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O tempo passou. Meu corpo mudou. Agora ele sente um calorão inexplicável.

O
suor escorre na nuca que nem cachoeira.
Aquele sangue todo que jorrava todo mês, agora vem de vez em quando. Ainda
bem, pois fiquei curada da anemia. Melhor ainda porque absorvente é caro. Muito caro.
Realmente caro. — É até questão de saúde pública. Sabe que me veio a ideia de quando
parar total doar nas escolas ou nos presídios.
Minha qualidade de vida aumentou, pois, as minhas crises frequentes de
enxaqueca estavam relacionadas ao meu ciclo menstrual. Já não me bastavam as crises
de TPM?
Minhas madeixas loiras estão ficando mais claras ainda. Os fios brancos são luzes
naturais. Economia para o investimento no salão. Quando era jovem, eu me preocupava.
Agora que estão nascendo, aceito. Usar o cabelo, a maquiagem e a roupa que expressam
a minha verdade.
Uma outra preocupação que eu tinha era de ficar louca. Sabia de mulheres que
ficaram muito mal nesta fase. Muitas aguentaram caladas a violência doméstica que
sofria. Por isso eu não me calo. Brigo. Xingo. Faço barraco. Solto o verbo e o grito. Ou
uivo. Alguns me chamam de vizinha selvagem.
Um dia desses, estava na fila do refeitório da empresa em que trabalhava, e um
colega, aproveitou a oportunidade para puxar conversa comigo. Você é casada? Não.
Mas já foi? Também não. Ele riu. Olhou-me com aquele semblante conhecido de quem
iria fazer um comentário idiota: — Qual o seu problema?
Respondi: — Nenhum. E mandei ele ir para aquele lugar. Peguei minha refeição e
fui almoçar bem longe dele.
Comentei com as colegas. E elas me disseram: — Problema quem tem é ele, por
fazer uma pergunta dessa.
E se fosse um assunto delicado para mim, e me trouxesse sofrimento? Estaria
arrasada agora, não é verdade? Pois esses comentários julgadores de inferiorizar a
mulher mexem com o emocional em um nível social.
Ao sair do trabalho. Ele estava na entrada. Pensei que estivesse me esperando. Ele
me acompanhou. Pediu desculpa. E me convidou para tomar uns drinques. Respondi:
Não bebo com idiotas machistas. E foi para a parada de ônibus.
O transporte quebrou. Ela teve que caminhar um quarteirão a mais. A iluminação
pública daquela área não existia. A sua frente um verdadeiro breu sem nenhum pé de
gente. Acelerou os passos. Em sua mente a imagem do Cristo dançando. Ouviu o motor
do carro e a voz daquele seu colega do trabalho.
Ele não estava sozinho. Um grupo de homens rodeou Caroline. Assustada, fazia
uma prece em silêncio.
Um clarão cega sua vista. Acorda em um ambiente desconhecido. Lembra um
hospital. Está deitada sobre lençóis brancos e perfumados. Vestida com uma bata da
mesma cor e mesmo cheiro.
Sente o corpo todo dolorido.
Reconhece sua chefa.
— Você passou por um grande susto, Caroline. Quando o grupo de estupradores
iam te pegar, uma viatura desviou sua rota e fez o fragrante. Estão todos presos e agora
são ex-funcionários. E você vai tirar férias e licença de seis meses do trabalho.
Em sua cabeça, começam a surgir histórias:
Era uma noite bem brasileira. Família reunida na sala assistindo a novela das oito.
A menina estava sentada no batente da porta. Começou a brincar de ir e voltar sorrindo.
Mas algo estava errado. Um jovem dez anos mais velho escondia-se no cantinho. Com o
seu calção de elástico vermelho frouxo nas coxas. Ei. Ei. Vem cá. Vem cá. A menina ia. Pega. Pega.
Alguém aparecia. O rapaz cobria o órgão. A menina corria de volta para a sala. De
repente, a fada madrinha aparece. E faz surgir uma barata no meio da sala. A menina
imagina que é uma borboleta. Pega o inseto pelas antenas e esconde dentro da mão.
Sorri. Ele fala baixinho: Ei. Ei. Vem cá. Vem cá. Pega. Pega. Então, a menina pega colocando com
todo carinho a barata. E sai correndo sorrindo para o colo da mãe.

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