, um frio do
caralho na casa. Ari parecia péssimo, andando com o saco de
dormir daquele jeito, a barriga se contorcendo, o nariz escorrendo
direto. Sabia pelo que ele estava passando. Eu passava por aquilo o
tempo todo. Acontecia toda semana. Por isso odiava ver outras
pessoas na merda; me lembrava de como eu estava fodido.
Falei: “O que aconteceu com seu camarada? Ele não devia estar
cuidando de você?”.
“Sinto muito por aquele dia”, ele falou. “Eu não sabia.”
“Aqui tem uma de oitenta”, falei. “É pra você. Pode ficar, é sua, e
você não me deve nada. Mas precisa me arranjar outro contato,
alguém que não seja um bosta. Se me arranjar outro filho da puta
que nem o Gary, vou voltar aqui e queimar essa casa toda com você
dentro. Por favor, acredite. E preciso tratar direto com o cara. Não
falo através de você. Deixa isso claro pra ele.”
“Ok, pode ser”, ele disse. “Certo. Valeu.”
Ari injetou 40 mg e se salvou. Aí ele ligou para Manny, e Manny
disse para eu visitar ele. Ele estava em Painesville. Não fiquei muito
empolgado sobre Painesville, mas fui.
Encontrei ele num posto de gasolina na saída da Rota 2. Liguei
para ele do estacionamento. Disse para entrar. Ele estava parado no
corredor de salgadinhos, extremamente paranoico. Estava chapado
de metanfetamina e tinha feito alguns buracos no rosto. Usava um
chapéu puxado bem baixo, com a gola do casaco para cima. Ele
falava sussurrando, e eu não conseguia entender. Fiquei frustrado.
Falei: “Olha, velho. Tenho isso aqui de dinheiro”.
“Aqui não. Vai até ali e deixa do lado dos Doritos.”
“Ahm...”
“Dos Doritos.”
“Velho, não vou deixar o dinheiro nos Doritos.”
“Dá pra falar baixo, porra? Todo mundo consegue ouvir você.”
Enrolei minha manga esquerda e mostrei a ele meu braço. Meu
braço esquerdo estava fodido. Meu braço direito também, mas só
mostrei meu braço esquerdo.
Falei: “Olha, velho. Não tô de sacanagem. Sou do rolê”.
“Você não tá me ouvindo.”
Quando cheguei em casa com a heroína, Emily perguntou porque
tinha demorado tanto. Disse que tinha comprado um grama de um
novo contato. Ela perguntou se ele era ok. Disse que era ok o
suficiente. Foi barato, considerando a qualidade da heroína. Emily e
eu ficamos felizes. Naquela noite dançamos na sala. Dançamos
uma meia hora, direto. Dançamos feito dançarinos de terceira. A
gente improvisou.
Let’s sing another song, boys, this one has grown old and bitter. [ 05
]
Foi uma bela noite. Simplesmente aconteceu.
CAPÍTULO CINQUENTA E SETE

A coisa boa a respeito de Manny é que ele era um viciado completo,


que corria tanto contra o tempo quanto você, e então não te fazia
esperar. Ele até me levava de carro para pegar o bagulho, se fosse
preciso. Tinha um monte de gente em Painesville que queria ver
Manny morto. Então ele se mudou para nossa cidade. O que foi
bom, porque odiava ter que fazer toda a porra do caminho até
Painesville.
Ele tinha um quarto no alojamento Euclid. Morava lá com o
namorado, um monstro feito de gelo chamado Chauncey. Chauncey
era dez anos mais velho que Manny, e dizia ser da Flórida. Manny
disse que o pai de Chauncey tinha sido senador, ou algo assim.
Manny disse que a família dele criava cavalos. “Venho de uma
família muito rica”, disse. “Mas me deserdaram.”
Não me importava. Ainda assim, era importante para Manny que
eu acreditasse nele, e, quando estávamos em Painesville uma vez,
passamos por uma fazenda de cavalos e ele disse que era a
fazenda de cavalos do avô. Estava escuro, e não vi cavalo nenhum.
Manny definitivamente era informante da polícia, e um monte de
gente tinha ido parar na cadeia. Como o Ari. Manny vendeu para ele
uma balança toda suja de droga. Ele tinha dito que venderia a
balança para Ari por 10 dólares. Era um bom negócio, então Ari
comprou, e cinco minutos depois foi preso com toda a parafernália
por posse com intenção de distribuição. Foi uma merda o que
Manny fez com Ari.
Às vezes, quando Manny precisava sacanear alguém, a polícia
revistava o quarto dele no alojamento Euclid, faziam revista íntima
em todo mundo e levavam um ou dois moleques presos. Mas
Manny e Chauncey nunca foram presos.
A polícia tinha uma sala no corredor, bem em frente ao quarto de
Manny.
Uma vez estacionei e estava subindo para o quarto quando um
policial me chamou do segundo piso.
“Ei, você deixou sua janela aberta”, ele falou.
Me virei e vi que era verdade. Acenei para o policial e disse:
“Obrigado”.
Ele disse: “De nada”.
A pior coisa sobre Manny ser um informante da polícia era que ele
arranjava heroína da boa, mas não levava muito tempo antes de
entregar o contato. Como dois caras que conseguiam uma heroína
que cheirava a peixe podre e te deixava mais alto que uma pipa por
cem dólares o grama. As orelhas zuniam pra caralho. Mas não levou
nem duas semanas para Manny entregar os caras.
Disse para mim mesmo: Você realmente tem que sair dessa
merda enquanto pode.
Disse para mim mesmo: Sugestão anotada.

com Emily era que estávamos nos matando um ao


outro. Separados, provavelmente nos daríamos bem, mas nós dois
juntos era quase suicídio. Foi preciso um trabalho de equipe para
fodermos tanto nossa vida. Mas, mesmo assim, não desistíamos.
Emily tinha me infernizado nos últimos dias. Ela estava puta
comigo porque eu tinha levado um calote de 600 dólares. Foi uma
situação na qual Manny me colocou, e que eu deveria ter previsto;
deveria ter imaginado que 25 gramas de cocaína não custavam 600
dólares. Mas eu era um merda ganancioso, e achei que tinha dado
sorte: poderia ter tranquilamente comprado aquela quantidade por
novecentos, e todo mundo teria ficado feliz. Mas aí me dei conta do
que realmente tinha acontecido, que o dinheiro já era e que não
tinha nada que pudesse fazer. Foi tocante a forma como Manny
fingiu não saber; ele até chorou de verdade. Mas, mesmo assim,
fiquei sem os seiscentos.
Emily disse: “Você tá matando a gente, bebê”.
Falei: “Dá pra você calar a porra dessa boca?”.
Foi um erro terrível dizer isso. Ela tinha entrado numas de berrar
comigo feito um pássaro gigante às vezes. Cresciam asas nela, e
ela voava pela casa gritando daquele jeito. Ela chegava até o teto,
berrando. Era terrível de verdade. Era como brigar com um
pterodáctilo. Não havia nada a fazer.
Eu disse: “Jesus amado. Por favor”.
Nunca terminava rápido, depois que ela começava com isso.
Durava. Ela me culpava por tudo. E tinha certa razão. Mas mesmo
assim, nunca tinha visto ela parar com a heroína.
Digamos que a gente tentasse parar. Digamos que já tivéssemos
gasto um monte de dinheiro, e que um monte de desgraçados de
merda tivessem nos sacaneado. Digamos que a gente mandasse
tudo se foder, e quando o fim de semana chegasse, tivéssemos
tempo para ficar mal. Talvez conseguíssemos aguentar um
pouquinho, talvez aguentar até domingo de manhã, aguentar a
febre, o vômito e a vontade de morrer. Aí com certeza um diria para
o outro: “Sabe, a gente tá se saindo bem. Acho que a gente merece
uma folguinha”.
E o outro com certeza diria: “É, tava pensando a mesma coisa.
Além disso a gente tem que cuidar das plantas”.
“Isso mesmo. As plantas. Vou ligar pro Big”.
“É, faz isso. Mas pega só duas.”
“Tá. Mas vou pedir quatro. A gente tem aula amanhã.”
“É verdade. Melhor pegar quatro.”
E a gente diria isso tudo vomitando. Mas já estaríamos nos
sentindo melhor. Tinha uma urgência esperançosa naqueles
momentos, e a vida era bela.

para encontrarmos ele. Dirigimos pela cidade de pijama.


Estava chovendo. Tínhamos o suficiente para cinco — 225 dólares
— e estacionamos em algum ponto depois da Fulton. Big chegou na
hora. Estacionou a Blazer branca. Big sempre aparecia na hora do
sufoco, e não nos tratava feito viciados. Na maioria das vezes, te
tratam.
Entrei na caminhonete: “Como é que vai, Big?”.
Ele falou: “Qualé”.
Dei para ele o celofane do meu maço de cigarros. “Tem cinco
daquelas?”, falei.
Ele contou as cinco. “Não tenho te visto tanto”, ele falou.
“É, acho que não.”
Ele me passou o celofane de volta. Dobrei e coloquei no bolso.
Ele disse: “Você tem tomado aquela merda de heroína”.
“É, é o que parece.”
“Aham. Você sabe que não lido com essa porra. Só lido com as
boletas, porque sei o que estou pegando, sei o que estou vendendo.
Sem problema. Sem sujeira. Sem balança, e aquela merda toda.
Ninguém me enrolando.”
“Entendo o que quer dizer.”
“Beleza. Nos vemos.”
“Beleza.”
Big foi embora e caminhei de volta até o carro. Emily já estava
com o kit pronto em cima do painel — colheres, agulhas, tudo. Nos
injetamos, e ficamos serenos. Fomos para casa.

madrugada. Emily e eu estávamos no porão, e ela tinha


enchido uma lata de lixo com água. Falei: “Faz quanto tempo que as
plantas deram flor?”.
Ela disse: “Cinco semanas”.
Li as instruções que tinham vindo com o kit de nutrientes. Sempre
achei que o kit de nutrientes era fajuto.
Falei: “A gente devia comprar um adubo porrada”.
“Tô falando isso há um tempão”, ela falou.
Estávamos na área que chamávamos de lavanderia. Era onde
ficava a pia, perto da lavadora e da secadora. A secadora estava
quebrada fazia algum tempo. Não conseguíamos consertar por
causa do espaço de cultivo. Usávamos um varal para secar as
roupas, e nossa lavagem piorou bastante por conta disso.
Havia uma lâmpada de 600W de sódio de alta pressão acesa num
canto. Era para os brotos e para a planta mãe. A mãe tinha sido
cortada em pedaços. Tiramos cem brotos dela. Mantínhamos um
monte de terra preta no canto oposto. Nós misturávamos nossa
própria terra. Tinha tantas centopeias pela casa que era difícil de
acreditar.
Emily checou o pH. Precisávamos de mais acidez. Fui pegar.
Ela disse: “Esse não”.
Eu disse que sabia. Peguei outro. “Quanto você acha que
precisamos?”.
Ela disse: “Deixa que eu faço”.
Ela também checou a quantidade de partes por milhão. Me
explicou o que era isso. E disse que estava tudo certo. Mas eu não
sabia o que significava. Pegamos a lata de lixo e arrastamos até a
outra sala. Era uma sala completa, com carpete, gesso e essas
merdas todas. Tinha uma porra de uma barraca enorme nela. A
parte de dentro da barraca era coberta com aquela película térmica
da Mylar, ou algo parecido com Mylar. Não me importava se era
Mylar ou não, só me incomodava às vezes não saber coisas que
provavelmente deveria saber. O que eu sabia é que tinha colado a
Mylar nas paredes do canto da lavanderia, e pensei que pudesse
ser algo diferente, mas não tinha certeza. Era uma barraca chique.
A única coisa que fazia com que a barraca não parecesse
totalmente estúpida era que ficava fácil de pendurar as lâmpadas
pelo lado de fora da armação. A ideia de comprar a barraca não
tinha sido minha. Eu só tinha montado. Foi Roy quem falou que
precisávamos de uma barraca. Ele tinha sido nosso sócio no espaço
de cultivo, quando começamos. Aí ele nos roubou, deixou de ser
nosso sócio, e passamos a achar ele um monte de merda. Mas
agora tinha essa barraca, e não sabia como algum dia iria me livrar
dela.
Tínhamos só duas lâmpadas de 1000W — eram três, mas tivemos
que dar uma para Roy, para nos livrarmos dele. Cada lâmpada
rendia cerca de meio quilo e ganhávamos em média 9 mil dólares
por quilo, vendendo em porções de 25 ou 100 gramas. Foram uns
três meses para fazer crescer essa merda toda — um mês para as
plantas chegarem ao tamanho certo, dois meses para o ciclo de
floração. As luzes ficaram ligadas 24/7 no primeiro mês e, nos dois
meses seguintes, doze horas por dia. Isso consumia um bocado de
eletricidade, tivemos que usar um reator que era alimentado por um
subpainel. Nós mesmos construímos o subpainel e ligamos na caixa
do disjuntor. Tivemos que desconectar a campainha para dar
espaço. Tínhamos comprado fios, conduítes, painéis e a porra toda
numa ferragem. Eu estava tentando entender que tipo de fio
comprar, com nós três chapados de heroína, e Roy bancando o
babaca. Eu tentava dizer algo e ele ficava com aquele sorrisinho
que sempre tinha na cara, olhando para Emily e revirando os olhos,
e ela também revirava os olhos. Ela tinha tomado o lado dele. Eu
não conseguia acreditar. Ela havia se aliado ao escroto. E era uma
dessas situações em que você quer matar o cara, mas não pode,
porque está numa loja de ferramentas e existem leis contra isso, e
você precisa do dinheiro para a heroína, e seu dinheiro estava
investido nessa parada, e isso não importava, porque ela fez o que
fez, e tudo era uma merda para sempre, e não tinha como isso
mudar.
Pensei: Amo uma vadia escrota.
Tempos depois, quando Roy nos roubou, Emily ficou totalmente
fora de si por causa disso.
Ela falou: “Por que ele fez isso? Ele é um cuzão de merda”.
Naquele momento, percebi algo na voz dela.
Mas não dei importância.
CAPÍTULO CINQUENTA E OITO

Manny devia a Cookie 600 dólares pela heroína que Cookie tinha
adiantado para ele. Mas Manny não tinha a grana, e nem iria
conseguir. Normalmente, Manny sacaneava o contato a essa altura.
Mas ele esperou demais.
Num domingo de manhã, Manny me ligou. Disse que precisava
falar comigo sobre algo importante, mas que precisava ser
pessoalmente. Não estava com uma voz normal. Pensei que talvez
estivesse arranjando para eu me foder também, mas precisava
comprar heroína e Manny disse que era muito importante. Então eu
disse ok. Gostava do Manny, afinal de contas. Manny era um ser
humano. Era um bosta, mas um ser humano.
Disse para Emily: “Melhor você ficar. Posso ser preso”.
Ela perguntou: “O que tá acontecendo?”.
Disse que não sabia, provavelmente nada.
Quando cheguei ao shopping Richmond, liguei para Manny. Ele
me mandou ficar onde tinha estacionado. Ele chegou num Ford
Explorer azul que eu nunca tinha visto na vida. Havia outro cara
dirigindo. Manny estava no banco do carona.
Estacionaram na vaga ao lado da minha e entrei no carro deles.
Manny usava um boné dos Yankees puxado bem para baixo, mas
dava para ver que a cara dele estava inchadaça, e isso era péssimo
porque o motorista de Manny parecia o Muhammad Ali, na época
que ainda era Cassius Clay. Manny disse: “Esse é o Cookie”.
Cookie disse que agora eu podia comprar com ele.
Eu disse ok.
Tinha o suficiente para um grama — 120 dólares — então comprei
um grama, levei pra casa e injetei junto com Emily. Era decente, não
incrível.
Meu telefone tocou. Era Cookie.
Ele disse: “Que tal?”.
Falei que era decente.

fodeu o Cookie duas semanas depois. Cookie tentou


escapar e a polícia foi atrás dele. Não teria sido nada de mais,
exceto que Cookie levou Manny no carro com ele. Configurando um
sequestro.
Recebi uma ligação do irmão de Cookie, Pistol. Ele disse que me
venderia heroína. Então estava tudo bem. E aí o Pistol se fodeu
depois de atirar em Manny e recebi uma ligação do Black. Aí o Pistol
ficou em prisão domiciliar e tinha que pegar com ele de novo. Tudo
isso aconteceu em menos de dois meses.

ficava no subúrbio, em uma rua não muito longe da minha.


Era uma rua bonita, cheia de árvores grandes — carvalhos, acho. E
Pistol tinha sempre carros cheios de viciados esperando por lá,
carros cheios de viciados como Emily e eu. Às vezes levava horas
até que nos desse algum bagulho; a gente dizia: “Esse cara é um
cuzão tão grande que chega a ser inacreditável”.
E aí ficávamos mal, fazendo caras tristes até que ele ligasse para
um de cada vez, para que estacionássemos na entrada da garagem.
Ele atendia a gente por uma porta lateral da casa, para não disparar
o alarme da tornozeleira eletrônica.
Não gostava de ir lá, especialmente depois que um furgão de
vigilância apareceu. Estava estacionado algumas garagens depois
da de Pistol. Dava até para ver os policiais, dava para ver eles
entrando e saindo, ou fazendo sei lá o quê. Eles definitivamente
estavam pouco se fodendo se fossem vistos. E eles me viram.
Viram minha placa. Todas essas coisas. Mas não tinha o que fazer.
Eu tinha que ir aonde a heroína estava.
Numa manhã, os policiais invadiram a casa e levaram Pistol de
volta para a cadeia. A família inteira — mãe, filhos pequenos, todo
mundo que não estava preso — estava lá quando isso aconteceu.
Eles ficaram abalados. Eu não sabia o que tinha acontecido quando
recebi uma ligação do Black pela tarde. Ele disse para encontrar ele
em Belmar. Estava lá parado na calçada, esperando com outro
irmão dele, Raul. Eu reconheci Raul porque já tinha visto ele antes,
era um filho da puta grande e sorridente, e usava um relógio
chamativo, então era fácil de reconhecer. Raul parecia uns cinco
anos mais velho do que era; tinha apenas 23. Enfim. Pensei que só
tinha ido até lá comprar um pouco de heroína, não sabia por que
eles estavam parados me esperando; normalmente, quando a gente
se encontrava, fazia a transação no carro, e eles nunca chegavam
na hora.
Estacionei perto do meio-fio, desci e caminhei até onde eles
estavam. Perguntei ao Black se estava tudo bem e ele me contou o
que tinha rolado pela manhã.
Falei: “Merda. Isso é muito ruim. Seu irmão é um cara legal.
Espero que ele esteja bem”.
Black olhou para Raul. Black estava fazendo umas caras tristes,
sendo dramático a respeito da coisa toda. Ele era só um moleque.
Acho que tinha 20 anos. Ele falou: “O que eu quero saber é por que
eles estavam falando o seu nome”.
Raul estava parado atrás de mim.
Eu perguntei para Black: “Do que você tá falando?”.
“Eles falaram de um moleque branco que dirige um Ford preto.”
“Cara, o que isso significa? É claro que eles sabem dessas
merdas. Tinha um furgão de vigilância estacionado do lado de fora
por duas semanas. Avisei você. Provavelmente todo mundo avisou.
Vocês têm um furgão de vigilância estacionado na frente da casa,
tocam o negócio feito uma boca de crack no meio do subúrbio e,
quando a polícia chega chutando a porta, vem dizer que a culpa é
minha? Você é o quê, louco?”
“Eles falaram seu nome.”
“Eles podem ter pego pela placa.”
“Não teu nome de verdade.”
Aí me dei conta.
“Ah”, falei.
“Ah o quê?”
“Sabe aquele merda que é a cara do Dale Junior, o automobilista?
Baixinho? Ruivo? Sardento? Se apresenta como K-Mart. Um que
compra heroína de você? Ele veio até o meu carro e falou comigo
outro dia, quando eu estava estacionado na rua, esperando seu
irmão. Ele bateu na minha janela e começou a falar comigo sobre
heroína e tal, e sobre como ele tinha trabalhado de mula em Nova
York, bobagens desse tipo. Ele não calava a porra da boca. Queria
meu número de telefone, mas disse pra ele que não tinha telefone.
Tenho um mau pressentimento sobre esse cara. Muito enxerido,
sabe? Não disse nada pra ele, só meu nome. Imagino que tenha
sido ele quem falou com a polícia. Fora isso, não sei nada sobre o
que aconteceu hoje de manhã.”
Black olhou para Raul.
Raul disse: “Acredito nele”.
Black disse: “Você não sabe quanto sentido acabou de fazer”.
“Preciso de heroína.”
“Tenho que pegar no carro.”
“Tenho o suficiente para dois.”
“Vou descolar pra você.”
Voltei para casa. Não eram nem três da tarde. Emily estava
assistindo The Jerry Springer Show. Dividimos a heroína e contei
para ela o que tinha acontecido.
A heroína era ok. Dois gramas duravam pouco.
Emily perguntou: “Por que a polícia faria isso com você? Você
podia ter se machucado”.
Falei: “Talvez isso surpreenda você, mas a polícia acha que
merecemos morrer”.
Liguei para Black.
Falei: “Foi pouco”.
Ele disse: “Sério?”.
“Sim, faltou mais quatro.”
Ele disse: “Te entrego depois”.

encontrar Black de novo, e estava de novo esperando no carro,


do lado de fora da casa dele. Fiquei feliz de ver que o furgão de
vigilância tinha ido embora. Raul saiu, veio em direção ao carro e
desci o vidro da janela. Achei que ele ia deixar a heroína. Mas não.
Ele disse que não, que o Black traria em um segundo.
Eu disse que tudo bem.
Ele disse: “Ei, você sabe de alguém que pode me arranjar 25g de
coca?”.
Disse que talvez conhecesse alguém, mas tinha que ligar para ter
certeza.
“Ok, faz isso”, ele disse.
Peguei o telefone e liguei para Mike, mais conhecido como Coca e
Boleta. Expliquei tudo para ele.
Mike disse: “Quem é esse cara?”.
Falei que era o cara que me vendia heroína.
“Ele é preto?”
“É.”
“Merda. Sei lá.”
“Bom, ele tá aqui comigo. O que quer que diga pra ele?”
“Ele é de boa?”
“Até agora, sim.”
“E ele quer 25 gramas?”
“Aham.”
“Posso falar com ele?”
“Posso te passar o número dele.”
“Ok.”
“Te mando por texto.”
Desliguei o telefone e disse para Raul: “Ele vai te ligar. Me dá seu
número. Vou mandar pra ele por texto”.
Ele disse que tudo bem.
Black veio até o carro. Ele olhou para Raul com cara de O que
você tá fazendo?
Raul sorriu e disse: “Que é?”.
Black não sorriu, sacudiu a cabeça. Trocamos dinheiro e heroína.
Eu tinha uma balança e pesei o que ele me deu para ver se estava
certo. Perguntei para Black se ele ainda queria comprar os 100
gramas de maconha. Disse que tinha guardado para ele. Ele me
disse para trazer na próxima vez, para ele dar uma olhada. Pelo
modo como falou, dava pra saber que não compraria merda
nenhuma. Mas eu disse que traria, de qualquer forma.
Sentia como se tivesse conquistado algo. Agora tinha um outro
número para ligar se ficasse difícil achar heroína. E tinha feito um
agrado para Mike. Mike tinha ficado todo zoado por um tempo. Eu
tinha pago por todo o prejuízo do cofre, então a culpa não era
minha. O problema do Mike era que ele tinha se detonado com as
boletas e a coca que deveria estar vendendo e ficado quase tão
viciado quanto eu. Agora ele pegava as pílulas dele comigo. Mas ele
não se deixava abalar; continuava arrogante pra caralho.

que a heroína não durou nem um pouco com a gente.


Pouco depois de acordarmos no dia seguinte, já não tinha nada e de
tarde já estávamos esperando do lado de fora da casa, naquela rua
bonita com grandes carvalhos. Lá estava Raul de novo, e Raul veio
até o carro.
Falei: “Emily, esse é o Raul. Raul, essa é a Emily”.
Emily disse oi.
Raul disse oi.
Perguntei a Raul como tinha sido com Mike.
Ele disse que tinha ido bem. A coca era boa. Talvez ligasse para
Mike para pegar mais. “Sabe quando você tá esquentando ela com
o fermento em pó e ela começa a borbulhar?”, ele perguntou.
Não sabia. Mas fingi que sim.
“Você trouxe aquele beck com você?”
Disse que sim.
Ele falou: “Deixa eu ver”.
Dei um ramo para ele olhar.
“Ah, essa é da boa.”
“Essa chama Toranja”, falei. “Tem um gosto muito bom.”
“Talvez eu tenha que comprar um pouco.”
Black veio até o carro e olhou para Raul com o mesmo olhar do
dia anterior, e novamente Raul sorriu e voltou para dentro. Emily
disse para Black: “Seu irmão é legal”.
Ela falou: “Raul é um merdinha”.
Eu perguntei: “Você quer olhar os 100 gramas?”.
Ele disse que ia olhar. Passei para ele o saco e ele abriu. Ele
disse: “Então isso aqui é de arrepiar, hein?”.
Emily disse: “É, de arrepiar”.
Ele disse que parecia realmente bom, mas não podia comprar no
momento.
Talvez outra hora.
CAPÍTULO CINQUENTA E NOVE

O foda de ser viciado é que as pessoas mentem na sua cara, e você


não pode dizer nada, porque elas podem não te dar o que você
precisa na hora H. Nos sábados não era diferente. Emily e eu
acordamos, injetamos nossa última dose, e aí o dia começou. O dia
não começava até acabarmos com as drogas, e aí já era hora de ir
arranjar mais.
“Quanto nós temos?”
Ela disse: “Novecentos dólares”.
“Nada mau.”
Liguei para Black, mas ele não atendeu. Mandei uma mensagem.
Ele respondeu, dizendo que ainda não tinha descolado.
Emily sugeriu: “Podemos ligar pro Big”.
“É, talvez a gente devesse.”
Era complicado ter algum dinheiro. Você podia achar que, se
comprasse uns sete gramas de heroína, duraria alguns dias, mas
era um erro. E, se você comprasse três gramas, era mais vantagem
pegar um grama de heroína e dois de alguma merda batizada.
Então quando você tinha dinheiro, o melhor a fazer era dar uma
segurada. Mas não tinha como dar errado comprando pílulas.
Pílulas não eram batizadas. E Big não era babaca.
Fomos encontrar Big, compramos dez pílulas e voltamos para
casa. Ainda eram duas da tarde e parecia que o dia seria ok, no fim
das contas. Aí meu telefone tocou. Era Mike.
Falei: “E aí, Mike”.
Ele perguntou: “Você tem uma arma?”.
Eu disse: “Não”.
Ele disse: “ ”.
Falei: “Que tá rolando?”.
“Você não tem uma arma?”
“Não. Por quê?”
“Acabo de ser roubado.”
“Você foi roubado?”
“Sim. O teu chegado me sacaneou.”
“Hoje?”
“Sim.”
“Que merda, cara.”
“Preciso pegar meu carro. Deixei meu carro lá. Você não tem uma
arma?”
“Não. Mas tenho um colete à prova de balas, se quiser.”
“Tô indo praí.”
“Achei que você não tinha carro.”
“Tô usando o carro da Rachel.”
“Ah. Ok. Só chegar.”
Rachel era a namorada de Mike. Eles moravam juntos, mas
dormiam em quartos separados. O que eu achava esquisito. Rachel
era o tipo de garota com a qual você gostaria de dormir. Talvez um
deles tivesse apneia. Sei lá. Mas me sentia mal por Mike. Mike
estava se tratando. E o mundo estava tratando Mike como uma
porra de um perdedor. E ele era novo nisso, então era mais difícil
para ele, mais difícil para ele do que era para pessoas como... eu. E
me senti mal. Tinha sido eu quem tinha colocado ele em contato
com Raul, e agora Raul tinha roubado ele. Raul era preto e Mike
não gostava de vender para pretos. Ele não gostava de vender para
pretos porque achava que não podia confiar neles; em resumo, ele
achava que seria roubado. Disse para Emily: “O Mike tá vindo pra
cá. Disse que acabou de ser roubado. Ele tem que ir pegar o carro.
Vou levar ele”.
“Quê?”
“Mike foi roubado.”
“Por quem?”
“Pelo Raul, acho.”
“Que desgraçado!”
“Não tenho certeza, mas acho que foi isso que aconteceu. Mike tá
vindo. Vamos descobrir já.”
“Ele tá vindo aqui agora?”
“Sim. Vai chegar em pouco tempo.”
Fui pegar o colete à prova de balas. Estava no closet debaixo da
escada. Camuflagem de combate. Um dia tinha pertencido à Guarda
Nacional de Ohio, mas não mais. Tinha também um capacete de
kevlar no closet, mas achei que seria um pouco demais.
Mike estava do lado de fora. Emily o deixou entrar. Falei: “Mike,
você tá bem?”.
Ele disse: “Não, porra”.
“Que aconteceu?”
“Fui roubado.”
“Eu sei. Mas o que aconteceu?”
“Raul me disse que um chegado dele queria pó. Fui até lá
encontrar com ele e o filho da puta me apontou uma arma.”
“O Raul estava lá?”
“Não, só o chegado dele.”
“Sinto muito, cara. Isso foi palhaçada.”
“Meu carro ainda tá lá. Tenho que ir pegar.”
“Ok, tô com você. Levo você até lá agora mesmo.”
“Certo. Acha que devo vestir o colete?”
“Não sei. Veste, se quiser. Vamos tomar um pico antes de ir. Ei,
Emily.”
“Sim.”
“Vou dar uma 80 pro Mike. Não fica de cara comigo.”
“Tudo bem.”
Mike falou: “Valeu. Fico agradecido”.
E nos injetamos, os três. A gente precisava, porque Mike tinha
sido roubado. Ele tinha tido um prejuízo de algo entre 800 e mil
dólares de coca. O mínimo que podíamos fazer era ficarmos
chapados juntos. E foi o que fizemos. Levei Mike até o carro dele. O
carro estava estacionado na frente de alguns apartamentos. Um
Mercury azul. Todas as portas estavam abertas. Isso era bem ao
norte de Mayfield on Coventry, perto da zona leste de Cleveland.
Era um lugar bem ridículo para ser assaltado. Não exatamente uma
zona de guerra. Duas garotinhas pulavam corda. Mike desceu, foi
depressa até onde o carro estava, e caímos fora de lá. Mike usava o
colete. Parecíamos dois idiotas. Quando voltamos, dei outra pílula
para Mike e ele foi para casa. Liguei para Black e ele atendeu. Ele
disse que tinha descolado algo, e a gente podia se encontrar, se eu
quisesse. Falei que estava a caminho. Comprei um grama. Nem
tentei ligar para Raul. Perguntei para Black e ele disse que não
sabia de nada. Não acreditei nele, mas não importava.
CAPÍTULO SESSENTA

Naquela época eu não dormia, e, quando dormia, sonhava com


violência. Sonhava com o Iraque. Sonhava com filmes que tinha
visto. Em meus sonhos, morria e não acordava. Morria direto nos
meus sonhos e, quando acordava, estava cansado. Mais do que
qualquer outra coisa, estava infeliz.
Os dias chegavam feito mariposas mortas na pia do banheiro. Me
mandaram uma carta, dizendo que tinha me saído tão mal na
faculdade que tinha que devolver todo o dinheiro do semestre
anterior. Disseram que precisava devolver o dinheiro imediatamente.
Então fiquei sem opção e fui conversar com meus pais. Eles me
deram o dinheiro. Ainda assim, não tinha mais dinheiro algum.
Poderia conseguir mais grana quando as aulas começassem de
novo, mas teria de ser muito cuidadoso, e achava que não
conseguiria ser cuidadoso, porque sempre havia tanto a fazer que
não tinha como fazer tudo e ainda por cima ser cuidadoso.
Emily disse que devíamos comprar um cachorro, e foi o que
fizemos. Fomos até o abrigo de animais no parque Brook, e
arranjamos um cachorro por 60 dólares. Uma cadela. Emily batizou
ela de Livinia. Livinia era uma mistura de algumas raças, tinha pelo
castanho-acinzentado brilhante e era muito tímida, ficamos
encantados com ela. Falamos: Vamos cuidar dela e ela vai ficar
bem, a partir de agora e para sempre. Emily disse que tínhamos que
parar de tomar heroína e eu disse que pararia. Ela falou que pararia
também.
Fui ao médico, um psiquiatra. Contei para ele que estava fodido.
Já tinha visitado um psiquiatra antes. Tinha sido no Centro de
Saúde dos Veteranos, anos atrás, depois que Zoë foi embora.
Frequentei esse psiquiatra por uns dois meses, até que um dia tive
que levar Roy até o Departamento de Veículos Automotores, na
zona oeste, porque Roy estava morando por lá e só lembrei que
tinha consulta meia hora antes. Liguei para o Centro de Auxílio, mas
não atenderam, aí deixei uma mensagem e falei que precisava
cancelar a consulta. Quando liguei de novo para remarcar, não
atenderam o telefone, continuei deixando mensagens por um tempo.
Fazia três anos. Eles ainda não tinham respondido minhas
mensagens e Roy nem era mais meu amigo.
Estava indo a outro médico, dr. Kaufmann. Podia consultar de
graça, porque o governo dava dinheiro a ele para estudar pessoas
como eu. Ele ficava no hospital da faculdade e não queria que eu
dissesse nada a ele, mas sim que ficasse repetindo números. Eu
tinha que ir para casa escrever os números, de um a dez, dia e
noite, escrever esses números e ficar de olho neles como se
significassem algo; não escrevi os números como devia, e fiquei me
sentindo um maldito criminoso.
Quando Emily tentou se desintoxicar, era para eu não tomar
heroína. Era para eu ficar mal em casa. Emily tinha se inscrito para
fazer a desintoxicação. Foi James Lightfoot quem comentou com ela
a respeito. Ele falou para Emily que tinha uma clínica de
desintoxicação num hospital no centro, onde você não pagava pela
primeira consulta; o estado de Ohio pagava. Então ela foi para a
desintoxicação e eu fiquei em casa com a cadela, e a cadela ainda
não tinha sido adestrada; ficava zanzando pela casa com uma
fralda, fazendo caras tristes porque sentia falta de Emily. Acho que
era para eu ficar mal. Mas fiz cagada, e acabei me injetando. James
Lightfoot apareceu, e nos injetamos. James Lightfoot ainda era meu
amigo. Ele comprava a maior parte da maconha que Emily e eu
cultivávamos, preparava e vendia. Na verdade, ele nos ajudava um
bocado, às vezes; era um sujeito de confiança, e não era um viciado
completo. Mas, ainda assim, ele era sem dúvida fodido da cabeça,
cheio de tristeza e com um desejo de morte forte o suficiente para
considerar um equívoco ter o cara por perto enquanto tentava não
me injetar. Então o que aconteceu foi que James Lightfoot e eu
injetamos heroína, e eu não fiquei mal como deveria ter ficado. Mais
uma cagada.
Na segunda, fui buscar Emily na desintoxicação. Na volta,
paramos e compramos mais heroína. As coisas basicamente
voltaram ao normal e Emily estava puta comigo, porque eu ainda
estava tomando heroína e ela disse que era minha culpa.
Certa manhã, o senhorio ligou e disse que nos visitaria com um
inspetor municipal para inspecionar a casa. Disse que chegaria em
duas horas. As plantas estavam começando a florar. Tivemos que
destruir. Tivemos que desmontar tudo. Não tinha nenhum lugar para
levarmos as plantas, eram muitas e muito grandes para que a gente
pudesse esconder, então tive que cortar em pedaços e meter em
sacos de lixo, meter a terra toda em sacos de lixo e enfiar tudo no
carro do jeito que dava, enquanto Emily desmontava o equipamento.
Então desmontamos a barraca, arrancamos todo o Mylar. Uma porra
de um desastre e ficamos ainda mais fodidos, mas pelo menos o
senhorio nem desconfiou.
Black foi preso. Eu estava saindo do consultório do psiquiatra uma
noite, estava chovendo, e Raul me ligou. Ele me contou. Disse que
não era nada de mais, que o Black provavelmente sairia sob fiança
em alguns dias, talvez em uma semana ou duas, mas ele disse que
me venderia heroína nesse meio-tempo, e aí falei que queria
encontrar com ele imediatamente. Ele falou para encontrar com ele
perto da St. Clair. Levou um bom tempo para chegar. Quando
apareceu, eram quase dez horas. Ele se desculpou, mas tinha vindo
com o tio dirigindo e tinham sido parados pela polícia, que ficou
enchendo o saco deles. Dei o dinheiro e ele me deu um saquinho de
heroína. O saquinho estava enrolado num pedaço de plástico que
parecia ter sido rasgado de uma sacola de supermercado. Fui para
casa.
Emily e eu estávamos prestes a dividir a heroína. Senti um cheiro
vindo do saquinho de heroína e comentei com Emily. Nós dois
concordamos que, pelo cheiro, Raul andava comendo frutas secas.
Depois que injetamos o bagulho, liguei para Raul. Ele perguntou o
que tinha achado da heroína. Disse que a heroína era boa e
perguntei se ele sempre enfiava a heroína no meio do cu antes de
me vender. Ele deu risada.
O dr. Kaufmann tinha marcado uma consulta para mim com um
médico especialista em dependência química. Fui até lá, mas a sala
do especialista não era bem identificada. Não conseguia achar e
fiquei zanzando em círculos pelo hospital. Quando finalmente achei
o lugar, estava quinze minutos atrasado, mas a culpa não era
minha. Me deixaram esperando. Por mais de uma hora. Aí passei
por todas etapas com a enfermeira, ela tirou sangue, me fez
algumas perguntas e ela era legal, mas o médico, o tal especialista
em dependência química, ou o que quer que fosse, era um filho da
puta de marca maior. Falei para ele que não tinha nenhuma
confiança em pílulas à base de buprenorfina, porque não faziam
qualquer efeito em mim. Já tinha tentado várias vezes. Eu ficava
mal, e aí tomava um monte delas para não ficar tão mal, umas
quatro ou cinco, dissolvendo uma por vez debaixo da língua, e não
adiantava merda nenhuma. Estava dizendo a verdade, mas ele
disse que eu era um mentiroso. Ele me perguntou por que estava
me consultando com o dr. Kaufmann. Falei que estava vendo o dr.
Kaufmann por causa do meu estresse pós-traumático; ele me
perguntou o que poderia ter causado meu e contei a ele que
tinha estado no Iraque. Ele perguntou quando. Disse que tinha ido
em 2005 e voltado em 2006. Ele disse que, a essa altura, a guerra
já tinha acabado. Aí fui embora, porque não dava para ficar lá.
Lembrei de como no Iraque meu peito costumava doer. Eu saía da
base o tempo todo, e comecei a ter dores no peito que me deixavam
estirado no chão, como se estivesse tendo um ataque cardíaco, sem
conseguir respirar. Aí Shoo me levou para ver o assistente do
médico do batalhão, no centro de emergência, Capitão Não-lembro-
o-nome. E o assistente — que, note-se, sequer era um médico,
embora atuasse um bocado como médico — disse que não podia
me atender e pediu a Shoo que me avisasse para ir na manhã
seguinte, durante o horário de consultas. Mas não fui. E continuei
com as dores no peito. Normalmente eu não estava por perto no
horário de consultas. Normalmente estava fora da base, me fodendo
por causa de alguma bomba, levando tiros, ou algo assim. Eu não
era nada na época e continuo não sendo porra nenhuma.
CAPÍTULO SESSENTA E UM

No fim, o que aconteceu foi que Emily e eu estávamos brigando


muito. Ela me culpava por tudo que havia de errado com ela e eu
queria que ela calasse a boca, às vezes. Usávamos toda droga que
conseguíamos arranjar, ficávamos ultrachapados e eu pegava no
sono sentado numa cadeira e deixava um cigarro aceso cair no colo.
Aí ela descia a escada com a câmera dela na mão e começava a
me seguir pela casa dizendo: “Olha pra você! Você tá tão chapado
que chega a ser nojento!”. E eu perguntava que porra ela queria
dizer, já que também estava chapada.
Uma coisa que estava nos fodendo era que os Oxys estavam
acabando. Logo a gente não iria mais conseguir. Não era culpa de
Big. Big sempre conseguia Oxys, desde que eles estivessem sendo
fabricados. O problema era que não estavam mais sendo feitos do
mesmo modo. Começaram a fabricar como uma borracha dura,
impossível de triturar, e, mesmo que você conseguisse, elas viravam
uma gelatina quando você colocava água e aí não tinha como
injetar. Ainda tinha algumas das pílulas antigas circulando, mas
estavam acabando rápido. Emily e eu não gostávamos de nada que
não pudesse ser injetado. Logo teríamos só a heroína e, como Big
não vendia heroína, ficaríamos à mercê de algum trafizinho com
quem não dava para contar, e por isso a gente ficava mal muito
mais vezes.
As aulas começaram na primavera e eu ia sempre que podia, já
que era minha obrigação e eu tinha me safado. Emily tinha que
estar sempre na escola, porque dava aula de reforço, além de ter
aulas para assistir, e nas terças e quintas ela estudava até às oito
da noite. Então eu passava a maior parte dos dias sozinho em casa,
sem fazer nada do que deveria. Ficava tão deprimido que sequer
conseguia me mexer. Emily dizia que eu era um merda inútil. Era
putaria dela dizer aquilo, mas tinha seus motivos, acho. Só que eu
não gostava, e não me ajudava em nada.
Tinha uma garota em uma das minhas aulas com quem já tinha
conversado e sabia algumas coisas sobre ela. Sabia que tinha um
filho e que as coisas eram difíceis para ela. Queria que eu ajudasse
ela a arranjar heroína. Eu não queria, porque ela tinha um filhinho e
tudo mais. Parecia a pior coisa a se fazer, dar heroína para a mãe
de uma criança. Mas ela tinha me pedido algumas vezes, então um
dia saímos juntos da aula, pegamos heroína e nos injetamos na
cozinha dela; ela disse que gostava de mim, eu disse que gostava
dela também e que esperava que ela encontrasse alguém que
amasse ela do jeito que ela merecia ser amada. Aí ela me beijou.
Não queria que ela fizesse isso, mas gostei. Foi bom ser beijado por
ela. Foi bom ser beijado por outra pessoa. Ela tinha peitos duros, se
esfregou em mim e pegou no meu pau. Tentei tirar a calça dela, mas
ela me disse que estava menstruada. Eu disse que merda. Ela
disse: “Deixa lamber ele”. Eu não queria, porque fazia quase três
dias que não tomava banho e não aparava meus pelos fazia muito
tempo. Tentei tirar a calça dela de novo, ela repetiu que estava
menstruada e ficou dizendo: “Deixa lamber ele”. Aí ela ficou de
joelhos na minha frente e começou a tirar meu cinto. Não tinha nada
que eu pudesse fazer, então coloquei meu pau na boca dela.
Conseguia sentir o cheiro do meu pau e imagino que o gosto
deveria ser horrível, mas agora já era; aí gozei, e gozei tão forte que
respingou nos dentes da garota e acabou entrando no nariz dela.
Ela limpou a porra, disse que tinha porra dentro do nariz e me senti
bem e mal ao mesmo tempo. Não falamos muito depois disso e
levei ela de volta para a faculdade. Foi a última vez que nos vimos
fora da escola e, quando nos víamos na aula, nem olhávamos um
para o outro. Me senti mal por isso, mal por a vida ser apenas morte
lenta, um boquete aleatório quando você não está preparado,
arrependimento e o esquecimento de tudo aquilo em que algum dia
acreditou.
CAPÍTULO SESSENTA E DOIS

Como você se torna um lixo?


Eu me tornei um lixo porque precisava de dinheiro, e porque
passava tempo demais com trafis.
A noite não tinha sido particularmente boa. Tínhamos dirigido a
noite toda, Raul, Rider e eu. A gente estava procurando um carro
específico. A gente ia roubar o dono desse carro. Mas não
encontramos. Fomos até a casa dele.
Rider disse: “Ele não tá aqui”.
Raul disse: “Tem certeza que essa é a casa dele?”.
Rider disse: “Tenho certeza”.
Mas ele falou como se não tivesse certeza.
Rider tinha uma cicatriz, uma lua crescente que percorria todo o
lado esquerdo do seu rosto. Não tinha sido acidente, alguém tinha
cortado ele. Comprava heroína do Rider quando não tinha opção.
Rider era treta. Ele me perguntou se eu podia matar uma pessoa
pra ele. Ele precisava matar alguém, porque devia um bocado de
dinheiro, e era a melhor forma de quitar a dívida. Rider estava
encrencado. Mas ele não tinha me contado essa parte. Só disse que
me pagavam 10 mil se matasse o cara. De todo modo, recusei.
Rider era um puta mentiroso. Ele era o tipo de cara que mentia até
sobre que horas eram, sem qualquer motivo para isso. Do tipo que
colocava pessoas em situações fodidas e aí esperava que elas
fizessem algum milagre por ele. Rider não sabia nem cuidar de si
mesmo. Mas ele era chegado do Raul. E Raul acreditava nele, como
tinha acreditado nessa história do carro.
A certa altura, me cansei.
Falei para Raul: “Não vai rolar”.
Raul falou: “Isso é palhaçada”.
Rider falou: “Cara, esse negão tem pelo menos 100 mil”.
Mas a gente tinha cansado de ouvir Rider.
Largamos ele. Estava esgotado, me sentindo um merda. Odiava a
maneira como me sentia.
Disse para Raul: “E o outro lance? Com certeza conseguiria fazer
aquilo”.
Ele falou: “É, vamos fazer”.
Falei: “Você só tem que dirigir. Faço todo o trabalho”.
Ele disse ok.
Eram quinze para as seis da manhã, e eu estava começando a
ficar mal. Não tinha heroína nem dinheiro, e devia 600 dólares para
Raul. Ele não queria mais fazer fiado.
Falei: “Você sabe que não consigo fazer nada mal desse jeito”.
Ele me fez levar ele até uma boca. Voltou com um grama. Mas
disse que era só isso. Deixei ele na casa da namorada. Disse que
ligaria para ele de tarde. Aí fui para casa.
Eram quinze para às sete. Tinha neve no chão. Era neve velha,
suja e congelada. Às vezes esquecia que mês era.
Emily e Livinia estavam na cama. Acordei elas. Estava
aconchegante no andar de cima. Meu coração doía. Era bom. Emily
levantou. Livinia voltou para baixo das cobertas; ela gostava de ficar
lá; gostava de dormir pela manhã.
Emily e eu levantamos e nos aprontamos. Deixei Emily na aula.
Ela disse que não se importava de voltar de ônibus. Eu disse que
tinha que ir até a casa dos meus pais para fazer algo. Ela disse que
tudo bem: talvez minha mãe desse alguma comida para eu levar pra
casa; talvez meu pai me desse alguns trocados.
Estacionei e fui para a aula. Queria me sentir tão normal quanto
possível por algumas horas. Queria fingir que era um cidadão
cordial. Tinha que encontrar Raul só às três. Cheguei em casa meio-
dia e meia e deixei Livinia sair. Tinha passado num Wendy’s e
trazido um cheeseburguer para ela. Ela devorou o cheeseburguer
em tipo dois segundos e aí ficou me olhando com aquela cara de
“Onde consigo mais um desses?”.
Ela me lembrava de mim mesmo, insaciável.
Injetei o resto da minha heroína. Fumei um cigarro.

umas vinte horas que Black tinha ligado.


Ele tinha dito que eu era um bosta.
Eu falei: “Hein?”.
Ele disse: “Você é um bosta”.
“Alô? Black?”
“Você vai me fazer usar minha máscara preta.”
“Quê?”
“Você vai me fazer usar minha máscara preta.”
“Não consigo ouvir o que você tá dizendo.”
“Você vai me fazer usar minha máscara preta.”
“Que foi que eu fiz?”
“Paga minha grana, filho da puta.”
Emily estava vendo . Ela perguntou: “Quem era?”.
Falei: “Era o Black”.
Acendi um cigarro e me sentei.
“Que foi que ele disse?”
“Disse que vai ter que usar a máscara preta dele.”
“O quê?”
“Foi isso que eu respondi.”
Ela chutou a ponta da mesa. “Vai se foder, cara!”
“Merda! Eu sei lá. Foi o que eu disse pra ele. Ele disse que vai ter
que colocar a máscara preta dele.”
“O que isso quer dizer?”
“Não quer dizer nada. Ele é um escroto de merda.”

me ligou às três e meia. Estava pronto e saí. Me sentia bem.


Estava nervoso, mas não nervoso de um jeito ruim. Me sentia vivo,
só isso.
Nos encontramos um pouco depois das quatro. Raul tinha pego o
carro do primo emprestado. Um carro qualquer, meio velho. Cinza,
de fabricação japonesa. Placas provisórias. Era perfeito.
Raul dirigia. Passamos por um banco que deveríamos assaltar. Da
rua, dava pra ver pela janela da frente. O lugar não parecia ruim,
mas quando passamos pelo banco vi algo que não gostei.
Falei: “Esse não é bom”.
Raul falou que achava um bom banco para roubarmos.
Falei: “Os caixas ficam atrás de vidro blindado. Não vai funcionar”.
“Pega um dos clientes”, ele disse.
“Que tal eu pegar a porra da sua avó? Vamos achar outro banco.”
Dirigimos, procurando por algo melhor. E aí os bancos começaram
a fechar.
Falei: “Merda”.
Raul falou que sabia de um banco que fechava tarde. “Fecha só às
sete”, falou.
Eu disse que tudo bem.
O banco ficava em um shopping. Era um shopping velho, e achei
que isso era bom, porque o banco provavelmente não tinha
segurança nenhuma. As portas eram velhas; as câmeras
provavelmente eram uma merda.
Falei: “Esse é bom. Vamos esperar até não ter ninguém”.
Esperamos. Estava pronto para entrar, assim que esvaziasse. Não
queria pessoas no caminho. Estava usando um capuz e uma touca.
Raul tinha comprado para mim. Eu tinha uma lata de spray
repelente de urso. O spray era da Emily; ela tinha arranjado quando
vivia na floresta, em Washington. Peguei sem pedir. Nunca tinha
roubado um banco. Não sabia o que esperar.
Mas estava de boa com isso. Só não queria pessoas no caminho.
Imagino que ninguém se mete num assalto sem estar, em algum
nível, desesperado. Ser uma pessoa boa ou má não tem nada a ver
com isso; muitos desgraçados realmente perversos nunca roubam
nada. Um assalto é uma questão de humilhação. Você se sente
humilhado? Então tenha cuidado. Você pode acabar roubando algo.
Devia dinheiro para alguns traficantes. Estava pouco me fodendo.
Black e seu dinheiro que se fodessem. Ele deveria esperar isso,
vivendo do jeito que vivia. Eu só tinha medo de uma coisa na vida:
não conseguir mais heroína. Nunca estava a mais de doze horas do
colapso total. E aí vinha o desespero. Já tinha aceitado isso.

dar uma mijada. Ele saiu pelo lado do prédio, mijou e


voltou. “Vinte pras sete”, falou.
“Você tá certo”, falei. “Vou agora. Foda-se”.
Tinham três pessoas trabalhando no banco, e um cliente. O cliente
era uma mulher. Duas das atendentes eram mulheres jovens e o
gerente era um cara mais velho, gordo e de péssima aparência, feito
um bebê de 60 anos de idade. De suspensórios e tudo mais. Ele
estava numa mesa, em um escritório. Uma das paredes do
escritório era de vidro, o gerente me olhou e senti que ele tinha
certeza do porquê de eu estar lá. Estava de capuz, e tinha puxado a
touca bem para baixo. Mas ele não queria acreditar. Nevava do lado
de fora. Talvez estivesse apenas muito frio. Fui até a mesa onde
deixavam os envelopes para depósitos e as canetas. Peguei um
envelope e escrevi nele. Escrevi a palavra merda umas dez vezes.
Devagar. Estava esperando a cliente sair. Era uma mulher pequena,
de uns 45 anos, usava um casaco de lã preto; tinha cabelo preto até
os ombros, com alguns fios grisalhos, e era mãe de alguém.
Foi embora.
Caminhei até o balcão e passei um bilhete para a caixa da
esquerda. Ela não tinha nem que ler o bilhete. Pegou o dinheiro. E a
outra caixa ficou me olhando, como se dissesse: Não vai me roubar
também?
Eu provavelmente deveria ter feito isso, afinal, de qualquer forma
já tinha me metido em confusão.
Mas não fiz.
Não queria roubar ninguém de verdade.
Só queria heroína.
Queria terminar aquilo logo.
Saí rápido pela porta, entrei no carro e deitei no banco de trás.
Disse: “Feito. Vai”.
Raul acelerou. Ouvimos sirenes chegando, mas tínhamos nos
misturado no trânsito e já tínhamos nos safado. Coloquei a placa
provisória na janela de novo. A rua era um rio de luz.
Dividimos o dinheiro. Ele me deixou onde meu carro estava.
Falei: “Preciso de heroína”.
Ele disse que não tinha nada.
“Te ligo em um minuto”, ele disse.
Ele ligou dez minutos depois. “Liga pro Black”, ele falou.
Comprei três gramas do Black, paguei o que devia a ele e voltei
pra casa. Emily já tinha voltado. Mostrei para ela a heroína e o
dinheiro.
Falei: “Roubei um banco”.
Ela disse: “Achei você estranho de manhã”.
Falei que tinha me sentido esquisito o dia todo.
CAPÍTULO SESSENTA E TRÊS

Emily estava no quarto do lado, num colchão no chão, logo abaixo


da janela, com as cobertas todas reviradas e bagunçadas. Não
podíamos ficar perto um do outro por causa dos chutes, dos suores
e das vomitadas em baldes plásticos. Tinha que levantar e fazer
alguma coisa. Minhas pernas estavam úmidas.
Fiquei parado na pia da cozinha por quarenta e cinco minutos
bebendo água, para ter algo no meu estômago além de bile e muco,
a água descia e voltava em seguida — agora misturada com bile e
muco — escorrendo do meu lábio até o ralo. Fazia mais de vinte e
quatro horas desde nossas últimas doses. Tínhamos usado todo
nosso crédito. Precisávamos de grana. Estávamos fodidos.
Quando ela gemia — mesmo que me doesse, e me desse vontade
de chorar — o gemido dela era lindo e sentia uma vontade enorme
de ir até ela e dizer “porra” do jeito que ela dizia. O labo inferior dela
tinha um formato perfeito. As gotas de suor eram perfeitas. Os olhos
fechados, sem camisa. O pijama grudado nela. Aquele cheiro que
era só dela. A mecha de cabelo sobre a maçã do rosto e o canto da
boca. Gozamos em poucos segundos. Quando estávamos mal, não
levava mais do que isso. Tinha que arranjar algo para vestir.
Saí de casa usando uma calça cinza, uma camisa oxford de
brechó, um boné de beisebol que tinha sido presente da minha mãe,
óculos de sol fajutos e um caban. Comprei um lixinho de plástico
verde para vomitar nele. Me sentia melancólico, mas era uma
melancolia tranquilizante. A vida era foda, mas era boa. Era isso que
sabia. Destino é destino. Meu coração estava repleto, e a vida era
preciosa.
A neve parou por um tempo, dava para ver a grama adormecida.
O dia estava frio, mas suportável. Tinha uma viatura de polícia
estacionada do outro lado da rua, mas estava vazia. Dobrei na rua
depois do banco e vomitei no lixinho verde. Peguei a rua lateral e
virei à esquerda no parque North, dobrei na primeira à esquerda,
desci metade da rua e estacionei.
Sem plano. Sem cronômetro. Sem máscara. Sem arma. Como não
gostava de fazer esse tipo de coisa, não me importava em fazer do
jeito certo. Emily estava mal, e tudo que tinha que fazer era roubar o
banco, ou ser preso e dizer que tinha tentado. Concluí que o melhor
a fazer seria simplesmente ir em frente, para descobrir o que
aconteceria. Desci do carro e comecei a caminhar, parando pra
vomitar num pátio com árvores. Quando cheguei no banco, dei uma
olhada em volta, procurando pelo policial da viatura, e vi um policial
entrando num bar, meia quadra adiante.
Agora estava tudo certo.
O banco estava cheio, mas tinha diversos caixas, e a fila andava
rápido. Peguei um envelope em meu bolso e examinei o que tinha
nele. Tinha que vomitar. Desabotoei a parte de cima da camisa,
puxei a gola do caban para cima e vomitei dentro da camisa. A
mulher atrás de mim perguntou se eu estava bem.
Falei: “Sim, foi só um espirro”.
Vomitei de novo.
“Acho que você tá bem doente.”
“Não, não, tô bem”, falei. “Cara, não consigo parar de espirrar.”
Me chamaram no balcão. Peguei um pedaço de papel de dentro
do envelope, desdobrei ele e entreguei para a atendente: “Isso
chegou pelo correio pra mim, ontem”.
A caixa leu o bilhete; colocou o dinheiro no balcão. Peguei o
dinheiro, o bilhete e caí fora. Quando cheguei na rua, comecei a
correr. Dei meia-volta com o carro, vomitei um monte em cima de
mim mesmo e segui para o parque North. Se dobrasse à direita,
estaria em Cleveland em cerca de vinte segundos. Se dobrasse à
esquerda, estaria na área em que moravam os ricos. Virei à
esquerda e dirigi por Cleveland Heights. Quando escapei, comecei a
rir. Quando passei pela Lee Road, sabia que estava livre. Era como
se nada tivesse acontecido. Fui para casa, e Emily e a cadela
estavam no sofá. Emily estava de olhos fechados. Entrei na sala e
tirei todo o dinheiro dos bolsos.
“Precisamos descolar heroína. Agora.”
Ela disse: “Como você é foda”.
Liguei para Raul e disse que queria encontrar com ele
imediatamente. Ele disse que me encontraria no Subway da
Mayfield com Warrensville. Troquei de roupa, Emily e eu saímos de
carro. Raul chegou no horário, para variar. Emily foi para o banco de
trás. Eu estava tão feliz por não ter sido preso e termos um monte
de dinheiro. Comprei toda a heroína que ele tinha no bolso. Sete
gramas. Raul desceu e Emily e eu nos chapamos no carro.
Tomamos doses grandes pra caralho. Nossos corações batiam as
asas lentamente. Estávamos salvos. A gente se sentia como anjos
devem se sentir.
Como estávamos famintos, entramos no Subway e pedimos
sanduíches. Pedimos dos grandes. Pegamos até alguns daqueles
cookies que eles deixam perto do caixa. Dei uma gorjeta de 20
dólares para o artista de sanduíches. Ele disse que tinha gostado da
minha camiseta.
Emily e eu injetamos uma porrada de heroína naquela noite. Não
estávamos preocupados; sabíamos que teríamos tudo de novo na
semana seguinte, e na próxima, e talvez até na semana depois
dessa.
Joe me ligou. Não falava com Joe fazia mais de um ano. Disse:
“Joe, como vai, porra? Que coisa boa ouvir notícias suas”.
“Você... ahm... roubou um banco hoje?”
“... Não. Por quê?”
“Tem uma foto de um cara que parece muito com você no
noticiário, e ele roubou um banco.”
“... Ah. Velho, que bizarro. Não, com certeza não era eu. Estranho.
Ahm... Ei, velho, tenho que desligar, beleza? Ok, claro. Olha, te ligo
em breve... Ok, até mais.”
O noticiário já tinha acabado, então entrei na internet. Uma das
matérias na página do canal de notícias local era sobre o assalto ao
banco. Cliquei na matéria e vi uma foto bem nítida de mim, tirada
pela câmera de segurança. Era como se tivesse posado para um
retrato a óleo.
“Vou ser preso”, falei.
Emily olhou a foto: “Puta merda”.
“Tô fodido”, falei. “Porra... Merda... Merda... Mas quem caralhos
assiste ao noticiário local de domingo? Ninguém, né? Não... Vai ficar
tudo bem. Olha. Diz aqui que estão procurando um cara de um
metro e noventa. Tenho um metro e oitenta. Porra. Olha bem pra
foto. Não dá pra dizer que sou eu mesmo, dá?”
Injetei meia grama de heroína para me acalmar.
Olhei a foto de novo.
“Não”, falei. “A gente vai ficar ok.”
Me livrar do dinheiro não era problema. Nosso aluguel tinha
vencido, devíamos 1.100 dólares. Mil e cem mais setecentos. Mais
quinhentos que devia para Pistol, e quinhentos que devia para
Black. Isso dava três mil e oitocentos. Ainda sobravam três mil e
quinhentos, e isso duraria três semanas.
Dormi bem, pela primeira vez em muito tempo.
. Acordei e tomei um belo pico de heroína. Saí da cama e
desci até a cozinha, cozinhei uma dose e injetei em uma veia na
parte de cima do meu pé esquerdo. Coçava um pouco.
A chapadeira da heroína era tranquila, contanto que você tivesse
alguma resistência. Era basicamente inofensiva. Os primeiros vinte
segundos eram muito bons, especialmente quando você tomava de
manhã cedo. A única coisa melhor que a primeira dose da manhã
era a primeira dose depois de passar um ou dois dias mal. Nessas
ocasiões, a guinada de 180 graus da miséria humilhante para a
consolação resplandecente era como um milagre.
A droga se espalhou a partir do meu pé, o efeito todo se
espalhando, meu sangue parecia cantar. Meu cérebro sussurrava.
Sentei numa cadeira azul, fumei um Pall Mall e pensei nos meus
problemas.
Liguei para Raul e disse para ele que queria pegar quinze gramas
de heroína. Ele disse que estava em Akron, mas podia me arranjar
quando voltasse, que me ligaria assim que fizesse isso. Tomei uma
ducha, coloquei as roupas mais limpas que tinha e fui visitar meus
pais. Meu pai estava de bom humor naquele dia, e por algum motivo
que não conseguia entender, minha mãe estava toda alegre,
tentando me agradar. Me senti mal. Sentia desconforto em lugares
confortáveis. Pessoas boas pareciam boas demais, quando estava
chapado de heroína.
“Como vai a faculdade?”, minha mãe perguntou.
“Ok”, falei. “A maioria dos professores é legal. Um deles é um
babaca, mas os outros três são legais.”
“Bom, fico feliz que esteja tudo dando certo.”
Falei que minha média estava boa, a melhor em um bom tempo.
“Quanto tempo ainda falta?”, meu pai perguntou.
“Posso concluir em três semestres. Talvez precise de mais uma
hora ou duas de créditos, depois disso. Mas não muito.”
Minha mãe perguntou se iria ficar para o jantar.
Disse que sim.
Meu pai cortou umas sobras de rosbife para os cachorros. Minha
mãe lavou a louça. Nunca precisei lavar a louça desde que tinha
voltado do Iraque. Minha mãe achava que eu era um herói. Eu não
era. Mas não tentei explicar isso pra ela. Não que eu quisesse
mentir sobre ser um herói. Só não queria ter que explicar nada.
Já era noite quando voltei para casa. Injetei o resto da heroína.
Emily e eu tínhamos tomado três gramas e meia cada, em pouco
mais de trinta horas. Setecentos dólares.
Raul não voltou de Akron até as dez. Ele me ligou do apartamento
da namorada dele, disse que tinha me descolado o que tinha
pedido. Contei o dinheiro e fui encontrar ele. Liguei quando cheguei
lá. Ele apareceu. Sentou no banco do passageiro. “Seu pessoal
assiste o noticiário local?”, perguntei.
“Não. Por quê?”
“Mostraram uma foto minha noite passada. Era claramente eu.”
“Não vi.”
“É. Fiquei preocupado.”
“Uma vez assaltei um cara num caixa eletrônico”, ele disse.
“Mostraram uma foto minha no noticiário, mas nunca me pegaram.”
Isso era reconfortante.
Falei: “Pensei mesmo que não era nada demais. Se não ouvir
nada nos próximos dois dias, não vai acontecer nada. Mas não
posso ficar fazendo merda. É uma merda idiota demais. Tá com
quinze gramas aí?”.
“Sim, tô”, falou. “É pra ser um lance de primeira. Toma cuidado.
Comprei hoje em Akron. Foi isso que fui fazer lá. O saquinho tá
reforçado porque fede como se fosse heroína pura quando você
abre.”
Não chequei o pacote. Tinha sempre feito tudo certo com ele.
Tínhamos roubado coisas juntos. Tinha comprado muitos e muitos
gramas dele. Achava que, se ele fosse me sacanear, já teria feito
isso. Quando cheguei em casa, descobri que tinha pago a Raul
1.300 dólares por quinze gramas de purê de batata em pó. Liguei
para ele. Falei: “Raul, você sabe que isso é purê de batata
instantâneo, não sabe?”.
“Vou compensar você”, ele disse.
E desligou.
Emily disse: “O que você vai fazer?”.
“Na real, não tem nada a fazer.”
“Vai deixar ele se safar depois dessa merda?”
“É, basicamente.”
“Esses caras não respeitam você.”
“É, imagino que não. Mesmo assim, achei que, só por decência
humana básica mesmo, seriam mais educados.”
“Você devia matar esse filho da puta.”
“Nah.”
Eu tinha uma teoria. Minha teoria era que eu era um monte de
merda, e merecia que coisas ruins me acontecessem.
Eu era amargurado?
Um pouco, claro.
Mas uma perda era uma perda. Você não conseguia de volta.
Mesmo que recuperasse o dinheiro, o estrago estava feito. O melhor
era deixar isso de lado. Contanto que não me importasse, tinha
como derrotar eles. Só mesmo um perdedor completo usaria purê
de batata instantâneo. Por isso era melhor aceitar. Aceitar que não
ia colocar bagulho nenhum nas veias. Logo amanheceria. E, em
seguida, começaria a me sentir mal. Tinha que me mexer. Era quase
meia-noite.
Liguei para Black. Sem resposta.
Liguei para Pistol. Ele atendeu.
“Desculpa ligar tão tarde”, falei, “mas se me encontrar compro
quatro gramas pra compensar o inconveniente.”
Ele disse que não podia. “Não apareceu nada o dia inteiro.”
“Merda. Bom, me avisa quando conseguir amanhã. Pego quatro,
com certeza.”
“Beleza.”
O telefone de Rider me mandou direto para a caixa de
mensagens.
Ninguém ligou de volta até quinta-feira, e ficamos muito muito
muito mal.
CAPÍTULO SESSENTA E
QUATRO

Raul tinha dito que iria me devolver parte do dinheiro que tinha
pego. Ia me pagar em heroína. O que era ok, se ele me desse
dinheiro, gastaria em heroína, de qualquer forma. Seis por meia
dúzia.
Era noite. Ele me ligou e disse que o moleque dele estava no
hospital, iria se atrasar um pouco. Ele estava indo ou voltando do
hospital quando foi parado. Me ligou de novo. Era difícil de escutar.
“Tô prestes a ser preso”, ele disse. “Tão revistando meu carro nesse
momento. Passa na casa da minha mãe, diz que fui preso.”
A ligação caiu. Coloquei meu casaco e fui embora. Cheguei na
casa da mãe de Raul dez minutos depois. Bati na porta lateral.
Ninguém respondeu, então continuei batendo. Por fim, ela abriu a
porta.
Falei: “Sinto muito por incomodar a senhora. Mas o Raul me ligou
uns minutos atrás, e disse que tava sendo preso. Ele pediu para
avisar a senhora.”
‘’... Ok.”
“Quando falei com ele, ele disse que a polícia tava revistando o
carro dele, e que iriam encontrar heroína.”
“Ok.”
“Me avise se tiver algo que eu possa fazer.”
“Certo. Obrigada.”
Ela fechou a porta com cuidado e passou a tranca. Pistol
estacionou na entrada da garagem. Fui até o carro dele. Ele abriu a
porta do motorista.
“Que você tá fazendo aqui?”
Contei o que tinha acontecido com Raul.
Pistol não disse nada.
Falei: “Tem um grama pra eu te pagar amanhã? Saí na pressa e
não trouxe nenhuma grana comigo. Mas com certeza te pago
amanhã”.
Ele não disse nada.
Pesou um grama.
Agradeci e caminhei até a esquina onde tinha estacionado, entrei
no carro e fui embora. Pensei sobre minha teoria novamente. Me
avise se tiver algo que eu possa fazer. Eu era um cuzão completo.
Tinha passado na casa dessas pessoas, tentando agir como se me
preocupasse com o Raul, quando na verdade estava cagando para
ele, que provavelmente se recusaria a mijar em mim se eu estivesse
pegando fogo. E eles sabiam disso. Pensei: Estou apenas sendo
educado? E a resposta era não, só estava sendo um cretino. Que
zumbi de merda eu era. Mas, ao mesmo tempo, não entendia qual
era a porra do problema deles, porque ambos tinham agido como se
fosse minha culpa. É assim que é. As pessoas que te sugam e te
fodem e se ressentem de você, como se você estivesse tentando
passar por cima delas. E eles meio que estão certos, e você meio
que está errado. É isso que fazemos uns com os outros.
CAPÍTULO SESSENTA E CINCO

Rider disse que sabia de um banco em Bath, Ohio, que seria


perfeito para roubar. Era mais uma das mentiras de Rider. Como se
eu tivesse esquecido que o cara que ele queria que eu matasse
morava em Bath. Ele realmente achava que iríamos dirigir até Bath
e eu diria: Ok, Rider, onde fica o banco?, e ele diria: Mudança de
planos, em vez disso vamos matar aquele negão.
Rider era escroto assim.
Falei para Rider que ele podia dirigir até lá, se quisesse, mas que
eu iria roubar um banco no centro. Fui pegar ele pela manhã. Ele
estava com Pistol. Pistol tinha trazido uma pistola com ele, e me
adiantou dois gramas de heroína. Falei que traria dinheiro para ele
na tarde.
Era dia de aula, Emily estava na faculdade e queria ter certeza de
que teria sua dose de heroína caso eu fosse preso. Então paramos
lá antes. Ela saiu do edifício principal e nos encontrou no
estacionamento, do outro lado da rua. Pedi para Rider deixar ela
sentar no banco da frente, e ele deixou.
“É boa?”, ela perguntou.
“Não provei ainda”, falei. “Pistol chama essa de Pólvora.”
“Pólvora?”
“É assim que ele chama.”
Emily e eu injetamos. A heroína era fortíssima. Preta dentro da
seringa. “Bom”, falei. “Essa é... realmente... boa pra caralho. Ele
deve ter se enganado.”
“Hmm...”, Emily suspirou. “É boa essa merda.”
Acendi um cigarro e disse que era melhor a gente ir. “Te pego de
noite.”
“Ok”, ela disse. “Tenha cuidado.”
“Vou ter, meu amor. Tenha uma boa tarde.”
Rider disse que éramos as pessoas brancas mais legais que ele já
tinha conhecido. Emily voltou para a aula e Rider pediu para usar
meu telefone rapidinho. Dei o telefone a ele. Alguém atendeu e
Rider disse: “Alô... Sim. Agora mesmo. Sim, vai ser agora mesmo”.
Ele estava tentando soar como se estivesse tranquilo, até mesmo
contente, mas dava para ver que estava cagado de medo. Quando
terminou a ligação, perguntei se ele tinha certeza que estava bem, e
ele disse que sim. Revirei o banco de trás, tentando achar alguma
coisa pra vestir. Rider passou para o banco do motorista. Acendi
mais um cigarro e disse pra ele que estava pronto. Coloquei uma
calça Adidas, um casaco de lã preta e uma balaclava.
Ele disse: “Você parece um doente mental”.
Falei: “Eu sou. Vamos nessa”.
O banco ficava a algumas quadras no sentido oeste.
Estacionamos do outro lado da rua, um pouco mais adiante, virados
para o leste. “Deixa as portas destrancadas”, falei. “Volto em menos
de dois minutos.”
Atravessei a rua. A pistola estava enfiada na cintura e nenhuma
das duas calças que estava usando parava de escorregar. Então
tinha só uma mão livre. Entrei no banco e fui até o balcão. O banco
estava vazio exceto por uma mulher — a caixa — e dois caras — o
gerente e um cliente. Ignorei os dois homens. Eles me ignoraram.
Falavam de negócios. Entreguei o bilhete para a caixa. Ela pegou
um monte de notas de um dólar junto com uma nota de cinquenta.
Olhei para ela. Tinha um rosto gordo, me olhava com olhos suínos,
avermelhados. O crachá dela dizia Sheina. Falei: “Sheina, não seja
ridícula. Você pode fazer melhor que isso”.
Ela esvaziou as gavetas de notas, e senti um mar de simpatia por
ela. Havia oceanos dentro de mim. Não era culpa dela ter olhinhos
suínos. Eu sabia disso. Você tem os olhos que tem. Não tem
qualquer escolha.
Estávamos na rodovia e Rider queria ver o dinheiro. Comecei a
separar e contar os maços, catando as notas soltas, passando
metade para ele conforme fazia isso tudo. Ele ficava dizendo: “Me
dá mais. Me dá mais. Me dá mais”.
Tinha muito trânsito. Já tínhamos escapado. Estava tudo bem. Aí
Rider passou para a pista de saída.
“Fica na rodovia”, falei. “Segue até a 71.”
Mas ele não estava me ouvindo.
“Fica na rodovia, Rider. Que porra você tá fazendo? Não vai por
aí.”
Ele me ignorou.
“Fica na porra da rodovia, cara.”
Ele saiu da rodovia. Três saídas depois de onde tínhamos entrado.
E tinha um carro de polícia subindo pela rampa. Rider começou a
berra: “ , . , . . ”.
Falei: “Porra, fica calmo, cara. Só vai devagar. A gente não tem
nada a esconder. Estamos só cuidando da vida. Eles não vão vir
atrás se a gente não acelerar. Olha. Estamos de boa. Ele só tá
parado ali. Estamos de boa. Só vai devagar. Não corre deles”.
O carro da polícia parou totalmente. Rider estava hiperventilando.
Passamos o cruzamento. Dobramos em uma rua residencial. Depois
de dirigirmos uns três quartos da rua, ele freou cantando pneu.
“Que foi?”, perguntei.
Os olhos de Rider estavam quase saltando da cara. Ele começou
a berrar de novo: “ . . . . . .”
Desceu do carro e saiu andando. Tinha achado o comportamento
dele estranho. Não entendia qual tinha sido a porra do problema.
Achei que o melhor a fazer seria voltar para a rodovia. Então foi o
que fiz. Fui pela 90 em direção à 271. Estava fumando Pall Malls,
acendia as borrachinhas de dinheiro e largava elas no cinzeiro. Foi
um momento ok. Ainda estava de boa por causa da tal da Pólvora.
Nada me preocupava.
Saí da Rodovia na Chagrin, peguei alguns hambúrgueres no
Wendy’s de lá e fui para casa alimentar Livinia e levar ela para dar
uma volta. Liguei para Pistol e disse que tinha a grana dele. Ele me
disse para ir até ele.
“Você arranja 3,5 gramas pra mim?”
Ele disse que sem problema.
Quando encontrei com ele, não falei nada sobre Rider ter
arregado. Não quis expor o cara. Além disso, achava que ele
poderia me dar um tiro, se contasse a alguém sobre como ele tinha
agido. Não era o tipo de coisa que ele iria querer que as pessoas
soubessem. Dei o dinheiro que devia a Pistol pelos 3,5 gramas, e
dei a ele as roupas que tinha usado no assalto, pedi que se livrasse
delas para mim. Entreguei a pistola para ele. Dei para ele 500
dólares pelo inconveniente.
CAPÍTULO SESSENTA E SEIS

Ficava triste pra caralho quando pensava em Emily, e em como não


ficaria com ela, porque em breve acabaria preso. Me perguntei o
que aconteceria com ela, como ela se sairia. Ficamos tristes quando
encontramos um abcesso no braço dela. Os antebraços dela
estavam inchados. Ela tinha um monte de merda no braço direito.
Começou a espremer para fora e disse: Olha. Parecia sujeira.
Limpamos e tratamos com álcool diversas vezes e o abcesso
melhorou, mas ela ficou assustada, envergonhada, e foi terrível.
Pensei: Meu pobre anjinho.
Sei lá. Ainda não tinha sido preso. Estávamos na metade de
março e já tinha roubado tipo, sete, oito ou nove bancos, e ainda
não tinha sido preso.
Acho que ninguém se importava. Quer dizer, a polícia. Era só uma
molecagem, o que eu estava fazendo. Era só se dar conta de que
não havia nada para deter você e aí você se fartava.
Ainda assim, sabia que a polícia era perigosa pra caralho.
Acho que talvez eu estivesse prestes a desistir.

: “Esse crioulo é um bosta. O filho de um chegado meu,


e também a mãe do bebê, moram com esse crioulo e ele desce a
porrada dos dois”.
Rider estava tentando apelar para o meu senso de honra de
garoto branco, para que eu fosse matar o tal cara em Bath para ele.
Já fazia cinco meses que ele vinha tentando me convencer a matar
esse cara.
Falei: “Por que a sua camarada não liga pra polícia, ou pro
conselho tutelar, ou algo assim?”.
“Porque o crioulo controla a vadia. Ela não vai dizer nada contra
ele. Ela é uma viciada. Ele que viciou ela nessa merda.”
“Heroína?”
Rider olhava para fora da janela do carona.
“Por que o seu chegado não faz isso ele mesmo?”, perguntei. “Ia
economizar dinheiro.”
“Porque vão saber que foi ele. É por isso que a gente precisa de
você. Você não sabe quem é o crioulo, então não vão ligar você a
ele.”
O bebê começou a chorar no banco de trás. Rider virou para trás e
mandou o bebê calar a boca.
“Calaboca, neguinho”, ele disse.
Rider tinha trazido o bebê com ele. O bebê não tinha nem 2 anos.
Não sabia falar. O bebê não era do Rider. Rider disse que o bebê
era de uma vadia com quem ele estava transando.
Rider não tinha me avisado sobre o bebê. Liguei para ele para
conseguir heroína, ele disse que tinha, então fui encontrar com ele.
Estacionei em frente a uns apartamentos, liguei para ele, e aí ele
veio com esse bebê, entrou no carro, e não tinha nenhuma heroína.
Eu estava arrasado.
Ele disse:“Tenho que ir até a Varsity Blue rapidão”.
A Varsity Blue era uma loja de roupas que vendia jerseys, tênis e
trajes esportivos. Não vendiam heroína na Varsity Blue. Mas não era
longe, ficava perto da vizinhança de Saint-Clare-Superior. Estacionei
e Rider entrou na loja. Ele me deixou com o bebê e o bebê ficava
engatinhando por tudo. O bebê pegou meu isqueiro do porta-copos
e tentou comer. Peguei o isqueiro de volta e disse: “Você não
deveria fazer isso. Você não sabe por onde o isqueiro andou”.
O bebê fez uma cara muito séria depois disso.
Rider já estava na loja fazia uma hora e não tinha comprado nada.
Ele saiu parecendo puto com alguma coisa. Ele estava puto porque
era um perdedor de merda. Eu era um perdedor de merda, mas
Rider era pior.
Ele entrou no carro, dirigi pela rua até chegarmos no McDonald’s e
comprei batatas fritas para o bebê. Rider tentou ligar para algumas
pessoas, mas ninguém atendeu.
Falei: “E agora?”.
Ele disse: “Vamos pra Clair”.
Fiz isso. Subimos pela rua um pouco e ele me falou para
estacionar na frente de uma loja de conveniência. Ele entrou e ficou
uma hora, saiu e disse que não tinha nada lá.
Aí recebi uma mensagem do Pistol: “Cadê você”.
“Clair.”
“Q vc queria?”
“3.”
“Belmar com a 20.”
Isso era bom. A mãe de Rider morava em Belmar. Podia deixar ele
e o bebê por lá. Enquanto isso, Rider falava e eu não escutava, dizia
que queria que levasse ele até a zona oeste, lá ele arranjaria
heroína para mim.
“Não posso”, falei. “Tenho que correr pra Belmar.”
“Mas acabei de falar com meu chegado. Ele disse que o negócio é
fogo puro.”
“Você mesmo disse que não tinha nada.”
“Falei que não tinha nada na zona leste.”
“Vou encontrar com Pistol em Belmar.”
“Me leva na zona oeste primeiro.”
“Não. Não dá. Desculpa.”
“Vai ser rápido.”
“Vai levar horas. Tudo que você faz leva horas. Você não faz nada,
e leva horas.”
“E os 300 dólares que você me deve?”
“Já paguei essa merda pra você.”
“Você não me pagou.”
“Não tenho tempo pra isso.”
“ 300 ?”, ele falou. “
, . .”
Engatei a marcha. Rider pegou no meu braço.
“Quê? Você quer brigar com a porra de um bebê no carro? Você é
o quê, louco?”
Rider não se mexeu.
Falei: “Tenho 400 dólares comigo. Tenho que dar trezentos e
sessenta pro Pistol. Não sei o que dizer pra você. Você pode pisar
na bola comigo, ou posso deixar você e o bebê na rua de vocês.
Você tá me atrasando. Tô prestes a ficar bem mal. Emily tá prestes
a ficar bem mal. Tenho que arranjar essa heroína ligeiro e levar pra
ela na faculdade. É isso que tenho que fazer agora. Já ajudei você
outras vezes, você sabe disso. Mas não posso agora. Então tô te
pedindo da maneira mais educada possível pra não fazer essa
palhaçada hoje. Tenho muita coisa na cabeça. Mas pode me ligar se
descolar alguma mais tarde. A gente com certeza se encontra. Um
chegado meu também tá com grana pra pegar com você, quando
descolar.”
Ele se acalmou um pouco: “Ele quer 25 gramas?”.
“Acho que sim. Mas se for bom, ele pega mais.”
vi Pistol, ele disse que Raul talvez fosse solto em breve.
Falei que isso era bom, fiquei de boa, fui até a faculdade e Emily
ficou de boa. Naquela noite Rider me ligou dizendo que tinha
descolado algo. Fui encontrar com ele e ele tinha cem gramas de
coca. Experimentei um pouco, e era boa. Falei que se ele me desse
25 gramas, levava para meu amigo e aí trazia os 900 dólares para
ele. Mas ele disse que não.
“Me salvaria uma viagem”, falei. “É o mesmo cara da outra vez.
Ele é de confiança.”
Rider disse que não podia me adiantar tanto assim. Precisava do
dinheiro adiantado. Sabia que ele só estava dizendo isso para poder
misturar a coca com alguma outra coisa antes da gente se ver de
novo. Mas não tinha nada que eu pudesse fazer. Precisava do
dinheiro. Se não conseguisse dinheiro, ficava mal.
O tempo estava contra mim. Os desgraçados sabiam disso. É
assim que montam em você.
Disse que iria pegar o dinheiro.
Liguei para James Lightfoot. Ele me disse para ir na casa dele. Fui
e ele me deu mil dólares. Aí Rider não atendia o telefone. Duas
horas depois, ligou de volta. Encontrei com ele de novo e ele me
deu a coca. Levei a coca para a casa de James. A coca era um lixo.
Rider não tinha só misturado, tinha acabado com ela. Esse era o
Rider.
Pensei que James tinha achado que eu é que tinha sacaneado
ele.
“Quem é esse porra?”, ele perguntou.
“Ele é um merda”, falei.
“Então por que você lida com ele?”
Era uma boa pergunta. Não tinha uma resposta pronta. Tudo que
consegui dizer era que estava me sentindo um merda. De qualquer
modo, James pegou leve comigo. Ele sabia que eu podia ser tosco,
mas não sacanearia ele. A situação era que James e eu
precisávamos de dinheiro. E eu sabia um jeito de arranjar.
CAPÍTULO SESSENTA E SETE

James estava no banco do motorista. Eu estava no carona. Eu


estava bem. Estava usando um boné dos Indians e comendo uma
maçã. James falou: “Talvez tenha câmeras nos postes”.
Falei: “Dei uma olhada, não tem nenhuma”.
“Tem certeza?”
“Tenho quase certeza. Acho que não acontece muito assalto por
aqui. Vai dar tudo certo.”
Estávamos parados na frente de um supermercado. Tinha uma
boa visão do banco. Eu tinha uma arma. A arma não era minha. Não
lembro quem tinha me emprestado. Uma curiosidade a respeito de
armas: se você é conhecido por roubar coisas, as pessoas
simplesmente dão armas a você. É meio como patrocinar um
missionário.
Joguei a maçã fora; falei: “Tá pronto?”.
James disse que estava pronto.
“Beleza. Quando me vir saindo, vai em direção a aquela saída ali.
Vou passar no meio daquelas duas fileiras de carros, aí entro e
vamos nessa. Super fácil.”
“Tá”, ele falou. “Só lembra que a porta traseira do lado do
motorista tá quebrada.”
“Ok.”
Puxei o boné até esconder os olhos, saí do carro e entrei no
banco. Era o primeiro dia quente do ano e a porta do banco estava
aberta, entrei e comecei o assalto. Mas não acabou bem. Tinha
recolhido uma gaveta inteira quando a caixa começou a bancar a
difícil e o gerente não calava a boca. Ele ficava me dizendo para
tirar meu boné, ficava me chamando de senhor o tempo inteiro e
quando me recusei a tirar o boné ele apertou um botão. Eu não
sabia para que servia o botão. Imaginei que era um alarme
silencioso. Aí olhei para trás e vi que a porta estava fechando
sozinha. Acho que era hidráulica. O banco estava cheio de gente. O
desgraçado estava tentando me trancar junto com todo mundo. As
pessoas agora olhavam para mim, me olhavam tentando roubar o
banco. Dava para ver o que estavam pensando: É só esse cara?
Não queria decepcionar eles. Puxei a arma e dei três tiros no teto:
.
“ .”
— mais dois no teto.
Fui até o balcão e apontei a arma para o gerente. Ele tinha se
mijado, ou ainda estava se mijando. Falei para ele: “Abre a porra da
porta, ou o próximo vai ser na sua cara”.
“Só vá embora”, ele disse.
A porta estava aberta. Saí. Dobrei a esquina, passei entre as
fileiras de carro no estacionamento. James estava encostando.
Puxei a maçaneta da porta de trás do lado do motorista, mas ela
não abria. Continuei puxando. Bati na janela e disse: “Abre essa
merda”.
James falou: “ , ”.
Certo. Corri por trás do carro e entrei pela porta do lado do carona.
James pisou no acelerador e caímos fora.
“Que porra aconteceu? Você atirou em alguém?”
“Não, porra.”
Eu estava contando o dinheiro.
“Merda... Merda... Merda... Não foi legal, James. Aquelas pessoas
foram rudes pra caralho comigo. Tentaram me trancar na porra do
banco. Isso nunca aconteceu antes.”
“Quanto você conseguiu?”, ele perguntou.
“... Uns 2 mil.”
“Merda.”
“Eu sei, velho. Sinto muito. Não foi bom. O gerente de merda ficou
gritando comigo. Aquele corno velho não tava nem aí se alguém
morresse. Foi uma merda. Nada como deveria ter sido. Foi loucura
da parte deles. Por pedaços de papel.”
Dei a James metade do dinheiro.
“Sinto muito, velho.”
“Tudo bem”, ele disse. “Ao menos a gente escapou.”
“É. Porra. Tenho que desmontar essa arma e me livrar dela.”

, Emily e eu fomos a um parque para cachorros com


Livinia. O clima tinha sido ótimo o dia todo. Parecia um bom dia para
ir num parque para cachorros, e até teria sido, se não fosse pelos
outros cachorros. Os outros cachorros provocavam Livinia, se
juntavam contra ela, babavam nela e tentavam morder.
“Não gosto disso nem um pouco”, Emily falou.
Um chow chow estava quase dominando Livinia.
“Acho que ela tá bem”, falei. “Sei lá. Acho que é como eles
brincam, não sei dizer. Ela não gosta disso? Fico tão preocupado.
Porra, porra, porra.”
“Bom, não gosto dessa porra”, Emily disse. “Acho que a gente
devia parar de trazer ela aqui. Acho que ela fica assustada.”
“Mas ela fica tão empolgada quando trazemos ela aqui. Não é
ruim, quando não tem outros cachorros. Gosto quando só nós três
estamos aqui.”
Livinia levantou, se soltou e saiu correndo. Ela era sempre o
cachorro mais rápido do parque, era difícil de alcançar, mas o chão
lá era coberto por um cascalho pequeno horroroso, e ela
inevitavelmente tropeçava e os outros cachorros alcançavam ela;
tinham cachorros demais, encurralavam ela.
Outro casal veio até nós.
“Que cadela bonita”, a mulher falou. “Ela é bem rápida.”
“Obrigada”, disse Emily. “Qual é o seu cachorro?”
“O chow chow.”
“Ah. O carinha brincalhão.”
“Vocês moram perto daqui?”
“Moramos em University Heights”, Emily disse.
“O que vocês fazem?”
Não estava gostando daquilo. Não gostava de pessoas o-que-
você-faz. Que tipo de pessoas são essas?
“A gente estuda na Universidade Estadual”, Emily disse, ficando
vermelha. “Sou assistente de graduação.”
“Você também estuda lá?”, ela me perguntou.
Sabia o que ela estava pensando; você parece um pouco velho
para isso.
“Sim”, falei. “Comecei tarde. Bolsa de veterano.”
“Você esteve no serviço militar?”, o homem perguntou.
“Sim.”
“Qual?”
“Exército.”
“Foi enviado em missão?”
“Iraque.”
“Jeff é policial”, a mulher falou.
“Departamento de Polícia de Cleveland Heights”, ele falou.
“Vem pra cá, Livinia!”, Emily chamou. “Vem pra cá, menina! Vem
pra cá!”
“Você gosta?”
“É um trabalho”, ele falou.
“É. É bem difícil de arranjar um emprego hoje em dia. Você tem
sorte.”
Livinia veio correndo e parou entre as pernas de Emily. Emily
perguntava para ela quem era nossa cadela querida.
Acendi um cigarro: “Foi um dia bonito, não?”.
A mulher concordou que tinha sido um dia bonito.
“O que vocês acham desse parque pra cachorros?”, perguntei.
“Vocês acham que é higiênico deixar todos esses cachorros
cagarem e mijarem nesse cascalho? Seria de se pensar que, tipo,
com grama, ou algo assim, ajudaria a absorver e dissipar melhor.
Mas com esse cascalho... pra onde vai tudo? Fica tudo misturado no
cascalho, imagino. Sei que a gente recolhe a merda quando eles
cagam, mas ainda ficam resíduos. Não é muito saudável, né? Com
o tempo, deve acumular. Vocês acham que cachorros pegam
cólera?”
O sol estava se pondo. O ar tinha ficado frio de repente. Jeff foi
catar uma merda do chow chow.
“A gente tem que ir”, Emily disse. “Tenho um artigo pra terminar.
Foi um prazer conhecer vocês.”
CAPÍTULO SESSENTA E OITO

Eu estava suando frio. Estava dirigindo; Raul e Emily estavam no


carro comigo. Raul tinha sido condenado por causa de heroína. A
audiência tinha sido na segunda. Já era quinta. Raul disse que o juiz
liberou ele porque era aniversário dele naquela semana. Ele disse
para Raul se entregar na sexta, para ir para a prisão. Raul ficaria
preso um ano e meio. Posse com intenção de distribuição. Parecia
um longo tempo para mim, mas eu não sabia de nada.
Emily e eu precisávamos de heroína. A gente estava mal há dois
dias. Raul não estava tendo sorte ao tentar nos ajudar. Estava
ligando para todo mundo que conhecia. Ninguém atendia.
Provavelmente, o fato de estar indo para a prisão estivesse
deixando as pessoas nervosas.
Eu vomitava no baldinho verde. Sempre tinha o cuidado de ficar de
olho na estrada enquanto fazia isso. Emily falou: “Aguenta firme,
bebê. Alguma coisa vai aparecer logo. Já faz muito tempo”.
“Tô tranquilo”, falei, limpando vômito do meu queixo com a parte
de trás da mão, “pronto pra detonar.”
Raul não tinha dado qualquer sinal de que se importava de eu
vomitar no baldinho verde enquanto dirigia. Ele só estava sentado
lá, calmo, como se nada de nojento estivesse acontecendo. Era
educado da parte dele.
“Peraí”, ele falou. “Lá vamos nós.”
Um Mitsubishi Galant prata parou na nossa frente.
“Encosta do lado daquele carro”, ele disse.
Fiz isso, e Raul baixou o vidro da janela e abanou para o Galant.
“Ele vai dobrar logo adiante”, ele disse. “Segue ele.”
O Galant dobrou na St. Clair, entrou numa rua lateral e estacionou.
O carona desceu e foi até a janela de Raul. Mostrei sete notas de 20
dólares e disse: “Tenho 140, e um grama me ajudaria muito. Tô bem
desesperado, saca”.
Após dizer isso, percebi que talvez tivesse acabado com a
porcentagem de Raul. Por outro lado, precisava descolar alguma
coisa, então foda-se. Se Raul quisesse alguma grana, podia pegar
direto com ele. Além disso, ele me devia dinheiro e não era como se
algum dia eu fosse ver um centavo dessa grana.
O carona disse que beleza. Disse para seguir eles. Ele entrou no
Galant e seguiram adiante. Seguimos eles por algumas ruas. O
telefone de Raul tocou. Ele atendeu e disse beleza; aí ele virou para
mim e falou: “Encosta. Estaciona aqui”.
O Galant seguiu um pouco mais adiante e parou. O carona saiu de
novo, e caminhou pelo meio da rua com as duas mãos em formato
de concha na boca. Aí um moleque saiu de uma casa e foi para a
rua conversar com o carona. Conversaram e aí o moleque voltou
para a casa; o carona se virou e acenou para Raul.
Raul disse: “Me dá a grana”.
Ele desceu do carro, foi até o Galant e entrou na parte de trás.
“Aquilo foi tão legal”, Emily falou. “Aquilo que cara fez foi um
assovio de passarinho?”
Concordei que era legal. “Esses caras não tão de brincadeira”,
falei. “Queria que eles fossem nossos trafis.”
Não levou nem dois minutos e o moleque voltou com nossa
heroína. Ele deixou no Galant e voltou para a casa. Raul saiu do
carro e trouxe para nós. O Galant foi embora. Peguei a balança do
descanso da porta do carro, coloquei um cartão em cima e zerei ela.
Coloquei a heroína em cima do cartão.
Disse para Emily: “Tem um grama a mais”.
“Lindo”, ela disse.
“O cheiro também parece bom.”
Nos chapamos. A heroína era boa. Não era misturada, como o
bagulho que estávamos acostumados a comprar, o bagulho pelo
qual estávamos acostumados a vender nossa alma.
Falei: “Puta merda”.
Estava batendo como antigamente.
Emily disse: “Nossa”.
Estava batendo forte nela também.
Falei para Raul: “Acho que você não vai me dar o telefone desses
caras”.
“Eles me disseram para não dar”, ele falou.
Não acreditei nele, mas tudo bem.
CAPÍTULO SESSENTA E NOVE

Foi ideia de Raul roubar um banco na Warrensville com Mayfield.


Ele queria juntar algum dinheiro antes de ir para a prisão. A gente
estava indo para o banco: Raul, Rider, James e eu. Eu esperava
que, com três caras, conseguíssemos bem mais dinheiro; e alguém
poderia cuidar da porta, o que seria necessário, já que estávamos
desarmados. Tinha perguntado a James se ele queria dirigir. Achei
que nos sairíamos bem melhor do que nos saímos.
Não estava preocupado com James. Também não estava
preocupado com Raul. Eu estava preocupado principalmente com o
que Rider pudesse fazer. Rider não lidava bem sob pressão. Mas
ele era chegado do Raul, e eu esperava que a presença de Raul
encorajasse ele.
Rolaram maus presságios desde o começo. Estávamos dirigindo
em volta do banco, dando uma checada, queria ver ele do outro lado
da rua.
“Vamos de uma vez”, disse Raul.
“Não”, falei. “Vamos dar mais uma olhada.”
Atravessamos a Mayfield na Warrensville. Estávamos indo em
direção ao sul, dava para ver o estacionamento atrás dos prédios,
do outro lado da rua do banco, e tinha quatro carros de polícia
estacionados. Estavam todos virados na mesma direção, prontos
para saírem.
“Olha essa merda”, falei. “Tá vendo? A gente ia se foder.”
“O que faço?”, James perguntou.
Falei: “Só segue dirigindo”.
Acabamos indo até Belmar, para tentar de novo por lá. James
trocou com Rider 25 gramas de maconha por alguns gramas de
heroína. Puxei Raul de lado.
Falei: “E aquela merda que o Rider sempre fala do sujeito em
Bath? É um bocado de dinheiro”.
“O que você quer dizer?”
“Você sabe. Matar aquele cara.”
Ele falou: “Isso é papo furado”.
“Faz sentido.”
“Esse sujeito em Bath é testemunha em um processo.”
“Ahn.”
“É. Ele é testemunha em um caso contra um negão pra quem o
Rider deve 14 mil.”
“Cara, esse Rider é encrenca.”
“E o que tá rolando?”, James perguntou quando voltamos para o
carro. “Vamos fazer alguma coisa ou qual é?”
Rider disse que a gente precisava ir até Severance. Falei que a
gente podia roubar um banco no Chagrin Boulevard. James disse
que era uma boa. Aqueles entre nós que eram viciados tomaram
cada um uma dose de heroína. Seguimos e largamos Rider. Fiquei
aliviado de me livrar dele. Chegamos no Chagrin, olhamos dois
bancos diferentes e escolhemos o que ficava em um shopping. Era
um banco mais novo, tinha certeza de que tinham portas
automáticas. Falei para Raul: “Quando estivermos saindo, é
importante segurar as portas abertas. Se ficarmos presos entre as
portas na hora de sair, vão nos prender dentro e vamos acabar na
cadeia, o que vai ser muito ruim. Eu cuido da porta de dentro
enquanto você cuida da porta de fora. Aí você segura essa porta
aberta, e saímos juntos. Isso é muito importante”.
“Saquei”, ele disse.
Falei para James: “Deixa a gente na calçada. A gente caminha até
lá e você estaciona sem nós. Assim ninguém vai notar você até a
gente acabar”.
Subimos e descemos a rua mais uma vez para termos tempo de
fumar um último cigarro. Aí James deu a volta e nos deixou na
esquina. Devia estar fazendo uns sete graus, mas nem de longe frio
o suficiente para justificar todas as roupas de inverno que Raul e eu
estávamos usando. Eu usava uma sobrecasaca do James, sua
touca do segundo grau e seu protetor de pescoço. Raul estava
usando uma parca e uma balaclava que cobria seu rosto inteiro,
feito ninja. Estávamos no meio do estacionamento.
“Você tá de boa?”
Ouvi uma resposta afirmativa abafada.
Chegamos à porta, tinha puxado para cima o protetor de pescoço
para que cobrisse a parte de baixo do meu rosto. Entrei dizendo:
“ . . ”. [ 06 ]
Raul não disse nada. Olhei por cima de meu ombro, olhei por cima
do outro. Raul não estava lá. Olhei de volta para os funcionários do
banco. Eles olhavam para mim. Falei para não contarem a ninguém.
Dei meia-volta e caí fora. Raul estava no banco de trás do carro.
James tinha me esperado.
Falei: “Vamos nessa”.
Saímos do Chagrin.
Falei: “Raul, que porra você tá fazendo comigo? Aquilo foi
vergonhoso pra caralho”.
James disse: “Porra!”.
Me virei e vi carros de polícia a pouca distância de nós, entrando
na pista.
Falei: “Encosta”.
“Quê?”
“Para no acostamento da estrada. Só faz isso. Raul, se abaixa.”
James parou no acostamento.
A polícia passou por nós.
James disse: “Merda”.
Falei: “É assim que sempre fazemos. Mas sério Raul, que porra.
Como pôde fazer aquilo. Foi indigno pra caralho”.
Raul pediu desculpa.
Falei: “Deixa pra lá. Sei de outro banco que podemos roubar”.
James disse: “Quer tentar essa merda de novo?”.
Respondi que sim.
Falei: “Raul, ainda quer roubar um banco hoje?”.
Ele disse que sim.
“Tem certeza?”
Ele disse que tinha certeza.
Falei: “Beleza. Vamos nessa”.
James falou: “Que se foda”.
Estacionamos na Van Aken. Estávamos em Shaker Square. Falei:
“Raul, você entra primeiro, eu entro dez segundos depois de você.
James, quando entrarmos você fica perto do meio-fio da direita,
vamos entrar no carro perto da esquina. Raul, tá pronto?”.
“Me dá um minuto”, ele disse.
James falou: “Você vai fazer essa porra ou não?”.
Raul disse: “Você quer fazer?”.
James chamou ele de arregão: “Arregão da porra”.
“Calma todo mundo, porra”, falei. “Não vamos bater boca.”
Então James e Raul fizeram as pazes. James deixou Raul usar
seu óculos de sol para esconder os olhos. Dirigimos ao banco.
“Certo”, falei. “Raul, vai lá. Entro logo depois. Pode confiar.”
Raul desceu e entrou no banco. Contei até cinco e disse: “Beleza,
lá vou eu”.
Entrei no banco e Raul estava parado com as costas viradas para
a parede dos fundos. Ele estava parado do outro lado do balcão.
Tinha só uma caixa. Era um banco pequeno. A caixa estava olhando
para Raul e parecia assustada, porque ele estava vestido como um
ninja de parca, apesar da temperatura lá fora.
E aí Raul saiu correndo. Ele passou correndo por mim e saiu do
banco. Fiquei deprimido pra caralho. A gaveta do caixa estava
aberta, me inclinei sobre o balcão e peguei toda a grana. Quando
estava saindo, passei por um cara que estava entrando e fingiu que
não tinha me visto. Quando saí para a calçada, fui para o lado
errado primeiro; aí lembrei do que tinha pedido para James fazer e
dobrei a esquina. Raul não estava no carro.
“Onde tá o Raul?”, perguntei.
James falou: “Porra. Não sei”.
“Merda.”
James começou a dirigir. Tomei fôlego.
“Não podemos deixar o cara. Temos que achar ele.”
James balançou a cabeça negativamente e disse: “Ok”.
Ele deu meia volta e procuramos por Raul. Estávamos em baixa
velocidade e tinha uma caralhada de gente em volta, isso não era
bom. Mas James manteve a calma. Demorou um século, mas ele
não entrou em pânico. Raul veio correndo atrás de nós, entrou no
banco de trás e disse: “ ”.
Dirigimos para longe.
“Quanto conseguiu?”
“Não sei”, falei. “Conta aí.”
Dei o dinheiro para Raul. Ele contou.
“Mil e trezentos.”
“Você não pegou nada?”
Ele disse: “Não”.
liguei para o que aconteceu com o dinheiro. Acho que Raul
ficou com tudo. Não perguntei. Estava cansado pra caralho. Tinha
quase sido meu fim, e mesmo assim me sentia como a porra de um
batedor de carteira. James ligou mais tarde, disse que Raul tinha
jogado os óculos de sol dele fora quando saiu correndo do banco.
Fui até a casa dele e dei 300 dólares para ele. Tinha perdido 300
dólares assaltando um banco. Com o dinheiro para os óculos,
James tinha ficado na mesma, exceto pela gasolina e pela
balaclava, que ele nem mencionou.
CAPÍTULO SETENTA

Era domingo de manhã. Emily e Livinia estavam dormindo na cama


e eu escutava as duas respirando, seus pequenos estalos e
suspiros, e o sol brilhava através da cortina fechada. Seria um dia
bom, sabia disso tanto quanto qualquer pessoa.
Quando você passa muito tempo assustado, você percebe como o
medo vem e vai. Como o medo domina você. Como o medo vai
embora. Como o medo derruba você, por um momento. Como a
esperança deixa tudo em ordem de novo, até que o medo volte. E aí
a esperança. E aí o medo. Só tinha medo de uma coisa na minha
vida, e essa coisa era a heroína.
Tinha dezenas de testemunhas naquele assalto de outro dia.
Alguém devia ter anotado a placa do carro de James, com toda
aquela correria, sobrecasacas, parcas, mais um assalto a banco.
Raul tinha deixado a máscara do lado de fora do banco.
Estávamos fodidos.
Mas, mesmo assim, estava livre.
Desci e liguei para Black.
Acendi um cigarro.
Black disse que viria.
Dirigi até um Walgreens na Monticello. Fiquei pensando no
soldado de primeira classe Arnold, um moleque que conheci no
Iraque, e sobre como o pessoal dizia que ele era um inútil. Aí ele
morreu e diziam que ele era um cara legal e o nome dele foi
colocado junto com os bons nomes, os nomes de nossos mortos, e
se algum merda dissesse algo de ruim sobre esse nome perto do
pessoal, corria o risco de levar um soco na boca.
Sendo sincero, não sabia muito sobre ele; não dá para dizer que
éramos amigos.
Colocaram a gente no mesmo quarto e ele morou lá por oito
meses, até que foi morto. Ajudei a empacotar as coisas dele. A
gente conversava de vez em quando, eu não tinha nada contra ele.
Ele cortou meu cabelo algumas vezes. Achava ele legal, mas não o
tempo todo.
Ele tinha sido um cara bonito, até. Tinha 20 anos quando foi morto,
nascido e criado em Oklahoma, nunca conheceu o pai. A mãe criou
ele sozinha. Era prostituta. Ele contava tudo. Mas não falava como
se fosse uma coisa ruim. Ele gostava da mãe. E era educado,
sempre educado, tão educado que quando alguém dizia alguma
merda para ele, ficava por isso mesmo. Alguém podia dizer: “Arnold,
você é um retardado inútil”.
E ele ficava vermelho e olhava em volta, como se dissesse: Sim,
eu sei. Não é maravilhoso?
A esposa dele era um pouco mais velha que ele. Eles se
conheciam de Oklahoma, e tinham cinco filhos. Talvez apenas uns
dois fossem dele. A esposa traía ele um bocado. Mas ele também
traía a mulher um bocado e isso não parecia empecilho para
nenhum dos dois. Eles eram wicca. A mãe dele também. Eram
todos wicca.
A mãe tinha ido visitar Fort Hood antes de irmos para o Iraque. Era
Halloween. Ela estava vestida de gata, com meia-calça preta e
orelhas peludas. Era noite e o cabelo dela era preto. Encontrei com
ela na escada, perto dos dormitórios. Ela fumava um cigarro.
Perguntou se podia usar meu telefone. Ficou um tempo no telefone
e fumei dois cigarros nesse meio-tempo. Ela pediu desculpas por ter
demorado tanto. Falei que não tinha me dado conta que ela estava
vestida de gata. Ela disse que os gatos eram a família dela. Não
entendi o que quis dizer. Eles ajudavam com feitiços? Não. Não era
simples assim. Era como se ela tivesse uma conexão especial com
os gatos, especialmente gatos pretos. Era difícil de explicar. Ela me
pediu um cigarro e dei para ela.
Ela perguntou se eu tinha namorada.
Falei que iria me casar em duas semanas.
Ela disse: “Mas eu sei que um monte dos caras continua trepando
por fora. Eu não julgo. Eu entendo. Entendo por que vocês querem
transar antes de viajarem”.
Falei que não queria trair minha namorada. “Desculpa.”
Ela perguntou se eu conhecia Arnold. Disse que ele estava na
minha companhia. Ela disse que era mãe dele.
Ela não devia ter muito mais do que 30 anos.
“Eu era uma criança quando ele nasceu”, ela disse.
“O Arnold não mora em outra cidade?”
Ela respondeu que sim. Mas disse que tinha conhecido uns caras,
estava fazendo festa com eles, mas eles eram meio nada a ver. Ela
perguntou se podia usar meu telefone de novo.
Enquanto ela estava no telefone, saiu um cara que eu conhecia de
vista; ele usava uma calça jeans super folgada, camisa regata, um
chapéu de caubói e era franzino. Ele se aproximou.
Ela falou: “Estou no telefone”.
Ele ficou em volta, mas só um minuto. Ela me devolveu o telefone.
“Aquele era um dos sujeitos nada-a-ver”, ela disse. “Ugh.”
O pessoal levou um bom tempo para ir buscar ela. Fomos até meu
quarto para que não tivesse que esperar lá fora. Ela perguntou se
podia fumar. Fumamos cigarros e conversamos sobre o tipo de
música que ela gostava. Ela gostava de rock alternativo.
Ela pegou meu telefone emprestado de novo. Por fim, o pessoal
apareceu. Esperei meia hora; aí bati uma punheta.
Alguns dias depois, Arnold perguntou se eu tinha transado com a
mãe dele.
“Ela disse que você é muito legal”, ele falou.
Disse que não tinha transado com a mãe dele, mas tinha achado
ela uma senhora muito legal.
Arnold gostou disso. Ele era legal.
Três caras do Segundo Pelotão tinham trepado com a mãe dele,
três caras se revezaram com ela. O pessoal gostava de falar merda
sobre isso. Mas Arnold ficava de boa. “Ela fez eles usarem
camisinha”, ele disse.
E aí fomos mandados para o Iraque. E aí outras merdas
aconteceram, ou algo assim. Logo era julho. Arnold foi morto em
julho. Foi pouco tempo depois de voltar das férias. Lembro disso
porque ele estava com gonorreia e clamídia, na época. Tinha pego
clamídia de uma garota em Camp Liberty, quando estava indo pra
casa, e passou para a esposa quando chegou em casa, e a esposa
dele passou gonorreia para ele, ou o contrário. Enfim. Ele estava
dirigindo um blindado na Rota Martha uma noite, quando passou
sobre uma mina antitanque que o matou instantaneamente. Eu não
estava junto. Estava do outro lado da Rota Polk naquele momento.
Mas Shoo estava junto e me contou que tinha sido zoado, Arnold
virou uma bagunça. Shoo disse que quando olhou pela abertura era
tão ruim que não dava para identificar nada.
Por isso Arnold era um grande cara, e todos diziam isso. O que
era estranho, porque tinha um monte de gente que queria arrebentar
ele a pau, e deixa eu contar o motivo: Arnold queria ser um gênio da
computação. Ele costumava dizer que iria desbancar o Bill Gates.
Essas eram as palavras exatas: desbancar o Bill Gates. Era isso
que dizia que iria fazer. E aí ele inventou um vírus de computador,
para praticar, acho. Isso foi na época que tinha uma demanda
insaciável por vídeos pornô, e Arnold reuniu um arquivo enorme
dessa merda — gang bang, ninfetas, gozadas, anal, anal-oral,
lésbicas, bukkake, coroas, humilhação —, de algum jeito colocou o
vírus dele lá, e saiu falando do grande arquivo pornô que tinha. Ele
conseguiu que alguns caras baixassem o arquivo dele, e esses
caras passaram para outros caras, e logo todos os computadores
começaram a pifar, ficaram inúteis depois disso. Não tinha nada que
pudesse ser feito pelos computadores. Então muita gente queria
arrebentar o Arnold. Mas ninguém fez isso. E aí ele foi morto, e
todos disseram que ele era legal. E talvez se eu tivesse sido morto,
teria sempre sido legal.
Mas quase me esqueço...

no estacionamento de um Walgreens. Black chegou de


carro, estacionou e entrou no meu carro. Ele me adiantou dois
gramas.
Ele vestia um abrigo esportivo.
Adidas.
Amarelo e roxo.
Falei para ele: “Abrigo legal”.
Ele falou: “É, né?”.
Ele estava satisfeito com o abrigo dele, era um abrigo legal, e
fingíamos que éramos amigos. Mas não éramos. Para ele eu era só
um viciado. Da minha parte, se soubesse de um jeito melhor de
arranjar heroína, nunca mais veria o cara.
Perguntei: “Já teve alguma notícia do Raul?”.
Ele disse que sim.
“Como ele tá?”
“Tá bem.”
“Diz que mandei lembrança, por favor.”
“Digo sim.”
“Agora te devo seis, certo?”
“Sim.”
“E aquele outro negócio que conversamos? Você ainda topa
fazer?”
“Sim.”
“Ok. Que tal amanhã?”
“Amanhã é bom.”
“Beleza. Eu te ligo.”
Já tinha esquecido do fiasco em Warrensville. Entrei em casa sem
fazer barulho, subi as escadas sem fazer barulho e aí sentei na
beirada da cama, perto de Emily. Ela se mexeu e murmurou algo.
Me inclinei e beijei ela na orelha.
“Adivinha.”
“O quê.”
“Acabei de encontrar o Black.”
“Foi?”
“E adivinha o quê mais.”
“Que mais.”
“Ele comprou um abrigo novo pra ele.”
“E daí?”
“Daí que é roxo com listras amarelas e ele tá amarradão.”
Ela chegou para perto de mim e coloquei o pacote de heroína na
mão dela.
“Se importa de pesar pra nós?”
“Hm-hm.”
“Não precisa fazer isso agora”, falei. “Podemos esperar até depois,
se quiser voltar a dormir.”
“Não”, ela disse. “Vai pesando você. Desço em um segundo.
Preciso fazer xixi.”
“Eu te amo.”
“Mmm. Também te amo.”
Desci a escada e dividi o bagulho. Tinha três gramas a menos.
Não importava. Eu conseguiria de volta. Preparei uma dose. Ainda
tinha esperança. A vida era boa quando você estava cozinhando
uma dose de heroína; naquele momento, todo trafi do mundo era
seu amigo e você não pensava em todas as cagadas, tudo que tinha
feito de errado, nos anos que tinha desperdiçado. Enfiei a agulha no
braço. A agulha estava cega, então errou a veia quando entrou. Mas
a veia não podia se esconder para sempre. Senti um pequeno
estouro e a seringa ficou vermelha. Empurrei o sangue de volta para
casa.
AGRADECIMENTOS

Era a primavera de 2013. Eu tinha 28 anos, e estava preso por dois


anos e meio àquela altura. Recebi uma carta de Matthew Johnson.
Ele tinha lido um artigo a respeito dos meus crimes, sentiu vontade
de me conhecer e me mandou um vale de 5 dólares para que
escrevesse de volta. Então escrevi de volta, agradeci pelos 5
dólares e disse sim, com certeza era uma bosta estar na prisão,
mas que eu ficaria bem. Ele me mandou alguns livros para ler. Um
dos livros era uma coletânea de contos de Barry Hannah. Ele pediu
que ligasse para ele e fiz isso, e ele perguntou o que tinha achado
dos livros. Disse que tinha gostado mais do livro do Barry Hannah.
Em retrospecto, acho que esse lance era um teste, e eu tinha
passado. Aí Matthew me mandou mais alguns livros, e um deles era
Hill William, do Scott McClanahan. Disse que tinha gostado mais
desse, e Matthew disse que talvez eu devesse tentar escrever um
livro. Falou que ele e um amigo dele, Gian, eram editores. A editora
chamava Tyrant Books. Falei que tinha realmente gostado dos
livros, mas não achava que seria capaz de escrever um inteiro.
Talvez conseguisse escrever uma história curta, talvez um poema,
mas um livro-livro mesmo...
De qualquer forma, ele me convenceu. Comecei a trabalhar nessa
porra naquele mês de fevereiro. Mandei algumas páginas para
Matthew. Ele disse que eram boas, pediu para mandar mais.
Mandei. Ele disse para continuar. E aí ele falou, Beleza, tudo que
você tinha mandado até agora estava um lixo, mas essas últimas
páginas não são ruins, talvez a gente consiga fazer isso.
Dois anos e meio se passaram. O livro ainda não estava pronto.
Tínhamos cerca de dois terços de um manuscrito. Não sabia como
diabos iria terminar. A coisa ficou tão ruim que dava para perceber
que Matthew não conseguia nem pensar na porra do manuscrito
sem ficar realmente deprimido.
E aí surgiu Josh Polikov.
Josh trabalhava para Matthew, e Matthew disse para ele, Você vai
ajudar ele a terminar.
Aí ele e Josh estavam lendo o negócio, e Josh achou algumas
páginas antigas que eu tinha escrito que na verdade não eram tão
ruins, mostrou elas a Matthew. Matthew concordou que não eram
um lixo total, me mandou essas páginas e disse, Faz alguma coisa
com essas páginas.
E foi assim que terminei o manuscrito.
Ainda não estava pronto, nem perto disso.
O manuscrito não era bem um manuscrito, era mais um cesto
plástico cheio de papel. Cada página tinha sido reescrita cem vezes.
Não tinha um documento de Word. Tinha tudo sido feito numa
máquina de escrever. Nas páginas, às vezes a primeira versão era a
melhor, às vezes a septuagésima-nona; Gian DiTrapano era quem
deveria editar essa merda toda, transformar num troço coerente. E
ele fez isso, sei lá como. E fez um trabalho tão incrível que Tim
O’Connell, da editora Knopf, achou que seria uma boa ideia comprar
os direitos de publicação do manuscrito da Tyrant. Isso foi em
fevereiro de 2017, cerca de três anos depois de eu ter começado.
Ainda não estávamos prontos.
Tim O’Connell disse que tinha gostado do manuscrito, mas que
precisava melhorar um pouco minha escrita antes de publicarmos o
negócio, disse que eu precisaria reescrever uma parte. Então eu
quase morri. Mas então tive que reescrever de novo. Dei uma
olhada nas alterações de Tim. Havia alterações grandes. Perguntei,
Tim, e essas mudanças todas? Sei lá. Ele disse, As mudanças são
boas. Eu falei, É, bom... Virou meio que um problema. Aí falamos
todos ao telefone, Matthew, Tim, uma mulher (Adeline Manson) e
eu. E eles disseram para a mulher, Diz pro Nico o que você falou
para nós. E ela falou, Quando li a sua versão, achei o protagonista
um cuzão, e quando li a versão do Tim achei que o personagem era
um cuzão, mas meio que gostei dele.
Isso resolveu a questão. Terminamos de escrever o livro depois
disso. E, se você leu esse livro e achou o protagonista um cuzão,
mas meio que gostou dele, foi tudo por causa de Tim O’Connell.
Tim e sua assistente brilhante, Anna Kaufman, fizeram um trabalho
absurdamente difícil ao dar forma ao manuscrito. Se não tivessem
me ajudado tanto, você nunca teria lido esse livro. Devo muito a eles
e a Daniel Novack, pelos bons conselhos, que fiquei feliz em aceitar,
e a Susan M. S. Brown, que revisou o livro e me salvou de um bom
número de erros que teriam me envergonhado bastante. Qualquer
erro no texto é meu e insisti que estivesse lá.
Tive muita sorte. Tive muita ajuda. Não posso deixar de mencionar
Rosemary Carroll. Rosemary revisou todos nossos contratos e
cuidou de nós sempre que precisamos. E nos dias mais sombrios foi
ela quem garantiu ao Matthew que ele não estava perdendo tempo
comigo.
nasceu em Cleveland, Ohio. Cherry é seu primeiro
romance.
“O que acaba comigo é aquele livro que, quando você termina de ler, quer que o autor seja
teu parça, alguém pra ligar sempre que der na telha.”
— . . —
Copyright © 2018 by Nicholas Walker
Todos os direitos reservados.
Esta tradução foi publicada mediante acordo com Alfred A. Knopf, selo editorial do Knopf Doubleday Group, uma
divisão da Penguin Random House, LLC.
Os personagens e as situações desta obra são reais
apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas
e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.
Arte da capa © 2018 by Daniel Bjugård
Capa criada por Janet Hanson
Tradução para a língua portuguesa
© Diego Gerlach, 2021

Diretor Editorial
Christiano Menezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Gerente Comercial
Giselle Leitão
Gerente de Marketing Digital
Mike Ribera
Gerentes Editoriais
Bruno Dorigatti
Marcia Heloisa
Editora
Nilsen Silva
Editor Assistente
Paulo Raviere
Adaptação de Capa e Projeto Gráfico
Retina 78
Coordenador de Arte
Arthur Moraes
Designers Assistentes
Eldon Oliveira
Sergio Chaves
Finalização
Sandro Tagliamento
Revisão
Monique D’Orazio
Retina Conteúdo
Produção de ebook
S2 Books

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Walker, Nico
Cherry : inocência perdida / Nico Walker ; tradução de Diego Gerlach. — Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2021.

ISBN: 978-65-5598-082-0
Título original: Cherry

1. Ficção norte-americana 2. Vício em drogas — Ficção


3. Guerra — Ficção I. Título II. Gerlach, Diego

21-0717 CDD 813.6


Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção norte-americana

[2021]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua General Roca, 935/504 — Tijuca
20521-071 — Rio de Janeiro — RJ — Brasil
www.darksidebooks.com
[ 01 ] Termo pejorativo/homofóbico utilizado para descrever funcionários no Exército dos
sem treinamento em combate. [ ]
[ 02 ] Celebração dos muçulmanos xiitas pelo martírio de Huceine ibne Ali, neto do profeta
Maomé. [ ]
[ 03 ] No futebol americano, trata-se do jogador encarregado sobretudo de correr com a
bola e conquistar jardas. [ ]
[ 04 ] Médicos que acompanham missões de combate. [ ]
[ 05 ] "Vamos cantar outra canção, garotos, essa ficou velha e amarga", em tradução livre.
Trecho de “Sing Another Song, Boys”, do cantor canadense Leonard Cohen. [ ]
[ 06 ] Referência ao bordão gritado pelo assaltante de banco Sonny Wortzik (interpretado
por Al Pacino) no clássico filme Um Dia de Cão (1975). O bordão, por sua vez, era uma
referência a uma violenta rebelião ocorrida no presídio de Attica, em Nova York, em 1971.
A guerra que salvou a minha vida
Bradley, Kimberly Brubaker
9788594541048
240 páginas

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A Guerra que Salvou a Minha Vida é um daqueles romances


que você lê com um nó no peito, sorrisos no rosto e – entre
um parágrafo e outro – lagrimas nos olhos. Uma obra sobre
as muitas batalhas que precisamos vencer para conquistar
nosso lugar no mundo. Ada tem dez anos (ao menos é o que
ela acha). A menina nunca saiu de casa, para não
envergonhar a mãe na frente dos outros. Da janela, vê o
irmão brincar, correr, pular – coisas que qualquer criança
sabe fazer. Qualquer criança que não tenha nascido com um
"pé torto" como o seu. Trancada num apartamento, Ada
cuida da casa e do irmão sozinha, além de ter que escapar
dos maus-tratos diários que sofre da mãe. Ainda bem que há
uma guerra se aproximando. Os possíveis bombardeios de
Hitler são a oportunidade perfeita para Ada e o caçula Jamie
deixarem Londres e partirem para o interior, em busca de
uma vida melhor. Combinando a ternura de Em Algum Lugar
Nas Estrelas, outro título da coleção DarkLove, com a
realidade angustiante de O Diário de Anne Frank, A Guerra
que Salvou a Minha Vida apresenta uma perspectiva da
Segunda Guerra Mundial vista pelos olhos de uma menina
que se transforma em refugiada no seu próprio país. Mais
uma oportunidade perfeita para emocionar corações de
todas as idades e relembrar os valores do companheirismo e
da amizade em todos os momentos da nossa vida. Vencedor
do Newbery Honor Award, primeiro lugar na lista dos mais
vendidos do New York Times e adotado em diversas escolas
nos Estados Unidos. "Dolorosamente adorável." – The Wall
Street Journal

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Elas em legítima defesa
Stopazzolli, Sara
9788594542069
192 páginas

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Feminicídio, uma triste realidade. Vítimas de violência


doméstica rompem o padrão de silêncio na nossa sociedade
em um livro urgente e chocante. Só em 2017, 4.936
mulheres foram mortas no Brasil, o maior número registrado
desde 2007. Foram cerca de treze assassinatos de mulheres
por dia, segundo o Atlas da Violência publicado em 2019. E
88% das vítimas de feminicídio são mortas pelos
companheiros ou ex-companheiros. Resultado de uma
pesquisa que durou mais de quatro anos, Elas em Legítima
Defesa: Elas sobreviveram para contar é uma jornada de
empatia e compreensão que dá voz às mulheres vítimas de
violência obrigadas a matar seus companheiros em legítima
defesa. O livro acompanha as histórias reais de Nice, Soraia,
Deise, Doralice, Emília e Úrsula, mulheres envolvidas em
relacionamentos abusivos e capturadas no horror da
violência doméstica — situações dramáticas que atingem
milhões de mulheres no Brasil todos os dias. A obra
apresenta histórias inéditas, novos dados, ilustrações da
artista Juliana Russo, frames do documentário, além de
estatísticas recentes e o aprofundamento de um tema —
infelizmente — mais atual do que nunca. Em 2019, uma
pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, em parceria com o Datafolha, relatou que no ano
anterior 536 mulheres foram vítimas de agressão física por
hora no Brasil. São 4,7 milhões de mulheres condenadas à
violência doméstica, que proporciona memórias atrozes,
origem de muito traumas, que, por sua vez, se convertem
em silêncio. Elas Legítima Defesa: Elas sobreviveram para
contar rompe esse padrão de silêncio na nossa sociedade e
resgata a voz e a dignidade de mulheres que vivenciaram o
verdadeiro horror — sobreviveram para contar.

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Bom dia, Verônica
Killmore, Andrea
9786555980172
256 páginas

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Chegou a hora de abrir a caixa e revelar muito mais que um


mistério — uma parceria, um pacto vivo a quatro mãos, um
suspense que atormentou leitores e despertou
questionamentos. Qual a verdadeira identidade de Andrea
Killmore? Por trás de um thriller hipnotizante e
surpreendente, duas mentes sombrias, familiares ao perigo
e a todos os amantes da literatura dark: Casoy e Montes. A
rotina da escrivã de polícia Verônica Torres era pacata,
burocrática e repleta de sonhos interrompidos até aquela
manhã. Um abismo se abre diante de seus pés de uma hora
para outra quando, na mesma semana, ela presencia um
suicídio inesperado e recebe a ligação anônima de uma
mulher clamando por sua vida. Verônica sente um
verdadeiro calafrio, mas abraça a oportunidade de mostrar
suas habilidades investigativas e decide mergulhar sozinha
nos dois casos. Um turbilhão de acontecimentos
inesperados é desencadeado e a levam a um encontro com
lado mais sombrio do coração humano

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Ed & Lorraine Warren:
Demonologistas
Brittle, Gerald
9788594540645
272 páginas

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Eles enfrentaram os mistérios mais sinistros dos últimos


sessenta anos, sempre em busca da verdade. Agora é a sua
vez de entrar em contato com o sobrenatural. Você tem
coragem? Então leia Ed & Lorraine Warren: Demonologistas,
a biografia definitiva dos mais famosos investigadores
paranormais do nosso plano astral. Não é de hoje que os fãs
do terror conhecem Ed Warren e sua esposa, Lorraine. O
casal foi retratado em filmes de grande sucesso, como
Invocação do Mal, Annabelle e Horror em Amityville. Mas
basta folhear as páginas de Ed & Lorraine Warren:
Demonologistas para constatar que, muitas vezes, a vida
pode ser bem mais assustadora que o cinema. No livro,
Gerald Brittle desvenda alguns dos principais casos reais
vividos pelos Warren. Ed e Lorraine permitiram ao autor
acesso exclusivo aos seus arquivos sobrenaturais, que
incluem relatos extraordinários de poltergeists, casas mal-
assombradas e possessões demoníacas. O resultado é um
livro rico em detalhes como nenhum outro.

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Psicose
Bloch, Robert
9788566636574
256 páginas

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Psicose, o clássico de Robert Bloch, foi publicado


originalmente em 1959, livremente inspirado no caso do
assassino de Wisconsin, Ed Gein. O protagonista Norman
Bates, assim como Gein, era um assassino solitário que
vivia em uma localidade rural isolada, teve uma mãe
dominadora, construiu um santuário para ela em um quarto e
se vestia com roupas femininas. O livro teve dois
lançamentos no Brasil, em 1959 e 1964. São, portanto,
quase 50 anos sem uma edição no país, sem que a maioria
das novas gerações pudesse ler a obra original que
Hitchcock adaptou para o cinema em 1960. Uma história
curiosa envolvendo o livro é que Alfred Hitchcock adquiriu
anonimamente os direitos de Psycho e depois comprou
todas as cópias do livro disponíveis no mercado para que
ninguém o lesse e, consequentemente, ele conseguisse
manter a surpresa do final da obra. Em Psicose, Bloch
antecipou e prenunciou a explosão do fenômeno serial killer
do final dos anos 1980 e começo dos 1990. O livro, junto
com o filme de Hitchcock, tornou-se um ícone do horror,
inspirando um número sem fim de imitações inferiores,
assim como a criação de Bloch, o esquizofrênico violento e
travestido Bates, tornou-se um arquétipo do horror
incorporado a cultura pop.

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