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1.
Há dois dias viajava sem parar. De rodoviária em rodoviária
eu trocava de ônibus mais do que de roupa. Aliás, há dois dias
que não sabia o que era um banho. Estava cansada, querendo
chegar a algum lugar. Em toda cidade que passava, a impressão
era de que estava perto demais. Precisava ir para mais longe.
Cheguei a uma cidade que me pareceu um tanto quanto
estranha. Não era grande, mas seus prédios opulentos me
lembravam um pouco os da minha cidade, por isso, da rodoviária
mesmo, tratei de embarcar em um outro ônibus qualquer.
Qualquer um que me levasse para longe das minhas lembranças
e pesadelos. Olhei as casas, a praça central e a igreja. Nada me
agradou. Vi um ônibus velho com pessoas simples entrando nele.
Nem tive a curiosidade de saber para onde ele ia. Simplesmente
entrei. Era a última. O motorista me olhou e antes que ele
dissesse algo, estendi a mão e lhe entreguei o dinheiro. Ele nem
agradeceu, nem olhou direito para mim. Devolveu-me uma
moeda de troco, fechou a porta e partiu. Tive a impressão de que
ele esperava apenas por mim.
Andei pelo corredor procurando um lugar vago. O ônibus
estava cheio. Homens, mulheres e crianças ocupavam os
assentos. Parecia não ter lugar para mim. Só lá no fundo foi que
vi um lugar. Parecia reservado para mim. Uma mulher de vestido
florido estava sentada no canto. Quando me viu, esboçou um
sorriso e tirou sua sacola que ocupava o banco ao lado. Sentei-
me. Dali eu via o motorista e todo o esforço que ele fazia para
dirigir aquela lata velha que ia de encontro aos buracos do
asfalto, sem muita cerimônia. Lá dentro parecíamos passageiros
de uma nau em plena tempestade, sendo jogados de um lado
para outro. Não me incomodava com isso. Importante mesmo era
que eu estava indo embora para um lugar ainda mais distante.
Mergulhada em pensamentos, nem me dei conta de que era
observada. A mulher sentada ao meu lado de vez em quando se
virava para me olhar. Parecia querer falar comigo. O vento que
entrava pela janela aberta desarrumava seu cabelo preso que
insistia em não ficar em ordem. Ela falava alguma coisa inaudível,
passava a mão na cabeça e procurava por um grampo para
recompor a cabeleira ruiva e rebelde. Mesmo assim ela não
fechava a janela, parecia sentir muito calor. Eu fingia que não via.
Não queria conversa. Estava bem ali sentada, quieta, sem ter que
gastar palavras. Por isso, quando ela virava o rosto para mim, eu
desviava o olhar e olhava para o outro lado. Assim foi por algum
tempo, até que num relance nossos olhos se cruzaram. Então
não teve jeito.
– Está indo para Novo Ipê? – perguntou ela sorrindo, limpando
o suor que lhe escorria pelo rosto.
– É pra lá que este ônibus vai? – perguntei, demonstrando que
não estava muito a fim de conversar.
– É. Este é o único ônibus que vai pra lá. Quem perder, vai ter
que esperar o da tarde, que é este mesmo.
– Só à tarde é que ele volta?
– Só. Vivemos naquela cidade isolados de tudo. Antigamente
até havia o trem, depois ele parou de ir até nossa cidade, e
ficamos dependendo deste único ônibus que, do jeito que está
indo, não sei se consegue chegar.
De fato, o motor do ônibus parecia falhar, mas o motorista,
quanto mais o motor gemia, mais ele pisava e, de buraco em
buraco, ele ia levantando poeira e seguindo em frente.
– O asfalto acabou – falei, notando que agora tudo ao redor
era uma poeira amarela, fina, que coloria o mato da beira da
estrada.
– É a primeira vez que você vem por essas bandas?
– É.
Ao responder, a mulher virou-se de vez para mim e me
encarou. Depois olhou para a mochila no meu colo e falou:
– Você não tem nenhum parente na cidade?
– Não.
– Está fugindo? – perguntou, sem nenhuma cerimônia.
Eu respondia às suas perguntas de forma mecânica. Meus
olhos estavam presos no infinito das montanhas e das matas
verdes lá fora. Mas quando ela me perguntou isso, fui obrigada a
encará-la e responder:
– Não. Pareço uma fugitiva?
Ela riu e acertou a sacola que carregava no meio das pernas.
Ela usava um vestido florido, abaixo do joelho, que não lhe
permitia encostar a sacola no chão.
– Claro que não, desculpe. É que você me parece tão jovem e
viajando sozinha...
– Tenho dezoito anos – menti, com certa tranquilidade. Perdi a
conta de quantas vezes, desde que saí de casa, tive que dizer
essa mentira.
– Nossa, não parece. Você tem cara de menina mais nova.
Não dou mais de quinze anos para você.
– As aparências enganam – falei, voltando a olhar para fora e
torcendo para que o ônibus chegasse logo. Queria me livrar
daquela mulher, das suas indagações e da sua conversa mole.
– Tenho um filho da sua idade... – notei que ela me olhou no
rosto. Acho que esperava uma reação. Não disse nada. Não
queria dizer. Queria ficar quieta no meu canto. Mas ela insistia: –
Chama-se Marcelo. Um bom menino. Pena que tem problemas.
Virei-me para ela, achava-me a única portadora de problemas.
– O que ele tem?
– Problemas de cabeça. Ele não é muito normal. Sabe, foi um
parto muito difícil, pensei que ele não fosse resistir...
– Ele é louco?
Ela riu da minha ingenuidade.
– De jeito nenhum. Os médicos não sabem direito, mas ele tem
dificuldade de aprender as coisas, lutei para fazer com que ele
aprendesse as primeiras letras, mas foi muito difícil. Ele também
tem dificuldade em falar. Não pronuncia as palavras
corretamente. Você não imagina como é difícil para mim, que sou
professora, ter um filho que não consegue aprender.
– Você é professora de quê? – perguntei achando, de repente,
interessante a vida daquela mulher que me parecia um tanto
quanto simples no trajar, mas muito culta e inteligente no falar.
– Sou professora de crianças. Ensino o bê-á-bá para os
pequenos.
– Deve ser um saco aturar aqueles pirralhos.
– Não é não, tudo é uma questão de dom. Cada um tem o seu
dom. Eu tenho o meu, você tem o seu. Deus, na sua santa
misericórdia, nos moldou para sermos diferentes nas profissões e
iguais no amor.
Remexi-me no banco. Aquele assunto me incomodou. Não
gostava de falar de Deus. Era algo que me deixava um tanto
quanto inquieta.
– Deus! – exclamei.
– Sim, Deus, você acredita nele?
Era exatamente a pergunta que eu queria evitar. Aquela mulher
na minha frente, com aquele vestido que lhe cobria as coxas,
deixava claro na sua postura ser evangélica. E eu, uma garota
quase descrente de tudo.
– Não tanto como a senhora. A sua fé deve ser enorme, do
tamanho daquela montanha – apontei para o monte mais alto que
se avistava dali.
Ela ficou satisfeita ao ouvir aquilo. Sabia me safar das
questões polêmicas. Aprendi com papai a ser esperta e
dissimulada, e dessa forma lutar com os leões e as zebras.
– Deus é tudo na minha vida. Se não fosse ele, não teria
conseguido suportar a dor de ver meu filho sendo renegado pelos
outros. Por conta daquele parto, fiquei estéril, como aquela terra
do sertão que não dá nenhuma flor.
– E o seu marido?
– Morreu. Não sei se de desgosto, ou se foi a bebida, mas um
dia ele simplesmente se deitou, dormiu e nunca mais acordou.
Ficamos sozinhos. Sorte eu ter um emprego.
Assim fomos conversando. Pude ver que as desgraças estão
espalhadas por aí. Por mais longe que se vá, há sempre uma
triste história para ser contada. Só que, de longe, a minha era
muito mais triste e tenebrosa.
– Falei muito de mim, e você não falou nada. E os seus pais?
Já estava esperando por aquela pergunta. Havia decorado a
resposta, pois sabia que por várias vezes teria que respondê-la.
– Não tenho pais. Eles morreram. Vivo em um convento lá na
capital. Estou de férias e resolvi passear por estes lados.
Ela arregalou os olhos. Pela sua reação, esperava tudo, menos
ouvir isso de mim.
– Vai ser freira?
– Se Deus quiser e a minha fé permitir – respondi, encenando
e fazendo o sinal da cruz. Na verdade, fazia aquilo para brincar
um pouco com aquela senhora.
– Eu sou evangélica – respondeu, como se estivesse
desapontada comigo.
– Percebi. Mas somos todos cristãos, adoradores do mesmo
Deus – falei, buscando uma certa conciliação.
– Isso é verdade.
– O que a senhora faz neste ônibus? – perguntei, antes que
ela me fizesse uma nova pergunta.
– Estou voltando para casa. Fui buscar o remédio que o
Marcelo precisa tomar. Lá em Novo Ipê a farmácia é tão pequena
que não tem o remédio que ele precisa tomar. Todo mês eu faço
esse trajeto. Aproveitei que hoje é sábado e fiz essa viagem que
não é tão longa assim. Longa deve ser a sua viagem. Há quantos
dias viaja?
Pronto, não teve jeito, lá veio ela com perguntas. Ela sempre
conseguia colocar uma pergunta no meio da sua resposta.
– Dois dias, mas não estou com vontade de falar dessa minha
viagem.
– Desculpe, prometo não fazer mais nenhuma pergunta –
levantou os olhos em direção à janela e apontou com o dedo: –
Olhe, estamos chegando.
Pela janela vi uma pequena cidade encravada numa colina
verde, ao lado de uma represa de água azul cristalina. Parecia
um cenário de filme paradisíaco.
– É só aquilo a cidade? – perguntei admirada. Nunca tinha
visto uma cidade tão pequena que cabia inteira no meu olhar.
A mulher sorriu. Achou engraçada a forma como falei e
respondeu em seguida:
– É, mas tem muitos sítios e fazendas. Estamos passando
neste momento por terras de fazendeiros da região.
Olhei em volta e vi o gado pastando e uma imensa plantação
de café que se estendia pelo vale e quase subia a montanha.
Perdi-me naquela imensidão e o silêncio pairou entre nós de tal
forma que nem percebi quando o ônibus entrou na cidade e parou
em frente à pracinha com coreto e chafariz. Todos se ergueram;
fiz o mesmo, sendo acompanhada pela mulher. Ela parecia ter
sido tomada por pensamentos.
– Chegamos – falei para ela como despedida enquanto rumava
para a porta.
– É verdade. Seja bem-vinda a Novo Ipê. Espero que goste
daqui.
Eu desci e fiquei parada na calçada. Era quase meio-dia e as
ruas estavam cheias. Não sabia o que fazer, nem para onde ir.
Voltei meus olhos para a mulher. Ela acabava de encontrar-se
com o filho. Os dois se abraçaram e pude notar o carinho que
havia entre eles. Naquele momento fiquei pensando sobre a
relação entre pais e filhos. Nunca acreditei nessa tal relação,
odiava toda e qualquer concepção que pudesse me levar a
pensar em pai, mãe, irmãos... enfim, família.
Precisava procurar um hotel, uma pensão, algum lugar que
não pedisse documentos. Eu era uma fugitiva, e como tal deveria
me portar.
– Este é o meu filho, Marcelo – levei um susto e virei-me dando
de cara com a mulher e seu filho enorme, quase um metro e
oitenta, me fazendo parecer menor ainda do que o meu um metro
e sessenta.
Sorri demonstrando simpatia e, mecanicamente, aproximei-me
dele, quase me pendurei em seu pescoço e dei-lhe um beijo
na bochecha saliente, quase rosa. Não me dei conta da besteira
que fizera. Ele arregalou os olhos e pôs a mão exatamente no
lugar em que beijei. Percebi, naquele momento, que ele era uma
pessoa muito especial.
– Fala alguma coisa, Marcelo – falou a mãe, tentando retribuir
a minha gentileza.
– Ela me beijou no rosto – falou ele, ainda boquiaberto.
– Ela é moça da cidade grande, lá é comum as pessoas se
cumprimentarem assim – olhou para mim e falou: – Eu lhe disse
que ele tem problema.
Fiquei sem graça. Não esperava uma reação desse tipo. Tinha
que me colocar no meu lugar. Não podia sair por aí distribuindo
beijos.
– Perdoe-me, não tive a intenção...
– Esqueça, não há problema nenhum. É que ele não está
acostumado... Agora temos que ir, até mais ver.
– Até – falei, abrindo minha mochila e pegando um boné,
enquanto ela pegava a mão dele e atravessava a rua. O sol
estava de rachar. Sentia meu corpo dolorido pelos solavancos do
ônibus. Precisava sair dali, andar, procurar um lugar onde
pudesse ficar. Que encontrasse alguém que falasse menos que
aquela mulher e que... quase não acreditei, mas ela voltava
grudada na mão do filho e vindo em minha direção.
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3.
Cheguei à cozinha completamente sem jeito. Sentia-me uma
intrusa, apesar da acolhida. Dona Roseli colocava o almoço.
Marcelo estava sentado num canto da mesa entretido com um
copo na mão. Quando cheguei, ele quase deu um pulo, parecia
assustado.
– Marcelo, ela é a nossa convidada, esqueceu? Sente-se aqui,
Laura, o almoço está quase pronto. Você deve estar morrendo de
fome.
– Não muito – menti, sentando-me com cuidado ao lado dele
que me encarava como se visse um fantasma.
– Será que é a roupa que estou usando? – perguntei.
Ela, que estava de frente para o fogão virando o feijão em uma
cumbuca de barro cru, voltou-se para mim.
– O quê? Ah, não! – exclamou, olhando para ele. – Sua roupa
está ótima, o calor daqui é infernal, todas as meninas usam
shorts e blusa regata. Ele só está te estranhando. Logo você se
acostuma. Ele é uma criança aprisionada no corpo de um rapaz.
– Deve ser estranho isso – falei, enquanto ela colocava o feijão
na mesa ao lado do arroz, do bife e da salada. Uma comida
simples, mas que cheirava muito bem.
– E é. O cérebro dele pensa e age como uma criança de cinco
anos, mas o corpo tem dezoito e age como tal. Então ele vive o
conflito do corpo sentir certos desejos e o cérebro não conseguir
interpretar muito bem o que quer dizer isso.
– Como assim? – perguntei, tentando entender melhor o que
ela queria dizer.
– Por exemplo, veja como ele te olha. Os olhos parecem
perdidos, assustados, isso porque o corpo dele reagiu ao te ver,
sentiu aquilo que um homem sente por uma mulher, mas a
cabeça não consegue entender, decodificar isso, então ele fica
com essa cara, neste descompasso, o corpo dizendo uma coisa e
a cabeça, outra.
Olhei para ele que, de vez em quando, abaixava a cabeça e
brincava com o talher.
– Coitado.
– Não sinta pena, tente apenas entendê-lo – falou a mulher,
pegando meu prato e me servindo.
– A senhora parece que entende bem o problema do seu filho.
– Entendo. Estudei. Se você for ao meu quarto, tenho todo tipo
de livros que falam do problema do Marcelo. Entendendo, fica
mais fácil ajudá-lo a suportar todo o problema. Mas vamos mudar
de assunto. Sabe o que eu achei estranho? – olhei para ela
esperando a resposta. – O fato de você não usar nenhum
crucifixo, nenhuma medalhinha, nada que lembre estes símbolos
católicos.
– Ah, é! – exclamei, procurando por uma boa resposta. – É que
não sou muito ligada nessas coisas.
– Mas você está num convento, vai ser freira.
– Minha ordem não se liga muito em símbolos sacros.
Respeitamos os santos e suas imagens, mas não costumamos
usar crucifixo ou imagem de santos.
Ela me passou o prato quase transbordando. Achei um
exagero, duvidei de que aquilo tudo pudesse caber no meu
estômago, mesmo assim ainda peguei um bife, um pouco de
salada e quando ia me preparar para comer, veio uma nova
pergunta:
– De que congregação você é?
– Das madres da Via Sacra – falei sem pensar, mais
interessada em cortar o bife e levá-lo à boca.
– Gozado, nunca ouvi falar dessa congregação – estranhou
ela, encarando-me.
“Nem eu”, fiquei com vontade de dizer, pois já estava saturada
de tanta pergunta.
– É que você é evangélica, está por fora dos movimentos
religiosos dentro da minha igreja – falei, enchendo a boca e
comendo com vontade.
– Fui católica uma época, quando vivia no Sul, já quase na
fronteira. Fui criada lá e meus pais eram católicos fervorosos.
Depois me mudei pra cá, conheci o meu marido e me converti.
Ainda bem que eu era católica, antes ia sempre à missa, por
isso acho que convencia, mesmo dizendo as mentiras mais
absurdas.
– Agora sou eu que quero fazer uma pergunta – falei, enfiando
uma folha de alface na boca.
– Faça.
– O que faz uma mulher tão inteligente num lugar tão distante
como este?
Ela sorriu, largou o garfo e a faca, limpou a boca como uma
pessoa educada e respondeu:
– Tem mais de vinte anos que moro aqui, acho que já esqueci
a resposta. Mas não tente traçar um paralelo entre este lugar e a
inteligência das pessoas. Se você andar por aí vai ver que há
pessoas muito inteligentes vivendo em sítios, ou aqui mesmo na
cidade. Pode parecer estranho, mas o fato de sermos caipiras e
termos sotaque não nos faz mais ou menos inteligentes do que
qualquer um da cidade. Aliás, esta é uma pergunta que me
passou pela cabeça: o que faz uma jovem garota inteligente e
bonita aqui por estas bandas?
De novo ela aproveitou a resposta e me devolveu uma
pergunta. Eu devia ficar de boca fechada, abri-la só para pôr
comida, mas não, insistia em conversar com ela. Virei a cabeça e
fiquei olhando Marcelo comer. Ele revirava a pouca comida que a
mãe colocara no prato. Derrubava a metade, enchia a boca e
comia de qualquer jeito, me lembrando um pouco os ruminantes,
aqueles mesmos que ficam comendo capim no pasto.
Não respondi à sua pergunta. Mudei de assunto e falei sobre o
calor que sentia, sobre o clima do lugar.
Assim foi o almoço.
Finalmente terminamos de comer. Não via a hora de ir para o
meu quarto. Dispensei a sobremesa e falei que estava cansada.
Ela entendeu. Levantei-me e saí dali deixando os dois na mesa.
Ela já havia terminado, quanto a ele...
No quarto, tratei de arrumar minha roupa na cômoda. Peça por
peça fui tirando e colocando nas gavetas. No fundo da mochila
havia um envelope. Dele retirei alguns pôsteres do Renato Russo
e do grupo Legião Urbana que havia comprado na rodoviária da
primeira cidade em que desci. Adorava as músicas deles,
sonhava um dia conhecer o Renato; apaixonei-me por ele e não
me conformava por ele ter morrido. A banda fez muito sucesso
durante a década de 1980, eu ainda nem havia nascido. Quando
pude entender um pouco da essência das músicas deles, o
Renato morreu e a banda desapareceu. Eu me sentia órfã de
uma geração que sequer conheci. Nunca havia dançado nem ido
a nenhum show deles. O que me restaram foram músicas e letras
que o Renato fez e que mexiam com a minha cabeça.
Procurei pela parede que estivesse mais lisa, mais nua e fui
colando os cartazes com um resto de fita que trouxera junto. As
imagens deles ficaram de frente para mim. Eu olhava o rosto do
Renato e pensava, qual de nós dois vivera um drama maior.
Peguei meu discman, coloquei o fone de ouvido e comecei a
ouvir uma música que ele compôs. Quisera eu ter a cabeça de
compor algo assim, escrever pelo menos. A letra dessa música
mexia comigo. Na minha cabeça de menina, eu a imaginava
como uma música que ele fizera para mim:
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Meus olhos estavam fitos num pudim sobre a mesa. Eu
adorava pudim. Uma mosca passeava sobre ele. A mosca devia
adorar mais o pudim do que eu. Enquanto ela passeava sobre
ele, eu ficava buscando respostas para uma pergunta que pairava
no ar.
– O que você fez com meu filho?
Era a segunda vez que ela me fazia essa pergunta. Estávamos
sentadas uma de frente para outra, a mesa da cozinha nos
separando. Aquele lugar me parecia ser dos ajustes de contas.
Marcelo estava em pé na porta. Mexia a cabeça de um lado para
outro num tique nervoso demonstrando que, de uma forma ou de
outra, ele estava entendendo o assunto.
– Eu não fiz nada com seu filho.
– Você desonrou o meu lar. Como pôde?
– A senhora fala como se eu tivesse violentado o seu filho.
Olhe o tamanho dele, olhe o meu.
– O que você quer dizer com isso? Que foi ele que te atacou?
Vai querer acusar o meu filho de estupro, é?
Ela estava transtornada. Seus olhos grandes, verdes, pareciam
querer me engolir. Tudo o que eu dissesse naquele momento, em
nada resolveria a minha situação. Estava prensada na parede.
Lembrei-me de casa, das infindáveis brigas, da sensação de
medo, do pavor e das surras que levava. Ainda bem que ali, com
certeza, eu não apanharia. Pelo menos achava.
– A senhora está entendendo tudo errado. Não aconteceu
nada de mais, nada de grave. Olha, o Marcelo está aí, o que
aconteceu com ele?
– Isso – levantou-se quase correndo e foi até o quarto dele.
Voltou com o lençol do quarto e estendeu-o na minha cara. –
Você foi com ele pra cama, não foi?
Senti vergonha ao ver o lençol manchado na minha frente, por
isso virei a cara.
– Não preciso responder isso.
Ela soltou o lençol no chão. No mínimo ia colocar fogo nele.
– O que nós conversamos ontem?
– Dona Roseli, eu...
– Eu confiei em você, te trouxe pra dentro de casa mesmo não
te conhecendo, olhei os seus olhos e vi uma boa menina, uma
menina cheia de problemas, mas com uma alma boa. Como pôde
me enganar?
– Eu nunca disse que era boa.
– Pois não é mesmo. Ontem mesmo eu pedi para que você
não se entregasse ao Marcelo. Por que foi tão fraca? Por que
abusou da inocência do meu menino? Responda?!
– Eu não sou uma boa menina, tenho o demônio dentro de
mim. Eu precisava ter o seu filho para ver se ele conseguia tirar
esse mal de dentro de mim.
– Quem tem que tirar esse demônio de dentro de você é Deus,
não o pobre coitado do Marcelo. Jamais vou te perdoar por isso.
Você ensinou pra ele o desejo da carne. Agora ele vai querer ter
sempre uma mulher para satisfazê-lo. Você vai poder estar aqui
para satisfazê-lo? Onde você vai estar, menina?
– No inferno – respondi, com toda amargura do mundo.
– Não quero te ver mais aqui. Pegue suas coisas e vai embora.
Daqui a pouco sai o ônibus, vai e não volte nunca mais.
Ao ouvir isso, Marcelo reagiu. Foi até ela e falou de forma
embolada, mas inteligível:
– Ela é minha namorada, mamãe. Não manda ela embora. Ela
é minha.
Enquanto ele repetia segurando o braço da mãe dele, eu me
levantei e fui para o quarto arrumar as coisas. Dali a pouco o
padre viria me buscar. Minha aventura terminava ali.
A primeira coisa que fiz quando entrei no quarto foi tirar da
parede os pôsteres do Legião Urbana. Um a um eu fui tirando e
dobrando. Senti uma fisgada na barriga, em seguida outra e
outra. Deixei os pôsteres dobrados sobre a cama e corri para o
banheiro. Quase não deu tempo de eu me sentar. Um líquido
pastoso saiu de mim. Quando olhei o vaso, estava todo vermelho
e a dor não cessava. Minha boca começou a salivar e um jato de
vômito, também vermelho, atingiu a parede. A dor era
insuportável. Precisava buscar ajuda. Com muito esforço
consegui me levantar. Passei pelo espelho e vi meu rosto
sangrando. Precisava de ajuda, mas não tinha como pedir. Andei
até a porta do banheiro e caí. Tentei me levantar quando senti
uma mão me acariciar. Vi o rosto de Marcelo, o rosto de um anjo.
Só então consegui dizer:
– Chama sua mãe que eu estou morrendo.
DE VOLTA AO LEITO DE MORTE
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O dia parecia que chorava. Uma chuva fina foi trazida por um
vento gelado. Logo cedo tio Marcos apareceu para levar a mim e
a vovó ao enterro. No carro ela foi atrás e eu na frente, ao lado
dele. De vez em quando eu o olhava como se pedindo,
implorando por uma palavra. Ele evitava me olhar. No caminho,
íamos sendo seguidos pela imprensa. A sorte era eu ser menor
de idade, assim eles não podiam se aproximar.
Chegamos ao velório. Estava vazio. Alguns amigos de Aline,
alguns professores, um grupo de representantes da firma de
papai e só. De resto, uma dúzia de parentes ressurgidos das
cinzas. Pude ver ali como a minha família era distante do mundo,
das pessoas que nos rodeavam, da coletividade e de tudo mais
que poderíamos chamar de sociedade.
No começo eu não tive coragem de me aproximar dos caixões.
Vi que todos passavam por lá, ameaçavam um choro e depois se
afastavam. Criei coragem e fui. Não havia como fugir daquela
triste realidade. O primeiro caixão de que me aproximei foi o de
Aline. Parecia que dormia e eu fiquei imaginando se a morte não
era, na verdade, um sono eterno de onde jamais acordaríamos.
Passei a mão de leve no rosto dela. Um rosto frio e pálido. Não
podia negar, a morte é um feito triste, enormemente triste. Dei as
costas e fui para o outro caixão; o de mamãe. Ela também dormia
um sono de anjo. Parecia descansar. Acho que agora, de fato, ela
estava dormindo. Ela nunca dormiu direito, sempre reclamava
das noites maldormidas, das dores que a incomodavam durante a
noite, da vontade de descansar... Pronto, agora ela estava
descansando.
O de papai eu não fui ver, não queria me despedir dele. Na
minha cabeça perturbada, achei que, de repente, ele podia se
levantar e cometer seu último ato: cuspir na minha cara, que foi o
que em vida faltou ele fazer.
Vi tio Marcos sentado num banco sozinho. Parecia cansado.
Usava uns óculos escuros para esconder as olheiras. Ele era
muito vaidoso. Fui até ele e sentei-me ao seu lado.
– Preciso falar com você – falei, querendo me encostar nele.
– Agora é impossível, não está vendo o que está
acontecendo? – respondeu em tom ríspido.
– Não só sei, como estou sentindo. Estou me sentindo muito
só – falei, com a voz embargada.
Ele tirou os óculos, olhou-me com seus olhos escuros e
passou a mão na minha cabeça, para depois me abraçar.
– Tudo vai se resolver, pode ficar tranquila. Eu vou te ajudar no
que precisar. Você não está sozinha, você sabe disso.
Foi bom ter ouvido aquilo, deixou-me mais calma saber que
não ficaria sozinha. Levantei-me e saí, fui andar lá fora no meio
da garoa. O cemitério ficava no alto de uma colina. Dali se podia
ver um lago cercado pelos jazigos simples, bem ao estilo
americano. Ia andando sem me preocupar com o vento gelado e
com a garoa que molhava meu cabelo. Parecia que eu não
estava em mim.
– Você sabia que agora você é uma garota rica? – assustada,
virei-me de lado e dei de cara com o delegado. – Desculpa, não
queria te assustar.
– O que o senhor disse?
– Que você agora é uma moça rica, vai herdar tudo o que a
sua família deixou.
– O senhor está pensando em dinheiro numa hora dessa?
– Eu não – disse ele abrindo o guarda-chuva. – Mas tem gente
que pensa. Eu mandei interditar a churrascaria onde vocês
comeram no domingo.
– E?
– Não acho que foi lá que vocês comeram algo que estivesse
envenenado. Muita gente comeu lá no domingo e ninguém
reclamou da comida, pelo menos ninguém deu entrada no
hospital com os mesmos sintomas da sua família. Também
mandei analisar a musse que você fez, mas deu negativo, ou
seja, estava ótima para o consumo. Dizem que a sua musse é
uma delícia, você precisa me dar a receita.
– Eu... – perdi a voz. Ele me olhou frustrado. Tudo o que ele
falara fora apenas para forçar uma reação minha. Eu sabia disso,
por isso o meu mecanismo de autodefesa disparou e travou a
minha boca.
– Diga, Laura, eu quero te ajudar, será que você não entende?
– Eu estou com medo. Todo mundo está achando que eu matei
meus pais e minha irmã. Vocês vão me prender?
Ele deu uma gargalhada e passou a mão no meu ombro,
trazendo-me para debaixo do guarda-chuva.
– Imagina! Você é uma criança, só tem quinze anos. Prisão é
para marmanjos. Além do mais, eu não acredito que você tenha
cometido tal barbaridade. Você se dava bem com seus pais, não
se dava?
Pensei no que dizer. Podia mentir e dizer que sim, mas ele não
teria dificuldade em descobrir a verdade.
– Eu não me dava bem com meu pai.
– Isso é comum na sua idade. Eu tenho uma filha que, na sua
idade, também não se dava comigo. Ela cresceu, virou mulher e
hoje somos amigos.
– Mas o senhor já espancou a sua filha, de arrancar sangue?
– Ele fez isso com você? – balancei a cabeça afirmativamente.
– Isso é meio duro... Não, nunca fiz isso com a minha filha. Mas
o que você aprontou?
– Fugi de casa. Queria visitar o cemitério onde o Renato Russo
foi cremado.
– Quem é Renato Russo, seu namorado?... Quer dizer, seu
ex?...
– Não acredito que você nunca tenha ouvido falar do Renato
Russo, o vocalista do Legião Urbana.
– Ah, sei! Aquela banda de rock...
– Isso, eu sou apaixonada por ele. Queria levar flores para ele.
– Mas ele não era gay?
– Não sei se ele era, nem me importa saber – virei o rosto para
ele e o encarei. – E o que o senhor tem contra os gays?
Notei que ele ficou desconcertado. Acho que ele estava
acostumado a lidar com bandidos, gente da pesada, agora
tentava arrancar alguma coisa de mim, sabendo que não poderia
me tocar, nem forçar a situação.
– Eu? Nada. Imagina, quem sou eu para achar alguma coisa.
Mas me conta essa história.
Então fui contando tudo sobre as malvadezas que papai
praticava comigo. Omiti certas coisas ou por vergonha ou mesmo
para me preservar. Naquele momento eu tinha que me trancar
para sobreviver aos leões.
Ficamos conversando por um bom tempo. De vez em quando
um ou outro tio aparecia para me ver, dava as costas e voltava
para o velório. Nem vi o tempo passar. Aquele homem se
mostrava atencioso, mas eu não me deixava enganar. Era tudo
falso. Ele queria ganhar a minha confiança para que eu me
abrisse com ele. A conversa acabou quando vi o cortejo fúnebre
saindo da capela e indo para o jazigo da família. Fiquei com
vontade de correr até lá, abraçar os caixões, não deixar que
jogassem terra sobre eles. No entanto, fiquei quieta, sentada no
parapeito que separava a capela do cemitério. Dali eu podia ver
as pessoas acompanhando o enterro.
Adeus mamãe!
Adeus Aline!
Em breve nos encontraremos...
12.
– Deixa ela ir, papai, eu vou com ela, prometo cuidar direitinho
da sua menina – falou Aline.
– Não gosto dessa conversa de ir fazer trabalho de escola na
casa de amiga. Vai fazer sozinha no seu quarto – bradou ele,
fuzilando-me com os olhos.
Eu estava disposta a desistir, não ia insistir com ele, conhecia
bem a fera. Mas mamãe resolveu entrar na conversa.
– Deixa ela ir, querido, Aline vai junto, toma conta dela.
Ele pensou bem, disposto a dizer não, mas diante do pedido
de mamãe, concordou e fez uma série de recomendações,
determinou um horário para a nossa volta e tudo mais.
Mamãe sugeriu nos levar, Aline protestou e disse que não
éramos mais crianças, podíamos ir de ônibus, que não ficava tão
longe assim. Foi uma luta convencer os dois a nos liberar, mas
como já disse, Aline conseguia tudo o que queria.
Chegamos em frente ao portão da casa de Paulo. Eu o
conhecia de vista na escola, mas nunca trocamos ideias. Ele era
da turma da minha irmã, quanto a mim, nem turma eu tinha.
Aline tocou o interfone avisando que estava lá. Ele pediu para
aguardar e pela voz dele, parecia ter ficado feliz. Quando abriu o
portão e me viu ao lado dela, não ficou tão satisfeito assim.
Olhou-me como a uma intrusa, como alguém que estava ali para
cortar o barato. E era verdade.
– Esta é a minha irmã – apresentou-me.
Ele mal me olhou na cara e disse:
– Você não me falou que ia trazer a sua irmã.
– Imagina que meu pai ia me deixar sair sozinha – disse ela,
olhando para o portão aberto e ele parado, fechando a nossa
entrada. – Não vai convidar a gente para entrar?
– Claro – respondeu ele, abrindo passagem.
Entramos. A casa não era lá muito grande, mas era uma casa
bonita e aconchegante. Fomos para a sala. Pensei que iríamos
encontrar mais gente, então questionei:
– Somos os primeiros a chegar?
Ele olhou para a minha irmã, que olhou para mim e eu fiquei
aguardando uma resposta.
– Não vai vir ninguém – explicou ela. – É uma festa íntima, só
para nós dois.
– E eu? – perguntei, não querendo ficar chateada.
– Eu tenho um videogame novinho lá no meu quarto, se quiser
jogar... – falou ele, tentando me agradar e ao mesmo tempo,
tentando se livrar de mim.
Fui categórica:
– Odeio videogame. Isso é coisa de criança.
– Tenho uns livros lá no quarto – insistiu ele.
– Não costumo ficar em quarto de estranhos.
– Laura, deixa de ser chata, vai passear lá no quintal, tem um
jardim cheio de flores lá fora – disse ela abraçando-o,
demonstrando estar louquinha para ficar sozinha com ele.
Eu resolvi bancar a chata.
– Como você sabe, já esteve aqui?
– Não, mas toda casa sempre tem um jardim. Com certeza
essa tem, vai.
– Tem sim – cortou ele, preparando-se para me pôr para fora.
Diante de tanta insistência, resolvi sair. Passei pela cozinha e
fiquei andando pelo quintal pequeno, quase sem espaço. Procurei
uma cadeira e fiquei ali esperando a hora passar enquanto os
dois se divertiam lá dentro. De vez em quando ouvia umas
risadas, uns estalidos como se fossem beijos de desentupir pia.
Aquilo estava ficando interessante. Fiquei prestando atenção
tentando ouvir mais, mas ele ligou o som e passei a ouvir um rock
pesado que vinha lá de dentro.
Já fazia meia hora que estava lá fora cozinhando o galo. Já
havia conversado com as flores, desencravado uma unha do
dedão do pé com um graveto que achei caído e a hora se
arrastava. Cansada, resolvi ver o que estava acontecendo. Podia
ter entrado pela cozinha, mas preferi ir pelo canto do quintal e ver
pela janela da sala. Aproximei-me lentamente, os dois estavam
num amasso só. Não podia acreditar que a minha irmã fosse
capaz de tudo aquilo. Fiquei observando e notando que na hora
H, ela se esquivava, pelo menos estava conseguindo resistir aos
ataques furiosos dele. Senti um cheiro forte saindo de dentro da
sala. Olhei na mesa de centro e vi um cigarro de maconha aceso.
De vez em quando ele parava, dava uns pegas e passava para
ela. Depois os dois voltavam a se atracar. Minha irmã estava toda
amarrotada. Ela não iria resistir por muito tempo.
“Chega”, pensei comigo, “hora da festa acabar!” Saí dali, entrei
na cozinha e fui parar na sala exatamente quando ela tirava a
calça dele. Ele, que estava a todo vapor, quando me viu,
murchou.
– O que foi, Laura? – perguntou ela, colocando os peitos para
dentro e fechando os botões da blusa.
– Acho que está na hora de irmos – falei olhando para ele, que
erguia as calças.
Ele sentou-se desanimado, pegou o cigarro de maconha e,
antes de levar à boca, ofereceu-me.
– Quer?
– Posso? – olhei para Aline.
– Fique à vontade – respondeu ela, com cara de frustrada.
Eu nunca tinha experimentado. Aquilo para mim seria uma
experiência nova. Eu sabia que Aline, de vez em quando, usava.
Nunca tive coragem de pedir.
Peguei da mão dele e levei à boca. Eu sabia fumar. Tinha um
maço de cigarros guardado no meu quarto. Só que eu não
gostava muito de fumar, achava fraco, amargo, gostava mesmo
de bebida. Sempre quando dava, tomava dos uísques que papai
tinha no bar da sala. Dei um trago forte e se não tivesse acabado
de sentar, acho que teria caído. O mundo virou na minha frente
feito bola de futebol em direção ao gol. Não sei se foi obra do
acaso, mas começou a tocar uma música da Legião Urbana.
Senti meu corpo planar e comecei a dançar, rodopiar pela sala.
Não me sentia gente, não me sentia humana, eu era um pássaro
que pela primeira vez saía do chão e voava.
Dessa forma Aline me arrastou dali. Ainda bem que ela me
segurava pela mão, senão seria capaz de sair voando como uma
pipa.
– Você é louca, sabia?
– Eu? Por quê? – perguntei.
Estávamos chegando em casa. Durante todo o trajeto não
falamos nada, viemos em absoluto silêncio.
– Não devia ter fumado. Pensei que você fosse morrer. Correu
pela casa do menino como uma alucinada. O que será que ele
deve estar pensando de você?
– É importante?
– O quê? – perguntou ela me encarando.
– O que ele pensa sobre mim?
– Não, mas...
– Você trouxe? – interrompi, demonstrando não ter o mínimo
interesse em ouvir o que ela iria dizer.
– Claro, você quase me obrigou. Toma, aproveita e põe na sua
bolsa, fica como pagamento pelo favor que você me fez.
Peguei o embrulho e coloquei na minha bolsa. Estava
satisfeita, aquela tarde para mim tinha sido por demais excitante
e, para encerrar, eu não podia deixar de jogar na cara dela:
– Você me deve muito mais que isso. Se não fosse eu, acho
que a tua virgindade teria ido para o espaço.
– Você foi uma estraga prazer.
– Da próxima vez não me chama – falei, achando que ela
estava sendo muito mal-agradecida.
Chegamos em frente de casa e a conversa morreu ali. Papai e
mamãe estavam na sala, ele tomando uísque e ela um suco,
conversavam animadamente. Eu ainda estava sob efeito do fumo,
sentia meu corpo leve e uma vontade enorme de me deitar. Mal
conversei com eles, subi as escadas e fui para o meu quarto.
Peguei o meu diário, caí na cama e comecei a escrever. Escrevi
cartas de amor para o Renato Russo, imaginei-me fazendo com
ele o que Aline fez com o Paulo naquela tarde.
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