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COPYRIGHT © PIPPA RIVERA E LINIER FARIAS – 2023

JANELA QUEBRADA

Este livro é uma obra de ficção. Os personagens e os diálogos foram criados a partir da
imaginação das autoras e não são baseados em histórias reais.

Qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

TÍTULO: Janela Quebrada

TEXTO: Pippa Rivera e Linier Farias (@linierfarias)

CAPA: Pippa Rivera (@pipparivera)

REVISÃO: Enfermeira Joy, Princesa Safiri e Dona Coelha

DIAGRAMAÇÃO: Enfermeira Joy

Todos os direitos reservados

É proibido o armazenamento indevido e/ou reprodução de qualquer parte desta obra, através de
qualquer meio (tangíveis e intangíveis), sem o consentimento por escrito e registrado da autora.

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Direitos exclusivos de publicação desta edição reservados pela Editora Delas.


Para todo mundo que precisa segurar na própria mão para se levantar!
Prólogo

Diana

Quando acordei e olhei para o relógio, dei um pulo da cama que fez
Luís Otávio saltar, assustado.
— Tá maluca, mulher? Que susto!
— Tô muitíssimo atrasada pro meu plantão, Luís. Dá um tempo —
respondi já correndo para o banheiro.
Joguei uma água no rosto, escovei os dentes de qualquer jeito, vesti
a primeira coisa que vi pela frente e voei para o hospital, que naquela
manhã pareceu estranhamente agitado.
— O que está havendo aqui? — indaguei a uma colega, cujo nome
eu nem lembrava. Ela se trocava ao meu lado, no vestiário.
— Não sei. As pessoas decidiram se quebrar mais cedo hoje...
O hospital era um centro de trauma. Por isso, os horários de pico
eram sempre do final da tarde até a madrugada, em resumo, os horários em
que os bêbados dirigiam, os machões brigavam e os bandidos trocavam
tiros com a polícia. Durante a manhã e à tarde, eram mais comuns os casos
de idosos que caíam dentro de casa, crianças que se machucavam no
colégio e os bons e velhos acidentes de moto, meus favoritos.
Na emergência, fui recebida pelo olhar fuzilante do Dr. Jales, chefe
dos residentes.
— Chegou cedo para o plantão da noite, Dra. Diana. — bradou com
sua voz grave.
— Desculpe, Dr. Jales, eu perdi a ho...
— Suas desculpas não me interessam, não tenho tempo a perder.
Tem duas ambulâncias chegando, você fica com uma e o Dr. Gabriel com a
outra. Ele já está esperando lá fora. Vá até lá e peça mais informações, já
repassei tudo a ele e não vou perder tempo repetindo.
— Não precisa, senhor...
— E da próxima vez que decidir perder a hora, tenha pelo menos a
decência de informar. Nosso trabalho é salvar vidas, doutora. Não podemos
nos dar ao luxo de ter problemas pessoais.
— Sim, doutor.
O que mais eu poderia dizer? Ele estava coberto de razão. Nada
poderia justificar o meu atraso.
Corri em direção à área de desembarque das ambulâncias, onde
encontrei Gabriel.
— Merda, me atrasei pra caralho, e o Jales quase comeu o meu
fígado.
— Imagino. Ele estava uma fera. Mas o que houve, noite agitada?
— Intensa, eu diria — respondi sem encará-lo, deixando escapar um
sorriso fechado ao lembrar da minha travessura da noite anterior.
— Eita, transou! — deduziu de olhos arregalados.
— Tá tão na cara assim?
— Não. Eu só chutei... e pelo visto acertei em cheio, né?
— É, acertou, mas chega dessa conversa...
— "Chega", nada. Quero saber... anda, fala, quem é a gata?
— Ninguém... — tentei desconversar, mas ele se colocou na minha
frente. — Ok, depois te falo — cedi com um sorriso. — Perdi alguma coisa
interessante aqui?
— Facada na cabeça.
— Não brinca! E não perfurou o crânio?
— Não. Ficou alojada no lado esquerdo. Não foi enfiada, foi
arremessada.
— Bizarro. Quem pegou?
— Marina.
— Porra, que desperdício — bufei.
— Nem me fale.
— E o que tá chegando aí?
— Pra você, mulher de quarenta anos, tentativa de suicídio. Cortou
os pulsos.
— Saco! Custava ela ter tentado se matar enfiando uma faca na
cabeça? Isso nem é caso de cirurgia. Que merda!
— Ai, Diana, mesmo que eu conviva com você pro resto da vida,
ainda não vai ser tempo suficiente pra me acostumar com essa tua
dependência por bizarrice.
— Quer pegar esse caso? Eu espero o próximo. — Meu tom foi
sarcástico.
— Não. Tá louca? O meu é um acidente de moto com fratura
exposta do fêmur — falou orgulhoso.
— Olha só a tua cara de desejo — sorri ao encará-lo — E ainda me
julga. Você é tão viciado em bizarrice quanto eu, Gabriel. A diferença é que
eu assumo.
Gabriel riu também. Ele era um dos poucos com quem eu interagia
ali. O único que eu considerava amigo, dentro daquele hospital... E fora
dele também.
— Olha ali, dra. Hannibal Lecter, tua ambulância tá chegando.
— Vou lá. — Suspirei frustrada. — Deseje-me sorte.
— Sim, boa sorte. Espero que ela tenha perdido quase todo o sangue
e tenha tido pelo menos umas duas paradas cardíacas.
— E sobrevivido? Não, eu não seria tão afortunada.
Gabriel se afastou um pouco, e eu corri em direção à ambulância.
Quando cheguei à porta, um dos socorristas já a abria, ao mesmo tempo em
que outros dois desciam a maca. O primeiro falou:
— Mulher de quarenta anos, Ingrid Álvares, tentativa de suicídio.
Incisão nos pulsos com lâmina de barbear. Está em choque hipovolêmico,
deve ter perdido cerca de um litro e meio de sangue.
Chequei o monitor ao lado da cabeça da paciente, que estava
desacordada.
— Bradicardia. 58... E caindo. PA 60 por 40. Temos que ser rápidos
ou vamos perdê-la. Ela precisa de uma transfusão, urgente.
Olhei para os pulsos e vi que haviam feito um torniquete desajeitado
com pedaços de pano.
— Quem prestou os primeiros socorros? — perguntei.
— Aquela moça ali. — Um dos socorristas me respondeu.
Virei na direção em que ele apontou e entrei em choque quando me
dei conta de quem era. Precisei piscar várias vezes para conseguir assimilar,
pois não podia acreditar no que estava vendo.
A vizinha... Minha parceira de travessuras da noite passada. O que
está fazendo aqui e qual a relação dela com essa mulher?
— Doutora... Doutora...
A voz do socorrista me tirou do transe. Voltei o foco para a paciente,
depois eu entenderia aquilo.
— Há quanto tempo está inconsciente?
— Já a encontramos assim. A moça que estava com ela falou que
estava sob efeito de antidepressivos.
— Que ótimo! — ironizei. — Caso ela sobreviva, vamos precisar de
uma avaliação psiquiátrica.
Enquanto empurrávamos a maca pelos corredores do hospital, a
garota nos seguia. Resolvi abordá-la, quanto mais informações tivéssemos,
mais eficaz e rápido seria o socorro.
— Sabe o tipo sanguíneo dela?
— "O" positivo.
Quase que ao mesmo tempo, Jéssica, uma das internas, apareceu
correndo ao meu lado.
— Posso ajudar, doutora Diana?
— Pode. Preciso de quatro bolsas de "O" positivo, plasma e fator 7.
A garota acenou afirmativamente e saiu correndo.
O monitor ao lado da paciente começou a emitir um som agudo e
contínuo, indicando que ela estava tendo uma parada cardíaca.
Bom, pelo menos o atendimento não vai ser tão tedioso quanto
pensei.
— Parada cardíaca — anunciei e rapidamente subi na maca,
montando sobre a mulher para começar a reanimação. — Pra a sala de
ressuscitação, rápido.
A garota nos seguia, passou a correr quando nos apressamos.
Mesmo em meio a toda aquela agitação, eu a olhava de soslaio de vez em
quando. Ela coçava a nuca nervosamente, mas não tinha qualquer emoção
no olhar. Aparentemente não se importava muito com aquela mulher.
— Você é o que dela? — indaguei, buscando impostar a voz para
que me ouvisse em meio a todo aquele barulho, mas ela não me respondeu.
Ficou pensativa. Insisti: — Você é parente dela?
— Não.
— Conhece alguém da família?
— Sim, conheço a mãe dela.
— Ok, preciso que avise a ela. Pode fazer isso pra mim?
— Posso, claro...
— Então, por favor, faça isso. E aguarde na sala de espera. Logo
daremos notícias.
— Ela vai sobreviver?
— Faremos o possível.
E foi quando finalmente entramos na sala de ressuscitação. Ela ficou
do lado de fora, me encarando com aquele olhar enigmático que me deixava
louca. A porta parecia se fechar em câmera lenta. Enquanto isso, eu a
observava, até que ela sumiu do meu campo de visão.
Quem é essa garota?
Pergunta para a qual eu cobraria resposta naquele dia mesmo, assim
que estabilizasse a minha paciente.

Bárbara

Desci da ambulância e a avistei de longe. Não estava enganada, ela


era mesmo médica. Comecei a ofegar, como sempre acontecia quando a via,
e aumentava quando eu chegava perto dela. Ela falava com o paramédico.
Aquela sensação de sufocamento estava quase me matando quando ele me
apontou e ela olhou diretamente nos meus olhos.
Eu nunca fui de ficar vulnerável assim, mas aquela mulher tinha
esse poder sobre mim, me deixava sem reação. Tentei manter o olhar de
preocupação, mas a noite anterior povoava minha mente. Eu a queria de
novo. Notei seus olhos confusos, até que foi chamada pelo socorrista.
Eu estava seguindo a maca no automático, respondi às perguntas
dela da mesma forma.
— Ela vai sobreviver? — balbuciei para prolongar o contato.
— Faremos o possível.
Observei enquanto ela massageava o peito da infeliz da Ingrid,
tentando salvá-la; a maca sendo empurrada através do corredor, que era
branco demais para o meu gosto, e lembrei de como ficou o chão branco do
quarto. Sangue para todo lado.

***

— Está faltando um dos meus comprimidos aqui, Bárbara! — A


desgraçada afirmou, como sempre, gritando com aquela voz rouca e
irritante, que ela adorava berrar para mim.
Eram cinco e cinquenta e nove da manhã.
— Você quem toma essas merdas, e eu que preciso contar — falei e
virei para o lado, tentando inutilmente dormir.
— Como é que é, Bárbara?
Ela me perguntou enfurecida e me empurrou. Quase caí da cama,
mas me levantei.
— São seis da manhã, Ingrid.
— Não quero saber que horas são, quero saber do meu remédio.
— Tem uma cartela quase cheia aí, cara. O que você quer? —
perguntei, sonolenta.
Ela se levantou, contornou a cama e veio em minha direção. Eu
estava disposta a me defender e mandá-la para o inferno, jogar aquela
merda de vida toda para o alto, mas ela era bem mais forte. Me levantou
pelo braço e me apertou com força contra o armário e quase me fez vomitar
quando soprou aquele hálito podre ao falar:
— Fala desse jeito comigo de novo e quebro essa tua cara, sua
infeliz. Vai me explicar agora por que está faltando dois comprimidos meus.
Queria me apagar, era?
— Ingrid, desça aqui, filha, seu tio quer conversar com você! —
Eulália, a mãe dela, entrou na casa e a chamou em voz alta, do andar de
baixo, mas em um tom estranhamente carinhoso, e ela me soltou. Amarrou
o robe e saiu, toda descabelada e cheirando mal. Eu a segui para evitar que
gritasse me chamando.
O tio da Ingrid estava na sala, era um velhote de aproximadamente
70 anos, o olhar bondoso, mas infelizmente tinha o mesmo sangue que ela.
— Tio Silvio — falou, sorrindo, e o abraçou —, está tudo bem com
o senhor?
— Vou ficar. Desculpe chegar a essa hora. E você como está, filha?
— perguntou e me viu na escada. — Tudo bem, Bárbara? Venha aqui, você
é da família, pode saber também.
— Vem aqui, amor. — Ingrid me chamou e fui até eles.
Ingrid me envolveu pela cintura e iniciou sua atuação, dando um
beijo no meu rosto.
— Filha, o Silvio não está nada bem. — falou, demonstrando
tristeza.
Eulália tinha os olhos inchados, não tinha como saber se havia
chorado ou era ressaca, pois vivia alcoolizada. Muitas vezes, dormia pouco
ou demais.
— O que aconteceu, tio?
Ela tentava usar um tom meigo, e eu senti vontade de vomitar.
— Eu estou com câncer no pâncreas, não vou fazer tratamento.
Eulália já estava aos prantos, e Ingrid continuou a atuação, fazendo
um escândalo. Eu fiquei paralisada.
— Acalme-se, Ingrid. — Ele pediu ao vê-la gritando no sofá. — Por
favor, me ajude aqui — pediu para mim.
Fui até a cozinha buscar água para as duas.
— Oh, meu Deus, o que vai ser da minha vida? Meu tiozinho!
— Ingrid! Acalme-se, filha. Não morri ainda, só não vou fazer
tratamento, mas, segundo o médico, ainda tenho muito tempo. Fique calma.
Vim trazer umas coisas, só contei sobre isso porque vocês são minha
família, não quero esse desespero. — Suspirou fundo e passou as mãos nos
cabelos ralos. — Preciso fazer umas entregas, depois apareço por aqui.
Elas tomaram a água e quando se mostraram mais calmas, Silvio me
chamou, precisava tirar umas coisas do carro. Ele tinha uma fazenda ali
perto. Plantava frutas, verduras e legumes, criava bichos, tinha algumas
fábricas lá também. Levei tudo para dentro da casa. No caminho, ele
segurou o meu braço.
— Filha, eu sei que você ama a minha sobrinha. Ela é difícil de
lidar, mas cuide dela, por favor.
— Claro, eu a amo, sim. Vou cuidar, pode deixar.
Ele meneou a cabeça positivamente e entrou no carro,
um Ford antigo. Deu partida e sorriu antes de sair.
Acabei de mentir duas vezes para um moribundo! — pensei, com
um sorriso no rosto.
— Está rindo de quê?
O grito de Ingrid me tirou do momento sarcástico.
— Nada demais, Ingrid. O seu tio, mesmo doente, não deixa de ser
brincalhão — respondi e fui para a cozinha.
Ela continuou fingindo ser doce, por causa da mãe, que ainda estava
lá, abalada. Era bem louca, pois ora gritava com a mãe, ora fingia meiguice.
— Ingrid, eu peguei um comprimido seu ontem, se puder me dar
outro, agradeço, filha. — Eulália admitiu.
— Porra, mãe! Que droga! Se eu precisasse, como ficaria?
— Tinha onze, Ingrid, deixa de escândalo. O meu acabou e não
pude ir ao médico.
Observei a discussão de fora, olhando para Ingrid, que não me
encarava. Deixei as duas discutindo e subi para o quarto.
Instantes depois ela entrou no cômodo, abrindo a porta subitamente,
como se quisesse flagrar algo.
— Pega água pra mim, vou tentar dormir! — disse e pegou um
comprimido.
Senti um cansaço estranho no corpo, um peso na cabeça; fechei os
olhos apertando com força as pálpebras.

***

Eu estava sentada numa cadeira na sala de espera quando a voz


suave da bela médica me trouxe de volta à realidade.
— Oi.
— Oi...
Nós nos encaramos por um breve instante e ela voltou a falar:
— Sou a doutora Diana de Castro, tudo bem?
— Sim — foi o que consegui responder.
Ela me olhou com curiosidade, mas não insistiu. Ao invés disso:
— A Ingrid está bem. Vai dormir um pouco. Preciso que me
responda umas coisas.
— Ok. — falei, nervosa.
Ela tinha o hábito de me olhar fixamente nos olhos e aquilo me
causava uma sensação estranha.
— Qual é o seu nome?
Antes que eu pudesse responder, Eulália chegou, conduzida por uma
médica. Elas vieram em nossa direção.
— Oh, querida, como a minha filha está? O que ela fez? — Eulália
perguntou.
Diana apenas observava.
— Ela...cortou os pulsos. Tentei conter o sangramento e chamei a
ambulância...
— Meu Deus!
A aparência e o cheiro de Eulália denunciavam o seu estado de
embriaguez. Diana tentou disfarçar o incômodo quando o hálito dela
impregnou o ambiente, mas não teve muito sucesso.
— Doutora Jéssica, atenda essa senhora, ela está alcoolizada, sem
condições nenhuma de responder pela filha.
A outra médica a atendeu de pronto e levou Eulália, que tentou em
vão protestar.
Sem falar mais nada, Diana apenas me puxou. Eu me deixei
conduzir, estava louca para tê-la perto de novo. Entramos em um quarto no
final do corredor. Ela trancou a porta. Achei que fosse me encher de
perguntas, mas ao invés disso, me puxou pela nuca e me beijou.
1 – A Garota da Janela

Diana

Era o fim de mais um plantão no Instituto de Traumatologia e


Ortopedia Dr. Adalberto Bonfim.
Bonfim...
Eu ria da ironia que envolvia aquele nome, afinal, não eram todos os
pacientes que davam entrada naquele lugar e tinham a sorte de serem
agraciados com um bom fim.
Era o último ano da minha residência e me especializaria em
cirurgia do trauma, por isso, a minha rotina consistia basicamente em
atender os casos de amputações, fraturas expostas, baços rompidos,
ferimentos à bala, costelas quebradas... Ou seja, tudo que havia de melhor e
mais moderno no mercado da bizarrice... E eu adorava.
Estava no lugar certo. Trabalhar ali, para mim, não passava nem
perto de uma obrigação. Na verdade, era uma grande diversão. Toda a
agitação da minha vida acontecia lá.
A medicina era a única coisa que eu achava interessante. Todo o
resto não passava de uma grande chatice. Da porta do hospital para fora, eu
era uma pessoa comum, com uma vida pacata. Não cultivava grandes
amigos... E muito menos amores. Sempre gostei da solidão, do silêncio, de
viajar nos meus próprios pensamentos.
A figura mais próxima que eu tinha de um amigo era Gabriel.
Éramos colegas desde o primeiro ano de internato. Ele era aquele tipo de
pessoa que fazia amizade até na fila das condolências de um velório, e logo
no nosso primeiro dia decidiu que seríamos melhores amigos. Vivia
tentando agitar a minha vida, mas eu não dava conta de acompanhar o ritmo
dele, que não perdia uma boa farra por nada.
— Ah, Diana, deixa de ser chata, cara! Vamos lá, só duas
cervejinhas e a gente vai embora.
Era aniversário de Marina, outra residente. Ela era parente distante
dos fundadores do hospital. Nada demais, nem era herdeira, mas tinha
"Bonfim" no nome, por isso, agia como se fosse a dona do lugar.
Todos haviam combinado de aparecer em um bar, depois do plantão,
para comemorarem o aniversário dela, mas além de estar extremamente
cansada, eu a detestava com todas as minhas forças.
— Não adianta insistir, Biel, eu não vou. Você sabe que não gosto
dessa garota...
— Eu também não, mas quem disse que estamos indo por causa
dela? Nós vamos pela bebida... E pelas gatas. — Terminou a frase com um
olhar safado.
Sorri. Ele estava realmente entusiasmado, mas eu não estava nem
um pouco.
— Não vou, Gabriel. Não insista. Amanhã tenho plantão de novo,
levanto às 6h, e ainda tenho muita coisa pra fazer hoje...
— Ahan... Tipo bater altos papos com o Luís Otávio, né? Tô
sabendo. — ironizou.
— Não, idiota. Eu tenho que estudar.
— Ai, que nerd irritante do caralho que você é. Porra! — esbravejou
com falsa indignação. — Não sei por que estuda tanto se já sabe de tudo.
Ele tinha razão, eu era realmente muito boa no que fazia. A melhor
da minha turma, na verdade, e com muito orgulho, sobretudo, por ter
conseguido ir tão longe sem jamais ter precisado usar o sobrenome do meu
pai. Ao contrário da Marina, a aniversariante.
— Se eu sei de tudo, como você diz, é justamente porque estudo
muito, e você deveria fazer o mesmo para não acabar como a sua amiguinha
aniversariante, que tá mais pra açougueira do que para cirurgiã, mas ainda
assim tá aí, cheia de moral, por causa do sobrenome influente.
Marina não passava de uma dondoca, fútil e mimada. Eu não fazia
ideia nem mesmo de como ela havia conseguido concluir a faculdade, então
dá para imaginar como eu me sentia quando a via em uma sala de cirurgia.
Assim como eu, ela tinha um sobrenome que abria portas, mas ao contrário
de mim, ela se aproveitava descaradamente disso para se dar bem. Ninguém
a suportava naquele hospital, nem mesmo Gabriel, mas todos precisavam
engoli-la, pois tinham medo de tê-la como inimiga.
— Tá bom, sua chata! Não vou insistir com você. Vai pra casa,
acariciar seu gato e tomar mingau de aveia. Não é isso que velhos fazem?
Eu vou encher a cara e arrumar uma mulher pra transar. Aliás, uma não, vou
pegar duas. Uma por mim e outra por você... Já sei, vou pegar a Jéssica, já
que você vive dispensando a guria.
Jéssica era uma interna, muito bonita por sinal, mas pegajosa demais
para o meu gosto. Ela não fazia a menor questão de disfarçar o interesse que
tinha por mim, e Gabriel não aceitava o fato de eu não corresponder.
— Faça bom proveito — retruquei no meio de uma risada. — A
Jéssica é grudenta, e de mulher carente eu tô fugindo. Faz assim, já que
quer duas, pega a Jéssica e a Marina. Garanto que vai ter a noite mais
estranha da sua vida. Até amanhã, Biel. — falei e saí, sorrindo, sem esperar
réplica.
No caminho de casa, voltei a pensar em Marina. Eu sabia que o
motivo de a detestar tanto era porque ela era o retrato da filha que meu pai
esperava que eu fosse.
A medicina sempre foi o meu sonho, mas sabe quando você é
adolescente e quer muito fazer uma coisa, então descobre que seu pai
também quer muito que você faça essa coisa, daí a coisa toda perde a graça?
Pois é, eu sempre quis ser cirurgiã, mas na verdade eu não queria querer
isso, só para que meu pai, o Dr. Afrânio Sobreira, não sentisse o gostinho da
vitória.
Mas pensar em outra profissão era como ir contra à minha natureza.
Algo completamente fora de cogitação.
Meu pai era de uma família tradicional de cirurgiões, um renomado
cardiologista. Seu sucesso na carreira médica fez com que ganhasse grande
visibilidade na área da saúde e por isso ele acabou entrando para a política.
Eu não sabia de muita coisa dele, não nos falávamos havia anos,
mas como ele era uma figura pública, eu sempre acabava esbarrando em
alguma notícia. A última dizia que ele estava lançando candidatura ao
senado.
A verdade é que ele não queria uma filha. Quando minha mãe
engravidou, ele ficou feliz e tudo mais, mas não se tratava da paternidade.
Sua preocupação era apenas sobre o legado da família.
Nunca foi um pai de verdade. Não tenho lembranças da gente
passeando no parque, tomando sorvete, jogando bola ou passando férias
na Disney, como as famílias de classe média alta fazem. Na verdade, não
me lembro de muita coisa que tenhamos feitos juntos durante a minha
infância, pois ele quase nunca estava em casa e quando estava não era nada
agradável a presença dele.
Quando não eram os plantões, eram compromissos políticos.
Mesmo assim, eu o admirava... Até que presenciei, pela primeira vez, uma
agressão contra a minha mãe. Aquilo o transformou em um monstro para
mim.
Eu tinha dez anos. Lembro que ouvi os gritos e corri para ver do que
se tratava. Fiquei olhando pela porta, que estava entreaberta. Ele a xingava:
— Sua vadia, miserável. Vai aprender a me respeitar.
Eu quis entrar para ajudá-la, mas estava com muito medo,
paralisada, muda, não conseguia gritar, apenas tremer e tentar não desmaiar
de tanto pavor. Além do mais, não adiantaria, eu era muito pequena.
Ele batia em seus braços e pernas, não batia no rosto. Depois de um
tempo eu entendi que era para não deixar marcas visíveis. Para a sociedade,
eles eram o casal mais feliz do mundo. Ele se passava pelo homem perfeito.
Assistir cenas como aquela virou rotina para mim. Via tudo com um
nó na garganta, e só depois que ele saía, eu conseguia correr para ajudar a
minha mãe.
— Eu tenho vontade de matá-lo, mãe — dizia com a voz embargada
pelo pranto raivoso enquanto fazia compressas de gelo nos machucados
dela.
— Filha, não diga isso. Você não é igual a ele. É uma menina boa,
decente...
— Por que você não chama a polícia?
— Eu já fiz isso, meu amor. Mas ninguém apareceu aqui. Diana,
entenda uma coisa pro seu próprio bem: seu pai é um homem influente. O
melhor que fazemos é ficar quietas, ou ele pode ficar mais furioso ainda, e
não quero nem pensar no que ele é capaz de fazer.
— Eu o odeio, mamãe! Com todas as minhas forças.
Ódio que apenas aumentou com o passar dos anos.

Quando cheguei em casa, Luís Otávio já me esperava ansioso. Não


que estivesse com saudade de mim, aquele tipo de sentimentalismo bobo
nem combinava com ele. Às vezes eu tinha impressão de que ele me
detestava e que só estava comigo por conveniência... Comodismo, afinal, eu
lhe dava um lar, uma caixa de areia limpinha, um arranhador e ração para
gatos de alta qualidade. Mas eu não reclamava, gostava muito de sua
companhia, apesar do mau humor constante e dos pelos espalhados pela
casa e pelas minhas roupas.
Eu o resgatei de um bueiro, no estacionamento do hospital. Ele era
só um filhotinho assustado que fora abandonado ali para morrer. Lembro de
passar e ouvir os miados. Gabriel estava comigo e me ajudou a tirá-lo de lá,
dei comida e água. Após isso, ele me seguiu. Tentei despistá-lo com mais
comida, mas foi em vão. Acabei trazendo para casa.
Quando filhote, ele era uma coisinha fofa, brincalhona e destruidora,
mas depois de adulto passou a me tratar assim:
— Humana, isso são horas? Como foi capaz de me deixar
abandonado assim por tanto tempo? — indagou, rabugento. — Você tem
andado muito relapsa ultimamente.
— Desculpe, Luís Otávio. No final do meu plantão, uma senhorinha
muito idosa deu entrada com uma fratura na bacia. Não podia deixar a
velhinha agonizando, você entende?
— A velhinha que se exploda, ora. Já está com os dias contados
mesmo. Eu ainda não cheguei nem na metade da minha primeira vida.
Devia ter se preocupado mais comigo.
— Desculpa, Lulu...
— Não me chame de Lulu, meu nome é Luís Otávio. Sabe que eu
odeio esses apelidos idiotas. Vocês, humanos, sempre nos tratando como
bibelôs de vitrine, não se dão conta de que somos uma raça infinitamente
superior — disse enquanto me olhava com aquele olhar julgador.
— Eita, que você tá mal-humorado hoje, hein! — falei enquanto
acariciava suas costas.
— Claro que estou. Já viu a imundice que está a minha caixa de
areia? Estou apertado. Acho bom limpar logo ou o seu sofá nunca mais será
o mesmo. Ah, e você sabe que não gosto daquela água parada. Quero água
fresca... E eu estou com fome, caramba!
— Credo! Calma, já estou indo resolver os teus problemas.
— Acho bom.
Luís Otávio estava tão chateado comigo aquela noite que não quis
mais conversa. Após comer o seu sachê de comida de gato — que por sinal
era o último — e sujar novamente a areia que eu havia acabado de limpar,
deitou-se na cabeceira da minha cama, lambeu o corpo todo e adormeceu
profundamente.
Tentei fazer o mesmo, eu estava exausta. Tão exausta que não
consegui descansar. Meu cérebro só podia me odiar, porque ele não me
deixava dormir.
Todas as noites, a mesma coisa: eu me deitava, me levantava,
voltava a me deitar, virava de um lado para o outro... Contava tanto
carneirinho que o rebanho acabava e eu precisava recomeçar a contagem.
Levava os coitados a exaustão e, no final, eu sempre desistia e acabava na
varanda, estudando.
Foi assim que eu vi a vizinha pela primeira vez, debruçada sobre a
janela do apartamento que ficava em frente ao meu.
Estava muito quente, mas seria injusto atribuir ao clima a quentura
que tomou o meu corpo quando me dei conta de sua presença.
A silhueta curvilínea daquele belo corpo se destacava na penumbra
da noite. A forma retangular da janela servia como moldura para a imagem
que parecia ter sido cuidadosamente pintada por um grande artista
renascentista. A luz fraca do cômodo onde estava, criava uma aura em seu
redor que a deixava absurdamente deslumbrante. Parecia um ser mitológico,
uma deusa... Freya, a deusa da sensualidade.
Aquela imagem foi o bastante para despertar o meu corpo do torpor
em que se encontrava havia muito tempo. Senti até certa estranheza ao
perceber a adrenalina fazendo os meus batimentos acelerarem. Perdi por
completo o foco do que estava fazendo e, por mais que eu tenha tentado,
não consegui mais voltar a estudar.
Disfarçadamente, pus-me a observá-la. Cada movimento, cada
gesto, cada minúcia daquela cena instigava ainda mais a minha curiosidade.
Não demorou muito para o encanto se quebrar. Pareceu que alguém
a chamava, então precisou sair. Ainda esperei algum tempo na varanda, mas
foi em vão. Ela não voltou mais.
Fui para o quarto me sentindo uma boba. Decidi tentar mais uma
vez dormir, o mínimo que fosse, pois cedo da manhã já precisaria estar
pronta para mais um plantão.
Deitei, fechei os olhos e incrivelmente, pela primeira vez, não fiquei
pensando no escroto do meu pai ou sobre a minha performance nas
cirurgias do último plantão. Ao invés disso, pensei nela...
Enquanto viajava em um mar de possibilidades sobre aquela deusa
misteriosa, minhas mãos ganharam autonomia e deliberadamente
começaram a explorar meu corpo de forma íntima. Uma delas foi para os
seios, e a outra desceu, ávida, em busca de satisfazer o desejo que havia se
apoderado do meu corpo.
Naquela noite, dormi profundamente, tanto que até sonhei... Com
ela, a garota da janela.
2 – Abuso

Barbara

Era uma e meia, eu estava na janela, num raro momento de paz,


hora em que eu podia voltar a sonhar com o mundo real. Quando não estava
observando a vizinha estava vendo série na tevê, mas isso só acontecia
quando Ingrid não estava a fim de me torturar com seu humor horrível.
Quando ela dormia, eu preferia a sacada.
A vizinha estava lendo na varanda de seu apartamento. Eu a
observava havia várias noites. A rotina dela não mudava, chegava, cumpria
seus deveres domésticos e ia para a varanda, onde passava um longo tempo
lendo. Muitas vezes, eu nem via quando entrava para dormir.
Ela é muito gata, linda demais! Já pensei em pintá-la, esculpi-la,
eternizá-la de alguma forma. Sou muito boa no que faço. Já vivi da minha
arte, mas as merdas que fiz por aí me obrigaram a parar. De qualquer forma,
se eu fizesse qualquer coisa inspirada nela, decretaria a terceira guerra
mundial com a Ingrid.
Não sei seu nome, acho que deve trabalhar em hospital, pois
geralmente passa em média doze horas ou mais fora. Quase nunca a vejo
com amigos, parece que é um pouco solitária.
Acho que naquela noite ela me viu, pois olhou direto para cá.
Não pode ser!
A sensação de observá-la sem que me visse era o meu céu. Sempre
fiquei na penumbra, quase invisível, assim eu podia imaginar qualquer
coisa com ela sem alimentar esperança nenhuma. O fato de ter me visto fez
com que, mesmo de longe, ela ficasse mais próxima de mim, e isso era
perigoso, pois sou uma prisioneira das minhas falhas.
Eu gostava de ficar te observando, mas você chegou perto demais
quando correspondeu ao meu olhar.
— Bárbara! — Ingrid gritou, me tirando dos meus sonhos de
realidade.
Então os remédios não adiantaram nada, seria mais uma noite em
claro. Apertei os olhos com os dedos polegar e indicador. Respirei
profundamente.
Se fosse só passar a noite em claro, tudo bem, mas ela queria
atenção o tempo todo, e não era qualquer tipo de atenção. Às vezes, me
fazia cozinhar de madrugada, as comidas mais loucas. Muitas vezes, eu não
tinha como conseguir os ingredientes. Quando acontecia, ela brigava até o
dia amanhecer.
Eu estava na casa dela havia seis meses e seria melhor ter assumido
meus erros ao invés de ter ido parar naquele lugar. Aquela era a pior das
prisões.
— Bárbara? — berrou mais uma vez, me fazendo engolir saliva de
ódio.
Fui ao quarto e ela estava com o rosto vermelho, olhos faiscantes,
como sempre ficava quando estava com raiva de algo, de mim, geralmente.
— Sim?
— Onde estava? Estou gritando há três horas... — indagou,
exagerada como sempre.
Eu apenas a olhava, esperando que dissesse o que queria.
— Quero panqueca de mirtilo. Você faz pra mim? — perguntou,
usando aquele tom que para ela era fofo, mas para mim não passava de um
cinismo horrendo me fazendo pensar em formas de cortá-la em pedacinhos.
— Não temos mirtilo em casa...
— Vai comprar.
Ela saiu da cama e foi até o armário, pegou uma nota de dez e me
deu. O dinheiro dava apenas para comprar a fruta. Olhei para a cédula na
minha mão e depois para ela, que sorriu.
— Isso aí dá para fazer a panqueca hoje.
— Você sabe que horas são? — perguntei, na falsa intenção de fazê-
la deixar para quando o dia amanhecesse, pelo menos, mas foi em vão.
— Vai me negar um único pedido? — gritou de novo.
Eu respirei fundo e troquei de roupa para sair à procura de mirtilo
àquela hora da manhã.
Teria que andar por mais de um quilometro até chegar ao
supermercado que ficava aberto 24h. Confesso que gostava de andar de
madrugada, não tinha sol forte, não tinha caos de trânsito, não tinha gente
na rua.
Costumava ser perigoso para uma mulher andar sozinha, tarde da
noite, mas eu estava pouco me importando com os perigos da cidade, queria
mesmo era respirar um ar puro e sentir a brisa silenciosa tocar meu rosto. E
depois, eu nunca estava sozinha.
Eu sempre fazia uma cena de que não queria sair, mas era só para
Ingrid insistir para que eu fosse, e sempre funcionava. Ela adorava agir
contra a minha vontade.
Eu já ouvia gritos o dia inteiro e naquela noite, com certeza, ouviria
mais. Qualquer tempo longe daquela voz irritante seria um alívio.
Olhei para cima e notei que a luz amarela do único sinal da rua em
que eu morava piscava intermitente. Esperei um carro passar e atravessei,
devagar, não tinha pressa nenhuma.
Os berros da Ingrid ecoavam na minha cabeça, aquilo estava
despertando mais alguém dentro de mim, um alguém que talvez eu não
pudesse controlar.
Conheci Ingrid num aplicativo de relacionamento, ela é bem mais
velha que eu. Perdeu o pai havia pouco tempo, a mãe era alcoólatra, e ela
sofria de depressão e muita safadeza e canalhice envolvida, pois não queria
se cuidar e sentia prazer em torturar psicologicamente as pessoas.
No início, era carinhosa e sorridente, mas uma semana depois
começou a mostrar outro lado que eu odiei conhecer.
Era uma mulher bonita, mas estava entregue àquela vida. Tudo o
que eu tentava fazer para ajudar era visto com maus olhos por ela.
Tenho consciência de que depressão é uma doença perigosa, mas
não sou nenhuma santa, nenhum ser iluminado para aguentar aquelas crises.
Ela não queria melhorar, tomava remédios, mas continuava sendo
mesquinha e maldosa. Não fazia um tratamento sério, usava os remédios e
sua condição para manipular as pessoas.
Eu não a amava, nunca amei, só gostei dela no início, mas depois
que passou a mostrar sua verdadeira face, passei a sentir asco, porém, meu
passado não me permitia que eu saísse daquela vida tão rápido.
Não estava com ela por pena, mas também não era por amor.
Fui ao único supermercado aberto naquele horário e não achei o
bendito mirtilo. Perguntei as horas a uma moça que olhava produtos de
higiene e ela respondeu:
— Duas e dez.
— Obrigada... — respondi e fiquei olhando os produtos, mas sem
enxergar nada, faltava uma eternidade para amanhecer.
Lágrimas sentidas e incontroláveis desceram por meu rosto. Eu só
queria morrer. Senti um nó imenso na garganta tentando me sufocar, mas
aquele maldito nó era incapaz de ir tão longe.
Fiquei ali, indo e voltando pelos setores, e depois voltei para casa
para ouvir os gritos.
Aquilo estava acabando com a minha sanidade, com a minha pouca
bondade.
Cada grito dela me fazia pensar em algumas formas de matá-la, pois
não eram simples gritos. Ela me depreciava, não sabia nada a meu respeito,
só o que eu havia falado, então ela usava aquilo contra mim. Não me atingia
de fato, porque eu não havia falado a verdade sobre minha vida, mas me
atingia pelo fato de estar usando o pouco que falei contra mim, mesmo
dizendo que me amava.
O que me prendia a ela, na verdade, era o fato de ser ardilosa.
Baseado no que eu havia falado, ela investigou parte da minha vida e
conseguiu provas contra mim. Enfiou em algum lugar que não consegui
achar de forma alguma. Com essas provas ou me prenderiam ou me tornaria
uma fugitiva da polícia. Essa segunda opção é a mais certa, pois jamais me
deixei ser pega. Até ela aparecer.
Por isso eu vivia naquela situação. Se o inferno existisse, eu estava
dentro do meu. Restava saber quando sairia daquilo.
Voltei para casa àquela hora e, antes de entrar, vi Eulália, mãe da
Ingrid, tentando abrir o portão de sua casa. Eulália morava no primeiro
andar do prédio que pertencia a ela. Sua filha e eu morávamos no segundo
andar, cômodos recuados como se ficassem ao fundo da casa. O terceiro era
uma espécie de depósito, algumas tralhas da loucura de Ingrid, que tinha a
horrível mania de guardar coisas, tanto novas quanto velhas.
Eu me lembro de ter achado uma rara câmera fotográfica quando fui
limpar lá. Fiquei deslumbrada, era uma das primeiras, a evolução em forma
de câmera, de 1890, usada por Félix Nadar. Ingrid me viu olhando e quase
me bateu.
— Pediu para limpar aqui para ficar mexendo nas minhas coisas? —
gritou, como se eu fosse surda ou estivesse muito longe.
— Claro que não, Ingrid. A caixa estava aberta e vi. Desculpa. Eu
amo fotografia, por isso fiquei deslumbrada...
Ela me pegou pelo bíceps esquerdo e como sempre, com os olhos
vermelhos de ódio, disse por entre os dentes:
— Nunca mais na sua vida entre neste andar. — ordenou e me
empurrou para fora.
Apenas desci. Esse espetáculo todo sem nem ao menos saber do que
se tratava. Pois não sabia sequer tirar uma selfie boa.
Ingrid era assim, cheia de distúrbios. Encontrava o psiquiatra uma
vez por mês, apenas para buscar a prescrição dos remédios para dormir,
pois segundo a Eulália, ela não queria fazer tratamento para melhorar,
gostava de ser asquerosa.
— Ela é muito geniosa, minha filha. Sempre foi assim. Depois que o
pai morreu, ela parou de sair de casa, não sei nem como encontrou você. —
disse num raro momento de sobriedade.
Eulália mantinha fotos de quando era jovem, fora muito bonita,
parecia uma miss daquela época. Não remetia em nada à carcaça deplorável
que cambaleava sem rumo por aí.
O álcool estava deteriorando aquela coitada aos poucos. Eu notei
que ela sempre saía quando Ingrid a visitava. Às vezes, eu descia com ela,
às vezes, não.
Com a rotina, passei a não ser tão grudada na Ingrid. Não que eu
fizesse o tipo carente, que não saía de perto da namorada. Nunca fui assim,
mas ela me obrigava. Isso nos primeiros meses. Depois de um tempo,
quando eu a via disposta a sair, me ocupava para não ter que acompanhá-la
onde quer que fosse; algumas vezes eu não conseguia me livrar e ia contra a
minha vontade.
Observei que ela coagia a mãe também, achei aquilo horrível, pois
Eulália fazia tudo por ela.
Ingrid recebia mesada de alguém que eu não tinha interesse em
saber quem era, mesmo assim sempre estava sugando a mãe para ajudar
George, seu meio irmão.
George era outra pessoa que se tivesse morrido sem que eu o tivesse
conhecido, teria me feito um favor. Era um inútil completo, só sabia se
drogar o dia inteiro. Dizia que fazia faculdade de enfermagem. Vila dos
Lírios é famosa por suas universidades de medicina e tudo o que envolvia a
área da saúde, mas a última coisa que George fazia era estudar.
Tinha livros antigos, achados em sebos. Enganava a idiota da Ingrid,
mas não a mim. Ou talvez ela só quisesse manter o vício dele, que dizia que
estava fazendo tratamento para se desintoxicar. Mentira.
Eulália era uma boa pessoa, mas não teve pulso firme para lidar com
a filha. Então toda vez que Ingrid ia a casa dela sozinha, a mulher saía e
voltava para casa caindo, bêbada e triste.
— Bárbara, o que houve? — Ela falou a mais de um metro e meio
de mim, mas consegui sentir o cheiro forte de álcool.
— Oi, Eulália! Ingrid quer panqueca de mirtilo e fui comprar.
— Não tinha, né? — indagou, triste.
Eu peguei a chave de sua mão e abri o portão. Ela não tinha a menor
condição de fazer isso. Entrei junto com ela e abri também a porta de seu
apartamento.
— Não, não tinha. Boa noite, vou lá enfrentar a fera. — Fechei a
porta e saí.
Quando entrei, Ingrid estava furiosa me esperando. Eu estava tão
cheia daquela desgraçada que se não tivesse um autocontrole tão forte já a
teria matado.
Planos eu fazia todo dia. Acordava e já pensava se ela acordaria com
um humor melhor, aí ela despertava e começava o inferno, e eu começava a
planejar o assassinato, onde esconder o corpo, o que diria a Eulália. Era
sempre assim e todo dia eu desistia, por causa da porra do autocontrole.
— Não tinha mirtilo, Ingrid. Eu procurei em todo lugar... — disse,
normalmente, sem dar importância para a cara de ódio dela.
— Procurou mesmo? Demorou demais, achei que fosse trazer uma
plantação de mirtilo. O que estava fazendo? Encontrou alguma vagabunda
por aí, né?
— Do que está falando, Ingrid? Caramba!
— Ficou aborrecidinha é porque encontrou alguém. Se eu sonhar
que você está sequer dando atenção para alguma puta por aí, eu mato você.
Eu sentia um imenso nó na garganta, meu companheiro de todas as
horas. Nunca fui de chorar, mas ultimamente estava difícil conter, evitava
demonstrar emoções na frente da Ingrid.
— Fala o nome dela, Bárbara! — gritou, muito perto do meu rosto,
me fazendo sentir seu hálito podre.
— Que vagabunda, Ingrid? Deixa de ser louca... não conheci
ninguém, se eu tivesse conhecido, já teria sumido daqui. — disse, cheia de
ódio e com lágrimas nos olhos.
Aquela maldita me pegou pelo cabelo, tentei me desvencilhar, mas
não consegui.
— Olha aqui, sua pirralha, se atreva a me enfrentar de novo e eu
quebro essa tua carinha linda.
— Me larga, Ingrid! — pedi e notei que minha voz saiu alto demais.
— Grita de novo, sua desgraçada! Está achando que sou o quê?
Alguma idiota, para não saber que só existe um mercado aberto 24h e que
você levaria no máximo meia hora para ir e voltar?
Eu a empurrei, caso contrário, ficaria sem parte do meu couro
cabeludo. Foi nessa hora que ela me pegou de novo pelo cabelo e tentou
acertar a minha cabeça na parede.
Na minha tentativa falha de desviar, acabei na janela e senti o vidro
quebrar com o impacto da minha cabeça.
3 – Tio Augusto

Diana

Geralmente eu não durmo direito. Desde que comecei a dar


plantões, meu corpo passou a ficar em um estado constante de alerta,
mesmo quando estou de folga. Sou capaz de acordar com o barulho da
minha própria respiração.
Raramente sonho. Quando durmo, mergulho no vale da escuridão, e
ao despertar, mesmo que tenha descansado por horas, a impressão é de que
não se passaram mais que alguns minutos. Normalmente, acordo muito
mais cansada do que estava antes de ir dormir.
Naquela noite, aconteceu diferente. Eu dormi como há muito tempo
não dormia. Tão bem que sonhei, nem lembro direito com o quê, mas
lembro de estar feliz e relaxada. Acordei me sentindo renovada e nem
precisei enrolar com o "soneca", porque era sempre assim, eu virava a noite
em claro, e apagava de exaustão já quase na hora de sair.
Outro que havia dormido profundamente naquela noite foi o Luís
Otávio. Mas isso não era novidade, dormir era o que ele fazia de melhor...
quer dizer, a segunda coisa que ele fazia de melhor, porque a primeira era
reclamar.
— Tô com fome e preciso usar a caixa de areia. Abra a porta. —
disse, autoritário ao acordar.
— Bom dia pra você também, Luís Otávio. — retruquei, ofendida.
Levantei para abrir a porta, ele me acompanhou, estava apressado
para sair e antes que eu abrisse, falou desaforado:
— Duvido muito que o dia seja bom. Você não comprou o meu
sachê e vou ter que comer aquela porcaria de ração seca. Sabe que odeio
isso, não sabe?
Revirei os olhos frustrada ao lembrar daquela falha. Ele odiava
ração seca, e eu havia esquecido de comprar o bendito sachê.
— Depois do plantão, passo no mercado, Luís. Prometo que hoje à
noite deixo você comer dois.
Abri a porta, e ele passou quase correndo. Nem sei se me ouviu.
Enquanto se distanciava rumo a varanda para usar a caixa de areia,
resmungava:
— Às vezes acho que você faz de propósito, só pra me chatear.
Humanos são todos iguais, raça nojenta! Quando eu chegar à cozinha, quero
a minha água fresca, pelo menos.
Fiquei calada. Lulu estava certo, eu andava muito relapsa com ele.
Antes que se chateasse ainda mais, fui até a cozinha, troquei a água da
vasilha e pus ração na outra.
Quando ele apareceu, foi até a água e bebeu, olhou a ração, depois
me encarou, virou o rosto e saiu de perto.
— Já disse que não vou comer essa porcaria, humana.
— Vai passar o dia com fome? — perguntei, chateada.
— Vou. A menos que eu saia pra caçar. Que jeito, né? Às vezes, fico
me perguntando qual a grande vantagem de ser um gato doméstico se a
minha humana é uma imprestável.
— Meu Deus! Parei com você, tá? Vou tomar banho e trabalhar
porque você já está com a vida ganha.
Arrumei-me para o trabalho, mas antes de sair, a curiosidade me
levou até a varanda. Eu tinha a esperança de ver a minha deusa de novo,
mas não vi qualquer sinal dela. Ao invés disso, avistei algo que me deixou
intrigada. A janela do apartamento dela estava quebrada, rachada, consegui
ver pelo reflexo. Eu tinha quase certeza de que na noite anterior ela estava
inteira.
— Estranho!
Caminhei até o parapeito e me debrucei sobre ele. Apertei os olhos
para tentar enxergar algum movimento, mas não deu para ver nada. Mesmo
assim, ainda passei alguns minutos esperando e pensando no que poderia ter
acontecido justo na noite que dormi profundamente.
Um tempo depois me dei conta do quão aquilo era ridículo e resolvi
sair de casa.
O dia transcorreu sem grandes emoções no hospital, o que me
deixou verdadeiramente entediada. Nada de casos estranhos, apenas alguns
braços e pernas quebrados.
Gabriel me acompanhou no corredor, eu caminhava em direção à
emergência.
— Tá havendo alguma manifestação hippie por aí, e todo mundo de
repente aderiu ao lema de paz e amor? Cadê os traumas de verdade desse
hospital? — comentei, frustrada.
— Hoje eu não vou reclamar disso. Ressaca desgraçada! —
respondeu, massageando as têmporas com as pontas dos dedos.
— Bem feito! Quem manda farrear em véspera de plantão?
— Ah, lá vem a dona certinha me encher. Me erra, Di!
Sorri irônica.
— Mas, e aí, me conta, pegou as gatas?
— Que nada! Marina até deu mole, mas não tive estômago.
— Sei!
— Juro, cara! Aquela ali, nem com muita cachaça na cabeça.
Mulher chata da porra, se acha! Eu tentei com a Jéssica...
— E aí? — perguntei, sorrindo.
— E aí que você empatou minha foda, né, doutora gostosa? A
mulher só se aproximava de mim pra perguntar de você.
— Fazer o quê, né? Só engula o recalque e aceite. — disse, rindo
mais da cara dele do que do assunto em si.
— Metida!
Rimos juntos e fomos interrompidos pela chegada do sempre mal-
humorado doutor Jales, que nos fez engolir o riso quando falou com aquele
jeito irônico irritante:
— Desculpem atrapalhar a festinha, mas sou obrigado a lembrá-los
de que os senhores estão de plantão e há pacientes precisando de assistência
na emergência.
— Sim, doutor, já estamos indo pra lá. — respondi, segura.
Gabriel morria de medo dele e não conseguiu falar nada. Apenas
aquiesceu meneando a cabeça, e voltamos a andar.
— Doutora Diana? — me chamou e virei para atendê-lo.
— Pois não, doutor Jales?
— Quero a senhora na ala de desembarque das ambulâncias junto
com a doutora Marina. Está chegando um paciente com um ferimento à bala
acima do peito esquerdo. Ela foi designada para atendê-lo, mas quero que
você participe da cirurgia. É um caso delicado, e a senhora é mais
experiente.
Ódio! Sério que vou ter que trabalhar com aquela metida?
Precisei me concentrar para não revirar os olhos e manter o tom
impassível.
— Posso atendê-lo sozinha, então, doutor. Doutora Marina fica
disponível para um caso mais simp...
— Se ela não participar, nunca vai aprender. Confio no seu
profissionalismo para orientá-la, doutora.
— Mas, doutor...
— Sem "mas", doutora Diana. A ambulância deve estar chegando.
Vá para lá imediatamente. — disse, autoritário, e saiu sem me dar margem
para resposta.
Filho da puta arrogante!
Cheguei à ala de desembarque e logo vi a Marina. Não consegui
disfarçar a minha cara de frustração, e ela não conseguiu disfarçar a de
satisfação. Sabia que eu não gostava dela, mas que teria que engoli-la.
— Bom dia! — cumprimentei, sem vontade.
Ela sorriu irônica antes de responder:
— Pra mim, sim. Já pra você...
— É! — respondi, indiferente, queria mesmo que ela fosse muda.
— Olha, Diana, se eu fosse você engoliria logo essa frustração aí,
porque não tem jeito. Hoje vai ter que me aguentar.
Nem me dei ao trabalho de responder, apenas revirei os olhos. Ela
insistiu:
— Nossa! O que eu te fiz, hein, garota? Isso tudo é inveja por eu ser
quem sou?
Franzi apenas o queixo numa careta, tentando ignorar aquela
desnecessária, já impaciente. Aquela maldita ambulância que não chegava.
— Por eu ser uma Bonfim, quase dona desse hospital... segura o
recalque, quem sabe assim você consiga aceitar isso.
Ouvi a sirene da ambulância chegando e vibrei quando freou bem
perto de nós, calando aquela imbecil.
Os socorristas abriram a porta e começaram a falar:
— Homem de cinquenta e sete anos, ferimento a bala no ombro
esquerdo. Está consciente e estável, mas não responde às perguntas. PA
90x50.
Aproximei-me da maca na intenção de verificar o monitor para ter
mais informações, mas quase caí para trás quando vi quem era o paciente.
Não é possível! Tio Augusto?
Sim, era ele mesmo, meu tio, irmão do miserável do meu pai. Entrei
em pânico, não queria que ele me visse. Dei dois passos para trás antes que
ele me olhasse.
Não fazia ideia se o maldito Afrânio sabia do meu paradeiro desde
que fui embora de São Paulo, mas se sabia, ainda não havia me procurado, e
eu queria que as coisas continuassem assim.
Marina me olhou sem entender o que se passava. Não tinha outro
jeito, precisei pedir ajuda a ela:
— Marina, não posso atender esse homem. — disse, nervosa.
— Por quê?
Não podia falar o real motivo para ela, menti:
— Eu... eu... não tô me sentindo bem, acho que estou tendo uma
queda de pressão.
— Sério, Diana? — perguntou, impaciente. — Seu problema é
comigo, deixa dessa bobagem.
Porra de guria chata do caralho!
— Olha, eu vou lá dentro pedir ao Gabriel que entre na cirurgia com
você...
— Eu posso fazer isso sozinha, não entendo esse excesso de cuidado
do Dr. Jales.
— Ele é o chefe e vai ficar uma fera se desrespeitarmos uma ordem.
Além disso, por mais que se ache, você ainda está no primeiro ano da
residência. Vou indo, o Gabriel vai encontrar você no centro cirúrgico.
Entrei e expliquei rapidamente tudo ao Gabriel, e ele se apressou em
sair.
— Não deixa aquela açougueira encostar um dedo no meu tio, Biel.
Não sei se ele está aqui a mando do traste do meu pai, mas eu gosto dele.
— Relaxa, eu cuido de tudo. Melhor você ir embora ou o Jales vai
desconfiar.
— Não vou, preciso de notícias. Vou ficar na sala de descanso e
você me procura assim que acabar.
— Tá bom!
Fiz malabarismo para fugir do Jales e me tranquei em uma sala.
Deitada na cama, lembrei da minha infância. Tio Augusto sempre foi muito
gentil comigo, me visitava constantemente e sempre levava presentes.
— E então, princesa, já decidiu o que vai ser quando crescer?
— Sim, quero ser médica e salvar vidas. Igual a você, o papai e o
vovô. — falei, no colo dele, em um banco do jardim da minha casa. Mamãe
nos observava de longe, sorrindo.
Lembrei que ela sempre ficava feliz quando tio Augusto nos
visitava, e isso me deixava feliz também.
— Que orgulho, minha linda! Você vai ser uma grande médica,
tenho certeza. E pra você já ir se acostumando, vou te dar um presente.
Abriu a maleta dele, que estava do lado, e tirou de dentro um
estetoscópio.
— Toma, pra você. Mas tem que cuidar muito bem dele, tá? Foi do
seu avô, ele me deu logo que eu entrei no programa de residência. Você
pode cuidar dele pra mim?
Peguei o objeto encantada e muito feliz pela responsabilidade que
ele estava me passando. Senti-me importante.
— Claro, tio Gu! Pode deixar.
— Isso vai te ajudar a salvar várias vidas.
Sorri feliz. Olhei para a minha mãe, que sorria também, de braços
cruzados.
— Olha isso, mamãe!
— Eu vi, meu amor! Você ainda vai dar muito orgulho pra todos nós
com isso.
Fui tirada das minhas lembranças pelo toque do meu celular. Era
Gabriel avisando que meu tio estava fora de perigo.
Alívio.
Não tive coragem de visitá-lo. Eu sentia falta dele, não acreditava
que fosse igual ao meu pai, mesmo assim estava com medo. Optei por me
proteger.
Voltei ao trabalho dizendo que me sentia melhor. Levei bronca do
Jales, mas foi preciso.
Dispensei um investigador que queria interrogar meu tio, dizendo
que ele estava em repouso. Orientei a voltar no dia seguinte.
Finalmente o plantão acabou. Antes de sair, passei no quarto e
observei, do canto da porta, o sono dele.
O que será que aconteceu? O que ele fazia ali naquela cidade? Será
que foi um assalto aleatório ou uma tentativa de homicídio?
Me assustei com a segunda possibilidade. Dirigi até em casa imersa
em meus pensamentos. Maquinei milhares de teorias sobre a situação, mas
não cheguei à conclusão de nenhuma.
Deixando o tiro de lado, voltei a me perguntar o que ele fazia ali, em
Vila dos Lírios.
Será que veio atrás de mim a mando do meu pai?
Não, eu estava sendo paranoica. Se meu pai quisesse me encontrar,
não teria qualquer dificuldade, e meu tio não fazia o tipo que se curvava ao
poder do doutor Afrânio. Decidi que no outro dia o visitaria.
Entrei em casa e dei de cara com Luís Otávio e seu olhar julgador.
Nem deu boa noite, apenas falou:
— Fome.
Sequer cheguei a tirar a chave da porta, dei meia volta e desci.
Resolvi ir ao mercado a pé, não era tão longe, e eu estava precisando
respirar um pouco de ar fresco.
Caminhei até a gôndola onde estavam os sachês e procurei os
sabores favoritos do meu gato mimado.
Ouvi o barulho de algo caindo no chão e olhei na direção do som.
As gôndolas eram baixas e dava para ver as pessoas nos outros corredores,
mas não vi ninguém.
Quando já ia voltando a atenção para a prateleira dos sachês, vi uma
mulher se levantando com uma lata na mão. Ela percebeu o meu olhar e me
encarou de volta.
É ela. Será?
Meu queixo caiu, ela lembrava muito a minha deusa do apartamento
em frente. Mas eu não tinha como ter certeza e tampouco perguntaria.
Fiquei ali, parada, com cara de boba, encarando-a. Não sei dizer se
durou um segundo ou um minuto, mas sei que mais uma vez, exatamente
como na noite anterior, meu coração quis sair pela boca.
O olhar dela não me dizia nada. Tinha um semblante cansado, um ar
triste, um pouco melancólico, talvez, mas me olhava intensamente.
Quase falei, mas antes de conseguir, ela quebrou o contato, pegou
suas compras e se dirigiu ao caixa. Fiz o mesmo, mas fui para outro caixa,
bem distante do dela.
Quando saiu, fui atrás, resolvi segui-la de longe. Precisava saber se
era a minha garota.
Não errei, era ela mesma. Vi quando entrou no prédio em frente ao
meu e fiquei feliz. Subi correndo, sequer dei atenção para as baboseiras do
Luís Otávio. Apenas servi a maldita comida e corri para a varanda para
esperá-la. Fiquei observando por trás da cortina. Ficaria ali a noite inteira,
se precisasse, esperando por ela.
4 – Infância

Bárbara

Eu tinha uns doze anos de idade quando fui acusada de algo que não
fiz e descobri minha fúria interna. Meu meio irmão teve a audácia de dizer
que eu havia batido nele quando minha mãe e meu padrasto estavam fora.
Ele ainda mostrou um machucado no braço.
— Isso é mentira, mãe! — disse, em vão, ela não só deixou aquele
maldito do Ramalho me bater como fiquei de castigo por uma semana
servindo a todos e sem poder sair de casa.
Eu odiava o meu irmão. Meu pai se mandou quando minha mãe
estava grávida de mim. Eu a ouvia xingá-lo quase sempre.
— Ele foi só o desgraçado que me engravidou, nunca o amei. —
disse, durante uma discussão com meu padrasto, aquele outro maldito.
Ramalho era um escroto, e minha mãe não tinha um pingo de amor
próprio. Quando ele bateu nela pela primeira vez, eu fui para cima dele e
desmaiei. Não me lembro de nada depois disso, apenas apaguei. Acordei na
minha cama um tempo depois, totalmente desorientada. Lembro de ter
sonhado várias coisas confusas, havia cavalos e girafas. Então pode ter sido
delírio.
— Filha? — minha mãe chamou ao entrar no quarto. — Tá melhor?
— O que aconteceu, mãe? — tentei tocar em seu rosto machucado,
mas ela se esquivou.
— Tô bem, filha! Você me defendeu do Ramalho, bateu nele. Não
faça mais isso, ele é grande e pode machucar você. — disse, de forma
carinhosa, coisa que quase nunca era.
Eu não me lembrava de nada daquilo, por isso não acreditei muito
no que ela dizia, mas o desgraçado entrou no quarto com o pescoço
enfaixado. Eis o motivo do carinho da minha mãe comigo: medo de que eu
denunciasse aquele miserável.

As lembranças da minha infância, de quando e como tudo começou,


flutuavam pela minha mente enquanto a água descia pelo meu corpo, tão
quente que eu sentia arder as minhas costas. Apesar de tudo, a minha mãe
era a pessoa que eu mais amava na vida, mas isso parecia não valer nada
para ela, já que foi capaz de fazer o que fez para defender aquele
desgraçado, me obrigando a fazer o que fiz para me defender daquele
maldito.
Perto da minha casa tinha um prédio todo feio, pichado, janelas
quebradas e com marcas de infiltrações. Aquilo dificultava mais ainda o
aluguel dos apartamentos e só dava dor de cabeça para o dono do imóvel,
pois só atraía quem não podia pagar. Até que o filho dele assumiu a parada
e resolveu fazer uma reforma. Não tirou infiltrações, apenas pegou uma
tinta em promoção, raspou as paredes de qualquer jeito e pintou, depois
arrumou as janelas. Eu observei todo aquele processo e fiquei pensando se
alguém acreditaria que aquilo era um bom lugar para morar, mas deu certo,
o novo proprietário não só alugou todos os apartamentos como conseguiu
um bom valor por cada um deles.
Aquilo foi uma grande metáfora para a minha própria vida, pois
quem vê cara não vê o ódio que cada um traz dentro de si e eu era prova
viva daquela afirmação.
Eu sou uma janela quebrada, mas de um prédio muito forte. Sou
facilmente subestimada!
Naquela época, comecei a brigar para não sofrer maus tratos até fora
de casa. As marcas das pancadas daquele maldito ainda doíam quando
decidi que não aceitaria aquilo mais.

Voltei para o presente e lembrei da minha maldita, Ingrid. Minha


mãe sempre foi dependente do Ramalho, era fraca e carente demais para
ficar um dia sozinha, mas não era o meu caso. Eu só não fugia dali porque
estava nas mãos daquela louca.
Toquei na minha cabeça, no local onde atingi a janela, e senti um
galo.
— Você me paga, sua desgraçada! Paga sim. Todos pagam. —
Engoli saliva, mas queria engolir as lágrimas que insistiam em sair.
Quase engasguei de susto quando aquela infeliz esmurrou a porta do
banheiro.
— Vai acabar toda a água do mundo num banho só? — indagou, aos
berros, com a voz rouca de tanto gritar.
Desliguei o chuveiro, respirei fundo e peguei uma toalha. Abri a
porta e a vi ali, na frente, me impedindo de passar.
— O que foi? Chorou por quê? — perguntou, sarcástica, e tentou
tocar na minha cabeça.
— Não me toca! — Empurrei sua mão e passei por ela, que quis
berrar de novo.
— Olha como fala comigo, pirralha!
— Não chega perto de mim, Ingrid! — pedi e sem deixar que visse
meu corpo coloquei uma roupa, rapidamente.
Não tinha me secado, e a umidade do meu corpo fez a blusa grudar e
não vestir direito. Mais uma vez fui levada de volta à minha infância.

Eu adorava tomar banho de chuva, mas minha mãe nunca deixava,


sempre falava que eu ia ficar doente. Quando chovia, eu corria para a rua
enquanto ela estava no trabalho; para não ficar doente, eu me secava
rapidamente e tentava entrar na roupa seca, que sempre grudava no meu
corpo e não vestia facilmente.
Num desses dias de chuva, o trabalho da minha mãe foi atingido por
uma enchente e ela chegou mais cedo em casa. Me flagrou na rua. Apanhei
tanto que ainda tenho a cicatriz na coxa esquerda.
— Já falei para não tomar banho de chuva. Na próxima vez eu te
coloco pra ser levada pela enchente. — ameaçou e por algumas vezes eu
desejei mesmo ser levada por uma enchente para bem longe de lá.
Quando eu cheguei à adolescência sentia vontade de matar pessoas.
Era uma vontade tão grande que eu evitava ficar perto de gente. Tinha um
cachorro, o Lecter, era meu melhor amigo. Se ele fosse o único ser vivo que
existisse, além de mim, eu seria a pessoa mais feliz do universo.
Eu o achei na rua, todo machucado. Alguém havia batido muito
nele. Claro que minha mãe não me deixou ficar com ele, mas insisti e cuidei
dele escondida. Quando ela descobriu, me obrigou a dormir no quintal junto
com ele, que chorava muito. Quando ficou um pouco maiorzinho, parou de
fazer tanto barulho e ajudava até a afastar bandidos da casa.
— Não crio ele pra ser o cão de guarda de vocês! — falei, quando o
meu padrasto disse que ele ficaria na coleira e aprenderia a ser feroz para
proteger a casa, o que implicava em maltratá-lo para que ficasse agressivo.
Não deixei, claro. Apanhei, claro. Mas meu padrasto não foi homem
suficiente para me enfrentar.
Quando dei meu primeiro beijo em um garoto, foi horrível, ele
enfiou a língua na minha boca e senti muito nojo, quase vomitei nele.
Não foi ali que soube sobre minha sexualidade, mas quando senti
desejo por uma menina da minha rua. Ela era toda na dela, não falava com
ninguém, mas era linda. Não me apaixonei, só senti uma vontade imensa de
beijar aquela boca e saber o que ela escondia por baixo daquela roupa
comprida.
— Está de amizade com a filha da crente, é? — Minha mãe
perguntou, debochando.
Kesia era estudiosa e muito caladona. Me aproximei dela e nos
tornamos amigas. Um dia tomei coragem e a beijei. Ela se assustou, mas
depois me beijou também. Tinha o cabelo grande, não era cacheado nem
liso, era meio ondulado, sei lá.
Minha primeira experiência sexual com uma mulher foi com a
Kesia, que disse que me amava logo na primeira vez. Aquilo me fez ficar
com medo e eu quis me afastar, mas não precisei. O pai dela descobriu que
estávamos juntas e se mudaram de lá. Eu achei melhor, assim eu não a faria
sofrer. Ela queria ir embora comigo e eu não estava nem um pouco a fim de
fazer aquilo.
Lembro que chorei muito quando vi o Lecter morto, eu tinha 15
anos de idade. Desde então não tive mais cachorro e nem confiei em
ninguém.
O pior momento da minha vida, depois de ver Lecter morto, foi
quando o maldito do meu padrasto, bêbado, assumiu que o havia matado
envenenado. Naquele momento nasci outra vez e passei a maquinar a morte
do desgraçado.
— Ela não fez nada comigo, e nem vai fazer, logo ela já pode ser
presa. Se chegar perto de mim, eu chamo a polícia. — Ouvi o miserável
falando com minha mãe, que sequer o repreendeu ao saber do assassinato
do Lecter.
Passei duas semanas alimentando a minha fúria e planejando a
minha vingança.
— Vai ficar sem falar comigo? — Ingrid, mais uma vez berrando,
me tirou do meu devaneio.
— Me deixa, Ingrid. Só quero ficar em paz. — respondi, tomando
um gole do café, forte e sem açúcar.
— Se quisesse paz não teria me enfrentado. — desafiou, enquanto
comia um pedaço grande do bolo que eu havia feito mais cedo.
Eu era a faz-tudo da casa, arrumava, cozinhava; eu faria tudo aquilo
tranquilamente se ela me deixasse em paz.
Quando conheci Ingrid, seis meses antes, ela era mais magra. Não
sei se por preguiça de fazer comida ou simplesmente porque gostava de si.
Talvez a primeira opção fosse a mais viável. O fato é que ela engordara
quinze quilos depois que cheguei e de forma bem irresponsável. Não tem
problema ser gorda, pois tem gente que vive uma vida saudável, o que não
era o caso da Ingrid, ela me obrigava a fazer de tudo e comia como se não
houvesse amanhã; não tinha hora nem o quê, ela comia desesperadamente.
Eu cozinhava sempre, raramente pedíamos algo fora. E ela era
viciada na minha panqueca. Eu me sentia como naqueles desenhos
animados, imaginando-a inchando igual à massa fermentada e me enchia de
alegria. Se eu tivesse sorte, aconteceria igual aos cartoons e ela explodiria.
Teria alguma doença ou enfartaria de tanto sedentarismo e quando eu
conseguisse o que queria, ela apenas morreria sozinha naquela casa,
gritando com a mãe, como sempre fez.
Não era raro me ver sair de noite para comprar ingredientes para as
malditas panquecas, que eu não aguentava nem sentir o cheiro mais.
— Por que não come comigo?
— Já comi. Obrigada! — mentia, sempre.
Eu fazia umas cinco, e ela comia todas, tomava dois comprimidos,
ambos tarja preta, e dormia, quando eu tinha sorte.
Eu já conhecia todos os funcionários dos mercados, pois sempre
comprava produtos aos poucos. Se eu precisasse de 200g de queijo para
fazer algo, eu saía e comprava apenas os 200g de queijo.
— Por que não fazer as compras do mês, Ingrid? — perguntei,
cansada, pois já havia ido ao mercado três vezes naquele dia. Isso ocorreu
no terceiro mês que eu estava na casa dela.
— Pra você ir embora com o dinheiro das compras na primeira
oportunidade? — retrucou, sorrindo.
— Não vou fazer isso e você sabe muito bem o porquê.
— É, eu sei, mas é tão bom te fazer de menino-de-recado... — disse,
se divertindo, eu respondi com um sorriso.
Se um sorriso fosse capaz de matar alguém, ela teria morrido ali
sentada naquela cadeira.

Toquei mais uma vez no Lúcifer, meu galo, eu gosto de colocar


nomes nas coisas, faz com que eu me sinta mais humana e me deixa mais
meiga.

Cortina fechada porque a rainha da chatice estava dormindo.


Consegui ver a janela da vizinha, ainda fechada também. Fiquei
observando, como sempre fazia, e me afastei involuntariamente quando a vi
sair na varanda e olhar diretamente para mim, embora eu soubesse que não
havia possibilidade de me ver. Fiquei ali, observando-a.
É linda demais!
Ela ficou um tempo olhando para minha janela e depois foi embora,
eu a acompanhei com os olhos através do vidro quebrado, logo sumiu.
Arrumei a casa, fiz almoço e mais uma vez planejei sair dali. Peguei
um livro e o li quase todo antes que Ingrid acordasse.
Estava lendo na varanda quando o gato da vizinha gata miou e pulou
perto de mim.
— E aí, Luís! — disse e acariciei o queixo dele, que miou manhoso
se roçando em mim.
Carregava uma plaquinha com o nome Luís Otávio no pescoço.
Tomei um susto quando ele pulou naquela varanda pela primeira vez.
Estava cheia de raiva, mas ao vê-lo voltar para casa, notei que sua dona era
a perfeição em pessoa. Desde então, meu hobby preferido passou a ser
observá-la. Todo dia ele me visitava e sempre ia embora quando Ingrid
acordava.
Naquele dia, ela acordou quase onze da manhã, parecia um
presidiário. Tomou café e duas horas depois almoçou, o suficiente para
alimentar dois peões de obra.
— Está lendo o quê?
— Romance, tua mãe me emprestou. — respondi, seca, quando
peguei o livro novamente.
— Preciso que leia um livro pra mim.
— Quê?
— Eu estou com a consulta de vista atrasada e não posso ler, então
já que gosta tanto de ler, vem ler pra mim.
Puta que pariu, viu?
O livro era sobre Direito. Eu só gostaria de saber quando eu havia
morrido porque aquilo era um inferno. Li em voz alta até cansar, pois ela
ficava me infernizando para não parar e para repetir quando não entendia.
Chegava a repetir três vezes a mesma coisa e às vezes tinha que explicar.
— Você era advogada, Ingrid. Não faz sentido ter esquecido até o
significado das coisas.
— Só leia, não discuta!
Li por mais um tempo até que ela ouviu a voz da mãe conversando
com alguém e desceu para o apartamento dela.
Passou exatos trinta minutos lá. Só deu tempo de vasculhar o
armário que eu já podia mexer e algumas gavetas. A infeliz escondia a
chave da outra parte. Olhei nas gavetas da mesinha de cabeceira, mas sem
sucesso.
Quando anoiteceu, ela já começou a procurar algo no quarto de
cima. Ingrid era completamente louca. Eu fiquei vendo noticiário na TV.
— Quero panqueca de morango! — disse ao entrar de súbito, como
sempre fazia. — Meia hora, hein?
Ela calculou e me passou o dinheiro contado. Saí para comprar o
morango, estávamos sem farinha também.
Cheguei, e as meninas já me cumprimentaram. Eu sorria, com
algumas eu trocava beijo no rosto. Peguei um carrinho apenas por pegar,
pois eu nunca comprava muita coisa.
Procurei a farinha e ao levantar os olhos vi a vizinha. Senti uma
espécie de sufocamento, meu coração acelerou. Era ela mesma, a poucos
metros de mim. Atropelei uma gôndola e caiu alguma coisa lá. Eu queria
passar perto dela, mas estava parecendo uma retardada, chamando a atenção
sem querer.
Cheguei ao corredor em que ela estava. Para disfarçar, agachei e
peguei uma lata de ração para filhote de cachorro, que estava caída ali.
Não pude evitar aquele contato tão próximo, olhei em seus olhos,
achei que não fosse conseguir respirar mais, pois prendi a respiração e
fiquei ali encarando aquela loura que era mais linda ainda de perto.
Parecia um sonho vê-la ali a centímetros de mim.
Meia-hora.
Lembrei das palavras da Ingrid, peguei um sachê qualquer e corri
para o caixa. Deixei o sachê por lá mesmo e saí quase correndo, aquela
louca iria infernizar a minha vida se eu demorasse. Notei que estava sendo
seguida, já me preparei para reagir, caso fosse algum assaltante, mas era a
vizinha.
O que pretende fazendo isso?
Sorri e continuei andando, cheguei em casa e entrei rapidamente.
Precisei esperar que Ingrid dormisse para poder ir até a janela.
A maldita apagou depois de meia-noite, fui até lá e vi. Eu quis
acreditar que ela queria me ver, mas seria pretensão demais. Fiquei olhando
enquanto ela lia como sempre na varanda.
Eu estava embevecida com aquela imagem linda quando ela largou
o livro e me olhou diretamente. Tremi, mas sustentei o olhar. Ela sorriu,
sorri de volta, nervosa. Os cachorros da rua latiram agitados e por reflexo
olhei para baixo. Foi quando avistei um homem chegar perto da casa dela,
observar tudo e se afastar falando ao celular. Meu estado de alerta ativou na
hora.
5 – Fuga

Diana

Olhei um tempo por trás da cortina, mas ela não apareceu.


Desencanei e fui tomar banho. Admito que fiquei meio frustrada, mas o que
eu poderia fazer? Talvez fosse apenas coisa da minha cabeça, ela
provavelmente não estava me observando.
Deixa isso pra lá, Diana!
Fui à cozinha preparar algo para comer. Luís não estava lá, claro.
Depois de se empanturrar de comida, com certeza tinha ido dormir.
Enquanto eu comia e tentava tirar a vizinha da cabeça, voltei a
pensar no que poderia ter acontecido com o meu tio para tomar aquele tiro.
Ele era um homem bom, não acreditava que fosse capaz de se envolver com
nada ilícito, então provavelmente devia ter reagido a um assalto ou coisa do
tipo. Também estava curiosa sobre o motivo de ele estar na cidade.
Ele e meu pai, embora muito parecidos fisicamente, tinham
comportamentos completamente opostos. Tio Gu era gentil, carinhoso
comigo, enquanto o Afrânio era seco e frio. Com a minha mãe, então, nem
se fala, era arrogante e violento.
Uma vez tio Augusto chegou lá em casa no meio de uma discussão
entre meus pais, eu assistia tudo do topo da escada, meio que me
escondendo, porque morria de medo de apanhar também ou que ele
descontasse nela. Quando eles começavam a brigar, eu travava, ficava
imóvel, sem como reagir, tremia impotente. Ele entrou quando o asqueroso
do meu pai levantou a mão para bater na minha mãe e o impediu,
avançando sobre ele.
— O que pensa que está fazendo? Não interfira nos meus assuntos,
Augusto. Cuide da sua própria vida. — disse após ser arremessado no sofá.
— Você perdeu o juízo? Que covardia é essa, batendo em mulher...
na sua mulher? Olha pro teu tamanho, Afrânio!
— Isso não é da sua conta. Como mesmo disse, é a minha mulher...
e esta é a minha casa. Saia daqui.
A discussão entre os dois se intensificou ao ponto de levá-los a uma
briga física. Os dois se atracaram no meio da sala, tio Augusto levou uns
socos, mas bateu bem mais do que apanhou.
— É diferente quando a outra pessoa consegue se defender, né, seu
desgraçado? — disse, em tom irônico e saiu, ofegando.
— Seu imbecil, você me paga! — Meu pai esbravejou do chão.
Minha mãe, àquela altura, já havia corrido dali apavorada. Não sei
para onde ela foi, mas entendi o sumiço. Eu teria feito o mesmo.
Continuei no mesmo lugar, observando aquele miserável tentando se
levantar, todo quebrado, não mais travada, já me deliciando com o desfecho
daquela cena. Senti vontade de rir da cara dele, finalmente estava pagando
um pouco pelo que fazia com a coitada da minha mãe. Quando ficou de pé,
pegou o telefone e ligou para alguém. Não entendi direito sobre o que
falava, ele abafou a voz e baixou o tom, mas vi que mencionou o nome do
meu tio. Depois disso, saiu.
Mamãe passou dois dias sem aparecer em casa, mas no mesmo dia
em que saiu, me ligou.
— Filha, mamãe não pode mais voltar pra casa. Por favor, entenda.
— Eu entendo, mãe, mas... e eu? Vai me deixar aqui com ele? Eu tô
com medo. — falei, chorando.
— Fique calma, meu amor! Ele não vai fazer nada contra você.
Vamos fazer assim: arrume uma mala com o básico, e seu tio vai te buscar
em dois dias. Não deixe ninguém ver, e evite ficar perto do seu pai. Eu amo
você.
— Tá bom, mamãe. Também te amo!
Fiz o que ela ordenou, mas em dois dias, ao invés de o tio Augusto
ir me buscar, meu pai a trouxe de volta. Lembro que ela chorou por vários
dias, ficou trancada no quarto sem querer comer ou ver ninguém.
Pouco tempo depois soube que ela havia sido diagnosticada com
câncer de mama. Quase morri, queria já ser adulta e ter me formado para
poder salvá-la e chorei frustrada, me sentindo impotente.
O mais estranho foi a evolução do quadro dela. Do dia para a noite,
após iniciar o tratamento, ela ficou muito debilitada. Mesmo assim, aquele
monstro não se compadecia, continuava a machucando. Finalmente
destravei, e completamente trêmula e ofegante, avancei em cima dele, que
me jogou longe.
— Não seja insolente, menina! Eu sou seu pai.
— É, mas eu preferia que não fosse. — gritei em meio aos soluços
causados pelo meu choro nervoso. — Tenho ódio de ser sua filha, você é
horrível.
— Pois engula o seu ódio e me respeite, porque sou o seu pai. Saia
daqui agora mesmo, vá para o seu quarto e fique lá, ou vai sobrar pra você
também.
Atrevida, ignorei a ordem dele e peguei um vaso para acertá-lo, mas
ele foi mais rápido em tomar da minha mão e me dar um tapa que me fez
cair. Minha mãe entrou em desespero.
— Filha, obedeça, vá pro seu quarto. — pediu, nervosa e em
lágrimas.
Eu estava chorando também, vi que não tinha forças contra ele e
finalmente saí. Mas não ficou barato, liguei para o meu tio, que em poucos
minutos apareceu para socorrer a minha mãe. O desgraçado já não estava
mais lá quando ele chegou, minha mãe estava caída no chão, cheia de
hematomas, a boca sangrando. Ela chorava de dor.
Fomos para o hospital, ela ficou dois dias internada. Dois meses
depois, morreu. Lembro que chorei muito, mais de ódio do que de tristeza.
Meu tio me confortou, me abraçou e me pediu para ter calma.
— Ele matou minha mãe, tio! — falei, abraçada a ele, soluçando em
seu peito.
— Não diga isso, princesa. Não em voz alta, acalme-se.
— Mas ele matou, precisa ser preso.
— Diana, não é assim que as coisas funcionam. Fique calma, meu
amor, por favor! A justiça sempre é feita, de um jeito ou de outro. Então
não se preocupe, ele vai pagar por tudo que fez à sua mãe.
— Eu não tenho mais ninguém, estou sozinha. — falei,
intensificando o choro.
— Não é verdade, eu amo você e nunca vou te abandonar.
O som dos cachorros da rua latindo me trouxe de volta ao presente.
Eu estava em lágrimas, evitava lembrar da minha mãe, aquilo me
maltratava demais. Mas a presença do tio Augusto trazia tudo à tona. Senti
vontade de vê-lo imediatamente, queria aquele abraço caloroso que sempre
me acalmava, mas resolvi esperar pelo dia seguinte mesmo.
Tentei limpar aqueles pensamentos tristes da mente e imediatamente
voltei a pensar na vizinha.
Linda demais! De perto pude ver a perfeição.
Caminhei até a varanda e não a vi. Fiquei reticente em ficar lá, tinha
medo de que ela desconfiasse que eu a estava observando, mas aquela era a
minha rotina. Eu ia para a varanda quase todas as noites, então, por que agir
diferente?
Peguei um livro e sentei. Comecei a folhear sem dar atenção, apenas
fingia ler. Cerca de dez minutos depois notei uma movimentação na janela
dela, olhei tentando disfarçar e a vi.
Engraçada era a sensação, como se tivesse sido pega no flagra.
Ruborizei, senti isso quando meu rosto ardeu. Fiquei muito nervosa,
coração palpitando, mãos suando.
Queria olhá-la diretamente, mas tive vergonha. Lembrei do contato
no mercado, aqueles olhos intensos e tristes.
Consegui segurar a minha vontade por um tempo, mas depois não
resisti e a encarei. Ela estava me olhando e aquilo fez minha boca secar.
Passei por cima do meu receio e larguei o livro, me levantei e fui até o
parapeito para olhá-la direta e descaradamente. Ela não desviou, sorri
nervosa e acho que ela sorriu de volta. Não um sorriso aberto, mas um meio
sorriso, quase forçado. Logo em seguida olhou para a rua e pareceu se
assustar com algo. Virou-se subitamente e saiu.
Fiquei sem entender nada. Olhei para baixo, mas estava tudo
deserto. O único sinal de vida ali era o barulho dos cachorros da rua latindo,
estavam muito agitados aquela noite. Esperei por cerca de meia hora ainda,
mas ela não apareceu de novo. Frustrada, entrei e fui tentar dormir. Não tive
muito sucesso.

Na manhã seguinte, cheguei mais cedo no hospital, queria ver meu


tio antes do plantão começar. Fui ao quarto e vi Gabriel o examinando.
Falava com ele, que não respondia, apenas o olhava.
— Bom dia! — falei, baixo.
Gabriel se virou e me cumprimentou com um aceno de cabeça. Me
aproximei da cama e ele virou para me olhar. Quando me viu, abriu um
largo sorriso.
— Minha filha! — sussurrou e buscou a minha mão.
Uma lágrima escorreu pelo rosto dele, que sempre me chamava de
"filha", e eu amava isso. A verdade é que sempre quis que ele fosse meu
pai. A minha vida e a da minha mãe certamente teriam sido bem diferentes.
— Tio Gu! — disse, carinhosamente e sorri, estava emocionada
também. Ele estava pálido.
Curvei o corpo para beijar o alto da cabeça dele, mas acabei o
abraçando, pois ele me puxou com o braço direito.
— Minha princesinha virou uma mulher. Que saudade!
— Saudade também! Como você está se sentindo?
— Bem! Não foi dessa vez ainda...
Sorri e me afastei um pouco, nem lembrava que Gabriel estava lá, só
notei quando ele falou:
— Pelo menos agora que te viu ele está falando.
— Por que esse silêncio, tio? — indaguei, curiosa.
— Doutor Gabriel, será que posso ter um momento sozinho com a
minha sobrinha?
— Claro, doutor Augusto. Com licença!
Gabriel me olhou curioso e depois saiu.
— Diana, ninguém pode saber que estou aqui.
— Ué, por que não? O que tá havendo? Você sabe que a polícia está
lá fora querendo te interrogar, não sabe?
Ele arregalou os olhos e seu semblante ficou assustado.
— Você precisa dar um jeito de me tirar daqui antes disso, por
favor!
Franzi o cenho confusa, ele não parecia estar brincando.
— Tio, você sabe quem atirou em você?
— Sei, mas não é seguro falar. Só posso dizer que se não me tirar
daqui imediatamente, o atirador vai me achar e pode ser que não falhe dessa
vez.
Levei as mãos à boca em um ato nervoso. Estava muito assustada,
senti meus olhos embaçados.
— Você confia em alguém nesse hospital, filha?
— Quê? Como assim, o que...
— Diana, confie em mim, por favor. Logo você entenderá tudo. Só
faça o que eu te disser, ok?
— Ok!
— Esse rapaz, Gabriel, você confia nele? Ele pode nos ajudar?
— Sim, eu confio.
— Então vamos fazer o seguinte...
Mesmo confusa e assustada, ouvi as orientações e as segui. Eu
confiava muito nele quando era criança e nunca me decepcionei. Não seria
possível que ele tivesse mudado.
Saí do quarto e procurei Gabriel, que ouviu o plano e não hesitou
em ajudar. Ele foi até a recepção e deu um jeito de se livrar da polícia,
depois foi para o quarto preparar o tio Gu para que pudesse sair sem
maiores traumas, devido ao estado dele.
Eu precisava conseguir medicação e material para tratá-lo em casa,
além disso, tinha que conseguir roupas para que ele pudesse sair disfarçado.
Não tinha tempo para fazer as duas coisas e ainda por cima não poderia ser
vista pelo Jales, meu plantão estava para começar. Precisava de mais ajuda,
mas a quem eu pediria?
No corredor, cruzei com a Jéssica e resolvi me aproveitar do
sentimento dela por mim. Não me orgulho de ter feito isso, mas não tinha
outro jeito. Ela passou por mim com um sorriso no rosto e a puxei pelo
braço. Entramos em uma sala de materiais.
— Oi! — cumprimentei com um falso sorriso.
Estávamos muito próximas, e ela ruborizou.
— Oi! — respondeu simplesmente, meio confusa.
— Estou precisando de um favor... — falei baixo e dei um passo em
sua direção, ficando bem perto dela e continuando antes que falasse
qualquer coisa. — Será que pode me ajudar?
Suspirou profundamente, pude sentir o tremor do corpo dela.
Ótimo, está funcionando!
— Cla... claro. — gaguejou. — O que posso fazer por você?
Inventei uma desculpa qualquer para justificar o motivo de precisar
de roupas cirúrgicas, e ela foi buscar sem me questionar.
— Prontinho, aqui, do jeito que você pediu!
— Obrigada, linda! Nem sei como te agradecer. — Sorri e dei um
beijo estalado no rosto dela.
Fui saindo e a ouvi me chamar.
— Diana?
— Oi?
— O que acha de sairmos qualquer dia? — perguntou, muito
envergonhada, pois notei seu rosto vermelho.
Queria dizer não, mas que espécie de vaca eu seria se fizesse isso
depois de tê-la usado daquele jeito?
— Claro, vamos combinar.
Vinte minutos depois, tio Augusto saiu pela porta da frente do
hospital usando roupas cirúrgicas, máscara e touca. Eu já estava no
estacionamento, esperando com o carro ligado. Fomos para a minha casa,
eu o instalei no meu quarto, fiz o acesso, troquei o curativo, dei a
medicação e voltei correndo para o meu plantão. Felizmente o hospital era
perto de casa, e no intervalo do almoço eu voltaria para alimentar meu tio.
Mas somente a noite eu teria tempo de questioná-lo sobre aquela situação
absurda.
A manhã correu tranquila no hospital, ao meio-dia saí rapidamente,
passei num restaurante e comprei algo.
Entrei em casa, estava tudo calmo, meu tio estava de olhos
fechados, abriu-os quando sentiu minha presença. Como estava com muita
pressa, não demorei. Ele comeu direitinho e saí, deixando água perto dele.
Corri de volta ao hospital, pretendia voltar em umas três horas, mas acabou
não dando certo, entrei numa cirurgia e voltei pra casa depois das sete da
noite.
— Tio? — chamei ao entrar e fui ao quarto.
Ele não estava na cama. Já entrei em desespero. Chamei novamente,
procurando pela casa, até que o vi lavando as mãos na cozinha.
— Tio, que susto! Desculpa não poder ter vindo mais cedo. O que
houve? Não devia estar aqui. — falei e toquei em seu braço. Notei a blusa
suja de sangue. Afastei para olhar e o curativo estava encharcado. — Ah,
meu Deus, tio, o que houve?
— Estou bem, filha! Fique calma, eu só caí e...
Interrompeu a própria frase quando avistou algo através da janela.
Olhei na mesma direção e vi a vizinha. Eles estavam se olhando, mas no
instante em que a encarei, ela desfez o contato e saiu.
Estranho!
6 – Retribuição

Bárbara

Os cachorros das casas daquela rua geralmente eram quietos, mas


naquela noite parecia que eu estava na rua da minha antiga casa no Rio de
Janeiro. Lá, bastava o mínimo ruído e todos os cachorros do mundo
resolviam latir.
Vi aquele estranho observando o portão do prédio onde a vizinha
morava e saí da varanda. Desci correndo, tomando cuidado para não fazer
barulho. Peguei um casaco, cheguei lá fora a tempo de ver aquele homem
esquisito se afastando da entrada do prédio.
Esse meu instinto ainda vai me detonar um dia! — pensei, pois agia
por impulso como se tivesse superpoderes.
Era um prédio antigo, de quatro andares, varandas em todos os
apartamentos, mas com um recuo de uns cinco metros para garagem. A
vizinha morava no segundo, e de lá não era possível ver, caso alguém
estivesse perto do portão.
Segui disfarçadamente aquele estranho e o ouvi falar ao celular:
— Pelo que vi, ela mora aqui. A vi na varanda. O velho está no
hospital... não consegui entrar lá, está cheio de polícia... pode ficar
tranquilo, doutor.
Fingi estar ouvindo música por baixo do capuz do casaco e passei
por ele devagar. Ele não se intimidou com a minha presença.
— Eu vou dar um jeito nos dois, doutor. Nunca decepcionei, não vai
ser agora. — disse e desligou.
Eu atravessei a rua e fiquei observando até que ele entrou numa
pousada.
Eu me lembrei de quando cheguei naquela cidade, e fiquei
hospedada ali por uma noite apenas. Depois fui morar com a Ingrid. As
portas eram muito inseguras, com um cartão de banco eu consegui abrir
uma delas para buscar as minhas coisas, pois havia deixado a chave na casa
da Eulália.
Fiquei ali observando por um tempo, até que tudo começou a fechar
e voltei para casa.
O rosto daquele homem ficou gravado na minha cabeça. Ele
lembrava muito o meu padrasto. Cabelos ondulados, barba espessa, nariz
grande; não consegui ver a cor dos olhos, mas no geral parecia, ou eu queria
que parecesse, pois ele foi e sempre será referência de alguém asqueroso e
sem escrúpulos para mim.
Entrei em casa e fiquei na cozinha, abri a geladeira para pegar água
e por um instante esqueci o que havia ido fazer lá. A imagem horrenda do
meu padrasto chegou à minha mente de novo e voltei àquele tempo.
Eu estava dormindo no meu quarto e acordei sentindo o hálito podre
de cigarro e cachaça no meu rosto. Era ele, o nojento do Ramalho, estava se
deitando sobre mim. Comecei a me agitar e mencionei gritar, mas ele tapou
a minha boca com a mão e pressionou o corpo contra o meu para que eu
não pudesse me mexer. Entrei em desespero, mas consegui esticar o braço e
pegar uma caneta sobre uma mesinha que ficava ao lado. Não pensei muito,
apenas agi. Puro instinto de sobrevivência. Enfiei a caneta no pescoço dele,
que deu um grito abafado e saiu de cima de mim. Talvez teve medo que eu
gritasse, pois deixou o quarto segurando o local ferido.
Chorei de ódio e medo, completamente trêmula. Por muito pouco
aquele maldito não me estuprou. Lembro de sentir a ereção dele contra o
meu corpo e a sensação nauseante que aquilo me causou.
No dia seguinte, ele apareceu apenas com um pequeno curativo no
pescoço.
— O que aconteceu, amor? — perguntou, minha mãe, toda
preocupada.
— Picada de inseto. — respondeu e olhou para mim.
— Esse inseto ainda vai te matar! — repliquei e saí.
Eu sabia que se falasse algo para a minha mãe, ela simplesmente
acreditaria na mais esfarrapada mentira dele, então poupei meu tempo.
Passei a deixar uma chave de fenda embaixo do travesseiro. Ele usou a
pouca inteligência que tinha e não foi mais mexer comigo.
O problema é que gente burra sempre faz muita burrice na vida.
Numa briga de café da manhã — era assim quase sempre, então batizei esse
tipo de briga —, ele jogou na minha cara:
— Matei aquele pulguento e mataria de novo se tivesse sobrevivido.
Não servia pra nada.
— Seu desgraçado, maldito! — gritei e joguei café na cara dele.
— Para, Bárbara! Vai embora daqui. Você tá atrasada pra escola. —
Minha mãe gritou, colocando-se na minha frente e me empurrando para
fora.
Eu saí de lá, peguei minha mochila e entrei no ônibus que me
levaria ao trabalho do assassino do Lecter. Fiquei observando aquele
desgraçado passar para a fábrica onde trabalhava.
Era metalúrgico numa fábrica de portões, entrei junto com os
funcionários, sem ser vista por ele. Havia mulheres trabalhando ali, mas
eram mais na parte da limpeza e na cozinha.
Era uma fábrica grande, mexiam com ferro e o mesmo dono tinha
outra fábrica ao lado, especialista em vidros. Ferro não, mas o vidro me
fascinava. Observei o lugar e vi que havia cerca de seis cachorros grandes,
da raça rottweiler. Certamente eram usados para vigiar a fábrica a noite.
Voltei ao meu objetivo: observar o desgraçado. Um homem se
aproximou de mim e me pediu que saísse, pois ali era perigoso.
Voltei para casa quase meio-dia, fiz o que precisava, não deixei a
minha mãe nem pensar em brigar comigo, ela saiu para fazer algumas
coisas e fui a um quartinho no quintal, onde o maldito guardava
ferramentas. Mexi em tudo e não achei nada que pudesse usar como arma
contra aquele assassino, até que ao sair de lá bati a cabeça no cabo de um
machado, velho e enferrujado, mas eu não precisava ter cuidado com aquele
infeliz. Peguei a ferramenta e pus na minha mochila, apenas a ponta do
cabo ficou para o lado de fora. Por volta das cinco da tarde, voltei à fábrica.
Ele saiu de lá quase oito da noite, e eu o estava esperando no
caminho, meio ermo, que fazia para chegar até o ponto de ônibus.
Como estava ali havia tempo, a escuridão não era tão intensa, então
quando o vi se aproximando, me preparei e acertei a machadada na nuca
dele, que caiu no chão como um porco abatido.
Por mais ermo que fosse, naquele caminho passavam algumas
pessoas, então peguei os pés do assassino do Lecter e arrastei para dentro
do mato.
— Filho da puta pesado! — xinguei, ofegando e com a blusa
molhada de suor.
A única luz que iluminava as pequenas árvores que havia ali era da
lua cheia. Puxei o ar para conseguir respirar direito. Estava difícil, ele era
pesado demais e eu precisava escondê-lo.
Fiquei olhando, decidindo se enterraria o corpo ou simplesmente o
deixaria lá para ser encontrado no dia seguinte por alguém.
— Vou te deixar ser achado, desgraçado! — disse, ofegando.
Mencionei ir embora, mas ouvi seu gemido, meu coração quis sair
pela boca. Procurei o machado e lembrei que o havia deixado onde o
acertei. Corri para buscá-lo. Se ele ficasse vivo me mataria, com certeza.
Quando alcancei a minha arma, vi uma silhueta se aproximando do ponto
de ônibus e corri de volta para o mato. O desgraçado estava tentando se
levantar.
— Socorro! — Tentou falar, mas a voz saiu abafada.
Eu parei perto dele, ofegando, enquanto segurava o machado sujo de
terra. Lecter veio em minha mente e lágrimas doídas de saudade molharam
o meu rosto.
— Bárbara? — disse com a mão na nuca tentando me ver. — Me
ajuda, por favor!
— Claro. Isso é pelo Lecter!
Levantei aquele machado com tanto ódio que quando ele desceu
sobre as costas do miserável ia pesando umas cem vezes mais do que seu
peso real. Ouvi um grito e lembrei que o meu único amigo poderia estar
comigo, se não fosse a crueldade daquele desgraçado.
Acertei outro golpe na parte interna do joelho. Se eu o cortasse aos
pedaços seria mais fácil dar fim nele.
— Mudei de ideia, não quero que te achem, seu imundo. Nunca
mais você vai fazer mal a ninguém.
Desferi outro golpe no mesmo lugar, precisava dividir a perna dele.
Depois de alguns golpes, consegui arrancar os pedaços de pernas dos
farrapos da calça.
— Desgraçado! — disse, por entre os dentes, os gemidos quase
nulos dele me enchiam de prazer, um prazer que até então eu desconhecia.
Os braços foram mais fáceis, apesar de bem difícil também, mas
consegui em menos tempo. Não tinha noção de hora, precisava ir para casa
logo ou minha mãe me bateria.
Precisei de cinco golpes para conseguir tirar aquela cabeça
asquerosa do corpo. Depois segurei pelos cabelos e a pus dentro da minha
mochila.

Acordei no dia seguinte achando que tudo não tinha passado de um


sonho bom. Cheguei a ficar frustrada, mas o demônio do meu padrasto não
apareceu mais e minhas roupas estavam manchadas de sangue, um sangue
lavado.
As belas amigas da minha mãe puseram na cabeça dela que ele
havia fugido com outra mulher, e ela, passional, emocionada, xingou o
maldito por muitos anos.
Não lembrava com clareza de muita coisa. A verdade é que sofri
uma espécie de apagão. Não conseguia sequer me lembrar do que tinha
feito com os pedaços do desgraçado, só lembrei, anos depois, que havia
jogados por cima do muro da fábrica de vidros, proporcionando um jantar
maravilhoso para os cachorros que vigiavam, depois eles se encarregaram
de enterrar o que restou. A cabeça, eu descartei em um lixão, do outro lado
da cidade.
Para ter certeza de que havia sido real, voltei ao local e vi sangue
nas folhas. Vasculhei ao redor e vi o machado, também sujo de sangue.
Apenas o enterrei. A minha mochila estava no varal.
Em casa, abri a geladeira e virei uma garrafa de água na boca. Senti
aquele líquido maravilhoso refrescar meu esôfago e respirei profundamente.

No dia seguinte, Ingrid acordou de bom humor, até achei estranho.


— Bom dia! — disse, sorrindo, ao se espreguiçar.
Eu estava perto da porta da varanda, observava a casa da vizinha,
que chegou com um homem de cabelos grisalhos usando roupas de hospital.
Ele tinha um curativo no ombro, consegui ver por que ele tirou a camisa
para que ela o examinasse. Não fiquei lá fora, não podia deixar que Ingrid
visse aquilo ou me entregar.
Deve ser por isso que aquele esquisito estava rondando por aqui!
— pensei.
Logo a vizinha saiu e foi embora de novo, foi tudo muito rápido.
— Bom dia! — respondi à Ingrid.
— Quero tomar café fora, vamos?
— Vamos.
Eu respondi achando aquilo estranho demais para ser verdade, mas a
ouvi falando ao celular dentro do banheiro.
— Que bom que pensou melhor, doutor. Obrigada!
Eu saí do quarto logo que ouvi o barulho do chuveiro. Ingrid era
bancada por alguém, disso eu sabia, precisava descobrir por quem. Aquilo
passou a me interessar, pois poderia ser útil.
Fomos a um café e ficamos lá por quase uma hora. Ela comentou
sobre algumas coisas aleatórias, parecia aquela Ingrid que conheci quando
cheguei ali.
Quando saímos do café, ela estava sorridente, até colocou o braço na
minha cintura e correspondi, não queria perder aquele lapso de lucidez dela.
— Vamos ver se minha mãe já acordou? — propôs e entramos na
casa da Eulália.
A mulher estava passando mal no banheiro, Ingrid correu ao ver a
mãe vomitando sangue.
— Vou chamar uma ambulância. — falei, mencionando sair.
— Não precisa, é só efeito colateral do remédio. — Eulália falou,
secando o rosto com a mão.
— Que remédio é esse, mãe?
— Revia.
Aquilo era para parar de beber, a coitada estava tentando parar, mas
a louca da filha não ajudava. Peguei uma toalha e molhei, fui até a Eulália,
que ofegava, e passei no rosto dela. Senti que tremia, estava pálida.
Ingrid apoiou a mãe até a cama e a deitou lá, depois saiu e voltou
com o um copo d’água.
O celular dela tocou e quando ela viu quem era, fez contorcionismo
virando a tela para que eu não visse. Sorri e olhei para a Eulália, que franziu
o cenho.
— Você acha que ela tem outra? — indagou quando viu a filha sair
para atender ao celular na rua.
Franzi o queixo e dei de ombros, aquilo seria um imenso favor que
ela me faria, mas achava pouco provável. Raramente ela saía sozinha.
Fiquei ali conversando amenidades com a Eulália e ela contou que
quando era jovem fez um cruzeiro romântico, sozinha, pois havia marcado
de encontrar um boy e ele não apareceu. Sorri.
Adoro a Eulália!
— Curti o mês inteiro no cruzeiro, transei com dois camareiros, não
ao mesmo tempo, o povo era muito conservador, mas foi muito bom...
Pela janela daquele quarto vi a vizinha chegar correndo e entrar no
seu prédio. Fui até mais perto e afastei um pouco a cortina.
— Nunca transei com homens, Eulália, e nem tenho vontade. —
disse, enquanto observava o prédio da vizinha. Em poucos minutos, a vi
saindo de novo.
Eu me assustei quando a louca da Ingrid entrou batendo a porta.
— Fica aqui com a minha mãe, vou pra casa, se ela piorar, você me
avisa e a levamos pro hospital.
— O que houve, Ingrid? — Eulália perguntou, preocupada.
— Só um problema meu, vou descansar um pouco e já volto. —
avisou e saiu.
Voltei a olhar pela janela e vi o estranho da noite anterior pulando o
muro para entrar no prédio. Aquela rua era muito deserta, só prédios e
casas, não tinha comércio, então a movimentação de pessoas era bem pouca
naquele horário.
— Eulália, eu já volto!
Corri antes que ela pudesse falar algo. Pela grade do portão vizinho,
consegui subir no muro e depois pulei para o chão, repetindo a ação do
estranho.
Eu devia ter sido criada pelo Stan Lee! — pensei e sorri. — Perdão,
Pippa! É só pelos superpoderes.
Havia uns vasos de plantas ali, usei como apoio e tomei impulso
para chegar à primeira varanda, onde subi e consegui chegar ao
apartamento da vizinha. A porta estava aberta, só entrei e já vi o estranho
com uma arma apontada para o homem grisalho na cama.
O cara armado se assustou com a minha chegada, enquanto o
grisalho se jogou no chão para sair da mira da arma. Eu apenas pulei sobre
o covarde armado, que não teve tempo de apontar a pistola em minha
direção, pois quebrei o seu pescoço com uma súbita e mortal torção da
cabeça dele.
O grisalho abafou um grito, estava ofegando quando se levantou, me
olhou assustado, olhei em volta e saí correndo, deixando o corpo do homem
que eu havia acabado de matar largado no chão.
Voltei para a casa da Eulália, ela dormia. Fiquei ali por um
momento, assistindo tevê, até que ouvi o berro da Ingrid e fui para casa.
Ingrid estava revirando o terceiro andar, entrei, liguei a televisão e
fiquei na janela, observando o apartamento da vizinha. O reflexo do vidro
não me deixava ver muito, mas cerca de quarenta minutos depois vi outro
homem estranho no quarto. Tremi, pois não poderia fazer mais nada, não
com Ingrid na minha cola.
Dois homens saíram do prédio carregando um tapete e o colocaram
no porta-malas de um carro antigo.
7 – Choque

Diana

Não sei dizer o que foi mais inusitado, o fato de encontrar meu tio
machucado ou aquela troca de olhares estranha dele com a vizinha. Fiquei
confusa e tive vontade de perguntar, mas não havia tempo para me
preocupar com aquilo. Ele estava machucado, o ferimento da bala estava
sangrando e eu precisava examiná-lo.
— Tio, como foi isso? Como você caiu? — perguntei, ao me
aproximar, já tocando a gaze suja de sangue.
— Eu... eu... — gaguejou e olhou ao redor, confuso. Luís Otávio
entrou na cozinha bem na hora, e ele concluiu: — Eu me assustei com o seu
gato, ele pulou na cama, eu estava dormindo, então... — falou e deu de
ombros.
Eu não estava muito convencida daquela desculpa, mas no final das
contas, até que não era algo improvável de acontecer.
Luís chegou perto, acariciou a minha perna com a cabeça e corpo, e
me encarou.
— Humana, preciso de uma massagem na cabeça e estou com fome.
Ah, e quem diabos é este homem? Como traz um completo estranho pra
dentro de casa, põe ele na minha cama e não se dá nem ao trabalho de me
avisar?
— Vem, vou servir seu jantar. Desculpe, esse é o Tio Augusto, ele
vai ficar conosco por um tempo.
— O quê? — gritou, irritado. — E a minha privacidade, onde fica?
Ele vai dormir no sofá, né?
— Não, ele está ferido, não vê? Vai ficar no meu quarto, precisa de
cuidados... — disse, sorrindo, agachada, enquanto despejava um sachê de
comida na tigela dele e fazia um carinho em seu queixo.
— Absurdo! Era só o que me faltava. — resmungou, mas logo se
calou para comer.
Meu tio assistia à cena de cenho franzido. Seu olhar era confuso,
abriu a boca para falar, mas não saiu nada. Eu sorri, e ele finalmente
perguntou:
— É impressão minha ou você estava conversando com o seu gato?
— Eu estava mesmo. — respondi, sorrindo. Ele coçou a cabeça, e
eu decidi explicar. — Relaxa, sua sobrinha não é esquizofrênica. É só uma
brincadeira que faço, falo com ele e invento as respostas. Culpa da solidão,
não me julgue. — concluí com as mãos levantadas.
Ele deu uma risada contida e se aproximou para me abraçar, retribuí
o carinho. Era muito bom tê-lo por perto.
— Verdade, tinha esquecido do quão imaginativa você é. Quando
era criança, montava cenários com os brinquedos e desenvolvia enredos
complexos para as bonecas. — falou, nostálgico e sorrimos juntos.
— É verdade, se eu não fosse médica, certamente teria me tornado
escritora.
— Sim, uma das boas.
Ele encurtou o abraço e meu rosto encostou no dele, que estava
ardendo.
— Tio, você tá com febre, deveria estar descansando. Vem deitar,
vou examinar esse ferimento, continua sangrando. — falei, já puxando sua
mão e andando em direção ao quarto.
— Não é nada demais, filha... — protestou, mas o interrompi antes
que continuasse.
— Não discuta com a sua médica. Venha.
— Sim, doutora!
Tio Augusto se deitou na cama, e eu fui me lavar para examiná-lo.
Voltei com o material que precisava para trocar o curativo e sentei ao lado
dele, que já estava sem camisa. Comecei a retirar a gaze encharcada de
sangue.
— Como está o acesso? Daqui a pouco tenho que aplicar a
medicação.
— Está intacto, não precisa trocar.
— Você precisa se comportar... olha só isso, se não cuidar pode
infeccionar. — disse, apontando o ferimento inflamado.
— Eu vou, não se preocupe. Foi só o susto.
— Acho bom! Eu peguei a sua carteira e os seus óculos. As roupas
não serviam mais, camisa rasgada e ensanguentada, calças sujas. Mas
trouxe roupas limpas... uniformes lá do hospital, claro. Estou virando uma
exímia traficante. — falei, brincando e sorri. — Precisamos arranjar umas
roupas pra você.
— Não precisa se preocupar com isso, filha. Eu dou um jeito.
— Que jeito você vai dar? Deixa comigo, amanhã eu tô de folga,
posso ir até o lugar onde você está hospedado para buscar suas coisas ou
então compro algo...
— Filha, não quero você se expondo por aí.
— Me expondo? Como assim, tio? — indaguei, confusa.
— Diana, só me ouça. Não é seguro, você precisa se cuidar.
Não entendi nada daquela conversa, aliás, não estava entendendo
nada de nada, desde que ele aparecera com aquele ferimento.
— Tio, o que está havendo? — questionei, impaciente. — O que
você está me escondendo? Primeiro aparece ferido, coincidentemente... ou
não, no hospital onde eu trabalho. Depois me pede para te ajudar a fugir de
lá e não explica nada. Sabia que o Gabriel foi advertido por causa do seu
sumiço? Então eu cheguei em casa e você estava machucado e sangrando, e
agora mais uma vez esse papo estranho de perigo. Acho que eu mereço uma
explicação, você está me assustando.
— Meu amor, apenas confie em mim, ok? As minhas coisas estão
num lugar seguro, não precisa ir buscar. Tenho gente que pode me ajudar.
Foi inevitável sorrir de forma sarcástica.
— Que palhaçada é essa, tio? Parece conversa de mafioso, você está
se ouvido?
— Acredite, o vilão não sou eu.
— Então me conta essa história direito.
— É mais seguro que você fique alheia aos fatos, mas é
imprescindível que siga as minhas instruções.
— Não sou mais criança, não tem que me esconder nada. Eu sei me
cuidar. Não sei o que veio fazer aqui e que mistério perigoso é esse que não
pode me revelar, mas não vou seguir instrução nenhuma sem saber do que
se trata.
— Diana, por favor...
— "Diana" nada, não vou aceitar isso nunca. O que tá acontecendo?
Anda, tio, fala! Quem tentou te matar e o que isso tem a ver comigo? Não
diga que estava passando aqui perto e resolveu dar um oi, porque isso não
aconteceria sem um propósito.
Terminei o curativo e fui preparar a medicação intravenosa para
aplicar, mas fiz tudo perto dele, encarando-o de forma incisiva para deixar
claro que eu não permitiria que se esquivasse daquele assunto. Mesmo
assim ele ficou calado.
— Tudo bem, eu tenho a noite toda. Só vou te deixar em paz quando
me explicar essa história. — falei, enquanto conectava o tubo da medicação
ao acesso intravenoso no braço dele, que permaneceu em silêncio absoluto.
Tirei as luvas e joguei sobre a mesinha ao lado. Sentei na beirada da
cama, cruzei os braços e voltei a encará-lo, até que finalmente ele se deu
por vencido.
— Tudo bem, mas não vou entrar em detalhes. E não insista, é para
o seu próprio bem. Mas tem que me prometer que depois de ouvir, vai fazer
exatamente o que eu disser.
— Eu não estou certa disso...
— Então sem história.
— Ah, tá bom! — bufei, irritada por ter que ceder. — Prometo, mas
fala logo. Tô ficando muito assustada.
— E é pra ficar mesmo. Diana, o que você vai ouvir agora é algo
muito sério e com certeza vai te chocar.
— Eu sou cirurgiã do trauma, poucas coisas têm o poder de me
chocar...
— Foi o seu pai quem mandou me matar. — falou, interrompendo-
me de forma brusca.
— Quê?
Ele tinha razão, aquela informação me chocou. Eu sabia que o velho
Afrânio era um filho da puta, arrogante, agressor de mulheres, mas
assassino eu não imaginava. Ainda mais do próprio irmão. Fiquei
boquiaberta, o coração foi a mil, comecei a suar e a tremer, mesma sensação
que tomava conta de mim quando o via espancar a minha mãe. Tentei falar,
mas não saiu nada. Ele então continuou:
— Diana, seu pai está envolvido com muita coisa errada, você não
tem a menor noção e é melhor que continue sem ter. Enfim... eu comecei a
desconfiar disso há alguns anos e passei a investigá-lo. Contratei um
profissional para me ajudar e descobri coisas que até o diabo acharia
absurdo.
— Que cois... que tipo... do que você tá falan... — gaguejei nervosa,
parecia que eu tinha perdido a capacidade cognitiva. Estava em choque.
Tentei respirar fundo. Levei as mãos aos cabelos e os apertei forte entre os
dedos.
Ele se esforçou para se sentar, pegou outro travesseiro e apoiou nas
costas.
— Calma, amor! Respira. — pediu, segurando a minha mão.
Tentei fazer o que me disse, puxei o ar, mas a respiração saiu
entrecortada.
— Que absurdo é esse, tio? — perguntei, finalmente.
— Bom, o fato é que ele descobriu que eu o estava investigando e
passou a me perseguir. Vai lançar candidatura ao senado este ano e não vai
medir esforços para eliminar qualquer obstáculo que apareça em sua frente.
Nesse caso, o obstáculo sou eu e o dossiê completo que tenho, contendo
todas as informações sobre as sujeiras dele.
— Meu Deus! Eu não acredito nisso, ele é seu irmão. — Minha voz
saiu trêmula.
— Sim, e era o marido de sua mãe. Lembra como ele a tratava? E só
pra você saber, todos os seus passos são monitorados desde que saiu de
casa.
— O quê? Não, você só pode estar brincando. Isso é impossível. —
falei, nervosa e levantei, comecei a andar de um lado para o outro no
quarto, com as mãos na cabeça.
— Não é, acredite. Diana, eu vim aqui pra te orientar a sumir, sair
do país, ir para o mais longe que puder dele, pois eu não tenho dúvidas de
que ele é capaz de qualquer coisa para manter o nome intacto.
— Sim, mas o que eu fiz que pode ameaçá-lo.
— Nada, filha! Mas nunca se sabe... Ele é louco. Pode querer te
forçar a voltar pra casa e posar de boa filha ao lado dele... são muitas
possibilidades, e eu não confio nos métodos que ele possa vir a utilizar. Por
isso você precisa sumir das vistas dele, vá para o mais longe que puder.
Mude de nome, se for preciso. Eu te ajudo com isso, te dou dinheiro e...
— Não, tio! — gritei. — Isso é loucura, eu não vou a lugar nenhum.
Não sou bandida, não vou fugir. Eu tenho uma vida aqui, uma carreira que
estou trilhando, não vou largar tudo por causa de suposições.
— Diana, agora ele sabe que estou aqui com você. Entenda, filha, eu
temo pela sua segurança.
— Então não tivesse vindo me procurar, me deixasse viver na minha
humilde ignorância. — retruquei, nervosa, com lágrimas nos olhos.
— Sim, você tem razão. Agora eu me arrependo de ter vindo, mas
quando vim ainda não sabia que ele te vigiava.
— E como descobriu?
— Eu já falei demais, não posso dizer mais nada. — respondeu,
ofegando nervosamente, começava a transpirar.
— E eu suponho que você quer que eu mude toda a minha vida por
causa dessas informações aleatórias e incompletas que você jogou em cima
de mim ardendo em febre?
— Filha, confia em mim, por favor!
— Então confie em mim também e me conte tudo o que sabe.
— Não posso, meu amor, é muito perigoso.
— Não, isso é surreal demais... não, não, não...
— Diana, eu não brincaria com uma coisa tão séria. Eu preciso que
me ouça e me obedeça.
— Você não é meu pai e eu não tenho mais dez anos de idade.
— É, eu não sou o seu pai. — disse, melancólico, ofegava e suava
muito. — Mas você está agindo, sim, como uma criança de dez anos. Não
seja inconsequente.
Ele começou a respirar mais pesado e a tremer. Toquei seu rosto,
que já estava encharcado e senti a febre alta, provavelmente mais de 39
graus. Ele estava convulsionando. Retomei a minha sanidade e agi
rapidamente para socorrê-lo, virando seu corpo de lado para que não
engasgasse com a saliva. Segurei forte, os braços, até que o tremor
passasse, e quando cessou, apliquei dipirona e fiz compressa de água fria.
Ele ficou sonolento, ainda tentou retomar o assunto, mas o impedi.
Fiz com que descansasse. Fiquei monitorando um tempo e verifiquei a
temperatura. Só relaxei quando ficou abaixo de 38 graus.
Ele dormiu e fui para a cozinha preparar algo para que comesse, mas
só tinha enlatados e comida congelada. Já passava das nove da noite, minha
cabeça dava voltas e voltas, só queria descansar, mas ele precisava se
alimentar e não poderia comer nada daquilo.
Saí para ir ao mercado, o mesmo onde cruzei com a vizinha na noite
anterior. Era perto, eu precisava de ar, então fui a pé mesmo. Mas no
caminho lembrei do que ele falou e fiquei com medo, devia ter ido de carro.
Abracei meu próprio corpo e comecei a olhar para todos os lados, assustada
com a possibilidade de estar sendo seguida.
— Não, não posso entrar na dele. Estava com febre alta. Com
certeza, aquilo tudo era delírio. — Tentei me convencer.
Mesmo assim continuei o caminho amedrontada. Em determinado
momento, olhei para trás e tive a impressão de ver alguém se escondendo
em um beco.
— Deixa de paranoia, Diana! — falei, baixinho, para que pudesse
ouvir a minha própria voz.
Respirei fundo e segui. Caminhei mais alguns metros e ouvi passos
firmes, alguém se aproximava. Senti um medo surreal, virei por instinto e
foi tudo muito rápido. Não cheguei a ver direito o rosto da pessoa, mas vi
que era um homem grande, usando uma jaqueta de couro preta. Ele cobriu o
meu rosto com um capuz e me virou de costas, prendendo os meus braços.
Comecei a gritar, tentei reagir, mas ele tinha muita força e não teve
dificuldade nenhuma em me dominar e me levar para um beco escuro.
— Socorro, alguém me ajuda! — gritei, em desespero.
— Cala a boca! Nós vamos dar uma voltinha, querida. — avisou e
me empurrou na direção de algum lugar. Era impossível saber, eu estava
muito nervosa.
— Não me mata, por favor! — supliquei em lágrimas.
O desespero estava me consumindo, meu tio não estava delirando.
— Não se preocupe, gatinha. Querem você bem viva!
— Socorro! — gritei de novo, o mais alto que pude e me debati com
toda a força que tinha quando chegamos perto de um carro.
Senti uma espécie de abraçadeira prendendo um dos meus pulsos e
puxei forte o outro braço, impedindo-o de apertá-la.
Ouvi uma pancada seca e fui jogada para o chão. Tentei tirar o capuz
e me levantar, mas tive que me livrar das abraçadeiras antes. Enquanto
tentava, ouvi mais pancadas e os gemidos abafados do meu perseguidor.
Quando finalmente consegui me levantar, tirei o capuz e vi o
homem caído no chão. Olhei ao redor e tive a impressão de ver a silhueta de
uma mulher saindo do beco, mas ignorei. Mesmo apavorada, chequei e não
senti pulso no perseguidor, estava morto.
Alguém havia me salvado dele, mas quem? Eu só queria sumir dali,
estava em pânico. Então corri o mais rápido que pude e voltei para casa.
8 – Nós

Bárbara

Sai do meu caminho porque eu sou mais de uma...



Ingrid passou o dia remexendo o terceiro andar. Eu a ouvi falar ao
celular algumas vezes, mas sempre fechava a porta. Saiu de lá suada,
vermelha e ofegante. Me encarou como se fosse dar a minha sentença de
morte e soltou o ar pela boca.
— Você viu alguma movimentação nessa rua?
— Não, só os cachorros latindo, mas nada além disso. O que houve?
— Nada. Se vir algo fora do normal me avisa, por favor. Você lê
muito na varanda, então faz as duas coisas.
— Virei vigia da rua agora? — perguntei, com um aborrecimento
fake.
— É um pedido simples! — gritou, me encarando e levantei os
braços em sinal de rendição.
Ela saiu de novo e sorri sarcástica.
Imbecil!

Naquela noite de observação, eu desenhei a rua. Vi quando a luz da


cozinha da casa da vizinha acendeu. Fiquei animada achando que fosse ela,
mas era o homem grisalho. Levantei para observá-lo, ele não me viu. Estava
lavando as mãos quando ela chegou. Linda! Aproximou-se dele assustada e
olhou o ferimento. Ele deve ter rompido algum ponto quando se jogou da
cama para se proteger daquele atirador. Começou a falar algo para ela, mas
interrompeu no meio da frase quando me viu. Nos encaramos por um breve
instante, ele com certeza me reconheceu. A vizinha olhou na mesma direção
e me viu também.
Que droga! Não era pra ele ter me visto. Agora sabe que moro aqui.
Pra descobrir quem eu sou não vai precisar de grande esforço.
Me apressei em sair dali e me recriminei por estar sendo tão
descuidada. Entrei e andei de um lado para o outro, nervosa.
Ingrid me chamou depois de sair do banheiro. Eu estava em estado
de alerta.
— Vou te comprar remédio para piolho pra ver se essa coceira da
sua nuca passa! — disse, em tom irônico e sorriu.
Só esperei o que ela tinha para dizer. Aquele cansaço fora do
comum que me incomodava aconteceu naquele instante. Fechei os olhos
para me recompor e ouvi vagamente o que ela falava. Engoli saliva para
hidratar a garganta seca e abri os olhos. Ela falava enquanto ligava
o notebook.
— Por favor, faz aquelas tortinhas de amoras! Na minha mãe tem
amora, tio Silvio trouxe.
— Tá. Vou ver se a Eulália tem açúcar mascavo também. Você quer
mais alguma coisa? — perguntei, me sentindo uma garçonete.
— Não. Se ela não tiver me avisa e já vai comprar, que estou
morrendo de fome. — disse olhando para o laptop e já me ignorando.
Desci sentindo aquele mal-estar, respirei profundamente e bati à
porta da casa da Eulália, que me mandou entrar. As amoras estavam em um
pote, já prontas para levar.
— Você está bem? — perguntou, de cenho franzido, e por um
momento vi duas dela. — Senta aqui. — pediu e pegou um copo d’água.
— Tô bem. Só uma tontura meio tensa, mas é normal.
— Isso não é normal, Bárbara!
Tomei a água e sorri. Olhei para o pote e o vi se transformar em dois
também, mas logo voltou ao normal.
— Obrigada, já estou melhor. Você tem açúcar mascavo?
— Não.
— Tudo bem, quando estiver pronto te chamo. — avisei e subi.
Peguei dinheiro com a Ingrid, vesti um casaco e fui comprar o
açúcar. Entrei no mercado e saí rapidamente, pois o caixa rápido estava
vazio.
Não precisaria correr tanto, eu ainda estava dentro do meu prazo
para voltar. Caminhei relaxada e comecei a fazer planos impossíveis. Eu
sempre fazia isso quando estava cansada. Até que ouvi um grito, algo
incomum para aquela região. Vila dos Lírios era uma cidade relativamente
pequena, se comparando com as grandes capitais, mas isso não impedia que
ter uma ampla movimentação, mas isso não incluía assaltos com frequência
ou algo do tipo. Corri e vi um homem grande colocando um saco preto na
cabeça de uma mulher. Coloquei o pequeno pacote de açúcar na minha
cintura e prendi na calça.
Aquele incômodo na minha nuca passou a acelerar meus batimentos
cardíacos. Olhei em volta e vi apenas uma placa de propaganda firmada no
chão por um pedaço de madeira. Com certo esforço, arranquei e corri para o
beco onde o cara havia levado a mulher.
Mesmo com a pouca luz, vi a blusa branca que a vizinha usava
quando chegou em casa. Não sei se aquilo era um truque do meu cérebro
para me motivar, mas a mulher parecia muito com ela. Meu coração chegou
a uma velocidade tão fora do comum que passei a agir sem respirar.
Acertei a cabeça do homem com o pau, bem pesado para uma
simples placa de rua, senti a terra da ponta dele em minhas mãos. Bati duas
vezes para ele cair. Quando caiu, bati mais algumas vezes, não sabia o que
estava acontecendo, mas aquele era o segundo bandido que aparecia ali.
Quando senti que o homem estava inconsciente, parei de bater e me lembrei
do meu tempo contado. Corri dali o mais rápido que pude.
A mulher começou a se levantar, ainda olhei para trás antes de sumir
na penumbra, mas não pude ter certeza de que era ela. Eu arfava quando
entrei na garagem. Sentia uma pressão na cabeça. Procurei a mangueira que
estava no chão e liguei a torneira, bebi água e consegui respirar direito.
Aquele maldito cansaço na nuca só passou quando comecei a fazer
as tortas de amora.
Enquanto preparava o recheio, lembrei de quando comecei a
frequentar a psicóloga da escola — uma mulher de cara cansada —, ela
aparecia lá uma vez por mês, e fui encaminhada para conversar com ela
devido às muitas brigas em que eu me envolvia no colégio.
Depois de sofrer alguns tipos de violências, de todas as formas, por
diferentes tipos de pessoas, eu passei a odiar gente.
Problemas psicológicos em adolescentes não são levados a sério.
Alguns colegas meus se cortavam, ficavam deprimidos, tudo por causa das
humilhações que sofriam dentro da escola e até em casa mesmo. Eu não
desenvolvi esse tipo de distúrbio. Esse lance de automutilação física não era
comigo, desenvolvi coisa bem pior.
As amoras pulavam “felizes” dentro da água escura e fervente
enquanto cozinhavam.
Misturei os ingredientes e senti a manteiga nos meus dedos quando
toquei para misturar tudo. Aquilo, sim, era a minha terapia, embora eu
precise assumir que aquela mulher de cara cansada me ajudou a entender
muita coisa a meu respeito.

Doutora Guilhermina era boa comigo. Fora da escola, sorria para


mim e me tratava como se fosse minha amiga, até me abraçava, beijava
minha cabeça.
Eu sei o quão difícil é me entender, pois ora sou um doce de pessoa,
ora sou alguém impossível de viver em sociedade. Exatamente por isso,
prefiro manter distância de gente.
Acho o ser humano uma invenção genial, mas defeituosa. Eu
poderia dizer: "achamos", pois sou mais de uma. Sei que todo ser humano
tem mais de uma face, mas eu sou diagnosticada. Isso nunca foi um
problema para mim, não me assustei quando a psicóloga da escola supôs
que eu poderia sofrer de "Transtorno Dissociativo de Identidade", quando
eu disse que fazia coisas das quais não lembrava direito.
— Parece um sonho! — contei depois de algumas tentativas dela de
me fazer falar.
Depois do que aconteceu com o miserável do meu padrasto, eu fui
conversar com ela. Lógico que não contei o que havia feito, não sabia até
onde ia sua ética.
— Sonhei batendo no idiota do meu irmão e quando acordei ele
estava com o braço machucado. Eu juro que não bati nele de verdade...
— Eu acredito em você! Barbara, nesses sonhos, você é outra
pessoa? Com outro nome ou algo assim?
— Não, na maioria das vezes eu sou muito forte, muito forte
mesmo, e revido tudo o que me fazem de mal. Outras vezes eu sou meiga e
doce... — fiz uma careta.
— Na maioria das vezes? Então você sonha muito?
— Sim, mas quase nunca lembro sequer de como fui dormir.
— Conte-me sobre esses sonhos. — Ela pediu realmente
interessada.
Senti um tédio enorme por estar ali, a voz dela me dava sono.
Aquela foi a primeira vez que o incômodo nos meus ombros me visitou, ou
pelo menos que eu observei. Na tentativa de aliviar a tensão, passei a mão
na nuca e fechei os olhos com força. Quando os abri, notei o rosto da
mulher espantado, parecia que estava vendo um monstro.
— O que houve, doutora?
— Quem é você?
— Bárbara Perroni. — respondi, normalmente. — Amo meu nome,
amo quando perguntam e posso dizer em alto e bom som: Bárbara Perroni!
Bárbara! — repeti, orgulhosa, sorrindo.
E é verdade, eu amo o meu nome, minha mãe foi genial ao escolher.
— Estávamos falando sobre seus sonhos.
— E tu acredita nessa parada de sonho, doutora? Por favor, né?
Ela anotou algo olhando para a minha mão, que ainda estava na
nuca.
— Olha só, vou ter que ir nessa! Depois a gente troca ideia de
novo... — disse e apenas saí.
Eu não tinha acesso às anotações dela, lógico, mas eu dei o meu
jeito de olhar. Afinal era a minha vida.
Caso raro!
Foi isso que vi sublinhado no topo da minha ficha. Li tudo, li
algumas de colegas e vi vários outros diagnósticos: depressão,
automutilação. Mas nada de “casos raros”.
Comecei a cozinhar para agradar a minha mãe, que ficou deprimida
depois do “sumiço” do meu padrasto.
— Que delícia, Bárbara! Onde aprendeu a fazer isso?
— Televisão. — E era verdade, eu gostava de programas de
culinária, me deixavam calma, me faziam pensar em coisas boas.
Passei a sentir prazer em ver o sorriso e “gemido” das pessoas ao
provar o que eu fazia. Aquilo era meu sonho bom.
Eu estudava artes num instituto perto da escola, o Anjos de Resgate.
Esculpia em madeira, areia, desenhava e fazia pintura moderna. Aquilo
também era um sonho bom. Eu sentia meus olhos úmidos quando alguém
elogiava minha arte. Pois por muito pouco não continuei no crime. Na ânsia
de agradar minha mãe e conseguir dinheiro para isso, tentei a vida no
tráfico de drogas. Aprendi a atirar para poder andar armada e obter respeito
das pessoas da região. Comecei atirando em latinhas em cima de muros, foi
muito fácil. O dono do morro se orgulhou daquilo, me via como alguém
com um futuro muito bom naquela vida. Evoluí para pratos voadores,
também me saí muito bem. Passei para armas mais pesadas, tive um pouco
de dificuldade, mas eu não gostava de barreiras, e treinei.
Nem eu vou me parar! — pensei quando machuquei o ombro ao
atirar com uma espingarda 12mm.
Depois de uns meses treinando confrontos e trocas de tiros,
entreguei mercadoria por um tempo, mas não queria aquilo para a minha
vida, só que quando se entra num negócio como aquele, sair é quase
impossível. Até que o chefe do morro foi morto pela polícia e resolvi sair
aceitando ajuda da instituição.
Fiz bons amigos lá. Amigos que posso contar se precisar, como tia
Marly, uma vendedora de lanches na rua. Ela era voluntária, um Anjo, como
se intitulam; nos aproximamos mais quando tentaram assaltá-la na volta
para casa. Ela ficou eternamente grata e passei a ser sua protegida, a filha
que não teve. Aquele cuidado me fazia sentir bem. Eu estudava com o filho
dela. Infelizmente ela voltou para o interior quando perdeu tudo para os
bandidos. E Fred, um carinha nerd metido a hacker que se envolveu com
drogas, quando eu entregava. Eu o livrei de ser pego por uns traficantes
quando deixou pagar pela mercadoria. Não entendi o meu ato na época,
talvez meu lado bom tivesse visto o lado bom dele.
Sou extrema em tudo, se é amigo sou amiga de verdade, capaz de
matar pelo bem-estar da pessoa, mas se sou inimiga... enfim, sou intensa.
No instituto também tinha artes marciais. Fiz aulas de Jiu Jitsu,
Kung Fu, mas eu gostava mesmo era de Krav Maga. O professor dizia que
eu tinha um dom natural e me ensinou vários golpes avançados e outros
“proibidos”, como quebrar pescoço apenas com uma torção de cabeça. Eu
amava aquele lugar. Me sentia melhor ali do que em casa.
— Eles dão lanche, vocês vão fazer os cursos de lá. — disse a
minha mãe, pois precisava trabalhar e via nisso uma economia até de
comida. Jamais sonhou que eu havia sido traficante de drogas.

Eu estava montando a torta quando a louca dos infernos entrou e me


trouxe de volta das minhas lembranças.
— Por que não avisou que havia chegado?
Quase vi meu cérebro naquele momento.
— Você disse que estava morrendo de fome, Ingrid. Apenas corri.
Ela olhou em volta, viu as amoras e a calda já prontas. Abriu o
armário, pegou pão e fez um sanduíche com o que tinha na geladeira.
Terminei de montar a torta, pincelei, fiz três cortes na massa
enquanto aquela desesperada comia.
Depois de tudo pronto, chamei a Eulália. Comemos conversando
sobre comidas. Vi Ingrid tomar seus remédios e se preparar para dormir.
— Não vai dormir?
— Estou sem sono. — avisei, sentada no chão.
— Vem pra cama, agora!
Guardei as coisas e fiz o que ordenou, torcendo para que ela
dormisse logo.
Quarenta minutos até começar a roncar. Saí devagar e fui para a
varanda. Era quase uma da manhã, a rua estava deserta. Estava um pouco
frio. Acendi apenas a luz do outro lado, desenhei a varanda da vizinha.
Com o coração acelerado, como se estivesse cometendo um crime,
comecei a desenhar o rosto dela. Fechei os olhos e me lembrei de quando
nos vimos no supermercado. Aquele olhar marcante, lindo; os traços que
pareciam ter sido desenhados a mão de tão perfeitos. Tentei passar para o
papel toda a perfeição que meus olhos conseguiram absorver, mas meu
talento só me deixou chegar perto.
Eu estava dando os últimos retoques para finalizar quando
casualmente levantei o olhar. Ofeguei involuntariamente ao vê-la de pé, na
varanda, olhando bem na minha direção.
Ela não estava em seu estado normal, era nítido. Embora me olhasse
com a mesma intensidade de sempre, seu semblante estava assustado,
olhava para a rua com frequência e reagia a cada mínimo barulho, o que me
deu a certeza de que era mesmo ela naquele beco.
Cada minuto que passava aquilo ficava mais esquisito. Primeiro ela
levou aquele estranho para casa, depois tentaram matá-lo, agora tentaram
raptá-la. O que estava acontecendo? Será que estava envolvida com alguma
coisa errada? Ela não me passava nada disso. Tinha um rosto angelical
demais. Talvez fosse uma janela também.
O que eu achava mais impressionante era o seu poder de
desestabilizar todas as minhas versões. Cerca de quinze metros nos
separavam, mesmo assim eu conseguia sentir a energia que ela transmitia, a
mesma que senti ao passar a centímetros dela no corredor do supermercado,
no outro dia.
Era algo bom, mas que ao mesmo tempo era ruim. Não sei explicar
o sentimento. Eu ficava mal quando sentia, mas na mesma proporção, eu
ficava flutuando, exalando uma felicidade nunca sentida antes.
O fato era que eu queria chegar bem mais perto, mas temia que ela
se assustasse comigo. Ela parecia delicada demais para a minha vida bruta e
instável, mas eu sentia vontade de protegê-la de tudo e amá-la como se eu
fosse a última pessoa amável do mundo.
Ela estava usando um roupão, apoiou o rosto na mão e ficou ali me
olhando. Não quero ser prepotente, mas senti que o ar de preocupação que
ela exibia instantes antes fora substituído por aquele olhar quente, que me
tirava do sério. Resolvi encará-la com a mesma intensidade, daria qualquer
coisa para saber o que se passava em sua mente naquele instante.
Desci os olhos para o corpo e estremeci ao imaginar o que havia no
interior daquele roupão.
Será que está usando apenas pra fugir do frio ou realmente não tem
nada por baixo?
A segunda opção fez meu corpo inteiro arrepiar, e só percebi que
estava amassando o papel do desenho quando ouvi o barulho que ele fez.
Ela me lançou um meio sorriso e senti vontade de saltar da minha varanda
para a dela, mas ao invés disso, entrei.
Estava pegando fogo, eu a queria, mas tinha ciência de que não
poderia jamais tê-la. Resolvi tomar um banho frio para acalmar os ânimos,
mas nem a água gelada molhando o meu corpo fez aquela necessidade
passar. A única solução foi me entregar ao desejo, mesmo que em uma
fantasia, então colei as costas na parede, fechei os olhos e deixei a minha
imaginação e as minhas mãos agirem livremente.
No meu sonho desperto, ela largava o roupão do lado de fora do box
e entrava no banho comigo. Eu acompanhei a água escorrendo pela pele
pálida e lisinha, perfeita! Ela me devorava com aqueles olhos azuis, mordeu
os lábios antes de me beijar com desespero. Pude sentir o gosto daquele
beijo, eu ofegava de desejo. Nossos corpos se encontraram, e as mãos dela
desceram ávidas pelos meus seios, acariciando, apertando de um jeito
delicioso. Depois uma delas escorregou pela barriga até encontrar outra
umidade, uma que não era, nem de longe, fria como aquela água. Ela
acariciou, deslizou os dedos deliciosamente, me levando ao delírio.
Sussurrou meu nome bem perto do meu ouvido e intensificou o movimento,
até que eu explodi em mil pedaços em um êxtase alucinante.
9 – Medo

Diana

Bati a porta com tanta força que, em seguida, escutei o vizinho abrir
a dele. Com certeza, a pancada deve tê-lo assustado, mas pouco estava me
importando. Assustada mesmo quem estava era eu... transtornada, na
verdade. Não tinha ideia do que fazer, pensei em chamar a polícia, mas
depois de tudo que ouvi do meu tio achei que não seria uma boa ideia.
Com as costas ainda coladas na porta, eu ofegava, transpirava,
tremia, o coração dava saltos violentos, e a garganta estava seca. Cheguei a
pensar que fosse sufocar. Corri para a cozinha e tomei quase meio litro de
água de uma vez só. Bebi direto da garrafa.
Fui até o quarto, e tio Augusto dormia pesado. Tive o ímpeto de
acordá-lo, mas lembrei de seu estado, e embora eu tivesse urgência em
contar o que havia me acontecido e tirar satisfações, minha consciência de
médica falou mais alto, então optei por deixá-lo descansar. De manhã,
conversaríamos.
Decidi tomar um banho na esperança de que a água quente fizesse
com que meus músculos tensionados relaxassem minimamente. Não
consegui relaxar de fato, mas ao menos consegui desabafar um pouco
aquela angústia que estava me consumindo.
Chorei. Minhas lágrimas desciam tão furiosas quanto a água do
chuveiro e se misturavam a ela. Abracei meu corpo na tentativa de acalmar
os espasmos nervosos que me faziam convulsionar.
Meu Deus, o que está acontecendo? Será possível que essa loucura
seja real? Meus dias de paz foram falsos?
Eu ouvia as palavras do meu tio martelando os meus tímpanos.
Minha vontade naquele instante era de seguir as orientações dele e correr
para o mais longe que pudesse dali. Sumir do mapa, mas eu tinha a minha
carreira e sabia que não dava para agir por impulso.
Eu estava tonta, nauseada, não podia acreditar que por pior que o
meu pai fosse, ele tivesse a capacidade de atentar contra a vida do próprio
irmão e mandar sequestrar a filha.
Mas o que ele quer comigo? O que eu fiz para ofendê-lo? Por que
simplesmente não me esquece e me deixa viver a minha vida?
Outra coisa que não conseguia entender:
Quem me salvou daquele homem e por quê?
Eu não sabia se pensar nisso me deixava aliviada ou mais assustada
ainda. Seja lá quem tenha sido, o atingiu com uma precisão de quem sabia
exatamente o que estava fazendo, pois foram poucas pancadas para que ele
morresse.
Saí do banho ainda trêmula, mas com os nervos um pouco mais
controlados. Pus um roupão, sequei os cabelos de qualquer jeito com uma
toalha e caminhei pela casa. Andei pelos cômodos, assustada. Chequei a
porta, as janelas... tudo aparentemente normal.
A porta da varanda estava aberta, caminhei até lá com o intuito de
fechá-la, mas acabei vendo a vizinha sentada na varanda dela. Ela estava
muito concentrada, segurando um lápis e rabiscando algo em um caderno,
só notei porque a luz estava acessa. Ainda bem abalada com o que
aconteceu, resolvi ficar ali observando-a.
No breve instante em que a admirei, minhas preocupações se
dissiparam, como em um passe de mágica.
Impressionante!
O poder que ela exercia sobre mim era imenso, e eu sequer sabia
nada sobre aquela deusa. Mas havia uma espécie de energia que fazia a
atmosfera toda mudar quando eu a via.
Eu precisava de mais daquilo, precisava de algo que me tirasse
daquele breu de ignorância sobre toda aquela situação bizarra, ou então nem
dormiria. Pus o medo de lado e caminhei até o parapeito para olhá-la
diretamente.
Minha tensão ainda estava lá. Como se eu fosse um gato, cada
barulho ativava os meus instintos de defesa, fazendo-me olhar na direção do
som. Mas o meu foco era ela, linda demais, o olhar fixado em sua tarefa.
Passei a imaginar o cheiro dela, o sabor daqueles lábios e a textura
da pele. Ela me olhou, e eu me senti flagrada, como uma criança travessa.
Suspirei profundamente para manter o controle. Ela sustentou o olhar no
meu, mas não consegui tirar nada daqueles olhos. A mulher era
indecifrável, mas eu a queria mesmo assim e deixei isso claro ao apoiar o
queixo nas mãos e encará-la de forma ainda mais intensa.
Funcionou, ela reagiu se endireitando na cadeira e analisando meu
corpo, coberto apenas pelo roupão, com indisfarçável interesse. A despeito
do meu estado de nervos, aquela abordagem íntima me fez sorrir. Mas me
arrependi no mesmo instante, pois minha ação pareceu repeli-la, já que
imediatamente se retirou.
Qual o mistério dessa garota?
Não fiquei esperando como das outras vezes. No momento em que
ela saiu, meu medo voltou e entrei rápido. Chequei novamente todas as
janelas, fui até o quarto, e tio Augusto continuava dormindo. Peguei
travesseiros e lençóis e arrumei o sofá da sala. A noite seria longa.
Luís Otávio apareceu, não brinquei de falar com ele. Meu senso de
humor estava adormecido. Fiz apenas um pouco de carinho e o alimentei.
Antes de apagar a luz da cozinha, observei o suporte de facas sobre
o balcão.
— O seguro morreu de velho!
Peguei uma pequena. Não precisava de nada grande, pois qualquer
mínima lâmina nas mãos de uma cirurgiã pode ser letal.
Deitei no sofá com a faca empunhada. Esperei o sono chegar, mas
como previa isso não aconteceu. Minha cabeça já não desligava
normalmente, e naquela noite isso pareceu uma missão impossível. Devo
ter apagado por meia hora.
Levantei junto com o sol e me vesti. Tentei comer qualquer coisa,
mas meu estômago estava embrulhado. Tomei apenas um café preto, forte,
sem açúcar. Precisava ficar alerta.
No quarto, meu tio ainda dormia profundamente. Olhei para a mesa
de cabeceira e vi a carteira dele, que eu havia trazido do hospital, na noite
anterior. Não resisti, mexi nela.
Nada demais, apenas cartões, algumas notas de dinheiro,
documentos, mas em um compartimento oculto, achei um cartão magnético
com o logotipo da pousada mais famosa da cidade. Provavelmente a chave
do quarto onde ele estava hospedado. Nem pensei duas vezes, peguei e fui
até lá. Tomaria as rédeas da minha vida e começaria por ali. Medo nunca
resolveu nada, só me atrapalhou.
O quarto estava arrumado, ele provavelmente não havia passado
nenhuma noite lá. A mala ainda estava fechada, travada com uma senha.
Olhei ao redor, em uma mesa de canto vi um celular. Peguei tudo e saí sem
mexer em nada, queria sair rápido dali. Com certeza, aquele quarto estava
sendo vigiado.
Dei uma volta pela cidade na intenção de despistar algum
perseguidor, e depois de um tempo estacionei na garagem do meu prédio.
Antes de subir, peguei o celular, mas estava bloqueado por senha. Mesmo
assim, dava para ver as notificações na tela e havia mais de dez ligações de
um tal de Joel Toledo. Anotei o nome e o número no meu celular, em
seguida, subi, levando tudo o que havia pegado.
Fui direto para o quarto e me assustei ao me deparar com ele
absolutamente vazio.
— Tio? — chamei sem obter qualquer resposta.
A porta do banheiro estava aberta, não havia ninguém. Andei pelo
resto do apartamento e nada.
— Ah, meu Deus! Será que o pegaram?
A ideia me fez transpirar e tremer de medo. Corri para o quarto para
pegar alguns pertences e sair correndo dali, mas quando abri o armário,
encontrei uma valise preta com um bilhete em cima, era do meu tio.

Querida Diana, não se preocupe comigo, estou bem, em boas mãos.


Mas, por favor, preocupe-se com você. Fui embora para a sua segurança,
mesmo assim, você ainda corre risco. Por isso preciso que siga as minhas
orientações.
Dentro da pasta tem uma boa quantia e documentos “novos” para
você. Não comprei as passagens de avião porque é melhor que nem eu
saiba do seu paradeiro, mas faça isso logo e vá para o mais longe que
conseguir.
Por favor, ouça-me e confie no que digo. Seu pai é um homem muito
perigoso e a cada minuto os riscos aumentam.
Não esqueça que eu amo você como se fosse uma filha e que estarei
sempre aqui para te proteger.
Com amor,
Augusto.

— Que porra é essa? — falei ofegando ao terminar de ler o bilhete.


Abri a mala, e ela estava lotada de cédulas de reais e dólares, eu não
conseguia mensurar a quantia apenas olhando. Em um bolso havia um
envelope pardo. Abri e encontrei vários documentos com a minha foto.
Carteira de identidade, CPF, certidão de nascimento, habilitação e
passaporte.
— Ana Maria Soares.
Era o nome que ele havia escolhido para mim. Eu estava perdida,
sem saber o que fazer. Abafei um grito quando o desespero extremo tomou
conta do meu corpo e da minha mente. Caí ajoelhada no chão, aos prantos,
e permaneci largada lá por alguns minutos, sem ter ideia do que fazer.
Por fim, peguei o celular e digitei uma mensagem para Gabriel, que
cerca de meia hora depois tocou a campainha do meu apartamento.
— Cara, o que houve, Di? — perguntou, assustado ao ver como eu
estava.
Eu não consegui responder, voltei a chorar e ele me abraçou.
— Calma, respira! — disse, afagando os meus cabelos. — Vem
sentar, vou buscar uma água pra você.
Ele me conduziu até o sofá, apenas me deixei ser guiada. Sentei e o
aguardei voltar da cozinha com o copo de água em mãos.
Contei tudo a ele, em detalhes, e deixei o coitado quase tão
transtornado quanto eu mesma estava.
— Di, você tem que vazar daqui, cara.
— Não é simples assim, Biel. Eu trabalhei duro pra estar aqui, é a
minha vida... a minha carreira.
— Você não teria carreira nenhuma pra trilhar se o herói misterioso
não tivesse matado o bandido que tentou te sequestrar. — retrucou,
impaciente. Estava tenso, amedrontado.
— Biel, olha pra isso? — disse, mostrando os documentos falsos a
ele. — Eu não sou bandida, não vou fugir, não vou viver de forma
clandestina com documentos falsos. Que vida seria essa?
— E vai viver acuada, apavorada? Na expectativa de a qualquer
momento o seu velho louco enviar outro capanga pra te pegar?
— Ele não vai mais precisar fazer isso. — falei, com firmeza, e ele
fez cara de quem não entendeu. Completei: — Vou procurá-lo e tirar
satisfações.
— Você só pode estar louca, Diana! — gritou.
— Ele é meu pai, não vai tentar me matar.
— Ele tentou matar o próprio irmão.
— Gabriel, eu preciso acabar com essa merda, não posso viver
assim. Além do mais, quem me garante que não é o Augusto que está por
trás disso tudo?
— Pelo que eu entendi, a índole contestável aqui não é a do seu tio.
E a troco do que ele faria tudo isso?
— De fato, não faz sentido, mas a verdade é que neste momento eu
prefiro não confiar em ninguém.
— Tá bom, eu não tiro a sua razão, mas não procura o velho. Seu tio
pode estar certo, e se estiver, você vai se ferrar ao fazer isso.
Respirei fundo tentando raciocinar. Gabriel estava certo, procurar o
meu pai poderia ser mais arriscado do que ficar ali. Mas fugir também não
estava nos meus planos.
Nos dias que se seguiram, eu tentei voltar à minha rotina. O medo
era tremendo, andava olhando para os lados, evitava chegar tarde demais
em casa.
Gabriel me ajudou a conseguir uma arma e me ensinou a manejá-la.
Passei a dormir com ela e com a faquinha embaixo do travesseiro... bem,
dormir é modo de dizer, pois meu sono passou de leve a quase inexistente.
Eu estava deixando de render no trabalho, e Jales chamou a minha
atenção. Dormi umas duas noites lá no hospital mesmo, pois só assim
consegui me sentir segura.
Era tão nítido que eu não estava no meu normal que até a chata da
Marina pareceu se preocupar comigo. De uma hora para a outra, passou a se
interessar pela minha vida, pelos meus horários, pelo meu bem-estar...
— Bom dia, Diana! O que há de novo?
— Só essa nossa intimidade. Bom dia! — respondi, antipática e saí
sem dar espaço para réplica.
O único momento de paz no meu dia passou a ser aquele breve
instante em que eu ia para a varanda encarar a minha deusa misteriosa, que
parecia me esperar todas as noites, mas também parecia ter medo de mim...
ou de algo, pois nunca me dava mais do que cinco minutos da presença
dela. De todo modo, aquilo me aquecia, fazia com que todos os medos se
dissipassem.
Às vezes eu achava que ela nem era real, parecia um anjo, que
aparecia ali naquela janela só para que eu me sentisse melhor. Eu ficava
pensando se um dia teríamos um contato maior além daquele e ao mesmo
tempo não entendia por que eu simplesmente não a chamava. Era estranho.
Certa noite, após ser largada mais uma vez por ela, fui tomada por
uma fome descomunal, mas os meus armários estavam vazios. Fazia dias
que o medo não me deixava ir ao mercado, mas naquela noite eu não
poderia evitar.
Desci e liguei o carro, que não pegou.
— Desgraçado! — esbravejei, esmurrando o volante, depois de
tentar ligar aquela lata velha várias vezes.
Por fim, decidi ir a pé. Caminhei o mais rápido que pude, olhava
para todos os lados e reagia a cada barulhinho que ouvia. Carregava comigo
a faquinha e a sensação de estar sendo seguida, mas olhava e não via
ninguém.
Respirei fundo quando finalmente cheguei. Peguei um carrinho
comecei a fazer as compras. A ideia era lotar os armários e a geladeira, mas
a pé não poderia levar muita coisa. Então foquei no essencial.
Estava escolhendo umas frutas distraidamente quando senti uma
mão tocar o meu ombro. Abafei um grito e me virei para ver quem era. Era
ela, a vizinha.
— O... oi... — gaguejei, assustada, mas ela não me respondeu.
Fiquei com vergonha, estava parecendo uma idiota. Senti meu rosto
ardendo. Ela entrelaçou os dedos nos meus e me puxou, apenas me deixei
levar. Não fazia ideia do que queria, mas eu estava em êxtase.
Entramos no banheiro, que estava vazio. Era tarde. Ela trancou a
porta e me empurrou para dentro de um dos reservados. Meu coração estava
a mil, aquilo era mesmo real? Parecia um sonho. Minha sanidade não estava
lá essas coisas. Senti minhas costas encontrando a madeira e em seguida,
sem esperar qualquer permissão, ela me beijou.
10 – Represa

Bárbara

Ingrid acordou cedo de novo, logo no dia que eu estava morrendo de


sono. Avisou que ia sair.
— Preciso ir também?
— Não, vai ficar com a minha mãe!
Exausta daquilo, entrei no banheiro. Ela já fez cara feia. Se encheu
de perfume e tentou arrumar a roupa, que estava quase rasgando de tão
apertada. Ela havia experimentado várias peças. Fazia tanto tempo que não
saía de casa que todas elas pareciam ter encolhido. Sim, encolhido, pois
alguém morreria se dissesse que ela tinha engordado uns vinte quilos em
seis meses.
Tomei um banho para acordar e desci para preparar algo. Ela comeu
enquanto eu saboreava uma xícara de café e pensava na vida, entrando mais
uma vez na minha máquina do tempo particular.
— Anda logo ou vai perder o ônibus pra escola! — gritou, a minha
mãe.
O cheiro de café me levou para a casa dela. Ela era um poço de
carinho comigo... um poço cheio de merda. Sempre me tratou como se eu
fosse um lixo dentro de casa. Um lixo que cuidava de tudo, e que se
deixasse de cuidar apanhava.
Eu estava tão exausta daquele inferno! Um dia eu disse que iria sair
de casa e morar sozinha, mas ela disse que se eu fizesse isso precisaria
pagar o que ela havia gastado comigo, como se eu tivesse pedido para
nascer, e nascer dela, ainda por cima. Queria saber quando o Renato,
mimado como era, começaria a pagar pelos gastos dele. O moleque só fazia
o que queria, e ela parecia não ligar para isso. Achava tudo lindo. Se ele
pedisse um unicórnio, ela era capaz de vender o próprio corpo para
conseguir o maldito unicórnio para ele.
Foda-se!
Ingrid jogou um copo com força para chamar a minha atenção e
quase quebrou a mesa junto com o objeto, que se despedaçou.
— Que porra, Ingrid! — Levantei, puta.
— Estou falando com você! — gritou, rouca.
— Fala.
— Em qual vagabunda estava pensando?
— Na minha mãe! — respondi e larguei a xicara lá. — Que inferno!
Ela ficou na cozinha por um tempo, depois me chamou. Desci junto
com ela, que entrou no carro e deu a partida. Antes de sair, mexeu em
algumas coisas lá.
— Eu volto em duas horas. — avisou e finalmente se foi.
Fechei o portão e entrei na casa da Eulália. Ela estava assistindo
tevê, numa poltrona reclinável; usava uma manta para se proteger do frio
que fazia àquela hora da manhã.
— E aí, Eulália...
— Oi, bom dia! Já comeu?
— Sem fome! — respondi e sentei em outra poltrona.
— Está nervosa? O que houve?
— O de sempre, mas tô bem.
— Já te conheço, menina. Quando está nervosa coça a nuca com
frequência e fala de um jeito diferente também. Tenta relaxar um pouco.
Usa esse tempo dela fora e descansa. Se quiser dormir...
— Valeu, Eulália!
A Ingrid deve ter herdado o sangue ruim do pai, pelo jeito, porque a
mãe dela era muito legal, às vezes.
— Fiz um bolinho. Está delicioso, pego pra você.
— Não precisa, eu pego. Teus bolos são uma delícia mesmo, não
vou recusar. — elogiei e fui à cozinha pegar bolo.
Voltei à sala e pelo vidro da porta vi a vizinha saindo. Sentei numa
poltrona e a vi fechando o portão. Estranhei aquilo, pois sempre ficava em
casa quando estava de folga ou saía a pé.
— Muito bom, Eulália! Tu arrasa! — disse e fui até a porta.
Vi o homem grisalho na varanda observando a rua. Tinha uma cara
abatida. Desviei o olhar quando ele me encarou. Ouvi o miado do Luís e
olhei para o chão, ele pulou o muro e estava vindo em minha direção. Às
vezes parecia que ele achava que era meu.
— Ei, rapaz! — cumprimentei-o, agachando e fazendo um carinho
em sua cabeça.
Levantei e olhei para a varanda, o homem não estava mais lá. Luís
me seguiu quando entrei na casa.
— Olha quem estava lá fora!
Luís colocou as patinhas na perna da Eulália, como se a
cumprimentasse. Ela coçou a cabeça dele.
— Ele é bonito, né?
— Muito. Deve ser mimado!
— Com certeza! — Bateu na própria perna e o gato subiu num salto
lento.
A amizade que a dona dele não fazia com os vizinhos, ele
compensava, pois conhecia todo mundo. Era bem sociável.
Cerca de meia hora depois, bateram no portão. Eulália tentou se
levantar e eu a impedi.
— Pode deixar que atendo.
Era o homem grisalho. Franzi o cenho e fechei a porta depois de
sair. Ele notou que olhei para trás, para ver se Eulália estava observando.
— Oi, bom dia! Desculpe chegar assim...
— Tudo bem. O que deseja? — disse baixo, deixando claro que não
era seguro falarmos ali.
— Você tem um minuto? — perguntou e apontou para um lado da
rua, acho que queria eu saísse.
— Não. Pode falar aqui mesmo. Não posso sair.
Poder eu podia, a Eulália me dava cobertura, às vezes. Mas achei
melhor não arriscar.
— Eu quero agradecer pelo que fez outro dia. Eu...
— Não precisa agradecer...
— Desculpa, você está com pressa! Vou ser rápido. Eu estou indo
embora e... — disse e pegou um cartão de dentro do bolso e me entregou.
Eu continuei o encarando, segurando o cartão.
— Preciso da sua ajuda. Notei que tem uma boa visão do
apartamento da minha sobrinha e sei que a observa. Você me ajudou quando
viu aquele bandido entrando lá. Confesso que fiquei assustado com a sua
força e astúcia, mas algo me diz que posso confiar...
— Tio, tu pode só falar o que quer e pronto? — pedi perdendo a
paciência com ele, que falava devagar e manso demais para quem estava
sendo rápido.
— Ela precisa deixar essa cidade o mais rápido possível, mas é
muito teimosa, não vai atender ao meu pedido. Não conheço você, fiquei
reticente em te procurar, mas eu tenho a impressão de que você se importa
com ela. Sei que se precisar, você a ajudará. Então preciso que fique de
olho, e se algo acontecer me procure nesses números aí...
— E por que eu faria isso? Nem te conheço, nem sei o teu nome.
— Eu sou Augusto Sobreira, médico cardiologista, enfim, está no
cartão. Eu pago bem. Se você não puder me ajudar vou precisar colocar
alguém de fora e temo que chame a atenção de gente perigosa.
— Ok, doutor Augusto, eu posso ficar de olho nela.
— Preciso de uma conta bancária sua, eu faço a transferência e você
nem precisa de...
— Não quero dinheiro. — disse, olhando o cartão e vi que no verso
havia outro contato.
— Como vamos trabalhar então?
— Tu fica me devendo favores. Valem mais que dinheiro, né?
Ele franziu as sobrancelhas e me analisou. Eu sorri e o semblante
dele se desarmou.
— Não preciso de dinheiro, tio! Preciso de bons contatos. Eu protejo
a sua sobrinha e quando eu precisar você me protege. Fechado?
Ele engoliu saliva. O medo e reticência dele eram visíveis.
— Fechado! Quero informações. E se precisar de dinheiro, é só
ligar, ok? Preciso de um contato seu. Qual o seu nome?
— Eu já tenho o teu contato. Ligo quando precisar. Agora vaza!
Demonstrando descrença, ele atravessou a rua e entrou no prédio.
Entrei e Eulália me lançou um olhar interrogativo.
— Propaganda! — menti.
Fui até a cozinha. Lá, observei o cartão e gravei os números na
mente, depois o rasguei e joguei na pia. Liguei a torneira e vi os pedaços
serem levados para o ralo. Peguei outro pedaço de bolo e voltei a sentar na
poltrona.
Quando Ingrid voltou, com cheiro de cigarro, eu estava dormindo no
sofá. Passava do meio-dia. Acordei ao ouvir a voz dela. Eulália havia feito
almoço.
— Nem ajuda em nada, né?
— Para, Ingrid. Ela ajudou, sim. Acabou de dormir.
— Posso entrar em casa? — perguntei para que me desse a chave,
pois sempre que saía sozinha me deixava na casa da Eulália e sem ter como
subir.
Rabo preso!
Eu lembrava vagamente de um sonho, mas lembrava com clareza
dos números no cartão que o estranho grisalho me deu.
Augusto Sobreira!
A semana passou tranquila. Continuei observando a vizinha. Nos
primeiros dias, sempre que ia para a varanda, ela ficava apreensiva, como se
qualquer barulho fosse atacá-la, mas com o passar dos dias foi ficando mais
relaxada.
Eu a segui certa noite, quando saiu, mas não me deixei ser vista. Ela
foi apenas à padaria e voltou para casa. Sempre olhando em volta. Observei
de longe. Minha vontade de chegar perto, sentir seu cheiro, era enorme, mas
eu não podia.
Naquele dia acordei cansada, com pensamentos impuros e
proibidos. Não de uma forma obscena, mas sanguinária mesmo. Tudo
porque fazia três dias que Ingrid não dormia à noite e ficava me
infernizando. E eu fazendo todo o esforço do mundo para me manter
“acordada”, porque se sucumbisse àquele cansaço, coisa muito ruim
aconteceria.
Eu mantinha uma caixa do calmante dela muito bem escondida. Ela
tomou o de sempre, mas eu quis garantir a minha noite de sono, então diluí
mais um em um copo de suco e ofereci a ela. Era isso ou matá-la
lentamente com uma faca de mesa.
Ela dormiu relativamente cedo, cerca de dez da noite. Respirei
aliviada, nunca fiquei tão feliz ao ouvir aquele ronco. Fui para a varanda e
me debrucei na grade. Fiquei observando a rua, o silêncio, os barulhos... aos
poucos, as luzes dos apartamentos se apagavam.
Eu não tinha palavras para dizer o quanto amava a noite. Sua
tranquilidade me trazia paz. E era à noite que a vizinha aparecia na varanda.
Era o nosso momento, o meu momento de plena felicidade.
Naquela noite, ela sorriu como se me chamasse, mas eu estava
exausta, apesar de não querer sair dali. Até tentei afastar o sono
massageando os ombros, mas foi inútil, fui vencida pelo cansaço e resolvi
entrar.
Apertei os olhos com força e vi por trás da cortina quando ela saiu.
Olhei para Ingrid.
— Isso, dorme, sua desgraçada! — sussurrei pegando a chave do
portão e bocejando para expulsar aquele sono.
Saí. Não consegui ver nem sombra da vizinha na rua, mas naquela
hora só tinha um lugar para onde poderia ir: Supermercado 24h. Arrisquei e
fui até lá. Falei com as meninas do caixa, o gerente estava por lá também e
me cumprimentou com um sorriso simpático. Entrei e observei o ambiente.
Havia pouca gente.
As pessoas mais legais fazem compras de madrugada.
Falei com mais dois funcionários, que já me conheciam, e entrei
procurando, até que a vi, escolhendo frutas. Cheguei perto e toquei
suavemente o seu ombro, mas a suavidade foi em vão, ela se assustou do
mesmo jeito. Arregalou os olhos para mim e gaguejou um “oi”. O rosto
ficou vermelho no ato. Não respondi, só agarrei sua mão e a levei para o
ambiente mais reservado daquele lugar.
Ela não ofereceu resistência, apenas se deixou levar. Entramos no
banheiro, tranquei a porta rapidamente e a empurrei para um dos
reservados. Ela era pelo menos uns dez centímetros mais alta que eu, mas
naquele instante eu me sentia gigante. Colei suas costas no box, agarrando
os cabelos de sua nuca com as duas mãos e a beijei como se fosse algo
corriqueiro, como se não fosse algo impossível de acontecer.
Ela correspondeu com a mesma naturalidade, e me deliciei ao sentir
sua língua macia recebendo a minha em uma carícia suave. Eu tinha sede
dela, não aguentava mais pensar naquela boca, senti-la depois de vê-la tão
perto me causou uma sensação inédita. Larguei seus cabelos e a envolvi
pela cintura, com força. Nossos corpos se encontraram. Outra sensação
inédita, surreal. Dava para sentir no ar o calor de nossas peles.
Ela correspondia àquele beijo com o mesmo desejo, e isso estava me
levando à loucura, mas apesar da minha urgência, mantive a calma.
Sua mão agarrou a minha nuca também, como se temesse a minha
fuga. Joguei o autocontrole para o espaço, não precisava mais. Eu a queria,
e ela estava ali, completamente entregue a mim, demonstrando tanto desejo
quanto eu.
Intensifiquei o beijo e rocei meu corpo no dela. Enrosquei os dedos
em seus cabelos e os puxei com uma força incalculada que a fez gemer.
Quase gozei com aquele gemido rouco na minha boca. Depois disso, o que
seria apenas um beijo se transformou em algo incontrolável e apressado.
Enquanto desabotoava sua camisa, distribuí vários beijos em seu
rosto e mordi seu queixo. Ela tinha um cheiro delicioso, que me convidava
a devorar aquele pescoço. Aspirei forte o aroma e suspirei, alucinada com
as sensações que ele estava me causando. Ela jogou a cabeça para o lado e
me deu espaço para explorar. Apenas gemia e segurava a minha cabeça,
enquanto eu sugava e mordia de forma lasciva.
Desci a boca pelo seu colo com a pressa de quem estava fugindo e
apenas levantei seu sutiã para ver os seios dela me saudarem. Eram lindos,
médios, firmes, mamilos rosados e eriçados, esperando por mim. Suguei
com vontade, um, depois o outro. Ouvi os gemidos abafados dela, que
tentava se conter para não fazer barulho, e fiquei mais excitada ainda com
aquilo. Meu instinto me fez apertar forte um dos seios, e ela não conseguiu
mais controlar. Simplesmente deixou sair aquele som rouco e sensual de sua
garganta.
Minha mão direita encontrou suas costas nuas. Eu a acariciava com
força, apertando, na intenção de ver se era real. Desci até sua calça, pus a
mão por dentro. Toquei em algo duro e notei que se tratava de uma pequena
faca, embainhada. Coitada, ainda estava com medo. Deixei o objeto cair e a
beijei.
Senti a maciez da pele e a forma bem desenhada de sua bunda.
Apertei numa carícia contínua. Com a outra mão, levantei a minha própria
blusa e colei meu abdome no dela. Não podia esperar para sentir mais dela,
então desocupei as mãos para abrir sua calça.
Ajoelhei-me e a despi, descendo a calça e calcinha juntas. Ela
levantou uma perna para me ajudar a livrá-la das peças. Vi seu sexo ali,
pronto para mim, e salivei de desejo. Ela era toda linda, da cabeça aos pés,
exatamente como eu imaginava.
Passei a língua devagar e profundamente, ela apertou os meus
cabelos e gemeu alto de novo. Levantei sua perna, colocando-a sobre o
vaso, e intensifiquei o ritmo da minha língua, enquanto apertava sua bunda.
O gosto era delicioso.
Eu estava quase enlouquecendo. Eu a penetrei, sem parar as
chupadas. Queria sentir o prazer dela pulsando nos meus dedos.
Mesmo com uma vontade imensa de passar a noite fazendo aquilo,
quando ela gozou, enlouquecida, contorcendo-se em minha boca, apertando
os meus dedos e tentando se segurar nas paredes finas do box, eu levantei,
dei um beijo para que sentisse o próprio gosto e me livrei de seu abraço
para ir embora dali.
11 – Ela

Diana

Após uns cinco minutos encostada naquele box, boquiaberta,


olhando fixamente para o aviso de não jogar papel no chão enquanto
tentava me recuperar daquele ataque delicioso da vizinha, só havia uma
conclusão possível a se chegar:
— Eu fui usada!
Mas isso não foi absolutamente uma reclamação. Ao contrário, se
todo mundo que me usasse de alguma forma me causasse aquelas
sensações, gostaria de ser usada todo dia. Toda hora.
Eu ainda a sentia por toda parte. Minha pele pálida estava
avermelhada das marcas de sua boca, e só de lembrar daquela visão linda
dela me devorando inteira, meu corpo começou a esquentar de novo.
— Não, isso não vai ficar assim.
Eu queria mais daquilo, só não tinha ideia do que fazer. Estava
reticente, queria procurá-la para tirar satisfações, mas aquele ar misterioso
me intimidava. Fiquei pensando nos motivos que a levaram a sair correndo
dali. Ela tinha que ter uma justificativa plausível, pois não acredito que não
tenha gostado da nossa travessura.
Decidi ir ao apartamento dela. Arrumei o sutiã e abotoei a blusa.
Quando agachei para subir a calça, vi a minha faca.
— Que merda!
Fui trazida na velocidade da luz de volta para a minha realidade, o
coração passou a bater acelerado, mas não mais por causa do êxtase que eu
acabara de sentir.
Será que ela viu isso? Não deve ter entendido nada. Que vergonha!
— pensei, cobrindo o rosto com as mãos.
Envergonhada, fui direto para casa. Não tive sequer coragem de ir à
varanda àquela noite. Luís até estranhou.
— O que deu em você hoje? Tá parecendo uma criança travessa que
está com medo do castigo da mãe. — disse, se enroscando em minhas
pernas enquanto eu espiava por trás da cortina.
— Nada, Luís. Isso não é da sua conta, seu metido!
— De fato, não é! Mas às vezes eu gosto de fingir que me importo
com a sua vida monótona.
— Falou o rei da festa, né? Superagitada essa tua vida de comer,
dormir e sujar a caixa de areia. — retruquei, ofendida.
— Ah, humana, humana... você realmente não sabe de nada.
Me largou ali com aquela ironia e saiu pela varanda. Deixei suas
baboseiras de lado e fui tomar banho. Revirei um tempo na cama, mas
dormi cedo, estava exausta.
Na manhã seguinte, aquela maluquice toda no hospital. A mulher de
pulsos cortados, Ingrid, chegou acompanhada da vizinha. Depois de atendê-
la e deixá-la fora de perigo, fui até a recepção. Precisava repassar notícias
sobre o estado da paciente, mas queria mesmo era confrontar aquela
maluca.
É maluca, mas é linda demais! E aquela boca... nossa!
Mas eu não queria sucumbir ao efeito que ela me causava, então
vesti a minha máscara de médica séria para falar com ela. Apresentei-me.
Todos aqueles dias trocando olhares, um sexo clandestino no banheiro de
um supermercado, e sequer sabíamos o nome uma da outra.
Ela não me disse o nome dela, mas para disfarçar a curiosidade,
antes de perguntar, olhei-a fixamente e falei sobre o estado da paciente. Por
fim, perguntei como se chamava, mas antes que me respondesse, a mãe de
Ingrid apareceu. Estava completamente alcoolizada.
Observei a interação das duas, a mulher estava muito alterada e
cheirava mal. Jéssica foi cuidar dela. Pedi que a atendesse, ela não tinha a
menor condição de responder pela filha naquele estado.
No curto espaço de tempo em que as duas se distanciavam de nós,
calculei mil perguntas para as quais exigiria respostas naquele exato
instante. Não permitiria que ela fugisse daquela vez. Mas quando ficamos a
sós novamente, meu plano inteiro foi por água abaixo. Ela me devorou com
aqueles olhos lindos, e isso me teletransportou direto para a noite anterior.
Eu a queria de novo, minhas perguntas ficariam para depois... ou durante.
Minha vez de puxá-la pelo braço sem pedir permissão. Estávamos
no meu território, e eu a levei para um dos quartos de descanso dos
plantonistas. Entramos, tranquei a porta e a beijei intensamente.
Ela me correspondeu com a mesma intensidade. Não sabia como,
mas eu tinha certeza de que me queria tanto quanto eu a ela. Era algo
mágico, uma atração incontrolável.
Enquanto a beijava, perguntei:
— Quem é você?
— Tem certeza que é isso que quer fazer agora? Conversar? —
indagou ofegante enquanto distribuía beijos lascivos pelo meu pescoço.
Respirei fundo, precisava manter o controle.
— Você acabou de chegar aqui trazendo uma mulher com os pulsos
cortados e é em sexo que está interessada?
— Você não?
Touché!
— Eu quero as duas coisas...
Foi tudo o que consegui falar antes mergulhar em seus lábios
novamente.
— Teu gosto não saiu da minha boca, teu cheiro ainda me causa
transe, se você já cuidou da paciente, não tenho motivo pra pensar nela.
Ainda mais com você assim tão perto...
Contrariando a minha curiosidade, o poder que ela possuía de me
tirar o juízo tomou conta de mim novamente. Aquela voz rouca sussurrando
provocações ao meu ouvido me tirou o senso e perdi o controle.
A boca dela se encaixava na minha com perfeição, nossas línguas se
enroscaram famintas uma pela outra, movimentando-se no ritmo de nossas
respirações.
Pressionei meu corpo contra o dela, agarrei e puxei o cós de sua
calça, forçando o encontro dos nossos quadris. As mãos dela agarraram a
gola do meu jaleco e me puxaram mais para perto. Uma viajou para a minha
nuca e a apertou enquanto a outra buscou um dos meus seios.
Ela queria o controle, eu queria também, e aquele turno era meu por
direito. Larguei o cós da calça e agarrei as duas mãos dela. Sem interromper
o beijo, empurrei-a com meu corpo até que suas costas se chocassem com a
porta, ergui seus braços, pondo-os sobre sua cabeça e interrompi
rapidamente aquele beijo para dizer:
— Minha vez!
— Eu estava contando as horas pra isso!
Arranquei sua camiseta e me perdi brevemente apreciando a forma
linda dos seios pequenos sob o sutiã preto, de renda. Observei suas
inúmeras tatuagens, que formavam sua personalidade e contrastavam com a
pele branca. Beijei seu colo, desci para o decote, arranhando a pele com os
dentes enquanto acariciava os dois seios. Afastei o tecido para encontrar o
mamilo rígido, que praticamente gritava pedindo para ser devorado. Atendi
àquela súplica, sedenta. Ela gemeu e o som penetrou meus ouvidos fazendo
com que tudo se contraísse dentro de mim.
Voltei a beijá-la ainda mais passional. Não sabia o que era aquilo,
quanto mais eu tinha, mais eu queria daquela mulher de quem eu sequer
sabia o nome. Era um sentimento irracional, inexplicável, que ia
completamente contra todas as minhas lógicas. Jamais havia sentido tanto
desejo por alguém.
Separei as bocas em busca de ar, trilhei beijos do queixo ao pescoço
e a conduzi para a cama de baixo do beliche. Antes de deitá-la, desabotoei
sua calça.
Resolvi insistir:
— Pode, pelo menos, me falar o teu nome?
— Bárbara.
Mal respondeu, não me deu tempo para prosseguir. Enfiou as mãos
em minha nuca e me levou de volta para o beijo.
— Bárbara... — repeti em um sussurro. — Lindo nome!
Tirei sua calça, ela me ajudou e em seguida começou a me despir
também. Deitamos, eu sobre ela, na pequena cama. Desci a boca por aquele
corpo lindo, despi completamente os seios antes de sugá-los novamente. As
unhas dela arranhavam suavemente as minhas costas, me causando arrepios.
Toquei seu sexo por cima da calcinha, e mesmo com a peça impedindo o
contato direto eu pude sentir a umidade.
Senti sede de prová-la, queria sentir o gosto dela. Desci a boca por
sua barriga, ventre... ela se contorcia, rebolava o quadril buscando atrito,
mas antes de descer mais um nível, sem interromper a carícia, tentei mais
uma pergunta:
— Aquele encontro no mercado... não foi coincidência, foi?
— Você já sabe a resposta.
— Quero a sua confirmação.
— E eu quero gozar. Depois a gente conversa.
O que eu poderia dizer? Depois do orgasmo alucinante que ela havia
me proporcionado na noite anterior, era o mínimo que eu a devia.
Por cima da calcinha, mordisquei seu sexo. Ela gemeu mais alto,
ofegando, clamando em silêncio para que eu continuasse. Tinha pressa, e eu
também. Estava no meio do meu plantão e a qualquer momento sentiriam a
minha falta.
Arranquei sua calcinha e a devorei inteira, sem qualquer pudor.
Indescritível a sensação, ela era deliciosa, tanto quanto parecia. Minha
língua explorou cada pedacinho dela enquanto meus dedos deslizaram para
penetrá-la lentamente. Não demorou muito até que ela os esmagasse com os
espasmos causados pelo ápice do prazer que sentiu.
Seu corpo estremeceu logo que eu tirei os dedos, e o mesmo
aconteceu com o meu quando ergui a cabeça e vi seu rosto. Os olhos
selvagens, me encarando com intensidade, a boca entreaberta, a língua
passeando sensualmente pelo lábio inferior, que depois foi mordido...
Nem parece real, é uma deusa mesmo!
— Você é linda demais, sabia? — elogiei, com cara de boba
enquanto acariciava aquela pele branca e suada. — Quero mais!
— Vem! — convidou com malícia.
Fui. Nem precisou chamar duas vezes.
Deitei meu corpo nu sobre o dela, encaixando nossos sexos. O
simples contato me causando sensações indescritíveis, me fazendo gemer
alto, sem querer. Nossas umidades se misturando...
Sentir meu corpo colado no dela sem nenhum impedimento, nossos
seios se esmagando, o atrito entre nossos sexos foi demais para mim. Mal
comecei os movimentos e já explodi em mil pedaços num orgasmo intenso,
surreal, perfeito!
Nos beijamos com calma pela primeira vez. Um beijo explorador,
lento, delicado, e nem por isso menos carregado de sensualidade. Pois meu
corpo respondia. Acariciei seu rosto e a encarei.
— De onde você veio, hein?
— Não importa de onde eu vim. Tudo o que importa é pra onde eu
vou de agora em diante.
E girou nossos corpos, ficando por cima. Mais uma vez a minha
curiosidade ficou em suspenso.
— Tá bom, agora é a minha vez!
Foi o que disse antes de descer a boca e me devorar inteira.
Perdi por completo a noção do tempo. Ela acabou comigo. Fizemos
aquilo tantas vezes que desmaiei de cansaço. Acordei assustada com o som
de mensagem do celular. Bárbara havia sumido.
— Claro que ela fugiu, idiota! Pra que você foi dormir, sua anta? —
me xinguei.
Frustrada, peguei o celular e me assustei com a hora. Se Jales
tivesse sentido a minha falta, eu seria uma mulher morta. Li a mensagem da
Jéssica informando que a mãe da paciente já estava em condições de
conversar comigo. Eu era quem não estava em condições nenhuma de
conversar com ninguém, mas não poderia fugir daquilo. Lavei as mãos e o
rosto, vesti a roupa e tentei me recompor minimamente antes de ir até lá.
No caminho, procurei Bárbara e não a vi mais. Engoli a minha
frustração.
— Dona Eulália, como está se sentindo?
— Bem melhor, doutora. Desculpe pelo meu estado quando cheguei
aqui...
— Não tem do que se desculpar, o importante é que a senhora está
bem.
— Sim, graças a senhora. Obrigada! Mas estou preocupada com a
minha filha, doutora. Ela soube que o tio está com câncer...
— Ela perdeu muito sangue. Entrou em choque e teve uma parada
cardíaca, mas felizmente foi atendida a tempo e está fora de perigo.
— Graças a Deus! — falou, em lágrimas, estava muito emocionada.
— Acalme-se, dona Eulália. Está tudo bem! O pior já passou. A
moça que a trouxe agiu rápido. O atendimento dela salvou a vida da sua
filha.
— Sim, a Bárbara é um anjo na vida da Ingrid. Queria tanto que ela
a valorizasse.
— A Bárbara também é sua filha?
Não resisti, eu precisava saber qual era a relação das duas. Eu até
sabia qual seria a resposta, já que a própria Bárbara havia me dito que não
eram parentes, mas não queria acreditar que eram um casal.
— Elas moram juntas, são namoradas... acho que é assim que fala,
né?
Senti um nó se formando em minha garganta. A informação me
causou uma sensação terrível. Fiquei com raiva, me senti enganada, usada...
e senti muito ciúme também. Respirei fundo para me controlar, não podia
deixar transparecer os meus sentimentos.
Mudei de assunto:
— Dona Eulália, preciso de informações sobre a sua filha. Ela
ingeriu uma dose alta de medicamentos antidepressivos. Sabe me informar
se ela faz algum tipo de acompanhamento psicológico? Se tem alguma
patologia diagnosticada?
— Sim, ela frequenta o consultório de um psiquiatra. Doutor
Alfredo Mineratto. Tem depressão.
— Nossa!
— Pois é, ela é advogada, sabe? Trabalhou muitos anos em São
Paulo. Era presidente da comissão de licitações da Secretaria de Saúde. Era
toda importante, vaidosa, só andava com roupa de grife, perfumada, tinha
carrão... era cheia de amigos influentes. Quando houve a troca de governo,
foi exonerada, mas o pior foi a perda do pai. Nunca mais trabalhou depois
disso. Voltou pra cá e começou a definhar. Parou de sair de casa, engordou
muito, ficou desleixada...
— Eu lamento, dona Eulália...
Tentei interromper, mas a mulher parecia querer dar o parecer
completo sobre o estado da filha.
— Até estranhei quando a Bárbara apareceu por aqui. Ingrid não se
envolvia com ninguém havia muito tempo. Fiquei feliz, a Bárbara é uma
menina doce, boa. Faz tudo em casa, cozinha muito bem, é muito prestativa.
Eu fico muito triste por minha filha ser tão grosseira com ela. Morro de
medo que ela perca a paciência e a abandone...
— Grosseira? — perguntei, na cara de pau. Eu precisava entender
aquilo.
— Sim, a Ingrid é muito difícil. Tem ciúme do vento, trata a menina
muito mal, sabe? Eu nem sei por que ela ainda permanece lá, deve amá-la
muito.
Com certeza ama!
Então ela vive um relacionamento abusivo. Isso explica o mistério,
as fugas... mas não diminui a minha raiva.
— Eu vou precisar entrar em contato com o médico da sua filha,
dona Eulália. — falei, tentando mudar de assunto ou me entregaria. — Ela
tentou cometer suicídio. Nós a socorremos, mas somos um centro de
trauma. Não temos condições de tratar a patologia dela.
— Eu entendo! Tenho o contato dele, se quiser.
— Sim, por favor!
Algum tempo depois Ingrid acordou, estava muito agitada, falando
coisas sem nexo. Acusava alguém, mas não era possível compreender a
quem e do que acusava. Precisamos prendê-la na cama e sedá-la
novamente, pois tentou se livrar do acesso para ir embora.
Jales entrou em contato com o doutor Alfredo, que logo apareceu
para avaliá-la. Devido ao seu estado, ele determinou que ela ficasse
internada por no mínimo três dias, pois teria que passar por novas
avaliações. Ele temia uma piora no quadro dela.
No fim do meu plantão, eu estava exausta. Na saída do vestiário
encontrei Gabriel.
— Nossa! Que cara é essa, Di?
— Esse dia valeu por três, Biel. Tô acabada! Preciso de umas
cervejas. Me acompanha?
— Claro, me dá dez minutos e vou com você.
— Ok!
Eu precisava me livrar daquela tensão, precisava conversar com a
Bárbara, com urgência.
Não vou aceitar fugas!
12 – Bengala

Bárbara

Depois da minha safadeza com a vizinha no mercado, entrei em casa


completamente ofegante, subi e tomei banho. Precisei de um bom tempo
para me acalmar, mas estava realizada. Nunca na vida havia feito algo
daquele jeito. Foi tudo tão perfeito que se me contassem não acreditaria.
A noite foi longa, eu ainda estava extasiada e não consegui pregar o
olho. Pela manhã, depois da confusão dos comprimidos e a notícia da
doença do Silvio, achei que aquela desgraçada fosse segurar a onda e ficar
tranquila comigo, mas ela queria mesmo brigar, e eu estava bem demais
para aguentar aquele mau-humor infernal logo cedo.
Pediu água gritando como louca. Senti um sono enorme, tentei me
manter, mas foi mais forte que eu. Respirei fundo, massageei o ombro, onde
se concentrava o meu cansaço. Fui tirada da minha tentativa de me manter
na ativa por ela me puxando pelo cabelo.
— Preciso dormir, mas antes você vai me explicar direitinho por que
está me tratando como se eu fosse as tuas putas. — perguntou, soprando
aquele bafo horrível no meu rosto.
— Me larga, Ingrid! — ordenei, por entre os dentes, tomada pela
raiva. — O teu ódio é por saber que eu não tenho culpa pelo teu
comprimido ter sumido.
Segurei a mão dela com força e tirei do meu cabelo.
— O que está acontecendo? Você mudou e para pior. Mas já sabe,
comigo não se cria. Vai buscar minha água. Quando eu acordar vou te
ensinar a me respeitar, sua vagabunda! — ameaçou e me empurrou.
Eu saí do quarto com os olhos encharcados de ódio líquido, apertei
as pálpebras e as lágrimas desceram. Peguei a água dela e subi. Ela tomou e
deitou resmungando mais grosserias.
Sentei no chão e comecei a rabiscar enquanto a ouvia vomitar os
xingamentos e as ofensas, que só pioravam. Internalizei aquilo tudo.
Quando notei que começou a ficar quieta, corri ao banheiro, peguei um
aparelho de barbear e tirei sua lâmina.
Eu ofegava de ódio quando coloquei a lâmina entre seus dedos, e
usando as minhas mãos a conduzi a se cortar. O sangue esguichou, sujando
a cama e o chão. Depois de alguns segundos, chamei a ambulância. Rasguei
um lençol e fiz torniquetes nos pulsos dela para estancar o sangramento. Se
morresse, tranquilo, mas não era a minha intenção. Na hora certa, eu queria
matá-la e queria que soubesse que era eu quem a está matando.
Não vi Eulália por ali, não estava em casa. Pensei que pudesse ter
ido à casa do irmão, mas só a vi depois que a filha dela já havia sido
atendida no hospital. Coitada, foi beber de novo, mesmo se virando em
força para parar, não aguentava.
Mas a maior surpresa não foi ver a Eulália chegar bêbada ao
hospital, foi saber que a vizinha gostosa era a médica que atenderia a
desgraçada.
Depois de toda a correria, quando ela me arrastou para aquele
quarto, sabia que me encheria de perguntas e estava preparada para não
responder nenhuma. Mas quando fechou a porta, ao invés de falar me
beijou. Fiquei aliviada, pensei que tinha me livrado, mas estava enganada.
Ela começou, e eu só queria repetir o que fizemos na noite anterior.
Respondi o mínimo possível e a transamos ali, várias vezes. Pensei
que alguém pudesse entrar, mas logo não consegui pensar em mais nada.
Curti cada momento com ela e curtiria dali pra frente se ela quisesse.
— É perfeita demais! — sussurrei admirando aquele rosto lindo
quando ela dormiu.
Lembrei que com a Ingrid inativa eu teria tempo de procurar as
minhas coisas. Corri dali. Vi Eulália numa maca, com olhos abertos,
pensativa, ainda tomando soro.
— Bárbara, minha filha, o que houve?
— Acho que ela ficou abalada com a notícia do tio. Eu estava na
cozinha, subi para levar água pra ela e me deparei com o sangue. Chamei a
ambulância e tentei estancar. — menti com a precisão de quem fala a
verdade.
— Quase morri do coração, mas agora ela está fora de perigo, minha
filha. Obrigada! Você é um anjo.
Ah, se ela soubesse o tipo do anjo que sou!
— Eu vou pra casa. Vou limpar lá e deixar tudo arrumado pra volta
dela.
— Tudo bem, vai lá! Eu vou ficar aqui, quero falar com a médica.
Saí correndo, queria aproveitar cada segundo. Joguei tudo fora e
tentei dar um jeito no colchão que ficou com uma pequena parte encharcada
de sangue.
Depois fui para o terceiro andar. Olhei em volta e comecei a abrir
algumas caixas mais fáceis de fechar depois.
Havia várias pilhas de caixas, parecia estoque de mercado. Vi
também alguns cavaletes, achei uma caixa com pincéis e algumas tintas
usadas; nunca soube que pintava. Abri mais uma e vi uma peruca loura e
uma réplica em silicone de um abdome com barriga e peitos. Levantei o
objeto e o analisei, cheguei perto e senti o cheiro da parte de dentro. Era o
cheiro dela, pelo menos era o cheiro que ela exalava quando nos
encontramos pela primeira vez. Aquela borracha manteve o perfume.
Perfume é combustível de máquina do tempo, então assim que inalei
já me vi em casa, com o celular na mão, conversando com ela, que nem nos
meus piores pesadelos seria essa pessoa que se tornou, ou que se revelou
para mim.
— Quero ficar velhinha ao teu lado, sabia?
Eu lia aquelas mensagens doces dela e tentava manter o diálogo. O
fato era que eu estava querendo distração apenas, e não queria alguém de
perto. Mas também não queria “casar”. Queria diversão, pois jamais alguém
foi capaz de despertar sentimentos crônicos bons em mim. Então passei a
conversar e quando vi estávamos “envolvidas”. Ela demonstrava estar mais,
mas era tudo farsa também.
Depois de entrar na sala da psicóloga e roubar minha pasta, um
babaca me entregou e precisei devolver as anotações para ela, que ameaçou
me entregar para a polícia. Lá tinha coisas que eu não me lembrava de ter
contado.
— Você inventou isso aí. — falei para a profissional, sentindo as
lágrimas me cegando. — Se a polícia pegar, estou ferrada, cara!
— Eu sou uma profissional. Você está protegida pela ética, fica
tranquila. Mas você precisa de tratamento, Bárbara. Não resista, por favor.
Não inventei nada, isso aqui é você de todas as formas. E tenho tudo
gravado em vídeo e áudio corridos e sem edição. Não estou ameaçando
você, só quero que se trate. Você é menor de idade, pode começar o
tratamento e se livrar desse perigo.
Aquele foi o meu fim. Não fazia ideia do que ela estava falando. Eu
me lembro de ter tomado muita água lá. Aquela desgraçada seria capaz de
me drogar para que eu falasse algo que não fiz.
Com certeza!
Mas aquilo não ficaria assim. Naquele dia, eu voltei para casa
maquinando um jeito de voltar lá e pegar tudo o que era meu. Foda-se a
ética dela. Se me ameaçou, ela poderia, sim, fazer algo contra mim.
Então, diante daquela acusação, minha mãe soube dos
acontecimentos e me bateu. Não foi como antes, mas foi. Eu tentei me
defender para não revidar, até que ela cansou e ficou me xingando. Nem
consegui sentir raiva dela, eu só conseguia pensar em como poderia voltar
naquela sala para pegar tudo o que era meu e queimar, mas não surgia nada.
Ingrid foi ao Rio de Janeiro e nos encontramos. Passei o dia com
ela. Carinhosa, amorosa, fez milhões de juras de amor.
— Você já pensou que quando ficarmos velhinhas, você não tão
velhinha assim, claro, eu vou tacar a bengala na sua cabeça se você olhar
pra outras velhinhas?
— Meu Deus, que velhinha violenta! — brinquei, sorrindo.
Ela riu, gostei de ouvir sua risada. Pareceu genuína.
— Sou vinte anos mais velha que você, menina! Sei exatamente o
que quero, mas temo que você esteja apenas brincando comigo. — disse,
encostada no carro com os braços em volta da minha cintura.
— Por que eu faria isso?
— Sei lá, tenho medo.
— Relaxa, vai! — pedi e a beijei.
— Está bem. Você é muito linda, sabia? Não quero ir embora e te
deixar aqui.
— Eu não posso sair daqui. Moro com a minha mãe e meu irmão.
— Eles dependem de você? Digo, financeiramente. Se sim, eu posso
cuidar disso numa boa.
— Não.
— Confia em mim, pode falar. Quem sabe eu possa ajudar. Quero
muito que passe um tempo comigo. Falo com a sua mãe, se você quiser.
— Não precisa...
Foi então que tive a brilhante ideia de envolver aquela infeliz no
assunto da psicóloga. Eu devia ter morrido quando propus que ela distraísse
a mulher enquanto eu pegava as minhas coisas.
— Meu amor, eu vou buscar suas coisas, ok?
— Ela jamais vai te entregar, Ingrid. O meu plano é mais fácil de
dar certo. Só preciso que você a distraia enquanto eu entro lá e pego.
— Confia em mim, se o meu plano não der certo, tentamos o seu,
tudo bem?
Respirei fundo, estava reticente, mas acabei concordando.
— Ok, vai! — falei, me rendendo.
Fiquei dentro do carro dela, esperando. Levou trinta e cinco minutos
entre a entrada dela no prédio e sua saída. Trazia algumas caixas nos braços.
Eu me assustei e saí do carro, abri a porta, ela colocou o conteúdo no porta-
malas.
Saímos dali em alta velocidade. Ela estava vermelha, acho que
discutiu com a mulher.
— O que houve? Como conseguiu pegar?
— Está tudo aí.
— Sério? Não acredito... — disse, empolgada, feliz.
Eu ia finalmente queimar aquelas porcarias e me livrar daquilo pra
sempre. Naquele maldito dia, passamos a noite juntas. De manhã cedo, ela
me acordou para irmos queimar meu material da terapia. Preparou tudo e
queimamos a caixa com todo o conteúdo que me incriminava.
Como eu havia passado o dia fora, quando cheguei em casa ouvi
sermão da minha mãe por um bom tempo. De saco cheio daquela situação,
peguei uma mochila, pus algumas roupas dentro e liguei para a Ingrid, que
já havia voltado para São Paulo.
— Arruma tudo e vem pra cá. Fica uns dias, descansa um pouco.
Vou te buscar no aeroporto.
E assim eu fiz. Os primeiros dias foram ótimos. Até cogitei a ideia
de ficar um pouco mais, mas a verdadeira Ingrid se revelou no dia que
gritou com a doce Eulália na minha frente. Eu me assustei, jamais pensei
que ela fosse capaz de algo daquele tipo, e horas depois vi a mulher entrar
completamente bêbada em casa. Não sou ninguém para julgar, mas a
Eulália não parecia uma mãe ruim para merecer aquele tratamento horrível.
Depois da nossa primeira discussão, eu desisti de vez de ficar ali.
Arrumei as minhas coisas e avisei que estava indo embora.
— O que aconteceu? Você estava tão bem...
— Eu estava bem com aquela Ingrid que conheci no Rio. Você
parece outra pessoa, cara! Sua mãe não merece ser tratada mal assim. Ela
faz tudo por você.
— Cala a boca que eu trato a minha mãe do jeito que eu quiser. —
gritou, com os olhos vermelhos.
— Ok. Eu vou embora, não vou ver nada disso mesmo. — garanti,
terminando de colocar as minhas coisas na mochila.
— Você não vai, Bárbara! — bradou, me fazendo sentir o bendito
incomodo nos ombros.
Aquela foi a primeira vez que a minha versão mais cruel se
manifestou para ela. Tentei me manter, respirei fundo.
— Claro que vou, Ingrid. Não sei quem é você e não quero pagar
pra ver.
— Mas eu paguei pra ver e passei a saber muito bem quem é você!
— disse, altiva.
Franzi o cenho a analisando, vi um sorriso e fechei os olhos com
força.
— Aliás, sei muito bem quem são vocês! O que fizeram, como
fizeram e o que pretendiam fazer. — disse e soltou um riso meio nasal.
— Do que está falando, Ingrid?
— Eu li tudo, Bárbara! E tenho tudo guardado. — confessou e acho
que viu a minha cara de imbecil, pois riu. — Eu sabia que você estava me
usando, menina! Sabia que aquela história da bengala só existia na minha
cabeça. O que queimamos foram apenas uns papéis velhos do escritório.
Eu estava calada, como pude deixar aquilo acontecer?
E se eu a matasse? Óleo quente no ouvido é uma ótima ideia. Já
ouvi relatos de assassinatos assim. — cogitei aquela possibilidade, mas
como ela não agia sozinha, acabei sendo obrigada a ficar ali.
Afastei o rosto quando senti a mão dela. Fitei seus olhos, ela sorria
vitoriosa, enquanto eu só conseguia pressionar o maxilar e a mandíbula.
— Vai fazer algo pra gente comer, vai. Eu vou falar com a minha
mãe e chamá-la para vir jantar conosco. Assim anuncio nosso namoro.
Voltei da minha lembrança e ainda consegui sentir o gosto do ódio
rasgando a minha garganta. Olhei para o disfarce com aquele cheiro, que
passou a ser apenas da versão morta da Ingrid.
Mexi em mais coisas na caixa e vi uma arma, era uma pistola
automática. Peguei com uma sacola para ver se era falsa, mas era de
verdade. Arrumei tudo e fechei a caixa.
— Que porra é essa?
Sem querer, esbarrei no interruptor da luz e a apaguei. No meio da
escuridão — pois apesar de ser dia, ali era um breu — eu vi um facho fraco
de luz por detrás das caixas. Afastei todas para chegar até lá, e meu coração
parou por uns segundos quando vi do que se tratava.
— Puta que pariu!
Havia um monitor com várias imagens em tempo real, tanto de
dentro da casa quanto de fora. Havia também duas pequenas telas
mostrando o apartamento da Diana.
13 – Ébria

Diana

Eu estava no estacionamento, esperando Gabriel se trocar para


irmos ao bar que ficava no final da rua do hospital. A noite estava muito
fria, contrariando o dia, que havia sido insuportavelmente quente.
O clima em Vila dos Lírios era assim, bipolar. Eu morava ali havia
certo tempo, mesmo assim ainda não tinha me acostumado com a oscilação
climática. Saí de casa pela manhã suando, por isso não levei qualquer
agasalho.
Enquanto tentava me aquecer, passando as mãos nos meus braços
despidos, eu remoía pela enésima vez a história da Bárbara.
— Desgraçada, cara de pau, filha da puta! A mulher dela
agonizando em uma cama de hospital e a bandida procurando sexo casual
por aí. — falei, entre os dentes, exalando raiva.
Eu estava me sentindo um lixo, a criatura mais vil e baixa da face da
terra.
— Eu transei com a mulher da minha paciente. Dentro do hospital.
Que espécie de médica eu sou? Onde foi parar a porra da minha ética? E
ela, que tipo de vadia é?
— Falando sozinha, Diana?
Ouvi uma voz conhecida e me assustei. Antes mesmo de me virar,
um cheiro forte e adocicado de perfume invadiu as minhas narinas,
causando-me náuseas. Eu já sabia quem era, só não queria acreditar que
depois de um dia daqueles eu ainda teria que lidar com a Marina.
Virei-me e a encarei, dando a ela o meu sorriso mais falso.
— Xeretando os monólogos alheios, Marina? — respondi, com
outra pergunta, depositando no meu tom de voz toda a ironia que existia em
mim.
Mas ela era extremamente cara de pau e parecia adorar quando
percebia que me irritava. Recebeu a minha resposta com um sorriso
dissimulado.
— Seu tio não é mal-humorado assim, sabia? Aliás, ele é bem
simpático, nem parece ter o seu sangue... ou melhor, você não parece ter o
sangue dele, né? O sangue dos Sobreira.
Desgraçada. Como ela sabe do tio Augusto?
— Como é, garota? Do que está falando? — perguntei, tentando
desconversar.
— Ora, sua bobinha! Não tente disfarçar. O velho baleado, o que
você não deu conta de atender e mandou o Gabriel no lugar, sei que é seu
tio. Ele era meu paciente também, esqueceu?
— Sim, é meu tio, e daí?
— E daí que você estava escondendo o ouro esse tempo todo, né?
Sonsa! É filha de um dos mais influentes médicos do país e fica aí
bancando a gata borralheira pra disfarçar. Agora eu entendo por que tem
tantos privilégios com o Jales. Papai deve molhar a mão dele pra filhinha
ter tudo de melhor por aqui.
Filha da puta!
Finalmente entendi a ironia dela, mas não estava disposta a entrar
naquele jogo.
— Olha, Marina, não sei aonde quer chegar com essa conversa, mas
não me julgue por você, tá? Tudo o que eu alcancei e ainda pretendo
alcançar na minha carreira médica foi e será por mérito único e
exclusivamente meu. Não faço o tipo que usa um sobrenome influente pra
me dar bem. Acho que você está precisando se olhar no espelho.
— Ahan, tô sabendo! — respondeu, irônica, me tirando do sério.
— Escuta aqui, garota...
— Diana? Vamos? — Gabriel apareceu e me chamou, me
impedindo de descer ao nível dela.
— Vamos! — respondi a ele, mas sem tirar os olhos dela, que não
desfazia por nada aquele sorriso sarcástico.
No caminho, Gabriel perguntou e contei o que havíamos
conversado.
— Di, mas você sabe que nesse momento provavelmente todo
mundo no hospital já deve estar sabendo que você é filha do poderoso
chefão, né?
— É, eu sei. Filha da mãe! Minha vida vai virar um inferno, todo
mundo me olhando torto, agora. Como se eu tivesse muito orgulho de exibir
esse sobrenome maldito.

Depois da morte da minha mãe, o meu asco pelo meu pai apenas
aumentou. Nada me tirava da cabeça que a forma desumana com a qual ele
a tratou durante todos aqueles anos foi o fator determinante para que ela
desistisse de lutar pela própria vida.
Até hoje eu penso que ela deve ter achado a doença providencial,
pois foi a maneira mais prática de se livrar daquele desgraçado.
Eu tinha quinze anos na época, ainda estava na escola, mas decidi
que me tornaria independente do meu pai. Não queria nem o nome, nem o
dinheiro e muito menos a convivência com ele. A tarefa não foi fácil e
levou anos até que eu conseguisse finalmente me livrar.
Aos dezoito, concluí o ensino médio e prestei vestibular para
medicina em várias faculdades. Por ele, eu só teria feito para uma, a que ele
próprio havia se formado. Era uma universidade excelente, renomada, mas
imensamente cara, e eu não aceitaria que ele pagasse.
Minha mãe havia me deixado uma pequena fortuna de herança,
dinheiro que ela herdara dos meus avós, mas que nunca precisou usar por
ter se casado com um homem rico.
Com essa grana eu poderia pagar a faculdade, mas ainda teria que
viver as custas dele, e isso estava fora de cogitação. Então passei com
excelente nota na universidade federal e saí de casa. Fui morar em uma
república, usei o dinheiro da minha mãe para me manter durante todo o
período do curso.
O miserável quase teve um colapso. Não que sentisse minha falta ou
estivesse preocupado com o meu bem-estar. Ele só achava inadmissível que
soubessem que a filha do poderoso Afrânio Sobreira vivesse em condições
como aquelas.
Tivemos brigas homéricas por causa disso, até que finalmente ele
desistiu de insistir e me deixou em paz. De lá para cá, tive pouquíssimo
contato com ele.
Logo que me formei e concluí o meu internato, me inscrevi no
programa de residência do Adalberto Bonfim e fui chamada. Então me
mudei para Vila dos Lírios.
Foi tudo muito rápido, até me assustei com a facilidade com a qual
entrei no programa, pois ele é um dos mais concorridos do país. Não que eu
não seja boa, eu sou. Mesmo para alguém tão dedicado quanto eu, não é
fácil.
Parecia que tudo estava destinado a acontecer, porque as coisas
simplesmente deram certo, até o meu apartamento. Por ser uma cidade
universitária, é praticamente impossível encontrar um lugar bom para se
morar, mas eu não tive qualquer dificuldade. O dono do lugar praticamente
implorou para que eu o alugasse. Era perfeito, amplo e bem perto do
hospital, mas era caro demais, e eu não tinha planos de dividir aluguel com
ninguém. Sempre gostei de solidão e já estava saturada de viver em
repúblicas. Decidi então procurar outro lugar, mas o dono insistiu:
— Minha filha, eu fui com a sua cara e gostei de saber que quer
morar só. Esses estudantes são uns baderneiros, sabe? Os últimos que
moraram aqui deixaram uma porcaria quando foram embora. Então prefiro
te dar um desconto a alugar para outro grupo de vândalos.
Meus olhos brilharam e não pensei duas vezes. Fechei o negócio e
me mudei logo em seguida. Ele tinha razão, eu era a inquilina dos sonhos
de qualquer senhoril. Passava mais tempo no hospital do que em casa,
nunca recebia ninguém, não fazia barulho. Às vezes nem parecia que tinha
alguém morando ali.
Eu sequer conhecia os meus vizinhos, prova disso é que só me dei
conta da existência da Bárbara há pouco tempo. Eulália e Ingrid só conheci
no hospital, e se não fosse a Bárbara, nem teria descoberto que moravam no
prédio em frente. Eram duas completas estranhas para mim. Não lembro de
tê-las visto nunca pelas redondezas.

— Aquela vaca ainda tem a cara de pau de insinuar que tenho


regalias por ser filha daquele desgraçado. Não sabe de nada!
— Deixa essa doida pra lá, Di! Vem, vamos beber que a gente tá
precisando.
Entramos no bar, que estava lotado, e sentamos em uns bancos no
balcão mesmo. Gabriel pediu nossas cervejas e comecei a contar a loucura
toda com a Bárbara.
— Meu, que louco, Di! Porra!
— Pois é, nem me fale!
— E o que você pretende fazer?
— Ah, sei lá, Biel. Eu tô com muita raiva...
— Ahan, sei! É assim que chamam tesão agora?
Eu ri, era verdade. Eu estava furiosa com a Bárbara, mas também
estava morrendo de vontade de beijá-la inteira novamente.
— Ela é linda demais, Biel! Você não tem noção. — disse e suspirei.
— Mas é casada... e uma mentirosa, sem escrúpulos, traidora. Cara, a
mulher dela morrendo, e ela transando com a médica dela sem o menor
remorso.
— Ué, mas você não disse que a mãe da mulher falou que ela
tratava a guria supermal?
— Sim, mas se ela está em um relacionamento abusivo e violento,
por que simplesmente não vai embora de lá, ué?
— Di, você é médica. Tá cansada de ver mulher chegando naquela
emergência toda quebrada porque apanhou do marido e depois voltando pra
ele. Você sabe que o agressor sempre encontra uma forma de intimidar a
vítima para que ela não vá embora.
— Sim, eu sei, mas a Bárbara é altiva, Biel. Não parece o tipo que
se submete a um relacionamento assim. Não é um caso de relacionamento
abusivo qualquer, tem mais coisa por trás disso.
— Então por que não vai lá na casa dela tirar satisfações? Você tem
direito, ela te usou... tá, eu sei que você gostou, mas ainda assim. Aproveita
que a mulher e a sogra estão no hospital e vai lá, cara.
— Acha que não pensei nisso? Eu quis ir lá, mas sou uma
franguinha, não tenho coragem. Quer saber? Deixa isso pra lá, vou deixar
essa louca e os problemas dela de lado. Se ela me procurar novamente,
mando andar. Não quero mais encrenca pra minha vida, já basta o tio doido
que ressurgiu das cinzas inventando uma teoria da conspiração maluca e
sumiu.
— Tá bom, você é quem sabe.
Mesmo sem conseguir tirar Bárbara dos meus pensamentos, mudei
de assunto. Eu precisava, aquele tipo de encrenca era tudo o que eu não
estava procurando para a minha vida.
Conversamos por mais de uma hora, e eu já estava muito tonta.
Havia dormido pouco e me alimentado mal. Fazia muito tempo que não
bebia também então a cerveja me embriagou rápido.
— Preciso ir ao banheiro, odeio cerveja por causa disso. — falei,
enrolando a língua.
— Vai lá, vou pagar a conta. Você já bebeu o bastante pra dormir
direito. Quando voltar te levo em casa.
— Tá bom! — concordei e me levantei para ir ao banheiro.
No caminho esbarrei em uma mulher que estava tão bêbada ou mais
que eu. O choque foi tão forte que ela caiu no chão. Eu não caí por pouco.
Estendi a mão para ajudá-la a se levantar, mas ela rejeitou.
— Desculpe, moça! — pedi, envergonhada.
Ela era muito bonita, morena, tinha a minha altura. Usava uma
jaqueta de couro preta, que estava toda amarrotada, tinha os cabelos
desgrenhados.
— Vê se olha por onde anda, sua maluca! — disse grosseira depois
de se levantar e foi embora sem esperar que eu dissesse mais nada.
— Nossa, que doçura!
Dei um passo em direção ao banheiro e senti que chutei algo no
chão. Era uma carteira. Agachei para pegar, abri, olhei a foto da habilitação
e vi que era da doçura. Ainda tentei alcançá-la, mas não a encontrei mais.
Mexi de novo para ver se encontrava algum número de telefone que eu
pudesse ligar e achei um cartão de visitas.
— Lara Medeiros, delegada de polícia.
O quê? Puta merda!
Sim, eu havia acabado de esbarrar com a delegada da cidade, e ela
estava mais bêbada do que eu. Mesmo assim eu não poderia procurar a
mulher no estado em que eu estava, então optei por guardar a carteira no
meu bolso. No dia seguinte eu ligaria ou iria até a delegacia para devolver.
Quando finalmente voltei do banheiro, Gabriel, que estava mais
sóbrio, me levou em casa. Meu carro ficou no hospital. Era perto, e eu
poderia ir a pé na manhã seguinte sem problemas.
Ele me deixou na frente do meu prédio, e antes de entrar olhei para a
janela da Bárbara, o objeto ainda estava quebrado. Não tinham trocado o
vidro e fiquei pensando se aquilo tinha algo a ver com a agressividade da tal
Ingrid. Lembrei da primeira vez que a vi e da noite seguinte, quando
praticamente correu de mim naquele mercado. Senti uma imensa vontade de
ir até lá, mesmo tendo decidido não a procurar mais.
— Não, Diana, você não vai. Seja forte! — falei para mim mesma.
Por fim, entrei no meu prédio. Subi os dois lances de escada
cambaleando, estava muito bêbada. Quase não consegui destrancar a porta
do apartamento, e quando finalmente entrei não tive forças sequer de ir para
o quarto. Caí largada no sofá e fiquei sentada lá por muito tempo,
encarando a porta da varanda.
Luís Otávio entrou por ela, e não resisti em provocar:
— Estava na... — Soluço. — ...esbórnia, né, safado?
Ele pulou no sofá, deitou em minhas pernas e roçou a cabeça na
minha barriga antes de me responder desaforado:
— Não tenho culpa se você é tão chata e desinteressante que não
tem vida social. Eu tenho.
Eu sorri e cocei a cabeça dele.
— Luís, o que você acha disso tudo, hein?
— Quer saber? Não que eu me importe, mas vou falar. Vocês,
humanos, gostam de complicar as coisas. Se quer ir lá tirar satisfações, vai e
pronto.
— Acha mesmo que devo?
— Eu não acho. Eu tenho certeza do que estou falando. Ela te usou,
foi ela quem te puxou pela mão primeiro e te levou para aquele banheiro. Te
deve satisfações, sim, ora! Se fosse eu já teria ido lá. Se bem que se fosse eu
não teria passado por isso.
— Quer saber? Você tem razão, isso não pode ficar assim. Não sou
um brinquedinho que ela pode usar a hora que quiser e depois descartar. Eu
vou lá. Obrigada, Luís!
Desci as escadas correndo e quase rolei por elas ao tropeçar nos
meus próprios pés. Sorte que agarrei o corrimão. Eu já me sentia um pouco
mais sóbria do que quando cheguei.
O prédio que ela morava tinha apenas três andares, acredito ser um
tríplex, porque a entrada para o apartamento era na lateral do apartamento
do térreo. O portão da garagem por onde ela entrava estava destrancado.
Quando cheguei em frente a porta do apartamento, meu corpo
inteiro entrou em frenesi. Além do efeito do álcool, comecei a tremer,
estava nervosa. Levei as mãos à cabeça e respirei fundo antes de finalmente
tocar a campainha.
Alguns segundos que pareceram uma eternidade se passaram até que
ouvi o barulho da chave girando. A porta se abriu e eu a vi. Ela me encarou
assustada, saiu imediatamente e puxou a porta atrás dela.
— Diana? O que faz aqui?
— Ainda pergunta? Não acha que me deve explicações sobre essa
merda toda?
14 – Mãos

Bárbara

Fechei os olhos por uns instantes, o incômodo na minha nuca


voltara. Eu estava bem cansada, mas dormir estava fora de cogitação, não
poderia perder um segundo sequer de tempo.
Encostei a testa na parede, ainda com os olhos fechados, e fiquei ali,
esperando aquele cansaço passar. Apertei os olhos e respirei fundo. Engoli
saliva. Eu tinha que ser fria ou não conseguiria fazer nada do que precisava.
Abri olhos e olhei em volta. Fui por partes. Mexi no computador
para tentar ver se encontrava o destino das imagens das câmeras, mas foi
em vão, não entendia muito sobre aquilo.
Lembrei-me do tal Augusto, só ele poderia me ajudar, mas não tinha
certeza se poderia confiar nele.
— Que droga! Você tinha que se meter nessa merda colossal, né,
Bárbara Perroni? Use um pouco da sua massa encefálica. Ela não serve só
para rechear a sua cabeça. — disse, em voz alta enquanto abria e fechava
caixas.
Quando somos crianças e nos metemos em alguma situação que
envolva riscos, tanto emocional como físico, basta que nossa mãe nos
segure pela mão para que nos sintamos mais confiantes.
Eu nunca tive a minha mãe segurando a minha mão de nenhuma
dessas formas. Então meu inconsciente, ou consciente, sei lá, criou suas
próprias “mãos” para que eu segurasse e não me sentisse tão sozinha. Em
resumo, a minha segurança vem totalmente do apoio que recebo das muitas
versões de mim.
A psicologia não consegue explicar de forma simples o motivo de se
precisar tanto desse amparo para se sentir seguro, mas para mim está muito
claro: nós não nascemos para sermos sozinhos, precisamos de conexão,
alguém em quem confiar para nos apoiar. Alguém para andar ao nosso lado
a caminho da evolução.
— Preciso me lembrar de colocar fogo nesse lugar, de preferência
com a Ingrid dentro. — divaguei em voz alta enquanto fechava a décima
caixa de quinquilharias.
Revirei o lugar inteiro e não achei as minhas coisas. Aquela
desgraçada poderia estar mentindo, mas até eu ter certeza, não poderia
desistir. Precisava de ajuda, não só das minhas outras mãos, mas de mãos
externas.
Havia anoitecido e só naquele momento me dei conta. Procurei o
celular da Ingrid e cheguei a digitar o número do Augusto, mas a minha
mão da vez me puxou a tempo de não fazer aquilo.
— Use a massa encefálica, Bárbara! Seja fria. O celular da infeliz
pode ser rastreado e pode estar grampeado. — Tirei aquela ideia da cabeça.
— Telefone público!
Eu precisava calcular cada passo. Não podia enlouquecer, não a
ponto de deixar essa loucura visível.
Tocaram a campainha. Meu coração foi à boca. Eu havia me
esquecido de fechar o portão da garagem ou a Eulália estava na porta.
Desci correndo e tive a maior surpresa da minha vida. Diana estava
ali. Em um gesto involuntário eu saí e fechei a porta.
— Diana? O que faz aqui?
— Ainda pergunta? Não acha que me deve explicações sobre essa
merda toda? — perguntou, completamente bêbada.
Ao me ver muda, tentou entrar e a impedi.
— Eu converso com você depois, ok? Agora você precisa ir pra
casa... — disse, tentando tirá-la dali.
Olhei em volta, nervosa, tentando encontrar alguma câmera
escondida no corredor, mas estava escuro, não vi nada.
— Eu não vou deixar isso para depois, Bárbara. Não sou um
brinquedo que você usa a hora que quer. Vamos conversar, sim e agora.
Senti o cheiro de álcool exalando pelos poros dela e apertei de novo
as carúnculas lacrimais. Ela não iria desistir, estava fora de si.
— Tá, mas vamos sair daqui, tá? Vamos conversar. — garanti e
peguei a chave do portão.
Notei que ela passou as mãos no rosto, estava mesmo desorientada,
observei seus movimentos enquanto saíamos de lá.
Ela tentava me encarar. Não sei o motivo, mas eu estava evitando
seus olhos. Fechei a porta e atravessamos a rua, ela agarrou o corpo para se
proteger do frio e sorriu, de súbito, quando chegamos ao portão de seu
prédio.
— Eu sou a pessoa mais sem noção, né? Você é uma vagabunda que
foi atrás de mim, transou comigo louca daquele jeito e depois sumiu sem
dizer uma palavra, e ainda vou atrás de você, mesmo sabendo que é casada.
— cuspiu, enquanto eu a conduzia para a escada.
Subimos e ela seguiu para o apartamento 202, abriu a porta e
entramos. Aquele lugar me era familiar, mas entrar pela porta me causou
estranheza.
Senti os dedos dela entrelaçando nos meus e ouvi a porta bater. Luís
entrou e se roçou em minhas pernas, mas não dei atenção, pois no mesmo
instante ela me puxou pela cintura, sem largar a minha mão.
O gosto de cerveja em sua boca macia me fez apertá-la contra meu
corpo. Ela é maravilhosa, eu não poderia ir muito longe, mas não consegui
me esquivar daquele beijo, que ela conduzia com maestria, agarrando com
força os meus cabelos.
Eu estava disposta a conversar, explicar tudo e contar a verdade.
Mas entre beijar aquela boca e me tornar milionária, eu continuaria pobre.
— O que você fez comigo, hein? — perguntou, sem separar nossos
lábios e me beijou com força.
Com o corpo me conduziu para o quarto. Parei na porta, e ela
desgrudou a boca da minha. Me olhou nos olhos, se afastou de mim e
correu para o banheiro. Eu a segui e a vi vomitar, agachei e segurei seus
cabelos. Vomitou por uns segundos e ficou ali, encostada no vaso sanitário.
— Vem tomar um banho! — chamei, num sussurro.
Ela se levantou, já não me encarava mais. Mencionou tirar a roupa e
me olhou.
— Dá licença! — pediu, irritada.
Eu sorri e a ajudei a tirar a roupa, não que ela precisasse, mas eu
quis. Antes do banho, ela abriu a torneira da pia e levou água à boca. Tentou
abrir o creme dental, mas se atrapalhou. Peguei da mão dela e pus um
pouco na escova de dente.
— Você não devia ver isso, é deplorável. — disse e começou a
escovar os dentes.
Eu apenas sorri e prendi uma mecha de cabelo dela atrás da orelha.
Aquela garota despertava algo bom em mim que eu nem sabia que existia.
Entramos juntas no box e liguei o chuveiro. Os olhares
interrogativos dela voltaram sobre mim, mas não falou nada. Eu a fitei
também, não tinha nada para perguntar. Minha intenção era falar com os
olhos, havia muitas informações neles que eu gostaria que ela decifrasse.
Recostou-se na parede e levou as mãos ao rosto, envergonhada.
— Meu Deus, o que eu tô fazendo? Que vergonha!
Eu achei aquilo lindo, ficaria olhando por horas, mas não pude
resistir. Tirei as mãos dela do rosto e falei:
— Não tem por que se envergonhar, relaxa!
Era linda demais, uma profissional excelente, eu não entendia os
motivos de tanta insegurança, tanto medo nos olhos. Mas eu estava disposta
a descobrir. Sabia que a família dela não era a melhor família do mundo,
mas será que isso tinha algo a ver?
Senti seu beijo me tirando daquele devaneio. A minha roupa, que já
estava molhada, encharcou de vez quando entrei embaixo do chuveiro para
correspondê-la com a mesma intensidade.
Lembrei-me de todas as vezes em que tomei banho sozinha,
imaginando que estava com ela. A realidade era infinitamente melhor.
Eu me perdia naquele beijo, a boca dela parecia ter sido feita para
encaixar na minha. E aquelas mãos hábeis, não havia insegurança nenhuma
nelas quando exploravam o meu corpo.
Engraçado que nós havíamos feito aquilo várias vezes naquele
mesmo dia, mas eu andava longe de estar saciada.
Com sua ajuda, me livrei das roupas ensopadas e depois colei meu
corpo no dela.
— Você é linda demais, sabia? Gostosa demais... — sussurrou em
meu ouvido e depois desceu a boca pelo meu pescoço, me causando
arrepios.
Agarrou a minha bunda e apertou com força, estava bem mais
saidinha do que o normal, provavelmente efeito do álcool.
Eu também explorava aquele corpo lindo com as mãos e com a
boca, sem o menor pudor, mas a deixei conduzir. Ela estava precisando de
segurança, então só permiti que fizesse o que queria comigo.
De súbito, me virou de costas e afastou os meus cabelos. Beijou e
mordiscou toda a extensão das minhas costas enquanto roçava os quadris
nas minhas nádegas. Eu gemia e arranhava o vidro do box com as unhas,
aquilo estava me enlouquecendo.
Ela usou uma das pernas para afastar as minhas e em seguida senti
seus dedos massageando meu sexo. Quase gritei de tanto prazer. A outra
mão dela agarrou e acariciou com malícia um dos meus seios, enquanto a
boca agia em meu pescoço. Rebolei o quadril para aumentar o atrito, e ela
aumentou o ritmo até que um orgasmo surreal me fez quase perder o
equilíbrio. Ela me segurou, impedindo que eu cambaleasse, e me virou. Nos
beijamos preguiçosamente.
Eu vou me acostumar fácil com isso!
— Vamos pra cama? — pedi, estava trêmula ainda.
Ela atendeu em silêncio. Estendeu-me uma toalha quando saímos do
box e sequei meu corpo, enquanto ela fazia o mesmo.
Saímos do banheiro e ela deitou. Fechei as cortinas da janela do
quarto, e ela me olhou de cenho franzido. Deitei sobre ela e a beijei, não dei
espaço para falar nada.
Encaixei nossos corpos, colando os sexos, e ela gemeu. Com
movimentos lentos e sem descolar nossos lábios, retribui o orgasmo
maravilhoso que ela acabara de me dar.
Quando deitei ao seu lado, notei que estava exausta e em poucos
minutos dormiu. Olhei a hora e estava quase amanhecendo. Eu queria muito
ficar ali, mas não podia. Então vesti as roupas molhadas, tomei uma garrafa
de água e saí.
Fui ao telefone público, ficava na frente do supermercado, acredito
que só havia aquele na cidade inteira, e liguei para o tio dela. Ele atendeu na
terceira chamada.
— Doutor Augusto? Bárbara.
— Oi, está tudo bem com a minha sobrinha? O que houve? —
perguntou, com a voz rouca de quem estava dormindo.
— Preciso de ajuda! Sua sobrinha está bem, acabei de sair do
apartamento dela. Está dormindo. Mas preciso de ajuda, acho que a pessoa
com quem moro trabalha para alguém que tem interesse nela. Encontrei
imagem de câmeras que dão para o apartamento da Diana.
— Eu sei disso, Bárbara! Levantei a vida da sua companheira,
Ingrid. Ela é peça importante nessa sujeirada toda.
— Eu imaginei. Mas além dessas, descobri que o apartamento
inteiro da Ingrid é monitorado, e antes de saber fiz uma coisa que acho que
mais alguém sabe...
— O que você fez?
— Eu forjei uma tentativa de suicídio da Ingrid. — confessei sem
medo, se ele sabe das câmeras, ele viu. Então eu já estava nas mãos dele
também.
— Como? — perguntou, assustado.
— Doutor, isso não vem ao caso agora, só preciso que me ajude a
descobrir onde essas imagens estão indo parar. Elas precisam sumir.
— Ok, Bárbara! Vou ver o que fazer. Continue cuidando da minha
sobrinha, por favor. Preciso fazer umas ligações. — disse e desligou.
— Que porra! — falei, por entre os dentes e bati o aparelho no
suporte.
Burra!
A primeira vez que confiei em alguém aconteceu aquela merda. Se
aquele cara conhecia a desgraçada da Ingrid, podia estar junto com ela
contra a Diana.
Que espécie de imbecil eu sou?
Fiz outra chamada, daquela vez para o Rio de Janeiro, mas o
número deu inexistente. Voltei para casa resmungando os piores adjetivos
para alguém incompetente e de longe vi o carro do Silvio na frente do
prédio, corri para lá. Ele tinha aquele hábito de chegar muito cedo.
— Oi, Silvio, bom dia!
— Bom dia, minha filha! Eu soube do que houve com a Ingrid.
Como ela está? Eulália está em casa?
— Ingrid está fora de perigo, eu consegui estancar o sangue e a
ambulância chegou rápido. Eulália está com ela no hospital. Eu vou daqui a
pouco pra lá. O senhor está bem?
— Na medida do possível. Por que está toda molhada?
— Eu estava tentando arrumar um cano, na pia da cozinha, e
estourou tudo. Mas já consegui consertar. — menti.
— Nossa, mas você realmente é a “faz tudo” dessa casa, hein! Devia
chamar alguém para fazer esses trabalhos. Você precisa de alguma coisa?
Desculpe, eu não vou lá, odeio hospital. Mas estou me sentindo meio
culpado, já até me arrependi de ter contado sobre minha doença. Olha o que
houve...
— Fica tranquilo, logo ela volta pra casa e o senhor vem visitá-la.
Não se culpe, ela já estava bem desequilibrada.
— Obrigado, Bárbara! Vou tentar.
— Eu preciso comprar algo para ela comer, o médico disse que
precisa se alimentar direito, mas vou precisar esperar que ela receba alta...
Respirei mais rápido, quando o vi enfiar a mão no bolso. Eu sabia
que me daria o que eu pedisse, mas não podia deixar evidente que precisava
de dinheiro.
— Tome, com isso você pode comprar o que precisa, mas não diga
nada, elas não gostam que eu ajude. Se precisar de mais, me liga.
— Obrigada. — agradeci e peguei o dinheiro.
Silvio entrou em seu carro e saiu devagar. Entrei no prédio e olhei o
dinheiro. Havia três notas de cem. Revirei as coisas da Ingrid e o máximo
que encontrei foi noventa e sete reais.
— Que droga! Preciso de mais dinheiro.
Eu estava zonza, não havia dormido e nem comido nada o dia
inteiro. Entrei na casa da Eulália pelos fundos e fiz um sanduíche. Tomada
pelo desespero, fui ao quarto dela e vasculhei tudo em busca de dinheiro.
Gente idosa sempre guarda dinheiro em espécie em casa.
Achei uma caixa de madeira com joias e algumas notas presas em
uma liga de borracha; peguei tudo e saí correndo. Vesti roupas secas, enfiei
algumas peças numa mochila, peguei minha identidade e corri. Não podia
perder um segundo sequer.
Passei no hospital e inventei para a Eulália que minha mãe estava
muito mal no hospital, pedi que cuidasse da Ingrid e não dissesse nada a
ela, que eu precisava sair da cidade e fui embora.
Cheguei ao Rio de Janeiro e fui direto para a casa do Fred, um
amigo hacker, que trabalha na inteligência da polícia federal. Contei tudo, e
ele me deu um pen drive com um programa e me orientou sobre como
instalar. Com isso ele teria acesso ao computador das imagens e conseguiria
mexer no conteúdo de onde estivesse.
Reencontrei Fred no instituto, numa aula de informática, ele era
muito prestativo e me tratava muito bem, sempre fui muito dedicada às
aulas. Nós nos tornamos amigos. Ele estava em reabilitação
complementando o tratamento com trabalho voluntário. Fiquei feliz em
revê-lo e notei seu olhar demonstrando reciprocidade ao me ver também.
Terminei tudo o que precisava e corri de volta, ele conseguiu
comprar uma passagem para mim para o mesmo dia.
Cheguei à rodoviária interestadual de São Paulo e precisei esperar
um pouco, pois o ônibus demoraria.
Quando finalmente chegou, entrei e sentei. Os ônibus de Vila eram
todos velhos, mas aquele deu uma exagerada. Fiquei olhando pela janela até
que percebi uma moça na cadeira do outro lado, chorando. Ela não devia ter
muito mais que vinte anos, era bonita, mas estava muito triste. Fiquei
intrigada com aquilo e a observei por uns minutos. Depois de um momento,
resolvi falar com ela. Peguei uma garrafa de água que havia comprado antes
de embarcar e fui até lá.
— Toma... você já chora há um bom tempo.
15 – Fratura

Diana

Eu nunca lambi o chão de um banheiro de bar, mas tenho certeza de


que o gosto é muito parecido com o que estava na minha boca quando
acordei naquela manhã. Abri os olhos e vi no relógio que já passava das
nove. A minha cabeça latejou, não sei se por causa da ressaca ou se pelo
susto.
— Merda, o Jales vai me matar! — esbravejei e saltei da cama.
Senti o meu próprio hálito ao falar e fiquei nauseada.
— Nossa, que horror! — disse, levando a mão à boca.
Fui escovar os dentes, e quando entrei no banheiro, vi a bagunça que
estava. Minhas roupas largadas no chão, o piso do lado de fora do box
completamente encharcado, o vaso com resquícios de vômito, a pasta de
dente aberta...
— Puta que pariu! — xinguei em voz alta, levando as mãos à
cabeça, quando as lembranças dos acontecimentos da noite anterior
começaram a voltar.
Meu rosto queimou. Colei as costas na porta e tentei juntar os
fragmentos embaralhados da minha memória. O bom do susto foi que
lembrei que estava de folga. Alívio, assim eu teria tempo o bastante para
lidar com a minha vergonha. Meu próximo passo seria cavar um buraco
para enfiar a minha cabeça.
Pior que não sei dizer se sentia mais vergonha ou raiva, já que a
história, mais uma vez, se repetia: Bárbara havia me usado e fugido. Três
vezes em um curto espaço de tempo. Eu me sentia ridícula, afinal, eu fui
procurá-la em sua casa. Não bastasse a estupidez disso por si só, ainda
estava completamente bêbada e descontrolada. Eu não conseguia me
lembrar direito das coisas que havia falado para ela, mas lembrava
claramente das cenas do vômito, do banho e da cama.
Nossa! No que essa garota está me transformando?
Após um longo banho, caminhei à cozinha vestindo apenas um
roupão. Precisava de água, minha boca estava seca. Bebi quase um litro de
uma vez só e liguei a cafeteira. Fui até a sala e olhei por trás da cortina. O
apartamento dela estava quieto.
— Deve ter ido ao hospital. — disse e engoli a minha frustração em
forma de saliva.
Ela é casada, sua imbecil. Claro que está cuidando da mulher dela!
Luís apareceu na sala miando, devia estar faminto. Agachei para
acariciá-lo e fiquei tonta. Ele não perdoou:
— Encheu a cara, hein? — ironizou, com uma risada sarcástica.
— Ah, Luís, não me deixa mais beber, por favor!
— Mas era só o que me faltava mesmo! Não sou sua babá, humana.
Aliás, você é a serviçal aqui, e eu estou com fome. Cadê o meu café da
manhã?
— Credo, você é terrível. Não perdoa nada. — comentei, frustrada e
voltei à cozinha.
Ele me seguiu resmungando mais desaforos. Depois de pôr a comida
em sua vasilha, servi-me de café e puxei assunto:
— O que acha disso, Lu? Acha que ela tá só brincando com a minha
cara ou será que gosta ao menos um pouquinho de mim?
— Humana, vou falar, mas depois pare de me aborrecer com isso.
Não tenho tempo para esses dilemas sentimentais idiotas. Ok?
— Nem sei por que ainda te pergunto, mas fala.
— Olhe-se no espelho. Você não é das mais atraentes. É sem graça,
se veste como uma moradora de rua, seu cabelo tá uma merda... enfim, na
minha opinião ela só pode ver algo de interessante aí dentro, porque o
exterior é uma droga.
— Eita, quantos elogios! Tô lisonjeada. — disse, irônica. —
Melhorei até da ressaca...
— Disponha! — disse ao terminar de se lamber inteiro e depois saiu
sem me olhar.
Terminei meu café e voltei para o quarto refletindo sobre as palavras
de Luís. Ele poderia ter razão, mas eu não queria me apegar àquilo. Tinha
que retomar o controle da situação e o correto era parar imediatamente com
aquela maluquice.
— Isso não faz o menor sentido, Diana. Você tem que esquecer essa
garota.
Sim, isso era o mais sensato. Mas como?
Me vesti e fui à sala. Meus planos era pegar alguns livros na estante
para estudar, mas quando olhei para a mesinha de centro, outra lembrança
da noite anterior foi ativada. Sentei no sofá e peguei a carteira da mulher em
quem havia esbarrado no bar.
Sério que ela é mesmo a delegada da cidade? Ê, Diana.
Eu estava tão louca quando aconteceu que sequer me dei conta da
gravidade daquilo. Eu deveria tê-la procurado imediatamente.
Peguei o telefone e digitei o número do cartão, mas estava
desligado. Insisti mais duas vezes em um curto intervalo de tempo, e nada.
Resolvi então ir até a delegacia, não queria aquela responsabilidade para
mim. Caminhei até o hospital para buscar meu carro, ainda sentindo a
cabeça doer. Mesmo usando óculos escuros, sentia os olhos incomodados
com a claridades também.
Em alguns minutos cheguei ao prédio de arquitetura antiga, que
ficava bem no centro da cidade. Atrás de um balcão de concreto circular,
uma senhora de cabelos grisalhos conversava animadamente ao telefone.
— Bom dia! — cumprimentei.
Ela apenas acenou com a cabeça e apontou para o telefone, como se
me pedisse um instante. Esperei ainda cerca de 5 minutos, ouvindo aquela
conversa fiada, que nada tinha a ver com assuntos da delegacia.
— Pois não, minha jovem, em que posso ajudar? — perguntou,
finalmente, após desligar.
— Eu procuro a doutora Lara Medeiros, delegada.
— Ela ainda não chegou, está atrasada. — disse em tom de crítica.
— Mas pode me adiantar o assunto?
— Na verdade eu só preciso que entregue...
— Bom dia, Cilene! — Uma voz feminina me interrompeu.
Me virei e me deparei com a tal da delegada. Era muito bonita...
linda, na verdade, mas não parecia se importar muito com a própria
aparência. Não me lembro bem, mas acho que estava usando a mesma
roupa da noite anterior. Isso ou só tinha peças pretas em seu armário. Ela
era alta, esguia, pele clara, cabelos escuros e desarrumados. Vi em sua
habilitação que tinha 34 anos e era do Rio de Janeiro. Ela tinha um
semblante um tanto pesado, sisudo... cara de poucos amigos.
— Bom dia, doutora Lara! Esta moça a procura.
Ela me olhou de cenho franzido, como se tentasse me reconhecer.
— Pois não, em que posso ajudar? — perguntou.
— Eu... eu... — gaguejei.
Aquele ar altivo dela me deixou nervosa.
— Bem, eu encontrei uma carteira...
— Ah, entendi — me interrompeu e se virou para a recepcionista.
— Cilene, por favor, chame o Lúcio. Ele resolve isso. — disse e voltou a
me olhar. — Um rapaz virá atendê-la, moça. Parabéns pela atitude, muito
nobre de sua parte. — falou, no automático e foi saindo.
Que metida!
— A carteira é sua, doutora. — anunciei e a vi paralisar.
Virou-se e me encarou, me analisando. Fiquei estática, apenas
esperando que ela desse o próximo passo.
— Ok, venha até a minha sala.
Eu a segui pelo estreito corredor até chegarmos na última porta.
Entramos, e ela fez sinal para que eu me sentasse. Sentou-se também. Era
tão séria que me intimidava. Não falei nada, apenas pus a carteira sobre a
mesa e a vi conferir o conteúdo com apenas uma mão, semicerrei os olhos.
— Onde encontrou isso?
— Acho que caiu quando nos esbarramos, ontem à noite. — falei e a
vi franzir o cenho. — No bar, na saída do banheiro.
Ela coçou a cabeça e passou as mãos pelo rosto.
— Verdade, não te reconheci. Estava escuro.
Ahan! Você estava ela de cara cheia e não tem ideia do que fez, que
eu sei. Bem-vinda ao clube.
— Sim, estava... — concordei e fiz uma pausa.
Encaramo-nos por uns instantes. Havia um elefante branco entre nós
e resolvi sair.
— Bem, doutora Lara, é isso. A carteira está entregue. Até mais!
Me levantei para sair e ela se levantou junto. Me acompanhou até a
porta e acho que finalmente resolveu ser educada.
— Olha, moça, desculpe pela grosseria de ontem. Era minha folga,
bebi um pouco e...
Um pouco?
— Não precisa se desculpar. — interrompi aquela conversa
constrangedora. — Eu também não estava muito atenta, então...
— Tudo bem! Obrigada mesmo assim. Qual é mesmo o seu nome?
— Diana.
— Diana. — repetiu e finalmente tirou a mão direita do bolso da
jaqueta para me cumprimentar. — Obrigada, Diana!
Apertei sua mão e ela gemeu de dor. Me assustei, achando que a
havia machucado, mas quando olhei, vi o inchaço.
— O que houve com sua mão? — indaguei, preocupada.
— Nada demais, na queda, acho que machuquei.
— Posso dar uma olhada nisso? — perguntei e a vi olhar para mim,
confusa. — Eu sou médica. — expliquei.
— Tudo bem, não é nada demais!
— Claro que é algo demais. Está muito inchado.
— Sim, mas vou pôr uma bolsa de gelo daqui a pouco e melhoro.
Dei um passo em sua direção e peguei seu braço. Ela tentou se
esquivar, mas fui mais firme. Quando se tratava do meu trabalho, nada e
nem ninguém me intimidava.
— Gelo não vai resolver o seu problema. Precisa, no mínimo,
imobilizar. Vamos ao hospital, temos que fazer um raio X.
— Não vou, tenho que trabalhar. — respondeu, já meio irritada com
a minha abordagem.
— Não vai conseguir trabalhar com a mão nesse estado, doutora. Eu
conheço muito bem esse tipo de lesão, tenho certeza de que não está
conseguindo sequer segurar um copo descartável, imagine uma arma.
— Olha, doutora Diana, eu agradeço de verdade a sua preocupação,
mas sei me cuidar. Se achar que preciso, vou ao hospital. Agora, por favor,
me dê licença, sim?
— Doutora Lara, com todo respeito, peço que me ouça. Uma lesão
como essa, se não for tratada corretamente, pode deixar sequelas
irreversíveis. Na vida de uma pessoa qualquer isso já é horrível. Para
alguém com a sua profissão então, isso pode significar inclusive o fim de
sua carreira. — disse com firmeza e a vi me encarar, séria. — Me deixe
pelo menos examiná-la, aqui mesmo. É o mínimo que posso fazer, afinal, eu
meio que sou a responsável por isso.
Ela respirou fundo, ficou pensativa por alguns instantes e finalmente
aceitou.
— Tudo bem! — falou, estendendo a mão.
Examinei e notei que não era uma simples torção. O inchaço estava
intenso, e ela sentia dor ao mínimo contato.
— Preciso de exames de imagem, doutora Lara. Sinto dizer que há,
no mínimo, uma fratura aqui. Venha comigo até o hospital. Eu cuido de
tudo para a senhora.
— Cara, você só pode estar me zoando, não é possível. — falou,
frustrada, com o sotaque carioca carregado.
— Acredite, eu falo muito sério. Vamos?
Ela suspirou exasperada, passando a mão esquerda no cabelo.
— Tudo bem, eu vou. Mas só porque preciso de algo pra dor. Não
posso imobilizar, tenho que trabalhar.
— Ok! — aquiesci, ciente de que não cumpriria aquilo, pois estava
quase certa de que ela precisaria de cirurgia.
Fomos no meu carro, as duas em absoluto silêncio. Ela olhava a rua
pela janela. Eu até pensei em puxar conversa, mas não tinha ideia sobre o
que falar. Ela parecia meio amarga, sei lá. Não sei explicar. Tinha cara de
quem estava com raiva o tempo inteiro, talvez por conta da profissão.
Chegamos ao hospital e a deixei fazendo sua ficha de cadastro
enquanto fui me trocar. No vestiário, tive o desprazer de cruzar com
Marina, que, como sempre, não perdeu a oportunidade de ser desagradável:
— Olha só, a princesinha querendo mostrar serviço, vindo trabalhar
na folga.
— É, pelo menos eu mostro serviço de alguma forma, né? —
retruquei, aborrecida e saí.
Ainda fez um comentário sarcástico, elevando o tom de voz para
que eu ouvisse de longe:
— Papaizinho deve ter muito orgulho!
Foda-se!
Conversei com o Jales e expliquei a situação da Lara. Ele me
autorizou a atendê-la. Pediu à Jéssica que me auxiliasse. Caminhamos
juntas pelo corredor enquanto eu preenchia, no tablet, o requerimento dos
exames de imagem.
— Jéssica, por favor, fiz requerimento para um raio X PA e Perfil.
Consegue agilizar isso pra mim?
— Claro, Diana. Deixa comigo! — respondeu, sorrindo e me
olhando nos olhos.
Ruborizei. Ela sempre me olhava daquele jeito, e isso me
constrangia um pouco. Era uma menina linda, muito atraente, mas era
jovem e empolgada demais para o meu gosto. Além disso, tecnicamente, eu
era sua superior, então não cogitava nada além da relação profissional.
Ela, no entanto, não se dava por vencida nunca:
— Aquele dia você me disse que deveríamos marcar algo... tô
esperando até agora, sabia?
Sorri sem graça e me lembrei do dia em que a usei para ajudar na
fuga do meu tio. Eu me senti uma pessoa horrível por isso, tive que mentir:
— É, desculpe. A correria ainda não permitiu.
— Tudo bem! Mas hoje é sua folga, né? Quando acabar de atender a
delegada vai ficar livre... e eu saio às 19h, então... o que acha de tomarmos
algo? — convidou, insegura.
A ideia de sair com ela me fez pensar na Bárbara.
Talvez seja exatamente disso que eu precise: me interessar por
alguém novo. Mas a Jéssica não. Isso poderia me trazer problemas no
trabalho.
— Jéssica, desculpa, mas eu tenho muita coisa pra estudar, além
disso, estou muito cansada. Podemos deixar pra próxima? — perguntei e vi
o sorriso dela se desmanchar.
— Tudo bem! — concordou, frustrada. — Vou levar a paciente para
fazer o exame.
— Obrigada!
Enquanto elas foram, resolvi ver a Ingrid. Esperava encontrar
Bárbara lá e estava nervosa com isso, mas ela não estava. Ingrid dormia, e
Eulália me recebeu.
— Ela dorme há horas. Sempre que acorda, se agita e é sedada
novamente. Acho que essa depressão está acabando com a minha filha,
doutora. — disse, com os olhos marejados.
— Acalme-se, dona Eulália. Sua filha está sendo muito bem
assistida. Ela vai melhorar. Mas me diga, a senhora ainda não foi pra casa?
— Não, doutora. Não tenho coragem de deixá-la só, e a Bárbara
precisou viajar de última hora pro Rio. A mãe dela não está bem.
Filha da mãe! Aposto que é mais uma mentira.
— Tudo bem, mas a senhora deveria descansar um pouco. Ingrid
deve dormir por mais algumas horas. — garanti ao acessar o prontuário
dela. — Não há necessidade de ficar velando seu sono. Vá pra casa, tome
um banho, coma... descanse. Amanhã de manhã a senhora volta. Fique
tranquila, as enfermeiras irão tratá-la bem.
— É, acho que vou mesmo. Obrigada, doutora! A senhora é um
amor.
— Imagina, dona Eulália!
Jéssica retornou com as imagens do punho da Lara, e eu não estava
enganada. Havia uma fratura no rádio.
— Eu não vou passar por uma cirurgia. — garantiu, aborrecida.
— Delegada, é um procedimento simples, mas de extrema
necessidade. A senhora será liberada assim que se recuperar da anestesia.
— Doutora, não tenho medo da cirurgia. Eu só não posso me afastar
do trabalho.
— Tudo bem, mas se não tratar a fratura não vai conseguir trabalhar.
Já conversamos sobre isso.
Depois de muita insistência ela concordou, e após os exames pré-
operatórios entramos no centro cirúrgico. Jéssica me auxiliou, quase não
falou mais comigo depois do meu fora. Estava claramente magoada, mas eu
não podia fazer nada.
Após a cirurgia, fui para casa. Sem querer acabei caminhando para a
varanda e me peguei observando o apartamento da Bárbara. Aquilo já
estava ficando meio obsessivo. Ela não estava em casa. Resolvi tentar
descansar. Deitei, estava exausta.
No meu plantão do dia seguinte, logo na primeira ronda, eu dei alta
à delegada mal-humorada, que me agradeceu por pura obrigação. Evitei ir
ao quarto da Ingrid. Na verdade, ela ainda estava ali a pedido do psiquiatra
que a avaliou, já que sua lesão estava tratada. Soube por Jales que estavam
pretendendo transferi-la para um hospital psiquiátrico, em São Paulo, pois
ela estava completamente fora de si.
Fiquei pensando no que a Bárbara achava daquilo, e como se meu
pensamento tivesse força, no final da tarde, ela apareceu na emergência, à
minha procura.
— Preciso de sua ajuda.
16 – Empatia

Bárbara

Confesso que fiquei com dó da garota do ônibus. Ela me olhou


ainda em lágrimas, e pensei que eu seria capaz de transmitir para uma tela a
dor daquele choro.
— Bárbara! — Resolvi me apresentar para ver se ela parava de
chorar.
Ainda me analisou por uns segundos, até que respondeu, apertando
a minha mão:
— Bruna!
Depois se virou, deixando claro que não estava a fim de papo. Mas
não sou de desistir fácil.
— Você está bem?
— Mais ou menos... — respondeu, indiferente, realmente queria
ficar sozinha. — Vou ficar... obrigada!
Pensei em deixá-la na dela, mas o motorista anunciou parada em
Holambra, e resolvi tirá-la daquela deprê.
Ela estava abraçando os joelhos, olhando para o vazio do encosto da
cadeira da frente. Apenas a peguei pela mão e a puxei suavemente em um
convite velado para sairmos dali.
— Vem sentir o cheiro dessa cidade!
Percebi que sua leve resistência sumiu completamente quando
respirou aquele ar. Expliquei o nome e tradição do lugar, notei seu olhar de
deslumbramento e vi que mexeu com ela também. Aquela cidade me
encantava de uma forma que eu não conseguia explicar. Suas cores e seu
cheiro eram terapêuticos.
Vindo de São Paulo, Bruna demonstrou grande tristeza quando
mencionou que estava indo para Vila dos Lírios encontrar uma pessoa.
Imaginei que fosse alguém bem importante para ela e eu não estava errada.
— Você já se sentiu a mais completa estranha com você mesma? —
perguntou, depois de um longo tempo quieta.
A pergunta me incomodou, nem sei o motivo, mas resolvi
responder, pois ela estava mesmo precisando conversar com alguém.
— Sinto isso direto! Sensação de que estou no lugar errado, de que
não devia ter nascido. — Fui sincera.
— Exatamente! — falou num tom alto demais para quem estava
triste e quase muda poucos segundos antes. — Mano, eu saí sem rumo pra
fazer uma coisa que sei que você vai achar o fim... na verdade nem sei
exatamente o que vou fazer ou sentir quando encontrar...
Eu contei por que fui para Vila dos Lírios e engatamos uma
conversa que resultou em ela falando o motivo que a levara ali. Aquilo
ativou totalmente a minha empatia.
Indigente. Foi como se denominou, depois de descobrir sua origem.
Ela era fruto de um estupro. Sua mãe tinha apenas 17 anos na época e foi
abusada dentro da casa da tia, que era sua tutora, pelo próprio primo. Fora
enviada para morar em Vila dos Lírios após o pai, um escroto
preconceituoso, descobrir que ela mantinha um namoro com uma colega da
escola. Após o abuso sexual que sofrera, aterrorizada, fugiu e voltou para
São Paulo. Seu plano era encontrar a namoradinha e desaparecer com ela no
mundo, mas descobriu que estava grávida, então desistiu de tudo, pois não
teve coragem de abortar. Felizmente foi acolhida por uma família.
Conseguiu documentos falsos e passou a viver sob outra identidade.
Imagino a merda que foi para ela se submeter a tudo isso.
Bruna crescera sem ter a menor ideia de nada daquilo, até que
entrou na faculdade e se apaixonou por uma professora. As duas
começaram a namorar, e tempos depois, em um jantar de apresentação, ela
descobriu que a namorada era a ex de sua mãe, e então a coisa toda veio à
tona. Essa história você conhece em Traiçoeiro da Linier Farias em parceria
com Diedra Roiz.
Naquele momento, o bendito incômodo da minha nuca chegou com
força, e não lembro bem do que fiz ou falei. Sofri uma espécie de apagão,
não faço ideia de qual foi a minha reação ao ouvir a revelação dela.
Abri os olhos e vi o olhar tenso dela sobre mim.
— Bárbara? Você está bem? — perguntou, preocupada.
— Ah, sim. Só fiquei um pouco zonza. Acho que é muito tempo
dentro desse ônibus. — menti. — Mas conta mais... o que houve?
— Cara, eu me apaixonei pela mulher que foi namorada da minha
mãe antes de ela ser jogada aqui como um animal peçonhento...
Eu a analisei por um momento, queria degustar cada palavra dela.
Eu estava enojada, sentia asco da família da mãe dela e mais ainda daquele
nojento, desgraçado, filho da puta do pai biológico.
Ela continuou:
— Eu senti tanto nojo de mim, tanto ódio de ter nascido dessa
forma, que a primeira coisa que me veio à cabeça foi vir pra cá e achar
aquele maldito, acabar com ele...
— Acabar como? Você é frágil demais para dar o que ele realmente
merece. — disse aquilo salivando de ódio.
— Eu não faço ideia... tudo o que sei é que quero voltar a me sentir
alguém de verdade, sabe? — confessou com a voz embargada.
Eu sabia exatamente o que ela estava sentindo para que aquela
mágoa a impedisse de falar direito. Peguei mais água, tomei e entreguei um
copo a ela, já aberta.
— Muitas vezes, o que somos é o que devemos ser, Bruna. Eu
desejei muito ser outra pessoa, ter mais coragem, não ser tão passional... ser
mais inteligente, mais fria.
— Eu só desejo ser alguém... uma pessoa por quem alguém como a
Paula seria capaz de se apaixonar de graça, sem precisar enxergar a minha
mãe em mim pra isso. — disse se referindo aos motivos que supostamente
haviam feito a namorada se aproximar dela.
— Pois apenas seja, Bruna. Você pode ser qualquer pessoa. Na
verdade, todo mundo tem várias personalidades dentro de si, basta saber a
hora certa de usar e usar com sabedoria, para benefício próprio.
Ela me olhava de cenho meio franzido, como se me visse pela
primeira vez. Ficou me analisando e fui adiante com aquele assunto, que já
era meu também.
— Nossa mente é traiçoeira. Nós só precisamos assumir o controle
dela e sermos quem quisermos ser.
— Falando parece fácil.
— E é. Olha aonde você veio parar, cara! Acha que isso é coisa da
Bruna que se apaixonou pela ex-namorada da mãe? Não. Aquela lá é só
uma faceta sua. Você é indigente se quiser, mas mais de uma você é
obrigada a ser todo dia.
— Acho que entendi, mas ainda assim a dor de saber de tudo o que
houve me tortura.
— O que você veio fazer aqui? Chorar essa tortura ou fazer a tua
justiça?
— Se eu me colocar no lugar da minha mãe e encontrar aquele
maldito, eu mato ele.
— Isso só seria possível se você fosse um Sensate. — falei e a vi
franzir o cenho. — Tá, eu vejo muita série no meu cárcere privado, mas é
isso. Como você não é um Sensate, você vai precisar usar a imaginação,
dessa forma terá que se tornar outra pessoa, se quiser mesmo ir adiante com
isso.
— Me ajuda, Bárbara... por favor! Esse desgraçado precisa pagar
pelo que fez, mas eu não faço ideia de como achá-lo.
— Qual é o nome dele?
— André Rezende. Tudo o que sei é que ele morava na zona rural.
— Aqui tem muita região agrícola. Embora tenha se tornado um
polo universitário, a cidade ainda é a maior produtora de lírios do estado.
Como faz fronteira, é fácil o fluxo de desconhecidos.
O ônibus entrou na cidade, e eu precisava correr. Indiquei uma
pousada para Bruna e fui para casa. Chegando lá, fui direto para o terceiro
andar, conectar o pen drive que o Fred havia me dado no computador das
câmeras.
Olhei a hora e desci, tomei um banho rápido e coloquei roupas
limpas. Olhei para o apartamento da Diana e vi a porta da varanda fechada.
Nem o Luís eu vi por ali.
Bruna estava dormindo, se debatendo, quando entrei no quarto dela
na pousada. Passou a respirar com dificuldade e a sacudi para que
acordasse.
— Ei, calma...
Ela acordou e me olhou assustada.
— Tive um pesadelo horrível! — falou, ofegando.
— Notei, você estava se debatendo. Respira! Vamos a uma lan
house que tem aqui perto. Tive uma ideia para encontrar teu pai.
— Arg! Não fala isso assim, que tenho vontade de correr daqui.
Vamos encontrar o André.
— Tá, desculpa!
Saímos da pousada e cruzamos com Eulália, que analisou Bruna de
cima abaixo.
— Bárbara! — cumprimentou, sorrindo.
Caraca! Ela bebeu de novo!
— Oi...
— Quem é essa? — Bruna perguntou por entre os dentes.
— Minha ex-sogra! História delicada, você já tem seus problemas...
— respondi com pressa e pensei com mais pressa ainda: — Essa é a Gisele,
minha irmã. — menti para Eulália e a vi cumprimentar Bruna.
— Prazer, sou Eulália. Vai ficar lá em casa?
— Não, eu vim resolver umas coisas e já tô indo embora. Obrigada!
— Temos que ir, Eulália.
Eulália pediu para eu passar no hospital, claro que eu precisaria ir lá,
ela foi se chapar no álcool.
Entramos na lan house e pedi uma máquina um pouco isolada para
acessar um site de busca que o Fred havia me passado um tempo atrás.
Encontrei dois caras com os nomes iguais ao que ela disse. Um vereador
ostentador, solteiro, e um pai de três filhos, casado.
Bruna ficou frustrada quando eu disse que apenas com um exame de
DNA ela poderia descobrir qual dos dois era o verme. Estava sem grana.
Enquanto ela se lamentava por achar que voltara à estaca zero, o tempo
no site do governo federal expirou e fechou. Apenas desliguei a máquina,
apesar do aviso para não desligar, e puxei Bruna pela mão. Joguei o
dinheiro sobre o balcão e saímos correndo de lá.
Mesmo preocupada, ela vibrou quando eu disse que havia acessado
um site proibido. Voltou a falar sobre o exame, mas eu precisava correr para
o hospital.
Pedi que voltasse para a pousada, tentaria falar com a Diana, talvez
ela pudesse ajudar.
Cheguei ao hospital e fui para o quarto de Ingrid. Ela dormia, fiquei
observando por um momento. Ela estava pálida. Os curativos em seus
pulsos eram menores, aquilo significava que logo iria para casa. E eu
precisava pensar no que fazer da minha vida, pois continuar na mesma casa
que ela, estava completamente fora de cogitação.
Uma enfermeira entrou e sorriu para mim, correspondi sorrindo de
volta e avisei que logo voltaria.
Fui procurar a Diana. Eu estava morrendo de saudade dela,
confesso, mas precisava mesmo era saber quem era o pai da Bruna.
Fui à emergência e a vi cuidando da perna de um homem. Esperei
um pouco e caminhei até ela quando se afastou do paciente.
— Preciso de sua ajuda! — cheguei pedindo, antes que ela
mandasse algum segurança me tirar dali.
— O que você quer? Aconteceu alguma coisa com a sua mulher? —
perguntou, irônica, com as mãos na cintura.
Senti vontade de beijá-la ali mesmo.
Fica mais linda ainda quando tá brava!
— Ela não é minha mulher. Mas não vou falar disso aqui. Preciso de
um favor seu.
— Você é muito cara de pau, garota! Acha que sou o quê? Você vive
fugindo e do nada aparece para me pedir favor... pelo amor de Deus! —
bradou em um quase rosnado, se afastando, mas eu a segui.
— Diana, por favor, cara.
— Você vai me explicar alguma coisa do que te pedi ou vai fugir na
primeira oportunidade?
— Eu prometo explicar tudo. Você é quem vai querer fugir depois
disso, mas vou contar, eu juro. Só que depois, porque agora estou com um
problema e preciso, por favor, que me ajude.
Ela revirou os olhos, suspirou e passou as mãos no rosto. Depois se
deu por vencida e perguntou:
— O que você quer, Bárbara?
— Preciso que você faça um exame de DNA pra mim.
Ela me olhou como se aquilo fosse o maior absurdo, e eu senti
vontade de sorrir, mas do jeito que ela estava puta comigo, seria meio
perigoso e talvez eu me tornasse um daqueles pacientes.
— Às vezes acho que você nem existe, sabe? Por que precisa de
exame de DNA? Ou vai dizer que não pode me dizer?
— Diana, é um caso de vida ou morte. Te conto depois de tudo.
Prometo! Me diz quanto é que vejo um jeito de te pagar. — falei, juntando
as mãos.
— Arggg! — rosnou, olhando em volta.
Mesmo cheia de fúria, ela aceitou. Cheguei perto dela e tentei tocar
seu rosto, mas fui empurrada.
— Não fazemos esse tipo de exame aqui, mas eu consigo colher o
material e enviar pra um laboratório de um conhecido. É pra você?
— Pra uma amiga, ela precisa achar o pai dela.
Ela respirou fundo e mordeu o lábio. Fiquei olhando aquela boca,
vontade de ignorar a raiva dela e beijá-la, saciar um pouco daquela vontade
que eu estava sentindo.
Depois que ela aceitou ajudar, voltei à pousada e chamei Bruna.
Diana tirou o sangue dela aborrecida, nem disfarçou, me olhou nos olhos e
saiu sem dizer nada.
Bruna achou aquele comportamento muito estranho, mas eu a
tranquilizei.
— Relaxa, depois converso com ela.
Saímos do hospital e resolvi ir para casa. Bruna ficou na pousada.
Cheguei e vi Eulália tentando abrir o portão.
— Eulália? Está tudo bem?
— Oi. Sim... você vai passar a noite com a Ingrid. Eu preciso
descansar.
— Claro. Vim buscar umas coisas para poder ficar lá. — menti.
Por mim a Ingrid ficaria sozinha.
— Entra aqui, preciso falar com você.
Entrei junto com ela e notei que estava estranha.
— Bárbara, a Ingrid acordou algumas vezes gritando que precisava
matar você.
Semicerrei os olhos, analisei Eulália por uns segundos e notei que
ela estava abalada e preocupada com aquilo.
— Eu sei o que você passa com ela, eu escuto muitas vezes os gritos
e confesso que não sei como você aguenta. Eu ainda suporto porque sou
mãe, mas você não é nada dela. Agora apareceu essa menina, e você disse
que é sua irmã, mas lembro bem de a Ingrid ter dito que você só tem um
irmão, mais moço que você.
Eu estava muda, ela exalava álcool, mas não estava bêbada. Fiquei
observando seus movimentos. Ela finalmente passou as mãos no rosto e me
encarou.
— Foi por causa disso que ela cortou os pulsos? Você a traiu?
— Claro que não, Eulália? Como eu faria isso? Ela suga minhas
energias de todas as formas. Mas eu já decidi sair fora, estou esperando
apenas ela se recuperar, porque apesar de ser uma escrota, eu não teria
coragem de fazer nada para prejudicá-la... — proferi, mantendo o meu
aborrecimento.
— Oh, minha filha, eu temia tanto que esse dia chegasse...
— Eulália, nem você aguenta aquele humor insuportável da Ingrid.
Porque se aguentasse não procuraria fuga no álcool. Eu vou passar a noite
no hospital, essa noite só. Se ela não receber alta, você se vira.
— Bárbara, por favor, espere mais um pouco. Você disse que ia
esperar que ela se recuperasse.
— E vou, mas não vou me arriscar ficando sozinha com ela lá.
Ela meneou a cabeça e resolvi ir até o apartamento ver como
estavam as coisas. Saí pelos fundos e subi para o terceiro andar, fui verificar
o computador.
Vi várias janelas abertas, o cursor se movendo rapidamente. Uma
janela escura com um texto branco subindo. Era o Fred trabalhando.
Desci para pegar uma roupa. Se queria que Eulália acreditasse que
eu estava indo para o hospital, precisava ser convincente.
Tomei um banho e me vesti. Quando estava saindo, o celular da
Ingrid tocou.
Fiquei ali, assustada, observando o aparelho tocar. Olhei para
verificar o número, mas só havia três zeros.
Depois de chamar por uns cinco minutos resolvi atender.
— Bárbara!
— Porra, Fred. Que susto!
— Descobri um endereço para onde as imagens estão indo.
— Um endereço?
— Sim, ela envia para dois, mas só identifiquei um até agora. Está
em nome de Silvio Dorneles, a dez quilômetros daí. Dei uma bagunçada
nas imagens que serão enviadas a partir de agora, mas o seu ato está
registrado em algum lugar, além desse que te passei a localização. Ela não
mantém as gravações aí.
Engoli aquela informação totalmente em seco.
— Obrigada, Fred. Vou começar a agir.
17 – Ciúme

Diana

Qual o nível máximo de cara de pau que uma pessoa pode atingir?
Eu me perguntava isso incansavelmente enquanto coletava o sangue
daquela moça, tentando encontrar qualquer nexo no comportamento da
maluca da Bárbara.
Depois que as duas foram embora, encontrei Gabriel no refeitório.
Eu nem tinha tempo de comer, o hospital estava muito agitado, mas se eu
não pusesse aquilo para fora iria explodir. Contei tudo a ele, que ficou
indignado.
— Que garota tosca, Biel! — disse, irritada.
— Di, na boa, cara! No início, até entendi a tua empolgação. Aquele
lance de trocar olhares pela janela, os amassos calientes no banheiro do
supermercado e tal... Beleza! Quem não teria ficado louco? Mas você devia
ter dado um basta nisso assim que viu a maluca entrando no hospital com a
mulher suicida. Agora, pra completar, ela aparece com uma terceira mulher.
Que porra, velho! Quem é cafajeste assim?
— É, eu sei. Sou uma completa idiota. Eu até tento resistir, sabe?
Mas quando vejo, já tô caindo na dela de novo. Não sei que poder é esse
que essa doida tem sobre mim.
— É um poder que você deixou que ela exercesse.
— Sim, mas eu não sei como retomar o controle.
— Ué, só retoma, cara! Ela não já tá em outra com essa tal guria do
DNA? Arruma outra mulher também, pô! Aliás, nem precisa arrumar, né?
A Jéssica é a maior gata e não para de te dar mole. Chama ela pra sair hoje
à noite.
— Ah, não, Biel! Não tô no clima...
— Não tá com ela, né? Mas aposto que se a Bárbara aparecesse,
você toparia até um ménage com ela e a outra novinha.
— Nunca! — retruquei, furiosa, e a minha voz saiu mais alta do que
eu calculei.
Eu não sabia qual a relação da Bárbara com aquela garota, mas só
de cogitar a possibilidade de as duas estarem juntas meu sangue fervia de
ciúme.
— Ei, calma! Tá todo mundo olhando pra cá.
Olhei ao redor e vi que as outras pessoas no refeitório olhavam
mesmo em nossa direção e cochichavam. Tratei de me recompor. Em um
tom mais brando, perguntei a Gabriel:
— Você acha que a garota do DNA é mais uma amante dela?
— Coleguinhas de escola é que não são, né, Di?
Engoli em seco aquela certeza do Gabriel. Não queria assumir, mas
ele tinha razão. Que outra relação as duas poderiam ter?
— Eu sou uma idiota. Imbecil!
— Ainda está em tempo de deixar de ser, cara. Larga mão dessa
guria.
— É, você tem razão.
Levantei daquela mesa decidida a não olhar mais na cara da
Bárbara, mas sabia que aquilo não seria tão simples. Decidi seguir o
conselho do Gabriel e chamar Jéssica para sair. Poderia até não funcionar,
mas mal também não faria. Dei uma volta pelos corredores e a encontrei
instantes depois, entrando na sala de suprimentos. Entrei em seguida e vi
que estávamos apenas nós duas lá.
— Diana? — perguntou, surpresa ao me ver.
— Oi! — cumprimentei, sorrindo.
— O... oi!
Eu realmente a desconsertava, ela sempre gaguejava quando falava
comigo. Confesso que achava aquilo até meio fofo, sei lá. Alimentava o
meu ego. Cheguei perto e pus uma mecha de seu cabelo ruivo atrás da
orelha.
— E então, você tem compromisso pra hoje, depois do plantão? —
perguntei e a vi sorrir.
— Sim... digo... não. — Ela se confundiu inteira, estava nervosa.
Precisou limpar a garganta e respirar fundo para continuar. — Não, eu estou
livre depois do plantão.
Sorri. Ela tinha a pele tão branca quanto a minha, mas as maçãs de
seu rosto estavam vermelhas, como se realmente fossem duas maçãs.
— Me acompanha numas cervejas então? — convidei.
— Sério? Quer dizer... claro, claro... te espero no estacionamento?
— Sim, te encontro lá.
— Combinado então.
Eu não estava muito à vontade em sair com ela, mas precisava
apelar para qualquer alternativa, se queria realmente tirar a Bárbara da
minha cabeça. Estava tão decidida sobre aquilo que antes de sair da sala,
enfiei uma das mãos nos cabelos acobreados de Jéssica e a puxei para um
beijo.
O susto dela foi nítido, mas em poucos instantes já estava
completamente à vontade nos meus braços. Até que beijava bem, tinha a
boca pequena, a língua macia... era muito cheirosa também, mas tinha um
defeito: não era a Bárbara.
Percebi que ela começou a se empolgar e interrompi o beijo. Ela me
olhou de olhos semicerrados, as pupilas dilatadas, estava ofegante,
claramente excitada. Quanto a mim, tudo que consegui foi comparar.
Cara, eu preciso sair dessa, urgente.
— Nossa! Isso foi inesperado. — falou, ofegando.
Eu me limitei apenas a dizer:
— Até mais tarde.
Depois me virei e saí, deixando-a lá.
Voltei ao trabalho. Acabei me atrasando para encontrar Jéssica, pois
precisei fazer uma esplenectomia em uma mulher que fora espancada pelo
marido. Aquele tipo de paciente sempre mexia comigo, eu só conseguia
lembrar das barbáries que minha mãe sofrera nas mãos do demônio do meu
pai.
Ela não chegou a perder o baço, como a minha paciente, mas me
lembro de uma noite em que ele entrou em casa furioso, xingando-a, em
uma de suas crises doentias de ciúme:
— Sua vagabunda dos infernos. Não pense que vai se livrar de mim
por causa disso. Antes de vocês ficarem juntos, eu mato os dois. — gritou,
enquanto a estapeava.
Naquela noite, eu não aguentei e fui para cima dele.
— Papai, não faz isso. Você tá machucando ela, tá saindo sangue,
olha! — gritei me referindo ao canto da boca dela, que já estava cortado
devido às pancadas.
— Vá para o seu quarto, Diana. Não se meta em conversa de adulto.
— Mas você não tá conversando, tá batendo nela. — berrei, em
lágrimas.
— Afrânio, por favor, na frente dela não! — Minha mãe implorava,
em vão.
— Cala a boca, sua vadia. Ou vai sobrar pra ela também.
— Não. — Ela gritou, tirando forças não sei de onde para se
levantar e enfrentá-lo. — Se encostar um dedo na minha filha eu te
denuncio, seu miserável.
A fúria dele foi agravada por aquele tom desafiador, e sem falar
mais nada, o desgraçado deu um soco na boca dela, fazendo-a cair na hora,
em prantos. Ele a olhou no chão e antes de sair de novo falou:
— Quero ver como vai me denunciar com a boca inchada assim.
Experimenta! — rosnou, em tom irônico e se foi.
Corri para socorrê-la. Eu tremia, chorava.
Além dos hematomas, ela havia perdido um dente. Tentava falar e
não conseguia, pois engasgava com o choro e o sangue. Eu estava muito
nervosa e chorava muito também, mesmo assim consegui ligar para o meu
tio, e como sempre, foi socorrê-la.
Uma lágrima escorreu pelo meu rosto na sala de cirurgia, enquanto
operava aquela pobre coitada, que com certeza passava pelos mesmos
abusos que a minha mãe.
Tentei limpar a mente e voltar a me concentrar no que estava
fazendo, pois aquelas lembranças sempre me faziam muito mal.
Uma coisa levou à outra e acabei me lembrando da recente visita do
tio Augusto. Meu corpo arrepiou inteiro quando me lembrei daquele
homem horrendo me atacando. Eu evitava pensar naquilo, havia
programado o meu cérebro para ignorar aquele acontecimento, pois me
recusava a acreditar que o meu pai, por pior que fosse, tivesse sido capaz de
mandar alguém me sequestrar ou matar o próprio irmão.
Outra coisa que havia me deixado cismada, mas que eu também
optei por ignorar, foi sobre quem havia me salvado, matando o bandido. Eu
sei que o correto era ter procurado a polícia, mas estava com muito medo de
tudo o que meu tio falara.
Aliás, ainda estou, mas depois que ele foi embora, tudo,
misteriosamente, ficou muito tranquilo. De todo modo, eu não queria me
envolver em um caso de polícia, pois eu tinha uma carreira a zelar. Não
poderia jamais ter o meu nome envolvido em um assassinato, por mais que
eu não fosse culpada.
Enfim, eu não sabia se aquela quietude deveria me acalmar ou me
deixar mais nervosa, mas o fato é que com todo aquele lance com a Bárbara
acontecendo, eu meio que havia deixado isso de lado. E naquele instante
voltei a me preocupar.
Finalmente a cirurgia acabou. Tomei um banho rápido, vesti minhas
roupas e fui encontrar Jéssica no estacionamento.
— Oi, desculpe o atraso. A cirurgia demorou mais do que o
esperado. — expliquei.
— Tudo bem, eu entendo.
— Vamos?
— Sim, vamos.
Entramos no bar, que estava lotado. Era sempre assim depois dos
plantões, a maioria dos residentes e dos internos iam até lá para aliviar um
pouco o estresse do dia. Havia o povo dos bancos também. Uns
comemoravam aniversário, outros eram apenas estudantes da Universidade
de Vila dos Lírios. A cidade meio que se encontrava ali naquele horário,
pois era um dos melhores bares. Como era previsto, não conseguimos uma
mesa e ficamos no balcão mesmo. Pedi duas cervejas e brindamos ao beber
o primeiro gole.
Jéssica falava e falava. Não que o assunto não fosse interessante, até
era, eu que não estava conseguindo me concentrar. Minhas respostas eram
monossilábicas, e mais ou menos na quarta cerveja percebi que ela estava
começando a ficar impaciente com aquilo. Eu já estava meio zonza, não
bebia com frequência, então me embriagava muito fácil. O lugar começou a
ficar muito quente, então convidei:
— Quer ir lá fora tomar um ar?
— Claro!
Quando coloquei o pé na calçada, avistei, do outro lado da rua, a
garota do exame de DNA. Meu sangue voltou a ferver. Ela corria apressada
na direção do hospital e deduzi que devia estar indo encontrar com a
Bárbara, que provavelmente estava lá, acompanhando a esposa dela.
Minha primeira vontade foi de segui-la. Até dei um passo na direção
dela, mas virei e vi Jéssica me olhando sem entender nada. Percebi então
que estava sendo ridícula e voltei a focar no meu objetivo de esquecer a
maluca. Só que não consegui controlar a raiva e me deixei ser dominada por
ela.
Como se Bárbara pudesse ver aquilo, agarrei a mão de Jéssica e a
levei para uma parte escura do estacionamento. Ela me seguiu meio
hesitante, mas não falou nada. Quando chegamos, eu a encostei em um dos
veículos estacionados e a beijei com força. Ela me correspondeu meio
tensa, mas aos poucos foi relaxando.
Eu estava de olhos fechados, sabia que não era Bárbara, mas era
como se fosse. Colei e rocei o meu corpo no dela, que gemeu, não sei se de
prazer ou de dor. Segurei seu rosto com as duas mãos e mordi seu lábio. Ela
abafou um grito. Desci as mãos pelo seu colo e apertei os seios por cima da
blusa. Desci mais e pus as mãos por baixo do tecido. Afastei o sutiã e
acariciei o mamilo, ela gemeu na minha boca...
— Jessica... — falei seu nome em um tom sussurrado.
— Quê? — Ela perguntou, me afastando.
— O que foi? — questionei, meio confusa, não sabia o que tinha
feito.
— Você me chamou de quê, Diana?
Não disse nada, até me dar conta da mancada que havia dado.
Pensei ter falado Jessica e saiu Bárbara.
Idiota!
— Quem é Bárbara? — perguntou, irritada.
— Ninguém... quer dizer...
— Ah, eu sou muito idiota mesmo! Isso estava bom demais pra ser
verdade. Não acredito, cara. Que escrota que você é! — xingou, ofendida e
foi saindo.
— Jéssica, espera...
— Me deixa em paz, Diana. Vai procurar outra pra bancar a imbecil.
Passei um tempo encostada naquele carro, me odiando.
— Merda, merda, merda... idiota, estúpida, desgraçada!
Fiquei ali até me acalmar um pouco e depois fui para casa
caminhando. Meu carro estava no estacionamento do hospital, mas eu
estava me sentindo muito zonza para dirigir.
Passei em frente ao mercado onde apenas algumas noites antes eu
havia feito amor com Bárbara pela primeira vez...
Amor... aquilo foi só sexo, Diana. Deixa de ser idiota!
Meneei a cabeça negativamente e segui em frente. A tensão tomou
conta de mim quando entrei na rua onde havia sido atacada. Pensei em
desviar por outro caminho, mas que diferença iria fazer? Além do mais,
naquela noite ela estava movimentada e não parecia perigosa.
Cheguei em frente ao meu prédio e olhei para a janela da Bárbara,
estava fechada. Recriminei-me mentalmente mais uma vez por não
conseguir deixar aquela história de lado.
Peguei as chaves para abrir o meu portão e quando girei a maçaneta,
ouvi uma voz masculina me chamar:
— Diana?
Reconheci a voz no ato, mas não quis acreditar. Me virei apenas
para ter certeza e quase desmaiei quando o vi.
— Pai?
18 – Instagram

Bárbara

Droga! — desliguei o celular e quando fui apagar a chamada,


apareceu como não atendida.
Pensei por um tempo e saí, precisava ir para o hospital. Olhei para o
apartamento da Diana e lá estava escuro. Se eu tivesse um pouco de sorte a
encontraria de plantão ainda.
Havia uma movimentação na rua, um carro com som e uns idiotas
perto de um quiosque, discutindo com o dono do local. Passei com as mãos
nos bolsos do casaco. Aquele capuz me deixava quase irreconhecível.
Cheguei ao hospital e não encontrei a Diana. Depois de rodar por
muito tempo, procurando, perguntei por ela a uma enfermeira e soube que
já tinha saído. Depois disso, só me restou ir ao quarto da Ingrid.
A tosca dormia profundamente. Sentei na poltrona e fiquei a
observando. Minha perna não parava um minuto sequer. Tentei contê-la
quando notei, mas foi em vão, então levantei e andei pelo corredor. Olhar
para a cara da Ingrid estava me deixado muito nervosa. Se ficasse ali mais
um segundo, seria capaz de sufocá-la com o travesseiro.
Depois de um tempo, voltei ao quarto e vi a desgraçada acordando.
Ela me fitou os olhos e começou a ofegar. Eu me aproximei devagar. Olhei
para fora, não vi ninguém.
— Boa noite, Ingrid! — sussurrei, com falsa cortesia.
— Eu vou acabar com você, sua miserável!
— Acho que não vai, não. Não tenho medo de você.
— Tua tentativa falhou, sua maldita!
— Não falhou, não. — Eu não segurei o riso. — Eu teria falhado se
você estivesse morta agora.
Quando ela mencionou avançar em mim, acionei o interruptor ao
lado da cama e quase que imediatamente dois homens entraram no quarto.
Pelas roupas, acho que eram médicos. Eu me afastei da cama e fiquei
olhando por cima dos ombros deles, bem dentro dos olhos dela. A louca
gritava que eu precisava ser presa.
— Ela vai me matar! — gritou, novamente.
Eu me afastei de costas até sair do quarto. Fingi desespero quando
um dos dois homens se aproximou de mim.
— Acho melhor você voltar quando ela dormir. Ela teve esse
comportamento com a mãe também.
— Ok, mas vou ficar por aqui. Volto para passar a noite com ela.
— Tudo bem. Em alguns segundos ela se acalma e dorme
novamente. — avisou e voltou ao quarto.
Eu continuei observando de longe. Vi quando aplicaram mais
remédio nela, que ainda tentou resistir, mas aos poucos foi desfalecendo.
Lembrei da Bruna e resolvi ir até a pousada. Já era noite, mas
precisávamos de algum avanço. Afinal, eu não sabia até quando poderiam
manter aquela louca no hospital. Vi uma mulher com um celular no bolso
detrás da calça enquanto falava com a recepcionista. Notei uma enfermeira
com um carrinho de equipamentos se aproximando e a alcancei, esbarrei na
mulher que pedia informação, fingindo desviar do carrinho, e peguei o
celular dela sem que notasse.
— Oh, desculpa! — pediu a enfermeira, distraída.
— Tudo bem. — Vi a profissional passar e toquei no ombro da
mulher — Me desculpe, não vi o carrinho. — pedi e ela apenas assentiu,
depois voltou a olhar para a recepcionista.
Saí do hospital, retirei o chip do aparelho e o coloquei no bolso.
Corri até a pousada, conectei o aparelho no wifi e acessei as redes sociais.
Logo encontrei o vereador no Instagram, se exibindo. Usava Twitter para
discutir com seguidores. As postagens dele me causaram náuseas, era
sempre algum discurso machista, misógino e fascista. No Facebook, era o
cara da família tradicional.
O outro André tinha apenas Facebook. A foto de perfil era com uma
mulher, esposa, com certeza. Não consegui ver o rosto com clareza. Muitas
mensagens religiosas com mais de quarenta pessoas marcadas.
Os dois tipos de pessoas me enojavam, mas desejei com mais força
que o André que procurávamos fosse aquele vereador.
Entrei no quarto da Bruna e a vi deitada, mas acordada. Quase
morreu do coração quando me viu já dentro do quarto.
— Caramba! Que susto!
— Calma! Toma. — Entreguei o aparelho. — Esse é o vereador. —
Mostrei a tela do Instagram. — O outro só tem Facebook, tá minimizado
aí! — avisei e mencionei sair.
— Espera. Que celular é esse? Só tem internet?
— Só, não tem chip! Eu volto em trinta minutos. — avisei e saí,
ignorando os chamados dela.
Eu precisava devolver o celular para a mulher. Saí dali correndo e
esbarrei em um homem, que usava um sobretudo preto. Ele tinha o cabelo
grisalho, olhos azuis, barba espessa, cheiro de perfume caro. Um arrepio
intenso percorreu minha espinha, não entendi muito bem aquilo.
— Desculpe! — Ele pediu e tentou olhar para mim, mas decidi
continuar correndo e só olhei para ele de novo quando já estava longe.
Estranho! Nunca o vi por aqui.
Cheguei ao hospital e vi Ingrid dormindo novamente.
— Oi, como ela está? Posso ficar por aqui ou não precisa? —
perguntei à enfermeira.
— Pode ficar, mas não é necessário. Ela vai dormir por algumas
horas...
— Obrigada.
Ela se afastou depois que agradeci, e fiquei observando tudo.
Quando vi que o tempo que dei para Bruna havia terminado, corri para a
pousada e quase surtei de ódio. Ela não estava lá. Perguntei ao
recepcionista, que já cochilava com a tevê ligada e soube que ela havia
saído há vinte e cinco minutos.
Que droga!
Voltei para o hospital achando que ela poderia ter ido para lá, mas
olhei por toda parte e nada. Vinte minutos depois a vi entrar na recepção e
fui até ela.
— O que houve? Preciso devolver essa porra de celular... — ralhei e
arranquei o aparelho da mão dela.
— Eu achei um deles. — confessou, ofegando, quase sem conseguir
falar.
— Como assim?
— É o carinha do Facebook com perfil conjunto. — arfou de
cansaço.
Bruna era impulsiva, acho que me identifiquei muito com isso.
— Eu fui lá, Bárbara. Vi um post dele avisando que estava
trabalhando e sentindo saudade dos filhos, então resolvi ir lá. Ele é gerente
de um supermercado aqui perto. Perguntei a uma menina do caixa, e ela
disse que ele estava fazendo um lanche, daí fui onde ele estava. Foi
supergentil comigo...
— Eita, respira! E por que essa loucura?
Ela mostrou um canudo dentro de uma sacola plástica e me
entregou.
— Garota! Você está mesmo com pressa, hein?
— Muita. Tomara que isso sirva... eu inventei que estava procurando
emprego.
— Esperta!
Falei aquilo com o pensamento no gerente do supermercado que eu
sempre ia de madrugada.
Merda!
André era realmente muito simpático. Sabe quando uma pessoa
nasce para aquele ofício? Pois é, o gerente do turno da noite do mercado
nasceu para ser gerente e lidar com gente. Falei com ele umas duas vezes,
apenas. Ele é muito alto astral, parece que está feliz o tempo todo e isso me
incomodou. Seria difícil fazê-lo pagar se fosse o pai biológico da Bruna.
Guardei o canudo do jeito que ela me deu.
— Fica calma, vou entregar isso pra Diana e se ela disser que serve,
tranquilo, senão eu dou um jeito.
— Não consigo ficar calma, Bárbara. Eu estou com os nervos à flor
da pele.
— Aí, ou você se acalma ou vai arrumar outro problema. Volta pra
pousada, descansa um pouco. Quando eu tiver alguma notícia sobre o
exame, te aviso. Se quiser conhecer a cidade, vai, mas se acalma.
Ela respirou fundo e passou as mãos no rosto, parando nos cabelos e
ficando daquele jeito por uns segundos. Ofegava olhando para o chão.
— Bruna, você comeu, cara? — indaguei, preocupada, pois não
parecia que estava alimentada. — Você está pálida. Vai pra pousada, come
alguma coisa. Logo eu apareço lá.
Ela olhou em volta e notei sua ansiedade. Ela jamais vingaria a mãe,
seria capaz de passar mal se visse o maldito do pai biológico na frente dela.
Ela saiu e fiquei ali observando aquela sacola com o canudo.
O mundo é mesmo muito pequeno!
Limpei o histórico do celular, devolvi o chip e o deixei na recepção.
Disse que havia encontrado embaixo de uma cadeira.
No dia seguinte, eu acordei antes de Ingrid e fiquei ali, observando a
miserável dormir. Um médico entrou e a examinou. Anotou algumas coisas
e perguntei:
— Quando ela vai pra casa, doutor?
— Ela não está reagindo bem, então acredito que será transferida,
pois não temos como mantê-la aqui. Não temos ala psiquiátrica...
— Entendi. Que chato! — lamentei, falsamente. — Eu vou comprar
um café, você acha que ela acorda que horas?
— A qualquer momento pode acordar. Mas não se preocupe, ela não
vai ficar sozinha.
Eu saí à procura da Diana. Vi uma médica, que já havia visto por ali
antes, me aproximei e vi o nome no jaleco.
Jéssica.
— Oi, bom dia, você sabe se a doutora Diana já chegou? —
perguntei.
Ela me olhou de cima abaixo, como se me analisasse, e respondeu,
seca:
— Não. Não sei se ela já chegou... — disse e seguiu por um
corredor.
Só franzi o queixo. Depois de uns trinta minutos, vi Diana passar e a
segui.
— Ei... oi...
Naquele momento fui analisada por ela, que tinha um misto de
sentimentos no olhar.
— O que você quer? — perguntou com a meiguice de um assassino
furioso.
— É... a Bruna conseguiu uma possível amostra de DNA... —
avisei, meio reticente e entreguei a sacola a ela.
— Ah... vou ver o que consigo fazer com isso. — Foi indiferente e
mencionou sair.
Segurei seu braço suavemente.
— Você tá bem?
— Acho que o meu estado não diz respeito a você, Bárbara.
Acredito até que você esteja perguntando apenas por falsa cortesia.
— Para com isso, cara! Eu me importo com você. É real. Me
importo com quase ninguém e nessa estatística você é responsável por esse
quase.
— Quem é você, garota? — perguntou, irritada.
— Você não está bem! O que houve? Por favor, me fala...
— Bárbara! Vai cuidar da tua mulher, ela deve estar acordada...
— Ela não é minha mulher, Diana! — Fui firme.
Ela suspirou e levou as mãos à cabeça. Arrumou os cabelos em uma
atitude impaciente.
— Vai me contar agora o que ficou devendo?
— Você pode me ouvir agora? — perguntei, sabendo que ela não
podia, pois não havia a menor possibilidade de termos aquela conversa ali.
A médica que disse que não sabia dela passou por nós e nos olhou.
Se tivesse laser no olhar, teria nos destruído ali mesmo.
— Qual é a dessa doutora, hein?
— Achou gatinha? Quer o contato dela?
— Porra! É tua peguete, né? Por isso ela me tratou tão mal. Tá
explicado. Enfim, eu vou nessa, já que você não quer me dizer por que está
assim, com o mesmo olhar de quando foi atacada... valeu. — saí e ouvi seu
chamado.
— Espera...
Virei-me para olhar e vi um homem grande, louro, meio
avermelhado chegando perto dela. Ele quase gritou:
— Você está atrasada, doutora Diana. A emergência está cheia...
Olhei para trás e a vi indo embora. Saí de lá com a certeza de que
estava acontecendo alguma coisa com ela. Por um momento, me senti
culpada, passei a noite naquela porcaria velando o sono da maldita, e Diana
ficou em casa sozinha.
Voltei para casa, ouvi o chamado da Eulália, que havia feito bolo.
— Bom dia! E então, Ingrid acordou? Falou com ela?
— Acordou, mas ficou louca como sempre e foi dopada de novo.
— Toma café, vai dormir um pouco. Eu fico lá hoje...
— Obrigada. — Peguei um pedaço de bolo e coloquei geleia de
morango.
— Você não era alérgica a morango?
— Não... — respondi, de cenho franzido.
— Jurava que tinha entendido que era. O que você comeu e ficou
toda empolada?
— É framboesa, Eulália. E é uma fruta tão sem graça e incomum.
Aquela geleia de morango estava tão boa que não deu para fingir.
Aliás, nem se eu quisesse, pois não lembrava de alergia a morango.
Naquele momento, comecei a ficar preocupada de verdade. Havia
alguém em mim alérgica a morango e eu não tinha conhecimento. Eulália
continuava me olhando.
— Não vou passar mal, Eulália! Obrigada... — Saí.
Entrei em casa, tomei banho e fui à pousada.
— Bom dia, seu Valdir!
— Bom dia. Tudo bem?
— Tudo bem, sim. E o senhor?
— Ótimo.
Ouvi a resposta já de longe, pois não esperei. Fui procurar
a paulistazinha ansiosa. Entrei no quarto dela sem que me notasse. Ela já
tomava café.
— Esse doce é delicioso!
— Porra, Bárbara. Você surge do nada...
— Você que está nervosa demais.
— E aí, a médica conseguiu fazer o exame?
— Entreguei pra ela. Não é num estalar de dedos, não, garota.
Calma, já falei.
— Eu vou à câmara dos vereadores.
— O que vai fazer? Acha que nesse estado vai conseguir alguma
coisa?
— Eu preciso, cara.
— Bruna, eu vou procurar o vereador, ok? Confia em mim. A Diana
vai usar o canudo, e vou dar um jeito de conseguir o material dele, tá bom?
Aqui tem um museu legal, está tendo exposição de arte lá, vai dar uma
volta...
— Se a doutora Diana fizer o exame e der negativo, não precisamos
fazer no outro, certo?
— Errado. E se der negativo nos dois?
— Ah, pelo amor de Deus, não fala isso.
Peguei um pouco do doce e coloquei numa torrada. Delicioso!
Conversei um pouco com a Bruna, tentando acalmá-la, e então fui à câmara
dos vereadores da cidade. E como era de se esperar o cara não apareceu ali.
Falei com uma moça que estava atrás de um balcão. Olhei para seu crachá.
— Oi, bom dia, Paulina! O André Rezende chega a que horas? Eu
sou estudante e gostaria de fazer uma entrevista com ele. Trabalho da
faculdade, sabe? Gosto do trabalho dele... meu nome é Elisabeth.
— Hoje ele não vem aqui, foi visitar o prefeito. Ele é a grande
promessa da cidade, e o seu Agenor, o atual prefeito, o quer como seu
sucessor, último mandato... — disse, sorrindo, senti seu hálito de chiclete e
acendeu a luzinha de ideia na minha cabeça.
— Isso já pode ser divulgado? Quero colocar na apresentação da
minha entrevista... — perguntei, entusiasmada. — Que perfeito!
— Não é segredo. Mas acho que ele mesmo pode confirmar...
— Preciso ter sorte pra encontrar ele. — divaguei. — Acho que essa
matéria ajudaria na campanha.
— Eu posso marcar um encontro de vocês. Vou encontrá-lo hoje à
tarde pra passar a agenda de amanhã.
— Você faria isso?
— Claro. Ele mora num condomínio aqui perto, vou às duas. Se
você vier pra cá, vamos juntas.
— Tá bom, muito obrigada.
— Enche a bola dele, hein? Ele precisa ser o próximo prefeito
daqui.
— Pode deixar! É a melhor opção, né?
Saí de lá com dor nas bochechas de tanto forçar sorriso, mas dez
para as duas eu estava lá de novo, com um bloco de anotações e uma
caneta. Entrei no carro com ela.
— Você tem chiclete? Eu tô um pouco nervosa. — Ela abriu a bolsa
e me entregou um. — Obrigada!
Ela fez o trajeto inteiro contando o quanto ele era maravilhoso, o
quanto era lindo, o quanto ele a tratava bem. E eu planejando chegar perto
para conseguir o material e fingir um mal-estar para vazar de lá.
Ela entrou no condomínio. Muito bonito, luxuoso.
— Cara, eu estou muito nervosa. — Respirei fundo.
— Relaxa. — pediu e estacionou na frente da mansão do vereador.
Entramos e fingi o mal-estar quando o vi.
— Calma, Elisabeth, vou buscar uma água pra você... André, essa é
a moça da faculdade, que te falei. Ela está um pouco nervosa. — Ouvi e
senti as mãos dele segurando meu cotovelo.
— Prazer, Elisabeth. Venha, sente-se aqui. — Ele me conduziu até
um sofá.
Encostei a boca no braço dele e levantei o rosto para olhá-lo. Tinha
um sorriso branco demais para um ser humano, cabelo bem cortado, barba
feita e cheiro de desodorante bom.
— Oh, desculpa! — pedi e puxei o chiclete trazendo com ele alguns
pelos do braço.
Paulina trouxe a água e tomei. Agradeci e comecei a fazer as
perguntas.
— Elisabeth, eu posso enviar as respostas por e-mail? Eu preciso
também da prévia, se você puder me enviar...
— Claro. Envia para elisabeth1098@gmail.com e te respondo com
o trabalho completo. Obrigada.
Agradeci e saí. Fui direto à lan house criar o e-mail da Elisabeth,
torcendo para que estivesse livre, e fui procurar a Diana.
Ela me arrastou pelo braço para um quarto. Aquilo me deixou
excitada, mas ela estava furiosa.
— Escuta aqui, garota, desta vez você não vai me enrolar, pois não
estou bêbada e muito menos vulnerável aos seus encantos. Só vou te deixar
ir quando me explicar tudo o que está acontecendo. Anda, começa logo a
contar... como sabe que fui atacada?
19 – Pai

Diana

A cada momento que passava, eu via menos sentido nas atitudes da


maluca da Bárbara e isso estava fazendo o meu sentimento por ela se
transformar em algo não muito saudável. Não acreditei quando apareceu
com aquela menina para me pedir um exame de DNA e fiquei ainda mais
chocada com aquele canudo que ela me entregara.
O que diabos essa louca tá tramando?
A cara de pau dela não tinha limites. A partir dali, parei de achar
que me queria só para sexo e passei a acreditar que, na verdade, estava me
usando para conseguir aquele exame, que ela precisava, sabe-se lá Deus
para quê.
Provavelmente, a garota do exame era uma das peguetes dela e
estava envolvida em alguma encrenca séria, pois ela parecia muito
empenhada em ajudá-la. Pensar naquilo me enchia de ciúme, meu coração
estava pegando fogo de ódio, mas eu sabia que precisava ligar o "foda-se",
dar a ela o que queria e depois me livrar daquela doida, caso contrário, eu
que enlouqueceria. Estava decidida a fazer isso, mas então ela fez aquele
comentário estranho sobre eu ter sido atacada.
Quis confrontá-la no mesmo instante, só que, como sempre, ela
fugiu, e não pude ir atrás, pois o Jales apareceu na mesma hora para pegar
no meu pé. Tive que voltar para a emergência, que estava cheia. Mais tarde,
certamente, ela apareceria ali de novo, pois além de querer notícias do
exame, tinha que interpretar o papel da mulher heroína que salvou a esposa
descontrolada.
Entreguei o canudo a um amigo que trabalhava no laboratório e
expliquei tudo, depois entrei no centro cirúrgico para operar um jovem de
dezoito anos que fora atacado por um grupo extremista de apoiadores do
candidato à presidência que era do mesmo partido do canalha do meu pai. O
pobre rapaz foi agredido após beijar o namorado no rosto, levou inúmeras
facadas no abdome, seu estado era crítico. Estávamos lutando para
conseguir salvá-lo.
Minha cabeça estava um turbilhão. Era muita coisa acontecendo ao
mesmo tempo e nada fazia qualquer sentido para mim. Parecia que eu havia
entrado em um tipo de realidade alternativa, onde de repente tudo saíra do
lugar. Como se não bastasse todo o estresse, ainda fui assistida pela imbecil
da Marina, na cirurgia.
— Recebendo visitinha do papai nas vésperas das eleições, né? —
comentou, irônica.
— Como você sabe disso? — perguntei.
— Ué, ele tá por aqui, fazendo campanha, passeando pelo hospital,
acompanhado pelo diretor. Visitando ala por ala. Vai dizer que ele não foi
ver a filhinha em ação?
— Doutora Marina, por favor, estamos em cirurgia. Vamos deixar as
conversar paralelas e focar no nosso paciente, que está em estado grave. —
falei, me aproveitando da minha autoridade sobre ela para encerrar aquele
assunto.
Embora ela tenha se calado, suas palavras ficaram em minha cabeça
e fui transportada para a noite anterior, quando ouvi a voz do cretino do
Afrânio me chamando em frente à minha casa.
Eu não podia acreditar que depois de todos aqueles anos a
personificação de todos os meus traumas e medos estava bem ali, na minha
frente, com um sorriso largo no rosto e os braços abertos em um convite
para abraçá-lo. Dei um passo para trás e agarrei meu próprio corpo, não
queria mesmo aquele contato.
— Filha, não está com saudade do seu velho pai? — perguntou, ao
se aproximar.
Pude sentir o cheiro dele, e aquilo fez o meu estômago embrulhar.
Era o mesmo perfume forte e amadeirado que eu me lembrava.
— O que quer aqui, Afrânio? — Fui rude.
— Diana, você é minha filha. Sei que deixou claro que queria
distância de mim, e respeito isso, mas sinto a sua falta e me preocupo. Vim
ver você, saber como está... você não aceita, mas amo você.
— Que piada! — comentei e ri com escárnio. — Você não ama
ninguém, além de você mesmo.
Ele me olhou com falsa decepção. A figura era a mesma de que eu
me lembrava, apenas os traços estavam mais envelhecidos e os cabelos
mais grisalhos. Ele usava um terno, com um sobretudo preto por cima, e
embora fosse um homem muito bonito, tinha um olhar frio, a maior cara de
mafioso. Eu sempre me arrepiava inteira quando o encarava.
— Filha, me deixe entrar um pouco. Só quero conversar com você,
saber como estão as coisas.
— Que novidade é essa? Nunca se importou comigo!
— Isso é o que você pensa.
— Ah, é? Então sua visita não tem nada a ver com a recente visita
do tio Augusto? — perguntei, em tom desafiador.
Ele sorriu orgulhoso e me respondeu:
— Sangue do meu sangue. Sagaz, não deixa passar nada.
— Não se orgulhe. Se eu pudesse, drenaria todo o seu sangue das
minhas veias e substituiria por sangue de rato. Eu me sentiria mais digna.
Ele bufou, mas engoliu a raiva que sentiu ao ouvir as minhas duras
palavras.
— Aquele invejoso do Augusto tem te envenenado contra mim
desde que você nasceu. E eu vim aqui justamente na intenção de tentar
mudar essa imagem que você desenhou a meu respeito. — falou, firme.
Arquejei de ódio.
— Será mesmo que você acha que sou tão idiota? Não me lembro de
ver arma nenhuma apontada para sua cabeça enquanto matava a minha mãe
aos poucos. Eu lembro de tudo, Afrânio. Eu vi tudo. Eu era só uma criança,
e ela uma pobre coitada, que não tinha forças para revidar aos seus ataques
covardes e brutais. — cuspi as palavras, ofegando e tremendo, as lágrimas
caíam em abundância e encharcavam o meu rosto.
Ele meneava a cabeça negativamente, tinha os olhos espantados,
como se o que eu falasse um grande absurdo.
— Sua mãe não era a santa que você acreditava que fosse, Diana.
Ela me traía com o invejoso do seu tio, que sempre quis tudo o que era meu.
O meu status, ela e até você.
— E isso por acaso te dava o direito de espancá-la?
Por tudo o que eu via, até imaginava mesmo que minha mãe e o tio
Augusto fossem apaixonados, mesmo assim isso não justificava aquele
comportamento tão agressivo.
— Diana, eu sou homem, eu tenho uma honra. Não podia aceitar
aquele absurdo...
— Sai daqui, Afrânio! — gritei, interrompendo-o. — Some da
minha vida. Você não é meu pai, não me deve nada. Não quero o seu
dinheiro, o seu status e muito menos a sua atenção, então cai fora e me
deixa viver em paz.
— Filha, me ouça...
— Eu não quero ouvir e nem falar mais nada. Se o seu problema for
a sua imagem, pode ficar tranquilo que não vou te dar desgosto. Não precisa
mandar ninguém me sequestrar.
— O quê? Do que você tá falando? Tentaram te sequestrar?
— Ora, não seja cínico, seu miserável.
— Diana, isso é sério. Se alguém tentou te sequestrar, eu preciso
saber para tomar alguma providência. Sou um homem público, tenho
inimigos e...
— Algum problema aqui, Diana?
Eu estava tão cega que não vi quando a Lara chegou por trás do
carro do velho. Não sei o quanto ouviu, mas estava aliviada por ela ter
interrompido aquela conversa.
Antes que eu pudesse responder, o imbecil perguntou com a
arrogância que lhe era peculiar:
— Quem é você, menina?
— Mais respeito, senhor. Meu nome é Lara Medeiros, sou a
delegada da cidade. — Ela respondeu impondo toda a autoridade que lhe
cabia.
Tive vontade de rir. Não que ela fosse muita coisa para ele, mas ele
precisava manter as aparências de homem de bem, então mudou a postura
para cumprimentá-la.
— Perdão, doutora. Eu não sabia. Eu sou...
— Afrânio Sobreira, famoso cirurgião cardíaco, deputado federal,
candidato ao senado. Eu sei quem é o senhor, doutor. — disse com a voz
firme e se virou para mim: — Você está bem, Diana? Parece nervosa. Está
com algum problema?
— Doutora, esse é um assunto de família. A Diana é minha filha, e
estamos tendo uma conversa difícil, só isso. Agora, se a senhora puder nos
dar licença... — Ele respondeu antes que eu pudesse abrir a boca.
— E então, Diana? — Lara perguntou de novo, ignorando-o
totalmente.
— Lara, obrigada pela preocupação... está tudo bem. Ele já está indo
embora, e eu vou subir para o meu apartamento. Pode ficar tranquila. —
falei, me aproveitando da situação para me livrar do traste.
— Sendo assim, doutor, vou abrir a porta do carro para o senhor.
Vamos?
Ela o acompanhou até o carro e abriu a porta para que ele entrasse,
mas antes, ele voltou a me olhar com aqueles olhos assustadores.
— Quando você estiver mais calma, volto para terminarmos essa
conversa. — avisou e em seguida apenas bateu a porta e saiu.
Eu suspirei, aliviada.
— Obrigada! — agradeci, ainda limpando as lágrimas.
— Parece que o assunto é sério, né?
— Longa história, deixa pra lá. — expliquei e mudei de assunto.
Não queria falar daquilo. — O que faz por aqui? Não deveria estar em
repouso?
— Sim, eu deveria. Mas você quebrou minha mão. Tá bom, depois
você consertou. Eu não consigo dormir, tá doendo muito, e aqueles
comprimidos que me receitou não servem, tomei tudo e nada passa essa dor
horrível. Eu estava ficando louca, então vim ver se não tem algo mais forte
pra me dar.
— E como sabia o meu endereço? — questionei, confusa.
— Sério que está me perguntando isso, doutora? Achei que fosse
mais esperta. Não lembra que sou a delegada da cidade? — gabou-se,
enfatizando a última frase, pois a disse para o Afrânio.
— Verdade. — constatei, sorrindo. — Vem, vamos subir. Tenho um
remédio ótimo pra você. É composto por lúpulo e cevada. Aceita?
— Demorou.
No final das contas, fiquei feliz por ela ter aparecido ali, pois se eu
ficasse acompanhada apenas das sandices do Luís Otávio, surtaria. Até que
a delegada sisuda era divertida. Não sei se fez de propósito, mas conversar
bobagem com ela até tarde da noite me acalmou e consegui dormir.
Uma quantidade expressiva de sangue se acumulando no intestino
do paciente me levou de volta à sala de cirurgia.
— Doutora Diana, o paciente está tendo uma hemorragia. — Marina
alertou.
— Sucção, rápido. Preciso encontrar a origem do sangramento.
— Doutora, PA caindo. — falou Werner, o anestesista.
— Ele está entrando em choque. Tragam as bolsas de sangue e
plasma. Preparem a transfusão imediatamente. — pedi e continuei a revirar
o intestino do garoto à procura da lesão.
Eu estava nervosa, meu coração batia forte, mas consegui manter o
foco no que estava fazendo. A quantidade de sangue aumentava muito
rápido e isso estava dificultando o meu trabalho, mas minhas mãos estavam
firmes e, tateando, comecei a checar as veias mesentéricas.
— O sangue está vindo rápido demais, é provável que haja alguma
fissura na artéria mesentérica que se rompeu agora. — deduzi em voz alta e
continuei a procurar.
Meu raciocínio estava certo e finalmente encontrei a lesão.
— Achei! Doutora Marina, aqui... rápido. — disse e a vi limpar a
área para que eu enxergasse. — Pinça. — pedi e recebi o instrumento que
usei para estancar o sangramento.
— Doutora Diana, PA 60x40, batimentos caindo também. Entrando
em bradicardia.
— Controlei a hemorragia. Cadê o sangue?
— Aqui. Vamos começar a transfusão.
— Ótimo. Doutor Werner, continue monitorando a PA. Doutora
Marina, preciso de sutura aqui.
— Ok!
Com a sutura da lesão e a transfusão, felizmente, a PA e os
batimento se estabilizaram. Respirei aliviada e segui para o outro ferimento,
mas para o meu total desespero... mais sangue.
— Não é possível. Será que havia outra fissura? — Marina indagou,
nervosa.
— É provável. Precisamos...
Minha voz foi interrompida pelo alerta agudo e contínuo indicando
uma parada cardíaca. Aquilo foi desesperador, pois precisava tentar
reanimá-lo e controlar a hemorragia ao mesmo tempo, e isso era impossível.
Pedi o desfibrilador e torci para que desse tempo de ressuscitá-lo antes que
perdesse todo o sangue.
— Carregue em 200... — pedi e ouvi o barulho da máquina
carregando enquanto posicionava as pás no peito do paciente. — Afasta!
Nada.
— Vamos de novo. Carregue em 300...
Repeti mais uma vez o processo e nada. O sangue já se espalhava
por toda parte. Insisti mais uma vez e estava tão obcecada em mantê-lo vivo
que insistiria mais mil, se o doutor Werner não tivesse me interrompido.
— Doutora Diana, é inútil.
— Não, preciso continuar... — falei, nervosa e posicionei
novamente as pás.
— Diana, pare. Não adianta.
— Eu não vou perdê-lo, Werner.
— Nós já o perdemos. — Foi taxativo.
— Não! — gritei e vi todos me olharem assustados.
— Doutora, nós sabíamos que o caso dele era muito difícil de ser
revertido. Já foi uma vitória ter sobrevivido a hora de ouro diante das lesões
que sofreu. E isso só foi possível graças a seu atendimento rápido e preciso.
Agora, infelizmente, não há mais nada que possamos fazer.
Engoli saliva para conseguir administrar aquela constatação. Eu
sabia que o Werner estava certo, mas havia me envolvido de um jeito
estranho com aquele caso. Talvez pelo fato de uma vida tão jovem estar
sendo ceifada unicamente por conta da intolerância humana. De algum
modo, aquele garoto me fazia pensar do meu pai, um opressor disfarçado de
homem de família. Para a sociedade, um homem íntegro, religioso, correto.
Mas só quem o conhecia de verdade sabia das barbáries que era capaz.
— Hora da morte: 17h13. — anunciei sem falar mais nada e saí da
sala.
Fui direto informar os pais do garoto, e pela primeira vez, chorei
junto com eles. Corri de lá. Precisava de um banho para tentar aliviar aquela
carga pesadíssima que estava sobre os meus ombros.
Entrei no banheiro arfando, em lágrimas. Nunca fui emocional
assim, mas os últimos dias estavam me deixando à flor da pele. Perder
aquele rapaz me deixou impotente, pensei em tudo na minha vida. Tomei
um banho e me acalmei um pouco. O dia estava caótico, não podia me dar
ao luxo de ficar ali.
Voltei para a emergência e a vi cheia, mais avisos de chegada de
acidentados. Fui até o quarto da Ingrid e ela estava com a Eulália. Não me
deixei ser vista para não ouvir conversa fiada. Observei-a por mais uns
instantes e depois saí.
Meu sangue ferveu quando avistei a Bárbara chegando. Movida por
um impulso, eu a peguei pelo braço e arrastei para um quarto. Eu sentia
uma pressão na garganta, um desespero, uma vontade estranha de gritar,
esbravejar.
— Escuta aqui, garota, desta vez você não vai me enrolar, pois não
estou bêbada e muito menos vulnerável aos seus encantos. Só vou te deixar
ir quando me explicar tudo o que está acontecendo. Anda, começa logo a
contar... como sabe que fui atacada?
— Ei, calma, só joguei. Eu vi sua faca no mercado, apenas deduzi.
Só anda armado assim quem quer se defender de algo. Eu estava certa, né?
Você foi mesmo atacada.
— Para! — gritei, exausta. — Chega de mentir. Eu fiquei encantada,
Bárbara, confesso! Mas já chega, eu não preciso disso. Vejo que vai fugir da
verdade de novo, então cai fora... some da minha vida.
— Calma, Diana! — pediu e tocou no meu rosto, mas dei um soco
em sua mão para afastá-la.
— Não me toca, Bárbara! Vou te pedir só uma coisa... — comecei e
senti que chorava, não consegui controlar. — Me deixa em paz, ok?
Esquece que eu existo. Vou entregar o exame da tua... — não pronunciei o
que pensei. — Eu vou te entregar o resultado do exame e nunca mais na
minha vida eu quero olhar na tua cara.
— Diana...
— Sai da minha frente! — gritei de novo e a empurrei para fora,
batendo a porta na cara dela.
Eu desabei no chão, não conseguia respirar direito. Imagens turvas
como as de um filme de terror passavam pela minha cabeça.
De repente todos pareciam estar juntos contra mim. Tio Augusto
com aquelas teorias da conspiração sem sentido, o desgraçado do Afrânio
falando mal da minha mãe, e a Bárbara se aproveitando de mim. Sem contar
que deixou claro que sabia algo sobre a tentativa de sequestro. Eu não sabia
de mais nada. Só tinha uma única certeza: não podia mais confiar em
ninguém.
— Diana! — ouvi a voz dela de novo. — Por favor, me deixa falar.
— Vai inventar alguma mentira pra tua mulher, Bárbara. Ela vai sair
daqui hoje. — gritei e me levantei respirando fundo.
Eu ainda tremia quando peguei o celular e chamei o Gabriel.
Bárbara continuou insistindo, mas fiquei em silêncio. Minutos depois ouvi a
voz dele do lado de fora.
— Vai embora daqui, garota!
Depois que ela se foi, deixei-o entrar. Precisava desabafar ou
explodiria.
20 – Desabafo

Bárbara

Confesso que ver a Diana naquele estado me fez sentir a pior pessoa
do mundo. Eu não podia deixá-la daquele jeito, estava nervosa, chorando
fácil, estressada e, com certeza, aquele tio dela saberia me dizer alguma
coisa.
Eu ainda tentei falar com ela depois de ser empurrada para fora
daquele quarto, mas não deu certo. Apareceu um médico e me pediu para
sair.
Saí, mas voltaria a abordá-la quando estivesse mais calma. Aquilo
não ficaria daquele jeito e eu precisava entregar o material do André.
Eu sentia uma pressão tentando fechar a minha garganta. Meus
olhos arderam, mas ignorei e fui ao quarto da Ingrid. Precisava saber que
história era aquela de que ela sairia dali naquele mesmo dia.
Cheguei ao quarto e vi um homem usando um jaleco branco, com
um estetoscópio no ouvido; ele se preparava para aplicar remédio nela, me
viu entrar e parou subitamente o que estava fazendo, guardou tudo e
começou a examiná-la.
Conheço esse cara de algum lugar! — pensei, forçando a memória.
Uma médica entrou, sorriu para o homem e o cumprimentou:
— Boa tarde, doutor Afrânio!
Ele acenou e me lançou um olhar de soslaio, cruzou os braços e
ficou observando enquanto a médica falava o estado de Ingrid.
— Infelizmente ela não teve progresso nenhum, sempre faz
escândalo quando acorda, tentou agredir a mãe. Precisamos contê-la não só
com medicamentos, mas com as amarras.
— Ela precisará ser encaminhada para uma clínica especializada.
Aqui não tem como mantê-la.
Ele falou e me olhou nos olhos, mantive o olhar no dele, e ele voltou
a olhar para a médica, que baixou o tom:
— Acho que ela vai precisar de um tratamento mais invasivo.
— Vamos cuidar de tudo, doutora Marina. Obrigado. — agradeceu e
saiu me ignorando.
Ele é o cara que esbarrou em mim na outra noite — reconheci pelo
cheiro. Eu estava certa, era a primeira vez que eu o via na cidade e não era
boa pessoa.
Passei um tempo ali, fui à emergência, onde Diana ficava, mas não a
vi. Resolvi ir falar com a Bruna. Ela estava voltando para a pousada.
— Oi... — cumprimentei e entrei junto com ela.
— Fui ligar pra minha mãe, mas não consegui... — avisou e abriu a
porta do quarto. — E aí, conseguiu alguma coisa?
— Sim, mais tarde eu falo com a Diana. — disse e sentei numa
cadeira perto da cama, fechei os olhos por uns segundos.
— O que houve?
— Nada, Bruna. Tua vida já tá só a merda pra eu te encher com as
minhas. Acho que o exame deve ficar pronto em uns dois dias e você vai
poder voltar pra sua mãe.
— Não sei como vou voltar pra minha mãe, Bárbara. Não sei o que
fazer pra me vingar daquele desgraçado que acabou com a vida dela. —
reclamou, nervosa.
Bruna não tinha a menor condição de sequer xingar o André. Ficou
falando e falando, e com isso me levando a pensar no que faria com o
desgraçado. Eu havia comprado aquela briga e iria até o fim.
— Bárbara? — chamou, com a cara assustada. — Você está bem?
— Ah, sim. Só me distraí. — expliquei e passei as mãos no rosto e
cabelos. — Eu vou nessa! Vou arrumar minhas coisas, vou precisar sair fora
da casa lá. — avisei e mencionei sair.
— Bárbara — eu me virei pra ela —, obrigada. Você nem me
conhece e me ajudou pra caramba. Se precisar de qualquer coisa, pode me
procurar.
— Valeu!
Saí de lá pensando na Diana. Já era noite, entrei na casa da Eulália,
achando que ela estava sozinha, mas o doutor Afrânio estava tomando um
café na poltrona dela.
— Bárbara, minha filha. Tudo bem?
— Oi, Eulália. Tudo bem, sim. Eu estou vindo do hospital. — disse,
ignorando a visita.
— Que bom que chegou, o doutor Afrânio precisa de uns
documentos que estão lá... — avisou, se levantando.
— Documentos?
— É, ele é médico da Ingrid. E vai...
— Se tornou médico dela quando? — perguntei, olhando para os
dois com olhar interrogativo.
Afrânio me fuzilou com os olhos.
— Ele é do Bonfim. Termina teu café, doutor. — sugeriu e serviu
mais bolo pra ele. — Daqui a pouco vamos lá.
Eu o encarei, desafiando, e ele sorriu para Eulália.
— Ela está com medo, Eulália. Ingrid tem muita sorte. A menina é
protetora, está preocupada.
— Ela salvou a vida dela, doutor.
— Sério? — perguntou e me encarou.
— Sim. — confirmei. — Com licença.
Saí enojada. Entrei no apartamento e peguei a única caixa com
papéis, coloquei na cama e a abri de novo. As imagens dali já estavam indo
para o Fred, então eu peguei tudo e coloquei dentro do colchão. Quando
estava devolvendo a caixa para o terceiro andar, tocaram a campainha.
Não faço a menor ideia do que se trata, mas se quer documentos,
deve ser aquilo.
Abri e falei ao velho para entrar. Eulália o seguiu contando coisas
sem importância. Eu apenas observei.
— Esse é o armário dela, se tiver algum documento é aqui... —
falou e ele começou a pegar pastas de lá. — Mas acho que os documentos
do médico estão nesta aqui. — avisou e abriu uma pasta cinza.
Eu notei que o doutor procurava algo no meio das besteiras da
Ingrid com muito entusiasmo.
— Achei, doutor! — Eulália disse sorrindo e entregou o objeto para
ele, que me olhou de soslaio.
— Você vai até a clínica? — Ele me perguntou, segurando a pasta.
— Não, Eulália é mãe, é melhor ela ir com a filha.
— Tudo bem. Obrigado, Eulália, ela vai passar pouco tempo lá,
garanto. Vocês vão poder visitá-la sempre que quiserem. Ela será muito
bem tratada e quando sair vai poder retomar a vida.
— Muito obrigada, Afrânio! O estado de São Paulo precisa de um
representante como você. — Ela se derreteu e me olhou sorrindo. — Nosso
futuro senador, Bárbara!
Eu dei um sorriso fechado, mais careta que sorriso.
Político é o segundo criminoso que mais odeio nesse mundo! E já
não fui com a cara desse idiota achando que era médico, agora então...
Os dois saíram e fiquei ali. Observei tudo da janela. O vi pegar o
celular e anotar algo enquanto Eulália falava.
Vinte minutos depois, ele entrou em um carro e foi embora.
— Bárbara! — Eulália, gritou. — Vem jantar, fiz sopa.
Fui até a varanda e respondi num tom que ela ouvisse, sem precisar
gritar.
— Vou tomar um banho, desço daqui a pouco.
Tomei banho e desci, tomei a sopa dela. Estava gostosa, mas eu
acrescentaria um pouco de tabasco. Vimos um episódio de Gray’s Anatomy.
— Eu vou com a Ingrid, tá? Doutor Afrânio está sendo um anjo. Vai
bancar o tratamento dela nessa clínica.
— Que bom, Eulália.
— Você está triste?
— Não, só cansada. Vou dormir um pouco.
— Tá bom. Eu acho que só chego de manhã, tá?
— Tudo bem. Pode ir tranquila, eu fico de olho em tudo. Tenho o
sono leve... — garanti, forçando um sorriso.
Esperei que ela se arrumasse. Ela esperaria Afrânio ali. Dei um
abraço nela e subi. Fiquei na varanda, desenhei por um tempo e resolvi
deitar um pouco.
Acordei com o barulho do portão do prédio da Diana. Esperei um
pouco e corri lá.
Repeti o trajeto que fiz quando o tio dela estava, só tive cuidado
para não ser vista, pois ainda estava cedo e naquele horário os moradores
estavam chegando do trabalho e da faculdade.
Porta da varanda aberta, como sempre, entrei num pulo silencioso e
a vi no sofá acariciando o Luís Otávio, que me olhou, fazendo-a me ver
também.
— O quê? — gritou, assustada, se levantando. — Co-como entrou
aqui?
— Calma, Diana! Eu preciso falar com você.
Ela ofegava, eu me mantive onde estava para não a assustar mais
ainda.
— Por favor, só me escuta.
Ela respirou fundo, notei que tremia, sentou tentando se recuperar
do susto. Luís estava se roçando nas minhas pernas.
— Diana... — chamei, quase num sussurro. — Por favor... não
posso simplesmente sumir como quer.
Olhos ardendo. Ela me olhou e semicerrou os olhos, me analisando.
— O que quer falar? Fala e vai embora... estou muito cansada e sem
paciência nenhuma para as suas mentiras.
Uma lágrima desceu por meu rosto. Eu a limpei rapidamente, na
intenção de não ser vista, mas ela estava com os olhos vidrados nos meus.
Eu não tenho medo de nada nem de ninguém, raramente algo me
deixou nervosa nessa vida. A Diana tem esse dom. Ela é capaz de me
desestabilizar e me deixar frágil, vulnerável. É o meu ponto fraco.
— Suas lágrimas não me comovem, Bárbara! — disse, e se
levantou. — Se pretende falar alguma coisa, fala logo. Eu preciso
descansar, tive um dia cheio... — falou, me ignorando. — Ah, achei que
você estivesse acompanhando a sua mulher, foi transferida, agora você está
livre dela.
— Ela não é minha mulher. — retruquei, com firmeza e chamei a
atenção dela. — Eu já disse isso. Fiquei com ela achando que era alguém
em quem eu podia confiar. Mas ela não era nada do que pensei. Quando eu
arrumei as minhas coisas para ir embora ela me ameaçou. Escondeu minhas
coisas, tocou o terror na minha vida.
O olhar dela ainda era de desconfiança, mas eu continuaria.
— Eu não contei nada antes porque a Ingrid é metida com gente
muito sinistra, e temo pela sua segurança...
— Eu sei me cuidar, não preciso da sua proteção. — pegou uma
garrafa de cerveja, tirou a tampa e jogou na pia, voltou ao sofá e me olhou.
— Eu sei... — fiquei quieta, não sabia o que falar mais que não
fosse pior.
Ela tomou um longo gole da bebida e depois de um suspiro,
perguntou:
— Se foi ameaçada por que não procurou a polícia?
— Não é tão simples, Diana. Ela é possessiva, agressiva. Me
mantinha presa, dizia que tinha contatos que me achariam se eu tencionasse
ir embora quando ia ao mercado.
Ela franziu o cenho e ficou me ouvindo.
— Eu tinha os minutos contados para voltar pra casa. Quando eu
atrasava segundos, ela gritava comigo, me xingava e às vezes até me batia.
Quebrou a janela da varanda com a minha cabeça porque atrasei...
Ela engoliu o resto de cerveja e colocou a garrafa no chão.
— Você faz ideia de como eu estou me sentindo com a possibilidade
de me livrar disso? Parece que estou prestes a receber a minha liberdade. —
Arrepiei inteira ao proferir aquela frase e senti-la se concretizando.
Limpei meu rosto de novo, não era de chorar, mas estava bem difícil
segurar.
— Eu vivia numa gaiola, muitas vezes eu ficava quieta, aceitando
aquilo... eu não tenho pra onde voltar, Diana. Eu achava que a minha vida
acabaria naquele inferno. Eu não tinha planos, esperança, nada. Até que te
vi, como um anjo no outro lado da rua. Não estou sendo piegas quando digo
isso, estou sendo grata. Porque foi depois que você surgiu nessa varanda
que eu comecei a ver que eu estava viva e que além daquelas paredes eu
poderia viver sem medo, ser importante pra alguém. Você me deu força pra
lutar, pra sair daquela zona de horror.
Eu senti minha perna doer, pois coloquei o peso do corpo nela.
— Senta! — Apontou uma cadeira ao meu lado, à frente dela.
Notei seus olhos molhados. Sentei, ainda nervosa.
— Essa tentativa de suicídio dela foi a gota d’água, não vou bancar
a falsa santa aqui e dizer que não me senti bem com isso, senti sim. Minha
mãe sofreu abuso, e eu disse que nunca aceitaria isso, mas quando a gente
está vivendo é bem mais difícil sair. Você não vai entender e nem precisa.
— Entendo, sim... sei o quão horrível é, acredite. — Ouvir aquilo
me fez soltar a respiração que estava presa.
A voz dela estava branda, eu suspirei sentindo que podia voltar a
respirar pois nenhuma catástrofe aconteceria se eu o fizesse.
— E a tal Bruna, é alguém que conheceu em algum mercado 24h?
— perguntou, se levantando e pegando a garrafa no chão.
Não pude deixar de sorrir. Eu estava cansada, massageei minha nuca
na intenção de expulsar o sono.
— Não, ela é uma amiga que está procurando o pai. História longa.
Estou ajudando. — Levantei-me também e coloquei as mãos nos bolsos. —
Eu tenho uma sororidade fora do normal, Diana. Não acho que mulheres
precisem ser rivais, já somos menosprezadas desde que nascemos.
Ela ficou me olhando.
— Li num livro uma vez uma mulher falando para uma moça deixar
de agir igual formiga, parar de se contentar com migalhas, e tal. Mas
tirando essa parte das migalhas, eu acho que precisamos sim, ser um pouco
formigas. As formigas fazem coisas absurdas juntas. Bruna está muito
desorientada, sozinha não faria coisa nenhuma. Não tenho nada com ela. Na
verdade, apesar de bonita, ela não me atrai em nada.
Dei dois passos na direção dela, que se contraiu. Toquei em seu
braço, ela não tentou se afastar, só senti seu corpo retesado.
— Só você me interessa! — sussurrei, já perto da boca dela e a
beijei suavemente.
Ela estava tremendo quando a abracei. O beijo que se seguiu foi
intenso. Segurei-a pela nuca sentindo sua língua na minha. Aquele gosto de
cerveja me fez querer despi-la ali mesmo, mas eu não podia avançar assim,
ela ainda estava reticente apesar de me beijar entregue como sempre. Senti
sua mão apertando minha cintura.
Desgrudamos as bocas e ela me olhou nos olhos.
— Fica comigo hoje, não foge, por favor.
Como recusar um pedido desses? Não quero saber como recusar, só
quero não acordar se isso for um sonho.
Ela me puxou pelo rosto e me beijou.
— Vou tomar um banho rápido, estou derretendo. Não vai embora,
por favor! — pediu, me beijou e foi para o quarto.
Respirei fundo. Aquele cansaço voltou, fechei os olhos por uns
segundos e fui à cozinha. Abri a geladeira e além daquela infinidade de
congelados só tinha ovo, queijo e peito de peru. Abri os armários e
encontrei temperos artificiais em pó.
— Come muito mal!
Peguei alguns ovos e preparei para fazer omelete. Ouvi o barulho da
porta se fechando.
Quando ela saiu do banheiro já sentiu o cheiro, pois já estava
assando.
— O que está fazendo? Que cheiro bom!
— O seu jantar! — Coloquei em um prato. — Sei que não comeu
nada.
— Você existe? — perguntou, já se sentando.
— Prova! — pedi e sentei à frente dela. — Eu vi que só quem come
bem nessa casa é o Luís Otávio.
Aquela sensação foi uma das melhores da minha vida, ver aquele
belo rosto dela de olhos fechados apreciando uma simples omelete que fiz,
era impagável.
— Perfeito! — elogiou, colocando outra garfada na boca.
Quando terminou de comer foi ao banheiro. Enquanto eu a esperava,
fechei a porta da varanda e as cortinas.
— Por que não bateu na porta como uma pessoa normal? — Ela
perguntou, me abraçando.
— Você me deixaria entrar?
— Talvez não! — disse, sorrindo. — Vem cá...
Ela me puxou devagar para o quarto e trocamos um beijo intenso.
— Gosto muito de você, Bárbara. Não mente pra mim, por favor. Eu
quero acreditar que você é o que eu acho que é.
Concordei com a cabeça. Fitei seus olhos por uns segundos e a
beijei de novo, demonstrando todo o desejo e paixão que eu sentia por ela.
Sem interromper o beijo, ela sentou na cama e me fez sentar em seu
colo, puxando as minhas pernas. Eu apenas me rendi. Ela deitou e me
posicionou sobre ela. O gosto de pasta de dente me fez estremecer. Esses
pequenos detalhes a faziam única. A forma como me beijava me dava
segurança, vontade de sair daquele mundo com ela.
Senti sua mão acariciar meu abdome por baixo da blusa enquanto
me beijava. Tocou meu seio, acariciando o mamilo, que acendeu
imediatamente em reação ao toque daquela mão quente e macia.
Eu a abracei com força, queria sentir seu corpo no meu. Ela
entendeu a mensagem, pois girou nossos corpos e deitou sobre mim. Parou
de me beijar e me olhou, sorriu e voltou a me beijar.
Não consegui decifrar o que pensou, mas seu beijo era a melhor
coisa do mundo, então, dane-se o que deixou de falar.
Ouvi um barulho na rua, mas nada me tiraria dali.
21 – Paixão

Diana

Ver a Bárbara entrar na minha casa daquele jeito, me fez querer


esganar aquela garota. Quase morri de susto, mas quando começou a falar
eu quis acreditar nela. Ouvi cada palavra, observei cada gesto seu. Notei seu
nervosismo, pois ora coçava a nuca, ora mordia o lábio inferior, e vi retrair
os ombros quando começou a falar sobre o abuso sofrido pela mãe e o que
estava passando com a Ingrid.
No primeiro instante, comecei a pensar que fosse só fingimento,
pois mudava a entonação de voz e a forma de me olhar com certa
frequência, mas ninguém atuaria daquele jeito, a menos que quisesse ganhar
um Oscar. O fato é que eu me comovi com tudo o que ela disse. Estava
cansada... exausta, para ser mais exata.
Por isso, entre questionar as justificativas dela e tê-la finalmente
inteira, entregue em meus braços, depois de tudo que eu havia tido que
encarar nas últimas vinte e quatro horas, optei por me arriscar e confiei no
que me dizia.
Eu precisava dela, não sei explicar o motivo de tanta necessidade,
mas era como se o mundo estivesse desabando sobre a minha cabeça, e por
mais louca que fosse, quando eu estava com ela, tudo parecia mais leve e eu
me sentia mais forte para sustentar aquele peso.
Enfim, eu só queria paz e, naquele instante, essa paz estava nas
mãos macias que deslizavam suavemente pelas minhas costas enquanto eu
lutava contra o sono, depois de termos feito amor incontáveis vezes.
Senti seus lábios beijando a minha nuca e meu corpo inteiro
arrepiou.
— Você tá muito cansada. Dorme! — Ela pediu.
— Não! Não quero correr o risco de acordar e você ter sumido.
— Já disse que não vou a lugar nenhum. Confia em mim!
— Então vem cá, dorme aqui no meu peito. — falei e me virei,
puxando-a para que se aconchegasse em meus braços.
Ela sorriu e a beijei ternamente.
— Tá confortável?
— Nem imagina o quanto. — respondeu, já de olhos fechados,
sorrindo.
Linda! Perfeita!
— Então, boa noite!
— Boa noite!
Dormimos abraçadas.
Como sempre fazia, abri os olhos instantes antes de o despertador
tocar. Pela primeira vez não senti uma vontade louca de levantar e correr
para o hospital. Ao contrário, fiquei frustrada por ter que fazer isso, pois
seria maravilhoso poder passar o dia inteiro na cama com aquela mulher
linda.
Ela me observava com um sorriso. Tinha os olhos inchados, a cara
de quem havia acabado de abrir os olhos também. Conseguia ficar mais
linda ainda daquele jeito, tão natural. Sorri de volta e fui beijada.
— Bom dia! — desejei com os lábios dela ainda colados nos meus.
— Bom dia! Dormiu bem?
— Sim, e acordei melhor ainda. — brinquei e girei, ficando sobre
ela.
Rocei nossos corpos nus e já me acendi inteira. Ela gemeu com o
contato e me abraçou forte.
— Eita! A senhora é insaciável, né? — sussurrou em meu ouvido.
— Linda, você brincou com fogo. Agora vai ter que dar conta.
— Se preocupa, não! Se eu não der conta em uma viagem só, dou
várias.
Sorri e voltei a beijá-la. Aquilo era tão surreal que parecia coisa da
minha imaginação. Nossas línguas se exploravam com tanta intimidade que
nem dava para acreditar que se conheciam apenas há alguns dias.
As mãos dela deslizavam pelas minhas costas, me causando
milhares de arrepios. Desci a boca por seu pescoço e inalei profundamente
aquele cheiro que me deixava louca. Não era perfume ou nada do tipo, era o
cheiro da pele dela. Eu delirava cada vez que sentia.
Acariciei com suavidade os seios pequenos. Os mamilos eriçados
me pediam atenção. Ela os oferecia para mim, inclinando o tronco. Agarrou
meus cabelos quando suguei um.
Mordi de leve o biquinho só para ouvi-la gemer. Eu já sabia bem o
que fazer para excitá-la, e essa sensação me agradava, me deixava plena.
Alternei de um seio para o outro, arranhei delicadamente suas costelas, até
chegar ao ventre. Consegui sentir o momento em que a pele reagiu àquele
toque, ficando áspera quando os pelos se arrepiaram. Toquei seu sexo
úmido e gememos juntas em um prazer compartilhado. Eu sedenta por dar
mais, e ela alucinada por receber.
Voltei a beijá-la na boca enquanto deslizava os dedos entre suas
pernas. Ela me empurrou e se ajeitou de lado. Ficamos na mesma posição,
uma de frente para a outra.
Foi sua vez de sugar meus seios. Ela o fazia enquanto eu a penetrava
devagar, com todo cuidado para não machucá-la. Posicionou a perna para
facilitar o acesso e desceu a mão para me tocar também.
Massageou meu sexo com uma habilidade incrível. Minha mente
escorpiana chegou até a imaginar com quantas mulheres ela tinha transado
para conseguir chegar àquele nível de precisão, mas afastei o pensamento
inoportuno. Aquilo pouco importava.
— Você é boa nisso! — falei, entre gemidos.
Ela sorriu com malícia, me olhando nos olhos. Chegou mais perto e
beijou meus lábios. Enquanto brincávamos com as línguas, senti os dedos
dela me preenchendo e gemi alto em sua boca. Ela mordeu meu lábio
sensualmente e intensificou os movimentos. Revirei os olhos de prazer
querendo ver suas sensações e passei a penetrá-la no mesmo ritmo e com a
mesma força.
Eu estava perdida, desnorteada. Não conseguia mais sequer
imaginar como seria ficar sem aquela mulher. Gozei forte em seus dedos e
quase gozei de novo só em ouvi-la gemer de prazer.
Estávamos completamente entregues, não só àquele momento, mas
à noite como um todo. Aquilo me deixava muito feliz, mas me deixava
também preocupada, pois, quanto mais próxima ela ficava, mais difícil era
para mim aceitar suas fugas. Se isso já me deixava mal mesmo sem termos
vivido nada mais que sexo casual, imagina o que aconteceria depois de
termos compartilhado muito mais do que prazer?
Mas eu não queria pensar naquilo, só queria aproveitar o momento.
Se fosse a última vez, que fosse. Eu sofreria, claro, pois era fato: eu
estava fodidamente apaixonada por aquela mulher. Mas seria pior me
arrepender de não ter feito.
Enquanto nos recuperávamos, ela me encarava profundamente.
Bárbara era uma incógnita para mim, às vezes parecia até ser mais de uma,
tamanha era a oscilação em seu comportamento, suas feições, mas tinha
algo em seus olhos que a trazia para perto de mim e me dizia que eu podia
confiar, acreditar que ela realmente me queria.
— Ah, por que eu tenho que ir trabalhar, hein? — reclamei chorosa
enquanto ela distribuía beijos pelo meu ombro e pescoço.
— Cê não fica doente nunca? — sugeriu no meu ouvido enquanto
me beijava.
Sorri. Ela era mesmo muito travessa, e eu precisaria manter os pés
no chão ou me deixaria levar por sua malícia. Cheguei até a pensar em ligar
para o hospital e avisar que estava doente, mas embora aquilo me tentasse,
eu era absurdamente responsável e me sentiria mal o dia inteiro.
Procurei sua boca e dei um beijo, já me preparando para sair da
cama antes de ceder à tentação de passar o dia ali, com ela.
— Preciso tomar banho ou vou me atrasar. — falei e mencionei me
levantar, mas ela me envolveu com as pernas, me prendendo.
— Não vai, não! — choramingou. — Fica comigo.
— Para, não faz assim. Bem que eu queria, mas preciso ir. Fica aqui,
eu faço o possível pra chegar cedo... e amanhã eu tô de folga.
— Não posso. Mas mais tarde serei inteiramente sua. Tenho umas
coisas pra resolver...
— Ah! — exclamei, frustrada, e ela franziu o cenho. — Essas
“coisas” têm a ver com a sua mulher ou com a sua amiguinha? —
questionei, com ironia.
— Para, cara! Já disse que a Ingrid não é minha mulher, e você não
tem motivos pra ter ciúme da Bruna. Ela é minha amiga, só isso.
— Tá, esquece. Isso nem é da minha conta mesmo! — falei em um
tom abafado e me levantei para tomar banho.
Ela me seguiu até o banheiro e entrou no box comigo.
— Oh, sua marrentinha! Larga de ser boba, vai. Eu só tenho olhos
pra você e já te disse isso. Não consegue sentir o que você faz comigo?
— Não sou marrenta. — disse firme, mas de um jeito que para
muitos soaria infantil.
Ela deu uma risadinha e me beijou. Aquele sorriso me quebrou e
cedi ao beijo. Eu sempre fui muito ciumenta, só que geralmente eu
conseguia guardar o sentimento para mim, dificilmente deixava
transparecer. Mas com ela era mais forte do que eu. Imaginar tantas
mulheres envolvidas em sua vida me deixava incomodada demais. Não que
eu não acreditasse no que me dizia, mas ainda assim era difícil controlar
aquele sentimento. E depois tinha a falta de rótulos que ajudava a agravar
tudo.
— Se quer saber, vou mesmo encontrar a Bruna, ela não tá bem e
fico preocupada. Gosto dela, é minha amiga.
— Tá bom!
— Não fica assim, eu prometo que não vou mais sumir. Volto a
noite pra te ver.
— Promete?
— Sim, prometo.
Nos beijamos de novo. Ela estava diferente, mais leve, mais à
vontade comigo. Isso me fez confiar naquela promessa.
Saímos do banho e ela se vestiu rapidamente.
— Enquanto você se arruma, vou fazer um café pra gente, tá? —
avisou.
— Eu sou uma péssima anfitriã, né? Nem pra preparar algo pra você
comer...
— Relaxa, já vi que você não entende nada de cozinha e, modéstia
parte, eu mando bem lá.
— Tá bom! — concordei, sorrindo e a vi sair.
Luís Otávio estava na porta, me encarou, mas me ignorou quando
ela agachou para acariciá-lo.
— Oi, Lu! Tudo bem com você, seu gatão lindo?
— Sim. Geralmente não gosto de dormir no sofá, mas pra você eu
cedo o quarto.
Fiquei olhando aquela cena, incrédula. Ele se deliciava com os
carinhos dela. Ronronava e tudo.
Que bandido! Nem se importou de ser chamado de ‘Lu’.
Instantes depois, entrei na cozinha. Bárbara não exagerou, ela
realmente mandava bem, pois fez mágica com algumas torradas, ovo e café.
Até o Luís Otávio estava empolgado, comia ração seca misturada com a de
sachê, como se aquilo fosse um grande banquete.
Por que nunca pensei em fazer isso?
Comemos e fui escovar os dentes para sair. Já estava atrasada.
Quase não consegui desgrudar a boca da dela na hora de nos despedirmos,
mas precisei me esforçar.
— Quer que eu te deixe em algum lugar? — ofereci.
— Não, vou ao apartamento da Ingrid pegar umas coisas.
— Você vai embora de lá de vez?
— Sim, preciso. Vou ver se alugo uma quite ou algo de tipo.
— Tá, mas enquanto isso?
— Enquanto isso eu me viro. Ela tá fora do ar mesmo. — disse e
deu de ombros.
— Tá bom. Se eu puder ajudar em algo, me avisa.
— Tá, por enquanto tá tranquilo. Obrigada! Mas já que falou em
ajudar, a Bruna conseguiu o material de mais um dos caras que ela acha que
pode ser o pai dela. Pode entregar ao seu amigo e pedir para comparar
também com o sangue dela? — pediu e enfiou a mão no bolso, de onde
tirou e me entregou um saco plástico transparente com um chiclete cheio de
pelos dentro.
Achei aquilo meio bizarro, mas como tudo o que vinha da Bárbara
era sempre meio sem sentido, limitei-me a dizer:
— Não vou nem perguntar como vocês conseguiram isso. Prefiro
não saber.
Ela sorriu de súbito, aproximou-se e beijou meu rosto.
— Obrigada. Consegue ver pra mim?
— Sim. Acho que te entrego os resultados em dois dias, no máximo.
— Obrigada!
— Tudo bem. Preciso mesmo ir. — concluí ao olhar o relógio.
— Tá bom. Te vejo à noite.
— Ok. Vou esperar.
Ela me deixou no carro, despediu-se com um beijo e saiu. Quando
deixei a garagem ainda a vi atravessando a rua para entrar no prédio da ex
mulher.
Espero que realmente seja ex.


Na hora do almoço, encontrei Gabriel e contei a ele sobre a noite.
— Di, não acredito que você caiu na lábia dessa menina, cara! Não
vê que ela tá te usando? Além disso, ela é doida, você sabe disso. Já não
basta o maluco do teu tio e o psicopata do teu pai te pirando, ainda vai se
deixar envolver por essa garota tóxica? Se liga, pô! Essa Bárbara aí é
encrenca, tô te avisando.
— Biel, ela estava diferente. Conversou comigo, me explicou muita
coisa...
— Sei. Te enganou direitinho. Te prendeu com o sexo e agora pode
falar o que quiser que você vai acreditar.
— Não, me escuta. A tal da Ingrid é uma bandida. Mantinha ela
praticamente em cárcere privado, sem falar que a agredia. Eu sei como é
isso, Gabriel. É um verdadeiro inferno, é assustador. Não esqueça que eu vi
tudo o que a minha mãe sofreu.
— Tá, beleza, mas e a guria do DNA? Ela falou dela também ou te
enrolou de novo?
— Elas são só amigas. A menina tá tentando descobrir quem é o pai,
e ela tá ajudando.
— Ahan, e você acreditou nisso assim nessa calma toda?
— A menos que eu descubra algo, não tenho por que não acreditar
nela. Se quisesse só me usar pra conseguir os exames de DNA não
precisaria ir tão longe. Gabriel, ela olhou nos meus olhos. Não estava
mentindo, eu sei que não.
— Tá bom, Diana! Não vou ficar aqui insistindo à toa. Você é
adulta, sabe o que faz. Mas depois não diga que eu não avisei.
Gabriel realmente se importava muito comigo, e aquilo me
encantava e me dava certa sensação de familiaridade. Algumas vezes eu
imaginava que ele era meu irmão e isso supria um pouco da minha carência
familiar.
Falando em família, meu celular tocou enquanto conversávamos.
Era um número desconhecido, fiquei reticente em atender, mas na minha
profissão não se pode rejeitar chamadas. Atendi e ouvi a voz grave e
asquerosa do crápula do Afrânio.
— Filha, você precisa me dar uma chance de conversar com você.
— Já disse pra não me chamar de filha e também já falei que não
tenho nada pra falar com você. — disse, por entre os dentes, furiosa.
Aquela ligação tirou todo o meu bom humor.
— Não seja teimosa. O que tenho pra te dizer é importante. Além
disso, tenho uma proposta pra te fazer e sei que vai gostar.
— Não me interesso por nenhum tipo de proposta que venha de
você. Não faço pacto com o diabo. Me deixa em paz, Afrânio! Se me ligar
de novo, chamo a polícia. Tchau!
— Diana, escuta...
Desliguei, furiosa. Eu ofegava de ódio.
— Por que esse miserável simplesmente não me esquece, hein? Que
maldito!
— Calma, cara! Respira. O que ele queria?
— Me encontrar. Disse que tem coisas pra me falar e uma proposta
pra fazer.
— Proposta? — Gabriel perguntou, curioso.
— Sim, mas não quero saber de nada. Só quero que ele suma, que
morra... tanto faz. Não quero ter que vê-lo ou falar com ele mais nenhuma
vez.
— Di, você cogita a possibilidade do que o seu tio falou sobre ele
ser verdade?
— Sei lá, Biel. Aquele é outro maluco. Que porra de família louca
eu fui me meter, hein?
— Cara, você precisa pensar. Se o que o Augusto falou for verdade,
você pode estar em risco. Isso não é brincadeira. Eu não conheço o teu pai,
só sei o que vejo na mídia, mas só em ser político, já deduzo que ele não é
flor que se cheire. E se quiser algo, pode ter certeza, Di, ele vai conseguir.
Se eu fosse você procuraria entender melhor essa história.
A verdade é que eu evitava pensar naquilo tudo, pois sempre ficava
muito nervosa quando cogitava a possibilidade de o tio Augusto estar
falando a verdade. Mas Gabriel estava certo, se o Afrânio havia me
procurado após tantos anos longe, algo, no mínimo estranho, estava
acontecendo.
— É, você pode ter razão. Mas o que eu devo fazer? Me encontrar
com ele? Segundo o tio Augusto, isso seria a coisa mais perigosa a se fazer.
— Por que você não procura o seu tio e fala que o velho tá aqui?
— O celular!
— Que celular?
— No dia em que ele sumiu lá da minha casa, eu fui até a pousada
onde ele estava hospedado. Encontrei uma mala trancada e um celular.
Guardei no meu armário pra devolver, caso voltasse a aparecer, mas agora
me ocorreu... e se tiver algo naquele celular ou dentro daquela mala que me
responda algo?
— Será?
— Só vou saber se procurar. Você me ajuda?
— Claro. Vou com você depois do plantão.
— Tá bom. Combinado!
22 – Fazenda

Bárbara

Aquele clima romântico entre mim e a Diana me fez pensar no


futuro, um futuro com ela, talvez. Eu sei que seria bem difícil, já que ela era
vizinha da Ingrid, mas eu tinha o direito de pelo menos sonhar com uma
vida tranquila.
Diana é muito simples, se entregou inteiramente a mim e isso me
deu confiança. Aquele fora o primeiro contato realmente íntimo que
tivemos, e eu estava me sentindo preenchida, como se meu peito fosse
transbordar de tanta alegria. A sensação era completamente inédita para
mim.
Vou amar essa mulher fácil demais.
Conversamos um pouco durante o café da manhã, parecia aquelas
cenas de comercial de tevê, com casais felizes. Até um gato grande e gordo
nós tínhamos. A propósito, percebi que ela ficou surpresa com a minha
interação com o Luís, provavelmente não conhecia a vida dupla dele
comigo. Sorri ao imaginar o que iria pensar quando descobrisse que somos
amigos de longa data.
Eu me despedi dela com um beijo e a vi sair para o trabalho.
Atravessei a rua e ao chegar no portão da Eulália, notei que estava aberto.
Quando entrei no apartamento da Ingrid, ele estava completamente
destruído. Corri direto para o colchão e suspirei aliviada, ao ver que ele
estava apenas fora da cama, que também estava com o box revirado. Abri o
tecido ofegando, e os papeis estavam lá. O celular da Ingrid tocou dentro de
uma gaveta da mesinha de cabeceira. Os zeros.
— Alô?
— Bárbara? Fred... uns caras entraram aí, cheguei a pensar que
você estava morta, garota. Eles estavam armados até os dentes. Reviraram
tudo. Você tem ideia do que eles queriam?
— Cara, eu acho que tenho... — respondi, ofegando e passando a
mão nos cabelos.
— Bárbara, se acalma. Arruma um lugar pra ficar e chama a
polícia, sai daí e avisa que invadiram a casa.
— Não posso fazer isso, Fred...
— Você está correndo sério risco, garota. Me escuta. Eles teriam
matado você se estivesse aí...
Que droga!
— Vou ver o que fazer, Fred. Foi aquele velho que esteve aqui, né?
— Foi, sim. Tem cuidado com ele.
Ele desligou. Larguei o aparelho. Ouvi a campainha tocar, peguei o
conteúdo do colchão e enfiei dentro da minha mochila. Precisava verificar
aquela papelada toda num lugar seguro. Desci e vi o Silvio no portão com
uma cesta de legumes e verduras.
— Oi, Silvio? Tudo bem? — perguntei, sorrindo.
— Tudo! Eulália está?
— Ela foi pra São Paulo. Ingrid foi pra uma clínica, vai passar uns
dias lá. Disse que chegaria hoje cedo, deve estar chegando.
Senti um cheiro forte vindo da cesta dele e me aproximei.
— Tu tem durião aí? — perguntei, fazendo uma careta com nojo.
Durião é um troço que fede pra caralho, mas tem um gosto muito
bom. Pode ser facilmente confundido com peixe podre, mas eu sei
diferenciar os dois. É um fruto parecido com jaca, comum no oriente.
Conheci na casa de um amigo.
— Sim, eu colhi hoje cedo, Ingrid não gosta. Estou surpreso que
você conheça pelo cheiro... — disse, admirado. — Tenho no carro, é
encomenda.
— Eu adoro esse mundo de hortaliças, Silvio. Me deixa conhecer
tua fazenda? Estou sozinha aqui, não tenho nada pra fazer...
— Tudo bem, será um prazer apresentar tudo a você. Guarde essas
coisas e venha. Eulália vai chegar e quer usar.
Peguei a cesta e entrei na casa da Eulália. Deixei tudo na cozinha e
peguei a mochila para ir com o Silvio.
— Eu vou precisar passar numa quitanda, mas é coisa rápida. —
avisou, com aquele rosto bondoso.
— Você está bem, Silvio? Tranquilão?
— Se você está querendo saber sobre a doença, eu estou bem, sim.
Tomo meus chás e consigo dormir. E você? A Eulália me disse que você
estava querendo ir embora.
— Sim, mas vou esperar um pouco, acho que a Ingrid volta logo de
São Paulo.
— Minha sobrinha não é má pessoa, Bárbara. Ela passou por muitas
coisas. Perdeu o pai de forma trágica, entrou em depressão. Se envolveu
com algumas mulheres que a deixaram muito mal.
— Entendo, eu sei...
Ele estacionou na frente de um mercado. Eu desci e fiquei
observando tudo enquanto ele falava com um homem, que se aproximou e
pegou duas caixas no carro dele.
— Ai, meu Deus! — Uma moça se aproximou de mim quase
gritando. — Que linda! Onde fez?
Eu fiquei paralisada, a olhei e notei que falava mesmo comigo
quando tocou meu braço e passou o dedo sobre uma das minhas tatuagens.
— Eu que fiz.
A garota me olhou com cara de espanto, boquiaberta.
— Mentira! Sério? Por favor, faz em mim? Eu pago quanto for
preciso.
— Não rola, eu não tenho estúdio, não conheço ninguém. Eu fiz lá
no Rio... — Tentei dispensá-la, mas ela era insistente demais.
— Eu conheço um estúdio, eu pago, por favor.
— Eu não sou profissional, cara! Só...
— Por favor... meu nome é Taissa, não sou louca... — ela suplicou
sorrindo e sorri também.
Suspirei ao perceber que ela não desistiria. Resolvi aceitar, afinal,
uma graninha cairia bem. Eu estava quase zerada.
— Tá... onde é? Eu apareço lá amanhã às duas.
— Me dá teu telefone, eu te envio a localização.
— Me fala onde é e eu apareço lá. — falei rápido, pois vi Silvio
voltando com as caixas e ouvi a moça falar o endereço.
— Jura que não vai me dar bolo?
— Juro. Até amanhã.
Quando você cresce sem recursos e sem ter em quem confiar, só
existem dois caminhos possíveis a se seguir: ou se torna uma vítima ou uma
sobrevivente. Não preciso dizer qual caminho eu escolhi, né?
E pra sobreviver nessa selva, é preciso aproveitar cada
oportunidade.
Silvio olhou para a menina, que se afastou de mim, e sorriu.
— Bonita, Bárbara! Você tem bom gosto. — disse, abrindo a porta
do carro.
— É. — falei e sentei no banco do carona.
— Não faz essa cara, menina. — proferiu, sorrindo e dando partida
no carro. — Estou brincando. Eu a ouvi falar da tatuagem.
— Preciso de grana, né, Silvio? Ingrid nunca me deixou trabalhar,
agora que estou sozinha, preciso me virar.
— Sabe que se precisar de alguma coisa é só falar comigo, não
sabe?
— Sei, mas eu gosto de defender minha própria grana, sabe? —
falei e resolvi deixar aquele assunto mais leve. — Mas se eu te ajudar com
as hortaliças será um trabalho, e trabalho não tem orgulho, é digno... —
brinquei.
Ele riu e pegou a avenida, logo uma estrada, saindo da cidade. A
caminho da fazenda, falou sobre o que produzia lá.
Eu fiquei deslumbrada com a imensidão daquele lugar, mas minhas
mentes pensavam várias coisas ao mesmo tempo. Uma queria achar as
imagens das câmeras e deletar tudo. Outra queria um lugar para levar
André. Outra ainda, mais cautelosa, queria ganhar a confiança daquele
homem simpático, que falava de modo calmo e paciente.
Chegamos lá e fiquei mais extasiada ainda. Havia muita gente
trabalhando. Havia fábricas de queijo, bacon, carvão; padaria. Vi alguns
homens colocando caixas em um caminhão.
Silvio me explicou tudo. Eu quis ver a plantação de durião e a
fábrica de carvão.
— Sempre quis saber como funcionava a produção. Deve ser
complicada, né? — falei sobre o carvão.
— Não, é só marcar o tempo certinho, seguir tudo, que nada sai
errado. — explicou, indo na direção de um dos fornos, imensos; um calor
infernal fazia ali. Fiquei meio tonta. — Está tudo bem? Se quiser, podemos
ver depois... — sugeriu e me segurou.
— Estou bem, obrigada. É que não tomei café, acho que deu ruim.
— menti. — Mas, e aí, como é o processo?
Eu estava mais interessada em saber como funcionava aquilo.
Entramos na parte que dava acesso ao interior dos fornos.
— Aqui é colocada a lenha, depois fogo, deixamos queimar por um
tempo e vedamos tudo, pois se ficar alguma fresta para entrada de ar, vira
cinza, e a produção é toda perdida. Depois de mais um tempo, a entrada de
combustível é cortada e as chamas passam a apagar aos poucos.
— Que legal! Ingrid nunca me disse que aqui era maneiro assim.
— Ela odeia isso aqui. Veio aqui uma vez só, trouxe umas coisas e
deixou na casa da Nilza.
— Nilza?
— É a queijeira que mora aqui com a gente.
— Entendi. Achei que era sua esposa.
— Vamos sair daqui, está muito quente. — sugeriu e descemos por
uma escada estreita. — Eu não tenho esposa, Bárbara. Até me casei, mas a
mulher queria vender minhas coisas e me levar pra São Paulo. Então eu
pedi o divórcio, paguei o que ela pediu e me livrei de um problema.
— Existe muita mulher doida nesse mundo, Silvio.
Olhei para o lado e vi uma menina, toda suja. Ela não devia ter mais
de sete anos. Me olhou nos olhos e correu para uma parte escura. Não
consegui ver mais nada.
— Vamos provar o queijo da Nilza. É o melhor da região.
Vi um caminhão com a marca "Dornelles" nele e me lembrei que
havia usado esse queijo na casa da Diana.
Chegamos à fábrica, havia algumas pessoas trabalhando. Ele acenou
e uma mulher de meia idade apareceu. Olhos azuis claros e um sorriso de
dentes estragados me saudaram. Ela pegou algumas amostras do queijo que
estavam embalando e me deu. A perfeição em forma de comida, que
derreteu na minha boca.
— A senhora é uma deusa! Mora aqui mesmo? Se eu pudesse a
roubaria do Silvio.
— Sim, ali. — disse sorrindo e apontou uma pequena casa, ao lado
do celeiro.
— Esperto! Precisa manter por perto mesmo. Eu gosto de cozinhar,
mas ainda não sei fazer queijo. — menti, eu já sabia, sim, mas não ficava
tão perfeito quanto o dela.
Além disso, elogios aproximam pessoas, e eu precisava da confiança
daquela mulher.
Vi mais algumas coisas e observei a casa da Nilza. Como eu poderia
fazer para entrar lá sem que ninguém notasse? Sendo convidada pela dona
da casa.
Comi de tudo um pouco.
— Isso aqui é pra você levar, é ruim cozinhar só pra uma pessoa,
né? — Silvio disse, preparando uma cesta com alguns pratos que faziam lá.
— Obrigada, Silvio. Quero poder voltar pra conhecer o resto, quero
ver os animais.
— Pode vir quando quiser, vou à cidade três vezes por semana. E se
quiser ajudar em alguma coisa aqui, pode vir, pago bem.
— Muito obrigada. Jurem que não vão me expulsar daqui. —
brinquei, sorrindo — Agora eu preciso ir, mas amanhã eu volto, dou um
jeito de chegar aqui. Quero aprender a fazer esse queijo, Nilza.
Nilza era muito simpática, até me abraçou. Nos despedimos e Silvio
se preparou para sair também.
— Eu levo você, preciso falar com a Eulália. — avisou pegando a
chave da caminhonete e a cesta com as minhas coisas.
Saí daquele lugar maravilhada e com planos traçados. Eulália ainda
não havia chegado. Silvio deixou recado e avisou que voltaria no dia
seguinte. Eu entrei, deixei as coisas lá, tomei um banho, e saí com a minha
mochila.
Cheguei à pousada e vi Bruna assistindo tevê.
— Bárbara, você sumiu! Eu quase enlouqueci. Conheci quase tudo
nessa cidade... e o exame?
— Já entreguei o material pra Diana. Dois dias, no máximo. Fica
tranquila. — garanti e me sentei na cadeira ao lado da cama.
Coloquei a mochila sobre as pernas e peguei a primeira pasta com
os documentos que achei no terceiro andar. Eram cópias de projetos, fotos,
documentos originais e um pen drive.
— O que é isso?
— Umas coisas que achei.
Havia três pastas, resolvi não mexer em mais nada. Com certeza,
matariam por aquilo e não queria a Bruna envolvida.
— Qual é teu lance com a médica, hein? — Ela perguntou com um
sorriso interno e apenas a olhei. — Eu sei que rola algo entre vocês. —
Levantou a sobrancelha em desafio para que eu falasse.
— Preciso ir, Bruna. — desconversei e sorri, fugindo daquele
assunto.
— Foge, apaixonadona! — Ouvi já do lado de fora do quarto.
Saí de lá e fui pra casa. Vi um carro preto com vidros escuros
estacionado na esquina. Sabia que podia ser paranoia, mas imaginei que
pudesse ter alguém me vigiando.
Dei um jeito na bagunça que fizeram, trenei um pouco, fiz
abdominais, flexões, plantei bananeira por dez minutos, aquela posição me
acalmava, e tomei banho. Depois fui para a varanda fechei os olhos em uma
espécie de meditação, observando o pôr do sol. Resolvi desenhar. Vi
quando Eulália chegou com o velho, carregando inúmeras sacolas. Contei
exatos dois minutos e ouvi o grito dela me chamando. Olhar na cara
daquele velho escroto sem vomitar seria um imenso desafio, mas fui.
— Oi, Eulália, está bem?
— Sim, estou ótima. Afrânio me buscou no hotel e fizemos umas
comprinhas.
— Está tudo bem, Bárbara? — Ele perguntou sentado na poltrona
dela.
Olhei nos olhos dele e o analisei. Tinha um sorriso oculto, aquele
maldito. Eu não podia contar pra Eulália que invadiram a casa, teria que
dizer que dormi fora.
— Tudo ótimo, doutor.
— Silvio me ligou, só vi agorinha, já chegando aqui. Ele me disse
que você passou o dia lá. Adorou tudo. — Eulália disse com um sorriso
satisfeito no rosto.
Eu apenas observava aquele velho bandido, que desviava o olhar do
meu, mas mantinha aquele sorriso asqueroso.
— É, eu fui lá conhecer tudo. Estava sozinha, sem nada pra fazer.
— Bom, eu preciso ir, Eulália. Ainda vou me reunir com o doutor
Jales hoje. — avisou, se levantando e beijando a mão dela.
Estendeu a mão para mim e foi ignorado com sucesso, pois mantive
as mãos nos bolsos. Eulália, apaixonada, o levou à porta. Puxei um pouco a
cortina da janela e o vi parado, observando o prédio da Diana. Depois de
um tempo, foi embora.
— Nossa, que homem gentil. Não existem mais homens assim,
Bárbara!
Seria muito bom se fosse verdade!
Ela contou como havia sido em São Paulo e disse que Ingrid seria
bem tratada. Depois começou a falar e falar, aquela conversa sem nexo de
sempre, enquanto pegava as sacolas para levar para o quarto. Vi umas
caixas de uísque. Aquele velho demoníaco estava mesmo querendo deixar
Eulália calada e quieta.
— Descansa, Eulália. Eu vou fazer isso também. O dia na fazenda
foi cansativo.
— Já comeu?
— Sim, Silvio me deu muita coisa pra trazer.
— Que ótimo! Então vá descansar. Boa noite!
Ela se despediu e me dei conta de que já era noite. Subi correndo e
vi que a Diana já havia chegado, resolvi fazer uma surpresa.
Peguei minha mochila, com as minhas coisas e os documentos, e
saí. Pulei para a varanda dela e ouvi uma voz masculina. Achei estranho,
então preferi não entrar. Olhei por uma fresta e vi o médico que havia me
mandado ficar longe dela.
Devem ser amigos próximos.
— Tô começando a achar que o meu tio pode estar certo, Gabriel.
Isso aqui pode ter coisas muito sérias. — Ouvi a voz preocupada da Diana.
— Calma, Di. Vamos por partes. O seu pai é um bandido, já provou
que pode ser capaz de tudo pela integridade da imagem dele, e dessa vez ele
não mandou ninguém, ele veio pessoalmente.
— Que droga! Esse HD tem o acesso protegido por senha, Biel. O
celular é fácil desbloquear, mas e isso?
— Eu vou ficar com isso, eu dou um jeito.
— Conhece alguém, é?
— Eu meio que era tipo um hackerzinho na minha adolescência. Se
não conseguir dar um jeito, sei quem pode dar. Deixa comigo.
— E se eu falasse com a Lara? Sei lá... sei que mal a conheço, mas
ela parece legal. Temos nos falado quase todos os dias, acho que já posso
confiar, né?
— Lara é a delegada gostosa?
— É a delegada, Biel. — recriminou. — O que acha?
Então dona Diana está se tornando amiga da delegada 'gostosa'! —
Engoli saliva com um pouco de raiva daquilo.
— Acho que precisamos manter isso no mais absoluto sigilo ou
vamos chamar atenção demais.
— Mas ela é uma agente da lei, não devíamos confiar?
— Di, cê é doida, né? Não vê filme, cara? Em uma situação como
essa o certo é desconfiar da própria sombra. Deixa isso só entre a gente, por
enquanto. É mais seguro.
— Cê tem razão!
Do que estão falando?
Eu saí devagar e voltei para a rua. Havia decidido não procurar o tio
dela, mas precisava saber mais sobre aquilo. A Diana podia estar correndo
perigo, e eu não deixaria ninguém tocar nela de novo.
Toquei a campainha. Como gente normal.
23 – Certezas

Diana

Cheguei em casa com Gabriel e fomos direto para o quarto pegar a


mala e o celular que estavam guardados no meu armário. Tirei algumas
caixas de sapato que tinha posto por cima para camuflar não só a mala, mas
também a maleta com dinheiro e documentos falsos, onde também havia
guardado a pistola e as balas que Gabriel tinha conseguido para mim, mas
que eu nunca tive coragem de usar.
— Cara, tem muita grana aqui, Di! — ele disse ao abrir a valise.
— É, acho que tem. Mas não quero isso, Biel. Sei lá de onde esse
dinheiro veio. Só não devolvi pro doido do meu tio porque não sei onde ele
tá.
— Eu ainda acho que seu tio não é o vilão dessa história. Se eu
fosse você, seguiria os conselhos dele e já estaria longe daqui.
— Não é tão simples. Tenho a minha carreira.
— Sua carreira é mais importante que a sua vida? — perguntou,
meio irritado.
— Biel, se meu pai quisesse fazer algo contra mim já teria feito, não
acha?
— Ele já tentou...
— Como sabe que foi ele? E se foi alguém atrás do tio Augusto?
— Se estava atrás do seu tio, por que pôs um capuz na sua cabeça e
tentou te sequestrar?
— Ah, Gabriel, eu sei lá! Só sei que depois que ele sumiu o perigo
desapareceu também. Então parece mais óbvio pensar assim.
— É, isso é o que você acha, né? Eu queria ter essa sua calma. Olha
só, nem tá andando com a arma. Tá bom que você tem um anjo da guarda
misterioso, que te protege do mal, mas não custava nada andar prevenida.
A verdade era que por mais que ele tivesse me ensinado a usar a
arma, eu não me sentia segura. Tinha medo de disparar sem querer e acabar
me machucando, ou pior, ferindo algum inocente.
— Eu não sei usar esse troço. Capaz de eu cometer suicídio
involuntário, andando com isso na cintura. Prefiro a minha faquinha, sei o
lugar certo de cortar.
— Isso se você conseguir usá-la, né?
— Ah, Biel, esquece isso. Vamos abrir essa mala de uma vez por
todas pra ver se tem algo que credibilize o que aquele maluco falou. —
retruquei, impaciente.
Levamos a mala e o celular para a cama. Como prevíamos, estava
travada por uma senha numérica. Mas abri-la não foi uma tarefa difícil,
graças a minha faquinha.
O conteúdo, à primeira vista, não pareceu ter nada de especial. Era
realmente uma mala de viagem, tinha roupas e produtos de higiene. Senti o
cheiro do meu tio ali, mas não me conformei com aquilo e retirei tudo de
dentro. Abri o zíper do fundo e encontrei um objeto retangular, todo preto.
— O que é isso? um HD externo? — perguntei.
— É. Cadê o teu notebook?
— Na sala. Vamos lá...
— Espera. E o celular?
— Tá aqui, mas está descarregado. Vou pôr no carregador.
— Tá, põe logo e vamos. Depois a gente checa ele.
— Ok.
Liguei o celular na tomada e fomos para a sala. Enquanto
o notebook ligava, Luís apareceu e se roçou nas minhas pernas.
— O que esse embuste está fazendo aqui, humana? — perguntou e
miou.
— Ele está me ajudando a tentar descobrir se seu tio-avô é maluco
ou não, Luís.
— Ah, tanto faz! Só tenha cuidado para que ele não deixe esse
cheiro asqueroso impregnado no meu território. — disse com desdém e foi
caminhando para perto da vasilha de comida. — Tô com fome, quero a
ração seca misturada com a de sachê. É maravilhosa!
Eu o ouvi falar aquilo e me lembrei de como ele havia se dado bem
com a Bárbara. Acabei lembrando também que, se ela cumprisse a
promessa, deveria aparecer por ali a qualquer momento. Eu precisava ser
rápida.
Servi a comida do Luís e me sentei ao lado do Gabriel, que não
perdeu a oportunidade de ser desagradável:
— Acho que a doida aqui é você, e não seu tio. Meu, sério, cara...
essa tua relação com esse gato é tosca.
— Cala boca, Biel. Abre logo esse troço.
— Bem que eu queria, né? Mas esse computador parece que veio da
casa dos Flintstones.
— Deixa de ser chato. Olha aí, abriu.
— Tá, vamos ver... vamos ver...
Ele clicou no ícone para abrir o HD e de imediato apareceu uma
pasta de arquivos intitulada ‘Afrânio Sobreira’. Clicou nela, para abrir, e
apareceram outras. Os títulos dos arquivos me deixavam intrigada. Tinha de
tudo, passando pela vida profissional, carreira política e vida pessoal.
Comecei a ler:
— Licitações Secretaria de Saúde, Contas Instituto do Coração de
São Paulo... bla blá bla...
Passei os olhos nas pastas, até que cheguei nas três últimas. Uma
tinha o nome da minha mãe, outra o do meu tio, e a última, o meu nome. Li
em voz alta e olhei assustada para Gabriel.
— Que merda é essa?
— Não sei, mas vamos abrir pra descobrir.
— Tá, mas deixa que eu faça isso. — disse e puxei o laptop para
mim.
Eu estava nervosa demais com aquilo, apavorada com o que poderia
haver naquela pasta. Dependendo do conteúdo, eu teria a certeza de que
meu tio estava falando a verdade. Cliquei para ver de uma vez por todas,
mas apareceu uma caixa pedindo uma senha. Tentamos outras pastas, e
todas estavam protegidas.
— Provavelmente, há uma senha pra cada pasta. Isso vai ser mais
difícil do que pensei. — deduziu.
— Que Merda!
Pensei em pedir a ajuda da Lara, mas Gabriel me convenceu de que
não era uma boa ideia. Concordei com ele, não sabia em quem confiar,
então quanto menos gente tivesse acesso àquilo melhor.
Gabriel me garantiu que daria um jeito de desproteger os arquivos.
Fomos checar o celular, que também pediu senha de acesso. Ele resolveu
levá-lo também. Guardei tudo de volta no armário e me apressei em pedi-lo
para sair, pois imaginei que a Bárbara estava prestes a chegar.
— Cara, acho que você gosta mesmo é de encrenca, sabia? Toda
enrolada com essa conspiração familiar e ainda se envolve com essa doida.
— Biel, eu já disse que...
Não consegui completar, fui cortada pela campainha. Parecia que eu
havia feito tudo cronometrado. Naquele instante, a ideia de ver a Bárbara e
tê-la em meus braços de novo, a noite inteira, fez aquela angústia diminuir.
Abri a porta com um sorriso no rosto.
— Oi, coisa linda! — cumprimentei, com uma voz insinuante.
— Oi! — respondeu de um jeito doce e sorriu.
Senti vontade de beijá-la ali mesmo de tão linda que estava. Aquele
olhar apaixonado dela me encheu de alegria.
— Entra. — pedi e dei passagem para que entrasse e ficasse cara a
cara com Gabriel. — Esse é o Gabriel, meu amigo e colega de trabalho.
Biel, essa é a Bárbara.
— Olá! — Ela o cumprimentou com um aceno tímido.
— Já nos conhecemos. — Ele disse de cara fechada. — Bem, eu
vou indo. Te dou notícias, tá?
— Tá, obrigada!
Ele me deu um beijo rápido no rosto e saiu em seguida, sem olhar
para Bárbara.
— Acho que ele não foi com a minha cara.
— Liga, não. Ele é superprotetor. Acha que é meu irmão mais velho.
Vem cá, tô morrendo de saudade de você. — chamei já puxando a mão dela,
que cruzou os braços no meu pescoço e me beijou intensamente.
— Senti saudade também. — disse sem tirar a boca da minha.
Fui dando passos para atrás, trazendo-a junto comigo, até que caí
sentada no sofá. Ela sentou no meu colo, de frente para mim, e voltou a me
beijar. Parecia que fazia anos que não nos víamos. Era tanta saudade que
por mim não largaria aquela boca nunca mais.
— Como foi o seu dia? — perguntou, enquanto beijava meu
pescoço.
— Longo. — respondi, ofegante enquanto subia a camiseta que ela
usava. — E o seu? Resolveu suas coisas?
— Sim, tudo certo. Agora sou toda sua... — provocou e se afastou
para desabotoar o fecho do próprio sutiã, expondo aqueles seios pequenos e
lindos para mim.
Gemi quando notei os biquinhos eriçados. Senti todos os músculos
abaixo da minha cintura se contraírem. Ela me deixava louca, me fazia
delirar só de olhá-la.
— Se é minha, então vou tomar posse. — disse com um olhar
lascivo sobre aquele corpo divino e mergulhei nos seios.
Ela gemeu alto, minha perdição. Suguei mais forte e senti meus
cabelos sendo puxados. Fiquei preocupada de tê-la machucado.
— Doeu? — perguntei, enquanto acariciava o mamilo suavemente
com a língua.
— Não, eu gosto! Continua.
As palavras dela soaram mais como uma ordem. As mãos agarradas
em meus cabelos pressionaram meu rosto contra os seios.
— Suga forte, quero te sentir inteira em mim, mesmo depois que
terminarmos. — ordenou, entre gemidos, com a voz rouca, sussurrada.
Ela ofegava e eu passei a arfar também. Aquela entrega me fez
sentir como se eu estivesse vendo o mundo do topo do Everest. Era incrível,
ela era minha, eu podia sentir. E isso me deixava muito feliz.
Levei um tempo para conseguir reagir àquele pedido. Eu estava
embasbacada, olhando para ela. Agarrei seu quadril e puxei para mais perto
do meu, tentando causar algum atrito entre nossos sexos. Inclinei a pélvis e
ela começou a rebolar em movimento circulares, me olhando bem dentro
dos olhos enquanto mordia o lábio. Puxei aquela boca para mim e beijei
com tanta força que quando soltei vi os lábios avermelhados e levemente
inchados.
Passei a mexer o quadril também, sincronizando o movimento com
o dela, e desci a boca, distribuindo beijos sugados e mordidas leves pelo
pescoço e colo. Suguei forte um dos seios enquanto cobria o outro com a
mão, apertando-o.
Ela começou a me despir também, arrancou minha blusa e o sutiã
praticamente juntos. Eu larguei os seios e a puxei para que colasse o tronco
no meu. Senti a calidez daquele corpo, o atrito da pele dela contra a minha
me fazia achar que eu explodiria em breve. Suspirei alto, ela também, e
mergulhamos os rostos nos pescoços uma da outra, aspirando aquele cheiro
de desejo que exalávamos.
Senti suas mãos apertando as minhas costas, me puxando mais para
perto, como se quisesse que meu corpo se fundisse ao dela.
Não, isso não é só sexo, é muito mais. Ninguém seria capaz de
fingir uma entrega tão bem.
Em um movimento rápido, eu a deitei no sofá. Arranquei a calça
dela, trazendo junto a calcinha. Ainda de joelhos, entre suas pernas, tirei a
minha própria calça. Ela mordeu o lábio e suspirou quando me viu seminua,
naquela posição. Esticou os braços e agarrou a minha calcinha. Puxou com
tanta força que a rasgou. Abafei um grito de susto, mas aquilo me deixou
mais excitada ainda.
— Vem cá, eu preciso te sentir inteira em mim.
— Com prazer! — respondi e caí sobre ela.
Naquela posição e sem as roupas atrapalhando, conseguimos o atrito
que queríamos, e como se fôssemos uma só, fizemos um amor tão intenso
que chegar ao orgasmo foi como atingir o nirvana.
De lá, fomos para o quarto. Fizemos mais amor, conversamos muita
bobagem, namoramos, e não demos espaço para nenhum assunto chato.
Aquilo ficaria para depois, pois falar sobre a ex-mulher dela ou a tal da
Bruna tiraria todo o meu humor, e o clima era de paixão. Eu não o
estragaria por nada.
Mesmo assim, em determinado momento, resolvi falar sobre o
exame de DNA. Meu amigo do laboratório havia me ligado mais cedo para
avisar que eu poderia pegar no dia seguinte.
— Se quiser, podemos ir lá amanhã. — sugeri.
— Pode ser, tenho um compromisso à tarde. Tem que ser antes ou
depois.
— Compromisso, é, sua safada? Achei que tinha ouvido você
prometer que amanhã seria toda minha. — questionei em tom de
implicância enquanto fazia cócegas em suas costelas.
Ela tentava se defender enquanto gargalhava.
Linda!
— Boba! Pode vir comigo, se quiser.
— Nem sei o que vai fazer, mas quero.
— Nada demais. Mais cedo, na rua, uma garota viu a minha
tatuagem do braço e gostou. Perguntou quem tinha feito, pois queria uma
igual, eu disse que eu mesma fiz. Então ela me implorou pra fazer nela.
— Sério que você fez? Acho linda, ficou perfeita em você. — falei,
admirada, olhando mais de perto o desenho em seu braço.
— Obrigada! Não ficou bem como eu queria, mas agora já me
acostumei e passei a gostar. É única! E vai continuar sendo.
— Mas, vem cá, e onde você vai fazer?
— Ah, ela conseguiu o estúdio e o material com um amigo, só vai
me pagar a mão de obra de arte. — finalizou com um sorriso lindo.
— Que máximo! Você poderia pensar em abrir um estúdio depois,
né? É óbvio que tem talento. Eu seria sua cliente número um, com certeza!
— Tu tá doida? Acha que eu ousaria manchar essa pele? Nem em
sonho! Não sou tão boa assim!
— Que absurdo! Eu quero uma tatuagem, ué. Se você não fizer,
arrumo quem faça.
Ela gargalhou com ironia.
— Só por cima do meu cadáver. Eu mato todos os tatuadores da face
da terra antes que um deles toque em você. — disse forjando um tom meio
psicótico, fazendo com que eu risse muito daquela carinha de garota
malvada.
— Até parece. Você é tão pequenininha e frágil! Aposto que não dá
conta de matar uma barata.
Ela apenas sorriu e ficou me encarando com olhos indecifráveis por
alguns instantes. Depois mudou de assunto.
— Tô morrendo de fome e aposto que a senhora não comeu nada
hoje, né, gostosa?
— Touché! — admiti. — Não comi direito mesmo, o dia foi meio
louco.
— Pois vamos, vou tentar fazer um milagre com o que tu tem na
cozinha pra preparar um jantar descente pra gente. — disse e se levantou.
Passou por mim e deu um tapinha na minha bunda. Saiu do quarto, e
fiquei sorrindo, abobalhada, na cama.
— Vem logo! — gritou da sala.
— Vou tomar um banho rápido e já chego aí.
— Tá, não demora.
E nesse clima de romance, a noite seguiu.
Estar com ela ali parecia um sonho, e naquele momento tudo o que
eu menos queria era acordar para a realidade. Não queria pensar sequer no
tempo efêmero que aquilo provavelmente duraria, pois no fundo eu sabia
que nossos problemas, em especial, os meus, nos afastariam em breve. Mas
uma das lições que a medicina me ensinou foi que o tempo presente é tudo
o que temos, por isso, não podemos desperdiçá-lo por nada.
24 – Amor

Bárbara

Fiquei intrigada demais com aquela conversa da Diana com o amigo


dela. Assim que tivesse uma oportunidade, eu daria um jeito de descobrir
do que estavam falando. Pelo pouco que eu entendi, o tio Augusto estava
certo em se preocupar, ela parecia mesmo em perigo. Até pensei em
procurar o velho, mas as coisas estavam tão confusas que o mais seguro era
não confiar em ninguém. Além do mais, eu estava ali para protegê-la, não
deixaria que ninguém fizesse qualquer mal a ela.
Tivemos uma noite perfeita. Eu pensei em acordar antes dela para
preparar o nosso café, mas quando abri o olho e mencionei levantar, ela
acordou. Tinha o sono muito leve, acho que isso é coisa de médico.
— Bom dia! — desejou.
— Bom dia. Você é muito linda quando acorda, sabia? Parece que
foi esculpida por um anjo, ou talvez até por um demônio muito
meu brother.
Ela sorriu de súbito e me puxou para perto dela. Me beijou com
carinho enquanto acariciava o meu rosto.
— Estou morrendo de fome. — avisou e saiu da cama. — Mas acho
que não tem mais nada comestível nessa casa. Antes eu me contentava com
um café frio e uma fatia de pão dormido, mas agora você tá me deixando
mal-acostumada com essa história de comer direito. Vou ficar gorda, e a
culpa vai ser sua! — disse apontando o dedo na minha direção e entrou no
banheiro.
Eu sorri da falsa indignação dela, mas aquele comentário bobo me
fez lembrar de algo muito sério. A nojenta da Ingrid. Eu precisava de
notícias dela. Embora eu achasse que aquele velho estivesse muito
interessando em mantê-la "em off", não podia me dar ao luxo de relaxar.
Ela poderia voltar a qualquer momento.
Entrei no banheiro e tomei banho junto com aquela mulher perfeita.
Depois fomos ao mercado. Tirei vários enlatados e congelados do carrinho
dela e substituí por frutas, legumes, verduras, arroz, feijão e carne... enfim,
comida de verdade.
— Você sabe que eu não sei cozinhar, né?
— Sério? Não tinha percebido. — brinquei e sorri. — Você disse
que vou te engordar, mas eu não sei como não engorda comendo essas
porcarias.
— É isso ou passar fome. — disse e deu de ombros.
— Tá, mas isso é coisa do passado. Vou te ensinar a cozinhar.
— Acho que não é uma boa ideia. É provável que eu coloque fogo
no apartamento na primeira tentativa.
— Bem, então é melhor você me manter por perto. — falei em um
tom insinuante, e ela se aproximou de mim, sorrindo.
— É, assim parece melhor! — falou, baixinho no meu ouvido e
beijou o meu pescoço.
Arrepiei inteira com aquilo. Aquela sensação de familiaridade
estava ficando cada vez mais comum.
Será que estou sendo domesticada?
Voltamos para casa e tomamos café enquanto conversávamos
amenidades. O comportamento dela oscilava. Ora falava sério, ora brincava
e me zoava, parecia ter 8 anos de idade. Eu achava aquilo lindo, ela era
como as melhores pessoas deveriam ser.
Fomos para o quarto, e Luís nos acompanhou. Depois de emitir um
miado, pulou na cama, se roçou na Diana e deitou entre a gente. Ela beijou
sua cabeça e começou a falar por ele, usava um tom de voz grave e
sofisticado.
— Bom dia, Bárbara! Seja bem-vinda à minha cama. Antigamente
eu dormia nela apenas com a minha humana, mas agora ela só tem olhos
pra você, então...
Eu dei uma gargalhada e decidi entrar na brincadeira.
— Desculpe, Luís! Não tive a intenção de invadir o seu espaço.
— Ah, não tem problema. Você é uma gata... quer dizer, uma
humana gata, então eu aceito. Adoro suas comidas também.
Ainda sorrindo, olhei para ela e perguntei:
— Então a cama é dele e não sua?
Ela deu de ombros e levantou as duas mãos, em rendição.
— Sim, ele é muito generoso por me deixar dormir aqui. Mas se não
me comportar, ele me manda pra varanda. — disse, brincando e o pegou no
colo para continuar a falar por ele. — Humanos, uma raça medíocre. Nós,
gatos, somos seres infinitamente superiores. Só não dominamos o mundo
porque ele é muito grande e daria muito trabalho. Preferimos dormir.
Eu ri demais daquela bobagem. Afaguei o bichano e beijei a minha
gateira maravilhosa. Olhei para ele e continuei a brincadeira:
— Tua humana é muito linda. Tu é um gatão de sorte, cara!
— Sim, até que ela é bonitinha. Mas a sorte é toda dela. Olhe para
mim... sou lindo, perfeito.
Eu ia retrucar, mas não consegui mais. Eu ria tanto que parecia que
estava tendo um ataque epilético. Acho que Luís se assustou, pois pulou da
cama.
— Você é o máximo, cara! — falei, ainda tentando me controlar.
— Você já teve bicho?
— Já, um cachorro. Lecter. Ele adorava carne, por isso dei o nome
do personagem.
— E o que houve com ele?
Aquele assunto me fazia mal ainda, eu sentia muita saudade do meu
cachorro.
— Meu padrasto o matou pra se vingar de mim. Ele queria que eu
fosse submissa a ele e eu nunca fui.
— Meu Deus, que coisa horrível! Onde esse desgraçado está? Devia
estar preso. — disse, revoltada.
— Não sei dele, se mandou há um tempo. E eu vim pra cá.
Ela me beijou na cabeça.
— Você iria adorar o Lecter, e ele adoraria você também. — Eu
disse, acariciando o cabelo dela.
Puxei-a pela nuca para um beijo e ficamos ali mais um tempo,
conversando bobagem e namorando. Depois demos um jeito na casa, que
estava horrível, tomamos banho juntas, fizemos amor no chuveiro.
Diana tinha uma risada frouxa, toda palhaçada minha a fazia
gargalhar. Eu me sentia ótima com aquilo. Fiz o nosso almoço e comemos,
conversando, como sempre. A curiosidade dela não tinha limites, não
parava de perguntar nunca. Mas eu estava à vontade em responder, pois o
objetivo dela não era usar aquelas informações contra mim. Bastava olhá-la,
aqueles olhos azuis lindos me diziam que ela se importava comigo de
verdade. E depois se fosse mais uma decepção, eu já estava acostumada.
Perto da hora de sairmos para o estúdio de tatuagem, avisei que iria
ao apartamento da Ingrid pegar umas coisas. Entrei na casa da Eulália e
conversei um pouco com ela, que estava bebendo. Perguntei da ogra, e ela
falou que a miserável estava sendo mantida dopada quase que o tempo todo,
pois estava fora de si. Falou que ela estava me acusando de ter tentado
matá-la.
— Coitada da minha filha, Bárbara. Está completamente
descontrolada. Onde já se viu? Você tão frágil, tão pequena... como faria
isso? Deus tenha piedade dela.
Fiquei calada, não sabia o que falar. Notei a tristeza dela com aquilo,
mas não me senti nem um pouco culpada.
Me despedi e fui ao apartamento da Ingrid. Peguei umas roupas e
uns objetos pessoais, depois voltei para o apartamento da Diana sem que
Eulália notasse. Quando cheguei, ela estava falando ao celular.
— Tudo bem, eu troco com você amanhã, mas vai ficar me devendo
uma, hein? — disse e desligou.
— O que houve?
— Vou ter que dobrar o plantão amanhã. — avisou me abraçando
pela cintura. — Antes de você, eu amaria virar a madrugada no hospital,
mas agora, só de pensar ficar uma noite longe da minha pequena, já fico
triste. — reclamou choramingando, e a beijei.
Saímos para encontrar Taissa, a garota da tatuagem. O endereço que
ela me deu era dentro de um shopping, o único da cidade, eu acho.
Entramos de mãos dadas, como um casal de namoradas. Nos dirigimos a
uma escada rolante. Contei que subia pelo corrimão, e ela riu. O celular
dela tocou quando saímos da escada.
— Oi, passo aí daqui a pouco. Obrigada. — Desligou e me olhou.
— Era o meu amigo do laboratório perguntando a que horas passamos lá.
— Acho que em menos de duas horas. Hoje acabamos com isso. —
disse e a puxei pela mão.
— Espera! — Ela pediu e se afastou um pouco
Se escondeu em uma coluna e me pôs atrás dela. Olhou na direção
de uma cafeteria.
Eu segui o olhar dela e vi o Afrânio com uma mulher. Notei que
Diana mudou totalmente, ficou trêmula, nervosa.
— O que houve? — perguntei, preocupada.
— Nada, só vi uma pessoa desagradável. Vamos subir. — falou e me
puxou para sairmos dali.
Se desconversou é porque não queria comentar sobre, então a deixei
quieta. No tempo dela, me contaria, mas eu fiquei preocupada. Será que ela
tem alguma coisa a ver com o tal Afrânio? Lembrei do velho Augusto me
dizendo que a Ingrid estava envolvida na história que justificava o ataque a
ele e à Diana. Aquilo estava ficando muito confuso e parecendo cada vez
mais perigoso.
Chegamos ao estúdio e encontramos uma Taissa ansiosa.
Discutimos o que precisava, conversei com o dono do lugar e comecei meu
trabalho. Fiz o decalque e deixei algo mais exclusivo, pois eu gostava da
exclusividade da minha também.
Diana ficou olhando uns desenhos e ouvindo o tatuador dizer quais
ficariam perfeitos nela. O miserável nem disfarçou que ficou louco para
pintar sua pele.
— Aí você não toca, não, cara! — avisei, autoritária.
— Eita, que namorada ciumenta você tem, hein? — Ele brincou
com ela, que sorriu sem jeito.
Eu sorri também. Não tinha pensado sobre a nossa condição, mas
gostei de ser tratada como namorada dela.
Continuei o meu trabalho, mas fiquei de olho na Diana. A Senhora
Sorrisos!
Será que sou ciumenta e não sabia?
Terminei depois de uma hora e meia porque a lindinha não conhecia
a dor e ficou de choro. Era a primeira tatuagem dela, ficou encantada. Eu
também gostei do resultado. Além disso, recebi uma boa grana por aquele
trabalho. Passei a cogitar seriamente a possibilidade de me sustentar
daquela forma.
Saímos do shopping e passamos no laboratório. Diana pegou os
resultados dos exames e me entregou.
— Como você não me disse nome de ninguém, eu falei para colocar
como Canudo e Chiclete.
— Valeu! — agradeci e me senti nervosa. — Você vai comigo até a
pousada onde a Bruna está? Vou levar pra ela.
Acho que ela notou o quão aquilo era importante e não questionou
mais nada. Fomos à pousada.
— Quer que eu espere aqui? — quis saber, quando parou na frente
da entrada da pousada.
— Se quiser vir comigo, tudo bem... — respondi com indiferença e
saí do carro.
Eu queria que ela se sentisse segura, por isso chamei. Ela entrou
junto comigo. Bruna abriu a porta e se assustou ao me ver.
— Bárbara? Tudo bem? O que hou... — interrompeu-se ao ver
Diana e nos pediu para entrar.
Diana a cumprimentou meio tímida, e entreguei os envelopes a ela,
que tremia.
— Calma. Relaxa, você veio aqui pra isso e agora acabou, tá? — Eu
tentei acalmá-la.
Ela estava visivelmente nervosa. Apavorada. Sentou-se ofegando e
abriu o primeiro envelope. Consegui ver sua veia do pescoço pulsando.
Uma lágrima desceu pelo rosto dela quando me entregou o exame.
Ela não é filha do Canudo. Aquela notícia me causou uma espécie de
euforia e imediatamente já tracei um plano para pegar aquele filho da puta,
desgraçado.
Além de estuprador, vivia roubando dinheiro do povo. Nunca,
jamais, a porra de um vereador teria uma casa daquele tamanho se não fosse
de forma ilícita, sem ter nascido rico.
— Bárbara! — Ouvi a voz da Diana e saí do meu transe.
— Oi, desculpa. Me distraí.
Virei para o lado e Bruna chorava, ajoelhada no chão. Passei as
mãos no rosto e me agachei. Diana entregava um copo com água para ela.
Eu a fiz me olhar, segurando seu rosto.
— Acabou, Bruna! Agora você pode voltar pra sua mãe. Ele não
vale a pena e nem uma gota de lágrima sua.
Ela me abraçou e senti algo muito estranho naquele momento.
Nunca havia recebido um abraço tão carregado de emoção.
— Obrigada! Se não fosse por você eu não teria conseguido nada.
— Descansa! — pedi olhando em seus olhos.
Ela concordou com a cabeça e olhou para Diana, recebeu o copo da
mão dela e tomou o líquido rapidamente.
— Obrigada a você também, doutora. Eu... eu não tenho como
pagar, mas...
— Fica tranquila! Eu só cobrei um favor. Tô feliz por ter ajudado.
Se precisar de mais alguma coisa e eu puder fazer, pode falar, tá?
— Obrigada, mas agora eu só quero ficar sozinha. Digerir tudo isso
e voltar pra casa.
— Isso, cara. Fica calma. Procura a sua mãe. — falei.
Saímos de lá e Diana me abraçou de lado, eu estava com a cabeça a
mil e precisava agir muito rápido, mas precisava me manter calma e
tranquila, pois passaria a noite com a Diana.
Quando chegamos, ela se sentou no sofá e me puxou para seu colo.
— Isso mexeu mesmo com você, né?
— Sim. Eu não conheço o meu pai. Só ouvi a minha mãe xingá-lo a
minha vida inteira. Não que ele me faça falta, mas me coloquei no lugar da
Bruna. Tipo, ela foi rejeitada, cara!
— Às vezes a rejeição é melhor do que uma presença indesejada. —
falou, com certa melancolia.
Eu não queria mesmo entrar naquele assunto, por isso apenas a
beijei de forma carinhosa. Agradeci de novo e senti uma imensa vontade de
falar que a amava, mas não o fiz. Só voltei a beijá-la.
— Você é a melhor pessoa que eu conheço, sabia? — sussurrei,
fitando seus olhos.
Ela sorriu de um jeito meigo e acariciou meu rosto. Felicidade me
definia naquele instante. Estava tudo tão perfeito que eu sentia vontade de
gritar. Juntei minha testa com a dela e ficamos assim, como duas bobas,
sorrindo e sentindo o hálito quente uma da outra.
— Eu amo você, Bárbara!
Quê?
É, fiquei surpresa, com cara de idiota, muda, boquiaberta...
Desgrudei nossas testas e a olhei. Senti meus olhos embaçarem, e ela sorriu.
— Acho que nunca ouviu isso, né? — disse em tom de brincadeira e
me beijou de forma carinhosa, me apertando num abraço.
Eu perdi a fala total. Acho que nunca senti nada tão incrível na vida.
Mesmo sem uma retribuição minha, eu a vi feliz, e aquilo me deixou
radiante. Naquela noite preparei um jantar especial para nós. Ela abriu um
vinho, e relaxei um pouco daquela tensão que tomava conta de mim.
Tivemos outra noite perfeita.
Na manhã seguinte, ela saiu para trabalhar, e eu comecei os
preparativos para vingar a Bruna. Eu estava sedenta para dar àquele imundo
do André tudo o que ele merecia. E eu teria apenas aquele pouco tempo de
plantão da Diana.
25 – Conspiração

Diana

Largar a Bárbara na minha cama, linda e nua, do jeito que ela


estava, foi uma grande tortura para mim, mas eu precisava ir trabalhar.
Aquela sensação era rara, pois eu nunca recusava trabalho. Amava muito o
que fazia, era como um vício. Mas depois dos últimos dias, parecia que esse
vício estava sendo substituído por outro. Sim, eu estava viciada na
Bárbara... eu a amava.
Antes de sair, cobri aquelas costas nuas com beijos e me despedi
com pesar, sabendo que só a veria na manhã seguinte.
No caminho, eu lembrava do dia maravilhoso que tivemos, da
reação dela quando eu disse que a amava. Foi tão lindo! Ela não me
respondeu com palavras, mas vi em seus olhos a emoção que a minha
declaração causou. Ela me amava também, eu podia sentir.
Nem calculei nada, as palavras simplesmente saíram da minha boca.
Na verdade, parecia que eu estava dizendo mais para mim mesma do que
para ela, como se eu finalmente estivesse entendendo que a amava.
Ela estava me deixando tão segura que nem da Bruna eu conseguia
mais sentir ciúme. Ao invés disso, senti uma dó imensa quando vi seu
estado ao descobrir quem era o pai biológico. Eu não sabia a origem
daquela história, mas pela reação da coitada, o cara não deve ter sido o mais
bacana do mundo com a mãe dela.
Dessa dor eu entendia e pelo que notei, Bárbara também. Ver aquele
olhar magoado quando ela falou do pai e do padrasto me fez entender por
que quis ajudar a coitada da amiga.
Falando em pai escroto, mesmo com todas as minhas atenções
voltadas para a presença da Bárbara ao meu lado, não saiu da minha cabeça
a cena que vi naquele café, no shopping. Afrânio e Marina conversando
como bons amigos. Eu não tinha ideia do que os dois estavam tramando,
mas sabia que boa coisa não poderia ser.
Cheguei ao hospital e fui me preparar para o meu turno. Depois de
me trocar, segui direto para a emergência e, após ouvir algumas orientações
do Jales, comecei a trabalhar. Estava ansiosa para ver o Gabriel, queria
contar a ele o que tinha visto no shopping e saber se tinha alguma novidade
sobre o HD ou o celular, mas ele entrou em cirurgia de manhã cedo.
Jéssica era a interna que me acompanharia àquele dia, e eu já estava
preocupada, pois sabia que seria muito estranho. Até pensei em pedir ao
Jales para trocar, mas como não tinha uma desculpa plausível, achei melhor
ficar calada e aceitar. Jales era bem linha dura e não admitia que
misturássemos o pessoal com o profissional.
Segui para a ala de desembarque das ambulâncias para esperar um
paciente que estava a caminho. Olhei para todos os lados e não vi a Jéssica.
Achei estranho, pois ela sempre era muito pontual. Peguei o celular para lhe
enviar uma mensagem e depois que o fiz, não resisti. Abri a galeria e fiquei
vendo algumas fotos que havia tirado da Bárbara, contra a vontade dela,
enquanto cozinhava.
— Para, não gosto de foto. — dissera, envergonhada.
— Porque é boba... Se eu fosse linda assim espalharia fotos minhas
por toda a casa só pra ficar me admirando.
— Boba é você. Para! — sorriu e tirou o celular da minha mão.
Fiquei rindo feito boba mesmo, olhando para o celular e me
lembrando daquela cena.
— Eita, que lovão da porra, hein?
Ouvi a voz da Jéssica e olhei para ela assustada, guardando o celular
no bolso.
— Bom dia, Jéssica!
— Só se for pra você, porque o meu tá péssimo. — retrucou,
aborrecida.
— Ué, se você não estiver se sentindo bem, melhor procurar
atendimento ou ir pra casa, não acha? Eu peço ao Jales pra te liberar. —
falei, torcendo para que ela aceitasse aquela proposta, mas só consegui
deixá-la mais chateada do que já estava.
— Você tá sempre querendo se livrar de mim, né, Diana? Sempre
me descartando, como se eu fosse lixo. Mas quando quer me usar pra
alguma coisa, vem cheia de amorzinho e depois me escorraça. — bradou,
irritada, levantando o tom de voz e chamando a atenção de algumas pessoas
que estavam perto.
Se aquilo chegasse aos ouvidos do Jales, nós duas estaríamos
encrencadas, por isso, tentei apaziguar.
— Jéssica, eu sei que te devo um pedido de desculpas pelo que
aconteceu, mas podemos conversar no intervalo?
— Claro, Diana. Sempre o que for mais conveniente pra você. —
falou, irônica.
— Escuta, eu não tiro a sua razão. Fui uma completa imbecil com
você, mas não podemos misturar as coisas. Trabalhamos juntas e vamos
tratar um paciente que está entre a vida e a morte, não podemos pôr o nosso
profissionalismo em xeque, Jéssica. Além do mais, se essa discussão chegar
aos ouvidos do Jales, nós duas vamos nos ferrar, e você sabe disso. Então,
por favor, guarda essa tua raiva pra jogar em mim na hora do intervalo.
Ela me encarou, tinha mágoa no olhar. Achei até que fosse chorar,
mas acho que conseguiu controlar. Respirou fundo, tentando se acalmar, e
falou simplesmente:
— Tá.
Não sei se pretendia falar algo mais, mas mesmo que quisesse, não
poderia, pois a ambulância chegou naquele instante. Entramos em cirurgia,
ela estava séria, falava apenas o essencial. Eu sabia que estava muito
chateada comigo, mas fiquei feliz e aliviada por perceber que estava
concentrada no que fazia.
A Jéssica é uma menina ótima, gosto muito dela, mas nunca senti
atração. Ela é linda, um doce... só que nunca despertou nada aqui dentro. Eu
tenho dessas, não me apaixono por ninguém só pela aparência. Tem que ter
algo a mais, algo que me chame atenção, que me tire o fôlego. Por isso,
nunca retribuí àquele afeto que ela demonstrava.
Eu não me orgulho de ter usado o fato de saber que ela gostava de
mim para me aproveitar dela, mas não me martirizo por isso também. Eu
não sou santa e ando longe de ser perfeita. Além do mais, nunca prometi e
muito menos a forcei a nada, então não tenho culpa por ela ter fantasiado
algo comigo.
Após a cirurgia, eu a encontrei no vestiário. Algumas pessoas
entravam e saiam, mas se falássemos baixo, conseguiríamos conversar ali.
Eu a levei para um canto, perto dos reservados, e comecei a falar:
— Olha, Jéssica, eu não me orgulho do que fiz. Eu estava de cabeça
cheia, furiosa com umas coisas que estavam acontecendo e acabei te usando
pra tentar me sentir melhor. Me desculpa, cara. De coração, eu fui uma
cretina.
— Eu não entendo, Diana. — disse, com a voz e o olhar, tristes. —
A gente se conhece há mais de um ano. Eu sempre fui louca por você, e
você sempre soube disso. Será que eu sou assim tão desinteressante a ponto
de não conseguir chamar a sua atenção de jeito nenhum?
Nossa! Quem pergunta uma coisa dessas?
Eu fiquei constrangida por ela. Aquela era uma típica demonstração
de falta de amor-próprio.
— Jéssica, não é isso. Olha só... eu te acho linda demais, inteligente
pra caramba... eu gosto de você, mas paixão não é uma coisa que se possa
controlar.
— É, eu sei. Quem dera fosse... — falou, com tristeza e baixou a
cabeça.
— Cara, não fica assim! — pedi e me aproximei.
Pus meus dedos embaixo do queixo dela e levantei seu rosto para
que me olhasse. Ela chorava e ficou envergonhada por eu notar. Tirou a
minha mão e olhou de lado. Respirou fundo e falou, sem me encarar:
— Eu vi você com a sua namorada. Bárbara, não é?
— Onde você nos viu? — perguntei, curiosa.
— No shopping, ontem. Quase esbarrei em você e nem fui notada.
Todos os seus sentidos estavam voltados pra ela, exclusivamente. Ela te
falava alguma coisa e você a olhava com uma cara de boba, que... nossa!
Sei que é ridículo o que vou falar, mas senti muita inveja! Queria que você
me olhasse daquele jeito...
— Jéssica, eu lamento. Desculpa, realmente não te vi. Eu... eu não
sei o que dizer, cara... eu sinto muito, não queria que ficasse triste por
minha causa...
— Eu amo você, Diana! — disse de repente, me olhando nos olhos.
— Quê? — perguntei, surpresa.
Aquilo foi bem intenso e me assustou para caramba. Fiquei sem
ação, não sabia o que falar. Lembrei da Bárbara, ela também ficou sem ação
quando eu falei, mas foi diferente. A emoção era nítida. No meu caso,
naquele instante, o sentimento era de medo, desconforto... sei lá. Como ela
poderia me amar? Nunca tivemos nada. Aquilo era absurdo.
— Qual a grande surpresa? Nunca disfarcei que gosto de você.
— Sim, mas amor é uma palavra forte, Jéssica.
— Eu sei que é. E foi por isso que te falei. O que eu sinto por você é
muito forte, é amor. Eu não consegui sentir raiva de você quando te vi com
a Bárbara. Senti algo diferente, não sei explicar. Então é amor, um muito
forte, pelo jeito.
— Não é, não. Você pode me admirar, se espelhar em mim, afinal,
de certa forma, sou sua mentora aqui. Mas não pode me amar, você não me
conhece de verdade, não sabe quem eu sou...
— Bem, eu não vou ficar aqui discutindo com você. Eu sei o que eu
sinto, assim como sei que não posso te obrigar a sentir o mesmo por mim.
Eu só precisava falar porque eu estava com isso entalado há séculos. Mas
agora que já falei, acabou. Não se preocupa, não vou mais te encher com
isso. É hora de seguir em frente.
— Jéssica, eu lamen...
— Não lamente, por favor! — falou de súbito, me interrompendo.
— Tudo o que não preciso é da sua pena, Diana. — Fez uma pausa para
enxugar as lágrimas e voltou a falar: — Acho que você tem razão, eu não
estou me sentindo muito bem. Melhor ir pra casa.
Ela não me deu mais espaço para falar. Terminou a última frase já
perto da porta de saída. Eu a vi indo embora e fiquei ali, sem saber como
agir. Não imaginava o quão intenso era o sentimento dela por mim. Se eu
soubesse, jamais a teria usado da forma que usei. Lembrei de como me senti
quando achei que a Bárbara estava me usando e me senti muito mal.
Para completar, a porta de um dos reservados se abriu e Marina
apareceu com um sorriso sarcástico, ridículo, naquela cara de pau dela.
— Ah, o amor! — disse em tom irônico e suspirou falsamente,
segurando o peito. — Dianazinha abalando as estruturas da mulherada.
— Vai encher o saco de outro, Marina. — falei, irritada, e saí.
Que nojo da cara dessa imbecil!
Aquela bandida estava ouvindo a minha conversa com a Jéssica.
Senti tanto ódio quando a vi que por pouco não puxei briga. Eu ainda tinha
que descobrir qual a relação dela com o Afrânio, mas perguntar diretamente
estava fora de cogitação.
Mandei uma mensagem para o Gabriel, pedindo que me encontrasse
no estacionamento. Por sorte, ele estava livre e foi logo. Contei tudo a ele.
— Ainda bem que você não entrou na pilha dela, Di. Aquela lá não
dá mole. Se te provocou é por queria tirar proveito disso de alguma forma.
— Pois é, eu sei. Mas tô intrigada de verdade com esse lance dela
com o meu pai, Biel. Será que ela está me espionando pra ele?
— Quer saber? Eu não duvido, cara. Enfim, só sei que o melhor é
ficar ligada. Ela já não era de confiança antes. Agora então, nem se fala.
Aliás, quem também não é de confiança é essa Bárbara aí. Fica de olho,
hein!
— Ah, não, Biel. Já vai começar com essa implicância chata de
novo? — perguntei, irritada.
Eu sabia que era responsável pelo que o Gabriel pensava sobre a
Bárbara, mas ele já estava indo longe demais com aquilo.
— Não é implicância, cara. Eu descobri uma coisa...
— O quê? Que coisa?
— O HD. — falou, sussurrando.
— Mas... já? Como assim? Você já conseguiu acessar?
— Não tudo. Cada pasta daquelas tem várias subpastas dentro. E
todas estão criptografadas de formas diferentes. Vou levar um século para
conseguir acessar de uma por uma, mas duas já foram.
— E quando você pretendia me falar isso, Gabriel? — perguntei,
sussurrando também, mas em tom irritado.
— Ué, eu tô falando.
— Tá, então fala logo. O que você achou? E o que a Bárbara tem a
ver com isso?
— Cara, a primeira pasta que eu abri foi uma intitulada "Licitações
da Secretaria de Saúde". Só que dentro dela tem mais umas dez pastas. Eu
ia abrir por ordem, mas uma me chamou mais atenção que as outras, então
fui direto nela.
— Por quê?
— O nome "Ingrid Álvares" te diz algo?
— Ingrid Álvares?
Aquele nome não me era estranho, mas precisei de alguns segundos
para finalmente fazer a associação. Levei as mãos à boca quando me dei
conta de quem era.
— Sim, bebê, estamos falando da mulher da sua deusa. A suicida
maluca.
Fiquei transtornada com aquela informação, sem saber o que pensar.
— E como você sabe que é a mesma pessoa, Biel? Podem ser
homônimos...
— Não, é ela. Nem se iluda achando que estou errado, eu vi, tinha
fotos.
— Fotos? E o que mais? Anda, fala logo tudo...
— Cara, parece que ela tá envolvida até o pescoço com fraudes de
licitações. Ela foi presidente da comissão da secretaria de saúde quando teu
pai era secretário. Tem um dossiê completo sobre ela lá, com fotos,
documentos. Tem uns vídeos também, mas não consegui quebrar a
criptografia deles ainda. Vi também uns extratos bancários. Depois que ela
foi exonerada, alguém passou a depositar mensalmente uma alta quantia na
conta dela.
— Quem? Meu pai?
— Não sei, depósitos não identificados. Mas pela lógica, né?
— É. Cara, que merda! Mas... e onde a Bárbara entra nisso?
— Não sei, mas é mulher dela, né?
— Ex. — corrigi, irritada.
— Isso é o que você acha, Diana. — Suspirou.
— Biel, para de pôr caraminhola na minha cabeça. A tal da Ingrid é
louca, ela agredia a Bárbara. Acho que ela está tão alheia a esse
emaranhado de mentiras quanto eu.
— Diana, não deixe o que sente por essa garota te cegar. Raciocina
comigo, cara... não é muita coincidência ela se apaixonar logo por você.
Sua vizinha da frente, que ficava te observando pela janela. Aliás, isso é
outra coisa estranha. Você não acha esquisito ter conseguido alugar tão fácil
e por um preço tão baixo um apartamento excelente, quase ao lado do
hospital, numa cidade onde as pessoas se matam para morarem em uma
quitinete fedida? Bem na frente da casa da tal Ingrid?
Eu não consegui responder àquela pergunta de imediato. Fiquei
pensativa, ele tinha razão.
— Você acha que o Afrânio tramou tudo pra que eu fosse morar
perto da comparsa dele?
— Você não? Coincidências não existem, Diana.
— Que porra! — ralhei com ódio.
Eu já tremia da cabeça aos pés, meu coração estava acelerado.
— Se liga, Diana. Não confia em ninguém, cara, por favor. Quer
ficar com essa menina aí, fica. Não adianta dizer pra não ficar, mas toma
cuidado com ela.
— Tá... — respondi no automático, sem encará-lo.
— Eu tenho que voltar, entro em cirurgia de novo, daqui a pouco.
Vou tentar descobrir mais coisa e te falo. Se cuida! — pediu e me deu um
beijo no rosto, depois saiu.
O dia já estava acabando, e eu ainda teria mais uma noite inteira de
plantão pela frente, mas tudo o que eu queria era ir embora para tentar
entender o que estava acontecendo. Não podia acreditar que a Bárbara
tivesse algo a ver com aquela conspiração maluca, mas estava bem difícil
achar o contrário.
26 – Carvão

Bárbara

Depois de trinta e seis horas maravilhosas ao lado daquela mulher


extraordinária, saí do apartamento dela sentindo uma leveza fora do normal,
mesmo assim os meus planos para o André não haviam mudado.
Fui ao apê da Ingrid, troquei de roupa e subi para pegar algumas
coisas que eu iria precisar mais tarde. Embaixo da escada, em um caixa de
ferramentas, achei uma serra, lanterna e um maçarico portátil. Torci para
que estivesse cheio e vibrei ao ligar e ver a sua chama intensa. Coloquei
tudo dentro de sacos de lixo e fui à cozinha. Peguei panos de chão novos no
armário, onde peguei também um vidro de álcool. Deixei tudo separado
dentro do carro da louca e saí.
Entrei na casa da Eulália. Ela disse que Silvio havia deixado uma
cesta com legumes e me ofereceu.
— Onde ele está? Já foi embora?
— Foi para o mercado, ele fornece produto orgânico pra lá. Gosta de
entregar pessoalmente.
— Ah! Eu tô a fim de ir pra fazenda dele, dar um tempo por lá.
— E vai fazer o que lá, menina?
— Quero aprender a fazer queijo, Eulália. A Nilza arrasa demais nos
queijos. Nossa! — suspirei e fui à geladeira, peguei água, tomei e entreguei
um copo a ela.
Ela bebia com vontade enquanto ligava para o Silvio. A ressaca
estava estampada em sua cara.
— Ele já foi, disse pra você chamar um táxi ou ir no carro da Ingrid.
— Tu não quer vir comigo? Sair um pouco dessa poltrona? —
perguntei, torcendo para que ela recusasse meu convite.
— Depois eu vou com você. Agora preciso dormir um pouco.
— Tá bom, vai lá. Eu tô indo então. — falei, sorrindo e saí.
Peguei o carro, verifiquei tudo e saí devagar. Comprei algumas
coisas que precisaria, como Coca-Cola, fita adesiva, abraçadeiras, massa de
modelar e luvas de açougueiro; guardei no porta-malas e fui à fazenda.
Como da última vez, fui muito bem recebida e os tratei com carinho. Eram
ótimas pessoas.
Fui com Nilza à casa dela, e ela me mostrou o quarto que Ingrid
usava para guardar coisas. Não demonstrei interesse, mas queria mesmo era
botar fogo em tudo que tinha lá dentro.
Fiquei por lá até meio dia, pois à tarde o plano era seguir o chiclete
e descobrir sua agenda.
Quando estava indo embora, resolvi arriscar e deixar o material que
eu usaria escondido em uns arbustos, perto da fábrica de carvão. Havia um
contêiner de restos de madeira ali perto. O local era bem deserto, e as casas
dos funcionários eram longe de lá. Coloquei três duriões em sacos de lixo e
deixei junto com a madeira pouco queimada. Vi uns homens carregando
pacotes de carvão em um pequeno trator e me escondi rapidamente para não
ser vista por eles. Depois fui embora.
Cheguei à pousada e vi uma Bruna ansiosa.
— Ah, graças a Deus que você apareceu. Eu notei que a doutora não
podia saber de nada.
— Esperta! Sabia que notaria. Mas não temos tempo pra conversa
fiada. A parada é a seguinte...
Comecei a contar a minha ideia para atrair o André e colocá-lo cara
a cara com ela. Mas escondi os meus planos para depois. Na cabeça dela,
tudo se resumiria a um susto e era melhor mesmo que pensasse assim. De
todo modo, enquanto eu falava, via em seus olhos satisfação e idolatria.
Saí de lá e fui para a segunda parte do plano. Na lan house, abri o e-
mail falso da Elizabeth, a personagem que eu inventei para me aproximar
do André, e vi que ele havia enviado a entrevista, enfatizando que queria
ver a matéria pronta.
O que o ego inflado não faz com uma pessoa, não é mesmo?
Copiei um texto em que uma idiota bajulava um candidato de outro
estado, montei a “matéria” dele e, após excluir a conta da Elisabeth, fui
procurar a Paulina com a desculpa de que precisaria encontrá-lo para
mostrar como havia ficado o material.
— Meu Deus, ele vai adorar! — disse, empolgada quando leu.
— Onde posso encontrá-lo hoje? Preciso tirar umas fotos. Coisa
rápida. Não vou atrapalhar. Pensei em pegar no Instagram, mas não são de
boa qualidade. — Joguei com o coração acelerado. Aquele plano não podia
dar nada errado ou não teria outra oportunidade de acabar com aquilo.
— Deixe-me ver como está a agenda dele. — disse e pegou o
caderno preto com o brasão de Vila dos Lírios na capa.
Vi os locais que ele estava naquele momento e onde estaria o resto
do dia.
— Ele vai poder tirar fotos hoje à noite, vai ter um coquetel de
lançamento da candidatura dele pelo partido.
— Isso é fechado?
— Sim, mas eu vou deixar tudo certo pra você entrar e tirar as fotos
antes de todo mundo chegar. Posso até ajudar, se você precisar. André é
muito fotogênico, então todas ficarão lindas.
E ela seguia se derretendo por ele. Agradeci e saí. Tirei os óculos da
Eulália, que eu usava, e voltei à pousada. Deixei Bruna sabendo de tudo o
que eu faria até a hora em que ela falaria com ele no tal coquetel. Ela estava
eufórica demais.
Saí de lá logo, pois precisava vigiar as últimas horas do nosso futuro
prefeito.
Ele passou em dois lugares antes do coquetel. Sempre rodeado de
gente, uma cambada babando o ovo dele, esperando para mamar em
alguma teta superfaturada. Quando foi para casa, eu fui me preparar para
o show.
Peguei uma mochila da Ingrid e coloquei dentro a arma dela, a
massa de modelar, as abraçadeiras, as luvas, a lanterna e uma muda de
roupa.
Eulália me chamou para jantar e desci.
— Eu vou fazer um freela hoje, Eulália. Em um bufê. Tô precisando
de grana...
— Não precisa, minha filha, eu posso... — sugeriu e a interrompi.
— Valeu, Eulália, mas eu gosto de ganhar meu próprio dinheiro. E
depois, ainda moro aqui, né? Preciso me virar.
— Vai fazer o quê?
— Servir mesa. — avisei, me levantando e colocando o prato na pia.
Saí de lá e deixei a mulher na frente da televisão, assistindo série.
Peguei meu casaco inseparável, verifiquei a pistola da Ingrid, estava
carregada. Peguei uma garrafa de refrigerante vazia e coloquei dentro da
bolsa, para o caso de eu precisar usar a arma. A garrafa pet se torna um
ótimo silenciador.
Fui para o local combinado com a Paulina e estacionei o carro da
Ingrid nos fundos. Cobri as placas com sacos de lixo e segui para a entrada,
onde vi Bruna encostada na parede, do lado de fora, do jeito que pedi que
ficasse. Me apresentei como Elizabeth à hostess e pedi para que chamasse o
André.
Quando ela entrou, acenei discretamente para Bruna, que foi se
aproximando devagar.
Vi André chegando com a puxa-saco da Paulina praticamente
grudada nele.
Estou começando a ter nojo dessa mulher. Que porra! Ela não
desgruda. Desgraçada!
Eu estava longe da porta, de propósito. Ele acenou para que eu
entrasse e fingi derrubar a bolsa, para que ele se aproximasse para me
ajudar. O nojento não fazia o tipo que ajudava ninguém com nada, mas
agachei de um jeito que fez meu decote abrir e mostrar meu sutiã,
imaginando que isso chamaria a sua atenção. Funcionou, ele correu para me
ajudar.
— Deixa comigo, linda!
Aff! Que horror!
— Obrigada! Você é muito gentil. — falei com um sorriso falso de
agradecimento enquanto ele me entregava a mochila.
O plano não incluía o encosto da Paulina, mas Bruna não raciocinou
e apareceu atrás de mim logo em seguida.
— Você? Mas... como? — Ele falou espantado ao olhar para Bruna,
que correu em direção ao beco que dava para os fundos do restaurante.
Bruna havia me falado que era muito parecida com sua mãe, tanto
que a tal Paula a confundiu, e André, com certeza, havia notado a
semelhança também, pois mal a viu e já ficou visivelmente alterado. Ele
correu atrás dela e foi seguido por Paulina.
Eu precisava agir rapidamente. Bruna correu pelo caminho mais
longo, como eu havia indicado. Eu peguei um atalho, correndo pelo outro
lado. Parei atrás de um carro e coloquei a roupa por cima da outra. Uma
blusa preta de gola rolê e mangas compridas, calça também preta e o casaco
com capuz. Pus as luvas e peguei a pistola.
Havia alguns carros estacionados por ali. Eu fiquei atrás de um deles
e vi quando Bruna passou e logo em seguida o homem.
Fiquei observando e comecei a me aproximar quando ele finalmente
a alcançou. Puxei a gola da blusa para cobrir parte do meu rosto e coloquei
o capuz na cabeça.
— Espera! — Ele falou quando a puxou pelo braço.
— André, o que está havendo? — A maldita Paulina perguntou.
— Sai daqui, Paulina. Isso é pessoal.
Ela se calou, mas não saiu de lá. Foi a vez de Bruna falar:
— Me larga, seu desgraçado. — Bruna exigiu. Estava ofegante e em
lágrimas.
— Ei, nervosinha, calma! Eu sei quem é você. Jamais esqueceria
esse rostinho lindo. Você é a cara da sua mãe, sabia? Chega a ser assustador.
Por um instante achei que fosse ela...
— Não fala da minha mãe, seu escroto, miserável. — disse por entre
os dentes.
— Então eu acertei. Mas o que você quer comigo? O que faz aqui?
A Vanessa te mandou?
— Eu quero que você morra! — disse, tremendo de ódio. — Você a
estuprou, seu desgraçado. Acabou com a vida dela, e eu vim aqui pra
garantir que pague por isso.
E como eu previ, Bruna deixou a emoção falar mais alto. Vi o infeliz
puxá-la para mais perto, e ela tentando se soltar. Eu me aproximei por trás
de um carro e esperei.
— E como pretende fazer isso, sua pirralha? Vai tentar acabar com a
minha candidatura? Se for isso, você é uma idiota, igual a sua mãe. — falou
com escárnio e aproximou a boca do ouvido dela, que gemeu, acho que de
nojo. — Tão idiota e tão gostosa quanto ela.
Ah, mas vai ser muito bom fazer esse imundo pagar. Vou fazer isso
bem devagar.
Bruna o empurrou em vão e não conseguiu se soltar. Sem saber mais
o que fazer, cuspiu na cara dele, que tirou um lenço do bolso e limpou o
rosto enquanto sorria com sarcasmo.
Paulina assistia a tudo paralisada, boquiaberta. Ela não poderia me
ver, mas eu não arriscaria mais um segundo a vida da Bruna, então, antes
que ele pensasse em fazer algo, eu coloquei a arma em sua cabeça.
— Larga ela e fica quietinho, senão estouro os teus miolos aqui
mesmo! — disse e o fiz ouvir o destravamento da pistola. — Vaza, Bruna.
Agora é comigo.
Ela tinha a respiração descompassada e o olhar assustado. Não me
questionou. Saiu pelos fundos e logo não a vi mais.
— Anda, por ali, vai... — falei indicando a direção do carro da
Ingrid. — Você também, rápido. — falei me dirigindo à Paulina, que apenas
me obedeceu.
Fiz André entrar no banco do motorista e lhe entreguei a chave.
Paulina se sentou no banco do carona, e eu no banco de trás, bem atrás dele.
Assim poderia ter o controle sobre os dois. Fiz Paulina desligar os celulares
dele e o dela. O filho da mãe ainda me ofereceu dinheiro, resistindo, mas fui
bem convincente apertando a arma em sua nuca, e ele começou a dirigir na
direção em que eu indicava.
— Vamos dar uma volta! — avisei.
Paulina se apavorou, dando gritos, e tentou abrir a porta.
— Fica quieta, Paulina! — Ele pediu, e pude ver que ela ofegava em
pânico.
Quando ele pegou a estrada, puxei um saco de lixo de dentro
mochila.
— Entra à direita!
Ele pegou a via de acesso à fazenda Dornelles e parou na frente do
portão.
— Pega a esquerda. — mandei, e ele apenas obedeceu.
Havia um acesso longe dali que dava perto da fábrica de carvão.
Consegui ver luzes ao longe.
Ele começou a gritar quando coloquei o saco na cabeça da Paulina,
ela se debateu enquanto eu a asfixiava. No desespero, ela morreu mais
rápido.
— Silêncio! — ordenei ao vê-lo apavorado.
Saímos do carro. Ele tinha mesmo medo de morrer, pois estava
tremendo. Peguei as abraçadeiras já preparadas e apenas puxei para prender
as mãos deles atrás do corpo. Liguei a lanterna e iluminei o caminho.
— Quanto você quer? — indagou com a voz entrecortada. — Eu
tenho dinheiro, pago quanto for preciso.
— Eu sei que você tem dinheiro. — disse e o fiz andar por uns cinco
minutos.
— Quem mandou você?
— Conhece a Vanessa? A mulher que você estuprou há quase 20
anos? Pois é, não foi ela, não. Conhece a Bruna, a tua filha? Também não
foi ela... — debochei e o empurrei, colocando o pé e fazendo com que
caísse no chão, perto de uma árvore onde ele se encostou.
Com uma mão só, desci a calça e a cueca dele.
— O que vai fazer?
— Você faz perguntas demais.
— Socorro! — gritou em lágrimas.
Pisei em seus testículos, e quando ele abriu a boca para gritar, pus a
massa de modelar dentro e depois tapei com fita adesiva.
— Pronto, cala a boquinha.
Amarrei as pernas dele também e peguei um dos sacos que havia
deixado ali perto. Tirei o maçarico de dentro. O futuro prefeito emitiu um
gemido desesperado e abafado ao ver a chama.
— Vamos dar um fim nisso, né? Nunca mais na sua vida você vai
estuprar ninguém. — avisei e vi o medo em seus olhos.
O rosto apavorado transpirava, e o suor se misturava com as
lágrimas desesperadas. Aquele medo se intensificou quando aproximei a
chama de sua genitália flácida e minúscula. Ele passou a se debater e tentar
gritar, em desespero. Eu adoraria ouvir seus gritos de dor, mas naquele
lugar poderia chamar a atenção de alguém. Embora eu achasse quase
impossível, resolvi não arriscar.
O cheiro daquela porcaria queimando era nojento. Mas os gemidos
eram a melhor coisa. Nunca mais estupraria ninguém. Nem roubaria
ninguém.
Ele desmaiou de dor. Desliguei a lanterna e esperei que acordasse.
Demorou um pouco, mas foi bom, pois a movimentação na fábrica
diminuiu.
Ouvi seus soluços, uns minutos depois, ele se mexeu.
— Bom dia, bela adormecida! — desejei, sorrindo e ligando o facho
de luz na cara dele.
Peguei um pano de chão e limpei seu rosto. Ele ofegava demais e
começou a expelir um nojento muco pelo nariz. Se eu não limpasse,
vomitaria em cima dele, e isso seria muita crueldade da minha parte.
Ele se debateu cheio de ódio e acertou a minha perna com o pé,
mesmo amarrado. Peguei uma serra dentro do saco de ferramentas.
— Que coisa feia, prefeito! Batendo em mulher. Só pelo desaforo,
esse pezinho vai ser o primeiro a rodar. — avisei e comecei a serrar o
membro.
Pus um saco de lixo em baixo, para fazer menos lambança com o
sangue. Peguei na articulação, assim não teria dificuldade para separá-lo da
perna.
— Tu gosta desse sapato? — perguntei ouvindo-o gritar sem ser
ouvido por ninguém, além de mim. — Vou te deixar com ele, tá?
Infelizmente, quando cheguei aos joelhos ele desmaiou de novo e
não acordou mais. Mas acho que foi porque perdeu muito sangue. Ou
porque é um frouxo.
Depois que fiz o que precisava para facilitar a desova, resolvi
esperar um pouco, pois ainda vi luzes acessas perto da casa.
Quando as luzes se apagaram, o pessoal começou a se recolher. Fui
até o carro pegar o corpo de Paulina. Por sorte, ela era pequena e magra,
então pude arrastá-la sem dificuldades. Forrei outro espaço com sacos de
lixo e fatiei o corpo dela também. Peguei os duriões e espalhei por ali, o
cheiro era terrível e disfarçaria qualquer cheiro diferente. Para facilitar a
combustão, joguei álcool nos pedaços de corpos, antes de embalá-lo nos
sacos e jogá-los dentro de um forno de carvão. Tirei minhas roupas sujas de
sangue e joguei no forno também.
Deixei tudo aberto e voltei ao local onde o havia torturado. Peguei
várias garrafas de Coca-Cola e joguei por lá, depois pus terra por cima.
Aquilo acabaria com qualquer vestígio de sangue. Pus tudo o que usei em
sacos de lixo. Fiz o caminho de volta e fui direto para a casa da Ingrid.
Limpei tudo cuidadosamente. No carro, usei fita adesiva para tirar
fios de cabelo do banco, limpei atenciosamente a arma, maçarico, serra... e
devolvi cada coisa para o seu devido lugar. Depois tomei um banho quente
e deitei. Estava quase amanhecendo. Eu estava bem morta de cansaço.
Acordei na cama da Diana com ela se deitando ao meu lado. Senti
seus lábios nos meus, a beijei e apaguei de novo.
27 – Dilema

Diana

As palavras do Gabriel não saíam da minha cabeça. Imaginar a


minha Bárbara envolvida naquela sujeirada toda me deixava enojada. Saber
que a tal da Ingrid estava envolvida já era motivo suficiente para embrulhar
meu estômago. Será que a independência que eu acreditei ter adquirido
quando saí de casa não passou de uma ilusão? Seria realmente possível que
o Afrânio estivesse manipulando tudo ao meu redor para me manter sob as
vistas dele? Se Gabriel tivesse insinuado aquilo meses atrás, eu teria rido da
cara dele, mas diante de todos os últimos acontecimentos ficava difícil
pensar o contrário.
Mas a Bárbara? Não, é impossível. Aquela mulher horrenda a
maltratava, batia nela.
Eu tentava com todas as forças me convencer de que minha Bárbara
não tinha nada a ver com aquilo, mas a verdade era que havia uma pulga
gigante atrás da minha orelha. E embora eu acreditasse que ela realmente
tinha aversão à Ingrid, alguns detalhes me faziam desconfiar de suas
atitudes, como o dia em que mencionou que eu havia sido atacada.
O barulho contínuo, denunciando uma parada cardíaca da minha
paciente, que estava aberta sobre a mesa de cirurgia, passando por uma
colectomia parcial, me tirou do meu devaneio.
— Prepara as pás! — gritei e recebi o equipamento.
Precisei de duas tentativas para trazer aquela mulher de volta. Ela
foi baleada no abdome e deu entrada em estado de choque hipovolêmico.
Depois de estabilizá-la, comecei a remover os projeteis. Um deles atingiu o
baço, e o outro o intestino delgado.
Como desconfiar daqueles olhos inocentes da Bárbara?
Sim, minha paciente estava entre a vida e a morte, e eu só conseguia
pensar na Bárbara.
Felizmente consegui estabilizar a mulher. Terminei aquela cirurgia e
saí da sala deixando recomendações aos internos presentes. Cheguei ao
vestiário e deitei em um banco de madeira que havia no centro do local.
Fechei os olhos e tentei arrumar os pensamentos.
Não, eu não posso acreditar que ela esteja envolvida nos negócios
do meu pai, não posso!
— Você está bem, Diana?
Abri os olhos e vi Jéssica me observando. Senti que havia
derramado uma lágrima e a sequei enquanto me levantava.
— Sim... — respondi e evitei encará-la.
Eu daria tudo para ir para casa e falar com a Bárbara. Aquilo estava
me enlouquecendo. Eu esperaria qualquer coisa, de qualquer pessoa, dela,
não. Eu a amava e acreditava que ela me amava também.
Ela não falou, mas eu pude sentir.
Peguei meu celular e vi que passava das sete da noite. Procurei o
Gabriel para comermos algo, mas ele estava em cirurgia ainda, então comi
sozinha, lamentando o fato de a Bárbara não ter um celular. Queria ouvir
pelo menos a voz dela. Se eu descobrisse que ela era mesmo comparsa do
meu pai, não sei o que seria capaz de fazer. Seria o fim de qualquer
esperança, ela me destruiria.
Eu estava esgotada e ainda tinha que ficar ali até às 7h da manhã,
precisava descansar pelo menos por meia hora. Sabia que não seria fácil
pegar no sono, mesmo assim deitei na cama debaixo de um beliche, na sala
de descanso dos médicos, e fechei os olhos. Mais uma vez a imagem dela
era tudo o que eu via. Seu sorriso, seus olhos expressivos, aquele rostinho
cheio de sardas, seus beijos.
Aqueles beijos não podem ser falsos, não pode ser uma coisa
superficial só para ficar perto de mim a mando do Afrânio. Inferno! Eu vou
ficar louca!
E enquanto eu tentava lidar com aquela desordem de pensamentos,
acabei pegando no sono. Acordei exatamente meia hora depois, meu corpo
parece ter um despertador natural. Voltei ao trabalho, a noite foi tranquila.
Falei com Gabriel de novo enquanto cuidava de um paciente ao lado do
dele.
— Falou com a Bárbara?
— Ainda não. Quando chegar em casa eu falo.
— Você é muito sangue frio, Di! — disse, suturando um ferimento
na perna de um garoto.
— Se eu saísse daqui, Biel, não voltaria mais. Eu quero conversar
com ela com calma.
— Não se falaram o dia todo? Que namoro é esse?
— Gabriel, ela não tem celular, tá bom? — retruquei, sem paciência.
— Não tem namoro nenhum. E quero te pedir pra parar de encher a minha
cabeça com essas coisas, porque eu já estou bem nervosa com as suas
suspeitas.
— Não é suspeita, Diana! É real. Tem tudo sobre a Ingrid lá. Se
quiser ver, eu mostro. Não estou acusando a garota de nada oficialmente,
mas que é muito estranho, isso é. Olha, cara, na boa... eu não vou com a
cara da Bárbara, mas quero te ver feliz. Então só quero que você tenha
certeza de quem ela é antes de se envolver mais do que já está envolvida.
Naquele instante, eu vi verdade nos olhos dele. Não se tratava de
implicância, era preocupação mesmo. Respirei fundo e engoli saliva. Passei
a mão na testa e depois cocei a cabeça em uma atitude exasperada. Eu
estava perdida, não sabia mais no que pensar.
— Eu sei, Biel. Desculpa! Mas a Bárbara pode não saber das coisas
da Ingrid, né?
— Tá, você quer acreditar nisso, acredita. Depois, quando se
decepcionar, eu consolo você. — disse, em tom irônico e depois voltou a
dar atenção para o garoto que estava atendendo.
Não insisti mais naquela conversa. Ele jamais diria qualquer coisa
em favor da Bárbara, e eu estava preferindo dar a ela o benefício da dúvida.
Minha esperança ainda não havia morrido, então achei melhor deixá-lo
trabalhando e ir fazer o mesmo em outro lugar, com outro paciente.
Saí do hospital sete da manhã, em ponto, e corri para casa. Entrei
devagar, nem tinha certeza se ela estava lá, mas se estivesse, não queria
acordá-la. Luís Otávio me olhou do sofá e permaneceu lá. Coloquei a bolsa
sobre a mesa e entrei no quarto. Ela dormia profundamente embaixo
daquele lençol, que a cobria apenas até a cintura, deixando parte de suas
costas nuas à mostra.
Vou sofrer muito se você estiver nisso com aquela infeliz.
A porta da varanda estava fechada. Afastei a cortina e observei o
apartamento da Ingrid, bem em frente ao meu. Mais uma loucura surgiu na
minha cabeça.
Por que a Bárbara sempre fecha a porta da varanda?
Saí dali e resolvi tentar esfriar a cabeça no banho. Quando terminei,
deitei ao lado dela, que abriu os olhos e sorriu ao me ver. Beijei seus lábios
suavemente, pois ela parecia bem cansada. Ela correspondeu e voltou a
dormir.
Fiquei com a mão apoiando minha cabeça e cotovelo no colchão
enquanto ouvia o suspiro do sono dela. Beijei suas costas e me preparei
para dormir também, mas ela se virou.
— Bom dia! — desejou sorrindo e me beijando na boca.
— Bom dia, meu amor! — falei de olhos fechados, pois os lábios
dela estavam no meu pescoço.
O que fazer numa situação dessas? — indaguei a mim mesma, e
soltei um suspiro pesado quando senti os dentes dela arranhando meu
ombro e colo.
A gente se entrega! — Aquela foi a minha resposta. Sim, eu sei que
foi insensata, mas eu estava tomada de desejo por aquela mulher, que sabia
exatamente o que fazer para me tirar de todos os problemas.
Procurei sua boca e a recebi para um beijo, deitando-a sobre mim e
sentindo aquele corpo quente no meu. A sensação me fez estremecer. Ela
estava seminua, usava apenas uma calcinha, que eu fiz questão de tirar
assim que as minhas mãos chegaram às suas nádegas. Desci a peça
enquanto explorava aquela boca perfeita.
Como sempre, a minha vontade era de senti-la tão em mim a ponto
de fundir nossos corpos, por isso, involuntariamente, apertei suas costas
para evitar que se afastasse.
Ela se movia em mim de um jeito tão provocante que me fazia
suspirar. Eu ofegava e gemia naquela boca, e ela parecia mais empolgada na
medida em que a minha respiração ficava mais descompassada. Senti a
maciez de seus seios nos meus e a umidade dela encontrando a minha.
Quase gozei quando a mão dela apertou a minha coxa com força, fazendo
aumentar o atrito entre nossos sexos. Ela gemeu na minha boca, e precisei
me controlar para não explodir.
Eu estava completamente alucinada de tanto tesão. Ela mordeu meu
lábio e subiu a mão da minha coxa até meu sexo. Arrancou um grito
abafado de mim quando o massageou com maestria. Ela gemeu satisfeita,
desceu a boca para o meu seio e o sugou enquanto me penetrava devagar.
Quase pirei com aquilo.
Ela é tão perfeita que parece até boa demais pra ser verdade. Mas,
quer saber? Que se foda!
A boca desceu e passou a explorar meu abdome com beijos e
mordidas.
Perdi o ar totalmente quando senti a língua quente dela no meu sexo.
Involuntariamente, agarrei seus cabelos e passei a mover o meu quadril.
Não demorou muito para que meu corpo explodisse de prazer. O que a
Bárbara me fazia sentir era descomunal. Parecia ter meu manual de
instruções, pois sabia exatamente o que fazer.
Eu ainda sentia o meu corpo espasmando quando ela subiu beijando
a minha barriga e me olhou sorrindo. O olhar dela era tão inocente que
chegava a ser demoníaco. Aqueles lábios vermelhos formando o arco
perfeito de seu sorriso me deixavam completamente desarmada.
Eu a beijei apertando-a em mim, com força. Ela me beijou no rosto
e me abraçou. Senti sua respiração ofegante no meu ouvido e correspondi
àquele abraço. O coração dela estava acelerado.
— Não quero ficar sem você! — falei, em um sussurro quase
inaudível, sentindo meus olhos arderem. Ela levantou a cabeça e me
encarou.
— Eu te amo, Diana! — declarou e me beijou.
Meu coração quis sair do peito, acelerado. E nada mais importava.
Correspondi àquele beijo mais apaixonada ainda.
Depois, dormimos enroscadas. Uma ouvindo a respiração da outra.

Já passava de meio dia, eu já havia acordado há muito tempo.


Bárbara ainda dormia profundamente, e eu a observava sem mover um
músculo. Não queria acordá-la. Eu poderia admirá-la para sempre daquele
jeito. Ela era uma verdadeira obra de arte. E melhor ainda, ela me amava.
Minha vontade era de gritar aquilo para todo mundo.
A campainha tocou, e ela se mexeu.
— Tá esperando alguém? — resmungou, sem abrir os olhos.
— Não.
E não estava mesmo. Achei estranho, pois nunca recebia visitas sem
aviso prévio. Pensei em quem poderia ser e só consegui pensar no Gabriel.
Levantei-me devagar e vesti um roupão. Bárbara abriu os olhos e me olhou,
confusa.
— Dorme, eu já volto. Deve ser o Gabriel ou o senhorio, sei lá.
Ela apenas meneou a cabeça positivamente e voltou a dormir. Beijei
seu rosto e saí do quarto.
Que ódio!
Fui atender a porta. Luís se roçou nas minhas pernas, mas o ignorei
quando vi quem estava ali.
— Afrânio? O que faz aqui? — falei, ficando na frente da porta
tentando me livrar dele, mas o infeliz entrou.
Ele me causava medo e repulsa. Eu estava tão assustada com aquela
chegada intempestiva, que comecei a tremer por dentro, mas precisava me
manter impassível, não podia demonstrar fraqueza para ele.
— Preciso falar com você e não posso esperar mais. — disse
olhando em volta, como se procurasse algo.
Ou seria alguém? — pensei me lembrando de tudo o que Gabriel
havia me dito.
— Está com alguém?
— Isso não é da sua conta. Fala logo de uma vez que preciso dormir,
trabalhei a noite inteira. — falei, aborrecida mantendo a minha pose de
forte.
— Não vai me oferecer um café?
— Eu não tenho café, Afrânio. Anda, desembucha.
Ele se sentou sorrindo e apontou o sofá à sua frente para que eu
também me sentasse.
— Por favor.
Eu me sentei para ver se ele falava e iria embora logo.
— Fala.
— Eu vim fazer uma proposta pra você, filha.
— Ok, não se dê ao trabalho. A minha resposta é não. — disse e me
levantei, me dirigindo à porta para mandá-lo embora.
— Senta e me ouve, Diana! — retrucou, rispidamente como se
tivesse alguma moral para falar comigo naquele tom.
— Que tom é esse, Afrânio? Enlouqueceu? Não sou mais aquela
menininha assustada de vinte anos atrás, não. Você está na minha casa, e
quero que vá embora agora. — mandei, exasperada sentindo o meu rosto
arder.
— Diana, você não quer brigar comigo, filha. Por favor, me ouça.
Vai ser melhor pra você.
Resolvi ouvir o que ele tinha para dizer e me sentei novamente
encarando-o para que falasse.
— Bom, como você sabe eu vou concorrer ao senado pelo estado de
São Paulo — começou prolixamente irritante usando a voz mansa, que eu
tanto odiava. — Então diante da possibilidade grande que tenho de ganhar o
cargo preciso bajular alguns aliados. Sabe como é, né?
— Você pode ir direto ao ponto? Não estou com paciência para suas
dissertações.
O desgraçado sorriu, e meu estômago embrulhou.
— O meu maior aliado é o doutor Álamo Martini... — continuou —
A família Martini é renomada no Rio de Janeiro, composta por advogados,
médicos e políticos.
E ele continua dissertando.
— Todos evangélicos, de família tradicional cristã.
Passei as mãos no rosto e fui ignorada por ele, que continuou com
aquela conversa infinita.
— E nacionalmente poderosa. Eu preciso dela, preciso muito desse
apoio, e do seu apoio. Você vai ser fundamental.
— Eu? Não sei onde eu posso entrar nisso. Eu não tenho o menor
interesse por política, na verdade, nem entendo quase nada...
— Quero que você se case com o neto do doutor Álamo!
— O quê?
Mas era só o que me faltava.
28 – Chantagem

Bárbara

Meu coração acelerou quando ouvi a Diana falar aquele nome ao


atender a porta.
O que esse desgraçado está fazendo aqui? Será que é o mesmo
Afrânio?
Fiquei em estado de alerta, sentindo o coração batendo no ouvido
enquanto ouvia aquela conversa, era a voz nojenta dele. Nunca na minha
vida tinha visto um cara tão asqueroso como aquele.
Gelei quando o ouvi chamá-la de filha. Diana estava apreensiva, eu
conseguia sentir pelo seu tom de voz. Ela ficava um pouco ofegante quando
tentava manter a serenidade em situações de risco.
Senti vontade de sair do quarto e botar aquele miserável para fora
dali, mas precisava entender o que estava acontecendo. Se aquele
desgraçado fosse o pai dela, o tio precisava saber que ele estava ali.
— Quero que você se case com o neto do doutor Álamo! — Ouvi
aquele miserável falar como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— Você só pode estar de sacanagem, né? — Diana disse num tom
agudo, um tanto sarcástico, e pude ouvir seus passos pela sala.
— Não estou de sacanagem, Diana! — disse com firmeza. — É
muito sério. Você vai se casar com ele e vai morar no Rio de Janeiro. Pode
até levar seu lanchinho da madrugada, mas ela não poderá aparecer.
— Você ficou louco! — Quase gritou. — Por que acha que eu faria
isso, seu escroto, nojento? E para o seu governo, a Bárbara não é
meu lanchinho, não. Mais respeito. Vai embora daqui... — Ouvi a porta se
abrindo.
Ele sabe que estou aqui e sabe que Diana e eu estamos juntas. É
lógico! — pensei e passei as mãos no rosto, sentindo-o suado.
— Escuta aqui, sua pirralha mimada. Eu te deixei livre demais,
talvez esse tenha sido o meu erro. Deixei você achar que era dona da
própria vida, mas tá na hora de você entender que as coisas não são assim.
Eu estou falando muito sério, Diana. Você vai se casar com o neto do
Álamo, por bem ou por mal.
— Ah, é? E como vai me obrigar a fazer isso?
— A questão é: você vai querer pagar pra ver?
— Não, você não faria nada contra mim...
— Não mesmo. Contra você, não...
— O que está insinuando? Está ameaçando a Bárbara? Uma pessoa
que não tem nada a ver com tuas sujeiras?
Ele riu com escárnio da pergunta dela.
— Ah, ela tem a ver, sim. Está envolvida com você, logo tem tudo a
ver. Olha, filhinha. Eu estou sendo bem generoso. O guri com quem vou te
casar está tão interessado em você quanto você está nele, então não vai se
importar que mantenha sua putinha lá em um quarto de hóspedes, ou de
empregada, como queira. Desde que seja discreta. Então você pode ver que
não estou te pedindo nada demais. Ao contrário, estou te dando uma vida
boa, cheia de facilidades e luxo. Em troca, você só precisa ajudar a escrever
o nome do seu velho pai na história política desse país.
— Você é doente. É um psicopata, miserável, desgraçado...
— Não tenho tempo para elogios agora. E então, o que vai ser?
— O quê? Acha mesmo que vou aceitar isso?
— Diana, acho que não fui claro. Eu não estou te dando muitas
opções. Você vai. Com ou sem ela. E se resistir, você some... Tadinha, filha
de candidato ao senado sequestrada e morta por inimigos políticos. Viro
mártir. Talvez seja até melhor.
— Seu doente! — Ela gritou. — Vai embora daqui.
— Vou, mas você tem até amanhã para me responder.
Caralho! — Levei as duas mãos à cabeça. — Esse maluco perdeu a
noção, moleque! — Minha garganta estava seca, engoli saliva e senti arder.
— Preciso acabar com isso!
Ouvi a porta bater. Esperei Diana entrar no quarto, mas ela não o
fez. Massageei minha nuca. Estava cansada, dormi muito, e ainda me sentia
esgotada.
Respirei fundo e deitei.
Que loucura! — Tentei recuperar a respiração.
Diana entrou no quarto devagar como se não quisesse me acordar.
Sentou ao meu lado e apoiou as costas da cabeceira da cama. Respirou
fundo e passou as mãos no rosto.
Senti sua energia pesada. Deitei em seu colo e ela acariciou meus
cabelos. Tinha os olhos marejados.
Sentei na cama e a abracei. Depois de um tempo ouvi seu soluço.
Aquilo me cortou por dentro. Fechei os olhos com força. O meu ódio por
aquele velho maldito só aumentava. Depois de ter ouvido aquilo então...
mexeu com a Diana, ele estava fodido na minha mão.
— Eu preciso te contar uma coisa! — sussurrei e a senti afrouxar o
abraço.
Eu me afastei devagar e notei seu olhar semicerrado, em análise
quase me julgando. Aquilo me deixou reticente, mas eu não podia adiar
aquela conversa.
Saí da cama e peguei a minha mochila. Senti uma pressão forte na
cabeça e lembrei que eu estava com a respiração presa. Sentei na cama
ofegando. Diana limpava o rosto e me esperava. Só vi aquele olhar uma vez
e não foi num dia bom.
— Desculpa, mas eu não pude deixar de ouvir a sua conversa.
— Tudo bem. Eu que peço desculpa. Não me controlo diante desse
homem... mas o que quer me dizer? — indagou, cruzando os braços.
Aquilo me deixou apreensiva. Mas peguei a pasta com as
informações do Afrânio de dentro da minha mochila e entreguei a ela.
— Eu achei isso nas coisas da Ingrid. Jamais imaginei que ele fosse
seu parente, sequer... — Eu não estava conseguindo respirar.
Ela estava de sobrancelhas franzidas, abriu a pasta e começou a
verificar os documentos. Vi seu rosto se transformar na medida em que
tinha acesso ao conteúdo nojento daquela pasta.
Eu não estou conseguindo respirar! Vou acabar apagando! —
Apertei os olhos.
Ferrou! Tudo escureceu e senti o tecido do colchão no meu rosto.
— Bárbara! — Ouvi a voz da Diana bem longe.
Que droga! Por que ela saiu? Será que foi atrás daquele velho
nojento, sozinha?
— Bárbara! — Ouvi novamente e senti um toque no meu rosto. —
Bárbara, fala comigo!
Abri os olhos e a vi ali perto de mim novamente. Senti a minha
cabeça doer e ela me abraçando.
— Sua pressão caiu. Você precisa comer algo. Vou preparar alguma
coisa, fica aqui... — pediu e colocou dois travesseiros embaixo das minhas
pernas.
— Não precisa. Já estou bem... — Ouvi a minha própria voz e
parecia que eu estava completamente bêbada.
Diana saiu e voltou com água.
— Beba devagar! — pediu e saiu do quarto.
Bebi e vi a pasta sobre a mesinha de cabeceira. Quando me senti
melhor fui à cozinha. Diana tentava fazer ovos mexidos.
— Pode deixar, eu faço. — avisei, pegando a colher de sua mão.
Ela apenas aceitou e ficou me observando. Fiz omeletes. Suco de
laranja e lavei umas frutas. Arrumei a mesa e a servi. Comemos em
silêncio.
— Por que encontrou aquelas coisas do meu pai, Bárbara? Você
sabia o que acharia quando mexeu nas coisas da Ingrid?
Eu a encarei. Havia um duplo sentido naquelas perguntas, mas eu
estava lerda demais para raciocinar e apenas falei.
— Ingrid escondeu as minhas coisas para eu não poder sair da
cidade. Eu não tinha nem documento. Precisei procurar e acabei
encontrando isso.
— Você já o viu antes?
— Ele esteve com a Eulália e levou a Ingrid para São Paulo. Calou a
boca da velha e destruiu o apartamento da filha...
— Como assim, Bárbara? Que história louca é essa?
— Eu estava aqui. Na noite em que ele levou a Ingrid. Eulália
passou a noite em um hotel em São Paulo, bancado por ele. Quando cheguei
lá estava tudo revirado...
Diana meneou a cabeça, incrédula. Pensei em falar sobre as
câmeras, mas era informação demais para aquele momento. E depois eu não
fazia ideia se ela acreditaria em mim ou como seria a nossa vida a partir
daquele dia.
Ela engoliu o suco que havia no copo e se levantou.
— Eu vou sair. Preciso resolver umas coisas. Preciso pensar um
pouco e digerir tudo isso.
— Tá. — respondi e a vi sair da cozinha.
Eu fiquei ali. Ela tomou banho e saiu rapidamente. Não falou
comigo. Aquilo deu um nó na minha garganta.
Arrumei a cozinha e fui ao quarto. Peguei a minha mochila e
arrumei as minhas coisas dentro. Deixei pronta.
Precisava acabar com aquilo de uma vez. Deixei o apartamento da
Diana decidida a dar um rumo pra minha vida. Entrei na casa da Eulália e a
vi falando ao celular. Esperei que desligasse e a cumprimentei.
— E aí, Eulália?
— Oi, Bárbara... já almoçou? Não te vi por aqui...
— Eu fui procurar emprego.
— Eu já disse que você não precisa se preocupar com isso, menina.
Quer dinheiro? Eu te dou. Você cuidou da minha filha. Eu sei que vocês não
vão mais ficar juntas quando ela sair da clínica, mas eu me sinto no dever
de ajudar você.
— Valeu, Eulália. Mas não precisa.
— Achei que você estava na fazenda. Silvio passou aqui aborrecido.
— O que houve?
— Deixaram um forno aberto e ele perdeu uma produção inteira de
carvão.
— Nossa! Como foi isso? O pessoal é tão atencioso.
— Sei lá. Silvio é muito exigente. Tá achando que foi um rapaz que
ele dispensou anteontem...
— Ué, ele entra lá fácil assim?
— Os meninos o viram rondando por lá de manhã e deduziram.
— Vou até lá, quem sabe não consigo algo, né? Só preciso trabalhar.
— avisei e saí.
Eu precisava vasculhar aquele quarto na casa da Nilza, achar as
minhas coisas e dar adeus àquela família.
Quando mencionei pegar a estrada de terra vi um filhote de cachorro
saindo de uns arbustos. Parei e o peguei.
— Oi, rapaz... cadê sua mãe, hein? — perguntei e olhei em volta.
Procurei algum sinal de parentes daquele mocinho, mas não
encontrei nada. Coloquei dentro do carro e cinco minutos depois eu estava
entrando na fazenda. Fui recebida por Nilza, que me abraçou.
— Achei que nem viesse aqui hoje...
— Eu precisei entregar uns currículos pela cidade. Estou precisando
de emprego. — Mantive aquela mentira. — Preciso ver se a Ingrid trouxe
um documento meu pra cá junto com as coisas.
— Ah, vamos lá.
— Eu achei esse mocinho perto da estrada, Nilza. É daqui?
— Não. Sabe o que os vizinhos daqui da redondeza fazem? As
cadelas têm os filhotes e eles largam na estrada, esse aí deve ter fugido.
— Caraca! Que crueldade, cara!
— Tem dia que levam tudo. Os mais bonitos são vendidos... deixa
eu procurar algo pra ele comer.
— E Silvio? — perguntei, enquanto nos aproximávamos da casa
dela.
— Está descansando. Teve um aborrecimento hoje cedo e passou
mal. Quer ir lá ver ele?
— Quero, sim. Mas vou pegar o documento logo, assim não tomo
tanto o teu tempo.
— Imagina. — disse, sorrindo e abriu a porta. — Essa chave
vermelha é de lá. Vou preparar uma cesta para você levar e preparar uma
tigela pro fujãozinho aí.
— Obrigada, Nilza! Você é um doce!
Entrei no quarto e olhei em volta. Havia caixas de plástico amarelas
em estantes e o computador ligado em uma mesa simples. Liguei o monitor
e esperei. Olhei em volta e vi aquela infinidade de caixas.
Ingrid e sua péssima mania de guardar coisas inúteis.
Fui onde o Fred havia me indicado e achei as imagens.
Desgraçada!
Apaguei as imagens do dia inteiro. Revirei o computador para tentar
encontrar mais alguma coisa importante, e não achei mais nada.
Comecei a abrir caixas. Havia muitas delas. Arquivos da secretaria
de saúde de São Paulo. Fotos de mulheres. Revistas. Arquivos de um
hospital.
Caraca! A Ingrid é mesmo uma bomba relógio! — pensei quando
abri mais uma caixa com arquivos de empresas públicas.
Eu estava suada e já cansada daquela porra. Havia olhado vinte
caixas. Nilza voltou e parou na porta.
— Nada ainda?
— Nada.
— Posso te ajudar. Me diz que documento é...
— É... é um histórico da escola. — menti ao ver um histórico de um
cara numa das caixas. Pelo sobrenome era parente dela.
— Ah... — A mulher pegou cinco caixas e colocou no chão.
Vi sua habilidade ao procurar algo específico e fechar cada uma e
devolver ao seu lugar.
E se ela mentiu? — Aquela informação chegou à minha mente
como um coice. — Ela pode ter queimado aquela porcaria como disse e ter
me enganado esse tempo todo. Foda-se.
— Você já olhou em todas essas aí?
— Sim...
— Aqui não está, Bárbara. Você não tem como entrar em contato
com a escola e pedir outro?
— Queria evitar esse incômodo, mas vou ver o que fazer. Vamos ver
o Silvio!
Saímos dali e tomei água. Depois de falar com o Silvio e me
despedir dele, eu saí de sua casa e dei um abraço na Nilza, que colocou o
meu novo amigo dentro de uma caixa de papelão com um pano dentro dela.
— Obrigada, Nilza, por tudo.
— Até parece que não volta mais aqui...
— Talvez eu demore um pouco a voltar, pois como eu já disse, estou
procurando emprego e você sabe como é, né?
Saí de lá e fui à fábrica de carvão, havia um homem colocando uma
cerca ao redor dos fornos.
— E aí, Ivan. O que houve aqui? — perguntei ao encarregado pela
fábrica.
— Invadiram aqui ontem à noite, abriram um dos fornos e perdemos
a produção. — respondeu o homem todo sujo de carvão.
— Que merda, hein? Vira cinza, né?
— Não cinza pura, vira adubo pra plantação, passei no triturador...
mas ouvi do patrão, né?
— Que coisa chata. Mas boa sorte aí. Eu vou nessa!
Saí da fazenda e peguei a estrada de terra. Vi um carro se
aproximando para cruzar com o que eu estava, só que ele parou atravessado
no meio da estrada bloqueando a minha passagem.
Olhei para o filhote dormindo dentro da caixa e esperei um pouco
enquanto tentava ver quem estava dentro do carro de vidro escuro. Dei uma
buzinada e vi a porta se abrir. Afrânio saiu do SUV preto usando um chapéu
e óculos escuros.
Ah, filho da puta! O que esse desgraçado quer?
— Aí, tu pode tirar o carro? Eu preciso passar... — disse, saindo.
Ele estava a uns três metros de mim.
— Oi, Bárbara. Tudo bem?
— Mais ou menos, né?
— Eu vi você entrando no apartamento da minha filha de um jeito
bem peculiar.
Forcei a memória para me lembrar de como havia chegado lá, e não
consegui.
— E daí?
— E daí que quero que suma dessa cidade, suma da vida dela...
— Tio, manda ela me dizer isso, tá? Agora eu preciso ir...
— Você não entendeu, né? Ou você vai por bem ou vai por mal,
garota! Não sou homem de contornar obstáculos, eu os destruo.
Então eu sou um obstáculo? — pensei, encarando aquele maldito
asqueroso.
— Tio, sai da frente!
— Olha aqui, garota! — chamou me pegando pelo bíceps.
Eu me desvencilhei daquela mão suada com um soco.
— Olha aqui o caralho! Tira essa porra da frente. — mandei e
mencionei entrar no carro e fui empurrada por ele.
O desgraçado era bem maior que eu. Eu caí, senti areia na boca.
Aquilo fez o meu ódio ficar monstruoso. Cerrei os punhos com terra nas
mãos e fui pra cima dele. Acertei seu rosto com o pé, fazendo seus óculos
caírem no chão, e joguei a terra em seus olhos. Naquele momento, ele virou
um saco de pancada.
Mesmo machucado, ele agarrou meu cabelo e acertou meu abdome.
Quando se preparou para bater de novo, atingi sua virilha com a ponta do
pé. O infeliz não se intimidou por muito tempo, se defendeu de outro soco
meu e esmurrou meu rosto. Senti gosto de terra novamente.
As mãos enormes dele me tiraram do chão e me jogaram por cima
dos arbustos por onde, há menos de um dia, passei para matar outro escroto.
Antes que ele chegasse perto de mim de novo, eu me levantei e
corri, tomei impulso no carro dele e chutei sua cara. Dessa vez, quem
comeu terra foi ele.
Ele se levantou arfando, era exatamente como eu o queria. Tentou
outro soco e me esquivei. Corri de novo e o deixei tentar me alcançar.
Enquanto isso, me preparei para o final.
Mais um soco, mais um desvio e um arm lock voador. Em questão
de segundos, causei uma bela luxação na articulação do cotovelo dele, que
gritou.
Larguei aquele desgraçado ali e entrei no carro. Estava quase
anoitecendo. Passei por cima dos arbustos, arriscando destruir os pneus, e
logo peguei a estrada de volta à cidade.
Guardei o carro. Senti o abdome doer muito. O gosto de sangue na
boca se intensificou. Várias dores apareceram pelo meu corpo.
Caralho!
Ouvi baterem no portão e me virei subitamente. Era a Diana.
29 – Angústia

Diana

Saí de casa transtornada, eu não sabia para onde ir ou o que pensar.


Meu corpo estava dormente, cheguei a achar que estava em um pesadelo,
mas não tinha o sono pesado o bastante para aquilo. Se fosse sonho, eu já
teria acordado.
Dirigindo sem rumo pela cidade, eu me perguntava o que havia feito
de errado para estar passando por aquela situação. Que espécie de pai faz
uma proposta daquele tipo para a única filha? E as ameaças que vieram
acompanhadas? Será que ele realmente seria capaz de cumpri-las se eu não
aceitasse me casar com o tal filho do político amigo dele?
Se fosse só eu, acho que até pagaria para ver, mas ele envolveu a
Bárbara na história, e aquilo eu não poderia admitir. Mesmo sem ter certeza
se ela estava envolvida ou não em tudo, havia um instinto protetor em mim
que não me permitia expô-la a riscos.
Eu queria muito acreditar nela, mas estava ficando cada vez mais
difícil. Eu a amava, sentia a recíproca daquele sentimento, mas a minha
razão me dizia o tempo todo para ir com calma. Já dizia o ditado: "quando a
esmola é demais, o santo desconfia", e a Bárbara era perfeita demais para
ser real.
O amor cega, e eu estava mergulhada na escuridão completa, até
receber das mãos dela aquela pasta com documentos sobre o meu pai e a
Ingrid. Aquilo abalou a minha confiança.
Já eram quase duas da tarde. Eu havia bebericado um suco e comido
umas duas garfadas de omelete, meu corpo sentia fome. Parei em uma
lanchonete e entrei, mas senti o estômago embrulhar quando olhei para as
opções do cardápio e acabei pedindo apenas um café puro.
— Oi, doutora! — ouvi uma voz familiar me chamando e em
seguida vi Lara se sentar à minha frente.
Ela tinha o braço imobilizado, preso a uma tipoia. Meu primeiro
instinto foi de contar tudo e pedir sua ajuda profissional, mas lembrei do
que havia conversado com Gabriel e optei por não falar nada. Àquela altura,
confiar estava custando muito caro, e eu não estava disposta a pagar. Tentei
disfarçar a minha tensão com um sorriso forçado.
— E aí, Lara? Como tá a mão? — perguntei, tentando entonar
casualidade.
Ela me encarou brevemente antes de responder, tinha um olhar
desconfiado.
— Bem, só dói quando decido dormir. Aí vira um inferno. Já falei
que os analgésicos que você receitou não servem?
— Falou, mas eu insisto que a culpa não é da dosagem dos
analgésicos. Eu acho é que a senhorita não está repousando como deveria. E
esse distintivo pendurado na cintura? Não devia estar de licença?
— É, tecnicamente, eu estou. Mas temos uma situação
extraordinária, e o delegado substituto está meio perdido.
— Situação extraordinária?
— Ué, você não tá sabendo?
— Não. Sabendo do quê? — perguntei de cenho franzido.
— Não se fala de outra coisa na cidade. O sumiço do vereador
André Rezende.
— André Rezende? O vereador galã que quer virar prefeito?
— Sim, ele sumiu ontem à noite, e a secretária sumiu também.
— Que estranho! Eles eram amantes? Acha que fugiram juntos?
— Bom, há essa possibilidade, mas é pouco provável. Parece que o
carro dele foi encontrado no estacionamento do restaurante onde ele deveria
ter participado de um coquetel promovido pelo partido, na noite passada.
Está parecendo mais sequestro, enfim... vamos iniciar as investigações,
estou indo pra lá. Mas onde você estava que não ouviu falar nisso? Não se
fala em outra coisa nessa cidade. Eu já fui abordada por curiosos umas dez
vezes, só hoje.
— Ah, eu dobrei o plantão. Mais de vinte e quatro horas enfiada
naquele hospital, só saí hoje de manhã. Ainda nem dormi direito.
— Tô vendo. Você tá tremendo, os olhos vermelhos. — Ela falou
me encarando e imprimindo um tom sério, que me deixou constrangida e
me fez desviar o olhar.
— É... eu... eu só preciso tomar esse café e vou me sentir melhor. —
Tentei disfarçar o meu desconforto.
— Diana, você tá bem mesmo? Tô te achando bem esquisita. Não
quer conversar?
— Não, eu tô bem. É só cansaço mesmo. Obrigada pela
preocupação. Eu vou pra casa, dormir. A noite estarei novinha em folha. —
falei, nervosa e fiz sinal para que a garçonete trouxesse a conta.
Lara me observava em silêncio enquanto eu pegava uma nota na
bolsa e entregava à funcionária da lanchonete.
— Pode ficar com o troco, obrigada!
— Obrigada, moça! — A garçonete disse e saiu.
Voltei a olhar para a delegada na intenção de me despedir, mas fui
capturada por aquele olhar interrogativo.
— O que foi? Por que está me olhando assim?
— Diana, não sei o que tá rolando com você, mas se precisar de
ajuda, me liga, tá? Vê se se cuida direito, vai pra casa, dorme um pouco. Tá
na cara que você tá exausta. Eu tenho que ir agora, mas se quiser tomar
umas cervejas mais tarde e... sei lá, conversar um pouco, a gente se
encontra.
Eu suspirei profundamente e encarei aqueles olhos azuis. Ela me
inspirava confiança, mas eu não estava confiando no meu julgamento. Olhei
para o lado e encarei o nada por uns instantes antes de voltar a fitá-la.
— Obrigada, mas eu tô bem mesmo. É só cansaço. Depois te ligo,
sim. Pra gente tomar umas cervejas. Vai lá cuidar do teu caso, mas vê se
pega leve com essa mão, tá?
— Tá bom, pode deixar.
Dei um beijo no rosto dela e entrei no meu carro. Fui direto para a
casa do Gabriel, que me atendeu logo que toquei a campainha e ao perceber
o meu estado de nervos me abraçou. Naquele instante eu desabei em
lágrimas. Ele apenas me acolheu nos braços, em silêncio, enquanto eu
punha para fora toda aquela angústia que estava sentindo.
— Shh... calma, calma! Vai ficar tudo bem, calma!
Gabriel era muito mais que meu melhor amigo, era como um irmão.
A única família que eu tinha. Não faço ideia de como eu poderia enfrentar
aquela situação toda sem ele ao meu lado. E se havia alguém em quem eu
confiava de olhos fechados, esse alguém era ele.
Já mais calma, me sentei no sofá e esperei enquanto ele foi à
cozinha. Eu estava com a garganta seca, o nariz congestionado, respirava
com dificuldade, ainda tentando controlar os soluços do choro convulsivo
que havia acabado de expor. Gabriel voltou com uma garrafa de água e
lenços de papel. Sequei o rosto e bebi quase a garrafa toda de uma vez. Ele
se sentou ao meu lado e esperou até que eu acabasse.
— Tá melhor?
— Sim, obrigada!
— Que bom! — falou e pôs uma mecha do meu cabelo atrás da
orelha, depois acariciou o meu rosto.
Ele tinha um olhar doce, complacente. Me puxou para perto e me
fez apoiar a cabeça em seu ombro.
— Agora me conta o que houve. — pediu enquanto me fazia cafuné.
Eu acabei deitando no sofá em posição fetal, com a cabeça sobre a
perna dele. Ele continuou a acariciar os meus cabelos enquanto eu contava
tudo sobre a visita do meu pai e a conversa com a Bárbara.
— Di, você acha que ele seria capaz de cumprir essas ameaças?
— Ah, Biel, honestamente? Não faço ideia. Parece drástico. Sujo
demais, até pra ele. Mas não sei... a verdade é que eu não o conheço.
— É, e é justamente por isso que o correto é não confiar.
— Sim, mas o que eu vou fazer? Ceder ao que ele quer?
— Não, ué. Mas você não tá sozinha, Diana. Até agora, tudo o que
descobrimos confirma as acusações do seu tio. Por que não procura ele?
— Porque eu tô com medo.
— Eu sei e te entendo, mas acho que tá na hora de arriscar.
— É... talvez seja a hora mesmo.
— Eu consegui acesso ao celular, mas não mexi em nada ainda.
Quer ver?
— Sim, vamos ver. — concordei sentindo o coração acelerar
novamente. Tinha muito medo do que poderia achar naquele celular.
Ele me entregou o aparelho e fui direto à caixa de mensagens, mas
estava vazia. Meu tio com certeza estava apagando todos os históricos.
— Não tem nada aqui, Biel.
— Olha as chamadas.
Fui para o histórico de chamadas e vi várias ligações, feitas e
recebidas, de um tal de Joel Toledo.
— Quem é esse Joel Toledo? — perguntei.
— Só tem um jeito de saber. Liga pra ele.
— O quê? Não. Tá louco?
— Ué, você tem uma ideia melhor?
— Vou ligar pra ele e dizer o quê, Gabriel?
— Ah, sei lá, cara. Só liga e vê o que ele fala. Anda, liga logo.
Ele ordenou, mas pegou o celular da minha mão e pressionou para
chamar, depois pôs no viva-voz e o deixou sobre a mesa. Após três
chamadas, uma voz masculina, bem suave, atendeu.
— Alô?
Não respondemos. Ficamos os dois olhando para o aparelho sobre a
mesa, em silêncio. Eu sentia o meu coração querendo sair do peito. O
homem insistiu.
— Alô? Alô? — Fez uma pausa. — Diana? É você?
Levei as mãos à boca e encarei Gabriel de olhos arregalados. Não
tive coragem de responder, não fazia ideia de quem poderia ser do outro
lado da linha e muito menos de como ele sabia que era eu ligando.
— Diana, aqui é Joel Toledo. Eu sou amigo do seu tio. Responda,
por favor.
Gabriel ficou gesticulando para que eu falasse, mas minha voz não
saía.
— Diana, fale comigo. Eu posso te ajudar, tenho orientações do seu
tio.
— O... oi...
— Oi! É você mesmo?
— Sim, sou eu. Diana. — Meu nome quase não saiu.
O homem fez uma breve pausa e voltou a falar:
— Siga as orientações que seu tio deixou. Não é mais seguro ficar
aí. Saia da cidade imediatamente, use os seus documentos novos e dinheiro
em espécie. Seu celular não é seguro, seu carro tem rastreador, então nem
pensar em usar nenhum dos dois. Vou entrar em contato com o Augusto.
Prepare tudo para vir nos encontrar, vamos te levar para um lugar seguro.
Fique com esse celular, eu ligo em breve para dar mais informações.
— Espera, eu... — Tentei falar, mas ele desligou. — Merda! —
gritei e bati as mãos na mesa.
Soltei finalmente o ar pela boca, exasperada, desesperada, quase
surtando.
— Calma, Di!
— Como eu posso ficar calma, Gabriel? — perguntei já sentindo os
olhos embaçados. — Você ouviu isso?
— Sim, eu ouvi e entendo o seu nervosismo, mas você não pode se
desesperar. Agora, mais do que nunca, você precisa ser fria, calcular cada
passo que for dar.
— Que passo? Eu não faço ideia do que fazer, eu tô perdida. — falei
já de pé, andando de um lado para o outro, em lágrimas.
— Não, você só pode estar brincando, né? Você vai sair da cidade,
Diana. Não é louca de ficar aqui. — falou, em tom de ordem.
— Gabriel, e o que eu devo fazer? Simplesmente confiar nesse cara
que eu nem sei quem é?
— Ou casar com um escroto e viver na mão do teu pai. Infelizmente
você não tem muita opção.
— Mas não é assim. E o hospital? E a minha casa? As minhas
coisas? O Luís... você... a Bárbara?
— Lá vem a Bárbara de novo. Caramba, cara! Que ideia fixa com
essa garota!
— O Afrânio a ameaçou, Gabriel. E mesmo sem saber se posso ou
não confiar nela, se acontecer algo, se ele a machucar por minha causa,
jamais vou me perdoar... eu respeito você não gostar dela, mas não me peça
para largar tudo assim...
— Cara, sinceramente, eu não sei mais o que te dizer.
— Minha cabeça está fervendo, não sei o que pensar. Eu vou pirar.
Preciso respirar, sei lá... preciso dormir, tô virada, estressada...
— Pois descansa. Vá pra casa, durma um pouco, mas quando
acordar, se prepara pra tomar uma decisão, porque você não pode
simplesmente esperar pra ver no que vai dar. Amanhã o mafioso te espera...
— É, é isso mesmo que vou fazer, vou descansar. Amanhã eu
argumento com o mafioso.
— Tá, pois vai então. Eu tô quebrando a criptografia de mais
algumas pastas do HD. A noite devo ter mais novidades. Me liga quando
acordar.
— Tá bom, obrigada! Eu vou indo.
— Vai! Dirige com cuidado e descansa.
— Tá bom.
Me despedi dele e segui para casa. Eu realmente precisava tentar
dormir. Sabia que seria difícil, mas meu raciocínio estava lento, e eu
precisava pensar com clareza. Decidi não tomar nenhuma decisão antes
disso.
Fiquei pensando se encontraria Bárbara em casa quando chegasse,
mas ela não estava. Tomei um banho e deitei. Revirei de um lado para o
outro na cama até que peguei no sono. Acordei uma hora depois, já era
noite. Foi estranho não ter a Bárbara do meu lado. A gente se acostuma
rápido com o que é bom.
Levantei-me e fui até a janela. Vi a luz da garagem do apartamento
da Ingrid acesa.
Ela está lá?
Nem pensei direito, apenas vesti uma roupa qualquer, desci e
atravessei a rua. Não sabia o que queria fazer ou dizer, só precisava mesmo
vê-la. Talvez terminar fosse o mais correto. Mataria dois coelhos com uma
cajadada só: a livraria das garras do Afrânio e não correria risco de ser
enganada por ela. Mas por mais que a minha razão me impelisse a tomar
essa atitude, a emoção a queria bem perto. Nem todo o sono do mundo me
ajudaria a tomar aquela decisão.
Bati no portão, pois a vi a poucos metros dentro da garagem. Ela se
virou, parecia assustada, olhou para dentro do carro e me olhou de novo.
— Preciso falar com você, Bárbara! — disse com firmeza.
Fez sinal para que eu esperasse, encostou a cabeça no capô do carro
e depois de alguns segundos abriu o portão. Tomei um susto. Ela estava
toda machucada, tinha um corte feio no zigomático (osso facial abaixo do
olho) direito e na boca, ambos sangravam. Ela segurava o abdome.
— O que houve com você? — perguntei, espantada.
— Aqui não. Vamos pro seu apartamento. Preciso que me ajude. —
disse com dificuldade para falar e com a respiração falha também. — Pega
a caixa no banco do carona, por favor.
Ela pediu pausadamente, provavelmente, sentindo dor. Peguei a
caixa e fomos para o meu apartamento.
— O que aconteceu, Bárbara? — perguntei, preocupada, pegando
meu kit de primeiros socorros.
— Aquele desgraçado do Afrânio... — Ela disse de olhos fechados
recostada no sofá, segurando o abdome em meio a caretas de dor.
Eu gelei com aquela resposta.
30 – Sutura

Bárbara

Eu sentia meu corpo inteiro doer, parecia que tinha passado por um
moedor de carne. Foi só quando finalmente encostei no sofá que senti um
pouco de alívio.
— O que aconteceu, Bárbara? — Diana perguntou, nervosa.
Ela tremia, tinha os olhos vermelhos e a respiração alterada. Ainda
cogitei esconder para não a deixar pior do que já estava, mas imaginei que
ela fosse descobrir de um jeito ou de outro, então achei melhor contar tudo.
— Aquele desgraçado do Afrânio... — respondi tentando respirar,
de olhos fechados. Sentia dores pelo corpo todo. — Ele me seguiu até a
fazenda do tio da Ingrid.
— Ah, meu Deus! — falou, abafando a voz com as mãos à boca.
O meu rosto latejava, não conseguia abrir o olho direito. Talvez
estivesse inchado ou quem sabe fosse apenas aquela sensação horrível.
Finalmente conseguir abrir o esquerdo devagar e vi Diana pegando algumas
coisas em uma maleta. Ela sentou ao meu lado e pôs uma gaze no ferimento
do meu rosto. Senti suas mãos tremendo.
— Segura. — pediu. — Consegue andar até a cama? Preciso
examinar você.
— Sim... — respondi e me movi, sentindo uma fisgada forte na
lateral do meu corpo que me fez gemer e voltar a recostar no sofá.
— Calma, devagar. Vem, eu vou te ajudar.
Ela me pôs de pé e me apoiou em seu ombro. Era maior que eu e
carregou praticamente todo o meu peso sobre o corpo dela até o quarto. Lá,
tirou a minha roupa suja de sangue e me ajudou a deitar. Usando uma gaze
molhada, ela limpou meu rosto. Ficou em silêncio, mas eu podia perceber
que estava se controlando para não ter um ataque de nervos. Aquilo estava
me matando mais que as dores, eu só queria poder abraçá-la e garantir que
tudo ficaria bem.
Tentando manter o próprio equilíbrio, ela me pediu calma quando
praticamente gritei, no momento em que ela examinou o meu tórax. A dor
quase me fez querer morrer ali mesmo. Quando acabou, ela recolheu tudo e
deixou o quarto.
— Gabriel? Preciso que você venha aqui agora. A Bárbara foi
espancada, está com um corte no rosto, que precisa de ponto. Tem uma
costela quebrada, preciso de remédios também. — Silêncio. — Eu não
posso levá-la ao hospital, Gabriel. Foi o Afrânio quem fez isso, me ajuda.
Não posso deixá-la sozinha.
Não consegui ouvir mais nada, pois ela se afastou. Ouvi logo depois
o miado furioso do Luís Otávio, provavelmente, encontrando o Lecter
Junior.
Acho que rolou um fight, pois ouvi um barulho de coisas caindo.
— Para, Luís! — Diana gritou.
Saí da cama com muita dificuldade e fui me apoiando no que podia
até chegar à cozinha, ainda com a gaze perto do olho. Luís estava duas
vezes maior, todo arqueado, enquanto Diana segurava o Junior no colo,
defendendo-o do gato, que xingava o meu novo filho com um chiado
sinistro seguido de um miado grave.
Vermelha e ofegante, Diana me olhou e apenas indagou com os
olhos sobre o filhote.
— Achei na estrada e não tive coragem de deixá-lo lá. Desculpa,
não pude avisar.
— Tá, volta pra cama. Vou tentar fazer com que esses dois fiquem
sob o mesmo teto. Gabriel está vindo trazer umas coisas para eu suturar seu
rosto. Meu kit está incompleto. — avisou e tocou no ferimento.
Eu a encarei, sabia que ela estava desconfiada de tudo, estava
agindo estranho desde que falei sobre o pai dela, mas apesar disso eu sabia
que estava muito preocupada. Ela me encarou de volta e suas lágrimas a
traíram. Rapidamente ela as secou, mas mesmo que tivesse conseguido
controlá-las eu saberia que aquela pose que ela estava tentando manter era
só cena. Ela estava uma pilha de nervos, à beira de desmoronar.
— Olha só pra você. — Aquela voz embargada cortou meu coração.
— Caramba, que monstro! Covarde! Desculpa. — pediu, limpando, novas
lágrimas que caíam.
— Ei, você não tem culpa disso. Fica calma, vai ficar tudo bem. —
Tentei ser otimista.
— Tá, vai deitar. Você precisa de repouso.
— Tá bom, eu vou.
Voltei para a cama e fiquei ali. Precisava arrumar um jeito de falar
com o Augusto. Diana corria perigo. Eu só queria sumir daquela cidade,
mas só sairia dali com ela, jamais a deixaria sozinha. Nem que ela me
mandasse embora, como o pai queria.
Estava difícil respirar, tentei puxar o ar e senti uma dor forte no
abdome. Eu já havia aguentado muitas dores na vida, estava ficando fresca.
Acho que os cuidados da Diana estavam me deixando mal-acostumada,
talvez fosse isso.
Ouvi uma leve batida na porta. Pouco tempo depois, Diana entrou
no quarto com uma sacola na mão, acompanhada do amigo dela.
Involuntariamente eu o olhei, séria. Vi suas sobrancelhas quase juntas numa
expressão severa se amenizarem ao me ver.
— Caralho! — Ele falou por entre os dentes.
Diana colocou luvas e se preparou para cuidar do meu ferimento. Eu
senti uma pressão gelada na cabeça quando vi aquela agulha na mão dela.
Antes de fechar os olhos vi o olhar julgador do Gabriel me fuzilando.
— Calma, não vai doer nada. — Ela disse com a voz suave e
continuou falando. — Você vai sentir uma leve dor de cabeça, mas
conseguirá dormir.
De repente não senti mais aquela parte do meu rosto.
— Quietinha! — disse e puxou alguma coisa. — Prontinho. —
avisou como se eu fosse uma criança e colocou um curativo.
Depois preparou umas seringas e aplicou duas injeções. Como
mágica, senti a dor se esvaindo. Gabriel saiu do quarto digitando algo no
celular.
— O que tinha nessas injeções?
— Analgésico e antibiótico. Você precisa para não sentir dor durante
a noite e começar a recuperação dessa costela quebrada.
— Obrigada! Já me sinto melhor.
— Que bom! — disse com um sorriso forçado.
— Você está bem?
— Não. Mas o bem-estar que importa agora é o seu. Descansa. —
falou de um jeito seco e se levantou, recolhendo as coisas.
Ela tirou as luvas e as amarrou juntas, depois guardou tudo. Entrou
no banheiro e passou um tempo lá. Fechei os olhos. Almejei um pouco de
paz na minha vida, mas aquele desejo incluía a Diana, e pensar que ela
poderia querer que eu saísse de sua vida me deixava angustiada.
Ela saiu do banheiro e abriu duas gavetas.
— Eu vou comprar algo para comer. Já volto. — avisou e saiu.
Ouvi a porta bater em seguida. Um tempo depois, ouvi passos se
aproximando do quarto. Abri os olhos e vi Gabriel ali na porta, me
observando.
— Você sabe de algo sobre isso? — perguntou e mostrou uma foto
de Afrânio no hospital. Ele tinha uns curativos no rosto e o braço
imobilizado.
— Claro que sei. Eu não estou morta agora porque ele está assim!
— respondi seguindo o tom acusador dele. — Brother, eu sei que tu não vai
com a minha cara. Que tenta convencer a Diana de que não presto, mas a
parada é a seguinte: gosto dela pra caralho e mesmo se ela me mandar
embora ainda vou ficar por perto. Ao contrário de você, eu quero só o bem
dela.
— Como? Só me diz isso? Como fez esse estrago num homem
daquele tamanho? — perguntou e olhou para a porta.
Diana estava voltando.
— Diana vai saber disso. Você não me engana! — disse, em desafio.
— Gabriel? Achei que tivesse ido embora. Procurei você e não
encontrei.
— Eu estava no celular.
Diana nos observou, desconfiada. Fechei os olhos com força e
resolvi acabar com aquilo.
— Gabriel tem algo pra te mostrar, Diana!
Ele me encarou de sobrancelha franzida.
— Do que você tá falando? O que está acontecendo aqui? —
perguntou, alternando o olhar entre nós dois.
Que inferno! Só queria um pouco de paz!
— É... — Ele gaguejou.
— Anda, Gabriel. Fala!
Eu precisava descansar, não estava conseguindo manter os olhos
abertos. Quando os fechei, senti uma lágrima descer. Aquele tipo de lágrima
que sai quando bocejamos.
— Como isso aconteceu, Bárbara? — Diana estava com o celular
dele na mão. — Você disse que ele te atacou, mas quem fez isso com ele?
— Eu.
Ela me olhou incrédula e sorriu de nervoso. Olhou para Gabriel e
passou as mãos na cabeça.
— Como você pode ter feito isso com ele? — perguntou, voltando a
me olhar.
— Fazendo. Ou era isso ou eu estaria morta agora! — respondi,
fechando os olhos de novo.
Passei a ouvir a voz da Diana longe. E aquela sensação de paz foi
tomando conta de mim. Até que não ouvi mais nada. Caí num sono
profundo, tive sonhos confusos, ora bons, ora ruins. Eu até voei àquela
noite.
Acordei de manhã, procurei a Diana, e ela já me observava sentada
numa cadeira. Aquilo não era tão esquisito quando ela não desconfiava de
mim, mas naquele momento eu senti um frio na espinha. Ela tinha os olhos
vermelhos. Sentei na cama me sentindo a pior pessoa do mundo, pois sabia
que eu era responsável por aquele semblante abatido.
— Oi...
Ela se levantou de onde estava e se sentou ao meu lado.
— Oi... como se sente?
— Melhor. Obrigada!
Meu rosto ainda doía, o abdome nem se fala, mas eu não queria
preocupá-la ainda mais.
— Que bom. Então agora você vai me contar exatamente o que
houve. Sem mentiras ou omissões, Bárbara!
Ela falou de um jeito autoritário, tinha um olhar frio, e a dor daquele
olhar desconfiado e gelado dela sobre mim machucava mais do que
qualquer outra.
— Como eu já disse, ele foi até a fazenda do tio da Ingrid.
— O que você foi fazer lá?
— Pegar umas coisas pra Eulália... — menti, rapidamente.
— Tá. E como foi esse encontro? Como ele te abordou?
— Na estrada. Ele bloqueou o caminho com o carro. Desci, e ele me
mandou ficar longe de você. Eu o enfrentei e disse que não ficaria, então ele
me empurrou e começou a me bater. Eu só me defendi.
— Ele tem duas vezes o seu tamanho e está mais quebrado do que
você. Fala, você sabe o que quero saber. Quem é você, Bárbara? — Ela
ofegava, nervosa quando proferiu aquelas palavras.
— Eu sou só eu, Diana. Fui criada na periferia do Rio de Janeiro sob
o mesmo teto que um filho da puta, escroto, que tentava abusar de mim. Ou
eu aprendia a me defender ou teria me tornado uma vítima. Eu fiz sete anos
de Jiu jitsu e algumas outras artes marciais. A primeira vez que o nojento do
meu padrasto encostou em mim, quebrei o nariz dele...
As lágrimas que saíram dos meus olhos não eram de cansaço, eram
de ódio mesmo, ódio daquele desgraçado. E de mágoa talvez. Pois aquele
assunto me fez lembrar da minha mãe.
— Por que não me contou o que aconteceu, Bárbara? Já pedi para
não me esconder nada...
— Diana, primeiro, eu não tive tempo. Segundo eu não sabia como
reagiria depois do que disse ontem. Você saiu daquele jeito sem falar nada,
apareceu toda esquisita. — Limpei meu rosto. — Enfim, eu só causei uma
luxação no braço dele.
Ela se levantou e respirou fundo. Passou as mãos nos cabelos e
voltou a me olhar.
— Até onde você sabe da relação dele com a Ingrid? Essa mulher
mora na frente do meu apartamento...
— Só descobri isso há pouco tempo, eu juro. Antes eu só sabia que
ela era bancada por alguém. Falava regularmente com esse alguém e
sempre falava de dinheiro. Quando ela tentou suicídio, ele apareceu. Se
apresentou pra Eulália como médico dela, fez perguntas sobre documentos
e como ela não pôde ajudar, ele invadiu o apartamento. E só soube que era
seu pai ontem, depois da conversa de vocês.
— Isso é surreal demais! Onde você se encaixa nisso, Bárbara?
Porque nada tira da minha cabeça que você pode ser uma isca do meu pai
pra me deixar na mão dele. Exatamente como estou agora.
— Diana, eu não sou a pessoa mais crente do mundo, mas também
não sou totalmente cética. Sei que pra tudo tem uma razão. Eu entrei meio
que por acaso nessa história toda. Conheci a Ingrid de uma forma idiota,
vim parar nesse fim de mundo. Passei uma semana de boa com ela e
descobri que é uma escrota, sem escrúpulos e fui mantida refém dela. Até
encontrar você, eu estava aceitando aquela realidade... — Procurei respirar
fundo e senti aquela dor infernal abaixo do seio. — Não sei o porquê, eu
podia ter dado um jeito de fugir antes, mas... sei lá. Eu nem tinha pra onde
ir, então, tanto fazia. O resto você já sabe. Ele a mandou para São Paulo
para ficar no controle. É um caso óbvio de chantagem.
— Com aquele material ela acabaria com ele. — disse e passou as
mãos no rosto. — Isso tudo está me deixando enojada, desesperada. Não sei
o que fazer.
Quem ficou calada fui eu, apenas a observei tentando se acalmar,
tentando digerir tudo aquilo.
— E quando a Ingrid voltar, como será a nossa vida, Bárbara? Você
falou de alugar quitinete, mas até agora não a vi fazer nada a respeito.
— Eu não tenho mais nada na casa da Ingrid, Diana. — Apontei a
minha mochila. — Minha mudança está toda nessa mochila. Sobre a quite,
eu estou ainda pensando nisso, sim. Só estou indo lá por causa da Eulália.
Luís entrou no quarto miando, claramente reclamando de alguma
coisa.
— Agora é isso, não fica quieto mais. — Diana reclamou e saiu do
quarto sendo seguida pelo gato. — Eu não vou colocar o cachorro na rua...
— ela respondeu ao gato.
Achei aquilo a coisa mais linda do mundo. Ouvi a voz dela, mas não
entendi muito bem o que dizia.
Eu saí da cama e fui ao banheiro, tomei um tremendo susto quando
vi o estado do meu rosto.
Puta que pariu!
Tomei banho tentando não molhar o curativo, mas não deu muito
certo. Com a cabeça cheia, me lembrei da Ingrid. Como será que estava?
Não duvido nada que aquele escroto seja capaz de matá-la para queimar
arquivo. Foi capaz de ameaçar a própria filha daquele jeito. E eu sou capaz
de matá-lo se tocar na Diana.
Saí do banheiro e Diana me esperava com seu kit de primeiros
socorros.
— Você não trabalha hoje?
— Liguei para o meu chefe e avisei que preciso resolver umas
coisas. Vou pegar o plantão da noite. — avisou, enquanto colocava o novo
curativo no meu ferimento. — Eu vou sair e você precisa ficar aqui. Luís
não fica com o cachorro, vão se matar.
— Eu fico. O nome dele é Lecter Junior. — disse com um sorriso
fechado. — É só até eu arrumar um lugar pra ficar. Não podia deixá-lo na
estrada.
— Você pode ficar aqui, se quiser, Bárbara. — disse e me olhou nos
olhos, segurando a minhas mãos. — Vou me sentir melhor com você perto
de mim. Afrânio é capaz de tudo.
Engoli saliva. Meu coração acelerou um pouco enquanto eu
correspondia àquele olhar. A minha velha Diana estava voltando. Devagar,
mas estava.
— Não me esconde mais nada. Eu quase morri de preocupação
quando vi você daquele jeito, sangrando.
— Eu te amo, Diana! — disse e respirei fundo mesmo com dor. —
Desculpa. Não vou mais ficar em risco.
Ela me beijou cautelosamente, pois minha boca estava machucada, e
me abraçou com cuidado.
Aquele pedido dela foi como tirar um vagão de trem das minhas
costas.
31 – Delírio

Diana

Eu estava zonza com aquela quantidade de informações para


absorver e administrar. Sequer estava conseguindo pensar direito. Eu sentia
verdade nas palavras da Bárbara, mas estava com medo de estar sendo
ludibriada pelo meu sentimento por ela. Vê-la naquela situação me quebrou.
E imaginar o Afrânio em cima dela me fez sentir uma vontade tremenda de
acabar com a raça dele. Mas e se tudo fosse um jogo dos dois? E se ela
fosse apenas uma ótima atriz, rainha na arte do improviso, que foi flagrada
na mentira por mim e achou um jeito de contornar a situação para me
manter nas mãos?
— Que merda! — bufei segurando a maçaneta da porta de saída do
apartamento.
— Merda é essa situação em que você me meteu.
Ouvi a voz do Luís reclamando mais uma vez da presença do
cachorro. Agachei e o acariciei, tentando fazê-lo se acalmar, mas ele tinha
ódio no olhar.
— Eu não acredito, humana. Por que isso agora? Como acha que
vou lidar com essa criaturinha asquerosa dentro da minha própria casa?
— Calma, Luís! É só por um tempo. Ele está machucado e não tem
onde ficar.
— Calma é o cacete. O que vai ser agora? Vai comer a minha ração?
Espalhar dejetos fétidos pela casa e urinar no sofá e nas pernas da mesa?
Roubar toda a atenção que você tem que dedicar a mim pra ele? Eu não
admito isso, humana. Resolva imediatamente.
— Calma, ele não vai fazer nada disso. Olha só, eu vou sair e
comprar comida pra ele, tá? Na volta vou tentar treiná-lo para que não
espalhe sujeira pela casa. E fica tranquilo, ele não vai tomar o seu lugar.
Você é o meu gatão lindo, sabe disso. Então deixa de ciúme bobo. — falei
de forma suave quase rouca.
Ele me olhou com desdém, como se não acreditasse no que falava.
Fiz com que deitasse no chão e acariciei sua barriga.
— Quem é o meu lindão, quem é?
— Sou eu. — disse, orgulhoso, e começou a ronronar.
Percebi que estava mais calmo, o carinho que eu fazia o estava
deixando mais à vontade.
— Agora seja um bom garoto e não mexa com ele. Volto daqui a
pouco.
— Ok, mas não demore muito ou não me responsabilizo pelos meus
atos. — ameaçou enquanto lambia a barriga onde acariciei.
Eu sorri e saí.
O Lecter Júnior era um ponto a favor da Bárbara. Que tipo de
pessoa, no estado em que ela se encontrava, pararia no meio da estrada para
resgatar um cachorro? Eu não conseguia imaginar alguém de índole ruim
fazendo isso. E mais uma vez pensei que tudo poderia fazer parte da
encenação. Eu precisava de resposta e caso não as tivesse imediatamente,
com certeza, enlouqueceria.
E como se o universo estivesse conspirando a meu favor, para variar
um pouco, logo que abri o portão vi Eulália chegando ao prédio dela. Nem
pensei direito, apenas corri e chamei sua atenção.
— Dona Eulália? — chamei ao subir na calçada dela.
Ela se virou e me encarou com um sorriso confuso no rosto.
— Doutora Diana, tudo bem?
Senti o hálito forte, ela tinha bebido. Mas isso não era mais
novidade. Me concentrei para não fazer uma careta e respondi:
— Tudo. Como a senhora está?
— Levando, minha filha. Você sabe... como Deus quer.
— Entendo. A Ingrid está bem? Tem tido notícias dela? — perguntei
aleatoriamente, a primeira coisa que veio em minha cabeça.
Agi por impulso, nem sabia o que queria saber de fato. Eu só queria
encontrar qualquer resposta para as minhas dúvidas sobre a Bárbara.
— Nada bem. A minha filha está em uma situação bem crítica. —
disse e olhou para o lado, suspirando e tentando disfarçar uma lágrima. —
Mas tenho fé que ela vai se recuperar e em breve estará de volta.
— Sim, acredito nisso também. Fique tranquila. — disse por pura
pena, pois não acreditava que aquela louca fosse recuperar a sanidade.
Fiquei ali, parada, encarando aquela mulher em estado deplorável,
sem fazer ideia de como abordar o assunto que realmente me interessava,
mas felizmente não precisei me esforçar.
— Então, doutora, tenho certeza de que seu interesse real não é na
minha filha, mas sim na ex-namorada dela.
Senti o rubor queimar o meu rosto. Parecia uma criança que havia
sido flagrada em uma travessura, mas a verdade era que não tinha nenhuma
criança ali, e eu não tinha tempo a perder, então joguei a vergonha para o ar
e dei seguimento ao assunto.
— É, a senhora está certa. Mas como sabe?
— As pessoas têm essa mania de achar que porque sou alcoólatra
sou cega ou idiota. Eu sei que vocês estão de casinho. Já vi ela indo pra sua
casa várias vezes.
Rubor de novo.
— Dona Eulália, eu...
— Não precisa falar nada. Fique tranquila, eu não estou julgando
vocês. Não me entenda mal, eu amo a minha filha, quero o bem dela. Mas
não sou aquele tipo de mãe que não enxerga os defeitos dos filhos. A
Bárbara é uma boa menina, merece ser feliz. Comeu o pão que o diabo
amassou nas mãos da Ingrid, então não a culpo por querer seguir em frente.
— Mesmo assim eu lamento por tudo.
— Eu acredito. Só te peço um favor, tire-a logo de casa. Não quero
que a Ingrid tenha que lidar com ela quando voltar. Vai ser melhor pra todo
mundo assim.
— Tudo bem, pode deixar. Até logo, dona Eulália. Melhoras pra sua
filha.
— Até logo, doutora. Obrigada!
Tudo o que me restou foi me despedir e sair. Por mais que eu
quisesse saber mais sobre a relação da Bárbara com a Ingrid, aquela
situação estava sendo constrangedora demais. Entretanto o mais importante
eu ouvi, mais uma vez tive uma confirmação de que a Bárbara estava em
um relacionamento abusivo.
Voltei para o meu prédio e peguei o carro para sair. Primeiro passei
em uma loja de animais e comprei comida, uma caminha e uma coleira para
o Lecter, depois fui em uma farmácia comprar medicamentos e material
para trocar os curativos da Bárbara.
Na saída, dei de cara com uma loja de celulares e resolvi entrar.
Comprei dois aparelhos com chips pré-pagos. Um para mim, pois estava
decidida a não usar mais o meu, e o outro para Bárbara. Se eu estava
disposta a pagar para ver e ficar com ela, precisava encontrar uma forma de
nos comunicarmos quando estivéssemos longe.
Voltando para casa, recapitulei todos os últimos acontecimentos na
tentativa inútil de encontrar uma resposta sobre qual deveria ser o meu
próximo passo. Fugir parecia ser o mais correto, mas e se não fosse? Além
do mais, havia muita coisa envolvida, eu não poderia simplesmente sair
correndo.
Eu estava presa em um labirinto cheio de armadilhas e todos os
caminhos que eu poderia seguir pareciam ameaçadores.
— Pensa, Diana, pensa...
Parei o carro no estacionamento de uma padaria e peguei o celular
do tio Augusto.
— Vamos lá, garota. Coragem!
Respirei fundo e liguei de novo para o tal Joel Toledo, que me
atendeu logo na primeira chamada.
— Diana!
A voz dele era tão mansa e abafada que até parecia uma pessoa com
insuficiência respiratória falando.
— Quero falar com o meu tio.
— Ok. Aguarde, ele vai entrar em contato em breve.
Antes que eu pudesse falar mais qualquer coisa, ele desligou. Fiquei
encarando o celular com cara de idiota. Meu coração não sabia mais o que
era bater de forma compassada, a adrenalina não me largava mais.
Liguei para o Gabriel.
— Alô!
— Sou eu. Como ele está?
— Quebrado, mas bem. Que número é esse?
— Peguei um novo. Achei mais seguro.
— Concordo. Acho melhor você não vir por aqui hoje, liga pro Jales
e avisa. A imprensa montou um circo, e seu velho está adorando ser a
atração principal. Está acusando os inimigos políticos.
— Típico dele.
— E como está a sua paciente?
— Melhor. Vou ligar pro Jales, mas acho que ele não vai gostar
nada.
— Cara, se você aparecer por aqui nem vai conseguir trabalhar, os
abutres vão montar em você querendo informações. Ele vai entender, deixa
comigo.
— Tá bom. Não estou com cabeça pra trabalhar mesmo. Quando o
velho sai?
— Estou tentando mantê-lo aqui o máximo possível. Quanto mais
tempo ficar, melhor pra você. Mas acho que amanhã de manhã vou ter que
liberar de um jeito ou de outro. Você já sabe o que vai fazer?
— Ainda não. Liguei pro Joel Toledo de novo e disse que queria
falar com o meu tio. Ele falou pra eu aguardar o contato.
— Então você vai mesmo fugir?
— Ainda não sei, mas por mais que eu tente encontrar outra saída,
não acho. Então é isso ou ceder à chantagem.
— Isso é uma grande merda, Di. Mas relaxa, vai dar tudo certo.
Espera a ligação do teu tio, acho que nele você pode confiar.
— Espero que esteja certo. — falei, suspirando.
— Eu sempre tô, gata! Se liga, porque quando eu chegar em casa
devo encontrar mais informações no HD. Te ligo.
— Tá bom. Obrigada, Biel!
— Tâmo junto, Di! Beijo.
— Beijo.
Em casa, dei água e comida para o Lecter e o acomodei em sua nova
cama. Luís Otávio não estava por lá, devia ter ido dar uma volta para
desestressar.
Entrei no quarto e vi Bárbara dormindo profundamente. Sua
presença ali já me era tão familiar que não conseguia mais imaginar como
seria deitar naquela cama sem ela. Lembrei do pedido de Eulália para que
eu a tirasse da casa da Ingrid, como se eu tivesse me tornado responsável
por ela... e de certa forma era assim mesmo que eu me sentia.
Ela se mexeu e gemeu de dor, ainda adormecida. Me aproximei e vi
o suor em seu rosto. Pus a mão em sua testa, estava ardendo em febre e
aquilo me preocupou.
Fui pegar o termômetro e acabei esbarrando e derrubando a mochila
dela, que estava em uma mesinha. O fecho estava aberto, e uma parte do
conteúdo se espalhou pelo chão. Agachei para recolher tudo e guardar e vi
um caderno.
Olhei para ela, que se remexia, mas ainda estava adormecida. Deixei
a curiosidade me dominar e peguei o objeto. Quando abri, minha surpresa
não poderia ter sido maior. Tinha páginas e páginas de desenhos meus, em
diversas posições, na varanda, na cama, em lugares que eu sequer havia
estado. Sorri involuntariamente ao sentir aquela pequena felicidade em
meio a todo aquele caos.
Guardei tudo e peguei o termômetro infravermelho. Voltei para a
cama e o aproximei de sua testa. Me assustei com os 39,5 graus de febre.
Descobri seu tórax e vi o hematoma na costela mais roxo do que antes. Me
preocupei com aquilo. Se não a tratasse de maneira mais eficaz precisaria
levá-la ao hospital.
Resolvi acordá-la para fazer um acesso venoso, pois o efeito dos
remédios seria mais rápido e eficaz dessa forma.
— Bárbara! — chamei baixinho, tocando suavemente em seu
ombro.
Ela começou a resmungar algo ininteligível. Insisti:
— Bárbara, acorda!
— Seu desgraçado, larga ela. — Ela falava ofegante, de olhos
fechados, enquanto se remexia e gemia.
Acho que estava delirando.
— Bárbara, sou eu. Acorda!
— Deixa ela em paz ou eu te mato, seu filho da puta. Eu juro que
mato você...
Ela definitivamente estava delirando, provavelmente revivendo a
briga com o Afrânio. Aquilo me preocupou, pois ela estava se agitando
cada vez mais. Eu precisava medicá-la rápido, mas não conseguiria fazer o
acesso com ela delirando e se debatendo daquela forma.
Corri para a cozinha e pus água fria em uma tigela. Peguei duas
toalhas de rosto e voltei para a cama. Fiz compressas nos ombros e no
tronco. Aos poucos os delírios foram parando e o corpo dela se aquietando.
Retirei as compressas e a sequei com outra toalha. Ela começou a
abrir os olhos devagar. Piscava, meio confusa, com a respiração pesada.
— Oi...
— O que tá acontecendo?
— Você estava com febre alta, fiz compressa pra baixar. Como se
sente?
— Como se tivesse sido espancada.
Eu sorri involuntariamente. Mesmo naquela situação, ela ainda
encontrava espaço para tentar descontrair.
— Boba! Vou fazer um acesso em você, aplicar medicação direto na
veia. E vai tomar soro também, precisa se manter hidratada. Ok?
— Tá bom. Como você está?
— Bem. Mas chega de papo, você precisa descansar. — falei e fui
arrumar o material que precisaria para medicá-la.
Preparei tudo, apliquei a medicação e troquei os curativos.
Verifiquei a temperatura e a febre tinha baixado. Fiquei mais tranquila, pois
controlaria com medicação.
Ela estava sonolenta e percebi que lutava para não dormir.
— Fecha os olhos, descansa.
— Não, quero aproveitar enquanto você está aqui. Daqui a pouco
vai trabalhar.
— Eu não vou. Vou ficar aqui com você, fica tranquila.
Ela sorriu já fechando os olhos.
— Obrigada! Tô ficando mal-acostumada com os seus cuidados.
Eu apenas sorri e a vi abrir os olhos novamente. Ela me encarou,
ergueu a mão para acariciar o meu rosto e enquanto o fazia, falou:
— Eu só quero poder cuidar de você também, não doente, mas
cuidar para que não te façam mal. Eu te amo, Diana.
Aquela atitude me fez sentir algo muito bom e por mais que eu
tenha tentado, não consegui não acreditar na verdade que tinha nos olhos
dela.
— Eu também te amo, Bárbara. Agora descansa.
Ela sorriu e fechou os olhos. Adormeceu em poucos minutos.
Já estava escuro, fui para a sala e chequei o celular do meu tio, nem
sinal dele. Pensei em ligar para o Joel de novo, mas antes de conseguir, o
meu telefone novo tocou. Era o Gabriel, atendi.
— Alô!
— Di, você tá sentada? — falou em um tom nervoso.
— Gabriel, sem enrolação. Fala logo.
— Tá bom, mas depois, quando cair no chão, não diga que eu não
avisei.
— Você quer me matar de ansiedade? Anda, fala logo.
— Eu consegui quebrar a criptografia da pasta com o nome da sua
mãe.
— E daí? O que você achou?
— Diana, a sua mãe nunca teve câncer.
— O quê? — gritei e caí sentada no sofá.
32 – Visita

Bárbara

Acordei com um grito da Diana. Olhei em volta, desorientada, e vi a


luz da sala acesa, mas estava tudo em silêncio. Senti a garganta seca, mas a
parte boa foi perceber que aquela dor infernal estava indo embora.
Sentei na cama. O quarto estava escuro, senti algo preso na minha
mão.
— Que porra é essa?
Semicerrei os olhos para conseguir ver, acendi um abajur e vi um
acesso venoso. Por muito pouco não arranquei aquilo achando que ela
algum bicho que estava se aproveitando do meu estado.
Saí da cama e abri a porta, Diana estava falando ao celular.
— Você tem certeza disso, Gabriel? — disse trêmula e com choro na
garganta.
Franzi o cenho, preocupada, ela estava tão ligada na conversa com o
amigo que não me notou ali.
— Gabriel, isso é muito grave. Eu preciso ver esses arquivos com
calma. Eu vou enlouquecer... — falou com a voz embargada e deixou as
lágrimas fluírem. — Ele não pode ter feito isso com a minha mãe, não
posso acreditar nisso!
Diana estava desesperada. Sua voz presa mostrava que queria gritar.
Eu só queria saber o que estava acontecendo. Tentei me aproximar e
esbarrei em uma cadeira, chamando a atenção dela.
— Bárbara! Tá tudo bem?
— Eu te ouvi gritando e fiquei preocupada...
— Desculpa, foi só um susto que tomei. Volta pro quarto e deita.
Não pode ficar se esforçando. Daqui a pouco vou lá.
— Eu tô bem. O que está acontecendo, Diana?
— Por favor, volta pro quarto! Eu tô resolvendo um assunto sério
com o Gabriel. Daqui a pouco falo com você... — pediu com o celular no
peito.
— Diana, olha o seu estado, cara. Não vou ignorar isso, mas vou te
dar privacidade... — garanti e voltei para o quarto.
Respirei profundamente, finalmente não sentia que morreria se
fizesse aquilo. Entrei no banheiro. Não queria ficar ouvindo a conversa
dela.
Olhei para o meu próprio rosto no espelho. Lembrei que tive uns
pesadelos, mas na condição em que eu me encontrava não podia se tratar de
uma ação real. Eu acho, né?
No pesadelo, o maldito do Afrânio amarrava a Diana em uma cama
de hospital. Eu tentava defendê-la, e não conseguia. Foi horrível, pois o vi
tentando injetar algo nela. A coitada gritava, apavorada. Acordei com uma
sensação de impotência tomando conta de mim.
— Preciso sair dessa merda! — disse, tocando no local da maldita
costela quebrada, que apesar de não me impedir de respirar como antes,
ainda incomodava bastante e não me deixava mover o braço totalmente.
Vi o ferimento do meu rosto bem fechado. Tomei um banho,
coloquei um roupão dela e fiquei ali até que ela bateu à porta do banheiro e
abri. Seu rosto estava completamente vermelho, olhos inchados, eu apenas a
abracei com força, pelo menos até onde pude. Ela desabou em um choro
convulsivo, nos meus braços.
Eu não tinha certeza, mas sabia que aquele pranto tinha a ver com o
maldito do pai dela, então já comecei a maquinar algumas formas de tortura
para aquele desgraçado, desprezível.
E dessa vez ele não vai encostar um dedo em mim.
— Vem pra cama! — pediu com a voz rouca de tanto chorar.
Eu obedeci, mas a impedi de sair de perto.
— Me fala o que houve... — pedi, secando o rosto dela.
Notei sua resistência com aquele assunto, mas respirou fundo, pegou
o material de curativos sobre a mesinha e começou a me contar enquanto
cuidava de mim.
— Eu perdi a minha mãe para um câncer. Pelo menos eu achava que
essa era a história verdadeira. — falou, e franzi o cenho, tentando manter os
olhos abertos, pois ela colocava o curativo no ferimento do meu rosto
enquanto falava.
Acho que aquele gesto dela era mais para não ter que me encarar
enquanto contava, pois falava e evitava me olhar.
— Eu sofri tanto, mas sabia que esse tipo de fatalidade acontece...
— soluçou.
Mais lágrimas. Com apenas um olho fechado, eu sequei seu rosto.
— Desculpa.
— Relaxa. Desabafa!
Colocou o curativo e mencionou sair de novo.
— Diana! Confia em mim, por favor.
— Bárbara, eu estou completamente devastada com o que eu acabei
de descobrir. Não sei como agir. Não sei se devo confiar cem por cento em
você, sendo bem sincera.
Aquilo doeu no meu estômago, como um soco. Senti um misto de
coisas, mas a entendia.
— Por que está falando assim, Diana? Fala o que o seu amigo falou.
Só estou querendo saber por causa do seu estado. — Apertei a mão dela. —
Não sei o que está acontecendo...
— Eu acabei de descobrir que o Afrânio matou a minha mãe,
Bárbara! A pessoa mais importante do mundo pra mim foi morta por aquele
desgraçado, que enganou o mundo inteiro mentindo que ela estava com
câncer. Ela nunca esteve doente... — disse, exasperada, ofegando, lutando
contra o choro na garganta que queria sair.
— O quê? — Senti aquele mal-estar de sempre, cansaço e sono,
fechei os olhos, massageei minha nuca.
Tentei não sucumbir àquilo naquele momento, mas foi mais forte
que eu.
— Bárbara? — chamou, preocupada. — Bárbara! Fala comigo.
Eu abri os olhos e encarei aquele belo rosto surrado pelo passado e
pelo próprio pai.
— Eu vou matar ele, Diana!
— Calma... — Ela pediu de cenho franzido.
Saiu do quarto, assustada e quando voltou trazia um copo d’água.
Percebi sua mão trêmula quando me entregou o copo.
Eu bebi aquele líquido em temperatura ambiente e me levantei.
— Onde ele está? — perguntei e devolvi o copo.
Peguei a minha mochila à procura de uma roupa.
— Ele não vai mais tocar em você! — Eu disse decidida a sair dali e
dar fim naquele sofrimento dela.
Ela falava algumas coisas, mas eu não entendia nada, apenas queria
achar uma maldita roupa.
Eu só tinha três mudas, mas na mochila não havia nenhuma.
— Que droga!
Senti as mãos frias dela, segurarem o meus ombros e a olhei. Vi seus
olhos assustados.
— Bárbara! — gritou e me abraçou quando fechei os olhos. — Não
vou deixar você tentar mais nada contra aquele desgraçado. Para. Não quero
você envolvida com ele. Ele é muito perigoso.
— Tudo bem.
Tocou na minha testa. Senti que ela tremia. As mãos geladas
denunciavam o quanto estava nervosa.
— Você está suando frio. Precisa comer algo. Vou pegar uma roupa
pra você. — avisou e abriu o armário.
Eu sentei na cama, zonza, como se tivesse acabado de acordar.
— Veste isso. Suas roupas estão na secadora. Espera aqui que vou
buscar algo para comer.
— Diana! Eu tô bem. Posso preparar algo pra gente. Você não pode
sair assim...
— Você precisa descansar. Daqui a pouco é hora de remédio de
novo, não vai ficar forçando. Precisa se recuperar completamente. Eu estou
bem. Só estou sentindo como se tivesse acabado de perder a minha mãe,
mas não posso me deixar abater por isso. Preciso pensar num jeito de me
livrar de uma vez do Afrânio e colocá-lo na cadeia pra que pague por seus
crimes.
— Tudo bem. Mas se acalma. Toma uma água. — pedi e me
levantei.
Eu que nunca fui de abraçar, me vi apoiando a Diana com abraços e
gostando daquilo.
Ouvi seu suspiro e fiquei aliviada, mas sabia que no fundo ela estava
toda destruída. Eu precisava dar um fim no Afrânio, mas ela não podia
saber. Era emotiva demais.
Ouvi seu coração passar a bater mais compassadamente à medida
que os segundos passavam.
— Eu vou lá, tá? — avisou depois de mais calma. — Fica quietinha.
Eu já volto. — avisou e me beijou com carinho. — Ah, isso é pra você. —
disse e me entregou um celular. — A gente precisa ter uma forma segura de
se comunicar.
— Obrigada! — peguei o aparelho e recebi outro beijo dela.
— Até já! — pegou sua carteira saindo em seguida.
Pensando que ela voltaria rápido sentei na cama, olhei para o
celular, ouvi Luís miar na cozinha e fui lá.
Lecter tentava brincar com ele, mas ele soltava o ar de forma brusca,
o famoso chiado de fúria, para o coitado. Agachei devagar e chamei o Luís,
o gato seguia furioso com o irmãozinho. Lecter estava bem feliz, tentando
fazer amizade com aquele felino ciumento que não queria saber dele.
Notei que havia uma caminha e tigelas de comida e água para o
filhote.
Amo essa mulher!
— Luís, vem cá... — chamei, novamente, sentando no chão e
recostando as costas na parede.
O gato saiu do transe de fúria e veio em minha direção engolindo
saliva como se quisesse lubrificar a garganta. Fiz um carinho nele.
— Você precisa aceitar o Lecter. É teu irmão, cara. — avisei e o
deitei no meu colo.
Já havia se esquecido do cachorro quando puxei o filhote e o
coloquei perto dele. Quase houve morte, principalmente minha.
— Chega, Luís! Seu feio! — bradei com firmeza, sentindo dor na
costela, e o afastei de mim pegando o Lecter no colo.
O gato me xingou inteira na língua dele, ou no mínimo estava
evocando algum espírito satânico, pois emitia um miado grave com a
cabeça meio virada, corpo eriçado.
— Não tenho medo de você, não! — garanti e apontei o dedo para
ele, e chiou de novo. — Vem cá. Você é lindo!
Luís não aceitava mesmo outro bicho na casa dele. Coloquei Lecter
no chão e me levantei devagar, peguei biscoito de gato no armário e me
sentei novamente. Como o cachorro não estava tão perto, o gato se
aproximou e o afaguei dando um biscoito.
— Ele é seu irmão. Nada de briga ou vão os dois dormir na varanda.
Puxei o Junior novamente e segurei o Luís, dei um biscoito, ele
cheirou, chiou para o Junior e comeu o petisco.
— Ciumento!
Fiquei ali por um bom tempo conversando com os dois, tentando
selar a paz entre eles e nem vi o tempo passar. Diana estava demorando
muito.
— Que droga! — Larguei os bichos e lavei as mãos.
Fui à secadora, mas ainda estava em processo. Lecter deitou na
cama dele enquanto Luís se lambia. E eu precisava ir procurar a Diana.
Quando eu entrei no quarto para pegar o celular que ela havia me
dado e ligar para saber onde estava, ela entrou falando ao telefone. Eu parei
na porta do quarto.
— Gabriel, eu vou enlouquecer com toda certeza. Eu encontrei a
Lara em um restaurante aqui perto e ela me deu um recado do meu tio.
Colocou um pacote sobre a mesa enquanto falava.
— Não, ela só disse que eu precisava seguir as instruções dela... —
pausa para ouvir. — Que inferno, cara! Agora me deu uma imensa vontade
de sumir pra sempre. Se até a Lara, quem eu achava que pudesse estar fora
disso, está envolvida, um frentista pode ser mandado daquele desgraçado.
— Pausa — Como vou ficar calma, Gabriel? É impossível.
Ela andou pela sala enquanto ouvia o que ele falava, mexeu nos
cabelos.
— Tudo bem. Depois do que você me enviou eu não me surpreendo
com mais nada. Obrigada. Depois a gente se fala. Se cuida, por favor.
Ela se despediu e desligou.
— Desculpa a demora. Vem comer. Pode vir? Se não puder, eu levo
ao quarto.
Fui com ela à cozinha.
— Está tudo bem?
— Sim. Só mais novidades. — disse, ironicamente enquanto pegava
pratos e talheres. — Um amigo do meu tio entrou em contato com a
delegada da cidade para me dar instruções e uma possível proteção. —
meneou a cabeça negativamente.
Notei seu tom debochado, incrédulo e cansado.
— Eu virei uma coisa, um personagem de videogame. — comentou,
pegando o prato e o largou sobre a mesa.
Notei sua exaustão e me aproximei.
— Vem cá! — chamei e abracei. — Se você for mesmo um
personagem de videogame está perto de passar de fase. — falei em tom de
brincadeira e dei um beijo em seu rosto.
— Parece que o mundo resolveu desabar na minha cabeça. —
Respirou profundamente.
— Eu te ajudo a segurar esse mundo, tá? Já tô bem melhor dessa
costela, então logo vou estar forte de novo. Você é uma excelente médica,
Diana! E um ser humano incrivelmente forte. Eu não suportaria dez por
cento do que você já passou e passa na vida. — disse num tom suave
notando seu coração se acalmar e a olhei nos olhos. — Então não será essa
treta com o seu pai que vai te destruir.
— Obrigada. Mas você não conhece o Afrânio. Ele usou a surra que
você deu nele para ganhar a empatia do público. Está fazendo política em
cima do confronto de vocês. A impunidade é infinita.
Ela continuou o que estava fazendo e serviu o jantar. Franziu o
cenho olhando para o chão.
— O que houve com esse gato?
— Troquei uma ideia com ele!
Incrivelmente o Luís não estava querendo matar o Lecter.
— Como está se sentindo?
— Bem. Já respiro profundamente sem tanta dor.
Ela levantou a sobrancelha e meneou a cabeça. Ainda estava
preocupada, mas tentava não demonstrar.
Estávamos quase terminando de comer quando a campainha tocou.
— Está esperando alguém?
— Não. Mas acho que deve ser a Lara... — avisou, saindo da mesa e
finalizando sua refeição ali mesmo.
Limpou a boca e se dirigiu à sala.
— Você?
— Oi, Diana! — Ouvi aquela voz chata e forçada e saí da mesa.
— O que você está fazendo aqui, Marina? — Diana perguntou,
visivelmente aborrecida.
Eu cheguei à porta da cozinha e vi a visita já dentro do apartamento,
de costas para mim.
— Nossa! É assim que recebe as visitas de amigos que estão
preocupados com você?
— Desembucha, Marina. Não somos amigas.
— Vim procurar saber o que houve. Você nunca faltou ao trabalho,
nem quando ficou resfriada.
Diana mexeu nos cabelos, impaciente.
— Para de show! — insistiu, num tom rude demais para Diana.
— Ok. O doutor Afrânio quer que você vá visitá-lo na suíte dele no
hotel Lírio Palace.
— Claro! — respondeu com um sorriso sarcástico. — Você é a
menininha de recado dele, eu tinha me esquecido dessa ‘amizade’ de vocês.
— Fez aspas com os dedos ao pronunciar a palavra amizade.
— Não tem ‘amizade’ nenhuma, não seja maldosa. Sou só uma
admiradora do excelente trabalho dele.
— Lógico! São da mesma laia. Pois diga para o seu amiguinho que
eu não vou.
— Ele é muito genial, pois sabia exatamente qual seria a sua
resposta e mandou avisar que sabe onde estão todos os seus brinquedos e
vai botar fogo em todos eles, principalmente nos que você mais gosta.
Semicerrei os olhos ao ouvir aquilo. O desgraçado estava mandando
ameaça por aquela outra maldita.
33 – Veneno

Diana

Aquele escroto, imundo, demônio dos infernos era bem pior do que
eu poderia pensar. O simples fato de imaginar que o sangue dele corria
pelas minhas veias já estava sendo o bastante para me causar fortes náuseas.
— Agora ele manda ameaças através de mensageiros. Eu não
aguento isso. — falei, nervosa após expulsar Marina do meu apartamento.
Bárbara se aproximou e pôs as mãos sobre os meus ombros. Eu já
estava chorando de novo e nem tinha percebido. Senti os braços dela me
envolvendo lentamente e me deixei ser afagada por ela.
— Calma! Vai ficar tudo bem.
Ela me garantiu com um tom de voz suave e beijou meu rosto.
Sutilmente me conduziu ao sofá. Sentei e tapei a boca com as mãos,
tentando abafar os meus soluços. Estava sentindo falta da época em que eu
vivia na completa ignorância. Eu só queria que a minha vida voltasse ao
normal.
— Maldita hora em que aquele velho desmiolado apareceu baleado
naquele hospital. Que inferno! — comentei, me referindo ao tio Augusto.
Bárbara se sentou ao meu lado e acariciou o meu cabelo de um jeito
terno. Ela tinha essa dualidade comportamental que eu não conseguia
compreender direito. Confesso que fiquei muito assustada com a reação
dela quando contei sobre a minha mãe. Ela pareceu sofrer um tipo de
transformação. Seus olhos mudaram, o rosto assumiu expressões que até
então eu não conhecia. Ela massageava a nuca com força, parecia
completamente tensa e fora de si. Sacudi seus ombros na tentativa de tirá-la
daquele transe e fui retribuída com um olhar gelado, que me fez querer
largá-la de imediato. Fiquei ainda mais assustada quando ela falou com
firmeza que mataria o Afrânio.
Aos poucos, aquele olhar pesado foi abrandando. Mas ela continuou
agindo de forma estranha, coçava a nuca com frequência enquanto
procurava uma roupa para vestir, repetindo que iria atrás do bandido.
Eu tentava acalmá-la em vão, pois ela parecia não me ouvir. Precisei
segurá-la com as duas mãos para conseguir fazer com que ela focasse em
mim. Ela arfava, eu podia sentir o coração batendo acelerado. Um tempo
depois, ela finalmente se acalmou e pareceu voltar ao normal.
Passei a achar que ela tinha algum transtorno de personalidade, mas
também havia a possibilidade de apenas estar surtando por causa dos
últimos acontecimentos. Quem não surtaria? Cada um reage de um jeito ao
estresse, talvez aquela seja a forma dela.
Enfim, o fato é que aquela Bárbara de olhar obscuro não tinha
absolutamente nada a ver com a que estava sentada ao meu lado, no sofá.
Naquele momento, ela mais parecia um anjo protetor, tentando fazer com
que eu mantivesse o controle.
Mas eu não tinha cabeça para pensar nas oscilações de
comportamento dela naquele instante. Eu precisava pensar e tomar uma
decisão sobre o que fazer.
Lembrei do que aconteceu quando saí de casa para comprar comida.
Logo que entrei no carro, ouvi o sinal de mensagens do celular. Era o
Gabriel me enviando os arquivos do HD sobre o assassinato da minha mãe.
Sentei no banco do motorista e antes de sair comecei a ver cada um.
Ao que me pareceu, o Afrânio estava supondo que a minha mãe
tinha um caso com o tio Augusto, pois nos arquivos havia várias fotos dos
dois juntos. Não era nada concreto, não tinha cenas de beijo nem nada do
tipo, mas os dois estavam muito próximos e os olhares entregavam um
sentimento que ia além de uma simples relação entre cunhados.
Eu sempre notei aquela ligação entre eles, mas como era criança,
não via maldade. Agora tudo parecia fazer muito sentido. De todo modo,
não julgo a minha mãe por isso. Só quem conheceu o Afrânio de verdade e
teve o desprazer de conviver com ele sabe o quanto é importante ter
válvulas de escape.
Bom, mas isso não foi o mais chocante. Minha revolta foi quando
abri os arquivos seguintes e vi que o nódulo na mama dela não era maligno.
Era um fibroadenoma, um tipo de tumor benigno muito comum, que pode
ser tratado muitas vezes sem intervenção cirúrgica, garantindo uma vida
completamente normal para a paciente.
Acontece que o diabo de barba, em parceria com o pai da Marina,
que, coincidência ou não, foi o mastologista que tratou o caso da minha
mãe, alterou o resultado da biópsia e fez com que a pobre coitada
acreditasse que estava com câncer de mama em estágio avançado. Eles a
submeteram a uma mastectomia completa e depois iniciaram o tratamento
falso de quimioterapia, onde passaram a injetar pequenas doses de tálio, um
elemento químico de uso proibido por ser altamente tóxico. Resumindo, ele
envenenou a minha mãe aos poucos, até a morte, e forjou todos os laudos
para se safar do assassinato dela.
Eu não aguentei a pressão. Depois que li os arquivos, abri rápido a
porta do carro e corri para a lixeira mais próxima. Vomitei até o suco biliar.
Aquilo me devastou, eu levei algum tempo para conseguir cessar as
lágrimas e os soluços e levantar dali, mas o fiz, pois precisava levar comida
para a Bárbara e ficar ao lado dela. Ela não estava nada bem nem física nem
emocionalmente.
Eu tinha que manter a calma e frieza, pois talvez o nosso futuro
dependesse disso, mas a minha vontade era de procurar aquele demônio e
jogar tudo na cara dele, ignorando todo o perigo que eu passaria a correr,
com certeza.
No caminho para o restaurante, decidi que fugiria dali naquele dia
mesmo, levando a Bárbara e o Gabriel comigo. Mas meus planos foram por
água abaixo quando Lara me abordou no restaurante, enquanto eu esperava
a comida que havia pedido.
— Diana?
— Lara? Quanta coincidência! Tá bom que essa cidade é pequena,
mas estamos nos esbarrando mais do que o normal, não acha? — falei,
forçando um tom de brincadeira.
Ela retribuiu o meu sorriso com a mesma falsa empolgação e se
sentou na minha frente.
— Andou chorando? — perguntou.
— Não. É só alergia. Espirrei demais.
— Sei... então não tem nada a ver com o seu pai, né?
— O q... do que você tá falando? — gaguejei, nervosa.
— Calma! Fica tranquila, eu tô do seu lado.
— Do meu lado? Como assim? O que quer dizer com isso, Lara? —
indaguei, estava com os nervos à flor da pele.
— Diana, esses nossos encontros não são aleatórios. Eu tenho te
vigiado, para garantir a sua segurança.
Eu fiquei completamente perdida com aquela informação. Fiquei
muda. Parecia que eu estava dentro de um daqueles filmes estranhos sobre
crimes, onde todos, até os menos suspeitos, estão envolvidos em alguma
conspiração maluca. Minha vontade naquele instante foi de morrer. Seria o
único jeito de jogar fora toda a angústia que eu estava sentindo. Senti ânsia
de vômito novamente e corri para o banheiro. Lara me acompanhou e
segurou o meu cabelo enquanto eu vomitava.
Levantei-me e fui para a pia, onde chorei por um momento, tentando
pôr para fora tudo aquilo.
Lavei o rosto e coloquei água na boca na intenção de tirar um pouco
do gosto amargo de bile. Apoiei as duas mãos ali e respirei fundo, de cabeça
baixa. Sentia o corpo inteiro tremer. Todas as minhas terminações nervosas
estavam reagindo aos acontecimentos repentinos. Minha cabeça doía, com
certeza em resposta à pressão de tanta informação.
— Calma, Diana! Eu imagino o que deva estar sentindo, mas você
precisa se acalmar. — pediu, enquanto eu suspirava, tentando me recompor.
— Quem é você, Lara? E o que quer comigo? Meu pai te mandou
também? Por que ele simplesmente não me mata logo e acaba com isso? —
perguntei com raiva, puxando papel toalha do suporte na parede.
— Deixa de falar besteira, Diana! E, não, eu não trabalho para o seu
pai. Deus me livre! Ele é um bandido perigoso. Jamais estaria do mesmo
lado que ele. Eu trabalho com o Joel Toledo e tenho ordens diretas do seu
tio, o doutor Augusto Sobreira, para cuidar da sua segurança.
— E como vou saber que está falando a verdade? — indaguei com
firmeza, jogando o papel usado na lixeira.
— Você sabe que eu estou. Eu sei que você tem uma boa intuição.
Mas se quiser, ligue para o Joel e confirme.
Peguei o celular no bolso e pensei em ligar, mas parei ao perceber
que não sabia se poderia confiar no Joel também. Lara tinha razão, naquele
momento, eu só tinha a minha intuição.
— Tá, mas por que só agora você me contou isso?
— Eu sei que você e o Gabriel estão com o HD do doutor Augusto e
pelo seu estado imagino que já tenha descoberto muitas coisas sobre o
crápula do seu pai.
— E daí? Isso não explica nada.
— E daí que preciso garantir que você não haja por impulso. O seu
tio tem tentado proteger você de todas as formas, mas descobriu que o
Afrânio sabia de todos os seus passos. Não planejou que você encontrasse
esse HD. Ele só queria saber como você vivia, quantas pessoas do Afrânio
estavam perto de você, mas sofreu um atentado logo que chegou aqui. E o
resto você sabe, pois cuidou dele. Por isso peço que se mantenha fria. O
Afrânio é perigoso e sabe manipular muito bem quem está com ele nisso...
só resolvi entrar nesse assunto com você agora por causa do seu estado de
nervos, temo que faça alguma besteira.
— Está com medo que eu o confronte? Pode ficar tranquila, eu sou
ingênua, mas não sou estúpida. Apesar da imensa vontade de fazer isso, eu
sei do que ele é capaz e não estou disposta a pagar pra ver.
— Fico feliz em ouvir isso. Mas não temos muito tempo. Preciso te
tirar dessa cidade e te levar para um lugar seguro.
— Obrigada, mas acho que posso me cuidar sozinha. — retruquei,
desviando o olhar do dela na falsa intenção de analisá-la a partir dali.
— Ah, você acha? — perguntou, irônica. — Diana, seu pai é um
homem muito perigoso. Ele tem uma das armas mais poderosas que um
homem pode ter: a influência. Isso põe todos o que estão contra ele em um
risco absurdo, incluindo a mim. Sabe que não sou a única te vigiando, né?
— Sei... tem a Marina, a Ingrid, que está fora de cena, mas...
— Sim, tem essas duas aí, mas tem muito mais gente. Pessoas
invisíveis para você, andando nas ruas, te seguindo por toda a parte,
repassando a ele cada passo que dá.
Não resisti, precisei perguntar:
— A Bárbara?
— Não, ela não. Embora não seja exatamente uma santa. Não
sabemos se podemos confiar nela, mas pelo menos temos a certeza de que
não está envolvida com o seu pai. Ao que tudo indica, ela é neutra.
Ouvir aquilo, mesmo sem saber se podia confiar na Lara, me trouxe
grande alívio. Eu amava a Bárbara e não suportaria descobrir que tudo entre
nós era falso. Segurei o choro que tentava voltar, eu estava esgotada
emocionalmente. Lara tocou meu ombro.
— Calma, nós vamos te manter a salvo. Temos um plano, vamos
tirar você daqui em segurança e vamos conseguir acabar com esse
desgraçado. Desmanchar essa facção criminosa liderada por ele e fazer com
que apodreça na cadeia, pagando por cada crime que cometeu. Depois disso
sua vida vai voltar ao normal.
— Eu gostaria de estar confiante como você, mas a cada minuto
tenho menos certeza de que vai ficar tudo bem.
— Eu entendo o seu sentimento. Mas confie em mim, vai dar tudo
certo. Você só tem que seguir exatamente as orientações que eu te der.
— Ok, Lara. Suponhamos que eu acredite em você, o que eu devo
fazer?
— Por enquanto, ceda à chantagem dele. Deixe-o achar que você vai
se casar com o tal neto do político.
— Mas se você diz que sou vigiada o tempo todo, não acha que ele
vai saber que você está me orientando?
— Não. Ele não sabe que trabalho com o Toledo. Fiz tudo para que
a nossa amizade parecesse casual... quer dizer, essa parte aqui foi acidente
mesmo. — falou apontando o braço na tipoia.
Eu sorri de lado, mas logo voltei a ficar séria.
— Tá bom, mas e daí? E depois que eu aceitar? Ele vai querer que
eu vá embora para o Rio.
— Peça um tempo a ele para se organizar. Alguns dias apenas, para
que ele não desconfie. É importante também não mudar bruscamente o seu
comportamento com ele. Encontre uma desculpa plausível. É o tempo que
preciso para arquitetar a sua fuga.
— E a Bárbara? O Gabriel... e o meu gato...
— Diana, vai ter que deixá-los para trás.
— Como assim, deixá-los para trás? Eles são a única família que
tenho. Não, isso está fora de cogitação. — falei, aborrecida. — Não vou a
lugar nenhum sem eles ou pelo menos sem garantias de que ficarão bem.
Eu a vi soltar um suspiro exasperado e levar a mão saudável à
cabeça.
— Ok, vou conversar com o Joel para ver como podemos inclui-los
nos planos. Mas enquanto isso, tenha cuidado. Não dê um passo em falso
sequer. Segure a onda, seja fria. Não deixe as emoções falarem por você. Eu
te ligo em breve para dar mais orientações. Agora precisamos ir. Se cuida.
Saí daquele banheiro como se estivesse dopada. Sentia o chão macio
sob os meus pés. Peguei a comida e comprei uma garrafa de água com gás,
bebi e senti aquele gosto ácido arder enquanto passava pela minha garganta.
Entrei no carro e respirei fundo com a testa apoiada no volante.
Depois da visita da Marina. Fiquei um tempo tentando me
recompor. Fui preparar os medicamentos da Bárbara e depois apliquei.
Eu a deixei na cama e entrei no banheiro para tomar um banho.
Passei quarenta minutos embaixo da água, como se quisesse que ela lavasse
toda aquela sujeira que envolvia a minha vida.
Saí do banheiro e vi Bárbara dormindo. Fui verificar se a porta da
varanda estava fechada e vi uma movimentação no apartamento da Ingrid.
Franzi o cenho e fiquei atrás da cortina, observando. Senti o corpo gelar
quando vi uma silhueta feminina lá dentro. A cortina dela me impediu de
ver com clareza quem era.
Pode ser a Eulália. — pensei, mas fiquei ali.
Quando estava quase desistindo daquela vigília vi a silhueta
inconfundível da Eulália no mesmo ambiente.
— É a Ingrid! — soltei, assustada e olhei para Bárbara, ela dormia
profundamente.
34 – Coragem

Bárbara

Acordei e senti que tinha a mão entrelaçada à da Diana, que me


abraçava por trás.
Acho que não me acostumaria mais a dormir sem ela ali comigo.
Tentei não me mexer, ela tinha o sono muito leve. Olhei em volta e notei
que ainda estava escuro. Engoli saliva, e Diana se mexeu, beijou meu
ombro.
— Está se sentindo bem? — perguntou, com a voz rouca.
— Sim. Só tô com sede. — garanti e me sentei na cama.
Estava me sentindo zonza. Mas antes que ela se levantasse, fui à
cozinha e peguei uma garrafa de água. Junior dormia de patas para cima.
Luís parecia uma almofada redonda. Quando voltei ao quarto, Diana estava
fechando a cortina.
— O que houve? — perguntei e tomei quase metade da garrafa de
água.
— Só verificando se está bem fechada. — Ouvir aquilo trincou meu
coração. Ela estava com medo.
— Você dormiu bem? — perguntei e segurei sua mão, puxando-a
para a cama.
— Sim. Achei que nem fosse conseguir. — admitiu, tocando a
minha testa para verificar se eu estava com febre.
Puxei seu rosto com as duas mãos e a beijei.
— Humm! Gelado! — falou, sorrindo, e me beijou de volta.
Apesar de não demonstrar, a tensão dela ainda era bem visível.
— Que horas são?
— Três e vinte. — respondeu, entrando embaixo das cobertas de
novo e me chamou com o braço esticado.
Movi o meu braço e não senti mais dor nenhuma no abdome. Deitei
e me aninhei nas costas dela. Suguei o cheiro que me fazia delirar e enchi
aquele pescoço de beijos enquanto massageava seus ombros tensos.
— Isso é bom! — sussurrou, quase gemendo.
— Relaxa! — pedi e a vi esticar o pescoço para facilitar o meu
acesso.
Continuei com a massagem e os beijos por alguns minutos, até que
ela se virou, interrompendo.
— Obrigada! — agradeceu com um sorriso e um olhar terno.
Eu amo muito essa mulher. Caramba!
— Você é tão linda, sabia? Tão cheirosa... — sussurrei e procurei a
boca dela. — E eu te amo tanto!
Acariciei aquela língua quente com a minha, enquanto apertava o
seio dela por cima da blusa. Depois de toda aquela tensão que passou,
merecia mais do que uma massagem para relaxar. E eu estava morrendo de
saudade.
Deitei sobre ela sem interromper o beijo e senti suas mãos apertarem
as minhas costas. Gemi em sua boca e percebi que ela se conteve, mas não
parou.
— Machucou?
— Não... — respondi e voltei a beijá-la.
Encaixei meu corpo no dela e afastei suas pernas com o meu joelho.
Apertei sua coxa. Ela conduziu o beijo segurando os cabelos da minha nuca
com firmeza. Desci a mão, trilhando com as pontas dos dedos o caminho
até seu sexo, que já me esperava pronto. Quente. Quase enlouqueci quando
ouvi o gemido abafado dela, que interrompeu o beijo para emitir por entre
os dentes aquele som sensual que me enlouquecia.
Meus dedos deslizaram facilmente para dentro dela, que gemeu
novamente e puxou a coberta para fora da cama, pois o calor começou a
incomodar. Afastei nossos corpos e a vi se sentar na cama. Tirou minha
blusa com uma facilidade inacreditável. Mencionei fazer o mesmo, mas
antes de conseguir, ela o fez. Vi aqueles mamilos rosados e eriçados me
convidando para tocá-los e ofeguei involuntariamente. Ela puxou o ar
quando eu os envolvi com as palmas das minhas mãos.
— Me abraça, quero te sentir em mim. — pediu, enquanto
pressionava as mãos nas minhas, fazendo com que eu apertasse mais forte
seus seios.
Deslizei as mãos para cima e colei meu corpo quente no dela,
deixando transparecer todo o desejo que eu sentia. Suas mãos passaram a
explorar o meu corpo com a intimidade de quem já conhecia cada
pedacinho de mim. Senti minhas nádegas sendo apertadas e logo em
seguida aqueles dedos hábeis invadiram o meu sexo sem pedir licença.
Suguei a língua dela com vontade e soltei o ar pela boca, em um gemido
sussurrado, enquanto ela beijava meu pescoço com voracidade.
Desci a boca pelo seu colo e passei a língua em um dos seios,
deslizando suavemente. Depois, quase a fiz gritar quando suguei forte.
Repeti o gesto no outro e desci a boca pela barriga, distribuindo beijos e
mordidas. Ela reagia às minhas carícias rebolando e gemendo... me
deixando completamente louca. Segurou o meu cabelo quando minha
língua tomou o seu sexo, que já pulsava à minha espera. Explorei cada
pedacinho dela e me deliciei ao ver seu rosto tomado de desejo. A boca
entreaberta, como se esperasse o momento certo de deixar transbordar o seu
prazer.
Eu estava morrendo de saudade daquele gosto. Saboreei sem pressa
e a penetrei lentamente. Deslizei por sua umidade e logo senti as
contrações. O corpo dela começou a dar pequenos espasmos. Aquela foi a
minha deixa para tornar as coisas mais intensas. Agarrei sua coxa e passei a
penetrá-la mais forte e mais rápido. Minha língua acompanhou o ritmo e
logo ela gemeu alto, fazendo aquele som rouco ecoar por todo o ambiente.
Em seguida eu a vi gozar, se contorcendo e se controlando para não
arrancar os meus cabelos.
Ela ainda ofegava quando deitei, sorrindo sobre seu corpo suado e a
abracei. Nossos corações batiam descompassados, mas sintonizados um no
outro.
Fizemos amor até cansar e dormimos enroscadas. O sorriso genuíno
que ela me dava depois do amor me deixava muito feliz e foi com aquela
visão que adormeci.
Acordei com o barulho da rua. Não era barulhenta, mas ouvi vozes e
carros. Diana beijou minha testa e abri os olhos.
— Bom dia, meu amor!
— Bom dia! Eu te amo... — disse e a beijei.
— Também te amo. — me beijou suavemente. — Preciso falar com
o Afrânio...vou ao hospital e depois vou ao hotel dele.
— O que vai falar com aquele bandido? — perguntei, subitamente.
Ela não tinha nada que se aproximar do miserável.
— Eu conversei com a Lara ontem, ela está do nosso lado. Vai me
ajudar a sair daqui. E...
— Você vai embora? — perguntei, já temendo a resposta. — Você
sabe quem é essa Lara, Diana? Confia nela assim?
— Bárbara, confesso que confiar está bem longe de mim, mas eu
preciso. Eu não posso, simplesmente, me deixar abater pelas ameaças do
Afrânio. Ameaças que ele cumpre...
Fechei os olhos tentando evitar que lágrimas saíssem. Não queria
bancar a menininha para ela. Nunca fui fraca assim, mas aquela
possibilidade de ficar sem ela por tempo indeterminado, daquele jeito, me
fez querer chorar.
— Ei...
— Desculpa. Eu só não quero ficar longe de você. Já sabe pra onde
vai?
— Ainda não. A Lara falou pra eu pedir um tempo a ele, para que
ela consiga arrumar tudo. Precisa ser muito seguro porque se ele desconfiar
pode ser o fim de tudo.
— Como vai fazer isso? Ele quer que você se case...
Ela franziu o cenho e fechou os olhos, respirando fundo.
— Ela disse pra eu fingir que estou cedendo à chantagem dele. Acho
que pode dar certo.
— Não pensei que fossem tão amigas.
— Na verdade não somos amigas, éramos conhecidas, apenas. Eu
achava isso, então ela me disse que é espiã do meu tio.
Eu achei aquilo muito estranho, mas eu mesma era espiã do velho,
embora tivesse perdido o interesse em ter contato com ele. Passei as mãos
nos cabelos.
— Quando contou sobre a chantagem pra ela? Desculpa, mas acho
isso estranho demais...
Ela passou as mãos no rosto e soltou o ar exasperadamente pela
boca. Saiu da cama.
— Eu sou uma tremenda imbecil, Bárbara! — falou, num tom alto
demais.
— Por quê? O que houve?
— Eu nunca sequer mencionei nada para a Lara. — Andou de um
lado para o outro com uma mão na cintura e a outra nos cabelos enquanto
pensava.
— Calma. Quem mais sabia disso?
— Só você, o Gabriel e o miserável do Afrânio... que droga!
— Calma. Toma um banho. Vou preparar um café pra gente. Não
faça nada sem pensar. Se essa Lara estiver mentindo, você vai saber, mas
pra isso precisa manter a calma.
— Tudo bem.
Ela respirou fundo e entrou no banheiro. Fui à cozinha preparar o
nosso café da manhã, pensando em tudo o que vivemos e que em breve
acabaria.
Viver naquela cidade estava fora de cogitação. Voltar para o Rio era
o mais viável, mas como fazer isso? Como seguir sem ela?
— Não!
Preparei a ração do Luís, que já se roçava nas minhas pernas, e
preparei a do Lecter também, que brincava com o próprio rabo na caminha
dele.
Antes de eu terminar de colocar a mesa, ela apareceu na porta da
cozinha já arrumada para sair.
— Você vai comigo.
— Tá, eu tomo banho rapidinho...
— Não! Falo quando eu for embora daqui. Quando fugir. — Foi
firme, segurando as minhas mãos.
Saber daquilo me deixou leve.
— Claro que eu vou! — Eu sorri sem perceber e a abracei
subitamente.
— Jamais largaria você aqui. Principalmente agora...
— Obrigada!
— Bárbara, tem uma coisa que precisa saber. — falou, preocupada.
— O que foi? Por que essa cara? Fala!
— A Ingrid está de volta.
— O quê?
Aquela informação fez meu corpo gelar imediatamente.
— Eu vi uma movimentação no apartamento dela ontem e a vi no
terceiro andar, junto com a dona Eulália.
— Caraca! Ela deve ter fugido. O Afrânio tem rabo preso, jamais
permitiria que ela saísse.
— E se ele permitiu para atingir você e a mim?
O pior era que tudo podia acontecer. Que inferno!
— Que droga! Não tenho mais nada na casa dela, mas é louca. Tem
cuidado, tá?
— Tenha cuidado você, Bárbara. Eu vou conversar com o Afrânio,
mas antes vou ligar para a Lara. Se ela não tiver uma explicação muito
convincente sobre como descobriu a chantagem, eu volto aqui e vamos
embora sem ela nem ficar sabendo. Você vai ficar bem?
— Vou. Pode ir tranquila. Agora come. — mandei e a vi sentar.
Terminei de servir e sentei também. Aquela notícia me deixou
apreensiva. A Ingrid era capaz de tudo.
— Não vai comer?
— Ah... sim. Só me distraí.
— Vejo que está se sentindo bem melhor. O tratamento vai até
amanhã... continue de repouso, por favor. Sem forçar muito, tá?
— Tudo bem.
Terminamos de comer e ela pegou um celular. O quarto que eu via.
— Olha só, nesse celular tem o número do Joel Toledo.
Aparentemente, ele trabalha para o meu tio.
— Por que está falando isso, Diana? — perguntei, preocupada.
Aquele comentário parecia último pedido. Se eu não voltar em meia
hora, chama a polícia!
— Calma. Eu vou ligar pra você depois que conversar com a Lara e
vou dizer se você liga ou não pra ele.
— Ok, mas pra quê? Pelo amor de Deus, Diana.
— Pra pedir ajuda, Bárbara. Fica tranquila. O Afrânio não vai mais
me enganar...
Recebi o celular das mãos dela. Suspirei profundamente,
preocupada.
Antes de sair ainda me deixou recomendações de ligar se precisasse
e pediu que eu me acalmasse, que tudo ficaria bem. O problema era que o
seu tom de voz não me convencia.
Fechei a porta quando ela saiu e fui ao quarto, olhei por trás da
cortina e vi a janela ainda quebrada aberta. Dez minutos depois, vi Eulália
sair da casa dela e chegar ao prédio da Diana, tocou a campainha do apê. Eu
a atendi e pedi que subisse.
— E aí, Eulália? — indaguei olhando em seus olhos.
A mulher já estava alcoolizada, hálito de uísque. Visivelmente
abatida.
— Oi, Bárbara, o que houve com você, menina? — perguntou,
assustada ao ver os hematomas no meu rosto.
— Sofri um acidente, mas já estou me recuperando... obrigada! O
que tá rolando? Por que me procurou?
— Ingrid recebeu alta da clínica. Quer falar com você...
— Recebeu alta, Eulália? O doutor Afrânio já sabe disso?
— Ela disse que ele não precisa saber. Eu ia ligar pra ele, mas ela
quebrou o meu celular. Já quebrou muita coisa em casa... enfim, só estou
dando o recado. — disse e notei seus olhos encherem de lágrimas.
Não sou de ter dó de gente, mas naquele momento senti uma imensa
pena da Eulália.
— Eu vou lá... obrigada. Tomou café?
— Não, não tenho fome. — respondeu e saiu.
Fechei a porta e respirei fundo. Aquele mal-estar chegou com força
em mim. Fechei os olhos, tentando me manter acordada. Joguei uma água
no rosto, troquei de roupa e fui ao apartamento da Ingrid. Eulália entrou
junto comigo, acho que temia que ela fizesse algo contra mim.
— Saia, mãe! Preciso conversar com a Bárbara em particular. —
mandou enquanto me olhava, acho que na intenção de me intimidar.
Eulália saiu. A desgraçada sorriu, olhando para o meu ferimento no
rosto.
— Andou caindo, bebê?
— Sim, caí na porrada com um babaca aí.
— Hum! — gemeu, irônica e meneou a cabeça negativamente.
— Me chamou aqui pra que, Ingrid?
Eu estava estranhamente calma, enquanto ela estava à beira de um
ataque.
— Então quer dizer que está trepando com a vizinha?
— Quase todos os dias! Aliás, fizemos agora há pouco. Ainda sinto
o cheiro dela em mim. — Eu sei, minha loucura beira ao impossível, mas
provocar a Ingrid me fazia bem.
Foi o suficiente para ela surtar e jogar mais coisas no chão enquanto
gritava.
— Isso não vai ficar assim, sua putinha! — gritou e me desviei de
uma garrafa, que se espatifou na parede.
Eu estava torcendo para que aquela desgraçada me atacasse. Mas ela
só quebrava coisas e berrava.
— Você sempre garantiu que eu era louca por achar que você me
traía... — bradou, ofegando, com os olhos vermelhos de ódio.
— E era, Ingrid. Eu nunca te traí. Mas assim como não acreditou
quando começou com isso, não vai acreditar agora, então foda-se. Eu fiz
tudo, mas você só quis me manter presa, como se eu fosse a porra da tua
escrava.
— Ah, não traiu? A santa virou uma piranha? — perguntou, se
aproximando de mim.
Eu continuei encarando aquela cara de bruxa dela. Nada mais me
botava medo. Nem aqueles berros. Segurou meu braço e puxou
bruscamente, senti a costela doer, mas me desvencilhei com um soco.
— Não encosta em mim. Não tenho mais medo de você.
Ela se aproximou de novo e a imobilizei com uma chave de braço.
— Fica na tua, Ingrid. Só me deixa em paz e será bem melhor pra
você. — avisei e a empurrei.
— Eu vou te matar, fedelha! Mas antes vou matar aquela piranha
que tá te comendo. — ameaçou, colocando o dedo na minha cara.
— Tu sabe voar, Ingrid? — perguntei tomada por um ódio que até
então desconhecia. — Não, né? Pois toca no nome da Diana de novo e vai
precisar aprender porque vou terminar de quebrar essa porra de janela
contigo quando te jogar daqui. Desgraçada.
Ela se afastou, sorrindo.
— Você é muito imbecil mesmo. Idiota profissional. O pai dela não
aceita homossexualidade de jeito nenhum. Sabe o que vai acontecer? Você
vai ser a primeira a rodar. Então volta pra lá... vou dançar e soltar fogos no
dia que você sumir. Você é um nada no mundo, garota, ninguém vai sentir
sua falta. Volta pra lá, vai brincar de casinha com a doutora otária, vai...
— Ser um nada pra você é um favor que o universo me faz, Ingrid.
Mas eu vou mesmo. Sabe por quê? Porque eu amo aquela mulher e faço
qualquer coisa por ela, corro qualquer risco, porque ela vale a pena.
— Vamos ver se vale a pena mesmo. — disse e sorriu. — Vou ter
uma conversinha com ela, vou mostrar um material que tenho seu e
veremos até onde ela vai valer todo esse risco.
— Arrasa, Ingrid! Já disse, não tenho mais medo de você. E falando
em material de risco, enquanto você estava fora, achei uma pasta-bomba
que o doutor Afrânio adoraria ter nas mãos.
Os olhos dela se arregalaram naquele momento e continuei falando.
— Ele vai ficar feliz em saber que eu tenho aquilo num lugar muito
seguro e que estou sendo ameaçada por você. — enfatizei aumentando o
tom de voz. — Vamos ver quem roda primeiro!
— Você tá blefando. Se tivesse algo tão importante assim já o teria
tirado do teu caminho.
— Ok, acredite no que quiser. Eu preciso ir. O que tinha para falar
comigo era só o que eu já sabia? Sobre estar com a Diana?
— Era só pra olhar pra tua cara cínica. E avisar que você não perde
por esperar.
— Tá bom, tô ansiosa. Tchau! — disse e saí.
Eulália estava na porta do lado de fora. Ouvimos mais coisas sendo
quebradas.
— Tenha cuidado, Bárbara. Eu não aguento mais isso. Não sei até
quando vou estar por aqui...
— Se cuida, Eulália! — atravessei a rua e entrei no prédio.
Quando fechei a porta do apê ouvi um tiro estilhaçando a porta da
varanda. Por instinto, me agachei, pois aquela louca continuou atirando
contra o apartamento. Ouvi latidos e gritos de vizinhos.
35 – Atitude

Diana

Aquela noite de amor intensa serviu para mim como uma espécie de
combustível para seguir em frente. De alguma forma, todo o medo e
insegurança que eu sentia até então pareceu misteriosamente se esvair.
Lógico que eu ainda estava preocupada e apreensiva, mas pela primeira vez
eu não sentia vontade de simplesmente me esconder, eu queria lutar. Era
como se a Bárbara me desse a confiança e a coragem que eu precisava para
enfrentar tudo.
Naquela manhã, acordei com uma vontade imensa de tomar de volta
as rédeas do meu destino, e era exatamente isso que eu começaria a fazer.
Meu primeiro passo seria me afastar do hospital. Sim, aquilo me doía como
se um filho estivesse sendo arrancando de mim. A medicina era o meu
sonho, a minha vida, tudo o que eu sempre quis para mim, mas naquela
situação eu não estava com a menor condição de exercer o meu trabalho.
Era cedo quando bati à porta da sala do doutor Jales. Cerca de meia
hora antes de o meu plantão começar. Ele era extremamente competente no
que fazia, mas era um homem assustador. Sisudo, intransigente, mal-
humorado. Era o terror dos internos. Até eu, que já havia passado pelo
internato e estava no meu último ano de residência, ainda sentia um frio na
barriga quando precisava falar com ele.
— Doutora Diana, chegando cedo, para variar! — disse, irônico,
após me oferecer assento. Sentei-me de frente para ele. — A que devo a
honra?
— Doutor Jales, eu... — Respirei fundo e passei as mãos no rosto
antes de continuar. Não era fácil para mim, falar aquilo. — Eu vim pedir o
meu desligamento do programa de residência deste hospital. — falei em um
fôlego só, pois se pensasse demais, poderia desistir.
Impressionante foi a cara de espanto que o homem fez. No fundo eu
achava que, ao ouvir o meu anúncio, ele faria alguma piada ácida para
enaltecer o que ele consideraria como covardia ou falta de compromisso.
Mas ao invés disso, após pigarrear e coçar a barba em um gesto que o fez
parecer tremendamente incomodado, ele me falou:
— Olha, Diana, eu venho acompanhando o seu trabalho neste
hospital desde o primeiro dia do seu internato e, nesse tempo pude perceber
que a medicina não está simplesmente no seu sangue. Está no seu coração.
Sei que não está largando o programa para entrar em outro. Não sei
exatamente o que está acontecendo entre você e o seu pai, mas não sou
ingênuo. Por isso, preciso te dar um conselho: não desista.
Uau! Agora ele me surpreendeu.
Eu havia imaginado milhares de reações do Jales, mas aquela era a
mais improvável. Minha surpresa não passou despercebida pelo homem,
que sorriu ao me ver paralisada.
— Doutora, sei que tenho esse jeito rude e grosseiro, mas isso faz
parte do meu papel. Nós lidamos com vidas humanas, não há espaço para
melindre ou hesitações na medicina. É como uma carreira militar; médicos
não têm margens para erros e precisam entender isso desde a faculdade. E
se sou duro com você é porque quero te levar ao seu melhor. Diana, você é
a melhor residente deste e de todos os outros programas que coordenei, por
isso, não posso aceitar o seu pedido.
— Doutor Jales, eu estou surpresa e lisonjeada. Agradeço as suas
palavras, mas realmente, neste momento, não tenho condições de
permanecer no programa.
— Eu entendo. Façamos assim, vou te dar uma licença não
remunerada. Resolva seus problemas e volte.
Pela primeira vez na vida senti vontade de abraçar aquele homem. A
possibilidade de poder voltar encheu meu coração de alegria, mas a verdade
era que eu não fazia ideia se conseguiria voltar. Não sabia nem mesmo se
viveria por muito tempo, então pareceu injusto aceitar.
— Obrigada, isso seria maravilhoso, mas não posso aceitar.
— Eu não entendo. Por que não?
— Porque não tenho certeza de quando poderei voltar, doutor. Não
me parece certo aceitar.
— Doutora, me faça um favor. Vá resolver a sua vida e me deixe
fazer o meu trabalho. Quando você voltar, eu decido se ainda é interessante
para este hospital tê-la no quadro de funcionários ou não. Desejo boa sorte
pra você. Espero que tudo se resolva rápido e da melhor maneira possível.
Tentei segurar as lágrimas, foi impossível.
— Obrigada, doutor!
Levantei-me e o abracei. Ele ficou tenso no início, mas depois
relaxou e retribuiu ao gesto.
— Seu tio é uma das melhores pessoas que conheci, Diana. Um
homem bom e íntegro. Confie nele.
— O quê? Do que o senhor está falando? — perguntei, confusa, me
soltando de seus braços e o olhando bem dentro dos olhos.
— Você sabe do que eu estou falando. Agora vá e tenha cuidado.
Eu ainda o encarei por alguns instantes, mas depois saí.
Que droga, será que eu era mesmo a única pessoa que não sabia o
que estava acontecendo com a minha própria vida?
Saí da sala e fui procurar o Gabriel, mas acabei esbarrando com a
Jéssica em um dos corredores.
— Desculpa! — pediu, tímida, parando de frente para mim, sem me
encarar.
— Tudo bem, a culpa foi minha. Você viu o Gabriel?
— Acho que ele está no vestiário. Tô indo pra lá, você não vai se
trocar pro plantão?
— Não. Na verdade, eu... — hesitei em contar, mas logo todos
ficariam sabendo. — Eu estou deixando o programa de residência, Jéssica.
Vou precisar me afastar do hospital.
— O quê? — A voz dela saiu alta demais e algumas pessoas que
passavam nos olharam. — Não, espera. Você vai me contar essa história
direito. Vem. — disse e não esperou a minha reação, pegou a minha mão e
me levou para um dos quartos de descanso. — Você tá maluca, Diana? Tá
desistindo do programa? O que houve? É por causa daquela garota, né? A
tal da Bárbara? — perguntou, nervosa, tinha os olhos marejados.
— Ela não tem nada a ver com isso. Eu só preciso de um tempo,
tenho umas coisas pra resolver e vou precisar sair da cidade.
— Você vai embora? É isso mesmo? — perguntou e deixou as
lágrimas correrem.
Eu sabia que não devia satisfações da minha vida a ela, mas senti
um aperto no peito ao vê-la tão decepcionada. Eu gostava muito dela, era
uma boa menina. E me sentia mal por não poder corresponder àquele
sentimento.
— Jéssica, eu sinto muito mesmo por ter te magoado. Não queria ter
te dado falsas esperanças e muito menos te usado. Olha, eu não sei se vou
ter outra oportunidade de falar isso e sei que é difícil acreditar, mas eu gosto
muito de você e queria que me perdoasse por tudo.
— Por que você tá falando assim? Parece que vai embora e nunca
mais vai voltar. Você está se despedindo de mim pra sempre, Diana? É isso?
Eu nunca mais vou te ver?
— Eu não sei, Jéssica. Mas estou me precavendo.
Antes mesmo de eu concluir a frase, ela já estava agarrada ao meu
corpo. Não me restou escolha a não ser abraçá-la de volta. Senti as lágrimas
dela molhando o meu pescoço, e um nó se formou na minha garganta.
Jéssica era muito doce, às vezes parecia até ingênua demais para a idade
que tinha. Qualquer um teria muita sorte de tê-la como namorada, mas meu
corpo e alma pertenciam à Bárbara.
— Eu te amo, Diana! Não vai embora, por favor!
— Me perdoa, Jéssica. Eu preciso que me perdoe. — pedi, afagando
seus cabelos.
— Te perdoo se você não for.
— Eu não tenho escolha.
Ela se afastou e me olhou. Tinha o rosto vermelho, os olhos
encharcados.
— O que ela tem que eu não tenho?
— Cara, não faz isso com você. Para! Você é linda, maravilhosa.
Qualquer um daria a vida por você! Saiba que o meu afastamento é um caso
de sobrevivência, não tem a ver com a Bárbara. Ela só está sendo a minha
força para não sucumbir a coisas erradas. — falei enquanto passava o
polegar pelo rosto dela, secando as lágrimas. — Mas saiba também que
amor não se escolhe, não é assim que funciona.
— É, eu sei bem disso. Quem dera eu pudesse escolher...
— Não fica assim. No tempo certo, a pessoa certa vai aparecer pra
você e te fazer muito feliz.
— Obrigada por tentar fazer com que eu me sinta melhor. Você é
uma pessoa incrível, é por isso que eu te amo tanto.
Eu apenas sorri sem graça, ela não desistia.
— Eu preciso ir. Espero te ver de novo um dia... e espero que me
perdoe também.
— Eu te perdoo. Vou morrer de saudade. Vê se não se esquece de
mim, me manda pelo menos um sinal de fumaça de vez em quando, pra eu
saber que está bem.
— Obrigada! Pode deixar, vou dar um jeito. — menti.
Ela aproximou o rosto do meu e percebi que tentaria me beijar. Virei
o rosto e senti seus lábios na minha bochecha. Ela suspirou, frustrada, e nos
abraçamos. Beijei seu rosto também e em seguida saí, deixando-a lá.
Dei três passos em direção ao vestiário e cruzei com Marina.
— Oi, baby! Não esqueça que o papai está esperando sua visita. —
falou sem parar de andar e em seguida entrou na sala de descanso onde
Jéssica estava.
Revirei os olhos e segui para encontrar o Gabriel. Queria falar com
ele antes de ir ver o velho. Ele havia trabalhado no plantão da noite e estava
se preparando para sair. Combinamos de nos encontrar na lanchonete do
hospital. Pedi um café e o esperei. Uns dez minutos depois ele apareceu.
Contei sobre as conversas com o Jales e com a Jéssica e o ouvi me criticar
quando disse a ele que levaria a Bárbara na minha fuga.
— Eu confio nela, Biel. Não tenho motivos pra não confiar.
— Cara... Di, não sei, não. Não tô dizendo que ela tenha algo a ver
com as tretas do diabão, mas nada me tira da cabeça que ela não é flor que
se cheire. Ela é muito estranha.
— Tá, eu desisto desse assunto com você. Mas pegando o gancho,
quem eu tô achando que não é flor que se cheire é a Lara.
— Ué, por quê?
— Sabia que ela trabalha pro Joel Toledo? Pelo menos foi o que ela
disse antes de me orientar sobre como deveria falar com o meu pai. Mas
isso não é o estranho. Esquisito é o fato de ela saber da chantagem que ele
me fez para que eu case com o neto do tal Álamo. Como ela poderia saber
disso?
— Não tem nada de esquisito nisso. Eu falei pra ela.
— O quê? Como assim, Gabriel? — perguntei, irritada.
— Calma, eu ia te contar. Só não tinha tido tempo ainda. Ela me
procurou, queria o HD. Disse que eu corria grandes riscos ao decodificá-lo.
Falou que trabalhava para o Joel Toledo e mencionou o seu tio. Pedi uma
prova, e ela me pôs em uma chamada de vídeo com os dois. Eu entreguei o
HD e acabei contando tudo pra eles, Diana. Desculpa, mas não sei do que
esse povo é capaz.
— Não acredito nisso, Gabriel. Você tá maluco?
— Não, cara. Eu tô é apavorado. Por mim e por você. Eles me
mostraram fotos de gente nos seguindo... nos vigiando. Gente perigosa, Di.
Sabia que eu quase fui morto? Tem um vídeo da câmera de segurança do
estacionamento do hospital. Eu estava saindo uma noite, era tarde... tinha
um cara me vigiando e se aproximou com um garrote. Ele ia me estrangular
até a morte, mas a Lara impediu, atirando nele com uma pistola silenciada.
Depois outros caras apareceram e o levaram sabe Deus pra onde.
— Do que você tá falando, Gabriel? E como você sabe que isso não
é uma encenação deles mesmos?
— Diana, nós não temos muitas opções. Entre confiar no diabão e
no seu tio, a segunda opção parece mais plausível e segura.
— Meu Deus! Meu Deus! Se você tivesse morrido, eu... eu... isso
não vai ficar assim, vou agora falar com aquele demônio. — disse, nervosa
e mencionei me levantar.
— Senta aí, você precisa ser fria. Precisa seguir os conselhos da
Lara pra ser convincente. Fica aí e se acalma, vamos conversar e depois
você vai lá.
Ele tinha razão, eu precisava ser calculista. Afrânio era dissimulado
e só dava para jogar de igual para igual agindo da mesma forma. Sentei e
respirei. Ouvi Gabriel contar mais detalhes sobre a conversa que teve com
Lara, Joel e meu tio e comecei a me preparar psicologicamente para seguir
o plano deles.
Levantei daquela mesa decidida a ir procurar o Afrânio, mas quando
liguei o carro para sair, meu celular tocou. Era a Bárbara.
— Oi, tá tudo bem?
— Não, a maluca da Ingrid resolveu abrir fogo contra o seu
apartamento. Não vem pra casa agora, não é seguro. Ela pode te acertar.
Os vizinhos já devem ter chamado a polícia. Espera o meu sinal pra voltar,
ok?
— O quê? — perguntei, já entrando em desespero, mas ela já havia
desligado.
Jamais atenderia àquele pedido de esperar sinal dela. Dei partida e
fui para casa, mas não consegui chegar ao meu prédio, a rua estava cheia,
houve uma batida entre dois carros, havia também viaturas da polícia e do
corpo de bombeiros. Avistei Lara próxima de lá e saí, largando o meu carro
ali, e fui até ela.
— Diana! Achei que estivesse em casa... — disse com alívio na voz.
— A Bárbara tá lá, Lara. Preciso...
— Não pode, Diana. — interrompeu, me contendo. — O pessoal já
invadiu a casa da Ingrid e já entrou no seu prédio também. Não sabemos
quantas vítimas ainda, mas é melhor não arriscar ter mais.
Vi uma pessoa sendo tirada do prédio numa maca do corpo de
bombeiros e tentei, desesperada, ir até lá, mas Lara me impediu.
— É ela, Lara! — gritei e senti a mão dela no meu abdome me
contendo mais uma vez.
36 – Autocontrole

Bárbara

Quando ouvi os tiros, corri agachada para a cozinha. Vi Luís


assustado tentando sair de casa, mas consegui agarrá-lo. Segurei o Lecter
também. O probrezinho estava muito nervoso, tremia e chorava no meu
peito. Sentei no chão, ao lado da geladeira.
— Calma! — pedi para Luís, que tentava sair do meu colo. —
Shiiiii! — Lecter latia, mas demonstrava medo.
A louca não parava de atirar. Deve ter descarregado umas três caixas
de balas.
A Diana não pode vir pra casa agora! — pensei e coloquei o Lecter
do meu lado para poder pegar o celular no bolso.
Luís arranhou o meu braço, na tentativa de se soltar, e o larguei, mas
consegui empurrar a porta com o pé para deixá-lo preso dentro da cozinha.
Liguei para a Diana e antes que ela atendesse, um tiro pegou na
porta e ouvi barulho de sirene lá fora.
— Oi, tá tudo bem? — Ouvi sua voz assustada.
— Não, a maluca da Ingrid resolveu abrir fogo contra o seu
apartamento. Não vem pra casa agora, não é seguro. Ela pode te acertar. Os
vizinhos já devem ter chamado a polícia. Espera o meu sinal pra voltar,
ok? — larguei o celular ao ver Luís tentando fugir novamente.
O gato havia pulado da pia para um armário e depois para a
janelinha da cozinha. Ele estava decidido a sair dali, mas felizmente a
pequena passagem estava fechada. Suspirei, aliviada. Os tiros cessaram, e
Lecter se acalmou. Quando peguei o telefone de novo, Diana já tinha
desligado.
Com cuidado para que os bichos não saíssem, abri e passei pela
porta da cozinha, fechando-a em seguida. Agachada, fui até a janela da
frente e olhei devagar por trás da cortina, que tinha furos de balas. Vi a
polícia invadindo o prédio da Ingrid. Senti os estilhaços do vidro das janelas
sob meus pés e agradeci por Diana não estar ali, pois não teria conseguido
manter o controle caso aquela maluca a machucasse minimamente.
Tentei ver mais coisas da rua e reconheci a silhueta da Diana
chegando perto de um carro da polícia.
Ouvi passos pesados pelos corredores e batidas de portas. Antes que
batessem na minha, eu a abri. Vi uns paramédicos passando e saí. Precisei
me encolher toda para que eles passassem com uma mulher baleada em
uma maca.
— Moça, você está bem?
— Sim.
— Então volte para o seu apartamento e fique lá. Lá fora não é
seguro. — ordenou um deles, provavelmente o líder. Mas não obedeço a
ordens, então os segui.
Chegando lá embaixo, fui recebida por uma Diana totalmente
exasperada. Ela tinha o rosto vermelho, os grandes olhos azuis encharcados.
Ofegava, mas quando me viu prendeu a respiração por um instante e me
agarrou. Eu a apertei em mim, aliviada também por vê-la ali comigo, a
salvo.
— Graças Deus, você está bem! — disse e não sei se perguntou ou
apenas constatou, mas ficou procurando ferimentos em mim. — Ela te
atingiu? Te acertou em algum lugar?
— Calma, eu tô bem! — garanti e a fiz me olhar. — Está tudo bem,
ok? Calma...
Os policiais estavam saindo com Ingrid algemada, totalmente
desequilibrada, gritando que precisava me matar.
— Eu vou matar aquela desgraçada! — gritou, enquanto se debatia.
Observei aquele show de loucura tentando manter a frieza, pois o
incômodo na minha nuca já tentava tomar conta de mim. Fechei os olhos e
respirei fundo para tentar lutar contra aquilo. Quando os abri, Diana já
estava voando para cima da louca. Corri até lá. A mulher saiu de perto de
mim feito uma bala e nem notei.
— Sua maluca! No que você estava pensando? Psicopata,
assassina... — gritou e avançou para agredi-la, mas foi contida por um
policial.
Ingrid tinha o rosto vermelho de ódio, seus olhos fuzilavam a Diana.
Eu tentei tirar minha doutora bravinha de lá para que não acabasse presa
também, mas ela estava virada num bicho feroz.
— Diana! — gritei, para chamar sua atenção, mas não fui ouvida.
— Ela tentou me matar, sua otária! E vai fazer o mesmo com você.
Ela não é esse anjo que você pensa, não. — A louca cuspiu as palavras.
— Sua maluca! Volta pro manicômio de onde fugiu! — Diana
respondeu e tentou se soltar, sem sucesso.
Uma mulher com o braço imobilizado se pôs entre as duas.
— Diana, já chega. Controle-se! — A mulher ordenou com firmeza
e pediu que o policial a levasse para longe da Ingrid.
A desgraçada ainda cuspiu na direção dela, mas não a atingiu.
Eu tremia de nervosismo, entrei em um transe instantâneo, mas
antes de sucumbir, fui despertada pela voz da nojenta bem perto de mim.
— Eu vou provar que você tentou me matar, Bárbara! Vou acabar
com a tua vida, sua desgraçada. — Ouvi. — E vou acabar com a sua
doutora também, você vai ver. Não vou ficar presa! — berrou, rouca.
Apenas saí de perto dela enquanto a via sendo conduzida para a
viatura, e fui a procura da minha namorada, que me abraçou com força logo
que foi solta pelo policial. Senti seu coração acelerado contra o meu peito e
em seguida senti uma mão gelada no meu braço. Era a mulher.
— Vamos, entrem. Vocês serão chamadas para depor na delegacia,
mas preciso que me contem exatamente o que houve agora. — falou e
acenou para alguém.
Nós três entramos no prédio e subimos para o apartamento da
Diana, que desabou no sofá com as mãos no rosto, logo que entramos.
Sentei ao seu lado e segurei sua mão. A mulher voltou para falar com dois
policiais, que entraram logo depois.
Eles tiraram algumas fotos do local e recolheram projéteis que
estavam fincados nas paredes.
— Lara, aqui no quarto encontrei vinte e oito.
Então essa é a famosa Lara, delegada da cidade e amiga da Diana.
Outro policial entrou portando sacos com mais projéteis, um deles
separado em um saco menor.
— A vizinha foi atingida no ombro. Encontrei isso na tela da TV
dela. Tem sangue. — disse, mostrando o conteúdo do saco para a delegada.
— Leve para o departamento. Jorge, grave o depoimento delas, eu
vou conversar com as duas aqui mesmo. Se for pertinente, as interrogamos
na delegacia.
Diana estava olhando para as minhas mãos e às vezes para os meus
olhos. Ficamos nos comunicando daquela forma por uns segundos até que a
delegada começou a perguntar.
— Qual é a relação de vocês com a atiradora?
— Nós tivemos um relacionamento... — respondi e senti a mão da
Diana apertando a minha.
— Pode falar tudo, amor. Ela precisa de todas as informações...
Não entendi muito bem aquela sugestão, mas resolvi falar.
— Um relacionamento? — repetiu a delegada.
— Sim, um relacionamento abusivo. — Diana respondeu por mim.
— Aquela louca espancava a Bárbara, Lara. A mantinha presa em casa...
— Por favor, Diana, deixe-a responder...
— É isso mesmo, delegada. Nós ficamos e vim morar com ela, mas
descobri que não valia nada e quando quis ir embora ela escondeu as
minhas coisas e me manteve lá, praticamente em cárcere privado. Eu só saía
com a permissão dela e se demorasse a voltar sofria todos os tipos de
abusos físico e moral. É completamente louca, passou um tempo internada
em uma clínica psiquiátrica depois de tentar cortar os pulsos e me acusar de
ter feito isso. Não sei como conseguiu sair de lá. Não aceita o fim do nosso
relacionamento e hoje descobriu que a Diana e eu estamos juntas. Acho que
foi por isso que fez toda essa loucura.
— Mas qual o sentido de ela te acusar de ter tentando matá-la?
— Não sei. Não vejo o menor sentido nisso. No dia em que ela
cortou os pulsos, eu a socorri e chamei uma ambulância. Se eu a quisesse
morta era só ter deixado que sangrasse até morrer. — respondi, olhando
para a mulher, que, de cenho franzido, olhou para o colega, que gravava
tudo.
— Eu a recebi no hospital, cuidei dela... foi minha paciente. Bárbara
foi com ela na ambulância, havia feito torniquetes nos punhos para estancar
o sangramento, e foi isso que a salvou.
Depois que terminou o interrogatório, a delegada chamou a Diana e
conversou com ela em particular. Não ouvi o que falaram. Fui à cozinha e
vi Luís sair correndo de lá. Lecter já abanava o rabo na minha direção.
Peguei pá e vassoura e voltei para a sala. Mesmo sem querer, acabei
ouvindo parte do que falavam. A tal Lara a orientava:
— Você vai conversar com ele e manter a mesma postura de sempre.
Você é a carta da manga dele, Diana. Mas não devemos confiar cem por
cento nisso. Então todo cuidado é pouco. Se precisar, já sabe. Me liga.
— Obrigada, Lara! Só estou com medo, não sei até onde tem
Afrânio para livrar a Ingrid da cadeia e amanhã mesmo ela estar tentando
contra a nossa vida de novo.
— Ele não vai fazer isso. Se fizer, eu dou o meu jeito de mantê-la
lá... — garantiu, mas acho que foi mais para acalmá-la.
— Obrigada. Vou falar com ele à tarde. Preciso me acalmar antes.
Mas te aviso.
— Tá bom! Se cuidem. — falou e saiu.
Diana fechou a porta e me olhou.
— Ela perguntou se precisaríamos ir para um hotel, por causa das
portas e janelas quebradas. — disse soltando o ar pela boca e passando as
mãos nos cabelos.
Larguei a vassoura e fui até ela, a abracei e a senti me abraçar
também. Só naquele momento me senti extremamente culpada e
arrependida por desafiado aquela louca.
— Ei, calma! Vai ficar tudo bem. Vou limpar aqui. Você quer ir para
um hotel?
— Só se não conseguirem consertar isso hoje. Vou ligar logo para o
vidraceiro. Prefiro ficar aqui, apesar de tudo. Me preocupo com os meninos,
não podemos levá-los para o hotel.
Sentou no sofá e chamou Luís para sentar em seu colo. O gato pulou
macio.
— É, eu sei, meu amor... foi assustador, mas não vou deixar que
nada de ruim aconteça a nenhum de vocês três... — falou para o gato, que
ronronava em seu colo.
Meu coração inflou com aquela cena linda. Aquela era a mulher que
eu amava e, naquele instante, tive a certeza de que seria capaz de dar a
minha vida pela dela. Eu sorri feito boba vendo a cena dos dois, ele parecia
entendê-la. Sentei ao lado dela e peguei Lecter no colo. A presença dele já
não incomodava mais o Luís Otávio, ele implicava, mas não queria matá-lo.
— Que bom que vocês estão bem! Nem gosto de pensar no que
poderia ter acontecido se aquela louca...
— Shiii... — interrompi. — Passou. Vamos tentar nos acalmar. Você
precisa ficar bem pra enfrentar seu velho.
— É, tem isso ainda. — disse com pesar.
— Não vai, se não quiser, Diana. A gente pode dar outro jeito. Você
confia mesmo nessa Lara?
— Sim, eu preciso confiar. Conversei com o Gabriel, foi ele quem
contou pra ela sobre a chantagem.
Ouvi a história inteira sobre a conversa do Gabriel com a Lara, o tio
e o tal Joel Toledo. Embora não confiasse cem por cento neles, fiquei mais
tranquila.
Ela chamou o vidraceiro para consertar tudo enquanto eu limpava o
chão e viajava no meu pensamento.
Se aquela louca tocar na Diana, acabo com ela de tal forma que
nem a mãe dela vai ficar de luto. — pensei pressionando o maxilar na
mandíbula.
Limpei tudo e fui para a cozinha. Diana me seguiu.
— Amor, você tá bem?
— Tô, só assustada. E você?
— Assustada também. Morri de medo quando vi a vizinha sendo
levada para o hospital. Achei que era você. — confessou e me beijou
delicadamente na boca. — Não precisa fazer nada. Podemos almoçar fora.
— Eu preciso... cozinhar me relaxa. — disse e a abracei pela cintura
e sorrindo para que não visse que eu estava uma pilha de nervos.
— Tudo bem, então... eu observo você. — falou, sorrindo.
Peguei o frango que eu havia deixado descongelando e o coloquei
sobre uma tábua para esquartejá-lo.
Eu consegui me controlar diante da Ingrid ameaçando a Diana. —
pensei enquanto arrumava a ave para ser desmembrada e pegava a faca.
Vi o olhar perdido de Diana em mim, sorri e ela sorriu de volta, ela
estava fazendo esforço para não demonstrar apreensão.
Fechei os olhos e quando abri tirei as duas coxas do frango, separei,
depois tirei as asas e toda aquela parte que compõe os membros superiores.
— Você tem uma habilidade incrível! Quando aprendeu a fazer isso?
— Eu tinha sete anos quando a minha mãe me ensinou. Eu a via
fazer e ficava fascinada... adorava o cheiro de alho e cebola fritando.
— Sete anos? — indagou, espantada.
— Sim. Aprendi a cortar frango aos sete. A ir sozinha para a escola
aos dez. A ir até o centro da cidade aos doze.
— Estou chocada. Você cozinha desde os sete anos de idade,
Bárbara!
— Seis. Aos sete eu aprendi a desmembrar frangos. —Sorri da cara
de espanto dela e coloquei os pedaços da ave numa tigela de vidro e
coloquei limão.
Gostei disso, vou colocar limão quando estiver cortando a
Ingrid. — pensei. — Vinagre também é legal. — Peguei o vidro de vinagre
e coloquei ali junto com o suco de limão.
Naquele clima mais calmo e conversando amenidades, terminei tudo
e almoçamos. Ela não me deixou lavar a louça. Depois deitamos um pouco
e fiz uma massagem em seus ombros. Conversamos sobre como ela deveria
agir na conversa com o Afrânio e sobre as possíveis rotas de fuga que
usaríamos para sairmos dali.
Liguei a tevê e deixei em um canal que exibia um filme antigo, de
comédia. Ela deitou no meu peito e assistimos sem dar muita atenção
enquanto eu fazia cafuné. Cada uma com seus pensamentos. Percebi sua
respiração pesada e notei que havia dormido. Fiz de tudo para não me
mexer e acabei adormecendo também.
Já estava escurecendo quando eu abri os olhos. Diana estava de pé,
usando um roupão. Havia acabado de sair do banho e procurava uma roupa
para vestir.
— Acho que desmaiei.
— Sim, você dormiu feito uma pedra. O vidraceiro veio, tocou a
campainha, consertou tudo e você não acordou. — falou, sorrindo.
— Nossa! Você vai sair?
— Vou... tenho que falar com o Afrânio. Não posso mais adiar isso.
— Ok! Eu vou com você... — falei e mencionei levantar.
— Não! — Parou tudo o que estava fazendo e me olhou. — Não
quero você mais envolvida nisso do que já está, Bárbara. Já tenho aquela
louca tentando te matar, não vou dar ideia pro meu pai também. Fica aqui.
— Mas não vou ficar tranquila com você indo sozinha lá, cara.
— Eu sei que não, mas confia em mim. Vou ter cuidado.
— Tudo bem, mas me liga assim que sair de lá, tá?
— Pode deixar, eu ligo. — garantiu e me beijou. — Eu te amo,
Bárbara!
— Eu te amo muito mais, Diana!
Ela sorriu, linda... mais linda do que sempre.
Deixei que se vestisse e saísse sem imaginar que eu iria atrás dela.
Jamais a deixaria enfrentar aquele demônio sozinha.
Já estava escuro quando ela saiu de casa. Vesti um jeans e uma
camiseta e desci correndo. Olhei e vi as luzes do apartamento da Eulália
apagadas, devia estar tentando dar um jeito de soltar a maluca da filha... ou
bebendo por aí.
Invadi o lugar e peguei as chaves do carro da Ingrid. Saí nele e
estacionei um pouco distante da entrada do hotel onde o velho estava
hospedado. Fui caminhando até lá e vi o carro da Diana estacionado bem na
frente. Só precisaria descobrir qual era o quarto dele, mas nem entrei e vi
Diana saindo do elevador.
Virei e saí o mais rápido que pude. Me escondi atrás de uma banca
de jornal e a vi entrando no carro, mas não deu partida de imediato. Eu
precisava chegar em casa antes dela, corri para o carro já pensando em um
atalho. Logo que entrei, senti meu telefone vibrar. Era ela.
— Oi! Tudo bem?
— Sim, já estou indo pra casa. Conto tudo quando chegar aí.
— Tá bom, cuidado.
— Tá, beijo!
Ela desligou e em seguida deu partida. Fiz o mesmo e já ia dando a
volta para fazer um caminho alternativo quando percebi um carro seguindo
o dela.
— Que merda!
Passei a seguir o carro que a seguia. Mantive os faróis apagados e
uma distância segura. Era noite de domingo, e as ruas estavam desertas. Eu
precisava ter cuidado para não ser notada.
Diana estacionou na frente de um restaurante, desceu e entrou no
estabelecimento. Acho que foi comprar algo para o jantar. O carro que a
seguia parou logo atrás. Eu parei mais distante ainda e desci. Fui até lá
tentando me camuflar nas sombras. Eu era boa nisso.
Havia alguns carros estacionados, mas não vi pessoas transitando.
Observei e vi que só havia um homem dentro do veículo. Pensei rápido e
bati no vidro. Funcionou, chamei a atenção do cara, não sei se me achou
atraente ou inofensiva... ou os dois, mas o fato é que foi fácil demais fazê-lo
baixar o vidro.
— Moço, me ajuda, por favor! Acho que torci meu tornozelo. —
pedi fazendo cara de choro.
— Desculpa, moça, mas não posso ajudar. Por que não chama uma
ambu...
Antes que ele terminasse de falar, eu peguei sua cabeça e bati três
vezes contra o volante. O desgraçado era duro na queda, pois não desmaiou,
mas ficou bem zonzo. Abri a porta e o puxei para o chão. Peguei a arma em
sua cintura, a carteira e o celular nos bolsos. Ele começou a se levantar e
chutei suas costelas. Queria matá-lo, mas havia a possibilidade de ele estar
ali a mando do Augusto, para proteger a Diana.
— Você trabalha pra quem? — perguntei com a arma apontada para
a cabeça dele.
— O quê? Do que... do que você tá falando?
— Anda, não se faça de idiota. Sei que está seguindo aquela mulher.
Quem te mandou? Fala ou estouro os seus miolos sem saber mesmo, seu
filho da puta.
Minha ameaça não o intimidou. O desgraçado me deu uma rasteira e
me fez cair. Senti a costela e demorei para reagir, foi o tempo que ele usou
para me agarrar. Tentou pegar a arma, mas consegui chutar para longe. Em
um movimento rápido, torci seu punho e me livrei da imobilização; acabei
em suas costas. Ele se levantou, me carregando como se eu fosse uma
mochila. Se jogou de costas contra a parede, e senti a dor causada pelo
choque com o concreto.
Se ele fosse homem do Augusto teria me reconhecido e não estaria
fazendo nada contra mim, então... — Pensei.
Ainda presa às costas dele, segurei sua cabeça com as duas mãos e
com um movimento preciso, quebrei o pescoço do desgraçado, que caiu
para frente, comigo ainda em suas costas.
Eu ainda ofegava quando me levantei. Sentia meu corpo inteiro
doer. Com certeza, eu havia piorado a situação da minha costela. Levantei a
camiseta para olhar se estava roxo, já pensava em uma desculpa para dar à
Diana quando ouvi a voz abafada dela me chamar.
— Bárbara?
Levantei os olhos e a vi ali, me encarando, incrédula, com as mãos
na boca e medo no olhar.
37 – Instinto

Diana

Respira, Diana! Respira...


Minha mente repetia aquilo incansavelmente, mas era inútil. Eu
sabia que era um ataque de pânico e usava aquela ciência para tentar me
acalmar, mas a sensação de sufocamento e o aperto no meu peito me
dominavam.
Eu estava estacionada na frente do prédio do Gabriel e não fazia a
menor ideia de como havia conseguido chegar até lá dirigindo, pois cada
terminação nervosa do meu corpo ainda reagia à imagem da Bárbara
quebrando o pescoço daquele homem com a perícia de quem realmente
sabia o que estava fazendo.
Respira, cara... anda... devagar... você sabe o que fazer...
Aos poucos fui conseguindo me controlar, mesmo quando já estava
respirando normalmente, uma forte ânsia de vômito me fez abrir a porta e
agachar na sarjeta. Pus para fora o que estava no meu estômago. Quase caí,
mas consegui me contorcer e evitar uma lambança no meu pé.
Levei alguns minutos para me recuperar e quando me senti melhor,
procurei uma caixa de lenços de papel no porta-luvas para limpar meu
rosto. Fui à portaria e interfonei, mas o Gabriel não atendeu.
Droga, ele deve estar de plantão. — pensei, nervosa.
Liguei para o celular dele, deu caixa postal. Deduzi que estava em
cirurgia, mas tentei o telefone do hospital, e ele também não estava lá.
Eu estava perdida, não tinha noção do que fazer, e ele era o único
em quem eu confiava para contar aquilo.
Estava com medo de voltar para casa... eu não tinha medo da
Bárbara. Apesar de tudo, eu ainda acreditava, lá no fundo, que ela não
queria me fazer mal. O meu medo estava relacionado ao que iria descobrir.
De repente, as coisas começaram a fazer sentido.
O ataque que sofri, foi ela quem matou o sequestrador... as
acusações da Ingrid... será que ela realmente tentou matá-la? Quantas
pessoas mais será que matou?
Meus pensamentos foram cortados pelo barulho do toque do meu
celular. Era ela, mas eu não consegui atender, não tinha condições. Eu
precisava descobrir o que fazer antes...
— Porra, Gabriel! Isso é hora de sumir? — esbravejei e esmurrei a
direção do carro.
Dei a partida e saí dali sem rumo. Ela me ligou mais algumas vezes,
até que desistiu. Parei no semáforo e vi uma mensagem chegar. Li pela tela
de notificação mesmo.
— Diana, me deixa explicar. Cadê você, cara? Me liga, por favor!
Apertei os olhos e deixei as lágrimas molharem o meu rosto, que
ardia. Encostei a testa no volante e chorei convulsivamente.
— Que merda! Droga, droga, droga...
Ouvi uma buzina atrás de mim e percebi que o semáforo estava
verde. Saí e voltei a rodar pela cidade. Eu precisava pensar, concatenar as
ideias, mas não estava conseguindo. Tudo era muito confuso e bizarro.
Tentei tirar aquela cena horrenda da mente. A lembrança que usei
para conseguir aquilo também não era das melhores, mas pelo menos não
fazia com que eu quisesse morrer. Recapitulei a conversa com o Afrânio, no
hotel.
Cheguei lá por volta das 19h e me anunciei na recepção. Ele já me
esperava. Subi morrendo de medo, mas tentei ao máximo disfarçar,
seguindo as orientações da Lara. Eu precisava ser convincente.
Na porta do quarto, dois seguranças me revistaram com um detector
de metais. Entrei e vi o diabo sentado em uma poltrona, coçando aquela
barba asquerosa, que ele sempre exibiu com orgulho. O outro braço estava
em uma tipoia, obra da Bárbara. Agora tudo fazia sentido.
E naquele dia, se ela o pegasse, o mataria mesmo. Como não vi o
que estava na minha cara?
— Filhinha, finalmente resolveu vir ver o seu velho.
— Sem ironias, Afrânio. Vamos direto ao ponto.
— Que mau-humor! Pois bem, vamos direto ao ponto. Eu já estava
mesmo perdendo a paciência com essa sua demora. Quase mandei um
amigo meu ir te buscar.
— Pois é, estou aqui. Anda, fala logo... o que eu devo fazer pra você
deixar as pessoas que eu amo em paz, seu covarde?
— Boa garota! Inteligente. — Foi sarcástico.
— Não tenho tempo pro teu sarcasmo, Afrânio. Me diz logo o que
eu tenho que fazer porque preciso sair de perto de você antes que comece a
vomitar.
— Ok, vamos direto ao ponto. As eleições são em duas semanas.
Quero que seu namoro seja anunciado antes disso. Meu assessor de
impressa vai preparar um material para você e o seu futuro marido
divulgarem em suas respectivas redes sociais. Você vai tornar seus perfis
públicos e dará acesso para que o meu pessoal administre as contas. Na
véspera do dia da eleição, vamos jantar em família, eu, você, meu futuro
genro, os pais e o avô dele. A imprensa fará uma matéria a respeito, e você
aparecerá feliz.
— Você é nojento, sabia? Fala essas coisas todas com a maior
naturalidade, sem dar a mínima para o fato de estar manipulando pessoas e
situações em prol da sua ganância por poder. Desgraçado.
— É a lei da selva, Diana. Nesse mundo, só os mais fortes
sobrevivem. E não me julgue, você ainda não experimentou o poder.
— Não me diminua ao seu nível. Eu jamais seria capaz de fazer o
mínimo do que você faz.
— É, vamos ver... enfim, você tem dez dias para se organizar. Meu
pessoal vai te passar as coordenadas, e você vai para o Rio de Janeiro. Vai
ficar em uma cobertura cedida pelo Álamo, coisa de alto nível. É lá que
você vai morar com o seu futuro marido. Já vai se familiarizando.
— E a Bárbara?
— Ah, é... a sua putinha. Desculpe, mas não vai mais poder levá-la.
Ela me chateou bastante, e não a quero por perto para me causar mais
problemas. Você arruma outra por lá. Vou cuidar para que mandem umas
empregadas bem gostosas para o seu apartamento. Você não vai ficar
sozinha.
— Imundo! Eu tenho nojo de você. — falei em tom de escarnio,
mas o nojento apenas sorriu, sarcástico. — Sem a Bárbara eu não vou.
Como vou saber que não vai dar um fim nela assim que eu sair daqui?
— Calma! Se ela prometer ficar quietinha, eu não faço nada. Deixo
até você falar com ela de vez em quando.
— Aquela maldita da Ingrid Álvares, tua comparsa... tentou nos
matar hoje. Está presa, mas quando sair vai tentar de novo, é
completamente louca. Eu vou estar longe e cercada de segurança quando
isso acontecer, mas a Bárbara é alvo fácil. Quero que garanta que aquela
louca não chegará perto dela. Sem essa garantia, não vou a lugar nenhum. E
mesmo depois de ter ido, se eu passar mais de uma semana sem notícias da
Bárbara, eu te ferro, você sabe que tenho coragem de fazer isso.
— Ora, ora, ora... depois não quer ser comparada ao papai. Quem
está ameaçando quem agora? — disse, sorrindo. — Princesa, antes de você
conseguir mover um dedo sequer pra me ferrar, eu te mato... e ainda ponho
isso ao meu favor. Viu isso aqui que a sua putinha desgraçada fez? Me
rendeu cinco pontos nas pesquisas.
— Você quer me fazer acreditar que sou um nada. Que se eu
começar a te dar problemas, vou ser simplesmente apagada e tudo está
resolvido. Mas não me subestime, Afrânio. Não sou tão ingênua assim. Sei
que de alguma forma que ainda não descobri, sou muito útil pra você. Se
esse casamento não fosse de extrema importância para a sua carreira
política, você não estaria se dando ao trabalho de me infernizar. Passou
anos sem se lembrar de mim... então não tente me convencer de que sou
descartável, ok? Eu quero a Bárbara segura. Sem essa garantia, eu tô fora.
— Despejei em um fôlego só, como dedo apontado para a cara dele, que
não perdia a pose por nada.
— Aquela vadia deve ser mesmo muito gostosa.
— Cala a boca! — gritei e vi os seguranças se aproximarem, mas
ele acenou para que voltassem. — Não ouse falar dela assim, seu maldito.
— Cala boca, você, sua pirralha! Já chega. — Foi ríspido. — Ok,
não toco na sua puta e nem deixo a desmiolada da Ingrid tocar, mas é bom
você andar na linha, ou as coisas... acredite, Diana, eu não estou blefando.
Se você não andar na linha, eu faço o serviço com as minhas próprias mãos,
e você nunca mais vai ter notícias dela. E ainda deixo você viva para sofrer
por ela também. Eu sou bom nisso, você sabe.
— Monstro... desgraçado. — disse, tremendo de ódio.
— Agora vai embora. Fica atenta ao celular. — falou, sem paciência
— Desgraçado...
— Vai embora daqui, antes que eu me arrependa e acabe com você
agora mesmo, anda! — gritou, descontrolado.
Um dos seguranças entrou já mencionando pegar a arma. Antes que
ele ousasse me tocar, saí dali o mais rápido que pude.
Entrei no carro, mas não o liguei. Precisava me acalmar, estava
muito nervosa. Eu tinha que ligar para a Bárbara, só precisava me controlar
antes. Quando parei de tremer, liguei. Ela atendeu no segundo toque:
— Oi! Tudo bem? — Parecia nervosa.
— Sim, já estou indo pra casa. Conto tudo quando chegar aí.
— Tá bom, cuidado.
— Tá, beijo!
Dei partida no carro e comecei a dirigir. Logo que virei a esquina,
reparei em um carro atrás do meu e achei que estivesse sendo seguida. Para
ter certeza, parei em um restaurante. Eu estava certa, ele parou logo atrás.
Disfarcei e entrei no pequeno estabelecimento. Aproveitei para comprar o
jantar.
Enquanto esperava a comida, resolvi espiar meu perseguidor através
do vidro. Percebi uma movimentação estranha no carro dele e fui até lá. Foi
aí que vi aquela cena...

Eu não sei por quanto tempo dirigi sem rumo. Quando me senti
exausta, decidi ir para casa. Entrei no apartamento decidida a arrancar da
Bárbara cada detalhe sobre quem ela era e os tipos de sujeiras que já tinha
feito na vida, mas não a encontrei lá. Procurei pelo apartamento inteiro, o
único sinal de vida ali era do Lecter, que me recebeu abanando o rabo. Nem
o Luís estava em casa.
No quarto, encontrei a mochila dela e a esvaziei, mas não tinha nada
demais, além dos documentos que incriminavam o Afrânio. Ofeguei de
nervosismo. Meu corpo estava tão quente que um fio de suor escorreu da
minha testa quando peguei o celular para ligar pra ela, mas deu caixa postal.
— Merda! — esbravejei e arremessei o telefone no chão.
Olhei o relógio, passava das três da manhã. Fiquei imaginando onde
ela poderia estar e o que deveria estar fazendo, mas comecei a surtar com as
possibilidades. Respirei fundo e resolvi apenas esperar.
Não sabia se ela apareceria ou se dali em diante eu jamais a veria,
mas pelo pouco que a conhecia... ou achava que conhecia... acreditava que
ela iria voltar, sim. Sentei no sofá e não consegui permanecer quieta.
Levantei-me e passei a andar de um lado para o outro. Quase uma hora
havia se passado e nada de ela aparecer. Comecei a me desesperar, enfiei as
mãos nos cabelos e os puxei com força, depois apenas gritei... o mais alto
que pude.
Fui tomada por uma força que me tirou o senso, e comecei a quebrar
a sala inteira. Acho que aquela foi a forma involuntária que meu corpo
encontrou de desabafar, e funcionou um pouco, pois depois de um tempo
consegui sentar. Ainda chorei muito, mas finalmente entrei em um estado
de torpor. Recostei-me na poltrona e fiquei lá... até que ela finalmente
chegou.
Andou em minha direção com cautela, não demonstrava nervosismo
algum. Tinha os olhos vidrados nos meus. Deu mais um passo, depois
outro, até que parou bem em frente a mim.
— Eu te liguei, seu celular deu caixa postal.
— Descarregou. Eu estava te procurando.
— Ahan...
— Diana, eu...
— Você matou aquele homem que tentou me sequestrar semanas
atrás? — perguntei, simplesmente, em um tom assustadoramente calmo até
para mim.
— Sim. — respondeu sem hesitar.
— Você já matou outras pessoas além desses dois homens?
— Sim, outra.
Engoli saliva e apertei os olhos. Voltei a olhá-la e continuei o
interrogatório.
— Você tentou matar a Ingrid?
— Não.
— Não?
— Não. Mas cortei os pulsos dela. Eu não queria matá-la, só queria
me livrar dela. E o único jeito era convencer todos de que ela é louca.
— Ah, tá bom. Ela é a louca! — Fui sarcástica, mas sem perder a
calma. — Você é uma psicopata? Uma assassina em série? Matadora de
aluguel? Quem é você, Bárbara? Ou melhor... o que é você? Está com o
Afrânio?
— O quê? Não... nunca! — respondeu de imediato, demonstrando
incômodo com a minha insinuação.
— Então que porra você é e o que quer de mim, Bárbara? — gritei e
me levantei da poltrona, agarrando-a com força pelos braços.
— Eu só queria um lar e encontrei em você. Não quero mais nada
dessa vida... Eu te amo, Diana! — disse com firmeza e deixou uma lágrima
escorrer de seu olho.
Era incrível, mas aquela ali parecia outra pessoa. Não era o mesmo
olhar que eu vi na rua, matando com as próprias mãos aquele desconhecido.
— Você não pode falar de amor, Bárbara. É uma assassina... e isso
parece ser algo muito natural pra você. — disse, largando-a. —
Desembucha. Quero saber de tudo... — pedi ofegando, olhando em seus
olhos.
Ela mordia o lábio inferior com frequência. Eu já a vi fazer aquilo
outras vezes, mas nunca havia observado de fato. Acabou lambendo as
próprias lágrimas, que molhavam sua boca.
— Fala... — gritei, assustando-a.
— O que quer saber?
— Quem é você? Por que se aproximou de mim? Por que matou
aqueles homens? Como sabia que ele estava me seguindo?
— Eu amo você, Diana. E faço qualquer coisa para proteger quem
eu amo. — Começou a falar e franzi o cenho.
Essa calmaria dela, apesar de chorar, estava me dando nos nervos.
— Eu desenvolvi essa defesa quando nem a minha mãe me
defendia. E não era porque eu era violenta, era pelo simples fato de eu ser
filha de um escroto que foi embora e a largou, grávida de mim. Quando eu
vi o seu tio ser atacado aqui dentro eu vi que precisava fazer alguma coisa.
Se você estava protegendo ele, é porque era importante pra você e eu não
queria que você sofresse.
— O quê? Do que está falando, Bárbara? — perguntei, sem tirar os
olhos dos dela, que limpou o rosto e me encarou.
— Eu vi da varanda da casa da Ingrid quando você chegou com ele.
Você saiu para trabalhar e um cara entrou aqui. Pelo mesmo lugar que eu
usei para entrar. A varanda. Ele apontou uma arma para o seu tio, que
estava dormindo, e pulei em cima dele. Foi puro instinto.
— Como sabia que ele era meu tio? — perguntei com a respiração
presa.
Aquela história ficava cada vez mais suja. Eu já não sabia mais
quem era pior.
— Eu só soube depois. Eu matei o cara que queria matá-lo e depois
o vi ser tirado do prédio em um tapete.
— Que loucura é essa? — falei, alto demais.
— Fala com o teu tio. Ele foi me procurar para ajudar na sua
proteção.
Eu caí sentada no sofá. Tremia e ofegava. Temia ter outra crise.
Senti que ela se aproximava de mim, levantei o rosto.
— Não me toca.
— Diana, por favor. Eu jamais faria nenhum mal a você. Nem à
Ingrid eu tive coragem, mesmo ela sendo aquela miserável.
— Não seja cínica. Você a mandou para o hospital.
Ela massageou a nuca, de olhos fechados. Passou alguns segundos
assim, respirou profundamente e me olhou. O olhar frio, pupila dilatada.
— Diana, eu poderia simplesmente tê-la deixado morrer. Ela tem
sérios problemas, soube do câncer do tio no dia. Seria fácil demais, se eu
fosse isso que você está pensando. — disse num tom diferente, altivo. —
Não sou um anjo, mas também não sou torpe a ponto de matar uma louca
que só tocou em mim. Eu tenho os meus problemas, mas eu entrei naquela
vida sozinha. Eu só precisava de tempo e espaço para sair dela.
Já não mordia mais o lábio, mas coçava a nuca com frequência.
— Você se aproximou de mim por quê? Foi o meu tio? Porque o
Afrânio não foi, ele vomitou ódio intenso por você. Não acredito que os
dois finjam tão bem. Quanto o meu tio te pagou?
— Nada. Eu me apaixonei, Diana. Pela primeira vez na minha vida
eu me vi louca por uma pessoa. E eu sequer conhecia você. Eu gostava
muito de te observar. Sabia que nunca te teria, você nem sabia da minha
existência. Eu te usava para fugir um pouco daquele inferno. Mas você me
viu... eu já te contei isso... — Limpou o rosto novamente e engoliu saliva.
É outra pessoa. Com quem eu estou lidando, meu Deus? Como eu
nunca notei essas mudanças de comportamento?
— E quando vi que você me correspondia mesmo sem saber de
nada, resolvi sair daquela zona de conforto. Se eu não tivesse armado o
suicídio da Ingrid, com certeza eu estaria morta agora. Eu nunca matei
ninguém inocente, Diana. Eu preciso saber que é bandido e merece morrer
porque a justiça da terra não o fará pagar. O teu pai, aquele desgraçado, ia
raptar você para chantagear o seu tio. Foi disso que a delegada falou quando
disse que você é a carta da manga dele. Enquanto você viver, o Afrânio está
seguro, porque o Augusto teme pela sua segurança e por isso não fode com
todos os planos dele. Mas eu não confio. Por isso que quando vi aquele
miserável seguindo você eu tomei uma atitude. Agi por instinto.
Ela se sentou e respirou fundo de novo. Massageou a nuca com o
rosto virado para o chão. Meus olhos ardiam, pois eu não piscava, tentando
não perder nenhum gesto dela.
O rosto era brando. O olhar verde, mais calmo, quando me encarou.
O indicador da mão direita cutucava a cutícula do polegar.
— Me perdoa, Diana! Eu devia ter contado tudo antes, mas eu temia
esse olhar. — Apontou para mim.
Ela se ajoelhou e rastejou até mim.
— Por favor... eu só não queria traumatizar você ainda mais.
— Vai embora daqui, Bárbara. — As palavras saíram e me levantei.
Engoli saliva e senti minha garganta arder.
Eu não suportaria olhar na cara dela nunca mais, sabendo que foi
capaz de fazer todas aquelas atrocidades.
— Diana! — disse e tocou meu ombro para que eu a olhasse.
Involuntariamente, dei um soco no braço dela e berrei:
— Não me toca! Não tenho estômago para olhar pra você. Some
daqui.
38 – Tiro

Bárbara

Eu não conseguia respirar direito depois de ouvir a Diana gritar


comigo daquela forma. Me senti perdida como nunca havia me sentido
antes, mas eu precisava respeitar sua vontade. Engoli saliva e passei por ela
para ir até o quarto, onde encontrei minha mochila aberta e vazia. Recolhi
as coisas espalhadas pelo chão e enfiei tudo dentro, depois saí. Ela estava
encostada na parede quando passei.
— Cuida do Lecter, por favor. — pedi em lágrimas, não conseguia
conter. — Ele não tem culpa de nada.
Fui à cozinha e dei um beijo nele, que lambeu o meu rosto enquanto
abanava o rabo. Olhei ao redor para me despedir do Luís, mas ele não
estava por ali.
Voltei para a sala, e ela ainda estava de olhos fechados, na mesma
posição, encostada na parede. Tirei o celular descarregado do bolso e deixei
sobre a mesa. Não olhei mais na direção dela ou falei qualquer coisa.
Apenas saí. Só queria chorar até desidratar e sumir.
Na rua, olhei para a casa da Eulália e vi tudo fechado. Ainda estava
um pouco escuro. Eu andei em círculos por meia hora. A cidade começou
seu movimento e só notei quando levei um esbarrão de um cara.
— Foi mal. — falei e resolvi parar numa pracinha.
Sentei em um banco de concreto e senti os meus pés doerem.
Coloquei a mochila no colo e fiquei ali, observando as pessoas passando
com suas caras de sono. Iniciando a semana de trabalho. Cada uma com
seus problemas.
Minha cabeça doía. Minha garganta também doía, como se eu não
tivesse chorado o bastante para dissolver aquela enorme bola de tênis que se
formou ali.
As lágrimas caíam quando um morador de rua se sentou ao meu
lado.
— Tá bem, moça? Quer alguma coisa? Eu sei onde conseguir.
— Vaza. — retruquei, sem paciência.
— Ei, calma! Só tô sendo gentil.
— Vaza. — mandei novamente e o encarei com todo o ódio de
traficante que eu tinha dentro de mim.
Ele se levantou e saiu devagar, sentou-se no outro lado da pracinha,
onde tinha umas cobertas sujas.
Resolvi sair dali. Senti meu estômago arder. Fome.
Que merda! — xinguei em pensamento.
— Preciso arrumar um jeito de me virar.
Resolvi ir até a pousada do Valdir. Ele já estava lá. Passava pano
molhado no chão quando cheguei. Aquele cheiro forte de desinfetante
invadiu minhas narinas causando ardência.
— E aí, Valdir.
— Oi, Bárbara... veio acertar a dívida da tua amiga?
— O quê?
— A Bruna se mandou e não me pagou. Botei a polícia atrás dela.
Vieram dois homens mal encarados aqui procurando aquela caloteira.
Pareciam bandidos, eu devia ter entregado ela. Fiquei com medo e levei
calote.
— Espera aí, Valdir, que história é essa? Quando foi isso?
— Uns três dias atrás. E aí, vai acertar?
— Não posso agora. Mas se eu conseguir algo eu volto aqui ainda
hoje. Foi mal, cara. Posso descolar um café aí?
— Vai lá. São três diárias da Bruna, tá?
— Ok.
Velho miserável do caralho, deixei três diárias pagas aqui quando
cheguei nessa merda de cidade e esse cuzão fica chorando. — pensei
enquanto entrava na sala do café da manhã já posta. A tia do doce estava lá
arrumando uma cesta com pães. Sorriu para mim, acenei, sorrindo também,
dei um bom-dia e peguei uma xícara. Abri a mochila e quando ela se virou
coloquei alguns biscoitos, banana e pães dentro.
Saí de lá decidida a ir procurar o dono do estúdio de tatuagem.
Precisava de um emprego, não podia ficar vagando pela rua.
Diana não saía da minha cabeça. Pela reação dela, acreditei que não
me perdoaria nunca. Mas eu continuaria por perto, mesmo contra a vontade
dela. Jamais a deixaria a mercê da própria sorte. Pelo menos não até aquele
demônio dos infernos do pai dela sumir desse mundo.
Vi o sinal ficar verde e os carros passarem. Esperei ali por uns
segundos para atravessar, até que ouvi uma buzina. Olhei sem entender e a
vi dentro do carro. Tinha o rosto vermelho e o olhar abatido.
— Entra aqui. — ordenou.
Eu paralisei. Engoli saliva. Ela insistiu e entrei. Seguimos na direção
da casa dela em absoluto silêncio. Eu não tinha ideia do que aquilo
significava, mas não consegui perguntar nada. Ela também não falou, estava
séria, olhar fixo na rua. Apenas dirigiu até o prédio dela, onde entrou
devagar e estacionou.
Meu coração já não sabia mais nem bater direito. Ele pulsava
descompassado enquanto meu corpo inteiro tremia. Eu ofegava quando saí
do carro. Ela se aproximou de mim, séria. Me encarou por uns segundos e
pegou a minha mão. A dela estava quente. Senti apertar a minha com força
para me puxar para junto dela e me envolver pela cintura, me abraçando em
seguida. Eu a apertei e apenas chorei. Foi como uma represa se rompendo.
— Desculpa. Eu não devia ter falado daquele jeito com você. —
falou, com a voz trêmula. — Você me viu em perigo e quis me defender.
Não posso te julgar, porque acho que faria exatamente a mesma coisa se
alguém tentasse te machucar. E sobre a Ingrid... eu... eu entendo também.
Nem posso imaginar as barbaridades que você sofreu nas mãos dela. Eu
acho que se a minha mãe tivesse tido uma oportunidade, teria feito o
mesmo que você com o Afrânio, aquele desgraçado. — disse, ofegando.
Eu ouvia aquilo derramando um choro convulsivo de alívio. Achei
que a tivesse perdido para sempre e não acreditava que aquilo estava
acontecendo. Ela me deu um beijo suave.
— Calma! Nós vamos dar um jeito nessa bagunça, tá bom? Juntas...
você e eu. Ok?
— Tá. — confirmei enquanto a abraçava forte. Não queria mais
largá-la.
— Vem, vamos subir.
A sala estava arrumada quando entramos no apartamento. Ela me
abraçou de novo.
— Não sai mais de perto de mim, por favor. — pediu e me beijou,
segurando o meu rosto com as duas mãos. Ela também tremia.
Larguei a mochila no chão e a apertei em mim conduzindo o beijo.
Fomos para o quarto. Ambas exaustas, entramos no banheiro.
— Me perdoa por não ter contado antes, eu só queria te proteger
disso tudo. — avisei em um abraço, embaixo do chuveiro.
— Tudo bem. Só não me esconde mais nada, tá? Precisamos confiar
uma na outra pra isso dar certo. Eu amo você.
— Também te amo. Senti o chão sumir dos meus pés quando me
mandou embora. Eu jamais sairia de perto de você, mesmo contra a sua
vontade, mas te ver e não poder te tocar seria tortura.
Ela me beijou. Terminamos o banho e fomos para a cama. Senti algo
duro perto da minha cabeça e por instinto levei a mão até o local. Era uma
arma, me afastei por reflexo, e ela me olhou.
— Pra que isso?
— Calma! Eu resolvi deixar aqui para nossa proteção.
Aquilo me deixou nervosa.
— Mas não precisamos de arma. Eu posso nos defender...
— Também quero proteger você, Bárbara. Não confio no Afrânio.
— interrompeu-me. — Calma, vem cá.
— Tá bom... mas isso tem que ficar aqui, na cama? — perguntei de
cenho franzido. — Não vou ficar à vontade assim.
Enquanto eu falava, ela pegou a pistola e guardou na gaveta da
mesinha de cabeceira.
— Vem cá. Desculpa! Só fiquei com medo de aparecer alguém aqui.
E não quero você se arriscando por minha causa. — disse em um tom
tranquilo e me beijou.
Fizemos amor como nunca havíamos feito e adormecemos juntas.
Dormi em seu peito, ouvindo o coração dela bater e sentindo os pulmões
encherem e esvaziarem.
Quando acordamos, ela me contou sobre a conversa com o Afrânio
e o que combinou com ele. Passamos o resto do dia em casa. Luís apareceu,
jantou e dormiu. Comemos pizza e vimos filmes na tevê.
— Se eu precisar sair da cidade, você vai ficar aqui, ok? Eu não vou
fazer nada que me coloque nas mãos do Afrânio, então fica tranquila, tá?
Naquela porta ali tem uma maleta... — apontou para o armário. — Tem
dinheiro nela, será suficiente para você se manter com os meninos enquanto
eu estiver fora. Mas vou falar com você o tempo todo. Por mensagem e por
chamada, tá?
Ela quis me deixar tranquila com aquilo, mas me deixou mais
nervosa ainda com a situação. Depois que aquele desgraçado a tirasse de
Vila nunca mais eu a veria, e ele com certeza daria um jeito de dar um fim
em mim também. Mas não passei aquele medo para ela. Depois pensaria no
que fazer.
Naquela noite dormimos agarradas. Nenhuma queria ficar longe da
outra. Ela estava muito preocupada, mas tentava passar tranquilidade. Eu
estava na mesma situação. Decidi que quando tivesse oportunidade ligaria
para o tio dela, precisava saber o que estava acontecendo.
Preparei um café da manhã para nós duas e levei na cama. Ela não
costumava dormir tanto, mas notei que acordou durante a noite e ficou
quieta.
— Bom dia! — desejei, quando ela abriu os olhos e sorriu para
mim.
— Bom dia! Acho que apaguei. — disse bocejando e se sentando na
cama.
Eu peguei a bandeja e coloquei perto dela, me sentando ao seu lado.
— Acho que não há tempo nesse mundo que eu passe e consiga te
decifrar. — sussurrou e me beijou com carinho.
— Talvez a graça da coisa seja não querer saber de todos os
mistérios. — Coloquei uva na boca dela, que sorriu e olhou para a cortina
fechada.
— Me diz uma coisa, por que você sempre fechava a cortina,
mesmo quando a Ingrid não estava em casa?
— Ela tem câmeras lá. Eu descobri quando ela foi pro hospital. Vi
imagens ao vivo daqui e de dentro do apê dela também.
— Ah, meu Deus! Que espécie de louca ela é?
— Coisa do Afrânio. Ela trabalhou com ele por uns anos e foi
descartada, só que se muniu de provas contra ele.
— O conteúdo daquela pasta?
— É. Aquilo não o coloca na cadeia por muito tempo, mas o
impediria de se tornar deputado, senador e seja o que ele pretenda ser.
Ela suspirou profundamente, pegou a xícara de café e tomou um
gole grande.
— Então ela tem mesmo como provar que você...? — se
interrompeu, notei sua reticência ainda em aceitar aquilo.
— Não. — respondi olhando para a bandeja e a encarei. — Eu já me
livrei das imagens. Talvez o Afrânio tenha, mas ele a queria desativada,
então fiz um favor. Eu não quero falar deles. Não ficou bom?
— Esse biscoitinho tá delicioso. — disse de olhos fechados. — Você
deve usar crack nas receitas. Vou ficar obesa.
Eu sorri. Depois que terminamos de tomar café retirei a bandeja, e
ela foi ao banheiro.
Passamos três dias tranquilas. Ela conversou com alguém ao
telefone. Ligou para o Gabriel, que não atendeu. O que a deixou
preocupada. Estudou. Eu a desenhei quando a vi concentrada. Ela me
mostrou as redes sociais que a equipe do Afrânio havia feito.
— Isso não é arriscado?
— É, mas precisamos ganhar tempo. Ele é muito perigoso.
— Esse é o teu noivo? — perguntei vendo a foto do cara
no Facebook.
— Boba. — disse, sorrindo. — É esse mesmo. Espero que seja mais
um fantoche nas mãos dos malditos políticos.
— Se ele tocar em você...
— Ele não vai tocar, meu amor. Não vou me casar. E se chegarmos a
nos encontrar, eu sei me defender. Não manjo de artes marciais como você,
mas conheço o corpo humano. — garantiu, sorrindo, orgulhosa. — Quando
você disse que fez anos de artes marciais achei que fosse em academia...
— Bancado pela minha mãe? Impossível! — Sorri. — Eu passei a
frequentar uma ONG que abriram no bairro onde eu morava. Fui incluída
em um programa de apoio a crianças problemáticas — lembrei, sorrindo e a
vi franzir o cenho. — Eu sofria humilhações em casa e na escola.
Implicavam com meu cabelo, com o meu jeito, com as minhas roupas.
Cheguei a ouvir que eu não me enturmava porque não tinha roupa para
trocar. Mas eu estava pouco me importando com isso. O que me afetou de
verdade foram as agressões físicas. Recebi acompanhamento psicológico e
fui levada para essa ONG. Lá eu pratiquei arte moderna, artes marciais e
outras atividades, pois eu vivia pegando suspensão, não aguentava as
violências que sofria.
— Meu Deus! — falou, chocada.
— Depois que meu padrasto se mandou, eu tive um pouco de paz.
Mas a minha mãe passou a me infernizar por dinheiro. Eu fazia algum
trabalho, e ela pegava todo. Alegava que eu precisava pagar a hospedagem
e comida na casa dela. — Os olhos dela me encaravam, marejados, naquele
momento. — Até que a Ingrid apareceu. — falei e a vi sair das redes
sociais, onde aparecia feliz em vários momentos, em um perfil antigo, que
ela nunca teve.
— Você contou essas coisas pra Ingrid?
— Um pouco. A Ingrid é o tipo de pessoa que te engana mesmo
você sendo a pessoa mais esperta do mundo.
— Ela trabalhou com o Afrânio. Não duvido de nada. — disse e se
levantou, me puxou pela mão e se sentou no sofá, me colocando no colo
dela. — Eu ia dizer que agora, comigo, você está segura, ninguém vai te
fazer mal, será muito amada, mas só posso garantir a última coisa. — falou,
num tom doce e me beijou.
— Eu só preciso disso! — sussurrei e a beijei. — Apesar de tudo, eu
era uma menina doce e sonhadora.
— Quais são seus sonhos?
— Como eu te falei, eu só queria me sentir em casa em algum
momento da vida.
— Então pode se sentir. Você é minha mulher, agora... e eu a sua.
Temos até dois filhos que implicam um com o outro! — falou e sorrimos
juntas. — Essa agora é sua casa também, meu amor. Somos uma família e
esse é seu lar.
Ouvir aquilo foi como receber lava de vulcão no meu pequeno
coração gelado. Apenas a beijei demonstrando todo o amor que eu sentia.
Aquela sensação era boa demais e por um tempo eu esqueci do que tinha da
porta para fora, nos esperando.
Ela falava comigo como se eu fosse normal, o que me deixava
tranquila e ao mesmo tempo preocupada.
— Você tem medo de mim? — indaguei, reticente.
— Não. Eu sei que foi isso que pareceu, mas jamais achei que fosse
me fazer algum mal. Eu vou explodir quando precisar, mas eu só preciso de
alguns minutos para pensar, pois pode não parecer, mas também sou
impulsiva. Então preciso que confie em mim.
— Os corações das crianças pequenas são órgãos delicados, Diana.
Um começo cruel neste mundo pode moldá-los de maneiras estranhas. —
Repeti as palavras de Ali Land. — Eu bati em muita gente na escola. E bato
em quem mais se aproxima de mim ou de quem eu amo. Sou um animal
machucado, raramente confio em alguém. Mas você é rara.
Ela me abraçou e me apertou contra o peito. Ficamos assim por um
tempo.
— Qual é a sensação de matar alguém? — Fiquei muda com aquela
pergunta assim tão natural. Apesar de tudo aquela calma dela ainda me
assustava.
Engoli saliva, desviei o olhar do dela, mas depois a encarei.
— Quando você salva uma vida, você sente como fosse a
responsável por dar àquela pessoa uma segunda chance, não é?
— Sim.
— Então, é mais ou menos isso. Mas a minha sensação e de estar
limpando o mundo de gente ruim. — Ela me ouviu e ficou pensativa, como
se tentasse encontrar algum sentido naquilo. Resolvi contar uma história
para ajudá-la a assimilar. — Diana, quando eu tinha oito anos, conheci uma
amiga da minha mãe que sofria maus tratos nas mãos do marido. Ela o
denunciou, ele foi preso e solto logo depois. Foi atrás dela e deu uma
senhora surra nela. Foi preso de novo, e saiu, mais uma vez. Recebeu
apenas uma ordem de restrição de um quilômetro, era o quanto ele podia se
aproximar dela, mas na primeira noite solto ele foi lá e a matou a pauladas,
na frente do filho, um moleque de cinco anos.
— Ah, meu Deus! Ele tá preso?
— Foi preso na época, evitou o flagrante e pegou doze anos de
prisão. Pagou dois em regime fechado.
— Dois anos? — perguntou, espantada.
— Sim. Agora está lá, escroto e asqueroso, vivendo como se nada
tivesse acontecido e batendo em toda desavisada que fica com ele. O
moleque foi criado pela avó e tem a presença do desgraçado. A justiça no
Brasil é muito falha, é tipo mãe que não sabe educar, que dá votos de
confiança ao filho de índole ruim.
— Você é a favor da pena de morte?
— Não. Eu sou a favor da minha pena, não cometo erros, a justiça
sim.
— Se eu fosse uma pessoa ruim, você teria coragem de me matar —
ela falou aquilo em tom de brincadeira eu sorri.
Aquela frieza dela estava me deixando muito nervosa, preocupada.
— Nem se você se tornasse gigante teria espaço para maldade em
você.
— Eu te amo. Vou tomar um banho. — avisou e me beijou.
Ela entrou no banheiro e fui ao quarto. Abri um pouco a janela para
entrar um ar e vi a Eulália chegando. Visivelmente embriagada, mal
conseguiu abrir o portão. Observei por uns minutos e quando decidi sair
dali ouvi um disparo de tiro.
— Que porra! — Saí correndo e atravessei a rua.
Entrei e vi a Eulália com uma arma na mão, caída no chão, e uma
poça de sangue ao redor de sua cabeça.
— Puta que pariu! — ralhei, nervosa e olhei em volta.
Quando mencionei sair a Ingrid entrou chutando a porta, gritando
com a mãe.
— Tá fazendo o que aqui, desgraçada?
Eu fiquei muda. Ela estava exalando ódio pelos olhos, mas olhou
para o chão e viu a mãe morta.
— O que você fez? — berrou rouca, como sempre.
— Eu não fiz nada, eu juro. Eu ouvi o tiro e entrei aqui para ver o
que havia acontecido e... — Senti a mão dela quase esmagando o meu braço
e me arrastando pelos fundos.
— Eu não acredito em você, sua assassina. Mas isso não vai ficar
assim, eu vou acabar com você... e é agora.
— Eu não fiz nada. — gritei, tentando me soltar, mas foi em vão ela
me empurrou contra a parede e bati a cabeça. Apaguei.
Quando acordei, estava na cama dela. Ouvi barulhos no andar de
cima. Saí da cama e tentei abrir a porta, mas estava trancada. Fui à janela.
Precisava fugir dali nem que eu me arrebentasse inteira no chão.
Quando consegui quebrar o vidro, ela entrou armada. O olhar
perdido. Havia lágrimas neles, mas nem de longe se via sinal de algum
sentimento bom.
— Ingrid, eu juro que não matei tua mãe, cara...
— Cala a boca. Não quero ouvir tuas mentiras. Cadê a pasta do
Afrânio, eu sei que você revirou as minhas coisas. Sei que ele veio aqui e
não levou.
— Não sei do que você tá falando, Ingrid. Me deixa sair daqui. Eu
não vou falar nada com ninguém.
Ela apontou a arma para mim.
— Se não sabe de nada, não serve pra nada também.
Eu só fechei os olhos e me lembrei da Diana. Era nela que eu
pensava quando ouvi o disparo.
39 – Culpa

Diana

Três dias haviam se passado desde aquela noite fatídica. As coisas


estavam mais tranquilas na minha cabeça, apesar de ainda ser tudo muito
confuso. Mas pelo menos eu já conseguia respirar direito.
Eu estava no banho, lembrando da sensação horrível que senti
depois de expulsar a Bárbara. A dor de vê-la matando, a sangue frio, aquele
homem não se comparou à sensação de vazio que senti quando ela
atravessou aquela porta para ir embora.
Lembro que estava encostada na parede, de olhos fechados, e só os
abri quando a porta bateu. Senti um amargo na boca e voltei a chorar
convulsivamente. Meu corpo foi desfalecendo e fui deslizando as costas
pela parede, até sentar no chão. Lecter se aproximou de mim, choroso. Ele
abanava o rabo e me lambia, como se tentasse me consolar.
— Calma, bebê! Vai ficar tudo bem, tá? — falei, afagando sua
cabeça e recebi um olhar interrogativo e triste de volta.
— Mas, mãe, a minha mãe Bárbara não vai voltar? Ela cuida tão
bem de mim e do meu irmãozinho. Ele não gostava de mim quando eu
cheguei, mas ela fez ele gostar... traz ela de volta, por favor!
Eu sorri... comecei a achar que era mesmo esquizofrênica ou estava
tentando arrumar uma desculpa para trazer a Bárbara de volta para casa.
Mas incrivelmente a sensação de ser respondida por aquele pequeno ser,
inocente, que só via o melhor de tudo, me acalentou um pouco.
Sentada ali, com ele, lembrei de quando a Bárbara me ligou, falando
que a maluca da Ingrid estava atirando contra o apartamento. Eu fiquei tão
louca que se tivesse tido a oportunidade, teria feito algo contra ela... algo
físico. Foi aí que cheguei à conclusão de que não podia julgar a Bárbara.
Nem por ter matado aqueles homens para me defender e muito menos por
ter forjado o suicídio da Ingrid para se livrar dela. Pensei na minha mãe. E
se ela tivesse tido aquela sorte? E se ela tivesse conseguido se livrar do
crápula do meu pai e vivido o amor dela com o meu tio? Ela poderia estar
viva hoje.
Naquele instante eu me dei conta da besteira que fiz em expulsar a
Bárbara, mas ainda assim não tive a certeza se deveria ir ou não atrás dela.
Talvez ficar longe fosse mais seguro, assim, o Afrânio poderia esquecê-la.
Mas... e eu? Eu conseguiria esquecê-la? Para o bem dela, eu
precisava tentar.
Levantei daquele chão e comecei a limpar a bagunça que eu mesma
havia feito. Um tempo depois, Luís apareceu. Olhou tudo de olhos
semicerrados e depois me encarou.
— O que diabos aconteceu aqui? — O olhar julgador dele dizia
exatamente isso, com esse tom acusador.
— Eu surtei com a Bárbara, Luís! Enfim, agi por impulso e acabei
fazendo isso. Também a pus pra fora de casa.
— Você tá louca? Quer me matar de fome?
— Seu mal-agradecido. Eu nunca deixei de te alimentar. Além
disso, é egoísta, né? Só pensa em você e no seu bem-estar.
Sim, eu estava discutindo com o gato.
— Ah, você expulsa a Bárbara de casa, e eu sou o egoísta. Onde
acha que ela está agora, sua idiota? Ela não tem casa, trabalho ou amigos,
lembra? Acho que nem dinheiro deve ter. Vai deixar a menina vagando na
rua? — bradou em um fôlego só e bufou. — Humanos! Esse planeta vai
apodrecer nas mãos de vocês. — falou para si mesmo e saiu.
Respirei fundo, me sentindo horrível, mas era o que eu precisava
para desistir daquela ideia idiota de me afastar dela.
— Idiota, imbecil. — xinguei a mim mesma ao me dar conta da
besteira que tinha feito.
Foi aí que peguei a chave do carro e saí para procurá-la.
Fui trazida de volta das minhas lembranças por um barulho que
pareceu um tiro. Meu coração parou por um segundo e prendi a respiração.
— Ingrid... a Bárbara. — Saí rápido do box e vesti um roupão. —
Bárbara! — chamei, mas só ouvi o barulho da porta batendo.
Fui até a sala e tudo que vi foi o Lecter latindo para a porta, nada da
Bárbara. Voltei para o quarto e corri para a janela. Vi quando ela atravessou
a rua e entrou na casa da Eulália.
— Bárbara! — gritei, mas não fui ouvida. — O que essa maluca foi
fazer lá?
Fui correndo até o armário e vesti a primeira coisa que encontrei, o
mais rápido que pude, mas o corpo úmido dificultou o processo. Corri para
a porta, eu ia até lá, mas lembrei da arma.
— Se aquela louca tá armada, eu não posso ir sem nada, serei mais
uma vítima.
Voltei e peguei a pistola na gaveta da mesinha. Fui em direção a
porta do quarto, mas ouvi um barulho de vidro quebrando e em seguida
gritos, vindos do apartamento da Ingrid. Era a voz da Bárbara. Corri para a
varanda e vi as duas discutindo, mas não conseguia entender o que falavam.
A louca segurava uma arma e gritava. Olhei para a que estava na
minha mão e a destravei, como o Gabriel havia me ensinado, mas a mantive
apontada para o chão. Nunca imaginei que tivesse que usá-la e estava
torcendo para não precisar, mas então a Ingrid apontou a dela para a
Bárbara e não pensei mais. A única coisa que me movia era o instinto, a
necessidade que eu senti de proteger a mulher que eu amava. Nem sei como
fiz aquilo, mas apontei sem jeito para ela e puxei o gatilho, de olhos
fechados.
Tudo aconteceu em poucos segundos, mas parecia câmera lenta. O
impacto do tiro me fez largar a arma. Eu tremia, minha respiração estava
presa, não tinha coragem de olhar, mas com um esforço sobrenatural abri
um, depois o outro olho. Não vi a Ingrid, mas a Bárbara apareceu na janela,
me olhou e saiu correndo em seguida.
Soltei o ar pela boca e deixei a sensação de alívio tomar conta de
mim.
— Graças a Deus! — falei em um fio de voz, ainda tremendo.
Ela estava viva, o que significava que eu havia...
O alívio se foi, e a sensação de sufocamento que ultimamente me
parecia tão familiar me consumiu novamente. Eu havia matado uma pessoa.
Fiquei atordoada quando me dei conta disso. Levei as mãos à boca e
comecei a andar de costas, me afastando da janela, e ao me virar
escorreguei no chão molhado. Acabei batendo a testa na quina da armação
de madeira da cama e tudo escureceu.

Bárbara
Achei que fosse o fim quando ouvi o barulho de tiro, mas nada
aconteceu comigo. Abri os olhos e vi Ingrid caindo. Olhei para a varanda da
Diana e a vi, com os olhos arregalados.
A arma... ela atirou!
Apenas corri. Atravessei sem olhar e entrei no prédio dela.
Lecter latia desesperado quando entrei no apartamento. Corri para o
quarto e a vi caída no chão, perto da cama. Havia sangue... caí de joelhos
para ver o que tinha acontecido.
— Diana! — gritei e tentei acordá-la, mas ela apenas gemeu. O
sangue vinha de um corte na testa. Ela com certeza caiu e bateu a cabeça.
— Diana, fala comigo, por favor! — pedi desesperada.
Tentou abrir os olhos, mas estava zonza. Respirei fundo e a coloquei
na cama. O chão estava molhado. Olhei em volta e vi a arma caída, na
varanda.
Vai ser incriminada!
Ela precisava de cuidados, mas antes disso eu precisava limpar a
cena e livrá-la da acusação. Não sabia se Ingrid estava morta, não tive
tempo de checar, mas independente disso Diana acabaria presa pelo tiro, e
eu não poderia permitir que isso acontecesse.
Corri à cozinha e peguei uma bolsa de gelo e álcool. No kit de
primeiros socorros que ela mantinha na mesinha de cabeceira, peguei uma
atadura e enfaixei a cabeça dela, depois pus a bolsa de gelo em cima, para
diminuir o inchaço e o sangramento.
— Agora vamos limpar essas mãos. — falei, ofegando.
Ela não estava totalmente desmaiada, mas também não estava
lúcida. Apenas gemia.
Limpei suas mãos com álcool ali mesmo, passei uma escova de
dente nas unhas e joguei álcool de novo.
Nunca se sabe, né?
Peguei a arma e a limpei. Ainda não sabia o que faria com ela, por
isso a pus na cintura. Apanhei a capsula deflagrada e joguei no vaso
sanitário, dando descarga em seguida. O tempo encarcerada na casa da
Ingrid, muitas vezes, assistindo séries policiais me deixou atenta aos
detalhes.
Eu não sabia mais o que fazer, a polícia chegaria a qualquer
momento, e ela precisava de pontos e uma tomografia, provavelmente.
Peguei o celular dela e liguei para o velho Augusto, que atendeu
imediatamente.
— Aí, tio, deu muito ruim, aqui, cara! — Eu disse nervosa,
ofegando.
— Acalme-se, Bárbara. Nós vimos tudo pelas câmeras. A Diana vai
precisar de apoio. Vamos cuidar de tudo. Fique tranquila.
— Que porra vou fazer se a polícia aparecer aqui, tio? Tu tá
maluco?
— Faça o que precisa ser feito, menina. A minha sobrinha não pode
ser incriminada por isso e nem sujar o próprio nome. Livre-se das provas e
tire-a daí.
— Ela caiu e bateu a cabeça. Acho que vai precisar de pontos.
— Então leve-a para o hospital. Eu cuido do resto.
— Que porra! — xinguei e desliguei.
— Bárbara! — Diana me chamou com dificuldade e vi a atadura
cheia de sangue.
— Vem, você precisa ir pro hospital.
Peguei a chave do carro, a bolsa dela e saímos. Ela ainda estava
zonza quando a sentei no banco do carona.
Cheguei à emergência do hospital e fomos recebidas por umas
pessoas que eu não conhecia, mas que com certeza conheciam a Diana, pois
uma pequena multidão de médicos e enfermeiros se formou quando alguém
anunciou que era ela. Vi a tal da Jéssica. Ela estava nervosa, mas
movimentou tudo para que a Diana fosse atendida imediatamente.
Puseram-na em uma maca e empurraram para dentro. Acompanhei,
mas vi aquela cena de longe. A doutora Jéssica retirou a atadura e checou o
ferimento, depois apenas pôs um curativo. Eu cheguei mais perto para
perguntar o que estava havendo, nesse mesmo instante ela ordenou que
empurrassem a maca e seguiu na direção de uma porta. Mas eu não deixei
que saíssem daquele jeito, sem me dar mais informações. Segui-os e agarrei
o jaleco dela.
— Pra onde estão levando ela?
— Pra fazer tomografia. O ferimento é profundo.
— Eu vou junto...
— Não, você não pode. — falou, em um tom irritado. — Aguarde
na recepção, logo traremos notícias.
Fiquei com raiva, mas sabia que não podia entrar. Tentei ficar ali e
não aguentei. Esperei ninguém estar olhando e entrei pela mesma porta que
levaram a Diana, ignorando o cara que me seguia falando que eu não podia
entrar.
Que droga! — xinguei ao entrar e não ver mais nem sinal dela.
Vi o chefe dela passar quase correndo e resolvi esperar. Um médico
tocou meu ombro.
— Você não pode ficar aqui. Além disso, precisa preencher a ficha
de atendimento.
Suspirei, frustrada, mas fui lá. Com a carteira da Diana, a
recepcionista conseguiu fazer tudo sem precisar de muitas informações
minhas.
Não sei por quanto tempo esperei, mas fiquei ali. A respiração
presa. Milhões de pensamentos, tentando me enlouquecer.
Não posso deixar a Diana pegar culpa por matar aquela
desgraçada. — pensei decidida a assumir qualquer coisa por ela.
O celular dela tocou, e atendi rapidamente. Era o Augusto.
— Oi...
— Está tudo resolvido. Cadê a Diana?
— Não tive notícias ainda. Levaram ela lá pra dentro pra fazer uns
exames na cabeça...
— Vou falar com o doutor Jales, ele cuidará para que você não saia
de perto dela. O Toledo chega aí amanhã cedo. Cuide dela até lá, não deixe
que fale nada, com ninguém. Ela deve estar muito nervosa.
— Quem é Toledo?
— É um policial federal amigo meu, ele está ajudando. Então
colabore.
— Ok. A Ingrid morreu mesmo? — perguntei por garantia.
— Sim. — respondeu depois de hesitar.
— Valeu. — Desliguei e dez minutos depois o chefe da Diana
chegou perto de mim.
— Bárbara?
Só me levantei e o encarei.
— Venha comigo.
Eu segui aquele homem grande pelos corredores do hospital até que
chegamos a uma sala.
— A Diana vai ficar bem, foi só um susto. Logo ela vai para o
quarto.
— Obrigada!
Esperei. Fechei os olhos, recostada na cadeira onde estava. Até que
senti uma mão no meu braço.
— Oi, a Diana já está no quarto. — Era a Jéssica. — Você pode ficar
com ela. — disse e saiu, eu a segui.
Ela abriu a porta do quarto para eu entrar e foi embora. Só franzi o
queixo e vi Diana com a cabeça enfaixada, na cama. Segurei sua mão.

Diana

Abri os olhos e precisei de um tempo para entender onde eu estava.


Era um quarto de hospital. Senti um peso forte na cabeça, que latejava de
dor. Ergui a mão para tocar onde doía e vi o acesso venoso. Minha testa
estava enfaixada. Eu estava confusa, não lembrava direito do que tinha
acontecido. Olhei para o lado e vi a Bárbara.
— Oi, como se sente? — perguntou, ao me ver desperta.
— O que aconteceu? Por que eu estou aq...? — me interrompi, ao
lembrar. — Meu Deus! Ingrid.
— Ei... shiii... calma! — Ela pediu sussurrando.
De repente tudo voltou. Lembrei que havia atirado na maluca da
Ingrid e comecei a me agitar.
— Ela... ela... morreu? — perguntei, já em lágrimas.
— Amor, calma, por favor! Não fala nada... fica calma, tá tudo bem.
Ela tentava me acalmar, mas só me deixava mais nervosa.
— Como tá tudo bem, Bárbara? Eu atirei em uma pessoa...
— Diana, você precisa me ouvir, fica quieta. — falou sussurrando,
mas de um jeito firme e me assustei. — Desculpa, mas você estava
perdendo o controle.
— Só me diz, Bárbara... só me diz se eu a... me diz o que houve.
Ela suspirou, olhou ao redor e foi até a porta. Checou o lado de fora
e depois a fechou. Voltou para perto de mim.
— Escuta, a Ingrid estava descontrolada. Ela ia me matar. Você só
me defendeu...
— Ela morreu?
— Se você não tivesse atirado, eu estaria morta...
— Ela morreu, Bárbara? — perguntei em um tom firme.
— Sim, Diana! Ela morreu.
— Meu Deus! Eu matei uma pessoa... eu vou ser presa, vou perder
minha licença... e...
— Calma, você não matou ninguém, tá?
— Mas você disse que ela morreu...
— Sim, mas você não vai ser incriminada.
— Como assim?
Eu não estava entendendo mais nada. Antes que a Bárbara
começasse a explicar, a porta do quarto se abriu e eu vi a Lara entrar. Achei
que estivesse ali para me prender e já comecei a suar, mas ao invés disso ela
se aproximou da Bárbara.
— Me dá a arma. — pediu e vi a Bárbara puxar a minha arma da
própria cintura e entregar a ela. — E a capsula?
— Privada.
— Bom!
Elas claramente falavam da capsula da bala do crime.
Aparentemente estavam cuidando para que eu não fosse incriminada, mas
não sei se aquilo me deixava tranquila ou mais nervosa. Lara se aproximou
de mim e perguntou:
— Como você está?
— Confusa... o que tá acontecendo, Lara?
— Diana, pro seu próprio bem, esqueça o que aconteceu. Nós já
limpamos tudo, seu tio cuidou disso. Aquela maluca estava fora de controle
e não ia continuar viva por muito tempo. Seu pai estava prestes a sumir com
ela, então fica tranquila.
— Como vocês podem ser tão frias? É uma vida... ela era uma
bandida, mas era um ser humano. Não foi isso que aprendi... eu fui treinada
para salvar vidas e não tirá-las.
— Ora, Diana! Nem tudo é ao pé da letra. Ouça o que você está
dizendo. O que quer? Se entregar? Acabar de vez com a sua vida por ter
matado uma criminosa que dias antes tentou matar você e estava prestes a
acabar com a vida da sua namorada? Não se culpe tanto, ela não estaria se
culpando se tivesse matado a Bárbara. Além disso, você não tem tempo a
perder, não pode se dar ao luxo de se sentir culpada. Precisamos agir e
rápido. O seu amigo, Gabriel...
— Espera... o que tem o Gabriel?
— Ele desapareceu. Não temos notícias dele há dias e estamos
achando que o Afrânio o pegou.
— O quê?
E quando você pensa que as coisas não podem piorar...
40 – Força

Bárbara

Diana entrou em desespero quando ouviu aquela notícia da


delegada. Tentei contê-la.
— Amor, calma...
— Como vou ficar calma, Bárbara? Aquele desgraçado matou o
Gabriel... — disse em lágrimas.
— Fica tranquila, Diana! Não foi isso que eu disse. — A delegada
falou, tentando controlá-la. — Fomos a casa dele e vimos muita coisa fora
do lugar, vestígios de luta corporal. Aquele maldito deve ter descoberto que
ele estava de posse do HD do seu tio. Como não encontrou, provavelmente
o levou para descobrir onde foi parar.
— E você ainda me pede pra ficar tranquila? Se isso aconteceu, com
certeza ele deve estar torturando o Gabriel agora.
— Olha, eu entendo demais a sua preocupação, mas esse
nervosismo agora só vai atrapalhar. Você precisa se controlar, Diana. Chorar
e gritar não vai salvar o Gabriel. Nós vamos encontrá-lo e trazê-lo de volta
a salvo. Confie nisso.
A delegada tinha razão, desespero só atrapalhava.
— Eu sei que é difícil, mas tenta se acalmar, meu amor. — pedi e a
vi me encarar com o rosto vermelho. — O Gabriel é safo, vai dar tudo
certo. Ele vai sair dessa.
Ela suspirou e secou as lágrimas. Olhou pela janela do quarto por
um instante, como se ponderasse aquilo tudo, e voltou a falar com a Lara.
— Como a Ingrid foi solta, tão rápido?
— O plantonista recebeu uma declaração do psiquiatra dela, e o
Silvio Dorneles pagou a fiança. Infelizmente não tive o que fazer. Esse
Silvio é bem influente por aqui e muito próximo do prefeito.
Diana respirou profundamente e deixou suas lágrimas fluírem
novamente. Segurei sua mão, ela apertou a minha.
— Preciso falar com o Afrânio, Lara.
— Neste momento, você precisa se recuperar desse trauma na
cabeça. — falei, deixando claro que jamais a deixaria ir procurar aquele
miserável no estado em que estava. — Se ele levou o Gabriel, vai mantê-lo
vivo, pois sabe que você jogaria toda a merda no ventilador se o matasse.
Ele sabe que você gosta dele, o trata como irmão.
Notei Lara com o cenho franzido quando desviei o olhar da Diana
para ela.
— Ela tem razão, Diana. Se recupera e depois você procura o
desgraçado. Vou continuar investigando. Te mantenho informada. Agora
preciso ir. — avisou e se despediu, mas eu a segui até o corredor.
— Delegada! — chamei, e ela se virou com o celular na mão. — E a
Eulália? — perguntei com pesar sincero na voz.
— Ela foi encontrada. Recebemos chamada na central falando sobre
os tiros. Não poderíamos sumir com dois corpos, né? Como falei há pouco,
o Silvio, irmão dela, é muito conhecido na cidade.
— E ele não perguntou pela sobrinha?
— Bárbara, ele não disse nada, mas deu a entender que estava muito
decepcionado com ela. Deve ter descoberto alguma coisa. Vi um misto de
alívio e tristeza no rosto dele quando o encontrei.
— Eulália sofreu muito a vida inteira com aquela filha dela. — disse
e senti meus olhos embaçando. — Ela me ajudou muito, se eu pudesse ter
impedido essa loucura, teria.
— Eu sinto muito. Infelizmente foi a saída que ela encontrou para se
livrar desse sofrimento. — disse e enfiou a mão no bolso interno da jaqueta
para tirar um cartão de visita. — Me liga se precisar de alguma coisa. Eu
venho levar vocês para casa quando ela receber alta. Cuida dela. Até logo.
— Despediu-se com pressa e se virou para atender ao celular. — Dona
Irene, minha equipe continua procurando o seu filho... tenha paciência. —
Ouvi aquilo e voltei ao quarto.
Vi Diana mexendo no celular.
— O que ela disse?
— Perguntei sobre a Eulália...
— O que tem ela?
Naquele instante me dei conta de que ela ainda não sabia o que
realmente havia acontecido. Contei tudo enquanto ela me ouvia atenta, com
as mãos cobrindo a boca.
— Meu Deus! Aquela louca levou a mãe a cometer suicídio...
— Pois é... o mundo será um lugar melhor sem aquela miserável,
amor. Acredite!
— Ah, eu só quero esquecer isso, por ora... por favor!
— Tudo bem. Desculpa!
— Quero ir pra casa. Preciso saber do Gabriel...
Antes que eu falasse algo, a Jessica entrou.
— Oi, Diana... — falou, com um meio sorriso no rosto e um olhar
intenso demais para o meu gosto.
Olhei para a minha namorada e pedi em silêncio que ela mantivesse
o controle. Acho que funcionou. Ela suspirou e voltou a olhar para a
médica.
— Oi, Jéssica! Quando posso ir pra casa?
— Amanhã de manhã. Doutor Jales disse que você precisa ficar em
observação. Tenta descansar um pouco.
— Há quanto tempo você não vê o Gabriel?
— Tem uns quatro dias que ele não aparece aqui. Ele disse que
talvez precisasse viajar, mas não avisou nada, e doutor Jales chamou a
polícia.
— Viajar? Ele não me disse nada. Comentou algo com alguém que
você saiba?
— Não. Só disse que talvez precisasse, mas não foi adiante com o
assunto. Não sei, mas parecia que ia resolver algo pessoal.
— Entendi. Obrigada! Eu acho que consigo descansar melhor em
casa, Jessica.
Depois de conversar com o doutor Jales e convencê-lo a liberá-la,
fomos para casa. Já era noite quando entramos no apartamento. Eu a deixei
na cama e em poucos minutos ela dormiu. Alimentei os animais e preparei
o jantar. Fui à varanda e olhei para o prédio escuro da frente. Tomei um
banho enquanto refletia sobre todos os acontecimentos. Parecia que tinham
tirado uma tonelada das minhas costas, apesar de lamentar a morte da
Eulália.
Diana estava calada na hora do jantar. Tentei animá-la um pouco,
mesmo se esforçando não conseguiu. Resolvi deixá-la quieta. Quando deitei
ao seu lado, naquela noite, ela me abraçou e sussurrou um “te amo” com a
voz rouca.
No dia seguinte, vi Silvio estacionando em frente ao prédio da
Eulália e desci. Diana dormia, peguei dinheiro para comprar pão.
— Silvio? — Ele se virou e me encarou, engoli saliva.
O rosto dele estava abatido. Tinha olheiras profundas. Num ímpeto,
ele me abraçou com força e chorou. Era um choro silencioso, mas senti as
lágrimas molhando meu ombro.
— Me perdoe. — disse ao se afastar. — Podemos conversar um
pouco?
— Claro. Eu sinto muito, Silvio. — Fui sincera e o segui enquanto
entrava na casa.
— Eu sei, minha filha.
Ele olhou em volta. O clima naquela sala estava pesado. Estranho.
Olhei para o chão e notei que fora lavado, mesmo assim senti o cheiro de
sangue.
— Você sabe da Ingrid?
— Ela veio aqui, mas...
— Pode falar, Bárbara. Os vizinhos me contaram que ela tentou
matar você, te viram fugindo, correndo. Só preciso saber se você tem ideia
de para onde ela foi?
— Não... — respondi, nervosa.
Quando eu precisava de apoio eu não tinha, estava ficando
vulnerável demais nos últimos dias.
— Sabia que... — começou e se sentou numa cadeira. — Ela matou
a própria mãe? — foi às lágrimas de novo. — Esses anos todos, minha
filha, a Eulália sofreu nas mãos dela e achava refúgio na bebida para
aguentar.
O sofrimento dele me fez chorar, tentei me manter, mas foi
inevitável. E eu gostava da Eulália.
— Eulália só amou um homem, uma vez, e esse homem a traiu e a
usou de todas as formas. Nunca correspondeu ao devoto sentimento dela. A
única filha dela é uma bandida, assassina. — Franzi o cenho e ele balançou
a cabeça. — Ela matou uma pessoa lá no Rio de Janeiro. O doutor Afrânio
disse tudo pra Eulália, ela conversou comigo e contou que a Ingrid matou
uma psicóloga por lá. E sem contar os outros crimes políticos.
— Ele contou tudo isso? — perguntei, assustada ao ouvir aquilo.
— Sim, ele encheu a cabeça dela. Não sei até onde é verdade, mas
procurei saber sobre a tal psicóloga e descobri que ela foi mesmo morta, no
dia que ele disse que a Ingrid esteve no consultório dela.
— A Eulália não devia ter acreditado nessas coisas. O doutor
Afrânio é um bandido, Silvio. Eu tenho provas disso. — despejei, nervosa.
Precisava me acalmar ou acabaria falando o que não devia.
— Ele tem provas, Bárbara. Mostrou tudo para a Eulália. A minha
irmã não aguentou, minha filha. Ela já estava exausta disso tudo. No único
momento de sobriedade ela descobriu que a filha é uma assassina. —
revelou e suspirou profundamente. — Disse que tinha você como uma filha.
Que você a tratava muito bem e pediu pra eu não deixar você
desamparada... e eu não notei que aquilo era um pedido de despedida. —
Soluçou novamente. — Obrigado.
Achei o meu ponto fraco sobre aquela família. Era família.
— O que você precisar, não hesite em me procurar, tá bom? E se a
Ingrid procurar você, chame a polícia.
Eu assenti em silêncio.
— O enterro será hoje, às 17h. Avisei à polícia porque se ela
aparecer por lá já a levam presa, e nunca mais na minha vida vou usar
minhas amizades para tirá-la da cadeia.
Engoli saliva novamente e pensei no que ele acharia se soubesse que
ela estava morta. Pensei também se os vizinhos não ouviram ou viram o tiro
da Diana.
— Você é minha única família agora, Bárbara. Obrigado! Me visite,
por favor. Sou um velho chato, mas gosto de você. E sei que a minha irmã
também gostava muito. Em breve também não estarei mais aqui.
Dei mais um abraço nele e me despedi. Fui à padaria e comprei o
pão que a Diana gostava. Ela ainda dormia quando entrei. Fiz omelete,
suco, cortei umas frutas e preparei uma bandeja. Aquilo me acalmou.
— Ei, ursinha, acorda! — sussurrei e ouvi um gemido dela.
Dei um beijo carinhoso em seu rosto e ela abriu os olhos, sorrindo.
— Bom dia! — desejei com o remédio na mão e um copo com água.
— Hora do seu remédio, doutora!
— Bom dia! O remédio é só às nove. — disse e arregalou os olhos
ao ver a hora.
Eu sorri. Ela se sentou e pegou o remédio. Peguei a bandeja e
coloquei sobre a cama. Ela sorriu de novo, mas consegui ver tristeza em
seus olhos.
— Como se sente?
— Bem, apesar de sentir um pouco de dor. Obrigada!
Tomamos café falando de assuntos sem importância. Ela tomou
banho e foi para a sala. Verificou e-mails.
— Falei com o seu tio ontem, ele avisou que o Toledo chega hoje.
— Às vezes, me sinto tão suja por fazer parte dessa história nojenta.
— Eu sei, mas você não tem culpa.
— O Afrânio é tão miserável que não cumpriu nada do que
acordamos. Eu tenho o sangue dele, Bárbara. Isso me enoja tanto. — disse,
em meio a uma careta de asco. — Eu preciso falar com ele, preciso colocá-
lo contra a parede.
— Eu não vou deixar você encontrar com ele de novo, Diana.
Principalmente assim... — apontei o curativo dela.
Tocaram a campainha naquele momento. Ela me olhou e franzi o
cenho, verifiquei o celular e fui até a porta.
— Toledo, Bárbara. Abra! — Arrepiei inteira ao ouvir aquela voz
mansa, mas abri a porta.
O homem era pálido demais. Tinha os lábios rachados. Olhos
castanhos claros e expressivos. Entrou e ele mesmo fechou a porta devagar,
como se houvesse um recém-nascido dormindo ali na sala. Diana se
levantou para cumprimentá-lo. Eu apontei a parede, e ele colocou as mãos e
afastou os pés. Fiz uma revista rápida e retirei a arma que portava.
— Isso aqui fica comigo. — Ele não resistiu. — Posso ver sua
identificação? — pedi, encarando-o.
Ele me olhou com um sorriso meio assustador no rosto e me
entregou uma carteira.
Eu analisei o documento por uns segundos e devolvi. Fiquei igual
um cachorro de guarda observando. Qualquer movimento brusco, e ele seria
um homem morto.
Depois dos apertos de mão, Diana o mandou se sentar.
— Eu preciso de notícias do Gabriel.
— Eu sei. Infelizmente o nosso pessoal deixou passar isso. Peço
perdão. Em uma semana o doutor Afrânio pode se tornar senador e ele não
quer que nada dê errado, por isso está aqui, perto de você. Então você vai se
recuperar desse ferimento e vai ligar pra ele para dar um ultimato. Use o
nome de Neila Medeiros, ele a conhece. Com isso ele dará notícias sobre o
seu amigo...
— Vou fazer isso agora mesmo, Toledo. Eu não vou conseguir ficar
bem sem saber o que fizeram com o Gabriel.
Ele ficou uns segundos parado, analisando a Diana, enquanto eu o
analisava. Semicerrei os olhos quando ele me encarou.
— Ela pode fazer isso? Os médicos disseram algo que a impedisse?
— É só um telefonema.
Diana se preparou para ligar para o miserável do pai dela, pegou o
celular antigo. Toledo sorriu como se debochasse de mim. O sorriso dele era
fechado o tempo todo, parecia aquelas pessoas inseguras que têm dentes
tortos e se envergonham de mostrar. Mas os dele eram bem retos e brancos.
Diana respirou profundamente e apertou o botão para chamar no
número do pai. O celular estava sobre a mesa, como o viva-voz acionado.
— Oi, filha, tudo bem? Eu soube que você deu entrada no Bonfim.
Se machucou como? — disse com a voz rouca.
— Cala a boca, seu desgraçado. Cadê o Gabriel?
— Quem é Gabriel, meu anjo? — indagou com aquela voz mansa,
que fazia sempre para nos irritar.
— Não seja cínico, Afrânio. Nós tínhamos um acordo e você, como
sempre, não cumpriu.
— Do que está falando, Diana? Seja clara, filha.
— Ok, papai. Vamos fazer assim... já que você não sabe de nada, eu
vou ser bem clara, mas com a Neila Medeiros. Estou neste momento com
ela em espera, em outra chamada, e ela está bem ansiosa para saber o que
tenho para falar sobre você.
O velho ficou em silêncio por uns segundos. Ouvimos um barulho e
logo depois a voz asquerosa dele, sem o apelo do carinho.
— Do que está falando, Diana?
— Você perdeu a noção? Enlouqueceu? O que houve? Paizinho, eu
tenho muitas provas que acabariam com a sua vida em segundos, você sabe
disso. Eu pedi apenas que ficasse longe dos meus amigos, mas você foi
incapaz. Seu miserável.
Toledo desligou a chamada, pegou o próprio celular e digitou algo.
Diana o encarou sem entender tentando controlar a própria respiração.
Tinha o rosto vermelho. Ele apenas acenou para que ela esperasse.
— O que você fez? Se o Gabriel ainda estiver vivo ele vai matá-lo.
— Calma.
Eu fiquei nervosa com o desespero da Diana. O celular dela tocou,
mas Toledo recusou a ligação.
— O que você pretende, caramba?
— Acalme-se, Diana! — pediu e olhou para a tevê, viu o controle e
o pegou, ligando o aparelho.
— Infelizmente a nossa chamada com a Diana Sobreira caiu, mas
vamos entrar em contato com ela novamente. — avisou a mulher do
noticiário.
Que porra está acontecendo aqui? — pensei, preocupada.
O velho ligou novamente, e Toledo acenou para que Diana
atendesse. Ela o fez, nervosa, tremendo.
— A porra do teu amigo estará no Bonfim em meia hora. Faz merda
e você vai ficar sozinha no mundo junto comigo. — ralhou, nervoso.
— Não confio em você, Afrânio. Espero que não esteja blefando.
— Não me teste, Diana.
— Não me teste você, seu miserável. Não adora dizer que sou
sangue do seu sangue? Pois fique sabendo que se eu quiser ser má, posso
ser muito pior do que você. — disse interrompendo o velho e depois
desligou.
Exatamente meia hora depois peguei o celular novo dela e liguei
para o Gabriel, que atendeu. Acenei para ela.
Levantou-se e pegou o celular.
— Gabriel? — Já em lágrimas. — Ah, meu Deus! Você está bem?
Toledo ligou para alguém e eu apenas assistia àquela operação.
— Lara, ele caiu. O garoto está no hospital. Provavelmente
machucado. Me dê notícias. — disse e desligou.
Abracei a Diana, que chegou perto de mim.
— Bateram muito nele. — disse num fio de voz.
— Calma, ele vai ficar bem.
— Vou trazê-lo para ficar com a gente, tudo bem?
— Claro. Senta aqui... — pedi e fui à cozinha, peguei água e dois
copos. Servi um pra ela e outro para o policial.
— Obrigado. — agradeceu e tomou a água.
Diana também agradeceu e bebeu. Sentei-me ao lado dela.
— Quebraram as mãos dele. O Afrânio é um monstro.
— Mas tá vivo, amor. Ele vai se recuperar, vai voltar a operar, você
vai ver. Você foi ótima com o seu pai. — falei suavemente e olhei para
Toledo, que me analisava com aqueles malditos e insistentes olhos
semicerrados. — Você vai garantir a segurança dele? — perguntei com
firmeza, e ele assentiu calmamente.
Acho que o Toledo é o tipo de cara que se o mundo estiver
desabando ele vai estar sentado de pernas cruzadas enquanto reflete sobre o
apocalipse.
Parece que nada o afeta. Não duvido que seja um robô.
— A Lara está indo pra lá, vai deixar dois policiais se revezando.
Vou providenciar tudo para que vocês possam receber o amigo de vocês
aqui... — avisou e se levantou. — Com licença.
Ele foi até o quarto e voltou olhando a casa toda. Colocou uma caixa
de balas sobre a mesa, perto da arma dele, e saiu.
Antes das três da tarde daquele dia, dois entregadores colocaram
uma cama no quarto extra, que Diana usava como escritório.
Contei para ela sobre a conversa com Silvio e avisei do velório. Ela
não questionou nada sobre as minhas sessões com a psicóloga assassinada
pela Ingrid e ainda foi comigo ao cemitério. Preferiu esperar no carro
enquanto fui dar um abraço no homem.
Exatos três dias depois da visita do Toledo, Gabriel foi levado para o
apartamento da Diana por Lara e seus colegas. Ele estava horrível. Tinha os
dois braços e uma perna engessados. O rosto deformado, dente quebrado.
Mas sorriu ao ver a amiga, que foi às lágrimas quando o abraçou com
cautela.
— Desculpa. Eu não devia ter envolvido você nisso.
— Tudo bem, Diana. Eu me envolveria sem você pedir. Eles
queriam o HD. Como eu disse que não tinha mais, fizeram isso. Mas vai
ficar tudo bem.
— O que os médicos disseram sobre sua mão? — perguntei e ele me
olhou como se me notasse ali só naquele momento.
— Vai levar um tempo, mas com fisioterapia vou voltar a operar.
Obrigado por perguntar e por me receber.
— Imagina. Com licença. — pedi e fui preparar o almoço.
Almoço que ele elogiou muito quando provou. Diana colocou na
boca dele como se ele fosse um bebê. Fiquei um pouco puta quando ela
precisou dar banho nele.
— Amor, eu sou uma médica, já vi homens nus.
— Acho que um homem que arrasta um bonde por você seja a
primeira vez. — disse e ela sorriu me beijando em seguida.
— Minha ciumentinha linda! Te amo. Obrigada.
E aquela se tornou a nossa rotina. Vimos o desgraçado se tornar
senador como o mais votado do país.
Duas noites antes da eleição, um helicóptero levou a Diana ao Rio
de Janeiro para jantar com o Afrânio e a família do noivo fake dela. A
coitada precisou atuar para a imprensa ao lado do tal Cristiano Gabeira, mas
ficou mais tranquila ao notar que ele era gay, embora tentasse disfarçar.
Mesmo assim, notei a repulsa dela ao falar sobre o assunto. Eu estava
preocupada, cada dia que passava ficava mais difícil acabar com o
desgraçado.
Afrânio recuou um pouco sobre o casamento, ficou com medo das
ameaças da minha bad girl. Antes de forçá-la a qualquer coisa, ele
precisaria achar um jeito de derrubar o Augusto, que estava muito bem
protegido pela equipe do Joel Toledo. Mesmo assim, ele exigiu que ela
passasse a ver Cristiano pelo menos duas vezes por mês, para que os dois
aparecessem publicamente como um casal. No momento oportuno, ele daria
o sinal para que o casamento acontecesse.
Nós não podíamos mais demonstrar afeto em público, porque a
imprensa estava sempre em cima dela. Para todos, Gabriel, ela e eu
dividíamos o apartamento como amigos.
Jales ligou para Diana e propôs que voltasse a trabalhar. E ela
aceitou, colocando condições de sair quando precisasse. Ela pretendia ficar
em segurança ao lado do tio para enfrentar Afrânio de novo. Eu estava igual
uma boa esposa, preocupada.
Fiz nossa ceia de Natal com a ajuda do Gabriel, que se mostrou
prestativo e brincalhão. Ainda fazia fisioterapia, mas conseguia fazer as
próprias coisas sozinho. Diana não deixou que voltasse para o apartamento
dele. Ele ia para o hospital todo dia, não operava, mas assistia. Estudava.
Toledo nos visitava a cada duas semanas. Não sei se tinha trabalho
na cidade ou se ia até lá só por nossa causa, mesmo com a Lara aparecendo
quase todos os dias.
Outro que aparecia a cada quinze dias era Cristiano. Quando vinha,
Diana precisava se montar inteira, sair para jantar com ele e dormir em uma
suíte no mesmo hotel em que ele se hospedava. Isso me enchia de ódio, mas
me acalmava saber que poderia ser pior. Ela dizia que ele era muito polido,
falava pouco e não parecia estar nenhum pouco incomodado com a farsa.
Ele era político também, então isso não era de se estranhar.
Na noite de Natal, fiz uma chamada de vídeo com o Augusto, que
estava sozinho no Rio, e ganhei um olhar brilhante da Diana, que me beijou
com carinho e agradeceu num sussurro.
Tomamos vinho na virada do ano e vimos os fogos pela varanda.
Gabriel foi à praça e voltou antes das duas. Eu visitava Silvio quase toda
semana. Ele ficava feliz e sempre perguntava por Ingrid.
Afrânio e a corja dele continuavam espalhando que a Diana e
o playboy estavam namorando e os dois já estavam virando o casal mais
falado da mídia.
Esse velho não se cansa mesmo.
Diana chegou em casa aborrecida e foi direto para o banheiro.
Esperei que terminasse e fui perguntar o que tinha havido.
— Desculpa. Afrânio está na cidade... — disse com os olhos
vermelhos enquanto pegava uma pequena mala.
— Já foi te perturbar? Esse maldito não se cansa?
— O Cristiano e a família também estão na cidade.
— Que merda!
— Querem que eu vá jantar com eles e querem que eu os
acompanhe ao Chile. O avião sai daqui a pouco.
— O quê?
— São só dois dias e vou falar com vocês o tempo todo. É apenas
articulação política.
Respirei fundo, de olhos fechados. Minha vontade era só de matar o
Afrânio e acabar com aquele inferno de vez.
— Eu tenho que ir, mas fica tranquila. A Lara vai mandar alguém
aqui e vou com dois policiais à paisana, foi minha condição. — disse e me
abraçou com força. — Eu te amo!
Meia-hora depois, um carro luxuoso estacionou na frente do prédio.
Eu me despedi dela com um nó na garganta. Ela conseguia ficar
mais linda ainda para ir encontrar com aqueles abutres.
41 – Estocolmo

Diana

Enfrentar o Afrânio daquele jeito para trazer o Gabriel de volta me


fez muito bem. Naquele momento, eu decidi que seria a peça-chave para
dar um basta nele de uma vez por todas.
Claro que a presença do Joel me deu segurança, mas sentir o medo
na voz daquele desgraçado ao ouvir a minha ameaça me deu uma força
imensa.
— Gostei de ver, filha. — falou, sorrindo, quando nos encontramos
em um heliponto de um clube, depois de eu aceitar jantar com o Cristiano e
a família dele no Rio. — Mostrando as asinhas!
— Você ainda não viu nada, paizinho! — Entrei no jogo dele e usei
mil estômagos que eu não tinha.
Entramos na aeronave, que decolou rapidamente e em poucos
minutos estávamos no aeroporto de São Paulo, onde embarcamos, em um
voo fretado, para o Rio de Janeiro.
A família do Cristiano era aquela típica família de engomadinhos.
Ele era muito bonito... e muito gay. Notei quando nos cumprimentamos. Por
mais que se esforçasse para não dar pinta, eu conseguia perceber os
mínimos detalhes. Nunca me enganava. E como se isso, por si só, não fosse
o bastante, ele tinha um amigo muito próximo, que não largava do pé dele.
Dali em diante, eu passei a observar aquela gente como uma
espectadora externa, embora, infelizmente, eu fizesse parte daquilo.
Entramos e senti o meu estomago embrulhar quando a mão do
Afrânio tocou na minha cintura.
A enorme mansão da família Martini ficava em um bairro nobre do
Rio de Janeiro. Tinha um jardim bonito, com luzes amarelas. Por dentro,
uma decoração clássica e requintada.
Não sei como é o castelo da rainha Elizabeth, mas acho que se
parece muito com isso aqui. — Meu pensamento foi interrompido pela mão
asquerosa do Afrânio subindo para o meu ombro.
— Você pode não me tocar? — perguntei, por entre os dentes.
— Não posso, não. — respondeu, sorrindo enquanto nos
aproximávamos de um grupo de pessoas.
Uma música clássica tocava baixinho. Algumas pessoas tomavam
champanhe e conversavam, espalhadas pelo ambiente.
— Faça a sua parte, filhinha! — ordenou e deu um beijo na minha
bochecha, roçando aquela asquerosa barba espessa dele no meu rosto.
Depois do jantar fomos para a sala de estar. A conversa era a maior
parte do tempo sobre política. Estavam muito felizes com rumos das
pesquisas.
São todos da mesma laia.
Eu estava no meio das piores pessoas do mundo, as que riem das
desgraças dos ignorantes, se aproveitam da ingenuidade da maioria. A cada
comentário maldoso, meu estômago revirava.
Naquele momento, se eu expusesse todos os crimes do Afrânio, eles
provariam que tudo era fake news em dois tempos e não teriam qualquer
dificuldade em convencer a multidão de ignorantes que os seguiam
fielmente, acreditando que eles eram a salvação do país.
A esperança de fazer justiça faz com que alguns acreditem que
bandido é mocinho nessas épocas, e mesmo quando descobrem que foram
enganados, fecham os olhos para as coisas erradas que aparecem, não
aceitam que erraram, não aceitam críticas, preferem a conveniência com
apoio de iguais a assumir uma opinião contrária e própria.
O ser humano parece que sofre da síndrome de Estocolmo. Quando
se trata de política, defende alguém que rouba, debocha e mata os seus
iguais como se aquilo fizesse parte de uma forma bizarra de sobrevivência
para eles, que têm o poder nas mãos. Criticam a minoria que dispensa o véu
da mentira e fala, joga a verdade para fora. Mas minoria nunca foi vista
com bons olhos e na política não é diferente.
Eu faço parte de algumas minorias e tenho orgulho disso. E vou
fazer a minha parte mesmo sabendo que as manipulações desses miseráveis
vão acabar com todas as minhas esperanças. Mesmo assim, não serei
conivente com criminosos.
Vou destruir o Afrânio e essa corja dele!
Quando pararam de falar de política, voltaram-se para mim e me
encheram de perguntas. Tentei ser o mais objetiva possível, mas algumas
eram bem capciosas. Quando o interrogatório acabou, posei para inúmeras
fotos com a família e com Cristiano.
— Abraça a moça direito, filho. Vocês estão apaixonados. — O pai
dele disse e notou que a minha cara não foi a melhor.
Depois da sessão de fotos eu avisei que precisava descansar. Mal
entrei no quarto e Afrânio bateu à porta.
— O que você quer?
Ele apenas entrou e olhou em volta.
— Você foi ótima, mas precisa parecer mais feliz ao lado do
Cristiano. Isso é um negócio, Diana. Não seja infantil.
— Ahan! Era só isso?
Ele coçou a barba e me analisou por uns segundos.
— Amanhã você tem um passeio de lancha com o seu noivo. Será
fotografada. Não preciso dizer mais nada, espero. — Mencionou sair e se
virou. — Boa noite, filha. Amo você.
Fechei a porta sentindo o meu rosto arder. Queria gritar de ódio.
Tomei banho e fui para a cama, liguei para a Bárbara e nos falamos por
horas. Aquilo me acalmou.
No dia seguinte, no passeio, eu pude conversar a sós com o
Cristiano.
— Eu fui criado para ser como eles, Diana. Não sei ser diferente.
Não entendo a sua rebeldia, mas respeito.
— Não é rebeldia, minha índole que não permite mesmo que eu seja
conivente com essa sujeira toda.
— Sujeira — disse e sorriu. — É política, Diana. Isso que estamos
fazendo aqui é politicagem. A vida precisa disso.
— Ok, Cristiano, não vou adiante com esse assunto. Vi que você
jamais vai se permitir pensar por si só, então não vou ser a chata que vai
falar algo nesse sentido.
— Depois que nos casarmos podemos morar fora do Brasil, se você
quiser. Como eu disse, respeito a sua opinião e não tenho intenção de forçar
nada.
— Pode ser. — falei, encarando-o por trás dos óculos escuros.
Ele pegou uma taça de uma bandeja servida por uma moça e me
entregou. A saudade que eu sentia da Bárbara estava me fazendo dispersar
rapidamente. Não queria que ela estivesse comigo naquela lancha, eu queria
estar em casa com ela, na nossa casa, com nossos filhotes.
— Você é linda demais, Diana! Quando vi sua foto e soube pelo seu
pai que você não tinha ninguém fiquei admirado.
— Mas eu tenho alguém, e ele sabe muito bem disso e a conhece
bem também.
— Você é...?
— Sim, sou completamente apaixonada por uma mulher. Somos
casadas, temos um gato e um cachorro. Eu nunca me escondi ou a escondi
de ninguém. A frustração do Afrânio é essa.
— Qual é a sua mágoa com o seu pai? Ele fala de você com um
orgulho tão grande.
— Quem sabe um dia eu te conte.
Franzi o cenho quando ele se aproximou de mim e tomou meu rosto
com carinho.
— Calma, o fotógrafo chegou. Aquela lancha lá é dele. Eu estou tão
incomodado quanto você, mas você entende que precisamos fazer isso?
— Não, mas dei a minha palavra, então...
Evitei alguns assuntos e depois de longas três horas retornamos a
casa dele.
Voltei para Vila dos Lírios na noite daquele dia. Mesmo sabendo das
manipulações nas pesquisas eu fiquei apreensiva e com um fio de esperança
de que o demônio não ganhasse, mas ele foi eleito com folga.
Voltei a trabalhar quando levei o Gabriel para retirar o gesso dos
braços e da perna. Andou ainda mancando, mas já conseguiria comer
sozinho e fazer suas necessidades básicas.
Fiquei tão emocionada quando entrei na sala de cirurgia novamente
que nem liguei para os comentários idiotas da Marina, que não perdia uma
oportunidade sequer de me provocar.
Depois do segundo turno eu tive um pouco de paz. Pude curtir a
minha mulher, meu amigo e meus filhotes.
— Andei sabendo que você vai se casar com um playboy do Rio de
Janeiro. Não se cansa de fazer merdas, Diana? — Luís perguntou deitado no
meu colo, no chão da sala.
— Ah, Luís, você sabe que nasci pra isso, não sabe?
— Como você consegue viver com uma maluca dessas? — Gabriel
perguntou à Bárbara quando me viu falando com o gato, e eu ri.
— Eu acho a coisa mais linda desse mundo, Gabriel! Ela é perfeita!
— Ela respondeu e sentou ao meu lado, me beijando em seguida.
— Você pode fazer isso todos os dias, Diana, que eu não vou me
acostumar com essa maluquice nunca. — Meu amigo deixou claro e apenas
sorri.
Lecter chegou perto e foi a vez dele conversar comigo, havia
crescido e estava desengonçado muito fofo.
— Você tá crescendo muito rápido, rapaz! — Acariciei-o, e ele
abanou o rabo todo feliz.
Ficamos assim por uns minutos até que o ciúme do Luís acabou com
aquele clima, e Bárbara repreendeu os dois.
— Vem cá... — chamei e a coloquei no meu colo.
Gabriel se deitou no sofá e parou de olhar para nós.
— Eu te amo! — disse e a beijei com carinho.
— Eu também te amo. Muito.
Acabamos aquele assunto no quarto. Dormíamos sempre juntas, mas
quando eu precisava dormir no hotel para fingir dormir com o Cristiano era
como se fosse o fim do mundo, fazíamos vídeo chamada e dormíamos
olhando uma para a outra pela tela do celular.
Depois de alguns anos sozinha, eu tive um Natal feliz, até o meu tio
participou, por uma chamada de vídeo. Tudo proporcionado pela Bárbara.
Vi uma notícia sobre Cristiano em um site, a matéria falava do
suposto namoro dele com um homem. Aquilo não me afetou em nada e nem
afetaria.
Afrânio me deu um descanso de um mês e meio apenas e depois
apareceu no hospital.
— Filha, quero que me acompanhe por cinco dias ao Chile.
— O quê? Afrânio, eu já aceitei a palhaçada toda, nunca vou passar
tanto tempo longe assim. — Fui taxativa enquanto suturava o ferimento de
um paciente na emergência.
Ele acenou para Marina e pediu que ela assumisse o meu trabalho,
me pegou pelo braço e me levou para uma sala vazia.
— Olha aqui...
— Olha aqui você, Afrânio. Não vou passar tanto tempo assim
fora...
— Diana, por favor, não me provoque!
— Ou quê? Você não me põe medo mais, Afrânio. Não vou sair do
país com você e não vou passar cinco dias fora. — Mencionei sair, mas ele
me conteve segurando pelo braço.
— Espera. — pediu e respirou fundo. — Por favor, eu preciso dessa
parceria, e agora faço parte da família Martini, graças a você. E depois,
temos um acordo, Diana. — disse e se aproximou de mim apontando o
dedo. — Não se esqueça, jamais, que estou de olho em todos os seus
amiguinhos. Já sou senador, não temo mais perder a eleição e posso muito
fácil desqualificar qualquer denunciazinha que você fizer.
— Sério? Então ok. — Mencionei sair de novo, e ele me puxou
bruscamente.
— Você vai comigo, sim.
— Cinco dias? Nunca. Além disso, precisaria saber exatamente o
que faria lá e como voltaria para casa.
— Tudo bem, Diana. Dois dias. Preciso encontrar um pessoal no
primeiro dia e vamos jantar e oficializar a data do casamento no dia
seguinte. Os demais dias eu fico sozinho e você volta.
— Eu vou levar dois seguranças, vou falar com a Bárbara sempre
que eu quiser e quero voltar 48 horas depois de sair daqui.
Ele me analisou por uns segundos com um olhar estranho. Às vezes
eu tinha uma impressão ruim... não que ele em algum momento me olhasse
com bons olhos, mas tinha certos momentos em que era muito pior, era
como se me admirasse de um jeito estranho... sei lá.
— Embarcaremos em uma hora e meia. Esteja pronta, um carro vai
te buscar. — falou e saiu, sem me dar oportunidade de retrucar.
Saí do hospital e liguei para a Lara, ela mandou dois policiais
comigo e garantiu que cuidaria da minha casa.
Passei em casa, tomei um banho rápido, fiz uma pequena mala e me
despedi da Bárbara.
Senti um nó na garganta quando o jatinho particular da família
Martini levantou voo. Quatro horas depois pousamos em Santiago.
A casa era grande, bonita, rodeada de uma área verde e repleta de
seguranças armados. Achei aquilo um tanto estranho, mas não perguntei
nada. Os dois policiais que foram comigo ficaram em um quarto ao lado do
meu, que eu teria que dividir com o Cristiano. Soube pelo Afrânio que ele
só chegaria no dia seguinte, pois tivera um imprevisto. A cama era enorme,
poderia erguer um muro bem no meio dela e ainda ficaria bem espaçosa nos
dois lados, mas eu não cogitava dividi-la com o meu noivo falso mesmo
assim.
Ele que durma no chão ou na banheira.
Jantei no quarto e me livrei de sorrir para desconhecidos. Afrânio se
reuniu com uns homens.
Eu e meu hábito de olhar a noite saímos para a varanda. Ouvi a voz
de Afrânio ao telefone e recuei um pouco para não ser vista.
— Mata essa desgraçada! — disse furioso por entre os dentes. —
Está todo mundo comentando. Só nós sabemos disso, Cleiton. — Ouvi sua
respiração alterada. — Não vai respingar nada na gente, não. Eu garanto.
Aquela maldita mexe com tanta gente importante que será muito difícil
descobrir quem mantou Melinda Herchcovitch.
Eu comecei a tremer. Aquele era o nome da blogueira dona do site
que publicou a matéria sobre o Cristiano. Respirei fundo e continuei
ouvindo.
— Bomba é bom, faz do jeito mais vagabundo possível para parecer
coisa de inimigo pobre. Aquela desgraçada não vai ficar viva para espalhar
as merdas dela por aí.
Vi uma caminhonete chegando e Afrânio desligou. Quando vi os
faróis prestes a me mostrar ali, me escondi atrás da cortina. Naquele
momento meu celular vibrou, me assustando, e o coloquei no silencioso.
— Doutor!
— Hola...
Não consegui mais ouvir nada. Estiquei a cabeça e consegui ver
Afrânio verificando o conteúdo que havia embaixo da lona da caminhonete.
— Hablemos en la oficina— chamou em castelhano.
Falei com a Barbara e virei a noite com ela, não conseguiria dormir
de forma alguma, mas não contei nada daquilo. Só desliguei o telefone
quando bateram à porta. Era o Cristiano chegando.
— Bom dia! Vamos tomar café no jardim, preciso apresentar você
ao pessoal. Em vinte minutos vão servir. — avisou e deixou o quarto.
Tomei banho e desci. Observei tudo. O jardim era mais bonito
durante o dia. Os sorrisos que eu não dei à noite, precisei dar naquele café.
Depois todos foram para seus compromissos. Ficamos Cristiano e eu à
mesa.
— Por que viemos, Cristiano?
— Vamos marcar a data. Essa casa é da família da minha avó, e ela
virá para o jantar oficial de noivado. Já é idosa e não queria voar até o Rio.
Enquanto isso nossos pais fazem negócios.
— Por que todas essas armas? Aqui é perigoso?
— Às vezes, sim. — O celular dele tocou e pediu licença saindo.
Eu saí também, voltei para o quarto. Minutos depois outro carro
chegou, e dele saiu Marina.
Que porra é essa? O que essa desgraçada faz aqui?
Resolvi sair do quarto para tentar descobrir o que estava
acontecendo. Olhei para o corredor e não vi ninguém. Fiquei no topo da
escada sem fazer barulho. A casa estava em silêncio apesar da
movimentação. Vi Marina entrar e ser recebida por uma mulher, que a
cumprimentou e pegou sua pequena mala.
— O pessoal já chegou? — indagou de forma íntima demais para
ser sua primeira visita.
— A senhora Rosário só chega à noite, já está velhinha...
Eu me escondi e as vi subir a escada enquanto conversavam. A
mulher abriu uma porta e as duas entraram. Não consegui ouvir direito o
que diziam, mas ouvi Marina dizer que fez boa viagem. Logo as duas
saíram, agora Marina perguntava pelas crianças.
Quando desceram a escada e seguiram em direção ao jardim, eu
entrei no quarto dela. Esperaria ali, precisava saber o que fazia lá, se estava
envolvida nas bandidagens do Afrânio.
Ouvi barulho de carro e fui até a varanda. Dois carros grandes. Mais
homens e mais cargas. De um deles desceu um homem alto, moreno, com
correntes douradas e reluzentes no pescoço, sugando um charuto.
Incomodada com aquela situação eu mencionei voltar para o meu
quarto, mas Afrânio entrou com Marina naquele momento e me escondi.
— Esse pessoal é muito poderoso, minha linda. Seja boazinha com
eles.
— Não tenha dúvida de que serei. — disse, sorrindo, e se aproximou
dele, que sorriu também e a abraçou pela cintura e...
Que nojo! — quase gritei, mas internalizei aquele pensamento de
repulsa quando os dois se beijaram e ele apertou a bunda dela.
Eu tremia. Precisava sair dali, não queria ver mais nada. Afrânio se
afastou.
— Agora não. Guarda esse fogo para mais tarde. Preciso receber os
convidados. Descanse um pouco ou vá exibir esse corpo na piscina.
— Tudo bem. Vou trocar de roupa.
Quando os dois deixaram o aposento, eu saí. Fiquei no meu quarto
até a hora do almoço, estava enojada. Sentia vontade de sumir daquele
lugar.
Fingi ser a filhinha querida do papai e precisei até ser gentil com
Marina, que se tornou uma espécie de atração naquela casa. Vi Cristiano
subir com uma bolsa e o segui.
— Sua família é ótima!
— Concordo. Você vai adorar minha avó. Quer dar um passeio,
conhecer as videiras? É lindo aqui.
— Estou cansada. Vou dormir um pouco.
— Tudo bem. Fica tranquila com os homens armados, é coisa de
chileno. — disse como se ele fosse mesmo o meu noivo preocupado e
entrou em um quarto enquanto eu mencionava entrar no meu.
Achei aquilo estranho e fiquei observando. Ele demorou uns dez
minutos lá e saiu com um cabo de computador enrolado na mão, na direção
da escada. Saí do quarto, olhei em volta e como não vi ninguém, apenas os
dois policiais que foram comigo, fui ao quarto onde ele deixou a bolsa e vi
um laptop sobre uma bancada. Nele havia uma imagem que parecia ser ao
vivo da biblioteca da casa. Arregalei os olhos, sobressaltada, quando o vi se
aproximar da câmera e a ajustar. Dava para ouvir seus passos. Quando ele
saiu de lá, corri para o meu quarto.
Minha curiosidade vai me levar à ruína, mas preciso entrar naquele
quarto e descobrir o que está acontecendo. — divaguei, ofegando.
Minha intuição nunca me enganou, e naquele caso não foi diferente.
Eu sabia que estava acontecendo algo muito esquisito naquela casa.
No jantar daquela noite fui apresentada a mais familiares de
Cristiano e seus amigos. Dei até um selinho nele. Eles fingiam até para a
família.
Quando todos se recolheram, Cristiano me deu boa-noite ao me ver
na cama, e saiu. Imediatamente eu o segui. Vi-o entrar e sair rapidamente
do quarto onde estava o laptop e descer a escada.
Fui ao quarto e vi o computador com a mesma imagem. Olhei em
volta e procurei lugar para me esconder, caso precisasse. Fiquei observando
a tela e, depois de alguns segundos, Afrânio entrou com Marina, que usava
um vestido vermelho marcando seu corpo. Peguei meu celular e comecei a
filmar a tela.
Entraram mais homens, inclusive Cristiano e seu avô, que avisou
depois do jantar que iria dormir.
— Ela está estudando medicina, será uma ótima cirurgiã. Vamos ser
generosos com ela. — Afrânio avisou, sua voz saiu meio fanha nos
autofalantes do laptop.
— A gente nunca sabe quando vai precisar de um médico, não é
mesmo? — brincou Álamo, arrancando sonoras gargalhadas de todos.
Marina sorria enquanto observava todos, até que um deles se
aproximou dela e apertou suas nádegas. Arregalei os olhos quando ela
tocou na genitália dele por cima da calça social.
Meu Deus, o que tá acontecendo?
Minha garganta estava seca, engoli saliva e a senti arder.
Fechei os olhos quando ela se ajoelhou e começou a fazer sexo oral nele
enquanto todos assistiam.
Cristiano usava uma câmera para registrar tudo de outro ângulo.
Afrânio estava de costas para a câmera, mas dava para notar seus
movimentos.
Senti meu estômago embrulhar quando o homem de calças
abaixadas empurrou Marina contra a mesa e fez um sexo bruto com ela, que
gemia, demonstrando mais dor que prazer.
Fechei os olhos com força, mas aquela imagem ficaria na minha
mente para sempre. O próximo a colocou de costas sobre a mesa e consegui
ver sofrimento em seu rosto. A pergunta era apenas uma: por que estava se
submetendo àquilo?
Cristiano se aproximou dele como se quisesse focar nos sexos dos
dois. Marina foi usada pelo segundo homem que apertava seu pescoço.
Afrânio se aproximou e notei que estava se masturbando. Aquilo me
levou ao meu limite. Interrompi a gravação no meu celular e corri para o
meu quarto. No banheiro, vomitei tudo o que havia comido, mas o que
queria mesmo era vomitar o que tinha visto.
Eu só queria ir embora dali. Tomei banho, ainda sentindo o
estômago embrulhado.
42 – Revolta

Bárbara

Às vezes eu fico tentando entender por que se forma essa sensação


horrível de incômodo na garganta sempre que estamos apreensivos. Para
falar a verdade, eu não me lembro de ter sentido isso muitas vezes, antes de
conhecer a Diana, e se tem um lado ruim de estar com ela, posso afirmar
com certeza que é esse. Morro de medo de perdê-la.
Eu nunca tive medo de nada nessa vida, sempre fui muito atrevida,
muito autossuficiente. Mas com ela... e por ela, eu me transformo em uma
versão de mim que não fazia ideia que poderia existir. Diana é o meu
calcanhar de Aquiles.
Minha ansiedade estava me consumindo. Olhei para a tela do celular
e vi a hora de novo. Havia se passado apenas meia hora desde que Diana
saíra para embarcar para o Chile. Gabriel havia saído para o hospital e fui
para o quarto. Umas cinco horas depois, ela finalmente me ligou. Atendi
quase imediatamente. Senti meu coração batendo na boca.
A rotina de vê-la através daquela pequena tela não estava me
fazendo bem. Senti os olhos embaçarem quando a vi numa cama de um
quarto grande de paredes salmão.
— Oi, meu amor. Que saudade! — falou com um sorriso triste.
— Saudade imensa também.
Conversar com ela me deixou mais calma. A gente se despediu
quase quatro da manhã e dormi depois. Acordei quase nove horas com o
barulho da campainha, seguido pelos latidos do Lecter. Sentei na cama,
desorientada.
Que porra!
Saí do quarto esfregando os olhos e abri a porta. Era a médica amiga
da Diana, a Jessica, que nem esperou que eu mandasse entrar.
— Entra... — disse, encarando-a já na sala.
— Cadê a Diana? Estou ligando, e ela não atende. Ela tinha plantão
hoje, tinha uma cirurgia importante e não apareceu. — Demonstrou
nervosismo. — Não avisou nada.
Esperei que ela terminasse de falar sem dizer nada, apenas olhando
para aquela cara de pau dela querendo saber da minha mulher.
— Fala alguma coisa. — disse, num tom alto demais para o meu
gosto.
— Ela tinha que avisar pra você que não trabalharia hoje? —
perguntei, irritada com aquela invasão.
— Olha só... é Bárbara, né? Eu não sei qual o lance entre vocês e
muito menos o que você fez pra deixar a Diana tão cega de paixão, mas o
fato é que desde que ela começou a se envolver com você, tem agido
estranho, fica nervosa do nada, parece que está angustiada o tempo todo e...
— Escuta aqui... — interrompi. — Não sei quem você pensa que é
pra entrar aqui desse jeito e falar sobre o que não sabe, mas vou te dar uma
chance, em respeito à minha mulher, que não sei por que, mas gosta de
você, de sair daqui sem ouvir uma resposta nada agradável pra esse seu
desaforo.
— Você não me intimida. E esse apartamento não é seu, por isso não
pode me expulsar. Não saio daqui sem saber da Diana.
Senti um incômodo forte na nuca e a sensação terrível de cansaço.
Massageei os ombros e alonguei o pescoço na tentativa de expulsar aquela
sensação. Eu não podia perder o controle. Respirei fundo antes de falar.
— Ok, não que seja da sua conta, mas ela precisou viajar com o pai
dela. Mas se liga, garota. Se a Diana não te falou é porque tanto faz, você
não tem importância nenhuma. Então sai fora, deixa ela em paz. — Abri a
porta para que ela saísse e a vi cruzá-la de cara fechada, vermelha. Bati a
porta com força quando a vi fora do apartamento.
Eu estava completamente ofegante quando fiquei sozinha de novo,
fui ao banheiro e tomei banho. Só então fui preparar o café da manhã para
mim e para os meninos. Lecter abanava o rabo quando peguei a ração dele
para servir. Preparei a comida do Luís também e depois fui à área de
serviço. Quase fui ao inferno quando entrei lá. Gabriel havia deixado roupa
suja espalhada pelo chão junto com tênis e meias.
— Filho da puta! Essas porcarias vão ficar aí. — Peguei uma
vassoura e empurrei tudo para longe da porta da cozinha.
Olhei para a cozinha e nem ela conseguiu me acalmar. Eu estava
muito nervosa. Diana longe daquele jeito estava me deixando louca.
— Oi, bom dia... — Gabriel disse chegando e notou o meu estado.
— O que houve? Que cara é essa? Hoje eu assisti a um transplante de
coração e fígado e estou empolgado.
— Se empolga na lavanderia e tira aquelas porcarias podres do chão
onde deixou que você não mora nessa porra sozinho.
— Eita! O que houve?
— O que houve é que tu larga as tuas merdas pela casa e eu tenho
que arrumar tudo. Não sou tua empregada, não, porra!
— Desnecessário isso, hein?
— Desnecessário é você, seu porco. Você não mora aqui só. Se liga
e respeita.
Antes que eu explodisse resolvi sair. Fui ao quarto e coloquei um
tênis, precisava gastar aquela energia acumulada e resolvi dar uma corrida.
— Pô, Bárbara, desculpa, mano! Você explodiu à toa. Eu coloquei
em cima da máquina e caiu. Eu estava com pressa.
Apenas saí ignorando o que ele falava ou cairia na porrada com ele.
Corri por não sei quanto tempo. A cabeça cheia de inúmeros
pensamentos, as paranoias me consumindo. Diana longe era
definitivamente a minha fraqueza. Contornei o campus da universidade de
Vila dos Lírios várias vezes, lá tinha uma ciclovia bacana, mas nem assim
aquele plano idiota saía da minha cabeça. Eu tinha certeza de que ninguém
estava querendo derrubar o Afrânio. Será que ela estava sendo enganada
pelo pai e pelo tio?
Que porra!
No auge da minha loucura, cheguei a imaginar que a Diana não era
tão vítima.
Não, ela não sabe de nada ou teria me falado algo. Por que me
esconderia? Mas... e por que me falaria? Não sou ninguém importante
perto de todo aquele mundo de poder e dinheiro.
Completamente ofegante eu parei e apoiei as mãos nos joelhos,
tentando recuperar o fôlego. Aqueles milhões de pensamentos incoerentes
na minha cabeça estavam me enlouquecendo e por mais que eu lutasse
contra eles não iam embora. Eu precisava de respostas. Engoli saliva e
voltei a correr, só que eu tinha um destino: a delegacia.
Cheguei lá e procurei a Lara, que estava conversando com uma
mulher na primeira sala do local. Ela me olhou e acenou para eu esperasse.
Respirei profundamente, fechei os olhos tentando acalmar os nervos. Senti
o suor descer pelo meu pescoço. Minha pele ardia.
— Bárbara! — Ouvi a voz da Lara e me virei, ela franziu o cenho.
— Entra aqui.
Eu a segui e vi uma mulher aos soluços, secando o rosto com um
lenço.
— O meu filho é uma pessoa importante, por que vocês não o
procuram?
Lara se virou e acenou para que eu entrasse na sala dela, mas
consegui ouvir a voz alterada da mulher através da parede de drywall.
— Dona Irene, eu já disse que estamos procurando, sim. O seu filho
não tinha inimigos, era querido por todos, então assim é muito difícil
encontrar pistas do paradeiro dele.
— Mas, delegada, já se passaram meses, e ainda nenhuma resposta.
Como você quer que eu fique?
— Calma. Eu sei que pedir isso é até cruel, mas estamos
trabalhando, dona Irene. Agora eu preciso atender outra pessoa. Com
licença. — pediu e entrou na sala.
Eu já estava respirando normalmente. Senti os olhos dela em mim,
me analisando, e a encarei.
— O que aconteceu, Bárbara? Você não parece bem.
— Eu preciso saber até quando vamos ter que atuar nisso. A Diana
está fora do país, e eu estou quase enlouquecendo. Se acontecer alguma
coisa com ela... — engoli saliva.
Lara foi a um bebedouro e pegou água em um copo descartável.
— Se acalma. Você está tendo uma crise de ansiedade. — disse e me
entregou o copo e um lenço de papel.
— Obrigada. Sabe o que eu não entendo? Por que vocês só não
entregam o Afrânio? Já não têm provas o suficiente pra derrubar ele?
— Infelizmente, não é assim que funciona. Bárbara, eu sei que você
não tem idade para entender algumas coisas, mas apesar de aquele dossiê
dele ser bem grande, não temos a certeza de que acabaria com ele. São
dados, informações. Mas com o poder e aliados que ele tem, conseguiria
refutar tudo facilmente e ficaria livre rapidinho, no máximo responderia a
processo em liberdade. E se isso acontecer, a Diana vai estar em sérios
apuros, mais do que agora. E não só ela... nós também, o doutor Augusto e
todos a quem ela ama.
— Ele tem muito medo, isso não ajuda em nada?
— Não. Ele tem medo de sujeira na imagem dele, apenas. Sabe que
raramente ficará preso, mesmo depois de todos os crimes. Ele não suja as
mãos, Bárbara. Sempre manda alguém pra fazer os serviços. Precisamos
flagrá-lo em ação. Só com uma prova dessas poderemos terminar de
compor o dossiê e derrubá-lo.
Fechei os olhos e quando os abri a imagem de Lara estava
embaçada.
— Então estamos na mão dele pra sempre. Só ficaremos livres se ele
morrer... — olhei pela janela e quando voltei a encarar Lara, ela estava com
uma expressão de espanto no rosto.
— Tome a água, Bárbara.
Tomei e usei o lenço para secar o rosto e o pescoço.
— Está perto de tudo isso acabar, eu juro. A Diana é uma peça
importante. Essa proximidade dela com ele é perigosa, mas também é um
trunfo. Se ele vacilar na frente dela, pegamos o desgraçado. Você precisa
ser forte, ela precisa de você, mas você precisa estar bem. Nesse estado, só
piora as coisas. Não pode simplesmente sair por aí ameaçando as pessoas,
Bárbara.
— Quem eu ameacei? — perguntei com ódio na voz.
— O Afrânio. Eu o quero morto tanto quanto você, mas jamais disse
isso por aí. Então se acalma. A Diana volta amanhã e precisa de você. Ela
não deixaria a cidade sem você, então procura se manter tranquila. Você
está visivelmente transtornada.
Fechei os olhos de novo. Respirei fundo e tentei afastar aquele
cansaço. Tomei o resto de água e me levantei.
— Tudo bem. Obrigada. — Coloquei o copo sobre a mesa. — Eu
vou indo.
— Se precisar, liga ou aparece. Surtar agora só vai atrapalhar.
— Ok. — Fui indiferente e saí. Ao olhar para trás ainda vi a mulher
chorosa abordando a delegada.
Cheguei em casa e ouvi Gabriel falando com alguém pelo celular.
Me aproximei em silêncio e fiquei quieta para tentar ouvir, pois achei o
assunto estranho, ele cochichava, aborrecido.
— Não, eu não consegui nada ainda. Preciso de mais tempo. Por
favor. Não posso passar o dia inteiro dentro de casa... não sei.
Do que esse filho da mãe tá falando?
Lecter latiu ao me ver e fui pega no flagra. Agachei para falar com
ele, disfarçando, e vi Gabriel me encarar com o celular na mão.
— Estava ouvindo minha conversa, Bárbara?
— Você estava falando algo que me dissesse respeito?
— Não te deram educação, não?
— Não, não me deram educação, não. Se tu tiver aprontando
alguma contra a gente, eu vou te quebrar pior do que fiz com o Afrânio.
— Ah, Bárbara, por favor. Me economiza das tuas paranoias.
— Se liga, moleque. Tu nunca me enganou...
— O que está insinuando?
— Você sabe. Esse teu jeitinho dedicado aí, bom moço, não me
engana. Agora isso. — Sorri meneando a cabeça.
— Você está mesmo a fim de brigar comigo, né, Bárbara? Eu estava
falando do hospital. Mas não te interessa o que faço ou deixo de fazer.
— Não mesmo, até envolver bandido. Tenho certeza que tu tá com
alguém contra a gente. Mas eu sou paranoica.
— Privacidade zero nessa casa, né?
— É. Se você voltasse pro seu apê teria a privacidade total.
— Essa casa não é sua. Se a Diana pedir pra eu sair, eu saio, mas
você não me afeta em nada.
— Tá bom... — falei, sorrindo. — Vamos ver se eu não afeto
quando eu descobrir tuas merdas. Vou afetar cada centímetro dessa tua
carinha.
Consegui ouvir sua respiração alterada enquanto ia para o quarto.
Procurei uma academia, precisava liberar toda aquela energia.
Treinei por uma hora depois que Gabriel saiu para o hospital. Eu o segui até
lá. Mas tinha certeza de que se estivesse espiando a gente, faria isso com a
Diana em casa.
No dia seguinte ela chegou quase meia-noite. Um carro luxuoso a
deixou na frente do prédio. Desci para recebê-la. Ela largou a bolsa, me
abraçou com força e me beijou com pressa, segurando meu rosto com as
duas mãos.
— Ah, meu Deus! Que saudade.
Meu coração estava prestes a sair pela boca. Peguei a mala dela e
entramos.
— Cadê todo mundo? — Lecter saiu da cozinha feliz e a
cumprimentou.
— Gabriel foi para o hospital. Luís deve estar em alguma festa
felina por aí.
Ela me beijou de novo e foi tomar banho. Estava bem estranha,
pensei que poderia ser cansaço.
— E então como foi lá?
— O de sempre. Vários bandidos políticos juntos. — Foi evasiva.
Resolvi não insistir. Fui extremamente carinhosa com ela, que
demonstrou esquecer aqueles problemas por um momento. Mas notei sua
tensão no dia seguinte.
— Não quer conversar sobre a viagem? Você não tá bem...
— Não quero encher a sua cabeça com essas porcarias.
Ela estava muito estranha. Algo muito grave aconteceu lá. Diana
sempre me contava tudo, por mais que fosse me preocupar. Mas não insisti.
Também não falei nada sobre o tosco do Gabriel e nem que fui procurar a
Lara. Ela já estava cheia de problemas.
Quando ela foi para o hospital, aquela tensão e ansiedade voltaram
com força total, então decidi ir ao apartamento da Ingrid. Ela com certeza
tinha mais coisas sobre o demônio do pai da Diana. Assim ajudaria a acabar
com aquilo mais rápido.
Entrei e fui direto para o terceiro andar. Estava arrumado. Será que
Silvio havia organizado? Estranhei, mas comecei a mexer em tudo de novo.
O computador que mostrava as imagens do apê da Diana e até dali, estava
desligado. Depois de alguns minutos abrindo caixas e colocando separadas,
achei mais coisas sobre a desgraçada da Ingrid, mas nada sobre o velho.
Nunca entendi a burrice da Ingrid para chantagear o Afrânio, a
imbecil guardava arquivos que a incriminavam mais que a ele. Precisaria
ser muita grana mesmo. Acho que nem por isso eu me deixaria na mira
daquela forma. Peguei uma pilha de documentos e deixei sobre umas
caixas. Ouvi um barulho e quando me virei, senti uma forte pancada na
cabeça.
Apaguei!
43 – Pesadelo

Diana

Abri os olhos e tentei me mover, mas foi em vão. Meu corpo inteiro
estava dormente, como se tivessem aplicado uma anestesia geral em mim.
Puxei o ar para respirar, ele entrou nos meus pulmões com muita
dificuldade. Eu estava ofegante, minha garganta seca. Tentei engolir saliva
e não deu certo. Tentei me mover novamente, e nada. Aquilo estava me
deixando angustiada.
Olhei ao redor, não sabia onde estava. A vista estava embaçada,
precisei piscar várias vezes para conseguir enxergar. Aos poucos, a imagem
foi se formando. Era uma biblioteca, grande, escura... a pouca iluminação,
avermelhada, que havia ali vinha das luminárias dispostas ao lado de um
sofá de couro marrom.
— O que está havendo? Como vim parar aqui? — falei inutilmente,
pois ninguém me ouviu... ou fui ignorada, não sei.
Comecei a me desesperar, quanto mais eu tentava me mexer, mais
pesados os meus membros ficavam. Eu estava deitada de costas, tentei
identificar a superfície que me sustentava e notei que era uma mesa de
bilhar.
— Socorro! Alguém me ajuda? — Foi o que me restou fazer...
gritar.
Ouvi passos pesados e senti um arrepio na espinha que me deu
calafrios. Gemi do desconforto que a sensação causou. Um perfume forte e
amadeirado invadiu as minhas narinas e senti ânsia de vômito. Uma sombra
se formou na minha frente e olhei na direção. Era ele, o demônio.
— O que você fez comigo, seu verme? — gritei, ele apenas soltou
aquela gargalhada sarcástica que eu odiava. — Eu quero sair daqui,
Afrânio. — bradei, mas ele me ignorou, ainda sorrindo.
Ele começou a caminhar lentamente na minha direção, e comecei a
suar. A cada passo que ele dava, meu coração pulsava mais forte.
— Não chega perto de mim, seu verme. Eu vou gritar...
— Pode gritar, criança... grite o quanto quiser. Não vão te ouvir... ou
vão, mas, e daí? Ninguém vai fazer nada.
—Já não basta ter matado a minha mãe e agora estar infernizando a
minha vida? O que mais você quer de mim, seu miserável?
— Não entendeu ainda, filhinha? — perguntou, irônico, e foi
desafivelando o cinto da calça. — Não tem ideia do que eu quero de você?
— Abriu o zíper e pôs o pênis para fora...
— Não chega perto de mim, me deixa em paz... — esbravejei com
lágrimas nos olhos, enquanto ele ria e se masturbava, quase encostando no
meu rosto. — Sai daqui, seu nojento, seu monstro...
Eu gritava, chorava ao ponto de soluçar, mas nada fazia ele parar.
Parecia sentir prazer em ver o meu desespero, que aumentou quando ele fez
a volta e se aproximou de mim.
— Você não pode me estuprar, seu doente. Eu sou sua filha... — Eu
insistia, em absoluto desespero, mas era inútil para alguém mau-caráter
como ele. — Afrânio, pelo amor de Deus, não faz isso, por favor... por
favor...
Nesse instante, Bárbara apareceu na minha frente, segurou as
minhas mãos e pediu:
— Calma, meu amor! Vai ser rápido, eu tô aqui com você.
— O quê?
Não estava entendendo mais nada. Por que ela estava ali e por que
estava apoiando aquele monstro?
— Pronta, filhinha? Agora papai vai te mostrar quem manda.
Foi a última coisa que ouvi antes de ele se colocar entre as minhas
pernas.

Acordei com o meu próprio grito de dor, já sentada na cama do


quarto da mansão dos Martini, no Chile. Meu corpo estava todo dolorido,
eu tossia e ofegava. Precisei de um tempo para entender que havia acordado
de um pesadelo, o pior de todos. Procurei, na mesa de cabeceira, o copo
com água e bebi o líquido quase de uma só vez. Meu coração estava prestes
a sair do peito.
— Eu não posso mais fazer isso. — repeti para mim mesma.
Eu não tinha mais qualquer condição de continuar com aquela farsa,
mas estava presa a ela de uma maneira que não fazia ideia de como me
libertar.
— Calma, Diana! Calma...
Passei o dia inteiro pensando naquelas visões horrendas, as do
pesadelo e as reais. Por mais que eu tentasse, nada tirava da minha mente
aquelas cenas horríveis. Minha cabeça pesava uma tonelada. Doía de uma
forma que estava me deixando aérea. Naquele dia, não consegui interpretar
o papel da noiva feliz, pois encarar aqueles imundos após vê-los sem
máscaras, no ápice da bizarrice deles, estava me destruindo. Eu havia
acordado daquele pesadelo apavorante para viver outro, só que desperto.
Não consegui comer nada, eu me sentia fraca. Evitei ligar para a
Bárbara, pois não queria preocupá-la. Eu só queria mesmo era que aquele
dia voasse, para que eu pudesse ir para casa.
Ainda não tinha ideia do que faria com as imagens que gravei com o
celular. Nem sabia direito por qual motivo havia decidido gravar, mas o fato
é que gravei. Aquilo poderia servir para alguma coisa. Minha primeira ideia
foi enviar para o Joel, mas eu estava tão confusa que optei por não fazê-lo.
Decidi não contar para a Bárbara, não que eu não confiasse nela, eu só não
queria perturbá-la mais. Ela já estava uma pilha de nervos, e tive medo que
surtasse de vez. Decidi conversar com o Gabriel, o único em quem confiava
de verdade, além da Bárbara, mas temi fazer isso por telefone. Decidi que
quando voltasse para Vila contaria tudo a ele e, juntos, pensaríamos no que
fazer.
As horas pareciam levar uma eternidade para passar, mas finalmente
o maldito jantar com a avó do Cristiano aconteceu. Dona Rosário era uma
mulher sofisticada e apesar de estar prestes a completar 80 anos, tinha um
aspecto bastante jovial. Me tratou de maneira extremamente polida, muito
gentil. Até agora eu não tinha certeza se ela tinha ciência ou não do acordo
entre o meu pai e o marido dela, mas acho que sim, pois ignorou o meu
comportamento distante a maior parte do tempo.
Outra pista que me fez crer que ela sabia foi o fato de ela ter
definido não só a data e o local do casamento, mas também todos os
detalhes, incluindo o estilista que faria o meu vestido.
— Preciso de no mínimo três meses para cuidar de tudo. A recepção
será no jardim da mansão mesmo, melhor do que qualquer buffet daquela
cidade medíocre.
— Como quiser, vovó. — Cristiano concordou. — Diana, minha
avó deu as maiores e mais elegantes festas que o Rio de Janeiro já viu.
Vamos deixar tudo nas mãos dela e teremos o casamento mais lindo de
todos.
— Por mim está ótimo. Não tenho mesmo o menor talento para
organizar festas. Não ensinam isso na faculdade de medicina. — falei com
certa ironia.
Eles falavam e falavam. Decidiam a minha vida sem se darem ao
trabalho de perguntar a minha opinião. Era como se eu nem estivesse
presente. Mas confesso que, de certo modo, aquelas imposições veladas me
tiraram um peso das costas, pois, como se já não bastasse casar a força,
ainda teria que organizar tudo.
Que se dane!
Eu só queria mesmo era que aquele maldito jantar acabasse para que
eu pudesse voltar para minha casa. Precisava do meu apartamento, das
minhas coisas, minha cama, meus filhos e, o mais importante, da minha
mulher. Só mesmo os braços da Bárbara poderiam aliviar aquela tensão,
aquela sensação de ter engolido arame farpado.
Quando finalmente desembarquei em Vila dos Lírios já era quase
meia-noite. Um carro da família Martini me levou até em casa. Mal desci e
já vi a Bárbara no portão. Nessa hora não me preocupei com teatro, com
paparazzi ou com o satanás, apenas larguei a bolsa e a agarrei. Eu a beijei
com força, a saudade e o medo de ficar longe dela eram os condutores
daquele beijo. Senti o mesmo sentimento vindo dela. Quando finalmente
afastamos nossos lábios, o carro já não estava mais lá.
— Ah, meu Deus, que saudade!
Ela pegou a minha mala e entramos.
Gabriel estava de plantão. Matei a saudade do Lecter também, o
vadio do Luís Otávio não estava lá. Ela quis saber da viagem e desconversei
de todas as formas que pude, mas acho que ela notou que eu não estava
nada bem.
Naquela noite, embora o pesadelo ainda me perseguisse, dormi
melhor, nos braços dela.
No outro dia fui para o meu plantão e logo que entrei no vestiário
dei de cara com o Gabriel.
— Vem aqui, preciso te mostrar uma coisa. — chamei e o levei para
o estacionamento.
Sem falar nada, apenas desbloqueei o celular e mostrei o vídeo. Não
tive coragem de assistir de novo, mas fiquei reparando na expressão de
perplexidade que ele fez.
— Di, é a Marina? — perguntou, surpreso.
— Sim.
— Como você conseguiu isso?
— Vi o Cristiano entrando e saindo de um quarto e achei suspeito.
Quando ele saiu, fui olhar e encontrei um laptop transmitindo. Eu juro que
tentei gravar, mas não consegui ir até o final.
— E o que vai fazer com isso?
— Não sei... pensei em enviar para o Joel, mas a real é que tô
querendo mesmo é jogar na rede pra acabar logo com tudo.
— Quem mais sabe? Pra quem mais mostrou esse vídeo?
— Pra ninguém, só pra você.
— Bom! Então apaga, agora.
— O quê? — perguntei, espantada. — Tá maluco, Gabriel?
— Não. Quem tá maluca é você. Pra começar, nem devia ter
filmado. Já pensou se te flagram?
— Sim, mas não flagraram. E agora tenho uma prova visual
da escrotice do Afrânio.
— Diana, isso não prova nada.
— Como não, Gabriel? Tá aí, tá bem nítida a cara do miserável. Não
só dele, mas da corja toda. Até o Cristiano tá metido. Que nojo!
— Meu, pensa comigo. Você filmou uma transmissão ao vivo, mas
foi pela tela do computador, e não ao vivo propriamente. Existe uma merda
chamada deepfake, onde é possível colocar o rosto de alguém no corpo de
outra pessoa e fazer um vídeo.
Eu estava confusa. Ele olhou ao redor, passou as mãos nos cabelos e
me encarou de novo.
— Di, se eu quisesse te ver fazendo sexo com vários homens, eu só
precisaria de imagens do seu rosto e as colocaria no corpo de alguma atriz
pornô. Isso é muito fácil. Por isso, se vaza um troço desses em dois tempos
o diabão consegue provar que é falso mesmo não sendo. Com isso ainda
pode ganhar o apoio dos apoiadores. Só que ele vai saber que foi você quem
filmou... daí não preciso te dizer mais nada, né?
Ele tinha razão. Se eu quisesse expor o Afrânio de alguma forma,
precisaria de algo mais verossímil, pois aquelas imagens não passavam
credibilidade alguma.
— Tudo bem, mas não vou apagar. Vou falar com o meu tio. Isso
sozinho pode não servir de nada, mas juntando com o dossiê que ele tem
passa a ter mais credibilidade.
— É, pode ser. Mas cuidado, hein!
— Tá bom. Tá indo pra casa?
— Tô. Sua gatinha selvagem tá lá?
— Deixa de implicância, Biel. Já passou da hora de vocês se
acostumarem um com o outro.
— Diz isso pra ela. Eu tô de boa.
— O que houve? Aconteceu algo entre vocês enquanto eu estive
fora?
— Nada demais. Ela só tá toda estressada. Quase me engoliu vivo
porque deixei umas roupas na lavanderia.
Era só o que me faltava, eu ter que lidar com a encrenca desses
dois.
— Biel, tenha paciência com ela. É muito estresse, ela tá uma pilha.
Devia estar preocupada comigo e descontou em você. Só evita bagunça que
ela odeia isso.
— Tranquilo, Di. Eu saquei, tô de boa. Além do mais, quem tá
sobrando ali sou eu.
— Ei... você não tá sobrando. É meu irmão, sabe disso. Eu amo os
dois... de modo diferente, mas com a mesma intensidade. Preciso que se
respeitem e aprendam a conviver. Vocês são as únicas pessoas em quem eu
confio, são a minha família.
Ele suspirou e desviou o olhar do meu. Fitou o nada por uns
instantes. Não entendi aquilo, mas ignorei. Estava exausta de problemas e
precisava começar o meu plantão. Nos abraçamos, depois ele foi para casa,
e eu entrei para trabalhar.
Felizmente não tive o desprazer de cruzar com a Marina, naquele
dia. A desgraçada devia estar se recuperando do estupro coletivo consentido
que sofreu. Eu não conseguia definir o meu sentimento por ela depois
daquela cena. Não sabia se sentia pena ou nojo. Como alguém podia se
prestar a um papel daqueles?
O dia foi bem corrido, enviei mensagem para a Bárbara quando
descansei por uns minutos, mas ela não respondeu. No final do meu plantão
fui direto para casa. Entrei em silêncio, a sala estava escura. Imaginei que
não havia ninguém em casa. Gabriel devia ter saído, mas a Bárbara não
havia me avisado nada. Fui tomar banho e quando acabei, verifiquei o
celular e ela não tinha nem visualizado a minha mensagem, liguei para o
celular dela, que chamou até a ligação cair.
Bárbara nunca teve celular, deve ter esquecido em algum lugar. —
pensei, mesmo achando aquilo muito estranho.
Eu tinha que ligar para o meu tio para contar sobre a viagem e o
vídeo, mas estava decidida a fazer aquilo só no dia seguinte, pois estava
exausta e só queria esquecer aquele assunto por um instante.
Liguei novamente para ela e deu caixa postal. Procurei o número do
Gabriel e ele rejeitou na segunda chamada.
— Que porra! Cadê esses dois?
Fui à cozinha e preparei o jantar dos meninos. Luís não estava em
casa também. Não o via desde antes da viagem.
— Será que todos resolveram me abandonar?
— Não, mamãe! Eu tô aqui. — Lecter garantiu ficando de pé
colocando as patinhas sobre peito e tentando lamber meu rosto pedindo
atenção.
Brinquei um pouco com ele e voltei para o quarto. Insisti nas
ligações, mas sem retorno. Comecei a me preocupar.
— Calma, Diana! Você tá ficando paranoica. Daqui a pouco eles
chegam. — repeti essa frase várias vezes na minha mente e fui para a
varanda, a noite estava abafada, mesmo assim senti leve brisa no rosto.
Lembrei de quando conheci a Bárbara e de todas as noites em que
ficamos nos olhando dali. Senti falta daquele tempo em que a minha vida
era normal. Nostálgica, me apoiei no parapeito e olhei na direção da
varanda do apartamento da Ingrid. Me assustei quando vi a luz da sala e do
terceiro andar acesas.
— Que porra é essa?
Quem poderia estar lá se as duas moradoras estavam mortas?
Não, eu não tinha um segundo de paz na minha vida. Após ver
aquela luz acesa, passei a desenhar mil teorias. Em todas elas, a Bárbara
estava presente. Movida por uma força maior, me vesti e desci. Fui até lá, o
portão estava aberto e entrei sem dificuldade. Subi, e na sala encontrei o
celular da Bárbara caído, descarregado. Comecei a tremer.
Tentando não fazer barulho, fui até a cozinha e peguei uma faca.
Armada, vasculhei o lugar inteiro, mas não havia ninguém ali. Lembrei das
câmeras e resolvi ligar para o meu tio.
— Oi, filha, você está bem? — O tom dele era quase ofegante.
— Tio, a Bárbara sumiu e acho que o Gabriel também. — falei,
ofegando.
— Diana, calma! Explica direito. Onde você está?
— Eu tô no apartamento da Ingrid. Vi luzes acesas e corri para cá. O
celular da Bárbara estava caído no chão. Acho que alguém a pegou, tio.
Preciso que peça ao Joel para olhar as gravações das câmeras.
— Ah, meu pai! — Ele falou e depois soltou um grande suspiro.
— Não acredito nisso.
— Não acredita em quê? Do que você tá falando?
— Diana, eu vou te contar uma coisa, mas preciso que fique calma.
— Como eu vou ficar calma, Augusto? A Bárbara desapareceu,
pode ter sido sequestrada por aquele...
— Não foi o Afrânio, não dessa vez. — interrompeu-me.
— Quê? Que história é essa e como você pode ter tanta certeza...?
— Diana, filha, me ouve... se acalma! Eu estou em São Paulo, vou
conversar com você pessoalmente. — avisou e desligou.
Eu comecei a tremer. Tentei ligar de novo, mas ele não atendeu. Saí
correndo e voltei para casa. Liguei para a Lara, que chegou à minha casa
meia hora depois.
— O que houve, Diana?
— A Bárbara sumiu. Foi levada por alguém de dentro da casa da
Ingrid.
— Mas... — disse sem ir adiante com o assunto e pegou o celular.
Por que está todo mundo agindo estranho comigo? O que estão me
escondendo?
Uma hora e meia depois o meu tio chegou com o Toledo. Vi Lara
dar ordens a uma equipe para vasculharem a cidade procurando Bárbara.
Eu chorava abraçada ao meu tio, ele tentava, em vão, me acalmar.
Toledo estava vendo algo no celular e me mostrou a imagem da hora que
Bárbara foi desacordada.
— Quem é esse?
— É o irmão da Ingrid. — Toledo disse e saiu do vídeo fazendo uma
chamada.
— Ele quer vingar a morte dela? — perguntei, nervosa.
— Diana, se acalme. Olhe para mim... — pediu segurando o meu
rosto entre as mãos. — A Ingrid não está morta!
44 – Retorno

Bárbara

Comecei a acordar e ouvi vozes distantes. Abri os olhos, mas não


enxerguei nada, havia um capuz em mim. O local da pancada, na minha
cabeça, doía muito. Tentei abrir a boca, mas tinha fita adesiva a tapando.
Meu tronco estava preso à uma cadeira, acho que com fita também. Forcei
as mãos e estavam presas. A fita ia até a metade do antebraço. A mesma
coisa aconteceu com os pés. Não havia nada que eu pudesse fazer naquele
momento para me livrar daquela prisão.
Respirei fundo e tentei ouvir as vozes. Eram três pessoas, homens...
Ouvi um barulho bem próximo de mim e cada célula do meu corpo
paralisou. Não fiquei nervosa nem com medo, foi instinto, tipo um gato. Eu
precisava saber do que se tratava. Fechei os olhos. Estava escuro por causa
do capuz, mas eu me concentrava melhor de olhos fechados.
Consegui ouvir barulho de trator, carros, latidos e passos se
aproximando. Uns segundos depois, as pisadas ficaram tão fortes que senti
também a presença da pessoa bem perto de mim. O capuz foi retirado
subitamente, aquilo me assustou. Eu ofegava quando abri os olhos, tentando
respirar, e para a minha total surpresa, dei de cara com a Ingrid, mais magra
e bem mais louca.
Tentaram me avisar e ignorei! — pensei enquanto a analisava.
Ela tinha os olhos cheios de ódio, os cabelos desgrenhados, uma
arma na cintura e uma espécie de chicote na mão.
— Oi, Bárbara! — disse, sorrindo — Surpresa? Pois é, tô viva. E
vou continuar viva. Sabe por quê? Porque sou útil. — falou em um tom
irônico e provocativo.
Ergueu o chicote e, demonstrando prazer, desferiu três golpes
seguidos em mim. Fechei os olhos com força. As pontas daquela porra
tinham lâminas. Começou a sangrar onde atingiu, no meu braço e perna.
— Eu vou te matar. Você não vale nada, só sabe mentir, fingir e se
aproveitar. Na verdade, eu já devia ter matado, mas fui idiota e tive a infeliz
ideia de querer te botar na cadeia. Fui ingênua, te subestimei, e você fez a
gentileza de apagar as imagens que te mostravam cortando os meus pulsos,
então, agora não me resta outra escolha. Você vai morrer, aos poucos. —
disse, andando na minha frente. — Eu ia matar a desgraçada da tua puta na
sua frente antes, mas agora ela mostrou que o sangue fala mais alto e só
anda com o bandido do pai dela, então sobrou pra você, sozinha mesmo.
Olhei em volta tentando achar uma saída antes que aquela
descontrolada cumprisse as ameaças. O local era escuro, tinha apenas uma
luz amarela presa a um fio branco, sujo de barro, que estava amarrado em
uma tábua.
Deve ser subterrâneo. Parece um buraco. Paredes de barro,
visivelmente raspadas com pá.
— Eu te amei, sabia Bárbara? — falou, e revirei os olhos. Aquela
demente não fazia ideia do que era amor. — Minha família amava você
também. E como você retribuiu? — indagou e me olhou.
Outra chicotada, acompanhada de um berro bem próximo ao meu
rosto. Aquilo doía como o inferno, mas me mantive impassível.
— Traiu! — Senti ânsia de vômito ao receber aquele hálito podre no
nariz. As chicotadas incomodavam menos. — Enganou. Matou! O meu tio
está revoltado com você, sabia? Você tentou bancar a santa, mas eu falei pra
ele que você matou a minha mãe. Por causa das tuas mentiras, ele queria
que eu saísse da casa dele, mas agora contei toda a verdade. Coitado! Tá de
cama, doente, decepcionado.
Louca ela sempre foi, mas naquele momento demonstrava um
desequilíbrio fora do comum.
— George! — gritou de novo com aquela maldita voz rouca, que só
ficava mais irritante com o passar do tempo.
George era o meio-irmão dela. Um vagabundo viciado, que ela
sustentava. Uns segundos após ela o chamar, o cracudo entrou com uma
garrafa de cachaça, que, reconheci pelo rótulo, era feita na fazenda do
Silvio.
O trator. Os latidos. Estamos na fazenda. Não acredito que o Silvio
aceitou isso.
O amor te deixa muito frágil, Bárbara! Você já foi mais perspicaz.
Devia ter lido, na hesitação do Augusto, que essa louca estava viva. — A
voz dentro da minha cabeça me disse aquilo num tom de repreensão.
Vou pegar aquele velho desgraçado antes de matar o irmão escroto
dele.
Gemi por trás da fita na minha boca, quando o cracudo jogou aquela
porra nos meus ferimentos recentes.
Ingrid levantou o meu rosto suado e molhado de lágrimas com o
cabo do chicote e me fez olhá-la. Eu ofegava de dor quando a encarei.
— Quando você chegar ao inferno vai encontrar todas as suas
vítimas. Elas vão ficar felizes por saberem como foi que você morreu, sua
desgraçada. — falou e deu um soco no meu rosto.
Até agradeci, pois teria que engolir vômito se ela continuasse
falando tão perto de mim. Acho que tinha um corpo em decomposição na
boca dela, pois fedia igual.
Eu sorri imaginando um defunto lá dentro, o que a enfureceu mais
ainda, fazendo com que ela mesma pegasse a garrafa e jogasse o líquido em
mim, depois de dar mais chicotadas, que pegaram até no meu rosto.
— Ri, sua maldita. Vou te deixar aqui e vou atrás da Diana, aquela
desgraçada. Vou torturar as duas aqui dentro. Vou cumprir a minha
promessa.
Quando ela se virou, com um movimento brusco do ombro, eu
consegui liberar o meu corpo da cadeira.
— Cuidado! — O cracudo gritou quando me viu levantar.
Ingrid pegou a arma da cintura e acenou com a cabeça para ele, que
correu em minha direção para me conter, eu o acertei com as duas mãos
ainda imobilizadas pela fita. Ele caiu, mas levantou rapidamente. Levantei
as duas mãos, acima da cabeça, e com força as desci até a cintura. Manobra
que me livrou imediatamente das algemas de fita, pois estavam levemente
cortadas pelo chicote. O cracudo me acertou no rosto, me desequilibrando.
Caí no chão e vi a Ingrid correndo para fora. Não entendi aquilo, mas temi
que fosse mesmo buscar a Diana. Me esquivei de outro golpe do George,
ainda no chão, e me levantei. Ele chutou a minha barriga, mas ao me
agachar, a fita das pernas rasgou e acertei o rosto dele com o pé.
Quando ele caiu, me livrei dos restos de fita grudados nos meus
membros e tirei a da boca.
— Levanta! — mandei e o vi se levantar com dificuldade.
Ingrid entrou novamente com dois homens. Um deles eu reconheci
na hora. E ele a mim, pois arregalou os olhos ao me ver. Era o Ivan, o
encarregado da produção de carvão. Vi uma faca grande na cintura dele.
— Amarrem ela de novo, preciso terminar o que comecei. —
ordenou e os dois vieram em minha direção.
Um deles tinha uma corda no ombro. Olhei nos olhos da Ingrid e
acertei a traqueia do George, que caiu e não levantou mais. Foi o suficiente
para a maldita podre cair de joelhos perto dele.
Acertei o rosto do homem da corda com o pé e senti um chute do
Ivan na região da costela.
— Sério, Ivan? Porra! — Tentei fazê-lo mudar de ideia, mas foi em
vão.
Mesmo sentindo dor e com dificuldade para respirar, dei um chute
rápido na virilha dele, que se curvou e me deu espaço para acertar sua nuca
antes de levar outro soco no rosto do maluco com a corda.
A arm lock voadora com a qual luxei o braço do Afrânio me fez
finalizar aquele desgraçado.
— Você matou o meu irmão, sua assassina, maldita... — O grito da
Ingrid foi desesperado, fazendo-a atirar a esmo.
Usei o Ivan como escudo e o empurrei por cima dela, que caiu,
disparando outras vezes. Dei um chute na mão dela e tirei a arma de lá.
Ivan estava ferido um pouco abaixo do ombro quando o tirei de
cima dela. O homem se arrastou até uma parede e se sentou lá.
— Eu chamei a polícia. Você vai ser presa de qualquer jeito. —
anunciou, e vi medo em seus olhos pela primeira vez.
— Foda-se a polícia, Ingrid. Levanta daí... — ordenei e chutei a cara
dela quando a vi tentando pegar terra no chão.
Fechei os olhos e os abri quando ela a jogou no meu rosto. Chutou a
minha perna e se levantou com o chicote na mão. Ela me acertou com
aquele troço de novo, mas daquela vez eu o segurei com força, enrolei na
mão e puxei bruscamente, fazendo-a soltar.
Usei o chicote contra ela, que gritou quando foi atingida e tentou
passar por mim para fugir pela saída escura. Dei mais três chicotadas e
acertei o rosto dela com o pé, fazendo-a cair. Fui até Ivan, que sangrava, já
tremendo.
— Me ajuda, Bárbara! — disse e engoliu saliva.
Eu o ignorei e peguei sua faca, desembainhando e voltando para
perto de Ingrid, que se arrastava para pegar o revólver, mas antes que
conseguisse, eu o chutei de novo para longe.
Um chute certeiro no queixo dela a fez desmaiar. Peguei a corda que
estava no abdome do comparsa dela e voltei para perto da desgraçada, que
mesmo mais magra me fez gastar muita força para colocá-la na cadeira.
Amarrei apenas seu tronco, para que ficasse sentada, e esperei ali. Vi o meu
reflexo todo fodido na lâmina da faca do Ivan.
— Bárb... — Ele tentou dizer o meu nome e me virei para encará-lo.
— Me... ajuda.
— Tu ia me bater pra ajudar essa desgraçada, brother. Se liga...
— Dinheiro... — engoliu saliva mostrando uma palidez inédita no
rosto bronzeado. — Ela me ofereceu muito... dinheiro. — Respirou fundo e
fechou os olhos.
Fiquei onde estava, apenas o observando com sua respiração
ofegante, que aos poucos foi falhando. Eu sabia que ele tinha duas filhas
pequenas, mas estava pouco me lixando para aquilo. Se você não quer
colocar ninguém em risco, precisa pensar nas consequências das merdas
que faz, antes de fazer.
— Ivan! — chamei e o vi abrir os olhos.
— A Suzi tá doente... — Suzi foi a que vi nos corredores da fábrica
de carvão.
— Tu acha mesmo que eu vou pensar na tua filha sendo que nem
você pensou antes de me atacar por dinheiro? Eu estava amarrada, Ivan.
— Só me tira daqui, por favor. Estamos embaixo da fábrica de
carvão, só eu sei desse lugar.
Ingrid acordou e tentou sair da cadeira com um urro. Tentou se
levantar e enfiei a faca do Ivan na coxa dela, que gritou o mais alto que
pôde. Aquilo era como o Dan Reynolds cantando no meu ouvindo, me
causava um imenso prazer.
Girei a faca e a tirei da perna dela, que ainda gritava. Esperei
pacientemente que se calasse. Até que, ofegando e me encarando com
aqueles olhos vermelhos furiosos, ela pediu:
— Me mata logo. Tentou me matar uma vez, dessa vez vai ser mais
fácil.
— Nunca tentei te matar, Ingrid. Se liga. Seria fácil demais cortar os
teus pulsos. Você é louca, ninguém acreditaria num assassinato.
— Não queria se livrar de mim de vez por quê?
— Eu te tinha como minha família, Ingrid. Eu levei um tempo para
me livrar dessa sensação. A ligação que eu havia criado com a sua família,
teu sangue, era forte demais para eu simplesmente te matar daquela forma.
Eu não me arrependo. Só me arrependo de verdade de não ter impedido a
morte da Eulália. Ela merecia viver em paz, sem precisar encher a cara de
álcool pra aguentar conviver com você.
— Eu não fui culpada pela morte da minha mãe! — gritou se
demorando mais no "a" de mãe, como se aquilo fosse me convencer de
algo.
— Por que ela se mataria daquele jeito? — indaguei num tom baixo,
fazendo-a se calar e prestar atenção. — Você é altamente tóxica, venenosa.
Você a tratava pior que a um animal peçonhento, traiçoeiro. Ela era só uma
mulher que viveu a vida toda em função de cuidar de você. Era uma boa
mãe.
— Eu vou acabar com você, Bárbara. Meu tio já sabe de tudo. Ele
vai te denunciar. Falei pra ele onde estavam as tuas coisas, e ele vai levar na
polícia.
— Tá bom, Ingrid. Que a justiça seja feita, né? — disse e enfiei a
faca na outra coxa, sorrindo ao ouvir outro grito. — Vou fazer a minha
justiça também. Você é o tipo de pessoa que não fica presa por ser louca.
Então... — Levantei as mãos em sinal de rendição, de queixo franzido.
— Louca é você! Desgraçada. Quando a Diana souber disso vai pra
bem longe de você.
A ponta do meu tênis foi direto na boca dela, que só não caiu com
cadeira e tudo porque o móvel estava perto da parede barrenta.
— Não fala da Diana! — bradei por entre os dentes e chutei de novo
a cara daquela desgraçada.
Aquilo mexia comigo, pois tinha sido o motivo da minha insônia
nos últimos dias. Vi a garrafa de cachaça no chão e notei que ainda tinha
líquido lá dentro. Puxei a maldita pelos cabelos e virei a garrafa no rosto
dela. Mais gritos urrados. Dentes e sangue misturados com muco saiam da
boca dela.
— Vou te esperar, Ingrid. Volta do inferno dessa vez e eu acabo com
você de novo. Prometi que nem a sua mãe se enlutaria por você...
Enfiei a faca nas duas coxas dela de novo e joguei o resto de pinga.
Um último e furioso golpe no pescoço dela, da esquerda para a direita, fez o
resto de sangue que pulsava nela jorrar.
O barulho agudo da lâmina passando no pescoço dela ficou na
minha cabeça e os segundos que ainda passei ali embaixo foram apenas
para verificar se Ivan estava vivo. Saí correndo depois de constatar que o
encarregado já não respirava mais.
Segui pelo túnel completamente escuro e quando cheguei ao seu fim
olhei para cima, vi apenas um filete de luz. Tentei escalar, mas escorreguei.
Pulei novamente tentando a técnica que eu usava quando era criança para
escalar a porta. Aquilo não tinha finalidade nenhuma, mas nos fazia sentir
com os poderes do Homem-Aranha. Subi e consegui chegar ao topo. Tateei,
antes que perdesse as forças, e senti um pedaço de madeira. Segurei firme
nele e subi. Sentei na beirada do buraco e reconheci a fábrica de carvão do
Silvio, apesar da escuridão.
Será que já é noite? — pensei, pois só à noite aquele lugar ficava
tão deserto. Quando saí de lá notei que já estava escuro, sim. Vi Nilza
correndo da casa dela para a casa do Silvio. Tentei correr até uma
caminhonete que estava estacionada na frente da casa, mas fui vista por ela,
que saía da casa do patrão.
— Ah, meu Deus, Bárbara! — A mulher gritou desesperada quando
a luz da frente iluminou meu rosto. — O que fizeram com você?
— Eu fui pega por uns homens e espancada. Preciso chegar em
casa, Nilza.
— Vou chamar a polícia. Você precisa de um hospital. Seu rosto está
todo desfigurado.
Segurei o braço dela com firmeza.
— Por favor, me empresta um carro, eu consigo chegar ao hospital.
— Entra aqui. Silvio não está nada bem, só não vou com você por
causa disso. Está de cama desde ontem, não quer comer, não sai de lá por
nada. Tem certeza que consegue ir sozinha? Posso chamar alguém...
— Eu consigo... queria ver o Silvio, mas tô com muita dor e...
— Eu entendo, Bárbara. Meu Deus, menina, o que fizeram com
você? Precisa ir à polícia.
— Eu vou, Nilza. Eu vou...
— Vou pegar a chaves do carro dele, espere.
— Ok!
Menos de um minuto depois ela voltou e entrei no carro.
— Eu volto assim que for liberada. — garanti.
— Tá bom. Cuidado!
Dei a partida na caminhonete e fui. Eu sentia tanta dor que temia
apagar no volante. Precisei focar, pois não queria ser levada para o hospital
naquele estado e chamar a atenção de alguém. Fui direto para casa.
Tive a maior surpresa da minha vida ao chegar. Vi Augusto na sala
do apartamento da Diana junto com ela, que tinha o celular na mão
digitando impacientemente. Enquanto ele mantinha o dele na orelha, talvez
falando ou tentando falar com alguém.
Só vi os dois ali e voei em cima do velho desgraçado, mentiroso.
Desferi vários socos no rosto dele, caído no chão, sob os gritos de desespero
da Diana.
45 – Confiança

Diana

Algumas pessoas acreditam que de tudo o que acontece na vida


precisamos tirar uma lição, seja ela boa, seja ruim. A última lição que
aprendi dessa maneira foi sobre confiança. Resumindo, confiar em alguém
me ensinou que não devo confiar em ninguém.
O meu dilema naquele instante era se deveria sair desesperada atrás
da Bárbara ou arrancar as tripas do meu tio pela garganta, ali mesmo, na
sala, por ter mentido para mim sobre a Ingrid, me fazendo acreditar que eu
havia matado a desgraçada e me deixando indefesa contra ela.
— Que história é essa da Ingrid estar viva, tio? — gritei e avancei
em sua direção, mas fui contida pela Lara.
— Calma, Diana!
— Calma é o cacete. O que eu sou pra vocês, afinal? Pra todos
vocês? Eu sou só um peão nesse joguinho tosco que inventaram, não é?
Eu estava fora de mim, comecei a desferir desaforos aleatórios
contra os três, que apenas me deixaram desabafar até que eu não pudesse
mais falar. Cuspi tudo o que veio na boca, tanto que quase falei o que não
podia: o vídeo que eu havia feito no Chile. Mas me contive a tempo. Era
melhor eu começar a ter meus próprios trunfos.
— Filha, por favor, foi para o seu bem. Fizemos um acordo com a
Ingrid, o Afrânio a queria morta, então deixamos que ele achasse que
estava. Em troca, ela nos ajudaria a derrubá-lo.
— E por que não me contaram? Têm noção do que eu passei
achando que tinha matado aquela psicopata?
— Foi para a sua própria segurança, Diana. Não podíamos arriscar
um novo confronto entre vocês. — Toledo explicou com uma voz
irritantemente calma.
Como ele pode ficar calmo?
— Ela estava sob as nossas vistas o tempo todo, filha. Não sei como
conseguiu entrar em contato com o irmão sem que percebêssemos. O fato é
que ela tramou tudo isso pelas nossas costas, pois no nosso acordo ela
deixaria para resolver a situação dela com a Bárbara só depois que
derrubássemos o Afrânio.
— Aquela mulher é louca, mau-caráter, tio. Completamente
descontrolada... ela é obcecada pela Bárbara. Achou mesmo que ela iria
esperar de braços cruzados pelo dia em que você finalmente decidiria jogar
as merdas do Afrânio no ventilador? Se nem eu acredito mais nisso, por que
ela acreditaria?
— É complicado...
— Complicada tá a minha vida depois daquele maldito dia que você
apareceu baleado no hospital. Não quero saber mais disso agora, eu quero é
que me diga o que vai fazer para encontrar a Bárbara. E te adianto uma
coisa, Augusto: se ela não voltar pra mim sã e salva, já era. Eu pulo fora,
nem que isso me custe a vida. — ameacei com ódio nos olhos.
Sentia as lágrimas molhando o meu rosto e aliviando o ardor
causado pelo forte rubor. Meu tio engoliu as minhas palavras com tristeza
no olhar, mas apenas respirou fundo e começou a conversar com Lara e
Toledo. Após discutirem algumas estratégias, os dois saíram para agir.
Augusto tentou mais uma vez falar com a louca pelo celular.
Gabriel chegou naquele momento e o abracei com força antes de
cumprimentá-lo.
— Ei, o que houve?
Eu solucei por uns instantes e olhei para o meu tio, que tinha o
celular na orelha enquanto andava pela sala.
— A Ingrid sequestrou a Bárbara, Biel. E eu estou quase louca sem
saber para onde aquela louca a levou.
— A Ingrid? — perguntou, espantado e me viu assentir. — Ah, meu
Deus, Di! Se acalma. Que história é essa? — indagou e olhou para Augusto.
— Esse louco mentiu pra gente. — gritei com a voz embargada.
— Calma, Di. A Bárbara é safa, vai sair dessa. Vou pegar uma água
pra você. Senta aqui. — pediu e sentei no sofá, mas ouvi Augusto.
— Ingrid... — cheguei perto dele e senti meu celular vibrar, era
mensagem da Lara. —, me liga quando ouvir essa mensagem. — Deixou o
décimo recado e tentou de novo.
Eu estava respondendo a Lara quando Bárbara entrou e voou em
cima do Augusto. Eu só pude gritar. Ela estava muito machucada, mas
socava o rosto do meu tio, cheia de fúria.
— Bárbara! Para! Socorro!
Gabriel veio correndo da cozinha e tentou tirá-la de cima do
Augusto, mas foi em vão. Ela deu um chute nele.
— Bárbara! — gritei novamente quando vi que Augusto já estava
quase inconsciente.
Gabriel pulou em cima dela e a jogou no chão, tirando-a de cima do
meu tio.
— Calma! — gritou, tentando contê-la.
Verifiquei como Augusto estava e o vi se mexer. Tinha sangue
saindo do supercílio, da boca, do zigomático.
— Gabriel, ajuda aqui, por favor. — pedi e ele saiu de perto da
Bárbara.
Fui até ela e a levei para o quarto. Completamente trêmula, eu a
abracei com força, sentindo a respiração pesada e ofegante dela se acalmar
aos poucos. Olhei para fora do quarto e vi meu tio no sofá segurando uma
toalha no rosto. Fechei a porta e olhei para Bárbara. Ela desabou num
pranto copioso.
— Está tudo bem, não vou deixar nada de mal te acontecer de novo.
— avisei e deixei que chorasse no meu peito.
Depois de desabafar, fomos ao banheiro e ela tomou banho. Ajudei e
vi os inúmeros cortes pelos braços, pernas e até no rosto.
Independente de tudo o que tivesse feito na vida, Bárbara era uma
menina ainda. Impulsiva, mas uma menina. Uma sobrevivente. Peguei
minha mala de primeiros socorros quando ela saiu do banheiro e comecei a
cuidar dos ferimentos dela. A maioria era superficial, mas uma quantidade
grande. As articulações metacarpofalangeanas estavam vermelhas e um
pouco feridas também e imaginei o quanto as usou para se livrar daquela
desgraçada.
— O que aquela louca fez com você, meu amor? — perguntei em
lágrimas enquanto cuidava dos cortes.
— Era um chicote com lâminas nas pontas. — disse em meio a
caretas de dor.
— Ah meu Deus! Aquela bandida precisa apodrecer na prisão. —
falei, revoltada.
Naquele momento eu a mataria, mas teria certeza de que estava
mesmo morta. Não deixaria que chegasse perto da Bárbara de novo. Dei um
analgésico a ela, pois pelos hematomas sentiria muita dor.
Bateram à porta do quarto.
— Diana, sou eu.
Bárbara meneou a cabeça negativamente.
— Depois falo com você, Lara. — disse ao abrir.
— Diana, é importante saber onde a Bárbara estava. Vou manter a
Ingrid na prisão, será mais seguro, mas preciso saber onde encontrá-la.
— Agora, não, Lara. Ela está muito abalada, toda machucada.
Depois você conversa com ela. — Fui taxativa e fechei a porta depois de
ver Gabriel cuidando do Augusto, que segurava uma bolsa de gelo no rosto.
Luís entrou no quarto pela varanda e se roçou na Bárbara, que
afagou sua cabeça.
— Ele também estava preocupado com você. — disse e a beijei na
cabeça. — Deita, descansa... — pedi e comecei a recolher as coisas.
— Fica comigo, por favor.
— Claro.
Coloquei o que usei nela no lixo e deitei ao seu lado. Ela me
apertou, demonstrando medo de ficar sozinha. Como era de se esperar, ela
teve um sono agitado. Certamente repleto de pesadelos. Eu passei a noite
acordada cuidando para que se acalmasse sempre que ficasse inquieta.
Quando amanheceu, eu havia cochilado e acordei com um beijo dela
no meu queixo.
— Bom dia, amor. Como se sente?
— Melhor. O que houve? Tive muitos pesadelos...
Ela não se lembra? — Observei seu semblante confuso.
— Você não se lembra do que houve?
— Sonhei com a louca da Ingrid. Mas... droga! — disse num
sussurro e fechou os olhos.
— Não foi sonho. Mas agora está tudo bem. Ela vai ser presa...
Ela se sentou, olhou em volta e foi ao banheiro. Saí da cama e abri a
porta do quarto, Gabriel dormia no sofá, Toledo estava sentando numa
poltrona e me encarou na hora em que me viu.
— Bom dia! Como ela está?
— Confusa. Não se lembra do que houve.
— Quando começar a recuperar as lembranças, precisamos
conversar com ela. O depoimento dela é de suma importância para esse
caso. A Ingrid é peça importante no caso do Afrânio, mas vai pagar pelos
crimes dela também. E você, fique tranquila, eu vou ficar aqui se precisar.
— Obrigada. Ela teve uma noite agitada, peço que respeite o
momento dela.
— Tudo bem, mas quanto mais ela demorar a falar, mais a Ingrid
terá tempo para fugir.
Assenti e fui à cozinha. Lecter me recebeu abanando o rabo.
Coloquei ração para ele e preparei a do Luís. Liguei a cafeteira e fui ao
quarto do Gabriel onde Augusto dormia.
Como eu confiaria nele de novo depois de tudo aquilo? Seria quase
impossível. Ele se mexeu e consegui ver o rosto inchado. Deixei que
descansasse. Ainda estava cedo.
Bárbara estava se vestindo quando cheguei ao quarto.
— Oh, meu amor, dorme um pouco mais. Ainda está cedo...
— Não tô com sono. Tô preocupada... — disse e olhou para a janela
do apartamento da Ingrid, pela fresta da varanda.
Eu só pude abraçá-la naquele momento. Era visível o medo dela.
— Vamos cair fora, Diana. — pediu e coçou a nuca, me olhando.
— Como assim?
— Está na cara que seu tio e esse povo não vão enfrentar o Afrânio
tão cedo, cara. Não quero ficar aqui correndo risco desse jeito. Se tocarem
em você não sei do que sou capaz...
Como discordar da Bárbara se eu já não acreditava naquela ação que
não se iniciava nunca. Mas como simplesmente fugir como ela queria sem
ser pega pelos homens do Afrânio ou pelo povo do Augusto? Não podia
confiar em nenhum deles. Foram capazes de mentir.
— Por favor, Diana. Eu sei que é seu tio, você confia nele, mas não
podemos esperar que o Afrânio ou quem quer seja faça algo contra a gente.
Passei as mãos nos cabelos. Pensei por um tempo e ela começou a
guardar as coisas dela na mochila.
— Até do Gabriel eu estou desconfiada, não sei o que houve quando
foi raptado pelo Afrânio. — disse e me deixou mais preocupada ainda.
A forma como ele agiu ao ver o vídeo, foi bem estranha. Luís entrou
pela varanda novamente e pulou na cama.
— O que faremos com eles? — perguntei já deixando claro que a
nossa fuga era viável.
— Vamos deixar com alguém, depois buscamos. Você tem aquela
grana, a gente pode se esconder em algum lugar. —sussurrou, segurando as
minhas mãos.
— Toledo está aí fora, quer falar com você sobre a Ingrid. Passou a
noite aí.
Ela respirou profundamente e passou as mãos nos cabelos, segurou
meu rosto entre as mãos e me beijou.
— Você conhece alguém de confiança pra cuidar deles?
Pensei por um instante, mas não veio ninguém à mente. Se deixasse
com Gabriel, capaz de os dois morrerem de fome em menos de uma
semana. A menos que...
— Bem, tem a Jéssica...
— Ah, tá. A sua maior fã. Acha que ela fica com os meninos por um
tempo e fica de boca fechada também?
— Sim, vou conversar com ela.
— Leva o que couber de dinheiro na tua bolsa de mão e deixa lá.
Com esse cachorro de guarda aqui não vamos poder sair com malas.
— Você vai conversar com ele? Ele precisa saber onde encontrar a
Ingrid. Disse que ela vai pagar pelos crimes.
— A Ingrid já era, Diana! — Ouvir aquela informação daquele gelar
me fez gelar. — Mas ela não era o nosso grande problema...
Levei as duas mãos à boca e vi Bárbara me encarando como se me
analisasse.
— Faz o que estou pedindo. Não vou ficar aqui pra esse esquisitão
me prender e deixar você sozinha.
— Tá, mas o que vamos fazer? Pra onde vamos?
— Deixa comigo, eu tenho um plano.
Engoli saliva, tentando digerir aquilo. Estava ofegando quando
peguei a mala com o dinheiro que Augusto me deu e coloquei tudo o que
coube na minha bolsa. Tinha um imenso nó na garganta, a ponto de explodir
quando ela me fez olhar em seus olhos novamente.
— Eu te amo! Não duvida disso.
— Eu também te amo. Você vai ficar bem?
— Sim, vou conversar com o Toledo e espero você.
Saímos do quarto e o semblante dela estava mudado. Não parecia
aquela mulher decidida que tinha acabado de me dar ordens.
— Oi... — falou, olhando para o detetive que permaneceu sentado,
observando-a.
— Toledo, surgiu um problema no hospital e vou precisar dar uma
saída rápida, você fica aqui?
— Claro.
— Vou com você, Di. — Gabriel saiu do quarto com uma mochila.
Saí com o Gabriel depois de dar um beijo em Bárbara e pedir que
mantivesse a calma.
— Di, o que aconteceu, mano? Por que a Bárbara tá toda
arrebentada daquele jeito?
As palavras da Bárbara chegaram à minha mente sobre estar
desconfiada do Gabriel.
— Biel, você seria capaz de me trair?
— O quê? Claro que não, Diana. Não me conhece? Por que está
perguntando isso?
— Por nada. Esquece. Esse deslize do meu tio me fez ficar
paranoica. Desculpa...
Chegamos ao hospital e ele me segurou pelos ombros.
— Di, confia em mim, tá? Sou seu mano, lembra? — disse de olhos
marejados e me abraçou. — Vai ficar tudo bem. Eu vou trabalhar. Que
problema deu aqui? Achei que era alguma emergência...
— Eu preciso achar a Jéssica.
— Deve estar indo pra casa, trabalhou a noite.
— Obrigada. Bom plantão, vou procurá-la. — avisei e liguei para
ela, que atendeu na primeira chamada.
— Diana? Você tá bem?
— Está tudo bem, sim, Jéssica. Podemos conversar pessoalmente?
— Claro. Estou saindo, te vejo no estacionamento...
Minutos depois ela apareceu. Nos cumprimentamos, ela me deu um
abraço constrangedoramente demorado, mas correspondi. Apesar de ser
louca pela Bárbara, eu tinha muito carinho pela Jéssica.
— Você tá bem?
— Vou ficar... em breve. — respondi, engolindo o choro. — Preciso
de um favor!
— Diana, pelo amor de Deus! O que tá rolando? Você tá me
deixando muito preocupada...
— Jéssica, vai ficar tudo bem em breve, não se preocupa, tá? Eu
prometo. E quando tudo isso passar, te conto. Mas agora eu preciso de um
grande favor seu. Será que pode me ajudar?
— Claro, qualquer coisa.
— Só preciso que você fique com o Luís e o Lecter por uns dias.
— Por quê? Você vai viajar?
— Sim, eu preciso, e é meio urgente.
— Claro! Não se preocupa, eu cuido deles.
— Eu amo muito os dois, mas infelizmente não posso levá-los
agora. — falei, enxugando uma lágrima.
— Tudo bem, pode contar comigo. — garantiu, acariciando meu
ombro.
— Só mais uma coisa, pode deixar essa bolsa na sua casa? Quando
eu for, passo lá e pego com você. — disse e a vi me olhar desconfiada. —
Calma, não é nada ilícito.
— Tá bom, eu confio em você. Queria poder fazer mais, odeio te
ver assim...
— Você já está fazendo muito. Obrigada, Jéssica! Você é uma boa
amiga.
Deixei o pacote com o dinheiro com ela e saí. Parei em um sinal
vermelho e vi um carro à venda na frente do meu. Anotei o número e fui
para casa. Antes de entrar, vi o carro de Lara, e resolvi ligar para o dono do
carro à venda. Conversei com ele e combinamos de nos encontrar à noite
para fazer negócio.
Tinha um enorme nó na garganta quando entrei no prédio. Deixar
tudo para trás era muito duro, mas a Bárbara tinha razão, não podíamos
ficar desviando de morte no meio daquele povo.
— Você matou a Ingrid? — Ouvi Lara perguntar a Bárbara quando
entrei.
— Não. Eu só fugi no carro do Silvio. Estava escuro e sei que corri
muito até chegar perto da casa.
Lara suspirou fundo, parecia nervosa. Balançava o próprio celular
na mão e se levantou, olhou para Toledo e ele acenou positivamente.
— Ela fala a verdade, Lara.
A delegada soltou um rosnado seguido de um sopro quando uma
notificação em seu celular a tirou da concentração.
Segurei a mão da Bárbara e a senti apertar a minha.
— Obrigada, Bárbara. — Lara agradeceu e me olhou. — Você está
bem?
— Sim...
— Ótimo. Sobre a Ingrid, se precisarmos eu volto, Bárbara. Preciso
ir agora...
Abri a porta para Lara e notei que Toledo não tirava os olhos de
Bárbara, que o encarava também.
Seria difícil sair de casa com o Toledo ali o tempo todo. Ele tinha
um olhar profundo e analisador. Seu celular tocou e ele se levantou para
atender longe dos nossos ouvidos.
— Oi, Ângela! — Ainda ouvi e olhei para Bárbara questionando
sobre o interrogatório.
— Deu tudo certo. Eu não lembro de muito, então não foi difícil
falar com eles e repetir as mesmas respostas quantas vezes fosse preciso.
Ingrid já era e já era muito.
Ainda não era fácil administrar aquilo, mas depois de vê-la solta em
tão pouco tempo e ter certeza de que aqueles nojentos não pagariam por
nenhum crime, saber que uma criminosa como a Ingrid estava morta não
me deixou tão mal. A minha cabeça estava mudando. E hipocrisia não era
meu forte.
— Vamos deixar isso pra lá. Vem cá... — chamei, levando-a para o
quarto. — Como você está?
— Bem, não sinto tanta dor.
— Olha só, eu vou sair sozinha e você pela varanda. O Toledo não
vai sair daqui, então teremos que ser cautelosas. Tudo bem?
— Claro.
Combinei cada detalhe com ela e colocamos as nossas coisas no
carro pela varanda quando Toledo foi conversar com o meu tio no quarto.
O dia passou normalmente, liguei para uma pet shop e pedi para
levarem Luís e Lecter para dar banho, Jessica os buscaria lá depois.
Almoçamos. Augusto fez sua refeição no quarto e falou que voltaria para
São Paulo no dia seguinte. Quando anoiteceu, avisei que precisaria sair.
— Doutor Jales quer conversar comigo. A Bárbara está dormindo.
Você vai ficar aqui? — perguntei a Toledo.
— Claro. Falei que ficaria, vai tranquila. — avisou da poltrona.
— Ótimo.
Olhei em volta e saí. O nó da minha garganta não se dissipava por
nada. Mas seria melhor assim.
Bárbara já estava no carro quando cheguei. Saí e fui direto encontrar
com o vendedor. Fizemos negócio, consegui desconto por pagar à vista e
em dinheiro. Usei os documentos falsos que meu tio havia conseguido para
mim. Bárbara me esperou perto do hospital, onde deixei o meu carro e
nossos celulares antigos. Dei um abraço forte na Jéssica e avisei que
voltaria. Ela ficou chorando.
Pegamos a estrada. Olhei para Bárbara e ela estava me admirando
com aquele sorriso nos olhos.
46 – Petrópolis

Barbara

— Eu te amo e sou capaz de qualquer coisa pra te proteger. —


Deixei claro quando pegamos a estrada.
Beijei sua mão, a vi nervosa, de olhos vermelhos, marejados. Ver
Diana daquele jeito me destruía. Só vi felicidade de verdade naquele rosto
quando não éramos alvos dessa merda toda. E eu decidi acabar com aquela
tensão quando fui tirada de cima do tio escroto dela e vi pavor em seus
olhos. Nele não poderia tocar, pois a deixaria muito triste, mas ficar perto
dele não era seguro.
Notei a veia do pescoço dela tremer quando avisei que matei a
Ingrid, mas a deixei digerir aquilo sozinha. Ela já havia tentado matar
aquela desgraçada, então esperei sua reação. Não mentiria para ela e nem
omitiria mais nada.
Meu coração estava aos pulos no peito. A possibilidade de ela se
recusar a ir comigo me deixou a ponto de ter um infarto. Resolvi arrumar
minha mochila, não podia ficar esperando pela decisão dela ali parada. Se
ela não aceitasse eu não poderia fazer nada além de ficar com ela e esperar
as merdas daqueles bandidos, mas se aceitasse não queria me esquecer de
nada.
Ela deve ter ouvido o meu coração disparando quando a abracei,
pois eu consegui ouvir. Ela já começou a pensar em tudo e avisou que o
Toledo queria falar comigo.
Fechei os olhos em busca de apoio e quando saí do quarto o olhar
analisador dele veio direto em mim. Toledo é perigoso. Caladão,
observador. Eu precisava ser cautelosa. Diana inventou uma desculpa para
ir procurar a Jessica e nos deixou sozinhos.
Apesar de apreensiva, eu não me lembrava de detalhes do que tinha
havido, então era seguro conversar com ele.
— Como se sente, Bárbara?
— Dolorida. Mas bem, estou em casa... viva! — disse pausadamente
como se estivesse debilitada.
Vi o olhar dele fixo em cada movimento meu. Evitei mexer muito o
corpo e as mãos.
— Diana me falou da sua confusão ao acordar. Acha que consegue
me dizer o que houve?
— Tá tudo embaçado na minha cabeça, mas me lembro de ter ido
ao apê da Ingrid...
— O que foi fazer lá? Tem chave?
— Eu estava desesperada com a Diana fora e quando ela chegou me
deixou mais preocupada ainda, então resolvi procurar mais provas contra o
Afrânio. Eu já achei muita coisa contra ele lá. Sobre chave, eu não tenho, o
portão estava aberto e só entrei.
Ele tirou a perna direita de cima da esquerda e inverteu a posição.
Observei aquele movimento e olhei para a cara dele, que me olhava. Se ele
queria me intimidar de alguma forma, precisaria usar outra tática, pois sou
imune a insinuações sutis.
— O que pretendia fazer com tais provas?
— Entregar pra vocês... parece que ainda não têm provas suficientes
para tirar aquele escroto da ativa.
— O que houve depois?
— Eu senti uma pancada na cabeça e acordei num lugar estranho. Vi
a Ingrid, o George, irmão dela, um cara que não conheço e o Ivan,
encarregado da produção de carvão da fazenda Dorneles. — disse tentando
me lembrar de mais coisas.
— O que aconteceu? Vejo que suas mãos estão machucadas, você
bateu em alguém?
— Essa pergunta é séria mesmo? Tio, eu tô aqui. E enchi a cara
daquele velho mentiroso de porrada. — disse e respirei fundo, não podia
perder a paciência com ele, que semicerrou os olhos, me olhando. — Eu
precisei reagir ou aquela louca me mataria.
— Como fugiu?
— Correndo. — disse, inocentemente, e notei que soou irônico. —
Bati neles e corri. Peguei o carro emprestado e cheguei aqui.
— Você matou algum deles?
— Não sei... — fechei os olhos com força e quando os abri, Toledo
estava com o corpo inclinado para frente. — Não consigo lembrar direito.
Sei que bati porque eram muitos e eu consegui sair.
— Algum deles estava armado?
— Ingrid tinha um revólver e o chicote. Os outros eu não lembro
direito, mas o cara que não conheço tinha uma corda.
— Respire fundo, Bárbara.
Fiz o que ele pediu e o vi se aproximar de mim. Gelei quando
chegou bem perto.
— Você precisa se lembrar com detalhes de tudo o que aconteceu,
ok?
Esse filho da puta vai me hipnotizar! — pensei e o vi se agachar à
minha frente.
— Ok. — disse e fiquei pensando por uns segundos.
— Comece do início, por favor. Isso é muito importante, Bárbara. A
Ingrid é perigosa e não podemos arriscar sua integridade física.
Contei do início como aconteceu ou pelo menos até onde eu me
lembrava e depois de repetir aquela porra umas quatro vezes, ele se deu por
satisfeito. Conversei com Lara também, ela anotou algumas coisas.
Perguntou as mesmas coisas, mas de formas diferentes. Senti o nervosismo
da delegada que segurava o celular e recusava chamadas insistentes. Vi
Diana chegar.
A presença dela era como se fosse minha renovação de forças. Era
meu porto seguro.
Quando Toledo garantiu que eu falava a verdade, eu notei que ele
era uma espécie de detector de mentiras humano. Ou não, ele parecia um
robô.
Quando Lara saiu, Diana me perguntou sobre o interrogatório e
comentei com havia sido. Incrível como ela estava lidando bem com a
situação de saber que eu havia matado aquela desgraçada.
Toledo não parou de me observar um segundo sequer. Temendo que
armasse algo, corri com tudo quando Diana avisou que Jessica ficaria com
nossos filhos. Pela varanda, desci com o máximo de coisas que pude.
Incluindo comida e água, pois não sabia como seria nossa viagem. Eu
chamaria atenção fácil com o rosto machucado.
Depois de dez quilômetros ela pediu para parar o carro. Aquilo me
assustou, mas parei no acostamento. Ela abriu a porta saindo rapidamente e
vomitou. Peguei uma garrafa de água e fui até ela. Segurei seu cabelo.
— Respira, vai ficar tudo bem. — pedi, num sussurro.
Quando ela parou, entreguei a garrafa. Ela chorou por uns segundos
e a abracei com força, ela me apertou em si.
— Tudo isso me enoja. Desculpa. Estamos fugindo enquanto o
verdadeiro bandido está livre.
— Amor, estamos indo embora disso tudo. Você merece uma vida
melhor. Não sou a melhor pessoa do mundo, mas vou fazer qualquer coisa
para que você não sofra essas tensões de novo. Eu juro! Vem... — chamei e
abri a porta.
Ela respirou profundamente algumas vezes, recebendo o ar que
entrava pela janela do carro quando peguei a estrada de novo.
Depois de duas horas de viagem encontrei um motel. Eu já o tinha
visto antes.
— Vamos passar a noite aqui. Você não está bem e precisa descansar
um pouco.
— Eu estou bem, Bárbara. Vamos seguir, quanto mais nos
distanciarmos mais difícil será sermos pegas. Precisamos agir como duas
foragidas. — disse com firmeza e dei partida novamente. — Daqui a pouco
eu pego.
— Descansa, então. Eu tô bem, consigo dirigir a noite toda.
— Te faço companhia. — garantiu e segurou a minha mão. Beijou a
parte de cima.
Conversamos um pouco, mas ela acabou adormecendo. Eu mantive
a atenção na estrada, peguei a BR 116 e antes de amanhecer estávamos
entrando no estado do Rio. Ela acordou e olhou em volta, eu estava
estacionando na frente de um restaurante na beira da estrada. O sol
começava a nascer.
— Vamos tomar café. Mas você precisa ir lá... vou usar o banheiro.
Essa hora tá vazio...
Ela bocejou e me abraçou. Pegou sua bolsa, colocou o capuz do
casaco na cabeça. Entramos no local, tinha apenas duas mesas ocupadas.
Uma atendente com cara de sono no balcão e um homem no caixa, tão
sonolento quanto a colega. Diana usou o banheiro, lavou o rosto, escovou
os dentes e saiu. Repeti sua ação saindo sem chamar a atenção. Passei para
o carro de cabeça baixa, mas vi Diana pagando o lanche e seguindo para
sair. Nos afastamos de lá e parei um tempo depois para comermos.
— Saudade dos meninos! — comentei com tristeza. Temia não vê-
los mais.
— Saudade imensa também. Mas estão com a melhor pessoa.
— Sua fã! Você é uma arrasadorazinha de corações! — brinquei, e
ela sorriu.
— Jessica merece ser amada. É uma menina muito boa.
— Já ficou com ela? — indaguei lançando um sorriso malicioso e
fazendo-a ficar vermelha.
— Só dei uns beijos porque estava muito puta com você.
Eu ri subitamente e ela sorriu meneando a cabeça.
— O que eu fiz?
— Estava casada com aquela... — parou de falar e engoliu o líquido
do copo, colocou tudo numa sacola e pôs atrás do banco do carona.
— Aí cê deu uns pegas nela? — Tentei continuar aquele assunto,
pois ela sorria envergonhada.
— Não chegamos a fazer nada. Coitada, eu a usei...
Puxei o rosto dela e a beijei carinhosamente.
— Amo a forma como enrubesce quando fica envergonhada.
— E eu amo todas vocês!
— O que disse?
— Eu amo todas vocês. Todas as suas versões. Já conheço você,
Bárbara. — disse e olhou para a frente.
— Como assim?
— Você mostra quatro comportamentos diferentes. — Franzi o
cenho. — E eu amo todos. Ora é decididíssima, descolada e impulsiva. Ora
meiga e medrosa. Outra ocasião se mostra madura e polida. E a minha
preferida, romântica, inocente e sonhadora.
Ok, eu não esperava por aquilo! Senti uma pressão na garganta.
Fiquei calada. Peguei água. Ela me olhava, notou minha apreensão, pois
segurou minha mão e me fez olhar para ela.
— Amor, não fica assim. Não estou julgando você. Eu amo mesmo.
E admiro sua força. — disse e me beijou. — Você precisa descansar.
— Em uma hora e meia chegamos onde quero e descansamos. —
avisei e dei partida no carro. Segurei sua mão e sorri. — Você é muito linda,
sabia? Vamos morar numa casa grande e criar nossos filhotes. Lecter vai
adorar correr no quintal. Aquele filho da mãe cresceu pra caramba.
Ela entrou na onda e passou a fazer planos também. Subimos a serra
planejando nosso futuro. Naquele momento só existia nós e nossos filhotes,
o que importava no mundo. Sem problemas, sem pai, sem tio. Sem lágrimas
e sem vômitos.
Vi seu rosto se iluminar quando passamos pelo portal de entrada de
Petrópolis. Eu sorri. Ela observava atentamente quando entrei por uma
estrada estreita, que era de terra até uns três anos atrás. Vimos algumas
casas e hotéis fazenda, até que parei na frente de um portão de madeira e
acenei para um porteiro, que veio abrir, e estacionei na frente do hotel. Era
o mais simples da região, muito discreto, aconchegante e confortável.
— Que lindo esse lugar!
— Demais. — concordei e segurei as mãos dela. — Estamos longe
de tudo. Esse é o nosso paraíso!
Ela me abraçou e suspirou. Entramos no hotel e fomos recebidas
pelo recepcionista, um cara franzino com a cara cheia de espinha, que
arrumava umas fichas num balcão, que também estava mudado.
— Bom dia! — disse sem levantar o olhar.
— Bom dia! — respondi junto com Diana. — Tia Marly taí? — Ele
finalmente olhou para a gente e arregalou os olhos.
— Bárbara!?
— Excel! — gritei e o reconheci. — Seu filho da puta!
Trocamos um abraço caloroso e olhei para Diana, que sorria
observando a cena.
— Amor, esse é o meu brother Excel, Excel essa é a Diana, minha
mulher...
— Como foi que tu arrumou ela? — Ele brincou e a cumprimentou
com beijos no rosto. Formou uma concha com as duas mãos e gritou: —
Oh, mãe!
Diana me beijou na cabeça. Excel estudou um ano comigo e depois
saiu do Rio com a família, que fora tentar a vida na cidade grande e não
teve sorte.
— Diana, meu nome é Railson, ela é louca!
— Por que Excel? — Ela perguntou, sorrindo se divertindo.
— Ele é muito magro e dá pra ver as costelas dele, parece uma
planilha... — expliquei e vi o lindo riso dela, meneando a cabeça.
Tia Marly apareceu secando as mãos em um pano, que usou pra me
bater depois de me abraçar.
— O que houve com teu rosto? Andou brigando de novo? Bárbara,
tu não toma jeito, hein, menina?
— Tia, essa é a Diana. Minha esposa, tomei jeito, sim.
— Oi, Diana, seja bem-vinda! Railson, leva as coisas delas lá pra
dentro. Venham tomar café, e você vai me contar direitinho por que sumiu.
Onde se enfiou...
— A gente acabou de comer, tia. — Ela só me olhou e continuou
andando.
Tomamos café de novo enquanto eu contava o que tinha acontecido
comigo nos últimos anos. Até que ela desviou o foco pra Diana. Não falei
da Ingrid, era desnecessário. Quando disse que a Diana era médica, ela
passou a me ignorar e falar da dificuldade do Excel para ganhar peso. E de
umas dores na lombar que ela sentia. Eu comia um doce. O melhor do
mundo!
— Vocês estão com caras de cansadas, vão descansar. O almoço é
servido ao meio-dia para os hóspedes, mas se quiserem algo antes podem
vir aqui na cozinha, são de casa.
— A pousada tem muita gente, tia?
— Três quartos ocupados com casais. Algumas reservas para o fim
de semana. Essa época é fraca mesmo, pode ficar tranquila.
Entrei no quarto com Diana, que já tinha um semblante bem melhor.
Eu a abracei e olhei em seus olhos.
— Amo você!
— Também te amo. Obrigada.
Depois de um banho demorado, juntas, fomos para a cama. Fizemos
amor sem pressa. Ela ficou reticente com meus machucados, mas eu estava
louca por ela.
Dormimos até as três da tarde. Acordei antes dela e fiquei
observando-a dormir profundamente, como há muito não fazia enquanto
pensava no quão feliz estava por estar ali com ela, longe de tudo. Eu sabia
que aquela nossa paz não era para sempre, mas não deixaria que nada a
tirasse da gente tão cedo. Beijei suas costas e ouvi o gemido dela. Beijei de
novo e ela me puxou para perto e procurou minha boca com a sua. A
maciez do corpo nu dela no meu já me acendia inteira. Namoramos por um
tempo, tomamos banho e saímos do quarto.
Fomos direto para a cozinha, tia Marly preparava umas massas junto
com uns ajudantes.
À noite, Diana ligou para Jessica com o número não identificado e
teve notícias dos filhotes. Luís estava rebelde, mas Lecter adorou o
apartamento. Diana perguntou se alguém a procurou e ela disse que
perguntaram por ela no hospital.
— A delegada verificou o seu carro que ficou no estacionamento do
hospital. Mas não chegaram até mim. — Ouvi Jéssica no viva-voz.
Diana ficou aliviada ao ouvir aquilo. Sei que se preocupava com a
colega. Mas vê-la tranquila me deixou feliz. Passamos três dias de
felicidade plena naquele lugar. Eu a levei para conhecer as cachoeiras,
andamos a cavalo, tocamos violão à noite com tia Marly e Excel. Ajudei a
cozinhar, Diana examinou tia Marly e indicou um nutricionista e clínico
geral a Excel.
No terceiro dia fomos almoçar no salão, havia poucos hóspedes,
mas todos estavam almoçando. Sentamos longe, mas notei que estavam
todos olhando para a TV, que passava o jornal da Neila, a mulher com quem
vimos o Toledo falar. Diana se virou, não deu muita importância, mas olhou
subitamente, largou o talher sobre a mesa.
— Que foi, Amor?
Ela estava muda, colocou a mão na boca, enquanto via o que
passava na TV. Me virei e olhei direito. Quase caí da cadeira. Corri até
Excel e aumentei o volume do aparelho.
— A gravação dessa orgia, é assim que se define esse tipo de ato,
foi enviada anonimamente para nós pelas redes sociais. Como você pode
ver, claramente, é o senador Afrânio Sobreira... — Olhei para a mesa e
Diana não estava mais lá.
Puta que pariu!
47 – Toledo

Toledo

Eu sinto que a Bárbara mentiu.


Mas infelizmente não consegui ver isso nas inúmeras vezes em que
conversamos. Tenho vinte anos de experiência na polícia. Sou especialista
em micro expressões faciais e corporais, detecto mentiras até numa piscada,
com exceção apenas de psicopatas, o que não é o caso da Bárbara, mas ela
conseguiu esconder a verdade. Não aceito isso. Preciso descobrir como.
— Achei que Bárbara havia matado a Ingrid. — Lara comentou
comigo.
Eu a observava anotar algumas coisas. Apoiando o polegar na lateral
do rosto com o resto dos dedos tapando a boca, eu pensava na Bárbara,
visivelmente contrariado. Precisava de mais tempo com ela.
— Também achei. Preciso estudar essa menina, Lara!
— Você acha que pode ter se enganado?
— Não, mas ela desperta minha curiosidade.
— Posso pedir que vá depor na delegacia, lá podemos gravar. Ela
tem o comportamento oscilante. Tem sérios problemas de ansiedade.
— Tudo bem. Amanhã você faz isso. Vou verificar essa ansiedade.
Quando a Diana chegar vou perguntar sobre como se conheceram. Talvez
ela saiba de algo que me ajude.
— Algo que nos ajude, né, Toledo?
— Lara, não há detector de mentiras que vá pegar a Bárbara em
alguma falha. E depois, sem provas, o que você faria? Prisão preventiva
com base em quê? A Bárbara é um assunto pessoal.
O celular tocou e a vi silenciá-lo.
— Droga! — xingou baixinho e apertou suas carúnculas lacrimais.
— O que houve?
— A porra do vereador desaparecido me tirando do sério. Quando
não é a imprensa, é a mãe dele me enchendo a paciência.
— Lara? — chamei, pois a vi nervosa. — Você não é incompetente,
tire essa ideia da cabeça. Isso é só um caso que você ainda não resolveu.
Ela respirou profundamente, exausta. Demonstrava grande cansaço
de tudo a sua volta. Tinha vários casos sem solução nas mãos. Se mataram
mesmo o vereador, foi o crime perfeito, pois não deixaram um fio de rastro.
E Bárbara chegou a minha cabeça novamente.
Comecei a sentir grande euforia. Precisava muito conversar com ela
de novo. Tenho verdadeiro fascínio por pessoas inteligentes e bem-
sucedidas, não importa a área, mas se for alguém que mata sem deixar
rastros, desperta a minha total admiração. Ignoro até a ética. Foi o que
aconteceu com a Havena.
Havena Becker passou por todo tipo de máquina que pudesse
detectar suas mentiras, foi liberada depois de matar cinco pessoas, por falta
de provas. Quando chegou às minhas mãos, estudei todo o seu histórico, vi
todos os seus depoimentos, inúmeras vezes, notei que estava diante de
uma gênia do crime. Pois vi apenas uma mordida de lábio fora do lugar,
algo inconclusivo. Ela mentiu em todos os depoimentos, só tive certeza
quando a encontrei. Ela debochou da minha capacidade de realizar o meu
trabalho.
— Eu vi, sim. Mas foi por muito pouco. E com isso posso colocá-la
na cadeia. — falei na época quando nos encontramos pessoalmente.
— E por que ainda estou livre?
— Eu não a quero presa! — Ela levantara a sobrancelha direita e
meneara a cabeça positivamente fingindo indiferença, mas notei sua
surpresa pelos movimentos de sua carótida.
Olhou para o chão, ao redor, para as mãos e finalmente me encarou
de novo. Tudo muito rápido.
Nasceu ali uma grande e leal parceria. Ela era o que eu poderia
chamar de família. Doce, gentil, genial. Mas cruel, rápida e limpa em todos
os sentidos quando se tratava de executar seu trabalho: matar por dinheiro!
Pensei não haver um segundo exemplar dela no mundo ou pelo
menos no Brasil.
Agora me deparo com Bárbara, fazendo jus ao seu nome. — pensei
sentado na poltrona da casa da Diana.
Bárbara também é muito gentil e doce, impossível imaginá-la
matando alguém. Havena fora vítima antes de fazer vítimas. Aquilo que me
deixou intrigado.
Na hora do almoço, Diana não a deixou no meu campo de visão
constante. Não pude observá-la sem estar pressionada sendo o centro de
todas as atenções.
Os cuidados de uma com a outra criava uma barreira de proteção.
Bárbara olhava para Diana com aqueles olhos de admiração. O olhar
apaixonado. E vice-versa. Então Diana pode sim saber de tudo o que a
Bárbara faz e jamais abrir a boca.
Os animais foram levados para a pet shop e verifiquei seus
pertences. Cama do cachorro era quase nova. Cão muito dócil, quase um
filhote ainda. Eram uma família bonita. Diana era feliz ali com a Bárbara e
com os bichos. Demonstrou essa felicidade o tempo todo. Não economizou
carinho com nenhum deles.
— Doutor Jales quer conversar comigo. A Bárbara está dormindo.
Você vai ficar aqui? — perguntou, usando uma calça jeans, casaco de
moletom com capuz, bolsa cheia demais para uma simples conversa.
— Claro. Falei que ficaria. Vai tranquila. — avisei da poltrona e
apenas a observei sair.
Nervosa, angustiada!
Olhei para o relógio na parede, que marcava 19h23. Sou um exímio
observador do ser humano, de modo geral, mas admiro as mulheres. Nunca
troquei nenhum tipo de fluido com ninguém, acho desnecessário. Mas a
mulher é um ser superior em todos os sentidos. Então a minha admiração a
elas vai transcender à carne. Quero apenas admirar essa obra que tenho
certeza ser perfeita, de longe, como quem admira uma estrela no céu.
Tive mais certeza ainda quando olhei novamente para o relógio e
notei que já havia se passado muito tempo desde que Diana havia saído.
Depois que Lara saiu fiquei sozinho novamente, fui ao quarto do Augusto.
— Augusto?
— Oi... — disse no escuro enquanto mexia no celular.
— Falei com a Ângela mais cedo, ela vai receber o resultado das
investigações sobre o erro do Afrânio essa semana.
— Eu falei com ela também — falou e passou as mãos no rosto. —
Estou muito envergonhado por ter mentido pra Diana. Sei que foi
necessário, mas o olhar de decepção dela me destruiu. A Bárbara vingou
um pouco esse erro meu... — avisou apontando o próprio rosto. — Menina
da mão pesada!
— Sente-se melhor?
— Sim. Os analgésicos que o Gabriel me deu me fizeram dormir,
mas já estou me sentindo melhor, sim. Cadê a Diana?
— Doutor Jales a chamou no hospital.
Ele deu um salto da cama e me olhou de olhos arregalados.
Procurou o número dela e ligou.
— O que houve, Augusto?
— Droga! Só chama. Falei com o Jales agora, ele não a viu o dia
inteiro.
Saímos do quarto e corri ao quarto dela. Vazio. Verifiquei os
armários. Vazios.
— Elas fugiram.
— Que droga! — xingou com o celular na mão.
Verifiquei o rastreador do carro da Diana e acenei para ele, saímos
logo que eu descobri que o carro estava no hospital.
Meu coração batia acelerado. Eu estava extasiado quando chegamos
ao estacionamento do Bonfim e vimos o carro. Tinha certeza de que o meu
olhar estava entregando o tamanho fascínio que eu sentia naquele momento.
Augusto forçou a porta e conseguiu abrir. Vasculhamos o carro
inteiro e achamos os celulares no porta-luvas.
— Elas pensaram muito rápido, Augusto. Aqui não tem nada que
possamos usar como pista do paradeiro delas.
— O pessoal do hospital. Ela deve ter tido ajuda. Não pode
simplesmente ter saído assim sem ser vista.
Nunca subestime uma mulher!
Falei com todos os colegas dela, só a viram de manhã.
— Onde o doutor Gabriel está?
— Ele saiu antes das três, ia resolver coisa pessoal... — disse a
recepcionista.
— Há mais alguém com quem ela tenha amizade?
— Tem a Jéssica, mas ela está em cirurgia, plantonista da noite,
então provavelmente não vá saber muito também. O que houve com a
Diana?
— Obrigado. — agradeci ignorando a pergunta dela e liguei para o
Gabriel e foi direto para a caixa postal.
Precisei de três tentativas e um mandado para conseguir falar com a
doutora Jéssica. Ela abriu a porta apreensiva. Uma ruiva alta, de olhar verde
e inseguro.
— Bom dia, doutora Jessica. Meu nome é Joel Toledo...
— Bom dia! — respondeu me analisando, usava pijama.
Provavelmente havia acabado de chegar do plantão noturno. — Em que
posso ajudar?
Estava nervosa, cruzou os braços, desconfiada. Permanecemos de
pé, ela queria que eu saísse logo.
— Preciso que me responda algumas perguntas. É sobre a doutora
Diana, sua colega...
— Pois não?
Ouvi um latido. Olhei na direção e a encarei.
— É o cão da Diana? O que conversaram? Para onde ela foi?
— Não sei com que direito acha que pode bater na minha porta e me
interrogar, mas ela não disse nada. Apenas me pediu para cuidar dos bichos
por um tempo, e aceitei.
— Ela está correndo perigo, doutora Jéssica. Por favor, me fale o
que sabe.
— Já falei, ela não disse nada.
— Quando entrou em contato, de qual número ela ligou?
Ela ia falar e me observou. Franziu o cenho e colocou as mãos na
cintura.
— Ligou de um número não identificado, ligou uma vez só. Não
disse onde estava.
— Sabe como saiu da cidade? Ela deixou o carro dela no hospital.
— Não sei. Ela só me pediu que pegasse os animais. Não a vi depois
disso. — disse e olhou na direção do barulho que o cachorro fazia.
Observei-a por uns segundos, nervosa. Manteve uma das mãos na
cintura e com a outra mexeu os cabelos.
— Ela falou para onde ia?
— Não.
— Olhe para mim, doutora Jessica. — pedi e ela me encarou. —
Sabe como ela saiu da cidade?
— Não.
— Se se lembrar de algo me procure, por favor. — pedi e entreguei
o meu cartão. — Não tenha medo, só quero proteger a Diana.
— Tudo bem. — disse verificando o conteúdo do cartão e levantou
o rosto para me olhar de novo. — Se eu lembrar de algo, eu ligo.
— Obrigado.
Saí de lá frustrado. Não podia pressionar a moça. Liguei novamente
para o Gabriel. Sem sucesso!
Ele foi atender ao celular no segundo dia à fuga das duas. Estava
abatido. Demonstrou na voz o quão estava estressado. Pedi que me
encontrasse na casa da Diana e duas horas depois ele chegou. Minhas
suspeitas estavam certas. Tinha olheiras profundas, olhos vermelhos e
extremamente tristes.
— Se você sabe da Diana, por favor, me diga. — Augusto pediu,
ignorando o estado do garoto.
— Acalme-se, Augusto. — pedi e peguei água para ele, que aceitou
e permaneceu olhando para o chão.
— O que houve com a Diana? — perguntou, finalmente nos
encarando.
— Ela fugiu com a Bárbara. Não temos ideia de para onde foi. Ela
falou alguma coisa com você?
— Não. — Pensou por longos segundos. — Ela estava muito
abalada. — Foi às lágrimas e as secou com os dedos rapidamente.
Sentei ao lado dele, toquei em seu ombro e olhei para Augusto, que
tinha o cenho franzido e o semblante carregado de preocupação.
Eu não era adepto a contato físico, mas notei que ele precisava de
apoio.
— O que aconteceu, Gabriel?
Ele apenas soluçou num choro convulsivo e copioso. Permaneci
com a mão em seu ombro.
— A Diana está bem, Gabriel? — Augusto gritou. — Pelo amor de
Deus, fala alguma coisa?
— Não sei da Diana. Aquele desgraçado do Afrânio matou o meu
pai. — despejou também num grito desesperado. — E eu vou matar ele.
— Gabriel, respira! — pedi ao vê-lo vermelho de ódio. — Conta o
que aconteceu, por favor.
— Quando me soltaram depois da ameaça da Diana, ele me mandou
espionar vocês e descobrir o que pretendiam fazer com ele. Pediu que eu
ficasse de olho na Diana e em tudo o que ela passava para vocês. — Passou
as mãos nos cabelos, respirando fundo, limpou o muco do nariz com a mão
e a levou à calça jeans suja que usava. — Eu me recusei a fazer o que ele
queria e ele disse que se eu não fizesse mataria o meu pai. Me enviou uma
foto dele amarrado no mesmo lugar onde me manteve. — disse e chorou de
novo.
Os olhos de Augusto estavam repletos de medo.
— Aquele maldito matou o meu pai porque eu não passei
informações de vocês pra ele. Pode se preparar para me prender porque vou
matar aquele desgraçado... — O ódio o cegava naquele momento.
— Gabriel, respira! — pedi ao vê-lo ofegar. — Você não é um
assassino. Vamos colocá-lo na cadeia, ok?
— Eu duvido muito disso. Desculpa, mas não acredito.
Mais um incrédulo!
— Por favor, confie que ele vai ser preso e vai pagar pelo que fez ao
seu pai.
— Só vou confiar que ele pagará quando eu enfiar uma bala na cara
dele. Desgraçado.
— Se fizer isso ele será a vítima. Precisamos provar seus crimes,
colocá-lo na cadeia para que pague por todos. Se morrer depois, morreu
como o bandido que ele é.
Vi seus olhos vermelhos me encarando com um misto de
sentimentos.
— O que ele fez com a Diana?
— Não sabe dela... — falei para Augusto e respirei fundo.
— Gabriel, estamos achando que ela fugiu disso tudo com a
Bárbara. Deixou os bichos com a doutora Jéssica. Ela não soube dizer para
onde a Diana foi.
— Ela perguntou pela Jéssica quando chegamos ao hospital. —
disse, olhando para o vazio como se se lembrasse do momento. — A
Bárbara estava desconfiada de mim, deve ter falado com ela. A Diana não
iria embora sem falar comigo.
— Foi muito rápido, Gabriel. Não se sinta mal com isso. Ninguém
sabe onde estão. Estou monitorando a doutora Jéssica. Se ela ou alguém
aparecer para levar os bichos as encontraremos. As câmeras do
estacionamento do hospital mostram apenas a chegada e saída dela. Saiu a
pé. Vasculhei os aplicativos de transporte e sem sinal nenhum.
— Ela deve estar usando os documentos que vocês deixaram.
— Verifiquei todos.
— Vocês precisam mesmo dela aqui, né? Confesso que mesmo não
sabendo onde está, fico feliz que esteja longe daquele desgraçado do pai
dela.
— Gabriel, se fugir resolvesse, não estaríamos tão apreensivos. O
meu medo é que ela seja pega por ele, que deve já ter sentido a falta dela.
Tinham acordos. Ele tem interesses políticos que a envolvem. O meu irmão
não vale nada. Ele sabe que ela é nossa proteção, minha e dele.
Gabriel ficou calado. Levantou-se, passou as mãos no rosto.
— Vou tomar um banho e trocar de roupa. — avisou e foi para o
quarto.
Olhei para Augusto, ele meneou a cabeça.
— O que vamos fazer agora, Toledo?
— A Ângela vai receber o resultado hoje. Ela está furiosa. Então
vamos nos preparar para qualquer tipo de ataque dele. Vou deixar alguém
aqui, tentar levar o Gabriel conosco ou será presa fácil pro Afrânio, e vamos
voltar para o Rio. — decidi e peguei o celular para falar com a Lara.
Combinei tudo com ela, que deixou uma dupla de policiais no
apartamento da Diana e no dia seguinte saímos de Vila dos Lírios.
Eu estava no banco do carona do Renault Duster do Augusto,
quando o meu celular tocou.
— Toledo, liga no programa da Neila agora! — Era a voz
exasperada da Lara.
Acessei pelo celular o canal que transmitia o programa da Neila e
ele estava exibindo imagens com algumas tarjas de censura e a narrativa
furiosa da jornalista. Era Afrânio com mais alguns famosos políticos.
Dentre deputados e senadores.
— Encosta, Augusto. Você precisa ver isso.
Gabriel não se interessou em ver o que acontecia. Permaneceu
olhando para fora pela janela. Não esboçou reação nem quando paramos.
— Que porcaria é essa? — Augusto indagou semicerrando os olhos.
Olhei para Gabriel e vi lágrimas em seus olhos.
— Gabriel? — chamei duas vezes.
— Oi... desculpa, eu me distraí.
— Você sabe de algo sobre isso? — perguntei, mostrando as
imagens na tela do celular.
Ele desviou o olhar e engoliu saliva.
— Não...
— Gabriel!
Ele suspirou e passou a mão no rosto. Fitou a estrada e finalmente
falou:
— Isso estava no celular na Diana, eu enviei pro meu sem ela saber.
Eu usei isso para tentar negociar com o Afrânio. Ele matou o meu pai e eu
enviei o vídeo pra essa jornalista. — disse e deixou as lágrimas molharem
seu rosto.
Ouvi apenas soluços quase contidos. Voltamos à estrada novamente.
Em menos de uma hora chegaríamos à capital e lá pegaríamos o voo para o
Rio de Janeiro.
Faltavam trinta quilômetros para entrarmos em São Paulo quando
quatro carros grandes nos cercaram. Um atrás, um na frente e os outros nas
laterais.
Imediatamente agachei e peguei duas armas embaixo do meu banco,
entreguei uma para Gabriel e engatilhei a outra. O jovem médico usava o
celular para filmar a ação.
— Calma, Augusto! Fomos imprudentes vindo sozinhos, mas não
vão poder nos manter aqui para sempre.
Quando o carro da lateral esquerda deu espaço para um caminhão
ultrapassar, Augusto saiu daquela gaiola em alta velocidade. Eu avisei à
polícia.
Vi Gabriel abrir uma fresta da janela e atirar no pneu do carro ao seu
lado com uma só mão, enquanto a outra segurava o celular com a câmera
ligada. Repeti seu gesto e atirei. Notei o rosto de Augusto completamente
vermelho. Nervoso. Suado.
— Mantenha-se abaixado! — gritei para Gabriel, que conseguiu
distanciar o perseguidor da esquerda.
Fiz o mesmo com o da direita. Augusto arfava, apertando o volante
com as duas mãos.
Troquei o pente da arma. Fui jogado para frente e senti o ombro
doer ao ser travado pelo cinto de segurança quando Augusto freou
bruscamente. Olhei para frente e vi um utilitário esportivo preto parado,
cinco homens usando coletes à prova de balas com armamento pesado nos
esperando.
Alvejaram o para-brisa inteiro. Mesmo sabendo que era blindado e
precisaria de bem mais para ultrapassá-lo, agachei no primeiro tiro.
Augusto fez o mesmo. Quando cessaram fogo, ele encostou a cabeça no
volante, ouvimos:
— Doutor Augusto, saia do carro com as mãos na cabeça ou todos
morrem! — disse um homem por um megafone.
Antes que pudéssemos pensar em algo chegaram perto do carro.
Augusto me olhou em desespero.
— Eles vão matar a gente! — Gabriel disse ofegante, segurando seu
celular com força ainda gravando aquela ação.
Augusto engoliu saliva. Sua respiração era falha e ofegante. Ele
tremia.
Mais um tiro de rifle 7,62. Atravessou com dificuldade e passou
entre nós dois. A blindagem nível III do para-brisa aguentou bem para
aquela chuva de tiros.
Augusto abriu a porta devagar e colocou as mãos na cabeça. Joguei
um pente de balas para Gabriel e me preparei para negociar.
— Permaneça no carro, detetive! — ordenou. — Só queremos o
doutor Augusto.
Estávamos vulneráveis, cercados por bandidos armados de fuzil.
Qualquer movimento e seríamos alvejados ali mesmo. Fechei os olhos e
respirei fundo. O gosto amargo da impotência tomou conta de mim.
Levaram Augusto.
48 – Pressão

Diana

Na faculdade de medicina somos preparados para enfrentar todo tipo


de tensão e pressão. Manter o nível de ansiedade controlado diante de uma
emergência pode ser o fator determinante para salvar a vida de um paciente.
Em geral, eu nunca tive grandes problemas para me manter calma nessas
situações, nem mesmo quando ainda estava no internato, mas parece que a
coisa não é tão simples assim quando falamos da vida pessoal.
— Diana... Diana... — Bárbara tentava me trazer de volta do transe
que entrei ao rever aquela cena horrível na tevê.
O vídeo foi editado e as regiões das genitálias estavam embaçadas,
tornando impossível ver claramente, mas isso não tirava a bizarrice da coisa
toda. A identidade da Marina também havia sido preservada. Nem sei por
que, mas senti certo alívio ao ver o rosto dela embaçado também.
Milhões de pensamentos passavam pela minha cabeça. As imagens
não eram da câmera que filmava tudo diretamente, mas sim da tela do
laptop do Cristiano, ou seja, era a gravação que eu havia feito. Mas como
ela foi parar nas mãos da Neila? Não parecia coisa do meu tio, ele era
cauteloso até demais quando se tratava do Afrânio, a Bárbara também não
faria nada sem me consultar, sem contar que ela sequer sabia do vídeo. O
mais óbvio era pensar que o Gabriel era o responsável por ter deixado o
vídeo vazar, mas porque ele faria isso sem me dizer nada?
— Diana? — Bárbara gritou, agitando meus ombros, e finalmente
voltei a mim.
— A gente precisa sair daqui, rápido... precisamos sair do país,
sumir do mapa... vamos, temos que ir... — falei, nervosamente.
Eu estava em pânico, coração a mil. O Afrânio, àquela altura, já
devia estar com todos os capangas dele me procurando, pois era óbvio que
ele sabia que eu era a responsável por aquela filmagem.
— Amor, calma! Você tá tremendo, tá vermelha. Precisa se acalmar.
— Não dá, Bárbara. Você viu aquilo? O Afrânio deve estar
querendo o meu fígado.
— Vi... e é uma coisa boa, não é? Não sei quem foi o anjo que
publicou esse vídeo, mas agora o velho se ferrou...
— Fui eu, Bárbara! Eu filmei...
— Quê? Que história é essa, Diana? — perguntou, incrédula.
— É isso que você ouviu. Foi no Chile, vi o Cristiano agindo
estranho e entrei no quarto dele. Tinha um computador transmitindo, e
filmei.
— Puta que pariu!
— É, isso mesmo...
— E quando enviou pra Neila Medeiros?
— Eu não enviei.
— Ué, e quem foi?
— Não sei, acho que foi o Gabriel. Só ele sabia.
Ela me olhou impassível. Massageou a nuca e alongou o pescoço,
tinha o olhar cansado. Apertou as pálpebras e depois as separou, me
encarando com um olhar completamente diferente. Era outra... não sei qual
delas, mas não era a minha namorada doce e atenciosa.
— Por que não me falou sobre isso? — perguntou séria demais,
senti até um frio na barriga.
— Você estava tão estressada, só não queria te deixar pior.
— Achei que confiasse em mim, mas parece que não, né? Só confia
no Gabriel. Ok!
— Amor, você sabe que não é isso, não faz assim...
— Enfim, não vem ao caso agora. Precisamos agir.
— Bárbara, por favor, olha pra mim? — pedi, mas ela me ignorou,
virando de costas e caminhando em direção ao quarto.
— Vem, a gente precisa cair fora... agora.
Apenas a segui. Entramos no quarto, e ela juntou nossas coisas tão
rapidamente que não tive tempo de ajudar. Depois jogou uma quantidade
alta de dinheiro em cima da mesinha de cabeceira, pôs a mochila nas costas
e estendeu a minha para que eu fizesse o mesmo.
— Vamos nessa!
— Pra onde vamos? — falei já caminhando atrás dela pelo corredor.
— Ainda não sei, no caminho eu decido.
Ela olhou na direção da recepção e viu o Excel.
— Vamos pelos fundos. — anunciou e mudou a rota.
Eu apenas a segui. Não sabia o motivo, mas ela não estava
parecendo disposta a se despedir.
— E a tia Marly e o Excel? Não vamos falar com eles?
— Não.
— Por quê?
— Porque não. Quer deixar rastro?
— Não. — respondi ao entrarmos no carro.
Ela deu partida e saímos. Quando pegamos a autoestrada, ela passou
a dirigir em alta velocidade. Eu não tinha medo, ela dirigia bem, passava
segurança. Mas aquela atitude estúpida dela, beirando a grosseria, estava
me incomodando muito.
— Amor, não faz isso comigo. Sabe que confio em você. Eu só não
quis...
— Diana, não estamos podendo nos dar ao luxo de esconder nada
uma da outra para garantir o bem-estar. Não há bem-estar e nem haverá até
que a gente consiga dar um fim naquele velho filho da puta e só vamos
conseguir se estivermos juntas completamente.
— É, eu sei... você tem razão, me desculpa.
— Deixa quieto, não tô a fim de falar sobre isso.
— Mas precisamos...
— Não, nós não precisamos. — interrompeu-me bruscamente e
suspirou em seguida, enquanto coçava novamente a nuca. — Olha só, cara,
eu tô bem puta contigo agora, mas vai passar. Só me deixa quieta, por
enquanto, valeu? Eu preciso pensar, preciso descobrir pra onde vamos. —
concluiu com o sotaque carioca bem carregado.
— Valeu! — respondi tentando imitar o sotaque, mas fui ignorada.
Na hora que se seguiu, um absoluto silêncio reinou no interior do
carro. Ela não havia me falado para onde íamos e pelo que eu entendi nem
ela mesma sabia, mas estávamos indo na direção da capital carioca.
Eu estava desesperada de vontade de falar com o Gabriel e entender
o motivo de ele ter feito o que fez, mas não tinha celular. Quando chegasse
à civilização providenciaria um. Liguei o rádio no canal de notícias, queria
ver se estavam falando sobre o vídeo, mas acabei ouvindo algo que me
deixou ainda mais nervosa.
— É isso mesmo, Tadeu. Está confirmado. O cardiologista Augusto
Sobreira, irmão do Senador Afrânio Sobreira, acabou de ser sequestrado.
Não se sabe ainda a autoria do crime, mas a polícia de Vila dos Lírios está
investigando. O que também não se sabe é se o sequestro tem alguma
relação com o vídeo escandaloso divulgado, com exclusividade, no
programa da Neila Medeiros.
— Para o carro agora! — ordenei quase sem voz, eu estava
sufocando.
Estávamos passando perto de um posto de gasolina, e Bárbara
reduziu para entrarmos nele. Estávamos a poucos quilômetros do Rio de
Janeiro. Saí do carro quase explodindo. Puxei o ar para os pulmões e fui às
lágrimas. Só queria um pouco de paz. Barbara permaneceu no carro,
visivelmente chateada comigo. Chorei por uns minutos e voltei.
— Tá melhor?
— Não, você continua estranha comigo, não sei quem está aqui.
Arrancou bruscamente e entramos no Rio. Em poucos minutos ela
estacionou na frente de uma casa. Mencionei falar algo, mas ela me
interrompeu.
— Já disse que tô puta. E para de falar como se eu fosse outra. —
disse finalmente saindo do carro. — Eu surtei pra caralho quando você se
mandou com aquele desgraçado pro Chile e fiquei pior quando chegou e
preferiu não me contar o que houve lá. Agora surge essa merda e você só
confia na porra do Gabriel. Diana, por favor, né? — falou ao tocar a
campainha da casa e logo ouvimos o portão se abrir.
Entramos e ela fechou a porta. Mencionou se dirigir ao interior da
casa, mas a puxei.
— Eu já me arrependi disso, você pode me desculpar, por favor? Só
quis te poupar daquela nojeira. Me perdoa, nunca mais vou esconder nada
de você. Preciso de você comigo. — Meu tom era de súplica.
Ela fechou os olhos e respirou fundo.
— Tudo bem, tô com raiva ainda, mas daqui a pouco passa. Eu
estou com você até quando você me larga! — disse e mencionou sair, mas a
impedi.
Segurei seu rosto com as duas mãos e a beijei. Ouvimos a porta da
casa se abrir e olhamos na direção. Na porta, um rapaz aparentando trinta e
poucos anos, usava óculos, cabelo bem cortado. Mostrou que não estava
acostumado com a luz solar, pois fez uma careta com a claridade e colocou
a mão sobre os olhos.
— Fred! — Ela disse e fomos até ele.
Depois dos cumprimentos e apresentações ele pediu que
sentássemos. Uma mulher apareceu na sala com uma criança no colo.
— Oi, Gabriela, tudo bem?
— Oi, Bárbara... tudo bem, sim... oi... — disse se dirigindo a mim.
— Essa é a Diana, minha esposa.
— Tudo bem, Diana? Essa doidinha andou te metendo em alguma
enrascada? — perguntou, sorrindo, e trocamos beijos no rosto.
— Não, eu é que ando colocando ela em várias situações difíceis. —
falei e a olhei com ternura.
— Ela só aparece quando precisa de algo...
— Porra, Gabi... — falou, rindo e beijando a mão do bebê. — O que
ela vai pensar? — brincou e olhou para Fred, que acenou com a cabeça.
Observei os dois entrando em um quarto. Cinco minutos depois de
conversa com Gabriela, perguntei o nome do bebê, perguntei sua idade, e
ela, muito simpática, respondeu tudo, orgulhosa do filho de um ano e dois
meses.
— Você e Bárbara estão juntas há quanto tempo?
— Sete meses. Vocês a conhecem há muito tempo?
— Uns oito anos. Eu sou assistente social, trabalho em ONGs, a
conheci em uma lá do bairro dela. Era bem problemática. Fez tratamentos
psicológicos. É uma menina ótima apesar de tudo o que passou.
— Falando mal de mim, Gabi? — Bárbara surgiu atrás dela com um
celular na mão.
— Claro que não!
Bárbara beijou a cabeça do bebê e de Gabriela.
— Precisamos ir. Obrigada por tudo.
Saímos depois de todas as despedidas. Ela me entregou o celular.
— Esse celular não pode ser rastreado nem pela polícia, nem tem
como retornarem chamadas nele. Se quiser ligar pro velho escroto ou pro
seu amigo, liga tranquila. — Ignorei a ironia dela ao se referir a Gabriel e
olhei para o aparelho.
Comecei a ofegar imediatamente, parecia que eu estava diante dele
com a possibilidade de falar e ouvir suas ameaças.
Respirei fundo e finalmente digitei o número dele. Esperei enquanto
chamava.
— Alô? — Ouvi uma voz feminina e instintivamente desliguei.
— O que houve?
— Acho que digitei o número errado. — Ela pegou o aparelho e
verificou o número.
— Não digitou, o número que aparece no celular dele é 00, ele tem
o rabo preso, não vai atender assim.
Liguei de novo e a mesma voz atendeu:
— É a Diana. Entrega o celular pro Afrânio. — falei com firmeza e
escutei um barulho.
Logo depois ouvi a voz asquerosa do meu pai.
— Filhinha, nunca pensei que fosse tão escorregadia! Que
decepção! — falou com aquele tom irônico que costumava usar e que sabia
que me irritava profundamente.
— Cadê o meu tio, Afrânio? — perguntei por entre os dentes quase
entrando em colapso.
— Eu tenho uma pergunta melhor. Cadê você?
— Escuta aqui, seu miserável filho da puta, viu o que eu fiz, não
viu? Eu não tenho mais medo de você. Você se acha inatingível, inabalável,
mas eu entrei na sua fortaleza com a maior facilidade do mundo e produzi
provas que estão te destruindo. Acha que aquele vídeo era tudo o que eu
tinha? Acha que eu não tenho coragem de jogar o resto da merda no
ventilador? Então ouve bem, porque só vou falar uma vez: solta o meu tio,
ou a Neila Medeiros vai receber coisas muito mais interessantes pra
divulgar no programa dela.
Eu estava blefando, óbvio. Primeiro, eu morria de medo dele, sim.
Segundo, eu não tinha nada para enviar para a Neila, mas ele não sabia.
Terminei o meu discurso achando que havia intimidado o velho, mas
minhas certezas foram por água abaixo quando ele riu com escárnio, como
se eu tivesse contado uma grande piada.
— Ai, bebê, você acha mesmo que sou amador, não acha? Diana,
eu conheço você melhor do que a mim mesmo. Sou capaz de prever cada
suspiro que você dá. Eu venho te analisando desde que você nasceu.
Primeiro porque eu queria que você se tornasse minha sucessora, mas
depois vi que isso não aconteceria e precisei cuidar para que não saísse do
controle. Você acha mesmo que deixei de saber de cada passo seu um dia
sequer desde que nasceu? Me surpreende essa ingenuidade, ela contrasta
com o tamanho da sua inteligência. Enfim... não me faça perder a
paciência. Quem dar as cartas aqui sou eu.
Eu bem que tentei pensar em uma resposta perspicaz, mas me faltou
traquejo. O máximo que consegui foi ser redundante, insistir em ameaças
que não assustavam nem um filhote de gato. Até gaguejei de tão nervosa. E
quando mais ele gargalhava, menos convincente eu ficava. Aquele monstro
sabia muito bem como jogar comigo.
— Chega de palhaçada. Escute bem porque só vou te dizer uma vez.
Dentro de exatamente uma hora e meia um sedã preto vai te buscar no
portão de entrada do Forte de Copacabana. Não precisa procurar, o
motorista vai piscar duas vezes os faróis quando vir você. Sei que só anda
com sua cadela de guarda, por isso ouça o meu aviso: ponha uma coleira
nela, ou mato seu amiguinho intrometido e o tio também, faço um pacote
para você.
Antes que eu tivesse tempo de raciocinar sobre a última frase dele,
ouvi uma pancada seguida de um grito. Era o meu tio. O filho da puta
estava mesmo com ele, eu reconheci o timbre da voz.
— O que foi isso, Afrânio? — fingi não entender.
Ele não falou, pôs o tio Augusto na linha.
— Diana, minha filha, fuja... vai embora pro mais longe que pud...
— Outra pancada, outro grito.
— Quebrem ele, mas não matem... ainda.
Ouvi o miserável falar, provavelmente para os capangas dele, e logo
uma pancadaria começou. Eu ouvia os gritos de dor do tio Augusto ao
fundo e entrei em total desespero.
— Para, Afrânio, para, pelo amor de Deus. — Eu gritava, e ele
apenas gargalhava. — Afrânio, eu imploro, não mata ele, por favor!
Bárbara começou a ficar nervosa também, tentou tirar o telefone da
minha mão e não deixei. Ela falava comigo, mas eu não conseguia ouvi-la,
eu estava cega, desnorteada, só pensava em salvar o meu tio.
— Eu vou... eu tô indo pro Forte. Faço o que você mandar, só não
mata ele, pelo amor de Deus.
— Parem! — Ele ordenou, e a pancadaria parou. — Se você me
enrolar de novo, filhinha, eu te acho no inferno e mato seu titio. Mando
buscar seu amiguinho e sua putinha e acabo com eles também, na sua
frente, bem devagar, ouviu? Até mais.
Desligou.
49 – Emboscada

Bárbara

Diana estava completamente fora de si quando largou o celular.


Verifiquei se ainda havia alguém na linha, mas o escroto já havia desligado.
Ela soluçava nervosa, eu a envolvi com os braços e a apertei com força, não
tinha mais espaço para a minha chateação, ela precisava de mim. Depois de
uns segundos, senti os braços dela me envolvendo também.
— Calma! Esse desgraçado vai pagar por tudo isso. — sussurrei e
abri a porta do carro para que ela entrasse.
— Vamos... para o Forte. Ele vai nos buscar lá. — disse aos soluços
e deixou as lágrimas fluírem novamente.
Escrevi uma mensagem para o Fred com a gravação da chamada
dela para o capeta e avisei que iríamos atrás dele. Guardei o celular dentro
da calça e fechei os olhos. Precisava pensar, pois estávamos indo direto para
dentro da área do velho demoníaco e já previa o que encontraríamos lá.
Armas e vários bandidos.
— Vamos, estamos perdendo tempo.
— Estamos a vinte minutos de lá. — disse tentando voltar a pensar.
Respirei profundamente e entrei no carro. Dei partida e fui saindo
devagar, segurando a mão dela, que estava gelada. Eu sabia que não se
acalmaria até ver o tio em segurança.
— Tenta se acalmar, por favor. O Afrânio quer você bem frágil. É
muito covarde. Tenta se acalmar, pelo seu tio.
Em exatos vintes minutos chegamos ao shopping Cassino Atlântico.
Ela tremia quando olhou a hora.
— Vem cá. — chamei, e ela me olhou. — Vai ficar tudo bem. Mas
se não ficar, saiba que amo você, tá?
— O que pretende fazer?
— Seu pai precisa de você, então não vai te machucar. Mas a mim,
eu não sei. Então...
— Para. Você não vai arriscar a sua vida, Bárbara! — disse quase
gritando, fazendo com que eu olhasse para ela.
— Eu vou matar o Afrânio, Diana. Pode até não ser hoje, mas
aquele desgraçado me paga. Não quero mais ver você apavorada como vi.
— Puxei o ar com força e saí do carro.
Verifiquei tudo que havia ali e voltei para dentro. Estacionei em um
prédio de garagens.
Diana estava apreensiva quando segurou a minha mão. Caminhamos
até um quiosque e comprei cocos, tomamos a água e falei de coisas
aleatórias para acalmá-la de alguma forma enquanto esperávamos. Ela disse
que seria um sedan preto e fiquei atenta.
Faltando dez minutos para a hora combinada, nos aproximamos do
local. Ela apertou a minha mão com força, eu correspondi apertando duas
vezes e em seguida a fiz avistar o carro preto parado nas proximidades do
Forte. Quando chegamos ao portão de entrada vimos os faróis piscando. Era
o sinal.
— Estou com você o tempo todo, fica tranquila, não se deixa abater
tanto pelo Afrânio, ele está encurralado. — sussurrei por entre os dentes
enquanto nos dirigíamos ao carro.
Um homem alto saiu do lado do carona e mostrou a arma no cós da
calça, acenando para que entrássemos no banco de trás, onde outro
brutamontes nos esperava com uma arma apontada.
— Me entreguem as armas de vocês. — ordenou enquanto o outro
batia a porta e voltava para o banco da frente.
— Não estamos armadas! — disse com a voz embargada, mas isso
não o impediu de passar aquela mão asquerosa na cintura da Diana,
enquanto o da frente apontava a arma para nós.
Precisei me conter para não avançar nele, havia muita coisa em jogo
ali. Olhei bem para a cara do desgraçado, e ele repetiu o gesto comigo e
apontou a arma para a minha cabeça.
O motorista deu partida e saiu. Enquanto Diana estava de olhos
fechados, com a cabeça apoiada no meu ombro, eu estava de olhos bem
abertos observando tudo enquanto acariciava os cabelos dela.
Depois de uns quarenta minutos entre saindo da cidade e seguindo
por uma estrada de terra, chegamos a um galpão. Não consegui ler a
fachada, pois estava bem velha e apagada.
Saímos juntas do carro. Diana não me largou de jeito nenhum. Um
dos caras a segurou pelo braço com força e senti meu rosto arder de ódio, o
outro segurou o meu bíceps e conduziu para dentro do galpão.
Havia caixas grandes de madeira, pareciam caixas de transporte.
Algumas máquinas empoeiradas, não consegui distinguir para que serviam.
À esquerda, mais caixas e armários de ferro. A minha direita havia uma
escada; olhei para o seu topo e avistei o velho demoníaco de braços
cruzados, destilando sua prepotência e seu ar de quase inatingível. Apertei a
mandíbula no maxilar. Ele começou a descer e ouvi o movimento de uma
espingarda 12mm ao nosso lado.
Afrânio deu uma ordem com um aceno de cabeça e tiraram Diana de
perto de mim bruscamente. Tentei ir com ela, mas fui impedida com uma
coronhada no meu abdome. Senti uma dor terrível e caí ajoelhada no chão.
Ouvi o grito da Diana. Mesmo curvada e sentindo gosto de sangue na boca
levantei o rosto e a vi sendo arrastada para o andar de cima pelos comparsas
do capeta pai dela.
— O que você vai fazer com ela, seu desgraçado? — Ouvi os gritos
de Diana, que se debatia.
Fui levantada pelos dois bandidos e vi quando a levaram, aos gritos,
para a primeira sala do andar de cima.
— Onde está o meu tio? — gritou e não ouvi mais nada.
Fechei os olhos, ainda segurada pelos bíceps. Girei a cabeça
tentando dar espaço àquele cansaço da minha nuca e aliviar um pouco
aquela tensão. Quando abri os olhos eu estava sendo tirada do galpão. Usei
o peso do meu corpo, me aproveitei do calor do Rio, que me fazia
transpirar, e os peguei de surpresa. Consegui me livrar das mãos dos dois.
Acertei uma cotovelada na virilha do que estava usando a
espingarda e a tirei de sua mão imediatamente. Apoiei-a no meu ombro e
disparei contra o comparsa, que assustado, atirou a esmo. Usando a coronha
da espingarda acertei o queixo do bandido que ainda segurava o pau. Olhei-
o de cima e o acertei novamente sem deixar que reagisse.
— Isso é por ter tocado na minha mulher, seu desgraçado!
Deixei que tentasse se levantar e desferi mais cinco coronhadas
naquela cara feia dele, até que não se mexeu mais. Olhei em volta e peguei
a pistola do comparsa dele, verifiquei se tinha munição e me preparei para
entrar no galpão novamente.


Diana

Eu estava prestes a ter uma parada cardíaca quando vi Afrânio no


alto da escada. Nem sinal do meu tio. Fui arrancada das mãos da Bárbara
violentamente por aqueles brutamontes. Gritei apavorada quando bateram
nela.
— O que você vai fazer com ela, seu desgraçado? — perguntei
tentando me largar daquelas mãos horrendas. — Onde está o meu tio? —
gritei, mas fui levada para o andar de cima.
A sala era pequena e havia alguns monitores grandes com imagens
de todo o galpão, tanto da parte de dentro quanto de fora, além de uma tevê
transmitindo noticiários ao vivo. Um repórter disse:
— Segundo assessoria, doutor Afrânio Sobreira está na Itália, já foi
informado das acusações contra ele e está embarcando para o Brasil para
prestar esclarecimentos. — Eu ouvi aquilo sem entender nada.
Continuei tentando me soltar daquelas mãos nojentas. Afrânio
acenou com a cabeça e eles me largaram. Avancei com tudo em cima do
velho desgraçado, acertei vários tapas e socos na cara dele, enquanto o
xingava, até que ele conseguiu segurar minhas mãos.
— Cadê o meu tio? — gritei tentando me soltar das mãos dele.
— Para! — ralhou, furioso. — Ele não está aqui, sua idiota. Achava
mesmo que eu ia confiar em você depois da sacanagem que fez comigo?
Nunca, Diana. Eu só pensei que você fosse um pouco mais inteligente, mas
é tão burra quanto o desgraçado do Augusto. Me expor daquela forma foi
um golpe muito baixo, filha. Estou sendo paciente e generoso com você e
esses atrasos de vida que te cercam.
— Eu só gravei, juro que não enviei aquilo. Não sei quem fez isso...
— Eu sei, foi o medicozinho idiota, que está na porra da profissão
errada. Você tá cercada de imbecis, filha. Precisa mudar isso. Nem que seja
à força.
Cuspiu aquelas palavras tomado de ódio e me empurrou por cima de
um sofá velho que tinha ali.
— Amarrem ela! — ordenou e secou o suor do rosto com um lenço,
que passeou pelo pescoço dele também. — Chega de palhaçada, agora eu
vou ensinar você a me respeitar.
Estava visivelmente desnorteado. Finalmente foi abalado. Saber
daquilo me deixou mais apreensiva ainda. Já era cruel sem estar em risco,
daquela forma então estava sem nada a perder.
Tentei resistir, mas fui contida pelos comparsas dele. Ouvimos
barulho de tiro e olhei imediatamente para os monitores procurando pela
imagem da Bárbara.
Vi os olhos arregalados de Afrânio quando ela apareceu no monitor
se livrando daqueles bandidos e acabando com eles.
Fui amarrada com abraçadeiras e vi quando Bárbara estourou a cara
do homem que me revistou e se preparou para entrar.
— Vão atrás dela... — gritou, furioso. — Acabem com essa
desgraçada.
Os dois saíram correndo engatilhando suas armas. Entrei em
desespero.
— Você não vai ficar impune, Afrânio. Seu desgraçado. Me solta! O
que você fez com o Gabriel?
— Nada. Ainda. Mas a hora dele vai chegar. Ele não vai ficar na asa
daquele detetive de merda a vida inteira. Tenha certeza disso. — Ele
ofegava, visivelmente abalado.
— Seu desgraçado, covarde! — berrei, novamente. — Me solta!
Cadê o meu tio?
— Cala a boca. — gritou e acertou o meu rosto com uma bofetada.
— Você poderia ter tido tudo de mim, Diana, mas preferiu bancar a porra da
filha rebelde comigo. E eu como ótimo pai que sou, venho tentando te dar
chances de mudar esse comportamento de adolescente... — despejou,
desabotoando o cinto da calça.
No auge da minha ingenuidade achei que fosse me bater, mas
comecei a tremer dos pés à cabeça, quando me olhou com um misto de
sentimentos nos olhos.
— O que vai fazer, seu maldito? Sou sua filha! — falei aos gritos
quando vi o olhar lascivo dele sobre meu corpo. Como se ser filha dele o
impedisse de algo.
— Só você acredita nisso, Diana! Todo mundo que lê essa droga de
história suspeita que o desgraçado do Augusto é seu verdadeiro pai. Nessa
porcaria tinha que ter esse clichê, né? — murmurou, me puxando pelas
pernas.
Eu gritei o mais alto que pude e o chutei enquanto pude também,
mas nada o abalava.
— Eu falsifiquei o exame que ele fez uns anos atrás... — disse e riu
com os olhos marejados. — Ele é muito burro! Agora quero ver como ele
vai lidar com o fato de eu ter dado uma lição na filhinha dele.
Mais tiros!
— Para, Afrânio! — gritei em lágrimas e fechei os olhos quando o
vi abaixar a calça.
— A desgraçada da tua mãe não terminou o namorinho com ele
quando aceitou se casar comigo. — contou, destilando perdigotos pelo meu
rosto. — E claro que aquela vadia manteve o caso com ele. Eu trabalhava
muito e eles... — aumentou o tom de voz. — Me fizeram de otário dentro
da minha casa. Mas agora eu vou me vingar.
— Por que não se separou dela? — perguntei no mesmo tom, ainda
tentando tirá-lo de cima de mim, somente com os pés, pois as mãos estavam
amarradas para trás.
— O Augusto nunca me venceu, não seria exatamente com ela.
Abriu as minhas pernas violentamente.


Bárbara

Vi dois bandidos saindo de uma entrada na lateral e corri, mas antes


que eu pudesse chegar à entrada da frente fui abordada pelos dois caras
armados. Me joguei no chão e acertei o pescoço de um deles com um tiro,
me arrastando até a entrada enquanto atirava. Vi mais dois homens armados
descendo as escadas correndo.
Corri agachada por trás daquelas caixas e máquinas. Ofegava de
nervosismo. Ouvi os gritos da Diana e meu coração apertou. Fechei os
olhos e ouvi os passos dos homens me procurando. Me assustei quando um
tiro passou bem perto da minha cabeça e deitei no chão, rastejei novamente,
mirei e atirei na cabeça de um deles, que estava de costas, procurando atrás
das caixas da entrada e corri agachada.
A rajada de tiros que destruiu algumas caixas foi ensurdecedora.
Disparei o último tiro e fiquei desarmada, mas com um oponente apenas,
então precisava pensar direito ou já era. Ouvi outro grito da Diana e corri.
Peguei um ferro solto de uma das máquinas e acertei a mão do capanga do
velho desgraçado. Tirei a arma de sua mão, mas com a outra ele puxou o
ferro da minha. Tomei impulso numa máquina e acertei o rosto dele com o
pé.
O cara sequer se mexeu. Pulei no chão e tentei correr para a escada,
mas fui arrastada por ele, que me pegou por trás pela roupa e me afastou
dos degraus. Consegui ouvi a voz do Afrânio. Me levantei com um pouco
de dificuldade, pois fui jogada contra as caixas e acabei com uma
pontiaguda estaca de madeira na mão, tinha aproximadamente vinte
centímetros. O cara se aproximou de mim furioso. Me esquivei de um soco
dele e tentei correr, mas ele acertou meu abdome com o pé, me afastando da
escada novamente.
— Filho da puta! — ralhei, por entre os dentes e o vi decidido a me
bater até matar, mas eu não tinha tempo.
Tive apenas milésimos de segundo para pensar e quando ele chegou
perto pulei e enfiei a estaca da caixa no pescoço dele, que ainda resistiu
tentando me bater, mas caiu quando retirei do pescoço e enfiei no ouvido,
dando o soco de misericórdia, e corri para a escada.
No andar de cima vi um extintor velho e o peguei para usar como
arma. Meu coração tentou várias vezes sair pela boca, toda vez que eu ouvia
a voz da Diana em desespero, para ser mais específica.
Lancei o extintor com força contra o desgraçado, que já estava em
cima dela, e o vi cair do chão já sem calças. Diana tremia e gritava quando
toquei nela.
— Calma! — pedi e tentei liberar suas mãos, mas foi em vão,
precisava de algo para cortar.
Vi Afrânio tentando se levantar e chutei sua cara. Peguei o extintor e
o acertei novamente.
Virei o objeto de ponta e acertei com força a virilha dele, fazendo-o
soltar um urro abafado e se contorcer de dor.
— Para, Bárbara, ele não disse onde o meu tio está. — Diana gritou
com a voz falhada de tanto que ainda tremia.
Com uma última porrada o desacordei. Abracei Diana.
— Você tá bem? — perguntei tocando nela, verificando se estava
mesmo bem.
Vi sangue perto de sua boca e senti vontade de matar o Afrânio ali
mesmo, mas temi pelo tio dela e a apertei em meus braços. Ouvi nossos
corações batendo acelerado. Olhei por lá e consegui liberar suas mãos com
um estilete que achei numa gaveta da mesa.
— Eu senti tanto medo! — disse soluçando.
— Passou. — falei, a beijei rapidamente e enfiei a mão na calça para
pegar o celular.
Liguei para Toledo e avisei que o velho estava ferido e que Augusto
não estava ali. Enviei a localização, pelo mapa era no meio do nada.
Peguei abraçadeiras e amarrei o desgraçado do Afrânio. No monitor
de tevê ouvimos um noticiário falando sobre o velho. Primeiro a orgia,
depois o sequestro e agora uma denúncia sobre erro médico o expunha de
forma ruim.
— A doutora Ângela Sanchez divulgou o resultado das
investigações sobre a morte de seu pai o cardiologista Clovis Sanchez,
vítima de procedimento inadequado pelo doutor Afrânio Sobreira. Segundo
informações do Conselho Regional de Medicina, o senador está banido da
medicina, não poderá exercer a profissão e responderá por homicídio. — O
repórter anunciava.
Se depois de todas aquelas acusações ele ainda se safasse, eu
perderia completamente a fé na humanidade.
Diana se preparou para arrastar o pai do chão. Eu agachei para
ajudar.
— Eu vi um vulto, Bárbara! — Ela disse apavorada apontando para
um monitor. — Temos que sair daqui... mas temos que levar ele.
— Tem carro lá fora... a gente arrasta ele. Vou verificar quem está
no galpão. O Toledo pode demorar.
Ela estava de olho nos monitores, mas não conseguiu ver nada.
— Fica aqui!
— Não vou deixar você ir sozinha.
— Shh! — pedi e a fiz agachar novamente.
O vulto passou. Revistei Afrânio e peguei uma arma que ele tinha
no tornozelo. Engatilhei e saí com ela apontada para baixo. Ouvi o
"cuidado" sussurrado da Diana. Não poderia ir muito longe, pois não podia
deixá-la sozinha naquela sala, mas olhei até onde pude.
Era muito arriscado, mas teríamos que sair dali. Se a pessoa
aparecesse usaríamos o Afrânio como refém.
Joguei um pedaço de madeira no lado oposto e esperei. Nem assim
houve manifestação de presentes ali, voltei a sala e ajudei a arrastar o velho
pela escada.
Pra baixo todo santo ajuda! — ouvi isso em algum lugar. — Mas
para não deixar aquele miserável escorregar e cair rolando pelas escadas
não tenho ajuda de santo nenhum, só dela, que está tremendo.
Lá embaixo procurei o celular e não estava mais no meu bolso.
Corri para procurar, encontrei-o no chão, quando estava descendo ouvi uma
voz.
— Diana, que bom te ver de novo! — disse com uma arma apontada
para ela.
Não pensei em nada, apenas corri e empurrei a Diana, atirei e ouvi
outro disparo. Senti o impacto queimar o meu abdome.
Tudo escureceu.
50 – Paraíso

Diana

Eu gritei desesperada de onde estava quando vi Bárbara caindo e


Marina ferida, se arrastando para pegar sua arma, que havia caído ali perto.
Corri até a arma e a joguei longe. Dei um chute tão furioso no rosto dela
que senti o meu pé doer. Por um instante pensei em como a Bárbara fazia
aquilo com tanta facilidade. Falando em Bárbara, atrasei a desgraçada da
Marina e corri para vê-la desmaiada. Ela sangrava, mas tinha pulso e
respirava. O meu desespero pôde ser ouvido, pois gritei, mas precisava
manter a calma, pois cada segundo era essencial para garantir que ela
ficasse viva.
O ferimento um pouco abaixo do peito direito me deu uma
dimensão do dano que o tiro havia causado.
— Meu amor, fala comigo — eu tremia, estava à beira de um surto.
Tinha medo de perder completamente as forças.
Tirei minha blusa e pressionei sobre o ferimento enquanto pedia que
acordasse. Olhei em volta e mexi nos bolsos dela procurando o celular. Ela
se mexeu e abriu os olhos devagar. Respirava com dificuldade.
— Calma, vai ficar tudo bem! Só fica comigo, por favor.
Bárbara engoliu saliva e tentou dizer algo.
— Não fala, meu amor... não fala. — pedi enquanto tentava segurar
o celular, pois além de trêmulas, minhas mãos estavam cheias de sangue. —
Vai ficar tudo bem, amor. Respira. Não dorme...
— Ti... — Tossiu. — Tira essa porra de mim.
— Tô pedindo socorro, vou ligar de novo...
— Não... não vai dar tempo... por favor... — pediu novamente
exibindo seus lábios completamente sem cor. — Lá em cima tem algo que
possa usar...
— Eu não posso fazer isso, Bárbara. Posso matar você....
Ela engoliu saliva novamente e apertou o meu braço, senti sua mão
gelada também
— Eu vou morrer mais rápido se ficar com esse troço...
As lágrimas me impediram de ficar ali vendo seu peito subir e
descer compassadamente, enquanto sangrava, pois corri à sala em que o
Afrânio me manteve e revirei tudo. Achei isqueiro dentro das gavetas e o
estilete usado para cortar as abraçadeiras que me prendiam.
Isso vai ter que servir! Deus, se você existe, me ajuda. Nunca te
pedi nada, acho que tenho saldo. — pedi de olhos fechados enquanto saía
correndo.
Cheguei lá embaixo e vi Afrânio se mexer, mas ignorei, me ajoelhei
perto da Bárbara, que ainda ofegava mantendo o olhar de súplica e rasguei
sua blusa.
Limpei o sangue que ainda saía e usei o isqueiro para esterilizar o
estilete. Fechei os olhos e respirei fundo, depois comecei.
O olhar dela me encarando era indecifrável naquele momento. O
grito que deu foi ensurdecedor, mas senti a bala.
— Fica comigo! — pedi em lágrimas.
Ela desmaiou. Meu grito saiu involuntariamente pedindo que ficasse
comigo. Consegui tirar a bala e mantive minha blusa no ferimento.
Tudo aconteceu em poucos minutos. Ouvi barulho de carro e
respirei aliviada, mas ouvi vozes masculinas desconhecidas e já fiquei tensa
de novo.
— Acabou, Diana! — ouvi o desgraçado do Afrânio dizer, ele
estava me observando o tempo todo, amarrado no chão, todo machucado,
mas ouvi também barulho de helicóptero e sirene da polícia.
Não soube mais o que fazer ou pensar. Apenas abracei Bárbara
desacordada e fechei os olhos. Se eu morresse ali junto com ela teria valido
a pena viver aqueles meses em sua companhia.

Toledo

Eu tentava negociar com os bandidos que levaram Augusto, pois


entraram em contato comigo para pedir um valor exorbitante de resgate.
— Preciso colocar esse desgraçado na cadeia para nunca mais poder
sair de lá. — disse para mim, mas meu colega se manifestou, pois não
acreditava que Afrânio pudesse estar por trás do sequestro do próprio
irmão.
— Isso é um absurdo, Toledo! — comentou Ramiro, o delegado
federal que me acompanhava. — Acabei de falar com a assessoria dele, o
cara viajou há três dias. Verifiquei no aeroporto. Você está paranoico.
— Tudo bem, Ramiro, não vou discutir com você. Eu estou há anos
nessa operação.
O celular dele tocou e ele saiu para atender. Não queria desconfiar
do Ramiro, mas ele confiava demais no Afrânio. Talvez eu estivesse mesmo
paranoico já imaginando que o delegado estava de conluio com ele.
Depois de três horas numa conversa que eu sabia que não nos
levaria a lugar nenhum, meu celular tocou.
— Alô! — Levantei-me rapidamente ao ouvir a voz do Fred.
— É urgente! Eu posso perder o meu cargo, mas preciso que me
ajude.
— Fala de uma vez, Fred!
— A Bárbara acabou de enviar uma chamada telefônica entre a
Diana e o Afrânio. Ele está com o tio dela e quer que ela vá até ele.
Eu prendi a respiração. Precisava lembrar de matar o Fred. Como
aquele idiota estava no meio disso tudo e não me disse nada? Pedi a
gravação e quando recebi contei o tempo.
Cheguei ao Forte de Copacabana e não vi ninguém ali. Esperei em
vão.
Ramiro me ligou, pedindo para eu voltar ao departamento, e fui até
lá.
— Senador Afrânio me ligou agora e avisou que vai pagar o resgate
do irmão. Eu te falei que era loucura sua, Toledo. Você está parecendo
aquelas mulheres quando cismam que estão sendo traídas.
— Ramiro, já disse que não vou discutir com você sobre isso. E
98% das mulheres que têm essa cisma estão mesmo sendo traídas. — disse
e coloquei a gravação para ele ouvir.
Vi seu semblante mudar. Arregalou os olhos e franziu as
sobrancelhas.
— Que porra é essa, Toledo?
Peguei o meu celular e coloquei no bolso.
— Nunca chame uma mulher de louca quando ela tiver uma cisma!
O Afrânio é bandido e dessa vez eu pego ele.
Senti meu celular vibrando e saí de perto de Ramiro, que estava
pálido. Entrei na minha sala e fiquei observando-o enquanto atendia.
— Oi, Ângela...
— Quero o Afrânio na cadeia, Toledo!
— Ele vai. Preciso de ajuda, Ângela. Eu acho que a Diana está com
ele, e ele é bem inescrupuloso, pode tentar algo contra a própria filha.
— Em que posso ajudar? Faço o que for preciso para que ele pague
por tudo de ruim que fez.
— Estou sem apoio. Já fui chamado de paranoico. A mídia não
ajuda. Há milhares de pessoas falando sobre ele. A
#SenadorAfrânioInocente está no topo do Twitter e em todas as outras redes
sociais.
— São robôs, Toledo!
— Eu sei disso, mas a maioria dos brasileiros não sabe. Algumas
autoridades estão tentando me impedir de fazer o meu trabalho.
— Pode contar comigo para qualquer coisa. Estou no celular. Vou
precisar desligar agora. Até breve. — despediu-se e desligou.
Ângela tirou Afrânio da medicina completamente e ele responderá
por homicídio doloso no caso do doutor Clovis. O senador alegou que
estava voltando da Itália.
Meu celular tocou novamente e vi o número do bandido. Fechei a
negociação e marcamos de nos encontrar dali a meia hora. Mas a Bárbara
me ligou e enviou a localização de onde estava com a Diana, avisou que o
Afrânio estava ferido. Informei à equipe e saí verificando minhas armas.
Em quarenta minutos poderia haver morte. Como não sabia a
gravidade do ferimento do Afrânio, liguei novamente para a Ângela e
deixei Ramiro intermediando o resgate de Augusto com os bandidos e a
assessoria do irmão.
Cheguei ao hospital Bueno Sanchez dez minutos depois. Ângela já
deixara preparado um helicóptero para mim e dois médicos. Mostrei a
região ao piloto e saímos imediatamente.
De cima consegui ver carros se aproximando de lá. Várias
caminhonetes. Alguns corpos caídos. O piloto fora avisado que havia outro
helicóptero se aproximando.
— Não podemos descer ainda. Eles estão armados. — avisou e fez
uma volta, pude ver um helicóptero da polícia chegando.
Quando nos viram, os bandidos começaram a se dissipar. Descemos.
Empunhei duas pistolas e corri para dentro do galpão ainda tentando
respirar e enxergar no meio daquela poeira toda que as hélices levantaram.
Vi Diana abraçada a Bárbara desmaiada e corri até ela.
— Calma! Vamos sair daqui, a polícia está vindo. Fica tranquila.
— Ela está muito mal! — balbuciou, desesperada, em lágrimas.
Peguei Bárbara no colo e corri para o helicóptero. Diana veio atrás
de mim. Os médicos desceram da aeronave com a maca e levaram Bárbara
para dentro. Diana e eu entramos em seguida, e enquanto subíamos, os
médicos iniciavam os primeiros socorros.
Vi quando o helicóptero da polícia pousou e dele desceram cinco
policiais, que em seguida invadiram o galpão.
Seguimos para o hospital.
Tirei minha camisa e entreguei para Diana, que a vestiu. Ela chorava
copiosamente. Apertei sua mão.

Diana

A possibilidade de ficar sem a Bárbara estava me fazendo desejar


morrer também. Nem a chegada do Toledo me fez pensar outra coisa.
Depois da chegada do helicóptero de resgate, em pouco tempo chegamos ao
hospital. Correram com ela para a sala de cirurgia. Eu estava em choque.
Não respirava direito.
Senti braços em minha volta.
— Vai ficar tudo bem. Ela é forte! — Toledo disse me apertando. Só
chorei em seu colo.
Naquele momento vi outra maca passar para outra sala de cirurgia.
Reconheci meu tio pelo anel que sempre usava.
— É o meu tio!
Toledo se virou e viu quando uma equipe médica entrou com
Augusto todo machucado.
Foi naquele momento que saí do meu transe. Respirei
profundamente e limpei o rosto.
— Cadê a Marina?
— Quem é Marina?
— Foi ela quem atirou em mim, se a Bárbara não tivesse me
empurrado eu estaria morta agora. E se ela não for presa eu vou devolver o
tiro que deu na Bárbara.
— Acalme-se! Venha comigo.
Fui levada por ele até um banheiro, ele saiu e logo voltou com água,
que bebi. Uma mulher entrou.
— Pode deixar, Toledo, eu cuido dela. Venha comigo, Diana. —
chamou e a encarei.
Era negra alta, usava um terno escuro, então não era médica. Fomos
a um consultório. Pela placa vi o nome Ângela Bueno Andrade Sanchez.
— Aqui tem banheiro. Tome banho. Ia lhe levar pra minha casa,
mas imagino que não vá querer sair daqui, então vista isso depois. —
Entregou um uniforme do hospital. — Ah, meu nome é Fabiana.
— Obrigada. — falei quase sem voz e entrei no banheiro.
Quando saí, ela falava ao celular. Tinha sotaque baiano.
— Filha, deixe de teimar, vamos conversar quando eu chegar em
casa. Sua mãe está ocupada, não pode falar agora. Preciso desligar. Beijo.
— Virou-se para mim e apontou uma bandeja sobre a mesa. — Coma, você
precisa. Bárbara está sendo operada.
Não sentia fome nenhuma, mas fiz um esforço e comi. Precisava
estar bem para cuidar dela. Fabiana me entregou uma garrafa de água e
saímos da sala. Ela falou que Afrânio foi levado para outro hospital e sairia
de lá direto para a prisão.
Perguntei sobre a Marina, e ela falou que não sabia dela, mas se
estava ferida provavelmente também estava no hospital. E falou que o
Augusto também precisou passar por cirurgia.
Fiquei ali na sala de espera. Fabiana se despediu e me deixou o
número de celular dela. Toledo chegou meia hora depois. Havia trocado de
roupa, pois ficara apenas com uma camiseta regata que usava por baixo da
camisa quando me deu para vestir.
Alheia a tudo o que acontecia ao meu redor não vi o caos que estava
a mídia naquela hora e o que acontecia lá fora. A assessoria do Afrânio
ainda tentou fazê-lo mocinho diante dos fatos e acusações recentes, mas
aconteceu muita coisa que contestava qualquer versão que inventassem.
Depois de três horas de cirurgia, a doutora Ângela chegou à sala de
espera para dar notícias sobre a Bárbara. Quase pulei da cadeira quando a vi
se aproximando. Não tive condições de dizer nada, estava muda.
— Ela ainda está em estado crítico, está em coma induzido. Perdeu
muito sangue e parte do fígado. Poderia dizer que foi um milagre resistir
por tanto tempo. Então vamos esperar. A cirurgia foi um sucesso.
— Obrigada. — Minhas lágrimas desceram de novo. — Você sabe
do meu tio?
— Eu posso procurar saber, com licença...
— A Bárbara é forte, Diana. Confia. — Toledo disse apertando o
meu ombro em apoio.
Respirei várias vezes tentando me acalmar.
— E o Gabriel? Você sabe dele?
— Sim, ele está seguro. Fique tranquila.
Augusto acordou na madrugada daquele dia, estava bem
machucado, mas estava consciente, apenas sob efeito de medicamentos.
— Descanse. — sussurrei e o senti apertar minha mão e dormir de
novo.
Bárbara estava na UTI, sem resposta ainda. Eu só sabia chorar e
esperar que se recuperasse e voltasse para mim.
Depois de usar todo o sangue O- disponível no hospital, ela recebeu
sangue da própria Ângela.
Aquela espera era torturante. Milhões de pensamentos passavam
pela minha cabeça. Fui colocada em um quarto, mas tinha certeza de que
não conseguiria dormir, porém, depois de pensar várias coisas, inclusive
lembrar de todos os nossos momentos juntas e fazer planos para nós, eu
adormeci.
Acordei sentindo o corpo todo dolorido. Olhei em volta e fui ao
banheiro, notei um hematoma no meu rosto, resultado do soco daquele
desgraçado. Saí do quarto e fui procurar saber da Bárbara. Ainda sem
resposta mesmo depois do coma.
— Oh, meu amor, reage! — Já estava em lágrimas de novo. — Eu
não vou conseguir ficar sem você.
Uma enfermeira entrou. Dei um beijo na mão da Bárbara e
mencionei sair, mas senti firmeza em seu toque. Arregalei os olhos e um
grito de felicidade travou na minha garganta.
— Amor, fala comigo... — olhei para a enfermeira. — Ela apertou a
minha mão, eu senti.
— Ela poderá acordar a qualquer momento. Você não pode ficar
aqui.
Eu saí de lá com as esperanças renovadas. Apesar de saber que
aquilo era comum depois do trauma que sofreu, eu não aceitava a realidade,
já queria falar com ela.
Meu tio foi levado para um quarto. Entrei devagar depois da
permissão de um médico. Tudo o que o Afrânio me disse chegou à minha
mente e me emocionei ao vê-lo.
Meu pai!
De repente, todo o amor e a preocupação que ele sempre dispensou
a mim fez sentido.
Ele tinha a cabeça enfaixada, o braço imobilizado e o abdome
também enfaixado. Eu me aproximei devagar e acariciei sua mão.
— Tio! — chamei com a voz rouca e o vi se mexer minimamente e
abrir os olhos.
— Filha... — falou com dificuldade, pois tinha a boca machucada.
— Pode ficar quietinho, só vim ver se estava bem. — Beijei sua
mão.
— Agora estou melhor, filha. Saber que você está bem, me deixa
tranquilo. Eu amo você! — disse e fechou os olhos.
Apenas deixei minhas lágrimas fluírem.
Eu tinha um sorriso perdido entre as lágrimas. Só precisava que meu
amor acordasse para minha felicidade ficar completa.
Bárbara dormiu por trinta e seis horas. Toledo pegou o carro no
estacionamento em Copacabana e levou a chave para mim.
Ângela me chamou para ficar na casa dela, que era mais segura, mas
eu ia lá basicamente para tomar banho e trocar de roupa, era levada ao
hospital pelo motorista da família.
Fabiana era a esposa dela. Além das duas, viviam na casa também
os quatro filhos delas, Benta e Caio. Havia também vários animais
resgatados. Lembrei dos meus bebês, precisava falar com a Jéssica. O lugar
era grande, lindo, cheio de vida. Passei a sonhar com um lar como aquele.
Com certeza começaria a construir um com a Bárbara, logo que ela se
recuperasse.
— Doutor Augusto é um grande médico, foi meu professor na época
do internato. É muito importante para mim. — Ângela disse quando
cheguei para ver a Bárbara e a vi fazendo exames nela.
— Infelizmente eu não tive esse privilégio, mas ele é a minha maior
referência.
Bárbara saiu da UTI e já não corria mais riscos, mas dormia muito.
Eu fiquei com ela o dia e a noite. Conversei com ela de novo e dormi ao seu
lado.

Bárbara

Aquela dor terrível foi passando aos poucos. Eu só queria dormir


por alguns dias.
Não dorme!
Não podia dormir, mas estava muito cansada. A adrenalina daquela
ação toda me deixou exausta. Será que ela ficaria chateada se eu tirasse só
um cochilo.
Não dorme, por favor.
Ok.
Ouvi vozes, senti presenças e continuei andando. Não podia dormir,
mas se ficasse parada apagaria sem querer.
Vi uma porta a alguns metros.
Não dorme!
Tá bom, amor, não vou dormir. Prometo!
A voz da Diana ficava cada vez mais perto na medida que eu me
aproximava da porta. Andei mais rápido, pois ela estava ali.
Quando cheguei, senti uma paz imensa. Havia cavaletes, livros em
prateleiras, animais correndo e brincando ao fundo. E senti um delicioso
cheiro de comida sendo preparada.
Um sorriso simpático de uma mulher me chamou e corri para lá, não
sabia por que, mas elas cozinhavam rapidamente. Entrei na onda cortei
legumes, cebolas, amassei alho, coloquei uma panela em um fogo ao meu
lado e consegui sentir até o cheiro de alho e cebola refogando. Coloquei
vinagre e lembrei que aquele foi o primeiro cheiro que me acalmou.
Aquela paz insistente ainda me dominava. Eu sorri. Era maravilhoso
todos aqueles rostos exalando prazer em comer o que eu havia preparado.
Sentei um pouco junto com as demais cozinheiras, que contavam
histórias engraçadas e aleatórias. Aquele aconchego me fez relaxar.
Não dorme!
Levantei rapidamente ou dormiria muito fácil. Fui até os cavaletes e
pintei tudo o que veio à mente. Eu queria ficar ali. Era maravilhoso. Era
tudo o que pedia, aquela paz. Sem tiros, sem violência, sem gritos.
Não dorme!
— Preciso encontrar a Diana.
Saí da sala de pintura e vi crianças brincando na chuva. Vi a Bárbara
de oito anos de idade. Inocente, já com alguns traumas, mas sem a carga
que adquiriu depois disso. Fui às lágrimas, olhei em volta e não vi saída.
Peguei a Bárbara de oito anos pelos ombros e tentei fazê-la me olhar, mas
ela não me viu. Só queria brincar, como a criança que era. Mesmo sem estar
na chuva me vi molhada e senti aquela sensação gostosa de água na pele.
Fiquei até emocionada, pois ali eu não tinha medo de ser surpreendida pela
minha mãe.
Procurei a saída daquele lugar, mesmo sentindo aquela paz
indescritível. Eu precisava ir para junto da Diana.
Fica comigo!
Passei a procurá-la. Sua voz estava muito perto. Ninguém me dizia
nada, por mais que eu perguntasse e dissesse como ela era.
Ali era perfeito demais, um verdadeiro paraíso, mas sozinha não
havia mais possibilidade.
Não existe paraíso sem você!
Exausta, me sentei numa poltrona e acabei cochilando. O barulho
das crianças e bichinhos que miavam e latiam ali perto era maravilhoso, não
me impediram de dormir.
Você já descansou muito, amor. Acorda. Por favor!
Eu mal me sentei.
— Só uns cinco minutinhos.
51 – Paz

Diana

— Ah, caramba! — Quase gritei quando ouvi a voz dela e seu


sorriso de olhos semiabertos.
Saí da cama, pois estava eufórica. Ela fechou os olhos novamente.
— Não dorme, não.
— Fica aqui... vou dormir só um pouquinho! — pediu e dormiu.
Eu já estava feliz demais. Fiquei com ela por uns minutos e depois
fui procurar a Ângela. Vi o noticiário em uma tevê, na recepção do andar da
internação.
— As provas contra o senador Afrânio Sobreira são irrefutáveis, ele
vai a julgamento e vai receber a pena que merece. Sobre o erro médico, não
houve erro nenhum, houve irresponsabilidade movida pela vaidade dele.
Ele testou um método muito arriscado, sem consultar a família, em um
homem de oitenta anos de idade. — Toledo falava para o jornal da Neila.
— Detetive, acabou de sair uma matéria no
melindaherchcovitch.com sobre a morte da esposa do senador. Segundo o
site, ele é mandante do crime cometido pelo também médico oncologista
Otacílio Cavalcante Bonfim, você tem informações sobre esse caso? — Ela
perguntou.
— As investigações estão acontecendo, não posso afirmar com
precisão neste momento porque é sigiloso. Minha equipe já entrou em
contato com o melindaherchcovitch.com e quando tivermos mais
informações divulgaremos.
— Muito obrigada, detetive Toledo. — agradeceu e o link com o
policial foi encerrado. — O assassino Afrânio Sobreira finalmente vai ser
preso. Segundo o médico do hospital onde ele está internado, em uma
semana vai receber alta e vai direto para a cadeia, que é lugar de bandido.
Notei que estava com a respiração presa. Respirei profundamente.
Senti um arrepio intenso com aquela notícia.
— Está tudo bem? — Uma enfermeira me perguntou.
— Sim, obrigada. Onde posso encontrar a doutora Ângela?
— Ela está em reunião na administração. Era só com ela?
— Era. Depois falo com ela então. — Olhei para seu crachá. —
Obrigada, Joseane.
— De nada... — respondeu, sorrindo.
Uma vez ouvi de uma técnica em enfermagem que eram tratadas
como seres invisíveis, sem nome. Sem reconhecimento pelo trabalho
fundamental que desempenham dentro do hospital. Desde então nunca mais
as tratei como seres sem importância. Técnicas e enfermeiras são
fundamentais para que um hospital funcione bem. Elas são nosso suporte
direto.
Entrei no quarto do meu tio e o vi acordado, sentado, enquanto
trocavam seus curativos.
Seus olhos brilharam quando me viram. Eu precisava dividir a
felicidade de saber que era sua filha com ele.
— Oi, minha linda, que bom ver você. — disse e fez uma careta,
pois o médico o examinava.
— Bom te ver acordado, tio. — Segurei a mão dele e olhei para o
médico, sorri.
— Pronto, doutor Augusto. Pode descansar.
— Obrigado. — disse e se deitou devagar.
Eu o ajudei e senti os olhos marejados. Ele precisava descansar,
decidi conversar com ele depois, quando estivesse melhor.
— Aquele maldito vai apodrecer na cadeia. Covarde. Olha o seu
estado.
— Oh, meu amor, não fique cultivando esses sentimentos. Só
afetam a você. Seu pai não sente nada, nunca sentiu.
— Ele não é meu pai... — falei, com a voz embargada. — Ele me
contou, tio.
— Contou o quê?
— Que você é meu pai de verdade...
— Não, meu amor, eu fiz o exame duas vezes. Os dois deram
negativos.
— Tio, ele falsificou os exames. E me disse isso quando... —
Engasguei. Era difícil demais relembrar aquele horror. Mas suspirei e
continuei. — Quando tentou me estuprar...
— O quê? — Ele quase gritou.
Tentou se sentar, mas foi detido pela dor que o acometeu. Me
arrependi de ter falado sobre aquilo.
— Calma. Fica tranquilo.
Ele respirou pesadamente tentando se recuperar.
— Vou chamar alguém, você precisa de um analgésico. — Tentei
sair, mas ele segurou a minha mão.
— Aquele desgraçado me deixou enganado esses anos todos. Não
que faça qualquer diferença, pois sempre te considerei minha filha.
— Ele enganou todo mundo, tio. Mas eu estou muito feliz. — Eu já
estava em lágrimas de novo.
Beijei a mão dele e a senti subir para meus cabelos, como fazia
quando eu era criança.
— Minha menina! — disse com os olhos cheios. — Eu a amo tanto.
Fiz tudo isso para te preservar, você é a única coisa que eu tenho da sua
mãe. O grande amor da minha vida.
Sequei seu rosto com a parte externa da mão.
— Por que você não se casou com a minha mãe? Por que não evitou
tudo isso? Se a amava tanto... — perguntei, demonstrando um pouco da
minha revolta.
— Eu fui um covarde, Diana. O seu avô não queria que eu me
casasse com a filha dele porque eu gostava de viajar, queria me especializar,
estudava muito, apesar de ter me formado cedo eu não queria
responsabilidade, não queria ser chefe e provedor de uma família, não
estava pronto. Peço que me perdoe por isso, eu já me arrependi tanto.
Naquela época eu não tinha a dimensão do tamanho do amor que eu sentia
pela sua mãe.
Sequei o meu rosto e esperei que continuasse.
— Afrânio a conheceu e ficou obcecado por ela, passou a fazer de
tudo para tirá-la de mim, e seu avô ficou deslumbrado, era um bom partido,
como ele vivia dizendo. Sua mãe me chamou para ir embora de lá, e eu
disse que não podíamos fugir e largar tudo. Eu era um babaca egocêntrico,
Diana. Vaidoso demais para pensar direito. O Afrânio só queria me vencer
de alguma forma. Eu sempre fui o melhor aluno na escola, faculdade, era o
melhor em tudo, recebia as melhores propostas de hospitais, centros de
pesquisas, bolsas, e isso o enchia de inveja. Não aceitava que eu fosse
melhor até em arrumar namorada. Para ele, a Lourdes era perfeita, rica,
bonita, de uma família influente.
— Quando se deu conta de que amava a minha mãe?
— No dia do casamento dela com o Afrânio. Eu ainda tentei fazê-la
desistir, mas ela estava muito magoada comigo e não queria decepcionar os
pais. Eu parei de ser idiota, mas era tarde. Ela se casou. Eu sumi por uns
meses e quando voltei o Afrânio estava viajando e acabamos reatando o
namoro, mas não era mais o nosso namoro. O Afrânio já era bem indelicado
com ela. Levou mulheres para a casa quando voltaram da lua de mel. Ela
disse que chorou muito e quando foi tirar satisfação, ele disse que era só a
empregada e que não aconteceu nada demais, mas ela os viu na cama. Ela
quis sair de casa, ele aplicou um sedativo nela, e ela dormiu por muito
tempo. Eu sempre esperava ele sair. Quando ele descobriu nosso romance,
você já tinha dois anos de idade.
— Meu Deus!
— Eu só suspeitei que você poderia ser minha filha quando já era
grande. A Lourdes quis se separar, mas ele não aceitou. Nem depois de
saber que nós estávamos juntos.
— Ele soube de vocês? — perguntei, horrorizada.
— Ele sempre soube. Mas sua mãe só aceitou manter nosso
relacionamento porque ele a traía de todas as formas possíveis e com todos
os tipos de mulheres. Ela tinha uma índole incontestável, mas a gente se
amava muito.
Ele acariciou o meu rosto.
— Eu queria proteger vocês. Ele não tinha o mínimo de
consideração nem com você, uma criança. Aí, eu fiz o exame e deu
negativo, você não era minha filha. Uns anos depois, suspeitando que ele
pudesse ter falsificado, fiz novamente e deu negativo de novo. Daí tive
certeza que você era só minha sobrinha querida e a filha da mulher da
minha vida.
Soltou um suspiro seguido de lágrimas sentidas.
— Todo esse sofrimento acabou. Ele vai ser preso. Vai pagar por
tudo. Eu acredito nisso.
— Também quero muito acreditar nisso, meu amor. Desde que sua
mãe se foi que dediquei a minha vida a proteger você e tentar fazer com que
o mundo visse quem o Afrânio era realmente. Finalmente consegui e não
foi muito tarde. Estamos os dois aqui, juntos. Como ele sempre temeu.
Ele me puxou para um abraço e deixei fluir toda a descarga de
lágrimas que eu guardava há anos sobre aquele assunto.
Eu me sentia suja por ser filha do Afrânio, me sentia indigna de
olhar para as pessoas que acreditavam nele e culpada pelas mortes que
causou. Abraçada ao Augusto pude me livrar um pouco desses sentimentos
ruins. Apesar de lamentar imensamente todos aqueles fatos que ele contou,
pois poderíamos ter sido uma família, minha mãe poderia estar viva,
poderíamos ter sido felizes. Mas vi que poderia recomeçar a partir daquele
momento.
Toledo chegou e bateu de leve na porta aberta.
— Olá...
Eu sorri e fui até ele. Mesmo sabendo de sua rigidez, o abracei. Eu
estava emotiva, queria agradecê-lo pelo que havia feito.
— Obrigada por tudo.
— Imagina. Quando você estiver pronta para depor me deixe saber,
ok?
— Ok. Acho que amanhã já consigo falar. A Bárbara acordou, meu
tio está se recuperando bem. Tudo está se ajeitando.
— Tudo bem. Eu preciso conversar com o seu tio, é rápido, mas
precisa ser em particular.
— Tá bom... — concordei e agachei para beijar a testa do Augusto.
— Ele não é meu tio... — comecei igual uma criança que conta que foi bem
numa prova na escola.
Toledo olhou para Augusto e ele assentiu.
— Aquele desgraçado mentiu e forjou exames. Eu não estava
enganado.
— Parabéns! É uma menina! — disse e sorriu arrancando uma
gargalhada seguida de uma careta do Augusto.
E eu confesso que fiquei bem assustada. Joel Toledo fazendo piada,
acho que poderíamos esperar até catástrofe natural. Mas sorri do riso do
meu tio. Ok, será difícil mudar, mas vou tentar. Meu pai! Doutor Augusto
Sobreira é meu pai.
— Com licença...
— Diana, eu preciso falar com você, tá? Aqui será rápido e a
procuro lá fora.
— Tudo bem. Vou ver a Bárbara.
Meia hora depois Toledo entrou no quarto da Bárbara, que dormia.
— Como ela está?
— Bem, só dorme. Acordou, falou comigo, mas voltou a dormir.
Remédios demais... o que você queria falar?
— Você pode vir comigo? Preciso mostrar, na verdade.
— Tá bom. — concordei, preocupada.
Toledo é assustador, às vezes. Por mais que eu perguntasse o que
estava acontecendo, só pedia para eu ter calma.
— É o Gabriel? Por que ainda não o vi?
— Acalme-se, Diana. Já disse que ele está bem. Só não pode ficar
saindo... — avisou e entrou na via de acesso ao condomínio da casa da
Ângela.
Mantive o silêncio até entrar no jardim da casa. Ele parou o carro e
descemos. Hope, a filha da Ângela, abriu a porta sorrindo e gritou:
— Mamãe chegou! — entoou num ritmo se demorando no o.
Lecter passou por ela correndo e Luís logo atrás dele, ainda arredio,
e eu ajoelhei, emocionada. O que foi uma péssima ideia, Lecter me
derrubou quando pulou em mim.
— Socorro! — pedi, sufocada de tanta lambida.
Hope estava pulando, gritando de felicidade. Luís se roçava em mim
emitindo miados grunhidos. Peguei meu parceiro ranzinza no colo e enchi
de beijos. Ele odiava aquilo, mesmo assim se deixou beijar. Soltou um
chiado para afastar Lecter, mas o cachorro abanava o rabo ignorando a
chatice do irmão.
— Mamãe ama tanto vocês! — falei, finalmente ainda com Luís do
colo e acariciando o rosto de Lecter. — A outra mamãe ainda tá dodói, mas
logo vai ficar bem. — Levantei o rosto e vi Jéssica perto da porta, de braços
cruzados encostada numa coluna.
Ela sorriu e veio em minha direção. Larguei os bichos e fui ao seu
encontro. Abracei-a com força demonstrando todo o meu agradecimento.
— Eu tive tanto medo de nunca mais ver você.
— Está tudo bem agora.
Beijei seu rosto delicadamente e ela fez o mesmo e sorriu.
— Acabei de beijar o Lecter por tabela. — falou, rindo e limpando
os lábios.
Sorrindo, limpei meu rosto. Fiquei tão feliz e empolgada por vê-los
que esqueci esse detalhe.
— Obrigada por tudo. Você sempre foi tão maravilhosa comigo e
por mais que digam que é porque gosta de mim de outra forma, não aceito
que seja só por isso. Você é generosa, é ótima e não pratica isso só comigo.
Limpei seu rosto, pois chorava timidamente.
— Eu finalmente comecei a aceitar, Diana. Apesar de admitir que
tinha esperança de você cansar da Bárbara, sei lá... e eu conseguir uma
mínima chance com você, eu estou aceitando sua felicidade sem a minha.
— Fico feliz em ouvir isso. Eu amo a Bárbara mais que tudo e amo
mais a cada segundo, então não existe cansar quando se ama
progressivamente assim.
— Como ela está?
— Se recuperando. Era pra ser eu, talvez nem fosse, eu tirei a bala
do corpo dela, arrisquei sua vida, mas isso a manteve viva para esperar o
resgate.
— Ela te ama muito também, né? Sempre a vi como alguém meio
vazio, inconsequente, sei lá, que não te merecesse.
— Bárbara é cheia demais de vários sentimentos, é intensa,
destemida.
— Entendi. Fico feliz que esteja com alguém que dê a vida por
você. — disse e sorriu — Tenho uma invejazinha dela, mas tô feliz de
verdade, Diana.
Sorri, eu torcia de verdade por ela, gostaria de vê-la apaixonada e
sendo correspondida.
— Vou sentir saudade dos filhotes e de você também, presumo que
não vá mais voltar a Vila dos Lírios.
— Ainda não sei o que fazer, mas eles vão estar sempre por perto.
Quero que você seja feliz, Jéssica. De verdade, você merece. Se eu não
voltar mais pra lá, vou adorar te receber na minha casa.
— Eu vou adorar visitar vocês. Obrigada. Eu embarco daqui a
pouco pra São Paulo, então preciso ir.
Nos despedimos, senti uma paz ao vê-la bem. Toledo garantiu que a
levaria em segurança ao aeroporto. Eu falava com a Lara sempre por
mensagem, às vezes por chamada, e pedi que cuidasse da segurança dela,
caso precisasse, pois todos ligados a mim eram alvos da quadrilha do
Afrânio.
Uma semana depois encontrei Gabriel, finalmente. O abracei por
uns minutos. Verifiquei se estava bem e ele fez o mesmo comigo. Depomos
separadamente, a imprensa só conhecia a mim, pois apesar de ser sigiloso,
minha foto estava em todas as mídias.
Depois de tudo, postaram uma foto do Gabriel também como o
divulgador dos vídeos, e da Bárbara como a minha namorada, que levou um
tiro no meu lugar.
Tentaram romantizar aquilo, mas fiquei com muito medo e tenho
certeza de que quem divulgou foi alguém do Afrânio. Depois disso, Toledo
deixou dois policiais no hospital cuidando de nossa segurança.

Eu estava saindo do Bueno Sanchez para ir tomar banho e trocar de


roupa para voltar e passar a noite com a Bárbara quando Cristiano me
abordou na saída do hospital, avisou que estava preocupado comigo e que
não teve mais um segundo de paz desde o vazamento do vídeo.
Senti asco ao olhar para ele. Eu só queria distância.
— A Marina estava furiosa, me disse que iria matar você por ter
gravado o vídeo e a exposto daquela forma.
— A Marina sempre me odiou, se me matasse seria por vontade
antiga, não por causa do vídeo, que sequer mostrou seu rosto. Obrigada pela
preocupação, Cristiano. Mas eu tô atrasada.
— Onde está morando, podemos tomar um café, conversar? Você
me faz bem, Diana. Não fiquei tão chateado com o nosso casamento porque
gostei de você quando a conheci.
— Eu tô em um hotel, mas acho que não devemos manter contato,
Cristiano. Você pode ser bom se quiser mudar, de fato, e procurar ser feliz
sem precisar de consentimento de terceiros, então procura ser. Não me
procura mais, tá?
— Tudo bem. Eu lamento muito por tudo isso.
— Não tanto quanto eu. Tchau! — disse e entrei no carro.
Você lamenta porque tudo foi divulgado e estão sendo investigados.
— Naldo, você pode, por favor, pegar outro caminho, pois não
confio nessa corja. — pedi ao motorista da Ângela.
Todo aquele tempo convivendo com esses bandidos me fez ficar
atenta a tudo com relação ao ser humano, não confio no Cristiano e nem em
ninguém mais ligado ao Afrânio de alguma forma. Fomos seguidos mesmo.
Naldo rodou por quase uma hora e entrou em um shopping. De lá liguei
para Toledo, e ele foi nos buscar.

Toledo

Depois de assistir todas as cenas do galpão, resolvi conversar com a


Bárbara quando a Diana saiu. Ela abriu os olhos quando cheguei, mesmo
sem fazer o mínimo barulho.
— Oi, Bárbara... como se sente?
— Melhor. Ainda muito sonolenta, mas sem dor. E você?
— Intrigado, curioso e empolgado.
— Estou vendo. — disse com um sorriso fechado e fechou os olhos.
— Eu assisti às imagens do galpão, Bárbara. Preciso saber algumas
coisas de você, tudo bem?
Ela deu de ombros concordando.
— Onde aprendeu tudo aquilo?
Ela respirou profundamente e tentou se sentar na cama.
— Eu aprendi na periferia daqui. Eu nasci na zona norte, Alemão,
então precisava sobreviver, né? Como você, eu também sou curiosa.
— Arte marcial?
— Anjos de Resgate, muitos anos de treino, anos de referências
práticas também.
— Você atirou com uma 12mm, Bárbara...
— Eu aprendi a atirar em latas voadoras, Joel! Quase me tornei
traficante porque minha mãe queria dinheiro de qualquer jeito e eu não
queria aquilo, mas tentei. Sobre a 12 eu ouvi falar muito dela, já atirei com
réplica, e sabia que precisava ter cuidado.
— Você tem irmãos? Seus pais moram juntos?
— Não conheci o meu pai e tenho um meio irmão, ele é filho do
marido da minha mãe.
Estava sendo sincera. Mas ainda parecia absurdo demais.
— Você matou seis homens, derrubou o Afrânio e ainda levou um
tiro pela Diana ferindo a atiradora, como é possível?
Ela passou as mãos no rosto e na nuca, vi seu rosto numa espécie de
contorção e senti um arrepio intenso subir pela minha espinha. Eu senti
lágrimas nos meus olhos a fim de hidratá-los, pois eu fiquei sem piscar. Ela
abriu os olhos. Meu coração queria sair pela boca. Não entendia se havia
me deixado levar pela situação ou apenas quis ser enganado.
— Eu não tenho medo de nada, Toledo! Eu não tinha, na verdade,
agora temo ficar sem a Diana, mas o resto, nada me abala. Já tive várias
armas apontadas para a minha cabeça e apenas enfrentei. Já sambei na cara
da morte algumas vezes. Não tenho medo. No galpão ou era aquilo ou
perder a Diana.
Eu sentia o meu rosto fervendo, tinha certeza de que estava
vermelho, pois estava prestes a desmaiar. Comecei a respirar devagar
enquanto ela continuava falando.
— Se for me prender por causa daquilo lá, só mantém o Afrânio
longe da Diana, ok?
— Não, eu só queria entender. As imagens do galpão serviram para
incriminar mais ainda o Afrânio, que foi enquadrado também como
estuprador, mesmo sem ter consumado o crime, e para a doutora Marina,
por tentativa de homicídio.
— Eu preciso dormir agora... se precisar de mais alguma coisa, é só
perguntar... depois.
— Obrigado. Ah, isso não é oficial, não é depoimento. Foi apenas
curiosidade minha, ok?
— Eu sei... e se fosse oficial eu alegaria estar dopada. — disse
sorrindo e fechou os olhos demonstrando cansaço.
Saí do quarto em êxtase. Eu sorria eufórico:
— Transtorno Dissociativo de Identidade! Raro!
Como não vi isso? Só dessa forma explica a força sobre-humana
que tem para enfrentar bandidos e não os temer. Os transtornos causam
isso nas pessoas. Já vi vários casos de TDI, mas como a Bárbara é a
primeira vez. Eu fiquei deslumbrado. — Cheguei àquela conclusão
totalmente eufórico.
— A Bárbara? — Ouvi a voz da Ângela ao meu lado e me virei
subitamente.
— Oi... o que disse?
— A Bárbara tem TDI.
— Como assim? Está perguntando ou...
— Afirmando. Eu a observei esses dias, parece algo moderado, pois
ela consegue controlar. Tem tiques nervosos evidentes... olhares distintos.
Ângela era uma exímia estudiosa do ser humano e eu queria beijá-la
naquele corredor, mas o noticiário mostrou algo que chamou nossa atenção.
— O médico Gabriel Duarte foi encontrado morto em seu
apartamento com três tiros no peito. O jovem foi uma das testemunhas no
caso Afrânio Sobreira. A polícia já está no local e a qualquer momento
teremos mais informações sobre esse lamentável caso.


Bárbara

Eu precisei de mais duas semanas para sair do hospital. Senti meu


peito se enchendo de ódio quando soube da morte do Gabriel pela Diana,
que ficou arrasada. Maquinei vários tipos de tortura antes de dar um fim
digno ao Afrânio. Mas estava ainda fragilizada com tudo aquilo.
Preciso me recuperar completamente! — pensei quando saíamos do
hospital.
Só vi o sol de dentro do carro, já do lado de fora do hospital, pois
saímos pela garagem.
— Vamos ficar na casa da doutora Ângela até a condenação do
Afrânio. — Diana disse e beijou minha cabeça.
Eu tinha os dedos entrelaçados aos dela. Beijei sua mão. Assenti
com a cabeça. Diana contou que Augusto recebeu alta e foi para o flat onde
morava. Estava se recuperando também.
O motorista fez todo o trajeto em silêncio e em poucos minutos
entramos no condomínio.
Não queria ficar ali por muito tempo, gostava de ter nossa casa. Não
sabia se Diana queria voltar para Vila dos Lírios, mas eu queria nossa casa
de novo.
O motorista estacionou e abriu a porta para nós. Diana foi gentil e
ele correspondeu ao sorriso, depois me ofereceu ajuda.
— Não precisa, obrigada. — recusei, sorrindo.
Eu me virei e fiquei apaixonada por aquela casa. A casa da doutora
Ângela era enorme, mas não era o tipo de mansão sem vida que é fácil de
ver, o tipo de casa em que os moradores trabalham tanto para manter que
acabam nem morando lá. Era diferente, tinha vida, não só pelo imenso e
belo jardim, mas pelos brinquedos espalhados; bichos, crianças, gente.
Cores, cores e mais cores. Eu estava entrando em um paraíso na
terra. Até a decoração do jardim era colorida. Pequenas estátuas que
lembravam grandes personalidades. Seus rostos cubistas, dadaístas me
arrancaram daquela realidade cruel e me levaram para um céu possível.
Aquele jardineiro era de um grande e sensível artista, eu precisava conhecê-
lo.
— Amor? Está tudo bem?
— Sim. — senti os olhos embaçados, pisquei várias vezes.
— Vamos — chamou e começamos a andar em direção à entrada da
casa.
Duas meninas foram nos receber.
— Oi, sou a Hope e essa é minha irmã, Taiane.
— Oi, Hope, oi Taiane...
— Seja bem-vinda... — desejou e olhou para Diana, que colocou o
dedo indicador nos lábios.
— O que tá rolando?
— Hope não sabe guardar segredo, tia... — Taiane disse para Diana,
que sorriu.
Ouvi um latido e me virei subitamente. Era o Lecter, meu Lecter.
Luís Otávio também estava ali, ele pulou por cima de uma mureta e chegou
até mim antes do cachorro. Diana conteve o bicho para não me machucar e
peguei Luís no colo, ele me acariciava com a própria cabeça, aquilo eram as
lambidas felinas. Recebi algumas lambidas entusiasmadas do Lecter e
depois entramos na casa.
Entramos no quarto e Diana preparou a cama para que eu me
deitasse. Ainda sentia um pouco de dor, mas era suportável.
Os dias naquela casa eram maravilhosos. Tinha uma produtora de
áudio e vídeo no subsolo. Hope me apresentou tudo.
— Meu irmão e eu trabalhamos aqui, você vai conhecer ele. Ele foi
pra Bahia com a minha avó Benta. Ele é músico.
— Você trabalha?
— Sim, eu sou influenciadora digital. E vou gravar daqui a pouco.
Hoje é dia de mostrar as coisas boas dos brasileiros. Se quiser pode assistir.
E eu assisti. Diana sorria extasiada com a desenvoltura da menina,
que era a artista do jardim junto com a mãe, Ângela.
Depois das gravações, Diana e eu fomos para um redário que havia
na parte dos fundos da casa, onde também dava acesso à praia. Ficamos
numa rede, deitei no colo da Diana e recebi cafuné.

Diana

Apesar de todos os acontecimentos, eu estava muito feliz. Augusto


estava bem, se recuperando rápido e pensando em voltar a atuar como
médico. Bárbara estava quase cem por cento também. Em breve eu voltaria
à minha vida normal. Mas naquele momento, eu só queria curtir a presença
da minha linda mulher.
— Eu senti tanto medo de te perder... — disse e a beijei suavemente.
Fomos vistas por Fabí e Ângela, que chegavam à sala.
— Eu conheço esse medo, fiquei assim quando ela levou um tiro! —
Ângela comentou apontando para Fabí e se sentando numa rede.
— E eu também fiquei assim quando ela levou o tiro no meio da
cara. — Fabí disse se sentando junto com a esposa. — Pippa Rivera adora
um tiro, Diana. Sua sorte é que já tá no final da história ou sobraria pra você
também. E Linier Farias se faz de santa, da comédia e tal, mas não confie...
— avisou num tom de cuidado, mas com o um sorriso interno.
— Torça para não levar, pois ainda dá tempo. — Ângela brincou e
riu.
— Eu mato elas! — Bárbara garantiu e me beijou com carinho.
— Vocês pretendem voltar para o interior de São Paulo? — Ângela
perguntou e olhei para Bárbara.
— Eu não deixei nada lá, meus filhos estão aqui, mas se você for eu
vou com você, né?
— Eu parei minha residência no Bonfim, se voltasse seria para
concluir.
— Oxe, você tá falando com a dona do melhor hospital do Brasil e
há um ano a matriz se tornou escola, então pode ficar aqui se quiser.
Eu olhei para Ângela, seria ótimo mudar.
— Ouvi falar muito bem de você, Diana. Conheço sua competência.
— Se isso for uma oportunidade eu aceito. Mas preciso procurar um
lugar para morar, ajeitar a cabeça, que ainda está meio confusa.
— Essa casa ali na frente é nossa, você pode ficar lá, se quiser.
— Como assim, gente? O Bueno Sanchez está pagando tão bem
assim? Jamais conseguiria pagar a despesa de uma casa dessa.
— Diana, é mais fácil chover pra cima do que Anjinho gastar
dinheiro à toa, mas ela mantém essa casa fechada há alguns anos. Foi de lá
que atiraram nela, e não foram os moradores, foi uma assassina contratada
que se infiltrou lá e conseguiu atingi-la aqui no jardim.
— Ah, meu Deus! — exclamei, assustada.
— Se quiser, Diana, peço para reformarem e vocês ficam lá. Vai ser
bom ficarem perto. Aqui é seguro. O Afrânio vai ficar preso, mas seus
comparsas ainda estarão livres.
Ouvir aquilo me fez sentir um frio na espinha. Mas eu não podia
ficar sofrendo por antecipação. Aceitei a casa e o emprego. Não podia viver
com medo, me escondendo, mas sabia que não podia dar mole e ficar
exposta.
Bárbara e eu nos mudamos duas semanas depois, ela vibrou com a
cozinha. Fez vários planos para decoração e eu só sabia babar pela minha
mulher. Luís adorava a Hope e vivia mais na casa dela do que com a gente.
Acho que arrumou uma namorada por lá, pois aparecia em casa só para
comer e raramente para dormir.
Bárbara falou com o Silvio, tio da Ingrid, ele estava doente desde a
morte dela. Conversaram por uns minutos e ela desligou.
— O que houve?
— Lara achou a Ingrid e o resto do povo. Parece que fedeu lá. Ele é
muito frio, só disse que foram encontrados em estágio avançado de
decomposição. E foi como Deus quis. Ele não gostava muito da sobrinha.
Ele tem câncer, está morrendo um pouco a cada dia, pois se recusa a fazer
tratamento.
— Nossa! Tem gente que prefere esperar a morte assim a fazer
tratamento.
— Ele é assim. Quando der, vou lá ver como ele está. Sempre me
tratou muito bem. Gosto dele.
Afrânio pegou a pena máxima. Augusto foi jantar conosco àquele
dia. Vimos o noticiário da noite, ele estava numa poltrona e eu no sofá com
Bárbara dormindo no meu colo. Lecter no tapete no chão e Luís dormindo
ao lado de Bárbara.
Aquela era a paz que sempre almejei. Beijei a cabeça da minha
esposa enquanto via a imagem de Afrânio sendo levado do tribunal para a
prisão.
Epílogo

Bárbara

Três meses depois do julgamento e condenação do velho, estávamos


vivendo bem, tranquilamente. A tal da Marina também foi condenada, tinha
uma passagem pela polícia e por isso pagaria parte da pena de sete anos em
regime fechado. Ângela me ajudou a fazer um jardim na casa, e Hope me
ajudou a pintar. Ela ficou feliz quando descobriu meu talento igual ao dela.
A menina é genial.
— Mãe, adota a Bárbara, por favor. Estou apaixonada. Preciso de
outra irmã. — pediu, ofegante quando chegamos perto da Ângela e da
Diana, elas conversavam na cozinha.
— Tá bom, filha. Vou dar entrada na papelada amanhã. — brincou,
sorrindo e beijou a menina, secando o suor de seu rosto em seguida.
— Pronto. Vamos, é a vez da Taiane...
— Eu acabo de ganhar duas sogras. — Diana disse de queixo
franzido meneando a cabeça.
Eu a beijei sorrindo e saí com Hope.
Augusto, agora meu sogro, se mudou para a nossa casa. Vivia mal
em um flat. Apesar de ser um flat de alto padrão, era solitário, se alimentava
mal... então sugeri à Diana que o chamasse para morar conosco, e ele,
mesmo reticente, aceitou. Parte de mim gostava de casa cheia. Além disso,
Augusto era pai da Diana, e eles já haviam passado tanto tempo separados!
Mereciam ficar perto.
Conversávamos muito. Gosto de gente experiente, pois é a melhor
sala de aula que existe. Aprendo muito. Ele me agradeceu por tudo que fiz
pela Diana e brincou:
— Eu quero saber quando você vai se casar com ela... — perguntou
enquanto me observava fazer almoço.
— Eita... — fingi, medo.
— Pare de enrolar a minha filha. — falou, sorrindo. — Estou
brincando, Bárbara. Vocês estão ótimas assim. E eu estou muito feliz por
minha filha ter você. Quando eu estava nas mãos daquele desgraçado do
Afrânio eu só pensava que se morresse, você a protegeria.
— Sim, sempre. — garanti enquanto temperava um salmão.
Diana chegaria logo. Trabalhara à noite, mas no fim do plantão
avisou que havia tido uma emergência e se atrasaria para chegar em casa.
Ela estava cada dia mais linda sem aquela sombra comum de preocupação
nos olhos. Contava o dia dela com entusiasmo e eu amava aquilo, sempre
aprendia muito com ela também, pois falava os termos técnicos e me
explicava para que cada coisa servia.
— Só ouvia esses termos em Grey's Anatomy... — disse rindo
quando ela comentou pela primeira vez.
Terminei tudo e deixei pronto. Augusto fez uma jarra de suco com
várias frutas e álcool.
— Vou tomar banho, já volto.
Quando saí do banho ouvi o carro da Diana chegando e desci
rapidamente. Estávamos tão bem que eu pensava o tempo todo que jamais
seria capaz de ser feliz daquela forma.
Ela me recebeu no jardim com os beijos de sempre, segurava o meu
rosto com as duas mãos.
— Hum! Que cheirosa. — disse, na minha boca.
Vi um homem conversando com Augusto perto do carro. Ela notou
e me pegou pela mão.
— Eu quero que você conheça um amigo meu...
Eu franzi o cenho quando nos aproximamos e ele me encarou. Tinha
os cabelos pretos cacheados, usava uns óculos de aros grossos, pele
bronzeada.
— Esse é o Renato Marinho, meu colega do hospital.
Cheguei perto dele e olhei em seus olhos, quando sorriu estendendo
a mão, engoli saliva.
— Caralho! É o Gabriel? — Quase gritei, fiquei reticente, pois
parecia muito, mas o nariz estava maior. — Que filho da puta! — falei
surpresa e o vi de braços abertos, tive certeza de que não estava enganada.
A gente se abraçou, mas me afastei e encarei a Diana, que sorria.
— Que porra é essa? Eu vi você sofrendo.
— Eu sofri mesmo e foi por sofrer muito que o Toledo me contou.
— Era morrer assim ou ser alvo eternamente dos comparsas do
Afrânio e morrer de verdade, Bárbara. — Ele explicou.
— Tu sabia disso, tio?
— Claro que sim, a ideia foi minha. O Gabriel se tornou alvo desde
que enfrentou o Afrânio. Assim como você, só que com você ele não teve
sucesso. Você é fogo na roupa, menina. E tem uma mão pesada demais.
Céus! Desculpa por esconder isso e, por favor, não me bata de novo.
Rimos. Diana me abraçou de lado e beijou minha cabeça.
— Ele vai ficar aqui hoje, tudo bem? Houve um vazamento de gás
no prédio dele.
— Claro. — respondi a Diana e me virei para o Gabriel: — Eu tô
surpresa, mas feliz. De verdade. Não ia com a tua cara, você é folgado, mas
não gosto de nada que faça Diana sofrer e tua falsa morte fez. Então bem-
vindo, Renato. Feio pra caralho! — Riram.
— Vamos entrar, estou faminto. Bárbara é pior que mãe, não deixa a
gente tocar na comida antes da hora... — Augusto choramingou e entramos.
O almoço foi inteiro com Gabriel contando como se escondeu e
como se transformou em Renato, um cearense que estudou na universidade
federal e ganhou uma bolsa no Bueno Sanchez. Tinha 32 anos de idade, três
irmãos e perdeu a mãe ainda na adolescência.
Toledo não brinca em serviço!
Luís entrou pela porta da cozinha e se roçou em mim e depois na
Diana, que o pegou no colo e o beijou. Lecter dormia perto da porta.
— Você ainda fala com esse gato, Diana? — Gabriel perguntou.
— Claro. Sempre, né, meu lindão?
— Me largue, humana, está me envergonhando. Só vi uma
movimentação diferente e vim ver o que estava acontecendo. Não fique
feliz que não vou me demorar por aqui.
Rimos. Ela largou o gato no chão.
— Ele está namorando sério agora...
— Você é louca!
— O almoço estava delicioso como sempre. — Augusto elogiou
provocando um sorriso em mim.
— Digno de desabotoar o botão da calça! — Gabriel disse
desabotoando mesmo.
— Tu deixou de ser água de macarrão quando? — perguntei e Diana
soltou um riso de súbito, quase cuspindo o suco alcoólico que ela já havia
bebido três taças.
— Assim... — avisou e começou a tirar a roupa, ficando apenas de
sunga de banho.
— Gabriel! — Diana repreendeu. — Essa hora? Quando pegar uma
doença de pele não reclama.
— Vou me proteger. Preciso manter minha cor. E será só por meia
horinha.
Fomos todos para a piscina, Diana e eu ficamos embaixo de uma
cobertura numa espreguiçadeira, junto com Augusto, e o louco foi para o
sol.
— Você tá com a vida que pediu a Deus, Bárbara?
— Nunca ousei... — respondi, sorrindo e recebi beijo carinhoso da
Diana.
— Pois eu estou. Nunca pensei que ser outro fosse me fazer tão
bem. Ah, e Fortaleza é maravilhosa. Um dia eu volto para a minha terra. —
brincou, com um sorriso largo no rosto.
Depois de uns minutos chamei Diana para o quarto. Ela precisava
dormir e deixamos os dois sozinhos.
Tomamos banho juntas e fizemos amor no chuveiro. Na cama, fiz
uma massagem nela, que adormeceu profundamente. Acabei dormindo ao
lado dela.
Duas horas depois eu acordei e saí do quarto devagar. Fui à
academia treinar. Corri por uma hora e ela apareceu na porta com aquele
olhar que eu tanto amava.
— Descansou?
— Sim, me sinto ótima.
Parei a esteira e a beijei apaixonada.
— Fiz aquela mousse que você adora... — avisei e a beijei.
Ela suspirou e sorriu.
— Você quer me engordar! Eu vim fazer exercícios, mas já estou
começando a sentir uma fisgada na coxa.
Eu ri e a abracei, virei um colar no pescoço dela, que me abraçou
pela cintura.
— Eu te amo tanto, sabia?
— Eu também te amo, cada segundo mais que no outro. —
sussurrou e me beijou.
O beijo dela era umas das coisas que eu não enjoaria nunca. Tinha
certeza disso.
Gabriel ficou em casa por dois dias e conversei com a Diana sobre
ele morar com a gente.
— Eu não sugeri nada porque vocês tiveram os atritos de vocês, não
quis criar uma situação.
— Acho que podemos nos entender. Se ele folgar vai se ver comigo.
— Meu Deus, que coisa mais linda!
— Essa casa é imensa. Só quero te ver feliz.
— Você existe?
— Às vezes, sim...
Gabriel ficou muito feliz e se mudou no dia seguinte. Ouviu as
regras que impus e disse que seguiria todas. Eu duvidava muito, mas foi
melhor assim.
Diana saiu para trabalhar e nos despedimos como sempre fazíamos.
Raramente saíamos de casa, nossas “festas” eram feitas em casa ou íamos à
casa da Ângela. Mas chamei Diana para assistir a um filme que ela queria
muito.
— Eu encontro você no shopping, vou do hospital direto pra lá.
Combinamos e ela foi trabalhar. No final do dia me arrumei e pedi
um carro. Cheguei ao shopping faltando uma hora para a chegada dela,
comprei os ingressos e esperei. Li um pouco por um aplicativo e quando me
dei conta ela estava atrasada.
Vinte minutos! — Vi a hora e liguei para ela.
Não queria parecer paranoica, mas comecei a ficar preocupada.
— Atende, Diana, por favor!
Ela não atendeu. Liguei para o Gabriel, eles deram plantão juntos.
— Ela saiu daqui há uma hora e meia, Bárbara. Pelo amor de Deus...
— disse já demonstrando preocupação também.
Liguei de novo para o número dela. Mesma situação. Só chamava.
Falei com Augusto e ele já estava desesperado.
— O Afrânio foi resgatado do hospital pelos comparsas dele. A
polícia acabou de divulgar, Bárbara. Ele está com ela, Toledo acabou de
chegar aqui.
— Que porra de hospital é esse? Ele não estava preso.
Eu e minha mania de não ver tevê nem ficar atenta ao que acontece
no mundo depois de sair da casa da Ingrid.
— Passou mal de madrugada e precisou ser levado para o hospital.
Claro que foi tudo armado. Toledo acha que o diretor do presídio armou
tudo, pois ele ficou sem escolta policial no pronto-socorro. Estou em
cirurgia, vou finalizar aqui e estou saindo.
Liguei para o Gabriel de novo.

Diana

Curtir um cinema com a Bárbara, comer bobagem no shopping seria


muito bom para nós. Eu nem acreditava que finalmente estava com minha
família. Família de verdade. A mulher que eu amo, meu pai verdadeiro,
meu irmão postiço, meus filhotes. Eu sentia até medo, pois nunca estive tão
bem. Mas resolvi aceitar minha felicidade.
O dia foi cheio, corrido, maravilhoso. Almocei com Augusto e
entrei numa cirurgia que duraria seis horas. Sairia atrasada para encontrar a
Bárbara, mas resolvi avisar quando estivesse perto de ela sair de casa, assim
remarcaríamos. Mas a paciente morreu, teve uma complicação e acabou não
resistindo.
Tomei banho, troquei de roupa e procurei Gabriel, que estava numa
galeria assistindo Ângela e Augusto em ação.
— Renato! — chamei-o e o vi se virar. — Estou indo ao cinema
com a Bárbara.
— Tudo bem, cuidado... — Deu um beijo no meu rosto e voltou a
cadeira.
Na garagem peguei o celular para ligar para Bárbara, mas ele tocou.
— Alô?
— Oi, filha! — Era a voz do Afrânio.
Gelei completamente. Senti a garganta seca.
— Filha, está aí? Saudade...
— O que você quer, Afrânio? — perguntei, tentando manter a
calma.
— Sua cadela de guarda quer falar com você.
— O quê? Seu desgraçado... — Eu já estava desesperada, fiquei pior
quando ouvi um barulho no outro lado da linha e a chamada caiu.
Tentei retornar para o número, e só deu caixa postal. Sabia que o
condomínio era seguro, mas e se Bárbara resolveu sair antes da hora para
me encontrar e foi pega. Saí rapidamente do hospital e liguei para Toledo.
— Não saia de onde estiver, Diana. Eu estou indo...
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, fechei os olhos quando
estouraram as janelas do meu carro. Foi tudo muito rápido. Quando me dei
conta estava nas mãos de dois homens enormes. Tentei resistir, mas fui
desacordada com clorofórmio.
Não sei por quanto tempo fiquei sem sentido, mas acordei bem
zonza. Garganta seca, tentei me mexer e senti minhas mãos e pernas
amarradas. Comecei a tremer de desespero.
— Bom dia, filha! — Ouvi aquela voz asquerosa.
Afrânio emagreceu, a barba estava menor, o cabelo bem curto, mas
destilava o mesmo asco de sempre.
— O que você quer, seu monstro?
— Você não merece, mas vou te contar. Vou cumprir a minha
promessa e matar todos aqueles desgraçados que a cercam, bem aqui nesta
sala. Primeiro vai ser o meu belo irmão, aquele desgraçado traidor; depois o
detetivezinho imbecil, incorruptível; a delegada gostosa também entrou na
minha lista, sabia? Ela também não aceitou parceria, por isso veio para este
fim de mundo e agora se recusou a vir para o lado certo de novo. E por
último, a sua cadela de guarda. Todos terão o mesmo fim que aquele idiota
teu amiguinho que ousou atravessar o meu caminho.
— O que você fez com a Bárbara, seu desgraçado?
— Eu não fiz nada ainda, Diana. Do jeito que ela é louca, temo que
será difícil chegar aqui viva para o espetáculo...
— O que você está dizendo, seu maldito?
— É isso mesmo. Você é muito burra, Diana. Seu instinto passional
te faz agir por impulso. Meu pessoal a viu entrando no shopping. Não
poderíamos pegá-la de lá, já que resolveram se esconder muito bem. Mas
com você foi bem fácil, fiquei até envergonhado.
Burra. Impulsiva. Imbecil. Agora ele vai atrair todo mundo para cá
e isso aqui vai virar uma chacina. E esse miserável vai ficar impune. — Eu
estava de olhos fechados, em lágrimas.
Ouvimos um barulho e ele saiu rapidamente. Forcei as minhas mãos
para tentar me desamarrar, mas foi em vão. O lugar era pequeno, tinha uma
janela grande, do tamanho da parede com alguns centímetros de altura.
Fiquei de pé e pulei até a tal janela. Vi esteiras, máquinas de costura e
alguns moldes de chinelos de couro.
Olhei em volta e não vi nada que pudesse usar para me desamarrar.
Continuava forçando as mãos. Ouvi um tiro na janela e abaixei. Fiquei no
chão, rastejei até a cama, que era mais longe do vidro. Mais tiros. A janela
foi quebrada e gritei de susto. Afrânio entrou correndo, segurando o próprio
braço.
— Vamos sair daqui. — ralhou e estendeu a mão ensanguentada
para mim.
— Não consigo andar, Afrânio. O que está acontecendo?
— Cala a boca... — gritou e soltou as minhas pernas.
— Você está sangrando.
— Já mandei calar a boca. — gritou, ofegando e me segurou pelo
braço para sair.
— E aí, mah, beleza? — Gabriel surgiu, usando o sotaque cearense,
que adotara nos últimos meses. Ele segurava um bastão de madeira na mão
antes de sairmos.
Mesmo amarrada me debati e saí da mão ensanguentada do Afrânio
logo que vi Gabriel. Quando me afastei, Afrânio caiu depois da paulada que
levou.
— Cadê a Bárbara?
— Ela tá bem, fica tranquila. — Tirou uma seringa do bolso e
aplicou no velho miserável. Me desamarrou, depois arrastou Afrânio para a
sala e o colocou na cama.
— Fica aqui — pediu e me entregou uma arma. — Eu volto já.
Vi Toledo lutando contra os comparsas do Afrânio. Fiquei
paralisada, mas de arma em punho. Toledo batia e atirava contra vários
bandidos.
Parece que estou em um filme do Jason Statham! — Foi do ator que
me lembrei ao ver Toledo em ação. Usando terno, gravata, sapato social,
mas mostrando uma habilidade incrível.
Afrânio precisava voltar para a prisão. Lara invadiu o local, armada
e acompanhada por policiais. Também lutou com alguns bandidos, que
ignoraram suas armas. Houve tiros e mais luta corporal.
Nem sinal da Bárbara nem do Augusto. Comecei a ficar muito
preocupada. Aquilo precisava acabar. Eu ofegava quando apontei a arma
para o velho desacordado naquela cama. Estava tremendo. Não queria
aquele medo de novo e com ele vivo aquilo se repetiria sempre.
— Não, Diana, para, por favor! — Bárbara entrou e me impediu de
atirar. — Você nunca matou ninguém, não vai ser justo esse miserável. —
falou, ofegando e tirando a arma da minha mão enquanto me beijava.
Eu a abracei apertado. Sentia o meu corpo inteiro tremer.
— O que houve?
— Esse desgraçado só deu notícias hoje. Estamos em Vila dos
Lírios. Dentro da fazenda Dorneles.
— O quê? O tio da Ingrid está com ele?
— Silvio está no hospital. Um dos encarregados da fazenda aceitou
essa merda. Ele ia matar todo mundo, Diana. Tinha uns duzentos homens
aqui. — explicou e me abraçou de novo. — Eu tive tanto medo de perder
você.
Gabriel entrou novamente com dois policiais, que o ajudaram a
colocar Afrânio numa maca e saíram em seguida. Eu estava abraçada a
Bárbara quando Lara entrou, ela tinha o rosto machucado.
— Você está bem? — perguntou a mim e quando assenti, chamou:
— Vamos sair daqui.
Ela nos escoltou até a saída. Eu estava em choque. O corpo não
parava de tremer. A mesma reação que eu sempre tinha quanto passava por
algo do tipo: vômito.
Entrei na viatura da polícia com Bárbara ao meu lado com uma
garrafa de água.
— Calma! Acabou! Respira...
Lara deu partida e nos deixou em um hotel, fomos recebidas por
Augusto, que me abraçou.
— Ela não tá bem, precisa descansar. — Ouvi Bárbara dizer e me
conduziu ao quarto da suíte.
Tomei um remédio, minha cabeça latejava numa dor aguda. Depois
de um banho, fui para a cama. Bárbara ficou comigo o tempo todo.
Adormeci em seu colo.

Bárbara
Quando Diana dormiu profundamente, saí devagar da cama e pedi
que Augusto cuidasse dela, caso acordasse, e ele concordou.
— Cuidado! — Ele disse e peguei a minha mochila no chão, saí
batendo a porta.
Vi Gabriel no hall do hotel. Ele se levantou rapidamente ao me ver e
saímos. Me deixou no local que pedi, me entregou uma pequena mala de
primeiros socorros e voltou.
Entrei no quarto e vi Afrânio na mesa, acordado, amarrado e
olhando para o teto. O local estava cheio de caixas de papelão, que usei
para apoiar minhas coisas. O olhar que ele me lançou foi assustador.
— Oi, tio, tudo bem? E aí como foi a experiência na prisão? —
perguntei enquanto abria a mala que Gabriel me deu e tirava dela um jaleco
branco.
Silêncio.
Ele apenas ofegava como se trocar uma ideia comigo fosse piorar a
situação dele.
— Eu imagino que lá deva ser bem foda ou não teria fugido, né?
Mas acho que foi uma péssima ideia, tio. Lá tu tava seguro, cara. Que
merda tem na cabeça?
— O que vai fazer, sua louca? — esbravejou, finalmente.
Coloquei meu jaleco, as luvas, a touca. A máscara amarrei só a parte
de baixo e a deixei caída sob o meu queixo.
— Sua doente!
— Vamos brincar de médico. Eu serei a doutora Bárbara Perroni,
cirurgiã. E você, o meu paciente.
— Desgraçada. Vai se tratar. Sua louca, doente.
— Sou, né? — concordei e estalei a língua no céu da boca. — Sabia
que me sinto melhor sempre que um verme como você morre? A morte de
vocês é meu remédio. E hoje pretendo tomar uma bela dose.
— Você não vai ficar impune, sua desgraçada. Tenho pessoas que
vão atrás de você.
— Eu sei e é por isso que vou infernizar tua vida no inferno
também, pois vamos os dois pra lá hoje. — avisei e apliquei uma anestesia
no abdome dele.
— O que vai fazer?
— Uma toracotomia. — disse, sorrindo, me deliciando com seu
desespero. — Sabe, tio, a gente vira quase doutor assistindo séries médicas,
sofre, mas aprende muitos termos da medicina. A Diana me fala várias
coisas também, assisti algumas coisas no YouTube. Aquele período nas
mãos da Ingrid me deram o prazer de ter tempo de assistir várias séries de
tevê, e as que mais gosto são as policiais e os dramas médicos. Então pode
ficar tranquilo, eu sei o que estou fazendo. — garanti enquanto puxava uma
bandeja com instrumentos cirúrgicos. — Estou tão nervosa, é minha
primeira cirurgia...
— Sua louca! Socorro.
— Ninguém vai te ouvir, mas você vai atrapalhar o meu trabalho se
ficar gritando assim. Não quero que nada dê errado ou minha carreira já era,
tipo a tua, que devia nem ter começado, né? Adoraria ouvir teus berros
como faz com as pessoas, mas vou me privar disso. — Puxei a câmera e
posicionei sobre o abdome dele, que se viu no monitor.
— Tudo bem, eu deixo vocês em paz, eu sumo e nunca mais vocês
vão ouvir falar de mim, eu juro. Prometo, mas para o que está fazendo...
— Meu querido, tudo isso aí que você prometeu já vai acontecer
depois que eu terminar essa operação. Então seja mais convincente. —
Peguei um barbeador e espuma e enchi a barriga dele. — Você achava
mesmo que eu ia atrás da Diana sozinha? Ela foi impulsiva, não tem
malícia, mas eu não sou assim. Tenho suporte de várias pessoas... e outras
várias físicas também. — comentei, depilando a pança dele. — Ninguém
me deixaria fazer uma coisa dessas, então você foi bem burro. — Bati o
barbeador na beirada da maca e limpei a barriga com um pano.
— Quer dinheiro? Eu tenho dinheiro, me diz quanto e você terá?
— Não quero dinheiro. Vou te dar mais uma chance de negociar, tá
bom? — avisei e peguei uma bomba na mochila e coloquei ao lado.
Peguei vários explosivos e fiz essa bomba. Não testei, é lógico, e
nem vou contar como fiz porque já peguei de professora de criminoso,
então você que tá lendo, não vai saber como construir uma bomba por
mim, ok? Agradeço a compreensão.
— Acredita que não me deram sequer uma enfermeira para me
ajudar aqui. Injustiça. — avisei, debochadamente enquanto colocava tudo o
que ia usar bem perto de mim. — Pó hemostático, linha para sutura,
seringas de adrenalina, para o caso de precisar. Hum, acho que está tudo
aqui. Se eu for pega pela polícia, o mundo desaba, mas não conto que o
Gabriel me ajudou. E você fique de boca fechada, hein? X-9 morre cedo...
— Me diz o que você quer? — perguntou novamente tremendo,
suando, ofegando de desespero.
— Quero a mãe da Diana de volta. Devolva todo o dinheiro que
roubou do povo brasileiro esses anos todos...
— Isso é impossível, você não está me dando chance real. O que vai
fazer? Faz logo de uma vez...
— Sabia que você é o primeiro a ter pressa pra morrer? É
decepcionante! Mas vou ser breve. Diana está me esperando, está
abaladinha demais. — Passei o dorso da mão na testa, secando suor. —
Você já ouviu falar em névoa rosa?
Ele se debateu quando me viu passar o afiado bisturi na barriga dele.
E gritou usando todas as suas forças. Peguei massinha de modelar e mandei
abrir a boca.
— Louca, desgraçada. — disse por entre os dentes.
Usei o velho truque e provoquei dor, enfiei a massa na boca dele e
tapei com fita. Peguei o bisturi e o ouvi emitir um gemido por baixo da
massa.
Usei o pó para estancar o sangramento e notei que só o pó, por
maior que fosse a quantidade, não o impediria de morrer de choque
hipovolêmico em poucos minutos.
Agi rápido e consegui fazer o que eu queria. Coloquei a bomba
dentro do abdome dele e fechei. Mesmo fraco, ele ainda se debatia, lutando
contra as minhas ações. Segundo Gabriel, o efeito daquela anestesia
passaria em pouco tempo. Então ele sentiria o prazer de virar névoa.
Comecei a me desmontar de doutora Bárbara, joguei tudo dentro da
mala e peguei a minha mochila. Vesti meu casaco com capuz. Verifiquei se
estava com tudo que precisaria levar de volta. Tinha apenas cinco minutos.
Peguei um galão de gasolina e espalhei por lá, joguei na mala que usei para
levar os instrumentos cirúrgicos também e na minha mochila.
— Adeus! Você foi ótima! — disse para a bolsa, ainda ouvindo os
gemidos do velho com os segundos de vida contados.
Joguei o combustível em tudo. Arranquei a fita da boca dele, retirei
a massa com ajuda de um bisturi e saí. Olhei em volta e não vi ninguém.
Ouvi os gritos do desgraçado enquanto corria. Pulei a fita zebrada e
consegui me afastar uns quatrocentos metros até ver a casa da Nilza ir pelos
ares.
Engoli saliva ofegando. Todas as coisas do terceiro andar da casa da
Ingrid estavam ali dentro. O sobrado da Eulália estava à venda. Nilza foi
morar na casa do Silvio para cuidar dele e sua pequena casa virou depósito
de tralha.
— Agora é uma fogueira!
Eu estava completamente eufórica. Emiti um grito vibrante olhando
para o céu, de braços abertos para liberar aquela adrenalina. Respirei
profundamente e peguei o celular. Gabriel chegou cinco minutos depois.
Arregalou os olhos ao ver a fumaça subindo com a ajuda das chamas.
— Você destruiu a casa?
— Vamos embora, preciso ver a Diana...
— Como foi? Eu tô louco pra saber? Fiquei aqui perto esperando
você ligar...
— Vai continuar louco. — Encerrei o assunto e ele deu partida.
— Sério, cara?
Não falei mais nada. Chegamos ao hotel, fui direto para o banheiro.
Tomei banho e me deitei ao lado da Diana que dormia. Ela se mexeu e a
beijei com carinho, acalmando-a. Senti seu abraço apertado e fiquei ali
ouvindo seu coração bater tranquilamente enquanto o meu se acalmava.
Quando acordamos Augusto mostrou o noticiário da noite avisando
sobre a fuga de Afrânio.
Eu estava no colo da Diana, que me abraçava por trás no sofá, vendo
as imagens da fazenda Dorneles na hora da invasão da polícia.
— A polícia invadiu uma fábrica da fazenda Dorneles, na zona
rural do município de Vila dos Lírios/SP, cativeiro onde o ex-senador
Afrânio Sobreira mantinha a médica Diana de Castro Sobreira, sua
sobrinha, sequestrada a mando do próprio ex-senador, na noite de ontem,
em frente ao hospital Bueno Sanchez, onde ela trabalha. Afrânio estava
preso e após passar mal foi levado a um hospital municipal da capital
paulista, de onde foi resgatado por comparsas. As investigações continuam
para descobrir como a fuga ocorreu. Durante a invasão, a namorada de
Diana, Bárbara Perroni, desobedeceu às orientações das autoridades e
tentou, sozinha, resgatar a jovem médica. Infelizmente, ainda não se sabe
como, ela acabou sendo morta por um dos bandidos.
Eu saboreava aquela notícia como quem come manga madura.
— Infelizmente, Afrânio Sobreira conseguiu fugir. A doutora Diana
passa bem, em casa, mas está desolada e não quis falar com a nossa
equipe. Apenas avisou que vai deixar o país, não confia em nossa
segurança pública. Quem confia, não é mesmo? Diante de tudo o que
aconteceu, fica bem difícil confiar em qualquer justiça daqui, mas vamos
acreditar que o Afrânio será encontrado, voltará para a prisão e pagará
por todos os seus crimes.
Diana me apertou e beijou meu rosto carinhosamente. Limpou o
próprio rosto, estava em lágrimas. Beijei sua mão e sussurrei:
— Eu te amo!
— Também te amo muito. — Engoliu saliva e meneou a cabeça. —
Isso nunca vai acabar? Quase morri só de pensar que aquele maldito estava
com você.
— Acabou. — garanti e me virei para encará-la.
Limpei seu rosto com os polegares.
— Aquele maldito nunca mais vai tirar nossa paz.
Ela me apertou em si e suspirou profundamente. A próxima nota no
mesmo noticiário foi sobre o falecimento de Silvio, no hospital.
— O fazendeiro estava com um avançado câncer no pâncreas e não
resistiu ao tratamento tardio. Segundo a polícia de Vila dos Lírios, quando
o encarregado da fazenda Dorneles, Altamir Oliveira, morto na ação da
polícia, permitiu a entrada de Afrânio e seus comparsas, Silvio Dorneles já
estava hospitalizado.
Ela foi contar sobre a vida de Silvio, que era pioneiro na região dos
Lírios, começou como vendedor de lírios e se tornou o maior fazendeiro da
região.

Diana

Quando voltamos para o Rio, Ângela me fez uma proposta


irrecusável:
— A filial do Bueno Sanchez em Honolulu é nova ainda, você pode
chefiar o trauma. O Rei Plaza tem um bom restaurante, conheci as
habilidades da Bárbara, tenho certeza que se dará muito bem lá.
— Mas e o meu tio e o Gabriel, não vou conseguir ficar tranquila.
— Os dois são ótimos médicos, Diana. E vou ficar bem mais
tranquila em saber que três excelentes médicos estão atuando no meu
hospital. Fica tranquila. Infelizmente o Brasil é isso.
Eu aceitei a proposta e comuniquei à Bárbara que quis fazer uma
festa para comemorar e convidou nossos amigos, Toledo, Lara, Jéssica,
Ângela e família, Excel e Tia Marly, Neila e até Fred e família. Seria bom
depois do último susto sentir que estávamos vivas e nos despedir de nossos
amigos.
Hope deu um filhote de cachorro para Jéssica, disse que ela
precisava de companhia até encontrar o amor da vida dela. Rimos, mas torci
para que aquilo acontecesse logo. Gabriel estava no som junto com Paco,
filho de Ângela, e Magali, amiga dele. Meu pai conversava com Caio, o pai
de Hope.
Lara chegou e me abraçou.
— Estou muito feliz por você, Diana.
— Acabou o sofrimento, né? Mas e você não pensa em voltar a
morar aqui?
— Penso, sim. Em breve peço minha transferência. Estou
conhecendo uma pessoa... — confessou, desviando o olhar.
— Sério? — perguntei, sorrindo de felicidade. — Ah, que coisa
maravilhosa, Lara. Quero conhecer.
— Você vai, em breve.
Bárbara chegou perto de nós sorrindo e cumprimentou Lara.
— Eu soube, dona delegada! A senhora mandou bem...
Lara ficou vermelha, aquilo me deixou feliz. Depois de tudo o que
passou, ela merecia.
Neila chegou acompanhada de um rapaz. É muito mais bonita
pessoalmente. Chegou falando com os convidados e fomos recebê-la.
Depois dos cumprimentos, Bárbara foi chamada por Paco e pediu licença
saindo de perto de nós. Neila foi até Lara e a abraçou, tirando-a do chão.
— Como está? — perguntou, verificando como uma mãe
preocupada. — Não volte para São Paulo sem passar em casa, ok?
— Tá bom. Vim direto, mas vou lá, sim. Agora preciso de álcool. —
avisou, saindo.
— Essa minha irmã é muito teimosa, Diana. E vocês como estão?
— Ótimos. Parece que algo foi tirado das minhas costas.
— A Ângela me contou que vocês vão para aquele paraíso.
— Ângela está sendo maravilhosa com todos nós. O Havaí será o
nosso renascimento de verdade. Vou ser chefe do trauma em Honolulu,
Bárbara vai trabalhar no Rei Plaza. Mas para a imprensa vamos para a
Europa. Enquanto cada membro dessa quadrilha não foi exterminado não
estaremos seguros para voltar.
Conversamos mais um pouco sobre outras coisas e nos juntamos aos
convidados. Fui procurar Bárbara, que fazia uma competição boba de queda
de braço com Paco, recebendo torcida de Magali e Gabriel. Ela estava feliz.
Se divertindo. Venceu o músico e foi ovacionada. Me abraçou quando me
viu e me beijou.
— Você deve tá roubando... — reclamou Paco.
— Você que é um franguinho, fracote. — retrucou, rindo ainda nos
meus braços.
Vimos Ângela e Fabí dançando e nos juntamos a elas. Logo todos
dançavam também. Até Augusto dançou com Jéssica. Toledo ficou
conversando com Lara e tia Marly numa mesa.
A festa acabou quase de manhã. Bárbara e eu nos deitamos exaustas
e dormimos imediatamente.
Saímos do quarto quase duas da tarde e já vimos Gabriel na piscina.
Excel dormia, tia Marly preparava o almoço. Toledo conversava com Lara,
que estava numa espreguiçadeira ao lado de Jessica.
O detetive se levantou e veio em nossa direção. Entregou uma
carteira de habilitação com o novo nome da Bárbara.
— Eloá Trindade! — disse e soltou um riso de súbito. — Três
deusas. Olha só, amor. Sua nova mulher... — brincou, sorrindo e me
entregou a carteira.
Gabriel chegou perto para ver a nova identidade, que serviria para
viajar. A Eloá usava óculos e cabelos cacheados, simples de compor.
— Você é gaúcha agora. Nada de brother, só guri.
— Você pode até ter se tornado Renato, mas eu me recuso a ser
outra pessoa. — disse com convicção e o empurrou na piscina. Toledo
voltou para onde as meninas estavam.
Eu sorri meneando a cabeça e abracei minha deusa, que sorria.
— Eu já disse que amo vocês?
— Nós te amamos também. — declarou me encarando e me beijou.
Gritou apontando para Lara que colocou Believer de Imagine
Dragons para tocar.
Vê-la feliz daquele jeito me fez enxergar que tudo aquilo precisou
acontecer para chegarmos até ali, fortes e com a certeza de um futuro
juntas. Se eu já amava todas as suas versões estou aprendendo a amar as
minhas que cada uma delas cativou.
Viajaríamos os sete, Augusto, Gabriel, Luís e a namorada, presente
de Hope, Lecter, Bárbara e eu, dali três dias e aquele momento de despedida
dos nossos amigos era apenas um “até breve”, pois eu não pretendia ficar
fora para sempre.
Então acredite! Seja sua motivação! Suas versões precisam de sua
força.
Até logo!
Sobre o autor
Pippa Rivera
Pippa Rivera começou a contar histórias antes mesmo de começar a
escrever, com menos de cinco anos de idade. Suas bonecas davam vida aos
seus personagens. Transformava seus brinquedos em cenários para as
histórias.
Achava que os livros eram feitos por seres mágicos, que liam mentes,
adivinhavam futuro e viviam em um universo paralelo. Pensava que se isso
fosse real, ela seria uma fadinha, parte desses seres, seria mágica também.
Conversava com bichos de pelúcia, com bichos de verdade, com plantas...
Ninguém os via responder, mas em sua mente, recebia as respostas, sim, o
que era suficiente para ela. Aquele era o seu mundo, seu universo particular.
Um lugar comandado apenas por ela.
Quando aprendeu a escrever, começou a passar para o papel tudo aquilo.
Nem entendia direito o que estava fazendo, mas já amava, já sabia que era
aquilo que queria fazer para sempre.
Começou a escrever sobre LGBTQIAP+ em 2012 (época da primeira versão
de As Vidas de Um Amor), dando preferência para enaltecer as minorias.
Suas histórias são peculiares, subversivas e regadas a diferenças sutis e
necessárias, sem fugir do amor que precisa sempre prevalecer de forma
natural.
Esse universo particular agora é chamado de Pippaland, um multiverso
repleto de personagens, histórias, gatilhos, dramas, crossovers e muito amor!
Livros deste autor
Amores de Paola

Sim, é ela: Paola Abranches de um jeito que você nunca viu. Sem máscaras,
sem filtro... Nua e crua, à flor da pele...
Depois de figurar como coadjuvante em tantas histórias de Linier Farias e
Pippa Rivera, Paola finalmente conquistou um palco exclusivo para exibir
seu espetáculo.
Prepare-se para conhecer a aventuras vividas pela personagem mais
carismática de Pippaland em busca de um amor derradeiro para chamar de
seu.
Amores de Paola é muito mais do que uma coletânea de contos que se
entrelaçam. É uma história cheia de humanidade, que nos provoca a refletir
e nos ensina a enxergar a perfeição como algo relativo.

Amor... e Novos Dilemas


Spin-off de Amor... e Outros Dilemas e If True Love - O Código da Atração
de Linier Farias.
Depois de terminar um relacionamento puramente sexual com Alice,
Giselle sai de Fortaleza decidida a recomeçar. É condenada por calúnia e
difamação quando acusa, injustamente, a ex por assédio sexual e ver sua
vida se transformar em um inferno ao precisar prestar serviço comunitário
em um abrigo para crianças.
Érica está em depressão profunda quando Neila a leva para trabalhar no
Instituto Anjos de Resgate no Rio de Janeiro; a pedagoga se torna
coordenadora da ala infantil da instituição, desempenhando um excelente
trabalho e aprendendo a lidar com a morte precoce do filho de cinco anos
de idade.
Depois de uma desilusão amorosa, se envolver com Giselle está fora de
cogitação, mas como no coração não se manda, a coordenadora vai precisar
ser forte para resistir à bela morena.
Grande Amor
Carina Bragantino é uma empresária gaúcha, que se apaixona pela voz de
Helô Marinho, uma locutora de programa romântico de uma rádio de Porto
Alegre. Mesmo não se achando romântica, devido a sua vida prática e
regada somente a trabalho, Carina se vê sonhando em viver um amor. E em
busca de uma interação com Helô, escreve mensagens românticas e envia
para o programa.
A radialista se encanta pelas belas palavras da empresária, que escreve
mensagens de amor, mas não tem um amor.
Helô Marinho é conhecida por juntar, reconciliar e manter casais
apaixonados. Acha que nasceu com essa missão até receber as mensagens
de Carina e almejar ser o alvo daquele romantismo.
Sem muitas expectativas e procurando uma amiga, a locutora marca um
encontro com a empresária surpreendo-a e se encantando por ela.

As Vidas de Um Amor
ROMANCE ESPÍRITA SÁFICO
Ângela Bueno Sanchez é uma médica de família rica e tradicional, que
mora no Rio de Janeiro. Independente e bem-sucedida, vê-se sentindo algo
inusitado, algo fora dos padrões que a sociedade estabelece, algo
abominável aos olhos de muitos, inclusive de seu pai. Ângela está
apaixonada por uma enfermeira, a quem devia odiar, de quem devia ficar o
mais longe possível, mas acaba notando que não consegue forças para
tamanha façanha.
Fabiana Andrade volta ao leito familiar depois de cometer um grande erro e
ser mandada para viver na Bahia com uma tia que a renega e a joga na rua.
Sendo assim, passa por várias provações até se arrepender totalmente. Em
meio à uma tragédia, reencontra e se encanta por Ângela, apesar de saber
que poderia despertar apenas seu desprezo.
Depois de sucessivas vidas de desencontros e ganâncias, as duas almas se
encontram novamente para viver um amor inesquecível, inabalável, que
nem a maldade humana foi capaz de destruir.
Junto com essa nova chance vêm também todos os seus algozes do passado.
Será que munidas apenas de sentimento puro, serão capazes de viver esse
amor?
Lua Cheia
O perigo pode estar onde você menos espera!
E isso é o que Rebeca, uma atendente de restaurante de beira de estrada
descobre nas noites de lua cheia, na pacata e misteriosa São Lívio. A
atendente vive com a esposa, a professora Glenda, e já está acostumada a
ouvir histórias assustadoras dos clientes caminhoneiros. Porém, Rebeca se
vê aterrorizada ao presenciar vítimas muito próximas de tragédias que são,
até então, inexplicáveis.

Estranho
Estranho é pensar que o amor verdadeiro pode ser tão facilmente posto em
xeque.
Erley é um jovem estudante de Direito, que mora com os pais; conhece
Leonel, um assistente administrativo, durante um estágio em uma empresa
de advocacia. Os dois se apaixonam e vivem um relacionamento intenso,
mas precisam enfrentar um grande inimigo.
Um grande sentimento é capaz de suportar o desconforto de 'reiniciar'?
Sobre o autor
Linier Farias
Linier Farias é amante das comedias românticas. Começou a escrever
literatura com temática de amor entre mulheres em 2017, seguindo tal
gênero com uma pitada de drama e sempre priorizando o final feliz.
Sua primeira história foi Amor... E Outros Dilemas, abordando o tema
violência doméstica. No ano seguinte, nos entregou a cômica e sensual
história de amor entre Alice e Isabela, em If(true){love}; //O Código da
Atração.
Em 2020 venceu o prêmio Wattys, na categoria Mistery & Thriller, com
Janela Quebrada (2019), história que escreveu em parceria com Pippa
Rivera. Em 2022 nos presenteou com O Amor Está No Ar, Salve-Se Quem
Puder e Selfie Sem Filtro, história que a desafiou a sair de sua zona de
conforto e escrever sobre um tema polêmico, o qual não possui lugar de
falar: transgeneridade. E recentemente mais uma parceria com Pippa Rivera
em Amores de Paola. Em dezembro de 2022, lançou Traiçoeiro em parceria
com Diedra Roiz.
A cearense, devoradora de romances, é casada e vive em Fortaleza com a
esposa, a filha de três anos e a filha de quatro patas.
Livros deste autor
Traiçoeiro
Desde o dia em que soube do suicídio de sua namorada, vinte anos atrás,
Paula largou a condução de sua vida à mercê da inércia. Até conhecer a
jovem Bruna, sua aluna, uma cópia fiel da primeira e única mulher que
amou.

Amores de Paola
Sim, é ela: Paola Abranches de um jeito que você nunca viu. Sem máscaras,
sem filtro... Nua e crua, à flor da pele...
Depois de figurar como coadjuvante em tantas histórias de Linier Farias e
Pippa Rivera, Paola finalmente conquistou um palco exclusivo para exibir
seu espetáculo.
Prepare-se para conhecer a aventuras vividas pela personagem mais
carismática de Pippaland em busca de um amor derradeiro para chamar de
seu.
Amores de Paola é muito mais do que uma coletânea de contos que se
entrelaçam. É uma história cheia de humanidade, que nos provoca a refletir
e nos ensina a enxergar a perfeição como algo relativo.

O Amor Está no Ar, Salve-se Quem Puder


Após ser trocada pelo noivo no dia do seu casamento e descobrir que a
empresa de sua família estava beirando a falência, Caterine não teve outra
saída a não ser participar de um golpe do baú inusitado, planejado pelo seu
irmão, contra Juliana, uma jovem empreendedora de origem humilde, que
venceu na vida com muito esforço. O que Caterine não imaginava, no
entanto, era que todas as suas certezas, de certas não tinham nada; e que o
mundo real é completamente diferente do conto de fadas em que vivera até
então.
Selfie Sem Filtro
Bianca e Marcela são diferentes em tudo, da personalidade à realidade em
que vivem. Mas após se conhecerem, são tomadas por uma paixão
avassaladora e a vida não lhes oferece outra opção, a não ser a de ficarem
juntas. No entanto, para viver esse amor, elas vão precisar aprender a lidar
com os preconceitos que nem sabiam que tinham.

If(true){love}; //O Código da Atração


Comédia Romântica sáfica

Quando a ansiosa e metódica Isabella é convidada a integrar a equipe de


uma das principais empresas de tecnologia do país, ela vê sua vida simétrica
e organizada ser colocada de pernas para o ar ao ter que trabalhar ao lado da
intempestiva e impetuosa Alice. O resultado dessa parceria inusitada é uma
divertida relação, cheia de idas e vindas, tapas e beijos e muita confusão.

Amor... E Outros Dilemas


Nem Clara e nem Júlia estavam dispostas a sair de casa àquela noite, mas
ambas, convencidas por seus respectivos amigos, resolveram ceder. Clara,
racional, realista, dominadora de seus próprios desejos, conhecida por
muitos como a rainha do gelo; Júlia, passional, apaixonada, apaixonante,
conhecida por todos como a rainha do drama. Dois mundos diferentes, duas
personalidades distintas. Um encontro inesperado, tão inesperado quanto às
sensações provocadas pelo momento. Mas será que personalidades tão
diferentes conseguirão lidar com os diversos dilemas que montarão
acampamento nesse relacionamento?

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