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Palavra do autor:

Esta obra é fruto da minha imaginação, estando, portanto,


distante de fatos e de pessoas. Se, porventura, houver
semelhança entre os meus personagens, o que eles vivenciaram,
e a vida real, posso garantir que terá sido mera coincidência .
APRESENTAÇÃO

O mais difícil é começar e não terminar. Senti-me frustrado


ao ficar, durante dois meses, escrevendo um texto que não
vingou. Não vingou porque não tinha alma. Uma história, para
chegar ao fim, precisa ter personagens, e esses personagens
precisam ter alma. Não aquela alma que dizem que temos e que,
depois que morremos, ela vai ou fica por aí penando. Falo da
alma que encanta o leitor, aquela que, de repente, transforma o
personagem em gente. Dessa forma, descobri que o romance
que eu escrevia era desprovido de personagens vivos – eram
todos sem alma. Assim, comecei a escrever outro, e vinte dias
depois terminava o romance que aqui está. Certa vez, um parente
distante disse-me que, quando um autor escreve um romance,
por mais que seja ficção, ele estará sempre escrevendo a
verdade sobre a vida de alguém. Que, em algum lugar, uma
pessoa viveu ou viverá o que o escritor criou. Que a arte é assim,
mistura-se com a vida... Verdade ou não, o escritor não parte do
nada para escrever uma história, ele precisa de elementos reais e
concretos. No meu caso, esses elementos me foram dados pelos
artigos de jornais, onde as manchetes relatavam os conflitos
familiares em que os filhos acabavam matando os pais. Pelo
menos quatro desses fatos tornaram-se notórios.
Resolvi, então, partindo dessa realidade, mostrar a falência
da família dentro da sociedade capitalista e escrever este
romance. Quis mostrar, em primeiro lugar, como os laços de
solidariedade orgânica, aos poucos, dão lugar à ambição
explícita, quase pornográfica, pelo dinheiro e pelo poder. Depois,
como o amor pode ser manipulado de acordo com os desejos e
as ambições de cada um. E, finalmente, como a vida pode valer
menos, quando se trata de fortunas guardadas em bancos e
poder guardado no coração.
COMO SE NÃO HOUVESSE AMANHÃ

Ela quer entender o que está acontecendo, não consegue.


Havia passado mal, vomitado. Correu para o banheiro e, de
repente, tudo escureceu. Depois ouviu vozes, barulho de carro,
sirene de ambulância. Quando abre os olhos está ali, deitada em-
uma maca que corre sem parar. Ela tenta se mexer, mas seu
corpo, inerte, parece morto. Na sua boca, uma máscara de
oxigênio a impede de falar, dizer que quer se levantar e sair dali.
Seus olhos veem apenas as luzes brancas presas no teto. Ouve
a fala das pessoas em volta: “O coração dela está fraco! Vamos
mais depressa! Desse jeito ela não vai sobreviver...”. Mas como
sobreviver? Ela não está sentindo nada. Não se lembra de ter
sofrido algum acidente. Lembra do seu corpo mole buscar o chão,
seu estômago revirar e sua barriga doer, mas daí a estar à beira
da morte, há algo errado.
Ouve o barulho da porta se abrir. Sente a mudança de ar. Ali o
lugar é mais frio, as luzes mais fracas e o silêncio parece eterno.
Eles a jogam em uma cama, tiram a máscara de oxigênio, enfiam
um tubo em sua boca, tiram sua roupa. Na pressa, alguém puxa
com força o crucifixo que ela tem no pescoço, auscultam seu
coração. “Por favor, não tirem o crucifixo de mim!”, tenta gritar e
mexer a mão. Não consegue. Ela sente fios gelados grudados no
seu corpo. Sente um dedo morno abrir os seus olhos ainda mais.
Uma luz ofusca sua íris. Ouve a voz de uma mulher,
provavelmente a médica, que grita com todos: “Vamos agir
rápido, não podemos perdê-la!”. Outro médico se aproxima e
quase grita: “Que diabo ela tem?!”, “Paralisia dos membros,
soltando sangue pelos olhos, vômito e diarreia, não sou perita,
mas só pode ser envenenamento”, responde a médica,
segurando o braço da paciente e furando sua veia para colocar o
soro.
Ela não conseguia marcar o tempo. Se pudesse, veria que eles
estavam com ela há mais de uma hora, em uma luta que parecia
em vão. Se ela pudesse falar, diria para eles que ficassem
tranquilos, que ela estava bem, não sentia nada e que queria ir
embora dali, voltar para Novo Ipê, para o seu quarto na casa de
Roseli e ficar quieta vendo o beija-flor que todos os dias aparece
na sua janela. Ela ouve a respiração dos médicos, parecem
cansados. Ela ouve e vê tudo ao mesmo tempo em que pensa:
“Por que eles não tiram este tubo de minha boca para que eu
possa falar? Posso contar tudo o que aconteceu. Posso dizer o
que tenho, dessa forma fica mais fácil me ajudarem...”.
Não adianta. Os médicos correm de um lado para outro,
checam equipamentos, checam pulsação, pupila, coração...
Abrem as pernas dela de uma forma quase despudorada. Se ela
pudesse falar, diria que aquilo não se faz, não se expõe a
intimidade dos outros assim dessa forma.
– Rápido, coloquem a sonda, retirem a urina e levem para o
laboratório urgente, junto com o sangue. Preciso do resultado o
mais rápido possível – pede a médica, completamente agitada.
Enfiam a sonda. Ela sente mexerem no seu corpo e teme
sentir dor. Não sente nada. Sente apenas as mãos dos médicos
mexendo com ela. Quanto tempo duraria isso? Quer falar, gritar,
levantar dali e sair andando, dizer na cara de cada um que eles
estão perdendo tempo, que ela está bem, não tem nada. Que
fossem cuidar de quem realmente precisa.
Finalmente os médicos terminam o trabalho. Não há mais o
que fazer, senão aguardar.
– O coração dela parece estabilizado – diz um deles, olhando o
aparelho ao lado da cama.
– Vamos aguardar o resultado dos exames para sabermos qual
o próximo passo – fala a médica, passando um lenço no rosto.
Um outro médico, que parece ser o assistente, dá um sorriso e
diz:
– Que tal um café? Ainda não jantei.
– Nem pense em jantar. Temos que cuidar dessa mocinha.
Hoje é o seu primeiro dia aqui na UTI, você não vai querer perder
um paciente, vai? – fala a médica, chefe da UTI.
– Não, doutora, mas um café às dez da noite...
– Certo, um café enquanto aguardamos os resultados – corta o
outro médico, dando as costas e saindo.
O assistente também sai. A médica, antes de sair, vai até a
paciente, passa a mão no cabelo dela que está molhado de suor.
Encosta a boca no ouvido dela e diz baixinho:
– Sei que você está me ouvindo. Não morra, entendeu? Não
morra. Eu vou curar você.
Sai da sala. A garota tenta dizer algo. Maldito tubo que tampa
a sua boca. Tenta mexer os olhos, dizer com eles para que ela
fique, que a deixe falar, mas vê, apenas, o vulto branco da
médica saindo da sala. Fica pensando se está ficando louca. Se
havia perdido a sanidade mental. Então começa a pensar em
coisas: “Meu nome é Laura, tenho quinze anos, estou no primeiro
colegial, meu pai era engenheiro químico, minha mãe dona de
casa, minha irmã...”.
Seus pensamentos mudam quando ela ouve o barulho da
porta se abrindo. “Já?”, pensa, deduzindo ser a médica. Ouve os
passos pela sala. Se pudesse virar a cabeça, mas seu corpo está
paralisado, duro. Ela se sente como se estivesse presa dentro de
uma carapaça de ferro. Fica aguardando que a médica ponha o
rosto na frente dos seus olhos. Só assim ela poderá vê-la. Mas
por que demora tanto? Por que fica andando pela sala? Aquele
barulho de passos está lhe dando nos nervos. “Pare, por favor!”,
grita ela em pensamento. É atendida. Seja quem for, parou. Será
que ela pensou tão alto que seja lá quem for ouviu?
“Olá, Laura”, diz a voz que ela não conhece.
“Quem é?”, questiona, achando aquilo tudo um absurdo.
“Isso importa?”
“Saia da minha cabeça, não vê que estou doente?”
“Vejo. Você está muito mal. Por isso estou aqui, para
conversarmos um pouco, passar o tempo, decidir o que faremos
com você.”
“Decidir? Como assim? O que está acontecendo? Por que
estou aqui? Quem é você?”
“Você é muito ansiosa, menina, por isso está nesta situação.
Temos tempo para conversar. O exame vai ficar pronto somente
quando amanhecer. Enquanto isso eu fico lhe fazendo
companhia. Vamos trocar algumas ideias e, dessa forma, você vai
ter respostas para todas as suas indagações.”
Ela ouve novamente barulho de passos pela sala e pergunta:
“É você que está andando?”
“Incomodo?”
“É que eu preciso saber se você é coisa da minha cabeça ou
se você existe. Pelo barulho parece que existe.”
“Pode acreditar, existo.”
“Então apareça para mim. Estou com os olhos abertos agora,
fique na minha frente.”
“Para quê?”
“Para que eu possa te ver. Não vou conversar com quem eu
não possa ver.”
Silêncio. Agora ela ouve apenas o barulho dos aparelhos para,
depois, ouvir passos vindos em sua direção. Naquele momento
ela sente um ar frio percorrer-lhe o corpo, do dedão do pé até o
pescoço. Ouve um respirar muito forte perto do ouvido e, de
repente, um rosto aparece na sua frente. O rosto de um rapaz
jovem, bonito, olhos brilhantes.
“Aqui estou, na sua frente, como você me pediu.”
“Então você existe, não é fruto da minha imaginação.”
“Claro que não! Eu existo”, diz ele, enquanto passa a mão pelo
corpo dela. “Pode sentir a minha mão passando pelo seu corpo?”
“Posso. Mãos macias... também senti a sua respiração ao
passar pelo meu corpo.”
“Isso é bom, prova que você está viva, pelo menos por
enquanto. O que achou de mim?”
“Você é bonito.”
“Não mais que você, menina louca, que podia estar em outro
lugar, não aqui.”
Laura fica pensativa, enquanto o rosto some da sua frente e
recomeça o barulho de passos pelo quarto.
“Tive escolha?”
“Todos nós temos escolhas. Por pior que elas sejam, sempre
há opções. Você escolheu este caminho, agora está aqui.”
“Quem é você?”
“Eu? Difícil esta resposta. Eu posso ser tanta coisa. Posso ser
o que você quiser.”
“Deus? Você é Deus?”
“Ou diabo. Já disse, posso ser o que você quiser. Mas se você
prefere uma resposta mais direta, mais objetiva, digamos que eu,
neste momento, sou o seu juiz.”
“Juiz? Mas que crime eu cometi? Eu estou num hospital, acho
até que vou morrer, do que me acusam?”
De novo ela sente o ar frio percorrer-lhe o corpo. Sabe que ele
está se aproximando. Seu rosto aparece na frente dela.
“Larguemos as meias palavras de lado, menina Laura. Não
vamos mais usar o termo ‘eu acho’. Vamos ser diretos, sem
eufemismos... Você sabe que vai morrer, não sabe?”
“Eu não quero morrer.”
“Bobagem, todos morrem, por que você não morreria?”
“Porque eu só tenho quinze anos.”
“E um punhado de arsênico no corpo. Arsênico mata, menina,
e não escolhe idade.”
“Mas a doutora disse que vai...”
“Vai nada! Ela vai tentar, a pobre coitada, mas não vai
conseguir”, ele aproxima bem o seu rosto do dela. “Só eu posso
te salvar, menina Laura.”
“Então me salva.”
“Por quê?”
“Porque eu quero viver.”
“Por quê?”
“Porque eu amo a vida.”
“Por quê?”
“Porque eu quero corrigir minhas falhas.”
O rosto some. Ela volta a ouvir os passos dele pela sala. Ela
tem a impressão de que ele pensa. Está pensando naquele
momento. E ela está decidida a viver. Se a vida dela está nas
mãos dele, ela a quer de volta. Agora ela ouve o barulho de algo
sendo arrastado que ela deduz ser uma cadeira. Nota o ranger da
cadeira ao receber o corpo dele. Literalmente, ele se jogou nela.
Agora está sentado ao lado de Laura. Ela bem que queria ver o
corpo dele, só tem na cabeça a imagem de seu rosto. Mal sabe
ela que está diante de um ser amorfo, que pode ter a forma que
ele quiser.
“Muito bem, Laura, temos tempo até o amanhecer. Tempo mais
que suficiente para determinarmos se você deve ou não viver.”
“Quem, além de você, vai determinar isso?”, pergunta ela,
tentando entender melhor o que se passa.
“Eu e você. Só nós dois vamos tomar essa decisão. Difícil isso,
minha querida, mas é a verdade.”
“Se eu viver, vou poder ver você?”
“Por que pergunta?”
“Porque te achei bonito. Acho que podíamos namorar.”
Ele não diz nada, nem demonstra qualquer reação. Era como
se aquilo estivesse fora do roteiro previamente estabelecido. Na
sala quase escura, as luzes que mais brilham são as dos
aparelhos. Os dois estão ali. Ela deitada, entubada, cheia de fios
pelo corpo. Ele está sentado ao lado dela, sereno, tranquilo,
como deve ser um verdadeiro juiz.
“Conte-me sua história, menina.”
“Eu não tenho história.”
Ele dá uma gargalhada. Apesar de soturno, ele tem senso de
humor. E ela fica pensando sobre o motivo da risada. Ele para de
rir de repente, como se a graça acabasse como a água em um
copo na mão de um sedento.
“Todos nós temos a nossa história, menina Laura.”
“Concordo com você, mas a minha história é terrível, não
merece ser contada.”
“Bobagem, história é história e merece ser contada.”
“A minha é muito triste”, insiste ela.
“Eu diria horrível, mas é preciso. Como vou julgar você de
forma honesta se não a ouvir de sua própria boca?”
“Que boca? Esta que está com este tubo?”
“Bobagem.”
“Bobagem, bobagem, bobagem... você só sabe dizer isso?”
“Porque tudo é bobagem. Tudo é efêmero. Nada é importante
neste momento, a não ser a sua história. Anda, me conta.”
“Você já sabe. Tenho certeza de que sabe de tudo.”
“Sei, mas quero ouvir de você.”
“Não sei contar história, não tenho palavras. Se pelo menos
pudesse escrever, seria tão mais fácil.”
“Ponha as palavras na sua cabeça, menina, e vire uma
escritora. Você sempre sonhou em ser escritora, não é mesmo?
Leu tudo sobre Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Clarice
Lispector... Você é uma menina prodígio, estudiosa, inteligente,
sabe escrever muito bem. Esqueceu dos seus diários, dos
personagens que inventou? Claro que você pode. Convença-me
de que é inocente e eu te salvarei.”
“Não posso contar.”
“Conte-me desde o começo. Fale-me tudo, das coisas mais
ínfimas, dos seus desejos mais sórdidos, dos seus grandes e
pequenos sonhos, dos crimes...”
“Não consigo, minha história não tem lógica. Não sei por onde
começar. Está tudo embaralhado na minha cabeça.”
“Comece pelo começo”, diz ele, meio impaciente.
“Que começo?”
“Comece pelo meio”, retruca, já quase sem paciência.
“Comece pelo fim... Isso... Vamos pegar a sua história do fim.
Assim fica mais fácil você conseguir se lembrar do passado.
Comece contando como você chegou à cidade de Novo Ipê.”
“Não vou conseguir.”
“Conte-me.”
“Não.”
“Conte-me.”
“Não.”
“Conte-me!”

INDO DE VOLTA PARA CASA

1.
Há dois dias viajava sem parar. De rodoviária em rodoviária
eu trocava de ônibus mais do que de roupa. Aliás, há dois dias
que não sabia o que era um banho. Estava cansada, querendo
chegar a algum lugar. Em toda cidade que passava, a impressão
era de que estava perto demais. Precisava ir para mais longe.
Cheguei a uma cidade que me pareceu um tanto quanto
estranha. Não era grande, mas seus prédios opulentos me
lembravam um pouco os da minha cidade, por isso, da rodoviária
mesmo, tratei de embarcar em um outro ônibus qualquer.
Qualquer um que me levasse para longe das minhas lembranças
e pesadelos. Olhei as casas, a praça central e a igreja. Nada me
agradou. Vi um ônibus velho com pessoas simples entrando nele.
Nem tive a curiosidade de saber para onde ele ia. Simplesmente
entrei. Era a última. O motorista me olhou e antes que ele
dissesse algo, estendi a mão e lhe entreguei o dinheiro. Ele nem
agradeceu, nem olhou direito para mim. Devolveu-me uma
moeda de troco, fechou a porta e partiu. Tive a impressão de que
ele esperava apenas por mim.
Andei pelo corredor procurando um lugar vago. O ônibus
estava cheio. Homens, mulheres e crianças ocupavam os
assentos. Parecia não ter lugar para mim. Só lá no fundo foi que
vi um lugar. Parecia reservado para mim. Uma mulher de vestido
florido estava sentada no canto. Quando me viu, esboçou um
sorriso e tirou sua sacola que ocupava o banco ao lado. Sentei-
me. Dali eu via o motorista e todo o esforço que ele fazia para
dirigir aquela lata velha que ia de encontro aos buracos do
asfalto, sem muita cerimônia. Lá dentro parecíamos passageiros
de uma nau em plena tempestade, sendo jogados de um lado
para outro. Não me incomodava com isso. Importante mesmo era
que eu estava indo embora para um lugar ainda mais distante.
Mergulhada em pensamentos, nem me dei conta de que era
observada. A mulher sentada ao meu lado de vez em quando se
virava para me olhar. Parecia querer falar comigo. O vento que
entrava pela janela aberta desarrumava seu cabelo preso que
insistia em não ficar em ordem. Ela falava alguma coisa inaudível,
passava a mão na cabeça e procurava por um grampo para
recompor a cabeleira ruiva e rebelde. Mesmo assim ela não
fechava a janela, parecia sentir muito calor. Eu fingia que não via.
Não queria conversa. Estava bem ali sentada, quieta, sem ter que
gastar palavras. Por isso, quando ela virava o rosto para mim, eu
desviava o olhar e olhava para o outro lado. Assim foi por algum
tempo, até que num relance nossos olhos se cruzaram. Então
não teve jeito.
– Está indo para Novo Ipê? – perguntou ela sorrindo, limpando
o suor que lhe escorria pelo rosto.
– É pra lá que este ônibus vai? – perguntei, demonstrando que
não estava muito a fim de conversar.
– É. Este é o único ônibus que vai pra lá. Quem perder, vai ter
que esperar o da tarde, que é este mesmo.
– Só à tarde é que ele volta?
– Só. Vivemos naquela cidade isolados de tudo. Antigamente
até havia o trem, depois ele parou de ir até nossa cidade, e
ficamos dependendo deste único ônibus que, do jeito que está
indo, não sei se consegue chegar.
De fato, o motor do ônibus parecia falhar, mas o motorista,
quanto mais o motor gemia, mais ele pisava e, de buraco em
buraco, ele ia levantando poeira e seguindo em frente.
– O asfalto acabou – falei, notando que agora tudo ao redor
era uma poeira amarela, fina, que coloria o mato da beira da
estrada.
– É a primeira vez que você vem por essas bandas?
– É.
Ao responder, a mulher virou-se de vez para mim e me
encarou. Depois olhou para a mochila no meu colo e falou:
– Você não tem nenhum parente na cidade?
– Não.
– Está fugindo? – perguntou, sem nenhuma cerimônia.
Eu respondia às suas perguntas de forma mecânica. Meus
olhos estavam presos no infinito das montanhas e das matas
verdes lá fora. Mas quando ela me perguntou isso, fui obrigada a
encará-la e responder:
– Não. Pareço uma fugitiva?
Ela riu e acertou a sacola que carregava no meio das pernas.
Ela usava um vestido florido, abaixo do joelho, que não lhe
permitia encostar a sacola no chão.
– Claro que não, desculpe. É que você me parece tão jovem e
viajando sozinha...
– Tenho dezoito anos – menti, com certa tranquilidade. Perdi a
conta de quantas vezes, desde que saí de casa, tive que dizer
essa mentira.
– Nossa, não parece. Você tem cara de menina mais nova.
Não dou mais de quinze anos para você.
– As aparências enganam – falei, voltando a olhar para fora e
torcendo para que o ônibus chegasse logo. Queria me livrar
daquela mulher, das suas indagações e da sua conversa mole.
– Tenho um filho da sua idade... – notei que ela me olhou no
rosto. Acho que esperava uma reação. Não disse nada. Não
queria dizer. Queria ficar quieta no meu canto. Mas ela insistia: –
Chama-se Marcelo. Um bom menino. Pena que tem problemas.
Virei-me para ela, achava-me a única portadora de problemas.
– O que ele tem?
– Problemas de cabeça. Ele não é muito normal. Sabe, foi um
parto muito difícil, pensei que ele não fosse resistir...
– Ele é louco?
Ela riu da minha ingenuidade.
– De jeito nenhum. Os médicos não sabem direito, mas ele tem
dificuldade de aprender as coisas, lutei para fazer com que ele
aprendesse as primeiras letras, mas foi muito difícil. Ele também
tem dificuldade em falar. Não pronuncia as palavras
corretamente. Você não imagina como é difícil para mim, que sou
professora, ter um filho que não consegue aprender.
– Você é professora de quê? – perguntei achando, de repente,
interessante a vida daquela mulher que me parecia um tanto
quanto simples no trajar, mas muito culta e inteligente no falar.
– Sou professora de crianças. Ensino o bê-á-bá para os
pequenos.
– Deve ser um saco aturar aqueles pirralhos.
– Não é não, tudo é uma questão de dom. Cada um tem o seu
dom. Eu tenho o meu, você tem o seu. Deus, na sua santa
misericórdia, nos moldou para sermos diferentes nas profissões e
iguais no amor.
Remexi-me no banco. Aquele assunto me incomodou. Não
gostava de falar de Deus. Era algo que me deixava um tanto
quanto inquieta.
– Deus! – exclamei.
– Sim, Deus, você acredita nele?
Era exatamente a pergunta que eu queria evitar. Aquela mulher
na minha frente, com aquele vestido que lhe cobria as coxas,
deixava claro na sua postura ser evangélica. E eu, uma garota
quase descrente de tudo.
– Não tanto como a senhora. A sua fé deve ser enorme, do
tamanho daquela montanha – apontei para o monte mais alto que
se avistava dali.
Ela ficou satisfeita ao ouvir aquilo. Sabia me safar das
questões polêmicas. Aprendi com papai a ser esperta e
dissimulada, e dessa forma lutar com os leões e as zebras.
– Deus é tudo na minha vida. Se não fosse ele, não teria
conseguido suportar a dor de ver meu filho sendo renegado pelos
outros. Por conta daquele parto, fiquei estéril, como aquela terra
do sertão que não dá nenhuma flor.
– E o seu marido?
– Morreu. Não sei se de desgosto, ou se foi a bebida, mas um
dia ele simplesmente se deitou, dormiu e nunca mais acordou.
Ficamos sozinhos. Sorte eu ter um emprego.
Assim fomos conversando. Pude ver que as desgraças estão
espalhadas por aí. Por mais longe que se vá, há sempre uma
triste história para ser contada. Só que, de longe, a minha era
muito mais triste e tenebrosa.
– Falei muito de mim, e você não falou nada. E os seus pais?
Já estava esperando por aquela pergunta. Havia decorado a
resposta, pois sabia que por várias vezes teria que respondê-la.
– Não tenho pais. Eles morreram. Vivo em um convento lá na
capital. Estou de férias e resolvi passear por estes lados.
Ela arregalou os olhos. Pela sua reação, esperava tudo, menos
ouvir isso de mim.
– Vai ser freira?
– Se Deus quiser e a minha fé permitir – respondi, encenando
e fazendo o sinal da cruz. Na verdade, fazia aquilo para brincar
um pouco com aquela senhora.
– Eu sou evangélica – respondeu, como se estivesse
desapontada comigo.
– Percebi. Mas somos todos cristãos, adoradores do mesmo
Deus – falei, buscando uma certa conciliação.
– Isso é verdade.
– O que a senhora faz neste ônibus? – perguntei, antes que
ela me fizesse uma nova pergunta.
– Estou voltando para casa. Fui buscar o remédio que o
Marcelo precisa tomar. Lá em Novo Ipê a farmácia é tão pequena
que não tem o remédio que ele precisa tomar. Todo mês eu faço
esse trajeto. Aproveitei que hoje é sábado e fiz essa viagem que
não é tão longa assim. Longa deve ser a sua viagem. Há quantos
dias viaja?
Pronto, não teve jeito, lá veio ela com perguntas. Ela sempre
conseguia colocar uma pergunta no meio da sua resposta.
– Dois dias, mas não estou com vontade de falar dessa minha
viagem.
– Desculpe, prometo não fazer mais nenhuma pergunta –
levantou os olhos em direção à janela e apontou com o dedo: –
Olhe, estamos chegando.
Pela janela vi uma pequena cidade encravada numa colina
verde, ao lado de uma represa de água azul cristalina. Parecia
um cenário de filme paradisíaco.
– É só aquilo a cidade? – perguntei admirada. Nunca tinha
visto uma cidade tão pequena que cabia inteira no meu olhar.
A mulher sorriu. Achou engraçada a forma como falei e
respondeu em seguida:
– É, mas tem muitos sítios e fazendas. Estamos passando
neste momento por terras de fazendeiros da região.
Olhei em volta e vi o gado pastando e uma imensa plantação
de café que se estendia pelo vale e quase subia a montanha.
Perdi-me naquela imensidão e o silêncio pairou entre nós de tal
forma que nem percebi quando o ônibus entrou na cidade e parou
em frente à pracinha com coreto e chafariz. Todos se ergueram;
fiz o mesmo, sendo acompanhada pela mulher. Ela parecia ter
sido tomada por pensamentos.
– Chegamos – falei para ela como despedida enquanto rumava
para a porta.
– É verdade. Seja bem-vinda a Novo Ipê. Espero que goste
daqui.
Eu desci e fiquei parada na calçada. Era quase meio-dia e as
ruas estavam cheias. Não sabia o que fazer, nem para onde ir.
Voltei meus olhos para a mulher. Ela acabava de encontrar-se
com o filho. Os dois se abraçaram e pude notar o carinho que
havia entre eles. Naquele momento fiquei pensando sobre a
relação entre pais e filhos. Nunca acreditei nessa tal relação,
odiava toda e qualquer concepção que pudesse me levar a
pensar em pai, mãe, irmãos... enfim, família.
Precisava procurar um hotel, uma pensão, algum lugar que
não pedisse documentos. Eu era uma fugitiva, e como tal deveria
me portar.
– Este é o meu filho, Marcelo – levei um susto e virei-me dando
de cara com a mulher e seu filho enorme, quase um metro e
oitenta, me fazendo parecer menor ainda do que o meu um metro
e sessenta.
Sorri demonstrando simpatia e, mecanicamente, aproximei-me
dele, quase me pendurei em seu pescoço e dei-lhe um beijo
na bochecha saliente, quase rosa. Não me dei conta da besteira
que fizera. Ele arregalou os olhos e pôs a mão exatamente no
lugar em que beijei. Percebi, naquele momento, que ele era uma
pessoa muito especial.
– Fala alguma coisa, Marcelo – falou a mãe, tentando retribuir
a minha gentileza.
– Ela me beijou no rosto – falou ele, ainda boquiaberto.
– Ela é moça da cidade grande, lá é comum as pessoas se
cumprimentarem assim – olhou para mim e falou: – Eu lhe disse
que ele tem problema.
Fiquei sem graça. Não esperava uma reação desse tipo. Tinha
que me colocar no meu lugar. Não podia sair por aí distribuindo
beijos.
– Perdoe-me, não tive a intenção...
– Esqueça, não há problema nenhum. É que ele não está
acostumado... Agora temos que ir, até mais ver.
– Até – falei, abrindo minha mochila e pegando um boné,
enquanto ela pegava a mão dele e atravessava a rua. O sol
estava de rachar. Sentia meu corpo dolorido pelos solavancos do
ônibus. Precisava sair dali, andar, procurar um lugar onde
pudesse ficar. Que encontrasse alguém que falasse menos que
aquela mulher e que... quase não acreditei, mas ela voltava
grudada na mão do filho e vindo em minha direção.

– Que cabeça a minha! Conversamos tanto e sequer perguntei


o seu nome. O meu é Roseli – falou sorrindo e estendendo a
mão.
– Laura – falei, segurando a mão magra e comprida dela.
– Bonito nome.
Olhei para a minha mão grudada na dela, depois olhei para
ela. Eu não tinha mais o que dizer para aquela mulher. Depois de
um tempo, qualquer assunto se esgota, principalmente depois de
uma viagem de mais de uma hora. Ela parecia querer me dizer
algo, só que não tinha coragem nem eu dava chance porque, no
fundo, eu não queria me envolver com aquela mulher e seu filho.
Dessa forma, nos despedimos novamente e ela seguiu com o
filho.
Resolvi andar pela cidade, sentir um pouco daqueles ares.
Parei em frente à igreja que ficava no alto de uma escadaria. Ela
era imponente, pintada de amarelo e destoava um pouco do
restante das construções que compunham a cidade e que me
pareciam mais simples. Vi a sua enorme porta aberta. Tive a
impressão de que aquele era o único lugar aberto para mim
naquele momento. Como não tinha para onde ir, resolvi subir as
escadas e visitar meu velho e esquisito amigo: Deus.
Lá dentro o silêncio reinava. Sentei-me na primeira fileira e
fiquei de frente para o altar com uma enorme cruz iluminada por
lâmpadas azuis. Não pensava nada. Apenas descansava e
divagava em meus pensamentos quando, de repente, uma voz
rouca surgiu atrás de mim.
– Veio se confessar?
Virei-me e dei de cara com um senhor de cabelos brancos
escorridos, rosto enrugado e sorriso simpático.
– Não. Só estou rezando um pouco – respondi, mentindo.
Ele sentou-se ao meu lado batendo nas coxas em sinal de
indignação.
– O que está acontecendo com esse povo? Hoje é dia de
confissão e ninguém aparece.
Deduzi que ali na minha frente estava o pároco. Não tinha jeito,
por mais que eu tentasse me isolar, sempre aparecia alguém para
acabar com o meu sossego.
– Vai ver que estão ocupados – respondi por responder.
– Que nada! – esbravejou ele. – Os pecados são tantos que
eles não querem mais saber de pedir perdão.
– Vai ver eles estão pecando menos.
– Você está pecando menos? – questionou-me ele de relance,
pegando-me de surpresa.
Pensei por alguns instantes, precisava pensar numa resposta à
altura. Não tinha, melhor mesmo era responder da forma mais
simples possível.
– Acho que não. Estou pecando cada vez mais.
– Então por que não se confessa? Por que prefere fazer como
todos lá fora e ignorar os pecados?
Olhei aquele homem de cima a baixo. Que homem mais
estranho! Nem nos conhecíamos e ele falava como se eu fosse
uma de suas ovelhas desgarradas.
– Peço perdão todos os dias pelos meus pecados – respondi
pensando em me levantar e sair dali.
– Não é suficiente. É preciso confessar, abrir o coração de
verdade.
Fiquei sem saber o que fazer. Na certa ele ia me pegar e me
obrigar a confessar meus pecados. Estava ferrada.
Por sorte um grupo de senhoras chegou. Vieram em nossa
direção, desviando a atenção do padre que se levantou e quase
berrou:
– Estão atrasadas. Pensei que ninguém viesse se confessar.
As mulheres começaram a se explicar e o que era silêncio,
tornou-se burburinho. Aproveitei, peguei minha mochila e ia
saindo de fininho quando ele se virou para mim e falou:
– Te espero hoje à noite na missa, sem falta.
Balancei a cabeça sorrindo e saí. Lá fora, a praça tranquila
abrigava velhos sentados nos bancos embaixo das árvores.
Bicicletas transitavam pelas ruas, fazendo o papel dos parcos
automóveis que havia. Senti meu estômago roncar. Precisava
comer alguma coisa. Do outro lado da praça havia um armazém.
Entrei para comprar algo. Rumava para o fundo quando avistei a
mulher que conversara comigo no ônibus. Estava entretida
escolhendo umas verduras. Meio que escondida entrei sem fazer
alarde; sorte as bolachas estarem em uma gôndola logo à frente,
dessa forma não teria que cruzar com ela. Era só o que me
faltava, depois daquele diálogo mórbido que tive com o padre.
Peguei um pacote de bolacha, fui até o balcão, paguei e saí
rápido dali. Atravessei a rua e sentei-me no primeiro banco vazio
que encontrei. Abri o pacote e retirei uma bolacha. Aquilo seria o
almoço daquele dia. Fiquei ali devorando as bolachas e olhando o
movimento das pessoas andando pela calçada. Não havia
gostado daquela cidade, ficaria ali na praça em frente ao ponto,
esperando o ônibus para que me levasse embora dali. Havia
milhares de cidades; e, com certeza, uma que pudesse me
agradar.
Mergulhada em pensamentos não percebi que alguém se
sentou ao meu lado.
– Você ainda está aqui? – perguntou-me a mulher, que trazia
na mão uma cesta com verduras frescas.
Não adiantou, não consegui fugir dela. Parecia que o destino
insistia em colocá-la no meu caminho.
– Estou esperando o ônibus.
– Mas já vai embora? Não gostou da cidade?
– Sinceramente, não. Parece que não tem nem hotel.
– Nesta cidade não tem mesmo não. Nós quase não
recebemos visitantes. Quando vem alguém, geralmente fica na
casa de parentes.
– Eu não tenho parentes aqui.
– Então você não tem onde ficar.
– Por isso estou indo embora – falei, resignada.
Ela ficou pensativa por um momento. Notei que finalmente ia
me dizer algo, buscava apenas coragem e palavras:
– Pretendia ficar muito tempo?
– Não muito. Só uns dias para descansar.
– Minha casa é grande. Se quiser ficar lá com a gente, tem um
quarto com banheiro perto da lavanderia... não é luxuoso, mas dá
para você ficar alguns dias.
– Acho que não – respondi, decidida a fugir daquela mulher. –
Vou para outra cidade.
– É uma pena, você me parece uma boa menina, acho que uns
dias aqui iriam mudar um pouco a sua ideia sobre a cidade.
– Mas eu não quero atrapalhar a senhora e...
– Mas não vai atrapalhar, de jeito nenhum. É só não reparar na
simplicidade.
Fiquei pensando se devia ou não aceitar. Ela me olhava de um
jeito que me deixava desconcertada, era pegajosa, mas fiquei
pensando o que teria a perder ficando na casa dela. Se não
gostasse, podia pegar as minhas coisas e ir embora. Além do
mais estava cansada, com fome e fedida.
– Eu aceito, mas vou pagar por isso.
– De jeito nenhum – retrucou ela sorrindo, demonstrando
satisfação. – Você é minha convidada.

2.

A casa ficava numa rua que começava na praça e terminava


numa pequena clareira onde se podia ver o gado pastando.
Carros quase não havia, podia-se deitar no meio da rua e tomar
sol. Já a casa era grande, de muro branco baixo com um jardim
de roseiras que ia do portão até a porta da sala.
Ela me mostrou a casa como se fôssemos velhas amigas.
Nunca tinha visto uma pessoa assim, transbordando carência e
tentando a todo custo me agradar. Mostrou-me toda a casa; a
lavanderia, que ficava na saída da cozinha para o quintal dos
fundos onde havia uma plantação de mandioca e algumas
roseiras em flor. Depois do muro, um enorme descampado e um
paredão formado pelas montanhas. Parecia um quadro.
– Aqui é o seu quarto – disse, abrindo a porta. – Não é grande,
mas dá para você se arranjar.
Entrei, o quarto era de fato pequeno. Uma cama e uma
cômoda compunham o ambiente com uma janela de vidro que me
permitia ver as montanhas. No canto, uma porta indicava o
banheiro.
– Tem certeza de que não vou acabar com o seu sossego? –
falei envergonhada, muito menos por estar ali, muito mais por ter
feito mau juízo daquela mulher.
– Já disse que não, fique à vontade, tome um banho. O quarto
não está muito limpo, mas depois eu prometo uma faxina geral.
Olhei e procurei por sujeira. O quarto estava impecável.
– Está ótimo, obrigada.
– Eu vou preparar o almoço, nos encontramos na cozinha.
Ia dando as costas quando o filho lhe segurou forte as mãos.
Ela sabia que quando ele fazia isso, era porque queria dizer algo.
– Diga, Marcelo, o que você quer?
Ele olhou para ela, depois para mim. Estava visivelmente
envergonhado, mas falou com a voz titubeante:
– Ela vai ficar aqui com a gente?
– Vai – respondeu a mãe.
– E ela vai me beijar de novo?
Corei. Achei a fala dele engraçada, descabida de contexto.
Não imaginava que um simples beijo no rosto pudesse ter
marcado tanto aquele garoto. Prometi a mim mesma, naquele
momento, que depois faria uma penitência e que jamais beijaria
alguém no rosto assim sem qualquer motivo. Mas o que eu queria
mesmo era tomar um banho e ficar um momento, mesmo que
pequeno, sozinha.
– Não, filho. Beijo é só em momentos especiais, como aquele
em que vocês se conheceram na praça.
– Eu quero mais um.
Ela me olhou e eu fiquei sem saber o que dizer. Ela notou que
eu estava sem graça.
– Não pode, Marcelo. Não é assim que as coisas acontecem.
Quem sabe depois que vocês ficarem amigos, consegue roubar
um beijo dela.
Os dois foram saindo conversando. Ela parecia ter uma
paciência inesgotável com aquele garoto. Fechei a porta e quase
não acreditei que estava só. Precisava fazer um monte de coisas
naquele momento, eram todas urgentes: fazer xixi, tomar banho,
deitar um pouco, comer... chorar.
De todas as urgências, a maior era chorar. Ali mesmo na porta,
encostando-me nela, fui me abaixando diante do peso de um
sentimento que doía o corpo todo e copiosamente chorei. Puxei
meus cabelos, estapeei minha cara e quase rasguei minhas
roupas. A dor no coração era tanta que quase não cabia em mim.
Parecia maior do que aquela montanha que me separava do
resto do mundo.
Depois a dor passou. Precisava mesmo chorar. Abri minha
mochila, tirei uma muda de roupa e a estendi sobre a cama.
Comecei a despir-me, minha roupa cheirava mal. Tive nojo dela
naquele momento. Joguei-a num canto do quarto, perto da porta.
A primeira providência que tomaria, seria lavar aquela roupa ou
jogá-la no lixo.
O banho. Nada melhor do que um banho. Abri o chuveiro no
máximo e deixei que a água gelada tomasse conta do meu corpo.
Evitava sonhar, fechar os olhos, pois, sempre que fazia isso, as
imagens de papai, mamãe e de Aline apareciam na minha frente.
Depois do banho saí enrolada na toalha. Meus cabelos
pingavam e o calor daquele lugar era tão insuportável que me
sentia como se tivesse acabado de sair de uma sauna. Sobre a
cômoda havia um espelho. Desenrolei-me da toalha e comecei a
me secar. Começava a mergulhar novamente em pensamentos.
Fazia de tudo para que eles fossem embora. Olhei-me no espelho
e quase dei um grito. Atrás de mim ele refletia a janela e na janela
estava Marcelo me olhando. A primeira reação que tive foi de me
enrolar novamente na toalha. Pensei em gritar, dizer para ele sair
dali. Era uma janela de vidro, sem cortina, não tinha como fechá-
la. Então me aproximei dele que parecia extasiado, anestesiado,
boquiaberto. Podia dizer um monte de coisas para ele, mas será
que ele entenderia?
Ficamos frente a frente por alguns segundos. Ele do lado de
fora, eu enrolada na toalha, quase encostada no batente da
janela. Não sei o que me deu naquele momento, jamais vou
conseguir explicar o meu gesto. Acho que foi porque os olhos
dele pediam, imploravam. Abri a toalha e deixei-a cair, expondo
meu corpo na sua frente. Ele engoliu seco, coçou a cabeça e
olhou para os lados. Juro que daria um tostão para saber o que
ele pensava, o que ele sentia. O que eu estava fazendo? Estava
ficando louca? Acabara de ser acolhida numa casa e já me
insinuava para um garoto com problema? Senti-me
envergonhada, suja. Peguei minha roupa que estava sobre a
cama e corri para o banheiro.

3.
Cheguei à cozinha completamente sem jeito. Sentia-me uma
intrusa, apesar da acolhida. Dona Roseli colocava o almoço.
Marcelo estava sentado num canto da mesa entretido com um
copo na mão. Quando cheguei, ele quase deu um pulo, parecia
assustado.
– Marcelo, ela é a nossa convidada, esqueceu? Sente-se aqui,
Laura, o almoço está quase pronto. Você deve estar morrendo de
fome.
– Não muito – menti, sentando-me com cuidado ao lado dele
que me encarava como se visse um fantasma.
– Será que é a roupa que estou usando? – perguntei.
Ela, que estava de frente para o fogão virando o feijão em uma
cumbuca de barro cru, voltou-se para mim.
– O quê? Ah, não! – exclamou, olhando para ele. – Sua roupa
está ótima, o calor daqui é infernal, todas as meninas usam
shorts e blusa regata. Ele só está te estranhando. Logo você se
acostuma. Ele é uma criança aprisionada no corpo de um rapaz.
– Deve ser estranho isso – falei, enquanto ela colocava o feijão
na mesa ao lado do arroz, do bife e da salada. Uma comida
simples, mas que cheirava muito bem.
– E é. O cérebro dele pensa e age como uma criança de cinco
anos, mas o corpo tem dezoito e age como tal. Então ele vive o
conflito do corpo sentir certos desejos e o cérebro não conseguir
interpretar muito bem o que quer dizer isso.
– Como assim? – perguntei, tentando entender melhor o que
ela queria dizer.
– Por exemplo, veja como ele te olha. Os olhos parecem
perdidos, assustados, isso porque o corpo dele reagiu ao te ver,
sentiu aquilo que um homem sente por uma mulher, mas a
cabeça não consegue entender, decodificar isso, então ele fica
com essa cara, neste descompasso, o corpo dizendo uma coisa e
a cabeça, outra.
Olhei para ele que, de vez em quando, abaixava a cabeça e
brincava com o talher.
– Coitado.
– Não sinta pena, tente apenas entendê-lo – falou a mulher,
pegando meu prato e me servindo.
– A senhora parece que entende bem o problema do seu filho.
– Entendo. Estudei. Se você for ao meu quarto, tenho todo tipo
de livros que falam do problema do Marcelo. Entendendo, fica
mais fácil ajudá-lo a suportar todo o problema. Mas vamos mudar
de assunto. Sabe o que eu achei estranho? – olhei para ela
esperando a resposta. – O fato de você não usar nenhum
crucifixo, nenhuma medalhinha, nada que lembre estes símbolos
católicos.
– Ah, é! – exclamei, procurando por uma boa resposta. – É que
não sou muito ligada nessas coisas.
– Mas você está num convento, vai ser freira.
– Minha ordem não se liga muito em símbolos sacros.
Respeitamos os santos e suas imagens, mas não costumamos
usar crucifixo ou imagem de santos.
Ela me passou o prato quase transbordando. Achei um
exagero, duvidei de que aquilo tudo pudesse caber no meu
estômago, mesmo assim ainda peguei um bife, um pouco de
salada e quando ia me preparar para comer, veio uma nova
pergunta:
– De que congregação você é?
– Das madres da Via Sacra – falei sem pensar, mais
interessada em cortar o bife e levá-lo à boca.
– Gozado, nunca ouvi falar dessa congregação – estranhou
ela, encarando-me.
“Nem eu”, fiquei com vontade de dizer, pois já estava saturada
de tanta pergunta.
– É que você é evangélica, está por fora dos movimentos
religiosos dentro da minha igreja – falei, enchendo a boca e
comendo com vontade.
– Fui católica uma época, quando vivia no Sul, já quase na
fronteira. Fui criada lá e meus pais eram católicos fervorosos.
Depois me mudei pra cá, conheci o meu marido e me converti.
Ainda bem que eu era católica, antes ia sempre à missa, por
isso acho que convencia, mesmo dizendo as mentiras mais
absurdas.
– Agora sou eu que quero fazer uma pergunta – falei, enfiando
uma folha de alface na boca.
– Faça.
– O que faz uma mulher tão inteligente num lugar tão distante
como este?
Ela sorriu, largou o garfo e a faca, limpou a boca como uma
pessoa educada e respondeu:
– Tem mais de vinte anos que moro aqui, acho que já esqueci
a resposta. Mas não tente traçar um paralelo entre este lugar e a
inteligência das pessoas. Se você andar por aí vai ver que há
pessoas muito inteligentes vivendo em sítios, ou aqui mesmo na
cidade. Pode parecer estranho, mas o fato de sermos caipiras e
termos sotaque não nos faz mais ou menos inteligentes do que
qualquer um da cidade. Aliás, esta é uma pergunta que me
passou pela cabeça: o que faz uma jovem garota inteligente e
bonita aqui por estas bandas?
De novo ela aproveitou a resposta e me devolveu uma
pergunta. Eu devia ficar de boca fechada, abri-la só para pôr
comida, mas não, insistia em conversar com ela. Virei a cabeça e
fiquei olhando Marcelo comer. Ele revirava a pouca comida que a
mãe colocara no prato. Derrubava a metade, enchia a boca e
comia de qualquer jeito, me lembrando um pouco os ruminantes,
aqueles mesmos que ficam comendo capim no pasto.
Não respondi à sua pergunta. Mudei de assunto e falei sobre o
calor que sentia, sobre o clima do lugar.
Assim foi o almoço.
Finalmente terminamos de comer. Não via a hora de ir para o
meu quarto. Dispensei a sobremesa e falei que estava cansada.
Ela entendeu. Levantei-me e saí dali deixando os dois na mesa.
Ela já havia terminado, quanto a ele...
No quarto, tratei de arrumar minha roupa na cômoda. Peça por
peça fui tirando e colocando nas gavetas. No fundo da mochila
havia um envelope. Dele retirei alguns pôsteres do Renato Russo
e do grupo Legião Urbana que havia comprado na rodoviária da
primeira cidade em que desci. Adorava as músicas deles,
sonhava um dia conhecer o Renato; apaixonei-me por ele e não
me conformava por ele ter morrido. A banda fez muito sucesso
durante a década de 1980, eu ainda nem havia nascido. Quando
pude entender um pouco da essência das músicas deles, o
Renato morreu e a banda desapareceu. Eu me sentia órfã de
uma geração que sequer conheci. Nunca havia dançado nem ido
a nenhum show deles. O que me restaram foram músicas e letras
que o Renato fez e que mexiam com a minha cabeça.
Procurei pela parede que estivesse mais lisa, mais nua e fui
colando os cartazes com um resto de fita que trouxera junto. As
imagens deles ficaram de frente para mim. Eu olhava o rosto do
Renato e pensava, qual de nós dois vivera um drama maior.
Peguei meu discman, coloquei o fone de ouvido e comecei a
ouvir uma música que ele compôs. Quisera eu ter a cabeça de
compor algo assim, escrever pelo menos. A letra dessa música
mexia comigo. Na minha cabeça de menina, eu a imaginava
como uma música que ele fizera para mim:

“Mudaram as estações e nada mudou


Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Está tudo assim tão diferente...

4.

Acordei com uma leve batida na porta. Olhei pela janela e vi


apenas o breu da noite. Dei um salto e corri para a porta. Dona
Roseli estava lá com aquele mesmo ar simpático.
– Desculpa te acordar, você dormiu a tarde toda.
– Meu Deus! Não podia ter dormido tanto assim – falei
desesperada, jogando-me na cama.
Ela veio atrás e tentou me confortar.
– Por que não? Você viajou dois dias, estava cansada. Só
fiquei preocupada porque vou à igreja, precisava te avisar... – ela
olhou na parede e viu os pôsteres. – Quem são esses?
– Um grupo de rock que eu sou fã. Posso deixar aí na parede?
– Pode. Eu quase não ouço música. Aqui em casa não temos
rádio nem tevê. Mas fique à vontade – olhou para o meu discman:
– Pode ouvir música, ler, sinta-se como se estivesse em sua
casa.
– Mas não estou, dona Roseli. Inclusive, queria acertar com a
senhora a minha estada aqui.
– De jeito nenhum, já disse, você é minha convidada.
– Mas eu tenho dinheiro – protestei, pegando a mochila e
tirando o dinheiro do bolso dela.
– Guarde o seu dinheiro, tenho certeza de que você vai
precisar dele lá na frente.
– Mas não é justo...
Ela deu as costas e nem esperou que eu terminasse de falar.
Antes de fechar a porta apenas disse:
– Eu e o Marcelo vamos à igreja. Se quiser, tem comida no
forno. Voltamos às dez.
Joguei-me de vez na cama. Estava atordoada, nervosa. Não
queria ter dormido. Há muito tempo não sabia o que era dormir
direito. E agora, como iria dormir à noite com o corpo
completamente descansado?
Ouvi o barulho da porta se abrindo e eles saindo.
Imediatamente dei um pulo e me preparei para sair. Imagina se
eu ia ficar sozinha naquela casa. Não que ela tivesse algum
problema; nem fantasma. O problema era eu e os fantasmas que
me acompanhavam.
Passei pela cozinha e ameacei abrir o forno e ver o que tinha
de comida. Desisti. Não tinha fome. Tomei um gole d’água e
ganhei a rua. Triste rua que àquela hora estava deserta, nem os
cachorros vira-latas passavam por ali. Olhei para o alto das casas
e vi enormes antenas apontadas para o céu. Estava explicado:
todos estavam diante de suas caixas mágicas, vivendo momentos
mágicos e deixando a vida correr solta lá fora. Subi a rua e
cheguei à praça com seu chafariz colorido, coreto abandonado e
bancos vazios. Senti frio. O vento gelado descia a montanha e,
sem o sol, a sensação de frio aumentava. Sorte eu estar com
uma jeans, mas continuava com a camiseta regata que deixava
meus braços pelados. Sentei-me num banco e fiquei observando
o pipoqueiro que, solitário, estourava suas pipocas. De um lado
da praça ficava a imponente igreja católica, do outro, menor e
mais discreta, a igreja evangélica onde deveria estar a dona
Roseli e seu filho. Levantei-me e fui à igreja – católica, claro! Não
sei definir o impulso que me levava até lá. Subi a escadaria e
entrei no momento em que o padre fazia a sua homilia. Todos os
bancos estavam ocupados. Os corredores também. Fiquei no
centro do corredor de onde se podia avistar toda a nave e o altar
em ouro e flores com o padre falando ao microfone. Notei que ele
me olhou. Que me importava? Havia tanta gente ali, seus olhos
deviam cruzar, pelo menos uma vez, com os olhos de cada um
dos fiéis.
Durante todo o tempo da missa eu rezei, pedi por mamãe e
pela Aline. E pedi por mim, que estava perdida, atordoada e
temerosa. Quando terminou a missa, não saí. Aproveitei os
bancos vazios e resolvi ficar sozinha com Deus. Senti
necessidade de prestar contas desses últimos dias em que eu
mal tive tempo de falar com ele. Assim não vi o tempo passar.
Estava tão envolta no meu pensamento que não notei quando
alguém se aproximou e se sentou do lado.
– Posso? – afastei-me um pouco e ele se sentou. – Acho que
já nos conhecemos, não é verdade? Você veio se confessar hoje
à tarde. Viu como, apesar de velho, tenho uma memória de
elefante? Mas pelo jeito a confissão não resolveu os seus
problemas, seus pecados devem ser enormes. Você confessou
tudo?
Aquele padre devia estar caduco. Só que eu não podia dizer
para ele que não me confessara, que não estava interessada em
me confessar e que eu não era uma de suas ovelhas. Melhor
mesmo era simular.
– Confessei padre, disse tudo que tinha para dizer.
– Então por que essa agonia, minha filha? Por que choras?
Na minha vida sempre foi assim, quanto mais eu queria
sossego, mais barulho aparecia, quanto mais solidão eu pedia,
mais gente surgia, quanto mais eu rezava, mais “assombração”
aparecia. E ali estava o padre novamente. Pensei que ele tivesse
sumido depois da celebração, que tivesse ido cuidar de suas
ovelhas desgarradas. Mas não! Ele estava ali novamente do meu
lado, fazendo o quê, eu não sabia.
– São problemas, padre – falei.
– Todos nós temos problemas, minha filha. Esta é a cruz que
temos que carregar.
– Mas a minha está muito pesada. Não estou aguentando.
– Fique tranquila, Deus jamais desampara alguém. Se esta
cruz que você carrega é muito pesada, pode ter certeza de que
ele lhe reservou força extra. Mas uma menina tão nova, que
pecados pode carregar para que essa cruz seja tão pesada.
Matou alguém? – perguntou ele, em tom de brincadeira.
– Se eu disser que sim...
Ele riu, bateu com as mãos nas pernas e falou:
– Eu não acreditaria. Você tem olhos de anjo, mãos de candura
que não seriam capazes de cometer tal ato. Talvez um namorado.
Você não andou aprontando, andou? Gozado, não me lembro da
tua confissão. São tantas. Eu lhe dei o perdão? – balancei a
cabeça dizendo que sim. – Então o que está acontecendo?
Meus olhos estavam fitos no alto, nos anjos e santos lá
expostos. Evitava encarar aquele padre que, não sei por quê,
viera conversar comigo.
– Nada. Só estou com saudades da minha mãe e da minha
irmã.
– Onde elas estão?
– Acho que no céu.
– Morreram?
– Sim, sofreram um acidente – falei chorando, sem conseguir
me conter.
Ele me abraçou e pude sentir um leve perfume de almíscar que
saía daquele homem.
– Você não é daqui da cidade, não é mesmo?
– Não. Estou na casa da professora Roseli – falei me
separando dele e limpando as lágrimas. Não podia mais ficar ali
falando com ele. Não podia ficar expondo a minha vida para
qualquer um. Sabia que precisava de ajuda, mas quem poderia
me ajudar?
Levantei-me e ia saindo quando ele segurou a minha mão.
Segurou firme, como se quisesse me impedir de ir embora. Fiz
menção de puxar, mas com a outra mão ele tirou do bolso um
pequeno crucifixo de madeira talhado e envernizado em tom
escuro. Eu abri a mão que estava presa na dele e,
delicadamente, ele depositou o crucifixo nela. Não me disse
nada. Nenhuma palavra. Eu também não, apenas ganhei a rua
descendo a escadaria que dava direto na praça que, agora,
estava cheia de gente transitando, comendo pipoca e chupando
sorvete. Lá da praça olhei para trás e vi o velho padre trancando
a igreja.
Coloquei o crucifixo e jurei nunca mais tirá-lo do pescoço. Pelo
menos a dona Roseli ia ver que agora eu tinha um símbolo
católico. A angústia que tomava conta de mim passou. Fiquei
dando voltas pela praça seguindo um fluxo migratório de jovens
que se divertiam rodando a praça. Aos poucos ela ia se
enchendo, coincidindo com o fim da missa e da novela. Alguns
garotos mexiam comigo. Não dava atenção. Não estava
interessada neles, nem em ninguém. Comprei pipoca e parei,
abestalhada, quando vi um homem velho de chapéu de palha e
um realejo tocando aquela típica música que, para mim, era
folclórica.
– Quer tirar a sorte, mocinha? – perguntou-me ele, enquanto
eu me aproximava e mexia com o papagaio que ficava sobre uma
caixinha cheia de papéis dobrados.
Não respondi, apenas tirei uma nota e entreguei a ele, que
ficou falando com o papagaio e o incentivando a tirar um
papelzinho. O bicho ficou indeciso, andava de um lado e de outro
até que abaixou o bico e retirou o papel. O velho imediatamente
tirou do bico dele e passou para mim. Que droga! Que diabo que
estava fazendo? Uma coisa é ver de perto um realejo, que eu
conhecia só de livro e de televisão; outra era pagar para tirar a
sorte. Enfim, com aquele pedaço de papel na mão, fui andando
até achar um banco vazio bem no centro da praça, quase ao lado
do chafariz que cuspia água. Abri o papel e li o que estava
escrito. Um texto curto, mal redigido por alguém que tinha as
mãos trêmulas: “Fique feliz, você encontrou o seu outro lado”.
“Merda!”, exclamei baixinho, enquanto jogava o papel no cesto
de lixo que estava do meu lado. Fiquei pensando sobre o meu
outro lado. Que lado seria esse? Então me lembrei de uma
conversa que tive uma vez com a minha mãe. Eu estava triste
porque na escola ninguém gostava de conversar comigo. Todos
os meus amigos diziam que eu era puxa-saco dos professores,
que só tirava notas altas. Então ela me falou que eu era um tipo
raro de menina, especial, que falava e pensava como gente
grande, que tinha corpo de menina de dez anos e cabeça de
jovem de vinte. Achei o máximo aquilo. Quer dizer que havia
dentro de mim uma adulta aprisionada. Depois disso, nunca mais
tive amigos, nem precisei deles porque passei a pensar e a agir
como uma mulher adulta.
Foi aí que me veio à cabeça a imagem do Marcelo, filho da
dona Roseli. Ele também vivia aprisionado em um corpo que não
era dele, só que ao contrário de mim. Seria ele o meu outro lado?
Este era o lado mau de se ser um “ser pensante”: A gente fica
pensando merda e tirando conclusões ridículas das coisas.

5.

Quando cheguei, encontrei os dois no sofá. Ela sentada


fazendo cafuné nele, que repousava tranquilamente a cabeça em
suas coxas brancas e lisas que apareciam sob o vestido puxado.
Ao me ver ela se ajeitou. Ele abriu os olhos, olhou-me e fechou-
os novamente.
– Passeando por aí? – perguntou ela.
– A noite está tão fresca.
– Aqui é assim, durante o dia o calor é sufocante, mas à noite
o vento que vem lá de cima deixa tudo fresco. Passeou pela
praça?
– Fui à missa – respondi, sentando-me numa poltrona em
frente a ela, enquanto com uma das mãos mexia mecanicamente
no crucifixo.
– E vejo que arrumou um crucifixo.
– Ganhei do padre.
– Está gostando daqui?
– Estou. É uma cidade tranquila e boa de se viver.
– O que você procura, Laura?
Ajeitei-me na poltrona colocando os pés por sobre os braços
dela e respondi:
– Procuro um lugar para ser feliz.
– O que aconteceu com você que seus olhos são sempre
tristes? Não pode contar?
– Não, acho que a senhora já tem problemas demais.
– Você é estranha, sabia?
– Já me disseram isso várias vezes.
– Você fala como se fosse uma mulher – disse dona Roseli,
tentando ver a minha reação. Percebi claramente que ela queria
me testar.
– Mas eu sou mulher, é só ver o meu corpo e...
– É isso que eu digo. Você não fala como se fosse uma garota
de dezoito anos. Fala como se fosse uma mulher vivida, de mais
de trinta.
– Gozado – falei, olhando séria para ela. – Agora há pouco
estava pensando sobre isso. Minha mãe costumava dizer que eu
era assim, corpo de criança e cabeça de adulto. Ao contrário do
seu filho: corpo de adulto, cabeça de criança.
Ao ouvir aquilo ela se ofendeu. Fechou o rosto sempre tão
simpático e disparou:
– O que você quer dizer? Que é melhor que ele?
– Não quis dizer isso, desculpe-me – falei me levantando e
tentando me aproximar dela.
– Mas deu essa impressão.
– Foi sem querer – falei, como que pedindo desculpas. Ficou
um clima estranho. Eu precisava controlar a minha boca para o
meu próprio bem. – Acho que vou para o meu quarto – e fui
saindo. Ela não disse nada.
Cheguei ao quarto com a terrível sensação de que aquela seria
a noite mais longa de minha vida. Não tinha sono, nem vontade
de ouvir música, muito menos de pensar. Pior, meu estômago
começou a revirar e uma dor de barriga repentina tomou conta de
mim. Corri para o banheiro. Nada como a latrina para aliviar as
dores e os pensamentos.
Não sei o que aconteceu. Depois daquela vez, voltei outras
tantas ao banheiro. Sentia agora uma cólica terrível que parecia
haver um nó no meu intestino. Já havia colocado tudo para fora,
nem água saía mais. Aquilo estava me dando desespero.
Começou mais ou menos lá pelas onze horas da noite. Já eram
mais de duas horas e eu vivia a agonia de sentir uma dor terrível
na barriga, e por mais que eu fosse ao banheiro, nada era capaz
de cortar aquela dor.
Estava no banheiro pela décima vez quando bateram na porta.
– Laura, você está bem?
– Não – respondi gemendo, tentando me levantar do vaso.
A porta não estava trancada e dona Roseli entrou. A porta do
banheiro estava escancarada. Ela olhou todo o quarto para
depois se virar e me ver sentada no vaso.
– O que está acontecendo?
Foi o que ouvi. Depois tudo escureceu e não vi mais nada.
Acordei com algo gelado em meu peito. Abri os olhos e dei
com um homem grisalho, aparentando meia-idade, todo de
branco, com um estetoscópio auscultando meu coração.
– Morri?
– Ainda não – respondeu com o hálito de quem havia acabado
de fumar um cigarro. – Bom-dia! – exclamou ele, aproveitando
para ver os meus olhos.
Olhei em volta, vi dona Roseli e Marcelo em pé, olhar
preocupado como se tivessem acabado de ver um defunto
ressuscitar.
– Você está bem? – perguntou-me ela.
– Sim, mas não sei como ficou o carro – respondi pondo a mão
na testa.
– Que carro?
– O que me atropelou. Acho que pegou de frente.
O médico riu e enquanto preparava a seringa, falou:
– Você tem um ótimo senso de humor, menina, mas a sua
situação não é lá muito boa. Se tivéssemos um hospital aqui na
cidade, eu a levaria para lá agora, você está muito desidratada. O
que foi que andou comendo?
– Pouca coisa. Comi pipoca e algodão doce lá na praça ontem
à noite.
– É grave o caso dela, doutor?
Ele pegou meu braço, prendeu um elástico grosso nele e a
veia saltou. Não perdeu tempo e enfiou a agulha.
– Não posso dizer com certeza. Ela teve uma diarreia muito
forte, está desidratada. Parece que ela tem uma infecção no
intestino, teria que fazer alguns exames, dessa forma eu teria um
diagnóstico mais preciso. Mas você bem sabe que nós aqui na
cidade não dispomos de nada disso. Bem, eu dei uma injeção
para cortar a dor se ela voltar. A febre passou. Vamos controlar a
alimentação dela e dar bastante líquido. Se não melhorar, ela vai
ter que ir ao hospital da cidade mais próxima.
Ele se levantou, tirou da maleta um bloco de receitas, foi até a
cômoda e me prescreveu um monte de remédio. Disse que eu
deveria comprar caso as dores voltassem. Deixou ali mesmo na
escrivaninha, despediu-se e saiu acompanhado de dona Roseli.
Marcelo ficou me observando. De repente, ele sentou-se do meu
lado e ficou passando a mão na minha cabeça, do mesmo jeito
que a mãe dele fazia.
– Você está dodói?
Fiquei surpresa, era a primeira vez que ele me dirigia a
palavra.
– Eu vou melhorar – falei, fechando os olhos, sentindo a mão
macia dele nos meus cabelos.
– Vai, sim, eu cuido de você. Pode ficar tranquila que eu cuido
de você – foi até a cômoda, pegou a receita e concluiu: – Você
precisa comprar remédio, senão fica doente.
– Deixa aí, depois eu vou comprar – falei, virando para o lado e
fechando os olhos.
Assim passei o dia entre os cuidados de Marcelo e de sua
mãe. Queria me levantar, eles não deixavam. Tinha que ficar de
repouso, tomando mingau e soro caseiro. Dessa forma o dia
passou e só no fim da tarde foi que eles, principalmente Marcelo,
desocuparam o quarto, deixando-me sozinha. Levantei-me e fui
tomar banho. Meu corpo fedia. Sentia as pernas bambas e um
gosto amargo na boca. Que diabo acontecera? Deixei a água cair
sobre o meu corpo por um longo tempo. Queria ter a certeza de
que estava viva.

6.

Dona Roseli estava na cozinha preparando a janta. Marcelo


brincava com um pedaço de papel e um lápis, desenhando
figuras abstratas. Entrei toda arrumada, cabelo preso e
maquiada.
Quando ela me viu, não deixou de comentar:
– Como está bonita! Vai a alguma festa?
– Não – respondi, acertando a saia jeans no corpo. – Vou
namorar. Será que tem algum rapaz na cidade interessado numa
garota de cidade grande?
– E o convento? – lembrou-me ela, brincando.
– Depois do que passei hoje, acho que só uns beijos pra me
fazer feliz.
Ela se aproximou de mim, colocou a mão no meu pescoço.
– Você está um pouco febril. Não acredito que vai sair.
– Não aguento ficar dentro daquele quarto.
– Fica aqui com a gente.
– Não posso, dona Roseli. Se ficar aqui, fico louca. Sabe,
tenho que queimar energia, senão eu não consigo dormir.
– Mas e se te der caganeira lá na praça?
– Eu corro pra cá.
– Pode não dar tempo.
– Eu faço na calça.
– Você é cabeça dura.
– Eu sei.
Ela então se virou para o filho, que estava distraído rabiscando
o papel e disse:
– Marcelo, vai se arrumar que você vai na praça passear com
a Laura.
Ele se levantou todo desajeitado. Não era de questionar as
ordens da mãe. Tudo o que ela pedia ele fazia de imediato.
– Não precisa, dona Roseli – tentei protestar, mas ela estava
decidida.
– Se você quer namorar, namora o meu filho. Ele é um rapaz
como outro qualquer. É só não faltar com o respeito com ele.
Devolva-o inteiro para mim.
Saí, meia hora depois, de braço dado com um rapagão
desajeitado, corpo de homem e cabeça de guri. No começo não
me sentia muito à vontade. Ele tomou banho, vestiu uma calça
jeans apertada, uma camisa xadrez e engomou o cabelo com gel.
Só faltou o chapéu para ficar parecendo com aqueles babacas
caubóis americanos. Mas o calor do corpo dele me fazia bem.
Sentia-me protegida ao lado dele. Aos poucos fui me encostando
mais e, de repente, estávamos andando abraçados pela praça da
cidade.
Ele não tinha dinheiro, então eu paguei pipoca, algodão-doce,
batata-doce, sorvetes... Ele comia com uma gula que parecia não
ter mais fim. Eu não comi nada. Fiquei imaginando se tudo aquilo
batesse no meu intestino, acho que explodiria.
Ainda era cedo, mas eu sentia minhas pernas doerem, por isso
saímos da praça. Um grupo de garotos passou por nós. Um deles
fez uma gracinha comigo. Fingi que não ouvi e abracei ainda
mais forte o Marcelo, que parecia alheio a tudo aquilo.
– Olha lá, meu, o retardado está namorando a gatinha...
Todos riram e começaram a andar atrás da gente. Outro gritou:
– Você é tão bonitinha, como tem coragem de namorar esse
bronco. Você é cega, é?
– Cega nada, deve tá a perigo. O cérebro dele deve ser desse
tamanho, mas o negócio lá embaixo deve ser maior que uma
cobra.
E foram fazendo gracinha por alguns metros. Eu estava
morrendo de medo deles. Não sei o que seriam capazes de fazer.
Olhei para os lados e, com exceção da praça, as ruas estavam
desertas. Melhor mesmo era ficar quieta e seguir. De vez em
quando Marcelo olhava para mim e perguntava:
– Eles estão brincando com a gente?
– Estão – respondi, apressando o passo. – Mas fica quieto,
não fala nada, entendeu?
– Por quê? Eu conheço... são da escola da mamãe.
E eles assobiavam, gritavam ao nosso redor. Alguns davam
tapa na cabeça do Marcelo que, ingenuamente, sorria. Acho que
se eu tivesse uma arma, daria um tiro em cada um deles.
Finalmente chegamos. Eles faziam tanto barulho pela rua que
a dona Roseli saiu no portão. Ao vê-la, eles deram as costas e
saíram correndo.
– Aconteceu alguma coisa? Aqueles garotos estavam
importunando vocês?
– Não – respondi disposta a pôr uma pedra sobre o
acontecido. – Eles só vieram nos acompanhar até aqui, não foi,
Marcelo?
Ele concordou com a cabeça e puxou a mãe pela mão para
contar tudo o que ele comeu lá na praça. Contou tudo, detalhe
por detalhe, quantos sacos de pipoca ele comeu, quantas
batatas-doces e que o tempo todo ficou abraçado comigo.
– Pelo jeito você arrumou um namorado – disse ela, radiante
com a felicidade do filho.
Eu abaixei a cabeça e fui para o meu quarto. Antes, fiquei na
lavanderia olhando a escuridão lá fora. Não pude evitar ouvir o
que ela dizia para ele.
– Você não faltou ao respeito com a moça, não é mesmo?
Você não ficou passando a mão nela, ficou?
– Não, mãezinha. Juro por Deus.
– Não pode. Você tem que respeitar. Você é puro e deve se
manter assim... entendeu?
– Mas eu sinto vontade. Eu quero pôr a mão aqui, aqui...
– Não. Não pode, entendeu? – falava ela com toda paciência
do mundo. A impressão que me deu foi de que ela segurou as
mãos dele. – Você não deve tocar em mulher, deve se manter
puro, casto, senão Deus castiga.
Fui para o meu quarto para mais uma noite de terror. Precisava
dormir, não tinha sono, precisava comer, não tinha fome,
precisava viver, não tinha vontade...

7.

O dia amanheceu maravilhoso. No meu sono intermitente vi a


luz do sol surgir por entre as montanhas. Estranhamente me
sentia bem. Levantei-me e, enquanto escovava os dentes,
olhava-me no espelho.
Fazia calor, vesti uma bermuda e coloquei uma camiseta
branca bem fina e saí do quarto dando bom-dia até aos
passarinhos. Na cozinha encontrei uma mesa com café, leite,
pão, bolo e bolacha. Dona Roseli estava toda bem vestida, pronta
para o trabalho.
– Sente-se, Laura, venha tomar café com a gente – falou ela,
enquanto Marcelo puxava a cadeira para que eu me sentasse.
Sentei-me e peguei uma bolacha. Sentia fome. Aquele dia
parecia um dia diferente. Se não fosse, eu o transformaria e o
deixaria diferente.
– Estou atrasada. Minha aula começa às sete horas, ao meio-
dia estou de volta. Você não se importa em ficar sozinha com o
Marcelo?
Olhei para Marcelo que me sorria com uma certa cumplicidade.
– Claro que não, eu e o Marcelo nos damos muito bem, não é
mesmo, companheiro? – falei, segurando a mão dele.
Ele concordou com a cabeça, enquanto limpava a baba que
lhe escorria pelo canto da boca.
– Marcelo, leva ela para passear na represa. Tem uns lugares
muito bonitos por lá – sugeriu, pegando seus livros e saindo.
Terminei de tomar café. Estava naquela casa fazia três dias e
me sentia como se vivesse ali há anos.
– Vamos? – estendi a mão para que ele me acompanhasse.
Ainda era cedo e a cidade parecia acordar devagar. Apenas
algumas crianças e uns velhos andavam taciturnos pelas ruas.
Seguimos uma estreita estrada de terra. Uma estrada longa que
parecia não ter mais fim. Nós dois íamos brincando, correndo. De
vez em quando eu jogava uma pedrinha nele e ele corria atrás de
mim. Subia os barrancos da beira da estrada e me jogava sobre
ele que, com todo aquele corpanzil, segurava-me com a maior
facilidade do mundo.
Já havíamos caminhado mais de dois quilômetros. Acabei me
descuidando dele e quando dei conta, ele estava sentado na
beira da estrada. Parecia velar algo. Voltei e aproximei-me. Com
as mãos ele acariciava uma flor do campo amarela que
bravamente floresceu ali, no meio do pó, entre a estrada e um
tufo de capim. Quando ele me viu, mudou bruscamente a sua
atitude e arrancou a flor com violência.
– Não faça isso, Marcelo. Você não devia ter arrancado a flor –
reclamei com ele, que se colocou em pé na minha frente.
Ele me olhou com ternura, aquela que só um ser humano tem
por outro. Pegou a flor e colocou-a presa no meu cabelo. Fiquei
surpresa com o gesto dele. Aquele menino era o anjo e eu a
maldade. Não sabia o que dizer. Uma vez minha irmã me disse
que quando não sabemos o que dizer, retribuímos com um beijo.
Foi o que fiz. Pulei no pescoço dele e lhe dei um beijo bem
molhado na bochecha. De novo ele ficou abestalhado, como se
tivesse levado um choque.
– Você me beijou de novo.
– E daí? Não é gostoso beijar?
– Eu quero te beijar – falou ele de supetão.
Estendi o rosto para ele que me deu um beijo desajeitado,
deixando saliva em excesso no meu rosto.
– Agora vamos, senão não chegaremos nunca – falei,
pegando-o pela mão.
A represa era um espelho d’água azul. Ficava exatamente no
fim daquela estrada. A areia grossa e amarela dava um ar de
praia ao lugar. Estava tudo deserto, não havia ninguém, senão eu
e Marcelo. Ou devia ser muito cedo ou aquele lugar fora
reservado para mim e para ele.
– É tão fria – exclamei, passando a mão de leve na água.
– Depois ela esquenta. O sol esquenta a água e ela fica boa.
Senti vontade de nadar. Pensei na roupa de banho. Bem que
eu podia ter um biquíni. Fiquei esperando que alguém
aparecesse e aquela ideia maluca sumisse da minha cabeça;
ninguém aparecia, então decidi que precisava mesmo nadar.
Lentamente fui tirando a roupa. Marcelo me olhou assustado
quando deixei a última peça cair.
– Vou nadar um pouco. Você vem? – perguntei para ele, que
parecia não entender bem o que acontecia.
– Minha mãe não deixa. É muito fundo aí, é perigoso morrer.
Você quer morrer?
Virei-me de frente para ele e respondi com toda sinceridade do
mundo:
– Quero.
Corri e joguei-me na água. Senti meu corpo gelar. Não iria me
render ao frio. Comecei a dar braçadas, indo para o fundo. De
vez em quando olhava para trás. Sem saber o que fazer, Marcelo
pegava minha roupa que eu havia deixado no chão. Aos poucos,
ele ia ficando pequeno aos meus olhos e eu me lembrei da
primeira vez que entrei na água, ainda pequena, junto com Aline.
Quase morri afogada, parecia que eu tinha bebido toda a água do
oceano. Depois aprendi a nadar e descobri que amava a água e a
sensação de estar dentro dela. Eu bem que podia ser um peixe,
daqueles pequenos e coloridos, para viver nos recifes de corais,
sem família, sem amigos e sem ninguém...
Por que temos que ter família, amigos e conhecidos? Por quê?
Senti meus braços cansarem. Parei e olhei para trás. Há
quanto tempo eu estava nadando? Meia hora? Quarenta
minutos? Uma hora? Não sabia, sabia apenas que estava
distante, muito distante e sem forças para voltar. Descobri ali que
a volta é sempre mais difícil. Mesmo assim fui insistindo e
nadando de volta. Pensei em tubarões e monstros marinhos. Não
havia nenhum que me puxasse para o fundo, para que eu
pudesse encontrar mamãe e Aline.
Cheguei exausta à margem. Marcelo saltitava feito um bichinho
de estimação. Meus braços doíam e faltava-me fôlego.
Desconsolada, sentei-me na areia e fiquei tentando me
recuperar.
– Você foi longe, hein? Você nada igual um peixe – dizia ele,
enquanto imitava as minhas braçadas.
O sol estava forte, meu corpo secou sem que eu me desse
conta. Levantei-me, bati a areia grudada em mim e estendi as
mãos para que Marcelo devolvesse as minhas roupas. Acho que
só naquele momento ele se deu conta da minha nudez. Arregalou
os olhos que corriam pelo meu corpo.
– Você já me viu pelada – falei para ele. Ele segurava as
minhas roupas com as duas mãos, com todo cuidado do mundo.
Sem saber o que fazer, ele embolou-as e passou a segurá-las
com uma única mão. A outra ele esticou e tentou tocar meus
seios. Antes que o fizesse, ele recolheu a mão, virou-se de costas
e se encolheu. – O que aconteceu, Marcelo? – perguntei indo até
ele e ficando novamente de frente.
– Você está pelada – respondeu ele, todo rubro e de olhos
fechados.
– Você não gosta de me ver pelada?
– Gosto.
– Então, abra os olhos – ele aos poucos foi abrindo os olhos,
parecia uma criança à espera de um presente. Não sabia onde
estava com a cabeça, nem por que fazia aquilo, acho que estava
ficando louca, mas vi seu rosto virado para mim e seus olhos me
devorando, então falei: – Se quiser me tocar, pode.
8.

– Vocês demoraram – reclamou dona Roseli, de frente para o


fogão.
– Fomos até a represa – respondi, procurando um lugar para
me sentar.
– Estou vendo. Seu cabelo tá todo espigado. No mínimo vocês
nadaram – retrucou ela com olhar de reprovação para Marcelo,
que abria os armários em busca do que comer.
– Eu nadei, ele não. Ele disse que a senhora não deixa.
– Ali não é lugar de se nadar. A represa é traiçoeira. Muitos
garotos já morreram lá. Você fez mal de ter nadado.
– Desculpe, não resisti. A água é tão limpa e fria – murmurei.
– Não faça mais isso. Tem muitos lugares bonitos por aqui,
mas você deve tomar cuidado que são todos traiçoeiros.
– Prometo tomar cuidado – falei me levantando. – Acho que
vou para o meu quarto.
– O almoço está quase pronto. Não demore – estava quase
saindo quando ela se lembrou: – Ah, estava me esquecendo: o
padre veio aqui atrás de você.
– Que padre? – estranhei.
– O único que temos na cidade. Eu estava chegando quando
dei de cara com ele lá no portão. Ele pediu para que você fosse à
igreja logo depois do almoço
– O que será que ele quer comigo?
– Não sei, mas você acabou de chegar na cidade e já está
fazendo amigos influentes. Vai ver que é para falar sobre os
destinos da Igreja, afinal, você é um membro dela.
Notei um certo ar de cinismo em sua fala. Não dei importância,
simplesmente fui para o meu quarto.
Joguei-me na cama e fiquei pensando sobre o que acontecera
lá na represa. Será que eu estava me tornando uma vadia? Não
podia me envolver com um garoto que tem problema mental. Nós
dois podíamos sair machucados. E se a mãe dele descobrisse?
Tinha que me comportar, não podia agir como uma mundana.
Acabara de chegar na cidade, dei sorte de ter arrumado um lugar
para ficar. De uma forma ou de outra a sorte estava do meu lado,
por que então brincar com ela?
Levantei-me e peguei a mochila. Desgraçadamente esqueci o
meu diário. Naquele momento tinha uma necessidade quase
louca de escrever. Achei uma caneta jogada no fundo de um
bolso da mochila. Procurei por um caderno, um bloco, qualquer
coisa que pudesse servir de anotação. Sobre a cômoda havia,
apenas, a receita que o médico deixara para que eu comprasse
os remédios, caso as dores voltassem. “Elas nunca mais
voltariam”, pensei comigo e comecei a rabiscar aquilo que
latejava na minha cabeça e ia até o peito. Devia ser assim que os
poetas faziam poesia. Tinha que ser uma dor tremenda a
percorrer o corpo, desaguando numa folha de papel. De tantas
coisas que podia pensar, acabei pensando em tio Marcos, nos
momentos mágicos que passamos juntos. Eu queria odiá-lo, mas
não podia, queria xingá-lo, não tinha palavras. Na verdade, todas
as palavras do mundo sumiram naquele momento. Pensei um
pouco e acabei rabiscando no verso da receita algo que não era
poesia, mas um desabafo que eu precisava fazer e não tinha com
quem.
Minha barriga roncou e o cheiro de comida invadiu o quarto.
Era hora de almoçar. -Deixei o papel jogado sobre a cômoda.
Odiava ler o que escrevia. Depois, com certeza, eu iria fazer uma
bolinha e encestar aquele papel na primeira lata de lixo que
encontrasse. Sinceramente, nunca soube escrever, jamais
conseguiria ser uma poetisa ou uma escritora.
Saí do quarto indo para a cozinha. Os dois estavam lá me
esperando. Dona Roseli estava séria. Eu acabara de conhecer
aquela mulher, mas já era possível entender alguma coisa do jeito
dela. Os olhos me diziam que algo não a agradava. E devia ser
comigo. Eu ia perguntar assim que me sentasse, mas antes
mesmo que o fizesse, ela vomitou as palavras:
– Marcelo disse que tocou em você hoje.
A primeira reação que tive foi de negar, dizer que era tudo
invenção dele, só que deduzi que era tão bobo o questionamento
dela que resolvi dizer a verdade.
– Sim, ele tocou.
– Por quê?
– Ele pediu, eu deixei.
Ela bateu com o garfo no prato, demonstrando irritação.
– Você nadou nua na represa?
– Nadei... – ela me encarou. Não gostei do olhar dela. – Mas
qual o problema, dona Roseli? Não estou entendendo...
– Ali não é lugar de se nadar nua. Alguém mais te viu?
– Não, estava tudo deserto – respondi, tentando imaginar onde
ela queria chegar.
– Duvido, aquela represa vive cheia. Com certeza alguém te
viu nadando pelada. Logo nós ficaremos sabendo.
– Ninguém viu – falei, tentando me defender.
Dona Roseli não me dava atenção. Fiquei com a impressão de
que havia cometido um sacrilégio e ela continuou:
– Aqui é uma cidade pequena, Laura. As pessoas não estão
acostumadas com isso. Se te pegam nadando nua na represa, é
capaz de você levar uma surra e nunca mais poder pôr os pés na
cidade.
– Mas eu não fiz nada de mal.
– Fez. Nadou nua e deixou que meu filho passasse as mãos
em você.
– Ele pediu, não aconteceu nada demais, só isso. Ele já é um
rapaz...
– Ele é uma criança! – berrou ela na minha cara. – Eu sou
cristã, na minha religião nós não aceitamos a fornicação.
Fiquei sem graça. Dentro de mim havia um sentimento de
vergonha e decepção. Fiquei sem saber o que dizer, só que
precisava dizer algo.
– Eu nem sei o que é essa tal de fornicação, mas não fiz nada
de mal para o seu filho, nem ele a mim.
– Eu não quero que meu filho se envolva sexualmente com
nenhuma mulher, estou decepcionada com você. Abri a minha
casa pra você, confiando que fosse uma boa menina, agora já
estou duvidando disso.
Abaixei a cabeça e fiquei pensando quão infantil eu era. Ao
mesmo tempo, pensei no fato de ela tentar entender a situação.
Bobagem, ela jamais entenderia o que se passava na minha
cabeça naquele momento. Fiz menção de levantar, ela segurou-
me as mãos.
– Aonde você vai?
– Arrumar minhas coisas. A senhora foi muito boa comigo, não
quero prejudicar a sua vida, nem a do seu filho. Já prejudiquei
vidas demais.
– Espere! Só estou falando isso para o seu bem, para o bem
dele. Se você quiser ir, eu não posso te proibir, do mesmo jeito
que não posso deixar de falar as verdades para você. Você tem
idade para ser minha filha, acabou de chegar na cidade, preciso
te alertar para certas coisas, mas se tudo que eu lhe disser, você
simplesmente pegar sua mochila e falar que vai embora, então eu
não digo mais nada.
Ela soltou a minha mão e eu me sentei novamente. Percebi
que estava agindo como uma menina mimada. Estava em sua
casa, precisava ser mais humilde e ouvir tudo calada, afinal, eu
estava errada.
– Desculpe-me, isso não vai mais acontecer.
Ela sorriu, olhou-me direto nos olhos e falou:
– Você é jovem, bonita e inteligente, não precisa usar o corpo
para agradar meu filho nem para pagar o que estou fazendo por
você.
– Mas eu não fiz isso como paga, eu...
– Psiu! Não diga nada, me deixa terminar de falar. Eu quero
ajudar e vou, se você permitir. Mas isso tem um preço. Nada
nesta vida é de graça. Quero que você se comporte, mude a sua
vida, deixe de lado a perdição deste mundo miserável e se
converta. O primeiro passo é se guardar. Não quero que você se
entregue ao Marcelo. Não deixe ele te tocar. Se isso acontecer,
eu não vou poder lhe ajudar. Não quebre a castidade do meu
filho. Promete?
O silêncio tomou conta do lugar. Eu queria dizer para ela que
não costumava prometer nada para ninguém. Geralmente eu não
cumpria o que prometia, mas diante das circunstâncias...
– Prometo – falei, com os olhos cheios d’água.
9.
A igreja estava aberta, porém vazia. A luz da tarde entrava
pelos vitrais coloridos e dava um certo ar alegórico ao ambiente.
Minha mãe era católica fervorosa. Todo domingo ia à missa. Às
vezes eu aproveitava a carona e ia também. Minha irmã não.
Jamais ia à missa e não gostava de padres. Será que as duas
estavam agora no mesmo lugar? Olhei para a grande cruz sobre
o altar. Havia tantas respostas que eu precisava ter, que no fundo
desejava não pensar. Gostaria de ter a idade mental de uma
criança de cinco anos para tentar viver a vida como ela é.
– Oras, quem veio me visitar! – exclamou o padre, chegando
pela porta ao lado do altar, que devia dar na sacristia.
Levei um susto. Estava tão envolta nos meus pensamentos.
Mesmo assim sorri, tentando ser gentil com aquele velho homem
que queria falar comigo e eu me remoendo, tentando imaginar o
que ele queria.
– O senhor pediu para que eu viesse aqui. Aconteceu alguma
coisa? Fiz alguma coisa errada?
Ele sorriu e colocou a mão no meu ombro como se para me
confortar.
– Quanto sentimento de culpa, menina! Eu não sou o seu
algoz, nem quero jogar pedra em ti. Nos conhecemos no sábado,
ali no confessionário, se não me engano... – ele insistia em achar
que eu havia me confessado com ele. – O doutor Hernandez é
muito meu amigo e disse que você passou mal a noite inteira de
sábado para domingo, então fui lhe fazer uma visita.
– A notícia corre por aqui.
– Cidade pequena, você sabe como é, todos sabem da vida de
todos. Vamos dar uma volta lá fora, o dia está radiante.
Atravessamos a nave em direção à porta. Ele se separou um
pouco de mim, mesmo assim mantinha seu corpo encostado ao
meu. Parecia procurar palavras, as mais eufêmicas para
continuar o assunto. Fomos caminhar pela praça que era cercada
por pequenos comércios que ficavam do outro lado da rua.
– O que o senhor quer falar comigo? – perguntei, curiosa.
– Você está melhor?
– Estou. Foi só um desarranjo intestinal.
– Aqui nós chamamos de piriri... Ah, veja o meu objeto de
desejo – falou ele me pegando pelo braço e atravessando a rua.
Entramos numa pequena loja de eletroeletrônicos. Ele parou
diante de um televisor de 29 polegadas. – Veja que lindo! Estou
sonhando com um desses. Não vejo a hora de ser presenteado.
– Pelo jeito, o senhor gosta de televisão.
– Se gosto? Sou apaixonado. Quando não estou fazendo o
meu trabalho na paróquia, estou diante da tela. Assisto de tudo:
novelas, programas culinários, filmes, jornais... Principalmente,
jornais. Não perco um. Mas ela não é bonita?
– É – resmunguei, demonstrando que não estava ali para ficar
ouvindo-o falar de sua paixão pela televisão.
– Você não assiste à televisão? – perguntou ele, segurando-
me de novo pelo braço e atravessando a rua em direção à praça.
– Não. Nunca. Pra ser sincera, odeio televisão.
– Mas por quê? Que sacrilégio... Quer tomar uma garapa? –
perguntou ele quando passamos perto de um carro com um
moedor de cana. Aceitei. Ele pediu duas. Enquanto o homem nos
servia, o padre me olhava com um sorriso que me deixava
intrigada. O que ele queria comigo? Por que estava dando tanta
volta? Pegamos os copos e saímos andando. – Quer dizer que
você não gosta de televisão?
– Não – respondi, virando a garapa na boca.
– Mas nem a jornal você assiste?
Parei. Aquilo já estava me dando nos nervos. Encarei o padre
como quem diz, “chega!”.
– Foi para isso que o senhor me chamou aqui?
– Na verdade sim e não, minha filha. Quer dizer, tem tudo a ver
com a televisão. Se eu não fosse um velho viciado em televisão,
talvez eu soubesse menos das coisas e tudo passaria em vão.
Notei você na igreja logo que você entrou. Eu esperava o meu
rebanho para a confissão. De repente dou de cara com uma
menina franzina sentada no primeiro banco rezando. Coisa rara
de se ver. Os jovens de hoje só pensam em namorar, casar, ter
filhos e esquecem do espírito. Depois à noite, durante a missa,
você me aparece de novo. Eu fazia a homilia, não é mesmo? –
concordei com a cabeça. – Você se lembra sobre o que eu
falava?
– Sobre a vida de Cristo quando Ele era jovem. Sobre a família
Dele, de como Ele era obediente...
– Exatamente. Não está explícito na Bíblia como foi a
juventude Dele, mas se Ele foi um bom homem, com certeza foi
um bom filho. Tracei um paralelo sobre isso. Acho que fui tocado
naquele momento porque vi você no corredor, logo em frente a
mim, lá no fundo. Depois, quando fui fechar a igreja, quem
encontro lá rezando? Você. Então, acho que o destino nos prega
peças e nos põe frente a frente com situações inesperadas.
– Não estou entendendo, padre. Primeiro o senhor vem com a
história da televisão, agora com o destino. O que tudo isso tem a
ver comigo?
– Não sei, minha filha. Talvez não tenha nada, talvez tenha
tudo. Eu falei pra você que assisto a todos os jornais. Lá a gente
fica sabendo de cada coisa. Fiquei sabendo de uma história que
me deixou muito triste.
– No jornal? – tentava entender o que ele queria dizer.
– Claro, no jornal.
– Que história?
– É uma história que se passou lá na capital, bem distante
daqui. Pra você ver como a tevê coloca a gente bem perto um do
outro.
– Me conta a história, padre.
– É a história que o jornal da tevê está contando. A história de
um engenheiro químico rico, uma dona de casa feliz e duas filhas
alegres e saudáveis – ao ouvir isso parei. Senti algo gelado
percorrer o meu corpo. – Não, minto. A história é de um
engenheiro rico, casado com uma dona de casa aparentemente
feliz, que tinha duas filhas que ele assumiu como suas... – deixei
o copo de garapa derramar sobre minha blusa. Não sei o que me
deu, mas senti as pontas dos meus dedos adormecerem. – Você
derrubou o copo – falou ele, abaixando-se para pegá-lo. Depois
levantou, encarou-me, deve ter notado que a minha fisionomia
mudara.
– Conte-me mais sobre essa história – falei, como se aquelas
fossem as últimas palavras da minha boca.
Começamos a andar. Ele fez menção de limpar a minha blusa,
mas passar a mão nos meus seios em público, podia ser no
mínimo constrangedor.
– O engenheiro trabalhava em uma conceituada indústria
química. Era diretor dessa empresa e vivia em harmonia com a
família. Alguns dizem que ele era violento, passional e machista.
Outros dizem o contrário. Enfim, uma família. Há coisa de alguns
dias atrás, num domingo de sol, ele saiu com a família para
comer no shopping, essas coisas enormes que só existem em
cidades grandes. Almoçaram juntos, passearam quase o dia todo.
À noite comeram um doce ou um creme de chocolate que a filha
mais nova preparou. Quando foi de madrugada, todos
começaram a passar mal. A filha mais nova ligou para o hospital
e eles mandaram uma ambulância. Horas depois, já no hospital, o
pai, a mãe e a filha mais velha morriam, todos envenenados por
arsênico. Só a filha mais nova sobreviveu. Depois de vários dias
de investigação, a polícia não descobriu nada, apenas que a filha
mais nova e o padrasto não viviam bem. No começo, todos
pensavam que o veneno estava no creme de chocolate que a
filha mais nova fizera. Não estava. Mas todos tinham uma
certeza, a única sobrevivente do caso poderia ajudar, e muito, a
polícia a desvendar esse mistério. Curiosamente, dias depois a
avó que cuidava dela morreu fulminada por um ataque cardíaco.
Naquele mesmo dia, a menina resolveu pegar suas coisas e
simplesmente desaparecer – ele parou de falar e ficou me
olhando. Como eu não dizia nada, apenas ouvia, ele perguntou: –
É estranha esta história pra você?
Desandei a chorar. Sorte estarmos em frente à escadaria da
igreja. Subi correndo. O padre bem que tentou me acompanhar,
mas não tinha forças.
Entrei na igreja soluçando. Sentei-me na primeira fileira de
bancos bem em frente ao altar. Ajoelhei-me e rezei qualquer
coisa. O desespero tomava conta de mim. Ouvi o barulho
ofegante do padre que se ajoelhava ao meu lado.
– Filha, será que você não percebe que foi Deus quem
mandou você aqui?
– Mandou pra quê, padre?
– Para que eu possa te ajudar.
Olhei para ele, que tinha um olhar de súplica e piedade.
– Então tira essa dor de dentro do meu coração – falei, entre
soluços.
– Vamos à polícia. Volte para casa. Esclareça o que
aconteceu.
– Não posso.
– Por quê? Foi você quem matou a sua família?
– Fui.
– Mas a tevê mostrou uma fita onde você diz que não matou.
– Então eu não matei.
O padre balançou a cabeça com as minhas respostas.
– Vamos à polícia, minha filha.
– Não vou. E se o senhor insistir, eu vou embora, sumo, ou
então eu me mato.
– Não! Não faça isso. Eu estou disposto a te ajudar. Pelo amor
de Deus, me diga, o que você pretender fazer? Fugir a vida
inteira?
– Não, estou apenas indo ao encontro da minha mãe e da
minha irmã.
– Mas elas estão mortas, você não entende?
Minha cabeça estava confusa. Aquele padre soube, como
ninguém, me deixar em parafuso. Eu já não dizia coisa com
coisa. Estava no limiar da loucura e da razão.
– Acho que vou na polícia – falei maquinalmente. O padre
sorriu aliviado, percebendo que aos poucos eu ia perdendo o
controle da situação. – Mas eu não vou hoje, vou amanhã à tarde.
– Vamos agora, filha. Amanhã pode ser tarde. Você precisa se
tratar. Você também está envenenada.
– Amanhã. Amanhã o senhor vai me buscar às três horas. Mas
por favor, não conte nada a ninguém.
Levantei-me e saí deixando o padre pasmo, completamente
aturdido, sem saber que atitude tomar.

10.

Acordei com alguém batendo na porta. Levantei-me, vesti um


short e fui ver quem era.
– Você está bem? – perguntou dona Roseli, entrando.
– Estou.
– Você ontem chegou em casa com uma cara, trancou-se aqui
e não saiu nem para jantar. O que o padre falou pra você que te
deixou daquele jeito?
– Nada. Acho que ele andou me abrindo os olhos para
algumas questões que preciso resolver.
– Você pode dizer?
– Não. E mesmo que pudesse, a senhora já está de saída, não
é mesmo?
– É verdade. Já está na hora. Tem café na cozinha, você deve
estar com fome.
– E o Marcelo?
– Está no quarto dele. Pedi para que ele ficasse lá até eu
chegar. Não quero que ele te importune.
– Mas ele não me importuna.
– Nem quero que ele saia de casa hoje – falou ela saindo e
fechando a porta. Aos poucos eu começava a notar que o
Marcelo se tornava um tabu. Percebi claramente que dona Roseli
não queria nenhum envolvimento do Marcelo, seja comigo, ou
com qualquer outra.
Voltei para a cama e fiquei preguiçosamente jogada lá. Não me
sentia bem. Havia uma fraqueza no meu corpo que me
incomodava. Virei para um lado, virei para o outro, algo martelava
na minha cabeça. Era algo que não podia evitar. Mesmo porque,
já não tinha mais tempo. Levantei-me e fui em frente ao espelho.
Meu rosto estava pálido. Escovei os dentes com uma paciência
sem fim. Arrumei os cabelos sem pentear. Tirei o short ficando
apenas com a camiseta comprida que usava para dormir.
Saí do quarto andando lentamente. Havia ainda um resto de
dúvida que me fazia andar devagar. Passei pela cozinha. Peguei
um copo e coloquei café. Havia bolinhos de chuva, joguei um na
boca. Andei até a sala e entrei no corredor que levava até os
quartos. O primeiro era o de Marcelo, estava fechado e o silêncio
imperava como se não existisse ninguém ali dentro. Forcei a
maçaneta. A porta estava trancada. Dei duas batidas muito leves.
Ouvi barulho lá dentro.
– Quem é?
– Sou eu, Marcelo, Laura. Podemos conversar?
– Podemos – respondeu ele, com a voz embaralhada.
Fiquei esperando que ele abrisse a porta, mas ela se mantinha
fechada.
– Você não vai abrir a porta?
– Minha mãe não deixa.
– Abre. Eu quero te ver. Você não gosta de mim?
– Gosto! Gosto! – exclamou ele, com sofreguidão.
– Então, abre, vai.
Passaram-se alguns segundos que, para mim, pareceram
minutos. Cheguei a imaginar que ele não fosse abrir. Mas ouvi o
barulho da chave girar e em seguida a porta se abrir. Meio sem
jeito eu entrei, enquanto ele segurava a porta do lado de dentro
como se tentasse me dizer que aquele lugar era proibido para
mim.
– Você não quer me ver? – perguntei. Ele permanecia na porta,
sem saber o que fazer. – Eu vim me despedir. Hoje à tarde estou
indo embora.
Ao ouvir isso ele reagiu, saiu da porta e veio para perto de
mim.
– Embora? Por que você vai embora?
– Porque tenho que ir. Escuta, você quer me tocar?
Ele sorriu e balançou a cabeça dizendo que sim para, em
seguida, balançar a cabeça dizendo que não.
– Minha mãe disse pra eu não fazer isso, é feio.
– Você não pode desobedecer a sua mãe nem uma vez?
– Ela briga.
– Vamos lá no meu quarto.
– Ela briga se eu sair daqui.
– Mas como ela vai ficar sabendo? – perguntei, segurando-o
pelas mãos.
Ele ficou pensativo, estático, sem dizer nada. Tentei puxá-lo
pelas mãos, ele parecia uma mula empacada.
– Eu não vou sair daqui – respondeu ele com olhar sério e
decidido.
– Já sei. E se eu te tocasse? Sua mãe não me proibiu de te
tocar. Posso te tocar?
– Pode – respondeu ele com certa dificuldade.
– Mas você jura que não vai contar para a sua mãe? – ele
virou o rosto, evitando me olhar. Com as mãos eu lhe segurei a
cabeça e fiz com que ele me olhasse. – Jura que não vai contar
para a sua mãe?
Coagido, sem muita alternativa, ele respondeu:
– Juro.
Ao ouvir sua resposta, comecei a passar a mão em seu corpo.
Ele arregalou os olhos e sorriu. Fiquei nervosa. Não sabia que
diabo de sentimento me movia naquele momento. O mundo lá
fora desabando e eu bancando a tarada maluca por sexo.
Lentamente minhas mãos corriam o seu corpo. Primeiro pelo
rosto, cabelos, nariz, boca... Ele estava gostando. Acheguei-me
um pouco mais até sentir o calor do corpo dele. Aos poucos ele
se rendia ao clamor do meu corpo. Eu sabia que teria que tomar
todas as iniciativas. Não podia esquecer que naquele momento,
entre nós, havia a mãe dele. Abracei-o com força. Senti seu corpo
grudar ao meu. Ele era muito mais alto do que eu, o que me dava
uma sensação de estar diante de uma estátua, uma parede de
pedra a me proteger. Pendurei-me no pescoço dele e procurei
seus lábios. Doces lábios de quem jamais sentira outros. Ele
abaixou a cabeça e nos encontramos num eterno beijo meio
doce, meio amargo.

11.
Meus olhos estavam fitos num pudim sobre a mesa. Eu
adorava pudim. Uma mosca passeava sobre ele. A mosca devia
adorar mais o pudim do que eu. Enquanto ela passeava sobre
ele, eu ficava buscando respostas para uma pergunta que pairava
no ar.
– O que você fez com meu filho?
Era a segunda vez que ela me fazia essa pergunta. Estávamos
sentadas uma de frente para outra, a mesa da cozinha nos
separando. Aquele lugar me parecia ser dos ajustes de contas.
Marcelo estava em pé na porta. Mexia a cabeça de um lado para
outro num tique nervoso demonstrando que, de uma forma ou de
outra, ele estava entendendo o assunto.
– Eu não fiz nada com seu filho.
– Você desonrou o meu lar. Como pôde?
– A senhora fala como se eu tivesse violentado o seu filho.
Olhe o tamanho dele, olhe o meu.
– O que você quer dizer com isso? Que foi ele que te atacou?
Vai querer acusar o meu filho de estupro, é?
Ela estava transtornada. Seus olhos grandes, verdes, pareciam
querer me engolir. Tudo o que eu dissesse naquele momento, em
nada resolveria a minha situação. Estava prensada na parede.
Lembrei-me de casa, das infindáveis brigas, da sensação de
medo, do pavor e das surras que levava. Ainda bem que ali, com
certeza, eu não apanharia. Pelo menos achava.
– A senhora está entendendo tudo errado. Não aconteceu
nada de mais, nada de grave. Olha, o Marcelo está aí, o que
aconteceu com ele?
– Isso – levantou-se quase correndo e foi até o quarto dele.
Voltou com o lençol do quarto e estendeu-o na minha cara. –
Você foi com ele pra cama, não foi?
Senti vergonha ao ver o lençol manchado na minha frente, por
isso virei a cara.
– Não preciso responder isso.
Ela soltou o lençol no chão. No mínimo ia colocar fogo nele.
– O que nós conversamos ontem?
– Dona Roseli, eu...
– Eu confiei em você, te trouxe pra dentro de casa mesmo não
te conhecendo, olhei os seus olhos e vi uma boa menina, uma
menina cheia de problemas, mas com uma alma boa. Como pôde
me enganar?
– Eu nunca disse que era boa.
– Pois não é mesmo. Ontem mesmo eu pedi para que você
não se entregasse ao Marcelo. Por que foi tão fraca? Por que
abusou da inocência do meu menino? Responda?!
– Eu não sou uma boa menina, tenho o demônio dentro de
mim. Eu precisava ter o seu filho para ver se ele conseguia tirar
esse mal de dentro de mim.
– Quem tem que tirar esse demônio de dentro de você é Deus,
não o pobre coitado do Marcelo. Jamais vou te perdoar por isso.
Você ensinou pra ele o desejo da carne. Agora ele vai querer ter
sempre uma mulher para satisfazê-lo. Você vai poder estar aqui
para satisfazê-lo? Onde você vai estar, menina?
– No inferno – respondi, com toda amargura do mundo.
– Não quero te ver mais aqui. Pegue suas coisas e vai embora.
Daqui a pouco sai o ônibus, vai e não volte nunca mais.
Ao ouvir isso, Marcelo reagiu. Foi até ela e falou de forma
embolada, mas inteligível:
– Ela é minha namorada, mamãe. Não manda ela embora. Ela
é minha.
Enquanto ele repetia segurando o braço da mãe dele, eu me
levantei e fui para o quarto arrumar as coisas. Dali a pouco o
padre viria me buscar. Minha aventura terminava ali.
A primeira coisa que fiz quando entrei no quarto foi tirar da
parede os pôsteres do Legião Urbana. Um a um eu fui tirando e
dobrando. Senti uma fisgada na barriga, em seguida outra e
outra. Deixei os pôsteres dobrados sobre a cama e corri para o
banheiro. Quase não deu tempo de eu me sentar. Um líquido
pastoso saiu de mim. Quando olhei o vaso, estava todo vermelho
e a dor não cessava. Minha boca começou a salivar e um jato de
vômito, também vermelho, atingiu a parede. A dor era
insuportável. Precisava buscar ajuda. Com muito esforço
consegui me levantar. Passei pelo espelho e vi meu rosto
sangrando. Precisava de ajuda, mas não tinha como pedir. Andei
até a porta do banheiro e caí. Tentei me levantar quando senti
uma mão me acariciar. Vi o rosto de Marcelo, o rosto de um anjo.
Só então consegui dizer:
– Chama sua mãe que eu estou morrendo.
DE VOLTA AO LEITO DE MORTE

O silêncio, agora, reina na sala da UTI. Somente o barulho dos


aparelhos é ouvido. Ele ainda está sentado ao lado dela, mãos
segurando o queixo, ainda absorto na história que Laura contou.
“Bonita história, mocinha. Quem disse que você não sabe
contar histórias? Quantas palavras, quantos sentimentos. Mas
acha que com tudo isso terá a sua absolvição?”, diz ele se
levantando e voltando a andar pela sala.
“Não sei se quero absolvição”, responde ela ouvindo os passos
dele e voltando a se irritar com isso.
“O que você quer, então?”
“Não sei. Talvez que você pare de andar pela sala. O barulho
dos seus passos me irrita... E tem mais, você fala como se eu o
tivesse chamado e pedido algo. Vai à merda! Eu não te chamei
aqui. Foi você quem apareceu e quase me obrigou a contar a
minha história e...”
“Não! Não precisa ficar nervosa. Estamos indo tão bem. Você
não está se sentindo melhor ao desnudar a sua vida diante de
mim?”, pergunta ele, voltando a se sentar.
“Se pelo menos eu soubesse quem você é.”
“Você sabe, só não quer admitir. Espera que eu diga, mas eu
não vou dizer. Continuo apenas insistindo que sou o seu juiz e
juntos vamos determinar o seu futuro.”
“Então vamos decidir logo, não aguento mais ficar aqui nesta
sala escura, fria.”
“Ainda é cedo, Laura, temos muito que conversar. O dia ainda
não amanheceu.”
Laura ouve barulho ao seu redor. Tenta imaginar o que é, não
consegue, então pergunta:
“Que barulho é este?”
“Tem uma enfermeira checando o equipamento.”
“Mas ela não te vê?”
“Acho que não, ela deve ser cega, tem olhos só para outras
coisas.”
Eles ficam em silêncio enquanto a enfermeira vai fazendo o
seu serviço. Minutos depois ela sai. Laura percebe isso ao ouvir a
porta se fechar.
“Posso te pedir uma coisa?”, pergunta ela, tentando mudar um
pouco o rumo da conversa.
“Pode.”
“Queria ver o seu rosto de novo.”
Ele não responde, passam alguns segundos e ele aparece na
frente dela. Não mais com o rosto que ela vira antes, mas com o
rosto do Marcelo, o garoto da sua história.
“Marcelo!”, exclama ela, fazendo menção de chorar. “Foi tão
bom o que aconteceu entre nós. Você foi o meu anjo. Nunca, em
toda minha vida, encontrei alguém tão puro e verdadeiro como
você.” O rosto some. Laura ouve barulho na porta. “O que está
acontecendo? Tem alguém chegando?”
“Não, tem apenas dois homens te olhando do vidro da janela.”
“Quem são eles?”, pergunta ela, ansiosa.
“Você sabe.”
Na porta estão o delegado e o tio de Laura. Os dois olham pela
pequena abertura de vidro a lúgubre sala onde a menina está.
Têm olhos cansados e parecem sentir falta de uma cama. Passa
da meia-noite.
– Ela não pode morrer – murmura o tio, encostando a cabeça
no vidro e chorando.
– Agora não adianta chorar, senhor Marcos, se ela morrer, nós
jamais saberemos a verdade.
O delegado afasta-se da porta indo em direção a três pessoas
sentadas no banco do corredor. Dirige-se ao homem mais velho.
– O senhor deve ser o padre que me ligou.
– Isso mesmo – fala o homem levantando-se e estendendo as
mãos. – O senhor deve ser o delegado. Fez boa viagem?
– Cansativa. Pegamos um avião e depois mais duas horas de
carro. Aonde essa menina veio se esconder!
O padre olha para Roseli que o encara sem entender o que se
passa.
– Esta é a senhora que acolheu a menina – diz o padre para o
delegado.
Gentilmente o delegado segura a mão dela. Roseli quer saber
o que se passa.
– O senhor é delegado? A menina está sendo procurada pela
polícia?
– Ela não sabe? – questiona o delegado, olhando para o
padre.
– Não – responde o padre. – Ela não tem o hábito de assistir à
televisão.
– Sou evangélica, doutor, não temos rádio nem televisor em
casa.
– Então por isso a senhora não sabe. Se não fosse o nosso
amigo pároco, não estaríamos aqui. Mas depois a senhora vai
ficar sabendo de tudo. E esse garotão? – pergunta o delegado,
estendendo a mão para Marcelo.
– Ela é minha namorada. A gente deitou junto – fala Marcelo,
segurando com força a mão do delegado.
Roseli olha para o delegado e justifica:
– Ele tem problemas.
Naquele momento chega o tio de Laura e é apresentado a
todos. Está abatido, triste. Senta-se ao lado de Roseli. O
delegado e o padre saem para tomar café.
– Quer dizer que ela estava envenenada? – diz ela, olhando
para Marcos.
– A senhora nem imagina a tragédia que se abateu sobre
nossas vidas. Pior que ninguém consegue entender.
– Se vocês, que estão vivendo o problema, não conseguem
entender, imagina eu que não sei de nada e que acolhi esta
menina.
Marcos olha para ela. Está com os olhos vermelhos. Segura a
mão de Roseli e diz:
– A senhora não sabe o bem que fez a esta garota e a toda a
nossa família.
– O senhor pode me contar o que aconteceu? – pergunta
Roseli, sentindo o calor da mão dele.
– Ninguém sabe ao certo. Acho que só Laura pode nos dizer,
mas posso contar o que sei...
Enquanto ele conta, o delegado fuma na entrada do pequeno
hospital. Está ao lado do padre. Olha para o céu estrelado. Há
muito não via um céu assim. Não deixa de fazer um comentário
sobre isso.
– O céu daqui é diferente, dá para ver melhor as estrelas.
O padre não está interessado em conversar sobre astronomia.
Que fiquem as estrelas no céu! Ele quer saber de Laura.
– Foi ela quem matou os pais e a irmã?
O delegado sorri, joga a bituca de cigarro que corre pelo meio-
fio até cair na boca-de-lobo.
– Se eu soubesse, padre, o país inteiro já saberia. Não tenho a
mínima ideia de quem cometeu o crime. No começo pensei que
fosse ela. Aquele creme de chocolate que toda a família comeu e
que ela fizera tinha tudo para estar envenenado e, daí, todos nós
saberíamos que foi a menina quem cometeu tal ato. Mas não
encontraram vestígio de veneno no doce. A menina também foi
envenenada. A pergunta é: por quem; e por quê?
– Depois ela fugiu – completa o padre.
– Exatamente. Quando eu havia tirado da cabeça que ela
havia cometido o crime, ela foge da casa da avó, que também
aparece morta exatamente no dia da fuga.
– Então ela pode ter matado a avó também?
– Acho que não – responde o delegado. – Segundo o laudo
médico, ela teve uma parada respiratória. A velha já estava muito
doente.
– Então, por Deus! Por que esta menina fugiu? – exclama o
padre, demonstrando certa ansiedade.
– Eu sei por que ela fugiu, padre.
– Por quê?
– Porque ela não ia conseguir esconder a verdade de mim por
muito tempo.
– Então o senhor afirma que ela sabe alguma coisa.
– Não, padre. Eu não afirmo que ela sabe alguma coisa, eu
digo que ela sabe tudo o que aconteceu.
– Então, para o senhor, ela é a culpada.
– Não. O que eu quero dizer é que ela sabe quem cometeu o
crime e qual o motivo que levou o sujeito a cometê-lo. Fugiu, ou
porque não quer me contar ou por medo.
O padre fica pensativo. O delegado é homem experiente,
estava acostumado a todo tipo de crimes, dos mais banais aos
mais hediondos.
– O que faz o senhor ter tanta certeza disso?
– Meus trinta anos como policial, minha úlcera que não para de
doer e minhas noites de insônia que só me levam a essa linha de
raciocínio.
Ele não diz mais nada, dá as costas e entra no pequeno
hospital onde antes era um convento. O padre vai atrás, está por
demais interessado em saber onde tudo isso vai dar.
Ao chegarem em frente à UTI, encontram a médica
conversando com Marcos, que apresenta o delegado para ela.
– Como eu ia dizendo, o caso dela é crítico, ela foi
envenenada...
– Nós sabemos. Ela tem uma dose elevada de arsênico no
corpo – cortou o delegado, que não era adepto de muitas
explicações, talvez por força da profissão.
– Puxa vida, que pena! – exclama a médica, com um certo ar
de despeito. – Fiquei quase três horas esperando por esse
resultado e vocês já sabiam de tudo. Por que não chegaram
antes?
– Porque somos da polícia, doutora. Ela sempre chega depois
– diz o delegado, demonstrando cinismo na mesma proporção da
médica. – Mas como está a garota?
A médica demonstra não ter ido com a cara do delegado.
Encara-o para depois se virar para Marcos e continuar dizendo:
– Ela está em coma, tem um sério comprometimento do fígado
e dos rins. Eu vou entrar agora e vou ver como ela está reagindo.
Já tem uma equipe médica aí dentro ministrando os remédios
necessários para que ela possa reagir. Mas é muito pouco o que
nós podemos fazer. Vai depender do organismo dela, que já é
forte demais só por ter conseguido viver com uma quantidade de
arsênico por tantos dias. Não posso precisar os danos que isso
causou no corpo dela, pelo menos por enquanto não.
– Salve essa menina, doutora – insiste o delegado, mesmo
notando a indiferença que a médica lhe demonstrou.
– Não sou Deus, doutor delegado, sou médica. Vou fazer de
tudo para salvá-la, mas desde já eu lhes digo, não tenham muita
esperança.
– Se essa menina morrer, doutora, o assassino de uma família
vai ficar livre e pronto para matar mais gente.
A médica faz que não ouve, dá as costas e entra na UTI. O
padre, que estava um pouco atrás do grupo, faz o sinal da cruz
enquanto Roseli, que está junto dele, começa a chorar grudada
em Marcelo.
Marcelo tenta entender o que se passa. Quando viu Laura
caída no quarto, antes de chamar a mãe, ele teve a ideia de
pegar a receita que o médico deixara sobre a cômoda. Achava
que ela fosse necessária, então a retira do bolso.
– Ela não tomou o remédio. Ela não comprou o remédio – e
entrega a receita para Roseli.
– Guarda isso, filho, agora não tem mais importância esse
papel.
Ele segura a receita, dobra-a com cuidado e coloca de novo no
bolso.
Na sala da UTI, a médica está cansada. Gosta de dar plantão
porque é mais sossegado. Neste dia, porém... não vê a hora de
amanhecer e ela ser substituída. Não gostaria de dar a certidão
de óbito daquela menina.
Dois médicos examinam Laura. Com muito cuidado, um deles
anota em uma prancheta todos os dados que os instrumentos
fornecem. O outro está terminando de dar a medicação
intravenosa.
– Como está o coração dela?
– Fraco. As batidas alternam, mas estão caindo. Os rins e o
fígado estão quase parados. Se isso acontecer, os próximos
serão os pulmões.
– Acabei de dar o medicamento. Temos que aguardar – diz ele,
saindo.
O outro não demora e sai também. Agora estão só ela e Laura.
Gosta de ficar sozinha com os pacientes. De vez em quando
costuma trocar ideias com eles, algo dentro dela diz que eles
podem ouvir. Então, quando pode, fala baixinho no ouvido deles
coisas boas, coisas que ela acha que podem ajudá-los a buscar a
vida e não a morte. Como não há outro paciente naquela UTI, ela
não precisa encostar-se no ouvido de Laura, como fizera antes.
Fala abertamente, em alto e bom tom:
– Menina, você tem que sobreviver. Tem um batalhão de gente
lá fora querendo saber de você. Isso porque não amanheceu.
Logo vão estar os repórteres. Ainda bem que estou indo pra casa
descansar, não quero aparecer com essa cara de coruja na
televisão. Então vê se se anima e trata de reagir. Tem um
delegado lá fora que está louco para pegar um assassino que,
segundo ele, é só você quem sabe o nome. Reage, então, por
favor.
Arruma o lençol branco sobre o corpo de Laura. Acha que falou
demais. Viu que o delegado a olhava pelo vidro da porta. “Que se
dane!”, pensa ela. “Não estou louca, apenas amo os meus
pacientes e converso com eles...” Sai da sala respirando fundo,
preparando-se para enfrentar um monte de perguntas.
“Viu, ela quer que eu viva”, fala Laura para o seu juiz.
“O delegado também.”
“Merda! Então acho melhor morrer.”
“Ainda não, mocinha. A sua história não terminou. Precisamos
falar sobre a sua família. Sobre sua mãe, seu pai e sua irmã...”.
“Não quero falar sobre isso.”
“Já vai começar, Laura?!”, resmunga ele, bravo, perdendo a
paciência. “Nós começamos um jogo de memória, senhorita, não
podemos voltar. Você foi sincera até agora, falou até de coisas
que não devia, mas isso foi bom porque mostra que não se aloja
em você apenas o lado demoníaco de uma menina que só soube
odiar. Há em você um lado bom e angelical que nós precisamos
entender melhor. Por isso continue com o seu relato.”
Ela fica quieta, pensando no que dizer. Pensa em ficar calada
para sempre e deixar que ele, como juiz, faça o seu julgamento
final e lhe dê a sentença de uma vez. Para ela tanto faz viver
como morrer...
“É que é muito ruim lembrar do que aconteceu. Isso me faz
sofrer. Eu não quero sofrer. Por que você faz isso comigo?”
“Eu não estou fazendo nada. Foi você quem fez. É muito fácil
fazer as coisas e depois simplesmente se esquecer. Não, Laura,
você não pode se esquecer. A sua salvação está em se lembrar
de todos os detalhes. Só assim você será feliz. Confie em mim.”
“Eu vou confiar.”
“Então conte.”
“Eu vou confiar.”
“Conte!”
“Eu vou...”

LEMBRA E VÊ, O CAMINHO É UM SÓ


“Minha rua é bonita. Minha casa também. Minha rua tem
árvores floridas e calçadas coloridas. Minha casa tem piscina e
um quintal só pra mim. Minha rua tem sossego e poucas casas.
Minha casa é solitária e tem pouca gente...”
– Anda Laura, fecha esse caderno e vem pra piscina, a água
está uma delícia – gritou minha irmã, dando pulos dentro d’água.
Eu não estava a fim. Por mim, eu estaria no meu quarto lendo
ou escrevendo no meu diário, mas ela insistiu tanto para que eu
fosse para a piscina com ela que agora estava ali, metida em um
biquíni sem a mínima vontade de entrar na água.
– Daqui a pouco eu entro, Aline. Deixa só eu terminar de
escrever.
– Anda logo, eu tenho que te contar uma coisa.
– Já vou – falei fechando o caderno a contragosto e entrando
na água. Ainda era cedo, passava um pouco das dez horas da
manhã e a água ainda estava um pouco fria.
Fui nadando até ela, que estava no meio da piscina. Ia
preguiçosamente. Na verdade, não estava nem um pouco curiosa
em saber o que ela queria me falar. Estava fazendo aquilo
apenas para que ela me dissesse logo o que queria e me
deixasse em paz.
– Anda logo, sua moleza – falou ela, jogando água no meu
rosto.
Aproximei-me o mais que pude. Naquele lugar a piscina era
funda e quase me encobria.
– Fala logo que quero voltar para a espreguiçadeira – falei mal-
humorada.
– Aconteceu.
– Aconteceu o quê? – perguntei, achando a minha irmã
naquele dia mais chata do que de costume.
– Aquilo.
– Aquilo o quê?
– Aquilo, sua burra! Aquilo que acontece entre um homem e
uma mulher.
– Com você? Você e o Caio? Você deu pra ele? – perguntei,
quase gritando.
– Fala baixo, sua louca! Olha a mamãe lá na sala.
Virei e olhei mamãe sentada no sofá da sala lendo revistas de
fofocas, coisa que ela adorava.
– Você é louca! Se papai souber, ele mata você, mata o Caio...
depois de casar vocês dois, evidente.
– Pois é, aconteceu ontem.
– Por isso você matou aula?
– Ham, ham! – exclamou Aline, com cara de santa.
– Acho que você está precipitando as coisas. Ele usou
camisinha, pelo menos?
– Não, foi tão rápido.
– E se você engravidar?
– Daí acho que papai mata três e não dois.
Aline era a minha irmã mais velha. Tinha dezessete anos, alta,
cabelos loiros e um corpo de dar inveja a qualquer garota. Para
os meus pais, um exemplo de filha. Ela sabia fazer o jogo deles,
então posava sempre de boa menina. Mas de boa menina ela
não tinha nada. Na verdade, ela era uma garota como outra
qualquer. Só meus pais é que não enxergavam isso. Vira e mexe
usavam Aline como modelo para eu seguir. Naquela casa, eu era
a garota-problema, o patinho feio, o estranho no ninho.
– Você gostou? – perguntei por perguntar, aquele assunto não
me dizia respeito.
– Adorei. Menina, não sei como pude ter esperado tanto
tempo. A coisa é boa demais!
– Acho que tudo tem o seu tempo – falei me afastando e indo
para a beirada. Meu corpo já se acostumara com a água. Mesmo
assim ia sair, quando vi papai chegando. Desisti na hora.
– Papai, a água está uma delícia. Vem! – berrou Aline.
– Não posso, tenho que ir trabalhar.
– Mas hoje é sábado.
– Tenho que ir trabalhar. Mais tarde estarei em casa – disse
ele, olhando para mim.
– À noite eu vou na festa na casa da Renata – continuou ela,
enquanto ele se preparava para sair.
– Se Laura for com você, tudo bem, caso contrário, ninguém
sai de casa.
“Pronto, sobrou pra mim”, pensei me segurando para dizer a
Aline que não contasse comigo.
– Você vai, não vai, Laura? – perguntou ela.
Não respondi. Saí da piscina com raiva. De jeito nenhum, eu
não iria a festa alguma. Já tinha um programa para aquela noite:
dormir com os meus travesseiros.
Passei por papai sem falar com ele. Peguei a toalha e fui para
a lavanderia, que ficava do outro lado do jardim. Fui me secando
e me preparando para entrar em casa pela cozinha. Era costume
nosso fazer esse trajeto para não passar pela sala, que era
acarpetada.
– Que biquíni pequeno é esse?
Levei um susto e me virei, dando de cara com papai. Ele
gostava de atazanar a minha vida. Não sei, acho que ele não
gostava de mim. Eu sentia que havia um certo sentimento
recolhido dentro dele em relação a mim. Por muitas noites chorei
pensando o que eu fizera de errado para ele me odiar assim.
– É o único que eu tenho. Acho que andei dando uma
engordada – respondi, não encontrando outra resposta mais
convincente.
– Está uma indecência – disse ele se aproximando e passando
a mão no meu ombro. Pensei em dar um passo e me afastar, mas
sabia que se fizesse isso, ele me seguraria com força. – Vire de
costas, quero ver como está atrás.
– Mas papai, estamos só nós em casa. Não há problema.
– Vire.
Ia virando quando uma voz salvadora surgiu.
– O que está acontecendo? – perguntou mamãe, aparecendo
na porta da cozinha.
Papai era um ótimo ator. Sabia interpretar como ninguém.
Quando viu mamãe na porta, tratou de mudar o jeito e encenar o
papel de um pai zeloso e ciumento:
– Lívia, olha só o que esta menina está usando!
– Isso é um biquíni, Roberto. Ela acabou de sair da piscina –
retrucou mamãe, com toda propriedade do mundo.
– Eu sei, mas olha isso, a bunda está toda de fora. Isso não
está certo. Pode tratar de comprar um outro biquíni maior. Mulher
que se preza não fica mostrando o corpo – fez o discurso e saiu.
Entrei me contendo para não chorar. Mamãe percebeu.
Quando passei por ela, senti sua mão me segurar.
– Está tudo bem, Laura?
– Não, não está. Por que ele faz isso comigo?
Mamãe sorriu com aquele sorriso ingênuo que só uma mulher
muito simples podia ter.
– Seu pai te ama, minha filha. A você e sua irmã. Por isso esse
ciúme todo. Ele está descobrindo que você cresceu, já quer andar
com as próprias pernas. Logo ele vai entender isso.
Senti vontade de contar tudo para ela. Tudo o que ele me
fazia. Mas sabia que se fizesse isso, ela não acreditaria e daí eu
estaria transformando ainda mais minha vida num inferno. Não
disse nada, dei as costas e subi as escadas correndo para o meu
quarto.
Entrei e tranquei a porta. Fui até a janela e fiquei olhando Aline
que, despreocupadamente, nadava como uma sereia. No fundo,
eu sentia inveja dela. Queria ser como ela: bonita, alta, alegre,
cheia de amigas. Ela era a minha única irmã, minha única amiga.
Terminei de me secar, tirei o biquíni e coloquei uma bermuda e
uma camiseta. Depois peguei um livro e comecei a ler, deitada na
cama entre os meus dois travesseiros. Naquele momento,
lembrei-me das balas. Dei um pulo da cama e fui até a primeira
gaveta da cômoda, exatamente onde guardava as minhas roupas
íntimas. No canto direito as três balas estavam lá. Duas
embrulhadas em papel azul e uma única em papel branco. Todas
de gengibre com maracujá. Eu odiava gengibre. A última vez que
coloquei bala de gengibre na boca, quase vomitei. Fiquei
pensando se teria coragem, se o meu sentimento de ódio era
maior do que a dor que sentiria depois. Só quando chegasse a
hora é que eu saberia. Aprendi que tudo na vida tem um preço.
Naquele momento eu estava disposta a pagar o que fosse para
ser feliz.

2.

– Você vai, não vai, Laura?


– Você sabe que eu não gosto de festas.
– Mas papai só vai deixar se você for junto.
– Não quero ir.
Não sei quantas vezes mais teria que repetir aquilo. Aline saiu
da piscina e veio direto para o meu quarto. Ela sabia que eu era
uma pessoa extremamente antissocial, não gostava de barulho,
muito menos daqueles garotos mauricinhos, todos bem-vestidos
para as festas de sábado à noite.
– Se você for, eu trago um baseado que tenho lá no quarto pra
gente fumar agora – ela nem esperou que eu dissesse que era
inútil ela tentar me comprar; saiu correndo do meu quarto
enrolada num roupão e meio minuto depois voltou com um
cigarro de maconha na mão. – Olha o que eu arrumei.
– Você é louca, se a mamãe...
– Esqueça, ela acabou de sair – falou ela abrindo bem a janela
do meu quarto e acendendo o cigarro. Deu um trago bem forte
que recendeu por todo o meu quarto. Passou para mim que
hesitei um pouco e acabei pegando. – E então, vai ou não vai
comigo? Eu arrumo um garoto bem legal para ficar com você.
– Não estou interessada em garotos – falei dando um longo
trago e me jogando na cama.
– Hiiiiii! Tô estranhando você, não gosta de meninos?
– Gosto, mas estou preocupada com outras coisas – falei,
esticando a mão e passando o cigarro para ela.
– Então me ajuda, Laura. Eu preciso me encontrar com o Caio.
– Vai transar com ele de novo?
– Vou. Está tudo acertado. Você fica na festa enquanto eu e
ele saímos de fininho e vamos até o motel que fica perto da casa
da Renata. Depois voltamos como se nada tivesse acontecido,
que tal?
– Se o papai descobre.
– Já sei, ele mata eu e o Caio, depois de casar a gente, claro.
– E me mata também.
– Faça isso por mim, minha irmãzinha. Se fizer, olhe o que eu
lhe dou – e tirou do bolso do roupão um outro pacau.
– Eu não quero – falei, chateada com a insistência dela.
– Quer sim – falou ela me passando o cigarro aceso, indo até a
cômoda, abrindo a primeira gaveta, tirando uma calcinha branca
que estava por cima de tudo e colocando a droga escondida no
meio dela. – Vai? Eu te compro um CD do Legião Urbana.
– Eu já tenho todos.
– O próximo que sair. Você não precisa gastar a sua mesada.
– Duvido muito que saia o próximo, a banda acabou, se
esqueceu?
Ela franziu a testa não se dando por vencida. Pensou em algo,
não conseguiu nenhum argumento que pudesse me convencer.
Partiu, então, para a chantagem emocional.
– Por favor, Laura, eu preciso tanto...
Eu precisava ficar livre dela, que seria capaz de ficar o dia
inteiro ali do meu lado choramingando. Enquanto eu dissesse
não, ela não sairia do meu quarto. Eu queria ainda poder ler um
pouco e escrever algumas linhas do meu diário. Então acabei
cedendo.
– Eu vou, mas você promete me deixar em paz o resto do dia?
Ela correu e caiu sobre mim. Quase derrubei o cigarro que já
estava no fim. Agradeceu e disse o quanto me amava. Pura
mentira e falsidade. Aline era uma boa menina, mas não amava
ninguém mais do que a ela mesma. A grande virtude dela era ser
dissimulada e viver como uma camaleoa, mudando de jeito de
acordo com a pessoa. Com meus pais ela era uma, comigo ela
era outra, com os amigos da escola outra, com o namorado outra.
Enfim, quem era Aline?
Ela tirou a sobra do cigarro da minha mão e saiu fumando, indo
para o seu quarto. Fiquei quieta por alguns instantes, pensando
que tipo de vida era aquela que eu levava. Sentia meu corpo leve
e flutuando. Estava quase dormindo quando o telefone tocou. Eu
nunca atendia. Geralmente era mamãe, a empregada ou papai,
como nenhum deles estava, atendi. Reconheci a voz.
– É você?... Sei... As balas estão aqui comigo... Não, hoje não,
amanhã. Amanhã eu dou as balas pra eles. Hoje não. É, você
não devia ligar. E se fosse minha mãe que atendesse, ou meu
pai? Não me ligue, eu te ligo – bati o telefone.
Começou a ventar lá fora. O cheiro da maconha havia se
dissipado. Fui até lá e fechei a janela. Meu quarto ficou na
penumbra, com uma réstia de luz passando pelas gretas da
janela e batendo no rosto do Renato Russo. No canto direito da
minha cama ficava um violão que eu costumava tocar. Tocava e
cantava todas as canções do Legião Urbana. Era apaixonada por
aquele grupo, havia uma simbiose entre mim e o que saía da
boca do Renato Russo quando ele cantava. Era o meu lado
adolescente que, sem muita explicação, escolheu esse cantor
para viver um secreto e estranho caso de amor. Peguei o violão e
comecei a dedilhar as mais antigas canções do grupo. Canções
do tempo em que eu ainda nem havia nascido.
3.

Eu estava em frente ao espelho. Não gostava do que via.


Precisava segurar a boca e parar de comer chocolate, pois
estava virando uma bola. Vestia uma saia preta e curta que ficava
logo acima do joelho e uma blusa com decote em V, toda em
seda vermelha, realçando bem os seios, sandálias pretas de salto
alto, que me deixavam um pouco mais alta, e uma bolsa
combinando com ela. Passei gel no cabelo, que ficou eriçado,
brilhando, contrastando com meu rosto sem brilho, quase sem
maquilagem.
– Nossa, como você está bonita! Arrasou! – encenou Aline ao
entrar no meu quarto.
– Dispenso seus comentários. Estou horrorosa.
– Você está linda! Vamos, que já estamos atrasadas.
Mamãe e papai estavam na sala. Ela pegava a bolsa e
procurava a chave do carro. Ele estava sentado no sofá lendo
uma revista. Fiz de tudo para não passar perto dele e encará-lo.
Aquela casa era pequena demais para nós dois. O mundo era
pequeno demais para nós dois. Desci e fui direto para a porta.
– Espera aí, mocinha, aonde você vai? – perguntou ele,
jogando a revista de lado e esperando que eu fosse até ele.
Estava de costas para ele, de frente para a porta. Queria
entender por que ele não me deixava em paz. Mamãe se
aproximou de mim e falou quase no meu ouvido:
– Seu pai está falando com você, querida. Vai lá falar com ele.
Fiquei com vontade de dizer que não queria falar com ele. Só
que a última coisa do mundo que eu queria era arrumar confusão.
Fui até ele que me secou com os olhos.
– Abaixa um pouco esta saia – imediatamente abaixei a saia
para a altura do joelho. – E esse decote? Está de sutiã? – quase
tirei a blusa e mostrei para ele, mas apenas abaixei um pouco a
alça da blusa para que ele visse.
Ele podia enganar a todas ali, menos a mim. Eu sabia que ele
fazia isso para me provocar e ao mesmo tempo me comer com os
olhos. Não podia negar que morria de medo daquele homem.
– Posso ir agora? – perguntei, com a voz trêmula.
– Pode. Mas Aline, você é responsável por esta menina. Cuide
bem dela. Não deixe ela fazer nenhuma loucura.
– Fica tranquilo, papai – disse Aline, dando-lhe um beijo no
rosto e me puxando para fora dali.
No carro íamos as três em silêncio. Eu com uma vontade de
falar um montão de coisas. Mas quem falava mesmo era o rádio
do carro de mamãe.
A viagem era curta, apenas alguns quarteirões, podíamos ter
ido a pé, mas mamãe insistiu em nos levar. Então, não deu cinco
minutos e já estávamos na frente da casa da Renata.
– Às onze venho buscar vocês – falou mamãe dentro do carro.
– Meia-noite, mamãe, por favor – pediu Aline.
– Onze horas e não se fala mais nisso – falou ela, dando
partida no carro.
– Puta merda! Não vou conseguir fazer o que tenho que fazer
em tão pouco tempo – reclamou Aline, dando socos no ar.
– São oito horas ainda, dá tempo.
– Se o Caio estiver aí dá, mas se ele não chegou ainda... E se
ele chegar só às dez?
– Fodeu – respondi, simplesmente.
Ela olhou para mim de cima a baixo. Parecia sentir pena de
mim, ou coisa parecida. A minha cara era de puro desânimo.
– Anda, sobe esta saia, está ridícula assim – e aproximou-se
de mim e foi me arrumando.
– Sabe o que eu não entendo, sua saia é muito mais curta que
a minha, você está com os peitos quase de fora, sem sutiã e ele
vem implicar comigo.
– É que você é a caçula, ele já te pegou fumando maconha,
saindo com o irmão dele, você já fugiu de casa e já mandou ele
tomar naquele lugar diversas vezes.
– É que ele me provoca.
– Ele é seu pai – falou ela passando a mão de leve no meu
cabelo. – Você podia ser mais paciente. – “Mais camaleoa”,
pensei comigo. – Ele é durão, às vezes dá uns petelecos na
gente, mas a gente bem que merece.
– Da última vez que ele te bateu, quebrou o seu braço.
– Eu mereci – falou ela, toda cheia de resignação. – Pior foi
você que perdeu um dente por conta de um murro que ele deu.
– E ainda fiquei vinte dias presa no quarto. Nem na escola eu
fui – reclamei, sentindo ódio dele.
– Quem mandou fugir de casa? Toda ação provoca uma
reação. O que você tinha que fazer no Rio de Janeiro? Já sei, se
encontrar com o Renato Russo, o maior roqueiro brasileiro...
como se ele tivesse marcado um encontro com você... O homem
já morreu tem quase uma década.
– Pra mim ele continua vivo.
– Tá bom, não vamos discutir sobre isso, vamos esquecer
esse assunto, a festa nos espera – falou ela me segurando pela
mão e entrando.

4.

A festa até que estava animada. Na beira da piscina alguns


garotos e garotas da escola e outros que eu não conhecia. Olhei
para os lados e não vi Aline. Simplesmente sumira e nem me
dera satisfação. Com certeza encontrara o Caio e deviam estar
indo para o motel naquele momento. Cumprimentei a dona da
festa, os pais dela e fiquei andando à procura de um canto onde
pudesse me esconder, como fazem os tatus quando querem paz
e tranquilidade.
Olhava para um, para outro, não me sentia animada para
conversar com ninguém. Era triste assumir o fato de não se ter
amigos. Eu não tinha. Não havia na minha vida nenhuma pessoa
de quem eu pudesse dizer: esta é minha amiga, minha confidente
ou coisa parecida.
Finalmente achei um lugar discreto do outro lado da piscina,
com um banquinho entre duas trepadeiras cheias de espinhos.
Sentei-me ali e fiquei olhando o movimento colorido das garotas
da festa, todas rebuscadas, pairando sobre os rapazes como
gaivotas em busca dos peixes. Senti um cheiro de maconha no
ar. Olhei e vi um grupo reunido na edícula ao lado do tanque de
lavar roupa. Renata, a dona da festa, estava lá. Aline e Caio
também. E mais alguns que eu conhecia só de vista lá da escola.
Fiquei com vontade de ir lá, mas seria uma intrusa. Mesmo
porque Aline e Caio se preparavam para sair. Ela olhou para os
lados e me viu sentada no banquinho. Veio falar comigo.
– Aqui está o número do celular do Caio. Se der alguma zebra
e papai ou mamãe aparecerem por aqui, você me liga, certo?
Não respondi. Peguei o papel da mão dela e fiquei olhando
para o Caio, que chegou por trás, beijou-lhe o pescoço, enquanto
suas mãos apertavam os seios dela.
Na festa só tocava música chata. Nada que eu gostasse.
Queria ouvir a voz do Renato Russo e o som da sua banda.
Nada. Só música estrangeira, com gritos e berros e muito som
eletrônico. Já estava com a bunda quadrada quando ouvi um
barulho do meu lado.
– Posso me sentar? – falou um rapaz moreno, cabelo crespo e
um jeito meio desengonçado.
Afastei-me um pouco e ele se sentou. Olhei para o seu rosto e
vi que ele olhava para um grupo de garotos do outro lado da
piscina. Eles faziam gestos e acenavam. Então haviam me
apostado. Menos mal, pelo menos eu fui notada.
– Qual o seu nome? – perguntou ele, como se tivesse
ensaiado durante horas esta fala.
– Laura – respondi, não dando muita atenção a ele.
– Pausini? – perguntou ele, fazendo alusão à cantora italiana
Laura Pausini.
Achei ridícula a colocação dele. Como os meninos são bobos e
superficiais, por que não tentam ser um pouco mais simples e
singelos?
– Não, da Silva mesmo. E o seu? – perguntei, dando uma
chance para que ele pudesse ser um pouco mais original.
– Rodrigo – respondeu secamente, como se fosse essa a sua
última palavra.
E ficamos os dois ali, parados um ao lado do outro, sem
assunto, sem ter o que dizer. A festa rolava, o pessoal dançava,
conversava alegremente e eu ali, do lado de um garoto imbecil, e
outros do outro lado da piscina, fazendo torcida. Resolvi dar um
basta naquilo.
– Quanto tempo? – perguntei, sem olhar para ele.
– Quanto tempo o quê? – respondeu ele, perguntando.
– Quanto tempo vamos ficar aqui sem dizer uma palavra?
– Não sei. Você quer falar sobre o quê?
Fiquei com vontade de mandá-lo para aquele lugar. Tive que
me controlar. Nunca tive paciência com esses garotos tolos que
mal sabem conversar.
– Se eu estivesse a fim de conversar, estaria lá no meio do
pessoal dançando, andando de um lado para outro – respondi,
olhando para a frente, sem ver a cara dele.
Se ele fosse um pouco mais esperto, teria se ofendido,
levantado dali e ido embora. No entanto, ele continuou sentado
do meu lado, às vezes me olhando, às vezes olhando a turma
dele. A aposta devia ser ele conseguir ficar o maior tempo
possível do meu lado.
– Eu também não estou a fim de conversar – respondeu ele,
dando um meio sorriso.
Fiquei puta da vida. Se tivesse outro canto, juro que teria me
levantado e saído dali. Mas a festa estava cheia e não havia mais
nenhum lugar deserto por ali. Resolvi acabar com a brincadeira.
– O que os seus amigos querem?
– Que amigos? – perguntou ele, dando uma de desentendido.
– Aqueles bobalhões que ficam dando pulos e apontando pra
cá.
Ele ficou pensativo, percebeu que não estava lidando com uma
idiota, resolveu abrir o jogo.
– Você é a irmã da Aline, não é?
– Sou.
– Então, ela namora o Caio e ele pediu para que um de nós
viesse fazer companhia pra você.
– Conta outra. Quem disse que estou precisando de
companhia? Vocês fizeram alguma aposta, não fizeram? Pode
dizer, conheço bem os meninos.
Ele ficou sem jeito, não esperava que eu fosse tão direta. Notei
que ele era um garoto inseguro e que tentava mostrar ao grupo
que estava à altura de todos. Abaixou a cabeça e envergonhado,
falou:
– Vinte e cinco mangos se eu conseguir te dar um beijo – disse
ele gaguejando. Fiquei injuriada, um beijo meu estava valendo
tão pouco assim? – Mais vinte e cinco se eu passar as mãos nos
seus peitos – completou ele, aguardando um safanão ou um
tabefe bem dado na cara.
“Melhorou”, pensei comigo, “cinquenta mangos era o que uma
prostituta de esquina cobrava para transar. O mesmo de um beijo
e uma passada de mãos nos peitos...”
– Mas é uma passada de mão de leve – retruquei, olhando os
panacas dando risadas e se divertindo às minhas custas.
– É só uma segurada, mas eles têm que ver... mas você vai
deixar? – perguntou ele, todo atrapalhado.
– Depende. Podemos fazer um acordo. Digamos que eu tope,
o que eu vou ganhar?
Ele ficou pensando. O menino era, de fato, muito lento.
– Ora, o beijo e a passada de mão.
– É pouco. Quero cem mangos.
– Cem?!
– Cem. Cinquenta dos babacas e cinquenta seu... – ele ficou
me olhando. Acho que não acreditava no que acabara de ouvir. –
Que que foi, não acha que eu valho isso?... Não responda, senão
eu me levanto e vou embora – fiz menção de me levantar.
– Não, não vá – balbuciou ele nervoso, segurando a minha
mão. – Eu não tenho todo esse dinheiro.
Dei um sorriso, fiquei com vontade de segurar a bochecha
dele, mas me contive.
– Problema seu. Este é o preço se você quiser brincar comigo.
Novamente fiz menção de me levantar. Ele, que ainda
segurava minha mão, insistiu:
– Tudo bem, vou ficar duro, mas pelo menos vou sair por cima
nessa história.
– Ótimo – respondi como uma profissional. – Me passa o
dinheiro, coloca aqui na minha bolsa.
Ele hesitou. Olhava para mim, olhava para os amigos à
distância enquanto eu me divertia com tudo aquilo.
– Escuta...
– Laura.
– Isso, Laura, eu não tenho esse dinheiro agora, tá lá com
eles. Eu só tenho a minha parte. A gente faz a coisa, eu vou lá,
busco o dinheiro e te entrego.
– Pagamento adiantado – respondi, morrendo de rir por dentro.
– Confie em mim.
– Confiar em homem? Sabe o que aconteceu com a última
mulher que confiou num homem? Virou dona de casa. Você tem
cinco minutos para trazer o dinheiro, senão me levanto e vou
embora, esta festa está uma merda mesmo – falei, olhando para
o relógio.
– Mas o que eu vou dizer pra eles?
De fato, se ele chegasse lá e pedisse o dinheiro, com certeza
eles não dariam. Então, tive uma ideia.
– Pega o seu dinheiro e joga aqui na minha bolsa, sem eles
perceberem – ele tentou protestar, mas percebi que ele estava
em minhas mãos. – Faça o que eu estou pedindo! – ele hesitou,
tirou do bolso da calça disfarçadamente umas notas todas
amassadas. – Joga tudo aqui na minha bolsa, senão eles vão ver.
– Mas tem mais de cinquenta aí – reclamou ele.
– Eu te devolvo o troco depois – falei, pegando das mãos dele
as notas e jogando dentro da minha bolsa. Olhei os garotos que
estavam observando. Eles viam os nossos movimentos, mas não
conseguiam entender o que se passava. Fiquei de frente para o
garoto e dei-lhe um beijo na boca, inesperado, breve, muito
rápido. Ele me olhou buscando entender o que eu fizera. – Agora
vai lá e pega o dinheiro com eles.
– Mas eles querem um beijo de verdade e uma passada de
mão.
– Diga que você não confia neles. Só se eles pagarem é que
você vai tentar. Daí diz pra eles que nós vamos lá pra fora, no
terreno baldio aí do lado. Que tal?
Ele concordou, criou coragem e foi falar com os amigos. Eu
disfarçava, de vez em quando olhava, mas não podia deixar
parecer que tudo se tratava de uma tramoia. Aquilo, para mim,
estava sendo por demais divertido. Como é bom jogar com as
pessoas, mexer com os sentimentos delas. Aí é que está a
verdadeira fonte do poder.
Minutos depois ele voltou.
– Trouxe o dinheiro? – perguntei, sentindo-me uma
vagabunda.
– Trouxe, vamos lá pra fora.
Saímos, ele na frente e eu atrás. Ele bem que queria sair
abraçado comigo. Nem morta. Acordo era acordo.
A rua silenciosa parecia morta. Só se ouvia o barulho do som
alto da festa. Ao lado da casa havia um terreno baldio com mato
baixo, que dava perfeitamente para ver tudo o que acontecia lá.
Por isso, não dava para acontecer nada mais do que uns beijos e
uns amassos.
Encostamo-nos no muro e ficamos esperando que os nossos
espectadores chegassem. Abracei-o e fiquei deitada no ombro
dele, ouvindo a chegada dos garotos.
– Eles chegaram – falou ele baixinho no meu ouvido.
Era a deixa que eu queria. Começamos a nos beijar, primeiro
devagar, depois mais freneticamente. Ele foi me apertando e sua
mão começou a passear pelo meu corpo. Chegou aos seios e os
apertou.
– Vai devagar, senão você arranca eles fora – falei bem
baixinho no ouvido dele.
Ele maneirou um pouco. Eu queria ser uma mariposa para
estar ao lado dos panacas, para ver a cara deles. O garoto não
queria mais parar. Para mim, o trato já estava cumprido.
Aproveitei a deixa que a mão dele, todo saliente, foi descendo e
querendo subir a minha saia.
– Não. O trato era só aqui em cima – falei me afastando
bruscamente e ouvindo o atropelo dos garotos tentando se
esconder.
– Vamos mais um pouco.
– Não, nossa brincadeira acabou – disse na cara dele e saí.
Voltei para a festa com uma sensação de vazio no corpo. Fui
para o banheiro, lavei o rosto, recompus-me, retoquei a
maquilagem e só não chorei porque não ia dar o gosto de
ninguém me ver chorando.
Saí do banheiro, tive a consciência de que eu era uma puta,
daquelas bem mundanas. Na hora tudo aquilo me deu um prazer
enorme, mas agora... agora... eu me sentia um lixo, como se meu
corpo valesse menos do que uma moeda de um centavo. Pior
que eu não precisava de dinheiro, muito menos de ter vivido toda
aquela situação. Melhor mesmo era ir embora, bater a cabeça no
travesseiro e torcer para que o dia seguinte viesse logo.
Mal sabia que aquela noite seria uma das mais longas noites
da minha vida.
Fiquei rodando pela festa. Eram quase onze horas. Estava
começando a ficar preocupada com Aline quando ela apareceu.
– Você está com uma chupada no pescoço – falei, antes
mesmo que ela dissesse algo.
– Ninguém vai perceber – falou ela dando tchau para umas
amigas e ajeitando a gola do casaco que usava.
– Eu vi – insisti.
– Você enxerga demais. Vamos que a mamãe deve estar lá
fora nos esperando.
Não estava. Ficamos em frente da casa esperando por ela.
Ventava, um vento frio típico das noites de outono. A lua estava
firme no céu e toda amarela, parecia um queijo parmesão.
– Como foi? – perguntei.
– Maravilhoso. Como é bom fazer amor.
– Ele usou camisinha?
– Não.
– Mas você pode engravidar.
– Eu não ligo, nós vamos nos casar logo. Seria até bom se isso
acontecesse.
– Mas você pode pegar uma doença grave.
– Iiiiii, credo Laura! Você parece um urubu. Caio não é
promíscuo, não anda por aí com qualquer uma.
– Mas ele é um noia, vive injetando coisas na veia.
– Isso é problema dele, não é da sua conta. Olha lá mamãe –
falou ela, fazendo sinal e correndo em direção ao carro.

5.

Em casa reinava uma paz aparente. Mamãe sofria de câncer


linfático e isso sempre lhe dava um aspecto pálido e cansado.
Mesmo assim ela teve ânimo de perguntar como foi a festa. Eu
não disse nada. Dizer o quê? Que me vendi por cem reais? Não
sabia mentir, não ia inventar nada. Nem estava disposta a ouvir
as mentiras que Aline contaria para ela. Beijei-a no rosto, subi as
escadas e fui para o meu quarto.
Abri minha bolsa e retirei uma pequena chave de lá. Abri a
gaveta de minha escrivaninha, logo abaixo do computador e
retirei de lá de dentro o meu diário e um caderno que há dias eu
rabiscava, tentando fazer uma poesia. Tirei as sandálias que
massacravam meus pés e joguei-me na cama. Fiquei em dúvida
em qual escreveria. Estava com vontade de escrever poesia. Abri
o caderno e vi as páginas rabiscadas, rasuradas e maltratadas
pela minha falta de inspiração. Não conseguia escrever nada,
mesmo tendo dentro de mim um turbilhão de sentimentos que eu
queria transformar em palavras bonitas. Não conseguia. Fechei o
caderno e fui para o diário. Minhas últimas anotações falavam
sobre a minha angústia de viver naquela casa, de sonhar com um
lugar melhor, que me pudesse fazer feliz. Naquele momento eu
buscava a felicidade como um ébrio busca a bebida. Fechei o
diário e resolvi tomar um banho.
Peguei uma camisola curta que quase não usava. Peguei-a por
pegar. Geralmente não escolho roupa para dormir. Tirei a minha
roupa e joguei sobre a cadeira. Eu era muito desorganizada. Não
fazia muito calor e senti um vento frio arrepiar o meu corpo. Corri
para o banheiro e entrei no chuveiro. Ali fiquei, mergulhada em
meus sonhos. Pensei que fosse dar muitas risadas lembrando-me
do que aconteceu na festa. Só que estava arrependida. Não
havia agido direito com o garoto e muito menos comigo. É ruim
vender o corpo. É ele quem nos carrega, quem nos leva para
onde formos. Ele não tem preço. Nem ele, nem a nossa alma, se
é que temos uma.
Pior, nem lhe devolvi o dinheiro que ele me deu a mais.
Pensando assim saí do chuveiro, sequei-me ali mesmo, vesti a
camisola, abri a porta e levei um susto quando vi papai sentado
na minha cama, lendo o meu diário. Se eu não tivesse tanto
medo dele, teria avançado e retirado à força da mão dele. No
entanto, tentei agir com a maior naturalidade possível.
– Demorou no banho – falou, revirando as páginas do diário.
– Não sabia que o senhor estava aqui – falei, pegando minha
roupa que estava sobre a cadeira e voltando ao banheiro para
jogá-la no cesto de roupa suja.
– Vim saber como você está.
– Estou bem – respondi, pegando a toalha e terminando de
secar o cabelo. – Onde está mamãe?
– Acabou de dormir. Está dormindo como uma pedra. Acabei
de lhe dar um sedativo, ela estava sentindo muita dor.
Eu não sabia o que dizer. Ele invadiu o meu espaço como se
fosse dono de tudo. Fiquei rodando feito barata tonta pelo quarto,
querendo me esquivar dele, sem que isso o chateasse.
Notei que ele largou o diário. Aproveitei e o peguei junto com o
caderno. Fui obrigada a me aproximar dele. Não sei o que ele viu,
só então me dei conta de que estava por demais à vontade, só de
camisola, sem nada por baixo. Guardei meus escritos na gaveta
da escrivaninha, tranquei a gaveta e guardei a chave para, só
depois, ir ao armário e pegar um pijama mais discreto. Enquanto
isso ele me olhava, me secava com aqueles olhos doentios.
Quando me viu pegando a roupa, falou com um ar de autoridade:
– O que você vai fazer?
– Vou trocar de roupa. O senhor está no meu quarto, não fica
bem...
Antes que eu terminasse de falar, ele me segurou pelo braço.
– Quem decide as coisas aqui sou eu.
– Mas... – tentei retrucar, tentando entender aquela situação.
Ele se levantou e segurou meus dois braços. Fiquei de frente
para ele. Não podia começar tudo de novo. Deus do céu! Pensei
que tivesse terminado, que aquela loucura fosse coisa do
passado. Por que ele insistia? Soltou uma das mãos e passou-a
pelo meu corpo. Eu fechava os olhos e tentava controlar o medo.
Sabia que se reagisse, apanharia. Era isso que ele queria: me
bater.
– Você faz isso para me provocar, não é mesmo? Por que não
usa uma roupa decente? – murmurou ele no meu ouvido. Senti
seu hálito morno cheirando a uísque. Ele estava bêbado, não tive
dúvidas.
– Eu ia vestir, mas o senhor está aqui.
– E isso é problema pra você?
– Tenho vergonha.
– Vá se vestir, então! Tampe as suas vergonhas – dizendo
isso, ele me largou e foi até a primeira gaveta onde estavam
minhas roupas íntimas. – Toma, vista isso! – ao retirar a calcinha
da gaveta e jogar para mim, o cigarro de maconha que Aline
colocara ali voara junto, indo cair perto do meu pé.
Naquele momento meu mundo literalmente ruiu. Olhei para o
chão, olhei para papai. Ele ficou surpreso, abaixou-se e pegou o
cigarro. Isso levou poucos segundos, o tempo suficiente para eu
pensar em fugir, pulando pela janela ou simplesmente passando
pela porta e correr, mas quem disse que minhas pernas
obedeceram?
– Eu podia te perguntar o que isso faz aqui, no meio de suas
roupas, mas seria bobagem, não é mesmo?
– E eu poderia perguntar para o senhor quem mandou o
senhor abrir a gaveta da minha cômoda. Ali eu guardo minhas
roupas íntimas...
Ele parecia não ouvir, começou a rir e a me rodear como se
fosse um cão raivoso e pronto para o ataque.
– Pelo jeito não são só peças íntimas que você guarda ali –
e estendeu a mão e me mostrou o cigarro.
Tentei me controlar, falar pausadamente, mas meu corpo
tremia, tentando se esquivar da ira que ele parecia tentar
controlar.
– Não é meu isso! – gritei chorando, como a única defesa que
tinha naquele momento.
Ele tirou a sandália de couro com uma fivela que estava no seu
pé e começou a me golpear. Berrei, gritei, chamei por mamãe,
corri até a porta na esperança de conseguir sair. Dei de cara com
Aline, olhos esbugalhados, tremendo.
– O que está acontecendo?
Com muito esforço consegui falar, enquanto ele me segurava
pelo cabelo.
– Fala pra ele, Aline, que não é meu esse cigarro.
Aline olhava para mim, para ele e não sabia o que dizer. Ele
ergueu a mão mostrando o cigarro.
– Essa porcaria é sua? – berrou na cara de Aline.
– N...na...não – gaguejou ela.
– Então saia daqui, vai para o seu quarto. Anda!
Ela saiu correndo e ele bateu a porta. Comecei a rezar
baixinho. Meu corpo doía pelas chineladas que levara. Precisava
conversar com ele, explicar as coisas, dizer que não era assim
que se resolviam as coisas...
– Papai, eu posso explicar... me deixa falar, por favor.
– Vagabunda! – gritou ele, dando chineladas no meu rosto,
enquanto a outra mão puxava meu cabelo. – Eu devia matar
você. Eu avisei para você não usar mais drogas. Avisei para você
se comportar como uma menina normal. É difícil isso?
– Eu... – tentei dizer algo, mas ele largou a sandália e me deu
um murro na boca. O golpe foi tão forte que eu caí na cama.
Ninguém, em sã consciência, consegue apanhar sem reagir. Eu
estava cansada de apanhar e não reagir. Ele era muito mais forte
do que eu, muito mais alto e gordo, mas eu não ia deixar me
abater naquele momento. – Maldito! Eu vou na polícia, olha só o
que você fez! – berrei, enquanto limpava o sangue que escorria
pelo nariz.
– Só se você estiver viva, porque vou matar você – falou ele,
partindo para cima de mim.
Não pensei duas vezes, nem sei onde arrumei forças, quando
ele veio para cima de mim, dei um pontapé que pegou direto nos
seus testículos. Ele urrou feito urso ferido. Ele bem que podia ser
mais forte, mas não era tão ágil, nem rápido como eu. Aproveitei
e saí correndo, desci as escadas voando, abri a porta dos fundos
e me escondi na edícula. Fiquei apavorada. Peguei uma vassoura
e fiquei esperando que ele saísse. Mas ele não saiu. Apareceu na
porta de vidro ainda mancando, abriu-a e gritou:
– Vagabunda! Cadela! Aí fora que é o seu lugar, junto com o
cachorro – e fechou a porta, trancando-a com chave.
Num primeiro momento fiquei feliz por ele ter desistido de me
bater, mas quando senti o vento frio da madrugada batendo no
meu corpo, notei que a noite seria longa e fria. Se pelo menos
estivesse vestida, mas o que sobrou no meu corpo foram apenas
os trapos do que um dia fora uma camisola.
Senti algo quente e molhado na minha mão. Olhei e vi o Fred,
o nosso rottweiler, que parecia me receber com alegria. Ele
costumava dormir ali na edícula. Peguei alguns trapos e forrei o
chão. Passei a mão no nariz que estava dolorido, inchado,
parecendo uma bola de golfe. Deitei-me e me cobri com o resto
de trapos que mal conseguiam esconder o meu corpo. Parecia
uma maltrapilha. Sentia-me como se fosse uma mendiga. Por
incrível que pareça, se pudesse escolher, adoraria ser uma
pessoa de rua, pelo menos viveria sozinha, sem ninguém para
me torturar.
Fred veio e deitou-se do meu lado. Meu corpo doía e eu me
sentia bem deitada ali. Nunca mais iria dormir naquele quarto,
nunca mais meu pai me tocaria, nunca mais as coisas seriam
como antes, isso eu jurei ali mesmo, diante do vento frio e das
estrelas que povoavam o céu.
Não demorei e dormi como um anjo.

6.

Sentia meu corpo frio e uma mão quente passando no meu


rosto. Ainda estava escuro. Abri os olhos e vi Aline agachada ao
meu lado.
– Vamos entrar.
– Que horas são? – perguntei me levantando e olhando para
Fred que passara a noite do meu lado e que agora estava de
olhos abertos, mas todo enrolado nele mesmo, como se fosse
uma cobra.
– Seis horas, já vai clarear. Daqui a pouco mamãe acorda, ela
não pode te ver aqui.
– E papai?
– Acabou de dormir. Ficou andando pela casa a noite toda.
Bebeu uma garrafa de uísque e só agora deitou do lado de
mamãe e está roncando.
Fui dar um passo e senti meu corpo reclamar. Meu nariz ainda
latejava e onde ele batera com a sandália estava ardendo.
– Viu que fria você me meteu colocando aquela porra de
cigarro na minha gaveta?
– Mas o que papai foi fazer no seu quarto?
– Me aporrinhar.
– E você precisava pegar a calcinha na frente dele? –
reclamou ela me acompanhando, enquanto eu entrava em casa.
– Não fui eu que peguei, foi ele que abriu a gaveta e pegou.
Ela parou intrigada, curiosa ou qualquer coisa assim e indagou:
– Mas o que ele queria com a sua...
– Adivinha – falei, subindo a escada e levantando a camisola
em trapos para ela ver a minha bunda.
Entrei no quarto e senti um arrepio. Ele violou a minha
intimidade. Não podia mais ficar ali. Tranquei a porta e me
certifiquei depois se de fato havia fechado mesmo. Não podia
correr o risco de ele entrar de novo e me pegar. Tirei a camisola e
joguei-a pela janela. Ela repousou tranquilamente no jardim perto
da piscina. Entrei no banheiro e deixei a água lavar o meu corpo,
já que a alma, esta não conseguia lavar, nem retirar as marcas de
ódio que estavam impregnadas nela.
Saí do banho, vesti uma roupa bem sóbria, penteei o cabelo,
olhei meu nariz inchado e fui tomar café. Na cozinha mamãe
preparava o café. Entrei e beijei-lhe o rosto.
– Madrugou?
– Vou à missa com a senhora.
– Que bom – falou ela, olhando para mim. – O que foi isso no
nariz?
– O quê? – indaguei, dando uma de desentendida.
– Parece que ele está inchado.
– Não sei – falei, enquanto pegava um copo e me dirigia à
copa. – Acho que dormi demais ou então é uma espinha chata
que vai nascer.
Na mesa tinha bolo, bolachas, frutas e suco. Meu estômago
embrulhava só de pensar em comer. Mamãe veio atrás com sua
xícara de chá, sentou-se do outro lado da mesa, de frente para
mim.
– Seu pai e sua irmã ainda dormem. Nem vi quando vocês
foram para cama. Vou pedir para o seu pai parar de ficar me
dando esses tranquilizantes. Qualquer dia a casa cai e eu nem
vejo.
“Acho que ela já caiu”, pensei com a minha língua coçando de
vontade de falar tudo para ela.
– Mas sem eles a senhora não dorme bem – falei, tentando
mudar o rumo da conversa.
E ela mudou mesmo, mamãe voltou a me olhar de cima a
baixo, chegou a erguer a cabeça para ver a parte que se
escondia por baixo da mesa.
– Você está bem, minha filha?
– Estou – respondi, contendo o choro. – Por que pergunta?
– Este vestido negro, você o odeia. Diz que fica parecendo
uma viúva negra.
– E fico mesmo.
– Então por que está usando?
– Porque estou me sentindo como uma viúva negra.
Ela deu um sorriso, pegou uma bolacha e jogou na boca. Acho
que tinha tanta coisa para falar comigo, mas não sabia como
começar. Eu morria de pena dela. O câncer a consumia
lentamente, como se quisesse castigá-la por todos os crimes do
mundo.
Tomamos café em silêncio. Um café amargo, sem diálogos,
sem qualquer coisa que pudesse dizer que éramos humanas, ali,
diante daquelas guloseimas. No fundo éramos duas mulheres
tristes, uma morrendo e a outra pedindo para morrer.
Saímos de casa faltando meia hora para a missa. Mamãe
cortava as ruas do bairro e eu olhava as belas casas, as árvores
floridas, os cachorros magros de esquina esperando por comida.
Eu olhava aquilo tudo como quem olhava pela última vez. O sol
irradiava uma certa alegria que eu não compartilhava, mas que
me deixava claro que aquele domingo seria todo especial.
Quando chegamos à igreja, a missa já estava começando. A
igreja não estava cheia e sentamo-nos na última fileira de bancos.
Ela pegou o seu terço e começou a dedilhá-lo com uma fé que
quase não cabia dentro daquela igreja.
Quanta fé, quanta coragem, mamãe! Eu queria ter a metade da
sua fé, a metade da sua crença, talvez assim o peso do mundo
fosse mais leve para mim.
Acompanhei a missa com fervor. Pedia a Deus que me desse
forças, que me fizesse forte como mamãe, que garantisse um
bom lugar no céu para ela e um bom lugar no inferno para mim.
A missa terminou e notei que mamãe estava diferente, feliz,
com um sorriso de satisfação estampado no rosto. A manhã
continuava quente e ensolarada.
– Não está um belo dia? – perguntou, respirando fundo quando
chegamos perto do carro. – Não dá nem vontade de ir para casa.
Que tal um sorvete?
– Estou gorda – respondi, querendo ir logo para casa.
– Só um. Podemos ir naquela sorveteria que você gosta, que
vende sorvete de massa.
– Mas fica longe daqui – retruquei, demonstrando desânimo.
– Ainda é cedo, entra e vamos lá.
Ainda era cedo... De fato, passava um pouco das nove, não
era horário de se chupar sorvete, mas ela estava tão decidida que
resolvi não a contrariar.
A sorveteria estava vazia. Os funcionários colocavam os
sorvetes nas conservadoras e arrumavam as mesas. Sentamos
num lugar que dava de frente para a praça central. Uns
caminhavam, outros davam milho aos pombos. Deixei que ela
pedisse os sorvetes de sua preferência. Havia muito ela se
esquecera de que eu já não gostava mais de sorvete como
antigamente. Descobri ali que ela ainda me via como uma
garotinha que vivia colada na sua saia. Não! Acho que não. De
fato, ela sabia que eu era uma peste, queria apenas, naquele
momento, imaginar que tinha uma filha diferente, do jeito que
toda mãe sonha em ter.
– Eu queria pedir desculpas – falei para ela no momento em
que a moça saía para buscar os sorvetes.
– Pelo quê?
– Por tudo que fiz com você.
Ela segurou as minhas mãos e me olhou com ternura.
– Você não me fez nada, Laura. Tudo o que você fez, de bom
ou de ruim, foi para você mesma.
– Você acha que eu sou uma menina má?
Ela pensou um pouco, buscou palavras para tentar ser a mais
clara possível sem, no entanto, me magoar.
– Ninguém é cem por cento bom, nem cem por cento ruim.
Você tem lá os seus defeitos, mas tem muitas qualidades.
– Então por que papai me maltrata tanto?
– Ele não te maltrata. Ele é apenas um homem rígido, está
acostumado a mandar nas pessoas. Você parece não aceitar
isso. No mais, ele é um bom homem.
– Ele não é bom – falei com vontade de explodir, dizer tudo o
que estava pensando e que estava entalado na minha garganta,
fazendo com que eu quase perdesse a respiração.
– Engano seu.
– Não é engano, mamãe. Está vendo o meu nariz? Sabe por
que ele está assim? Ele me deu um murro.
– Seu pai não lhe bateria se não tivesse um motivo. O que
você fez?
Dei um soco na mesa. Não tinha jeito, por mais que eu
tentasse trazer mamãe para o meu lado, ela parecia cega,
obtusa, como se não quisesse enxergar a verdade.
– E se eu lhe disser que ele tenta abusar de mim? – falei
blefando, usando meu último argumento.
Ela fez um gesto como se fosse reagir com muita indignação.
Acho que ia gritar, falar algo duro, mas exatamente naquele
momento a moça apareceu com as taças de sorvete e ela teve de
se controlar. Teve de pensar, concatenar as ideias e me
responder com toda paciência do mundo:
– Está vendo como não é possível conversar com você?
Quando tento vasculhar essa sua cabecinha oca, você me vem
dizendo disparates. Primeiro você reclama que ele te maltrata,
depois que ele abusa de você. Que mais você vai inventar agora?
Fiquei possessa com ela. Tive que me segurar para não jogar
aquela taça de sorvete no chão, sapatear sobre a mesa e dizer
que ela, além de tudo, era cega.
– É verdade, mamãe. Juro por tudo que é mais sagrado.
– Como foi esse abuso, ele passou a mão em você?
– Não, mas ele me olha, se insinua e...
Não tive coragem de continuar. Devia estar sendo muito duro
para ela ouvir aquilo. E eu devia ter perdido o resto das minhas
faculdades mentais. Onde já se viu falar isso?
– Deixe-me dizer uma coisa pra você, minha filha. Seu pai tem
a mim como mulher e existem outras tantas com quem ele
poderia sair. Ele é seu pai, criou você desde pequena, jamais
faria uma coisa dessas...
– Mas eu estou dizendo que...
– Cale-se. Eu sei que você o odeia, talvez porque ele queira
lhe enquadrar, impor limites, mostrar como o mundo é aí fora. Só
que não precisa inventar esse tipo de coisa. Isso é sórdido
demais. Vamos esquecer esse assunto. Vamos conversar sobre
coisas boas. Olhe, o sorvete está derretendo e nós sequer o
tocamos.
Eu bem que tentei buscar ajuda. Mamãe poderia ter sido um
caminho para mim. Se ela tivesse acreditado em mim, acho que
as coisas teriam sido diferentes.
– O sorvete está uma delícia – murmurei, levando fartas
colheradas à boca. Meus olhos, desobedientes, choravam de
lágrimas rolarem. Que diabo acontecia comigo?
Ela me via chorando, mas não enxergava. Mamãe tinha a
capacidade de só ver o que queria. Naquele momento ela queria
me ver feliz, não enxergava a minha expressão, nem as lágrimas
que desciam pelo meu rosto.
– Me fala sobre o seu sonho de ser escritora. Continua
escrevendo muito?
– Continuo.
– Acho que você vai ser uma grande escritora, minha filha.
– Por que você diz isso? – falei, passando o guardanapo no
rosto e limpando as lágrimas.
– Porque você consegue fantasiar, criar situações difíceis de
se imaginar. Você é uma menina diferente. Onde uma jovem de
quinze anos foge de casa para se encontrar com o seu ídolo,
quando o mundo inteiro sabe que ele morreu?
– Eu fui no cemitério onde ele foi cremado. Fui só levar uma
flor – respondi, brava.
– E agora?
– Agora eu acho que ele está vivo aqui dentro de mim. Eu amo
o Renato Russo. Queria poder escrever poemas como ele.
Cantar como ele...
– Escreva um livro sobre ele.
Eu nunca tinha pensado nisso. Escrever a biografia do meu
ídolo. Não seria uma má ideia, pensei comigo.
– Talvez eu faça isso.
– E faça algo mais.
– O quê? – perguntei, rapando a taça.
– Faça análise. Eu conheço um ótimo psicanalista, acho que
ele vai poder lhe ajudar.
– Você está dizendo que sou louca? – bradei.
– Claro que não, meu anjo, você bem sabe que não há nada
de errado com você, mas isso pode lhe fazer muito bem.
Terminei de enfiar o dedo na taça para retirar o resto de
sorvete com creme de chocolate que ficou no fundo. Acho que
não prestei bem atenção no que ela dissera. Estava mais
preocupada em descobrir qual seria o próximo sabor que pediria.
– Quero mais um.

7.

Quando chegamos em casa passava da hora do almoço. Aline


veio nos receber, demonstrava preocupação.
– Vocês demoraram.
– Fomos à missa e depois tomar sorvete – esclareceu mamãe,
toda feliz.
– Podia ter levado o celular. Fiquei preocupada.
– Imagina que eu iria atender o celular no meio da missa ou
diante de uma taça de sorvete – respondeu ela me olhando.
Entramos e ela se jogou no sofá como sempre gostava de
fazer. Pegou sua revista de fofocas e ficou passando as páginas,
tentando achar algo interessante para ler. Sentei-me na poltrona
do canto, que dava de frente para o jardim onde havia caído a
minha camisola. Fiquei olhando para ela, prova cabal do que me
acontecera à noite.
– Acho que vou para a piscina – falou Aline, preparando-se
para subir as escadas.
– Não vai não – falou papai, vindo da copa com uma maçã na
mão.
Senti meu corpo arrepiar só de vê-lo. Como eu queria que
aquele homem não existisse, que fumegasse até cair no vale do
inferno.
– Mas, papai... – protestou minha irmã.
– Sem, mas! – cortou ele, vindo em minha direção. – Nós
vamos sair. Vamos ao shopping. Se tiver lojas de roupas abertas,
vou liberar o cartão para vocês duas fazerem compras, o que
acham? – perguntou olhando para mim, como se tivesse falado
só comigo.
– Oba! – berrou Aline, pulando no pescoço dele.
– Acho ótima ideia, querido – disse mamãe. – Faz tempo que
não saímos juntos. O que você acha, Laura? – perguntou ao
notar o meu desconforto diante dele.
Papai, ainda abraçado com Aline, tentou colocar os braços
sobre o meu ombro. Levantei-me bruscamente e fui me sentar ao
lado de mamãe. Meio sem jeito ele falou, como se fosse vítima
de toda uma situação:
– O que foi que eu fiz?
Como ninguém estava disposto a entrar no assunto, Aline
beijou o rosto de papai e tentou passar uma borracha por cima de
tudo.
– Então vamos nos arrumar. Eu quero comprar uma blusa
lindíssima que vi numa loja. Ela custa um pouco caro, mas acho
que pode parcelar. Será que a loja vai estar aberta?
Aline era a típica garotinha consumista dessa geração pós-
moderna. Falou em comprar era com ela mesma. Levantou-se
toda feliz e, saltitando feito uma gazela, subiu as escadas
sonhando com a blusa que, finalmente, iria comprar. Fiquei entre
os dois, presa por olhares que queriam respostas que eu não
podia dar. Sentia-me mal na presença dele. Estranho é que ele
agia e falava como se nada tivesse acontecido na noite passada.
Jogava olhares para mim enquanto falava coisas amenas com
mamãe. Insinuava-se e procurava conversar comigo. Parecia um
outro homem. Tinha a impressão de que ele era mais louco do
que eu. Bem mais louco!
– Acho que vou tomar água – rompi o silêncio me levantando e
indo para a cozinha.
Deixei os dois ali na sala conversando. Não queria conversar
com ele. Peguei o copo com água, devagar, fui para a copa e
fiquei em pé perto da porta.
– Onde vocês foram? – perguntou ele, de forma ríspida para
mamãe.
– Fomos à missa e depois chupar sorvete – respondeu ela com
o olhar preso nas páginas da revista.
– Vocês conversaram?
– Sobre o quê?
Ele ergueu a cabeça e olhou para a copa para ver se me via.
Escondi-me antes que ele pudesse me ver.
– Sobre qualquer coisa. Ela me odeia, não sei por quê. Faço
de tudo para agradá-la.
– Ela me falou que você abusa dela.
– Eu? – deu um sorriso nervoso, sem graça, que se mamãe
tivesse olhado para o rosto dele, teria percebido, mas ela
continuava fingindo que lia algo na revista. – Você acreditou
nisso?
Antes de responder, ela fechou a revista, jogou-a de lado e só
aí o encarou.
– Às vezes eu acho você meio duro com ela. Às vezes até
acho que você se insinua um pouco, mas considero você o pai
dela, é inconcebível que você possa ter algum desejo pela
menina que você ajudou a criar.
– Eu seria louco se isso acontecesse. Amo essas meninas
como se fosse o verdadeiro pai delas.
– Mas você é – falou mamãe segurando a mão dele. – Foi
você quem criou essas meninas.
– Então acho que fracassei como pai. Laura me odeia. Sinto no
olhar dela que, por ela, eu estaria morto.
– Não diga isso, Laura é uma criança, uma adolescente que
está vivendo um momento difícil.
– Eu não queria te falar, entrar neste assunto, mas diante da
situação sou obrigado a te falar.
– O quê? – perguntou mamãe, curiosa.
– Esta coisa da Laura falar que eu abuso dela. É mentira. Na
verdade, é ela que se insinua para mim. Ontem mesmo ela me
chamou no quarto, estava quase nua e pediu para que eu me
deitasse com ela.
Mamãe se mexeu no sofá, vi seus olhos brilharem como se
tivessem sido golpeados. Controlei-me para não entrar na sala e
gritar na cara dele que era tudo mentira.
– Laura está com o nariz inchado – falou mamãe, encarando-o.
– Tive que me proteger, bater nela, para que ela se
controlasse. Ela ameaçou contar para você, para a polícia se eu
não me deitasse com ela. Preferi agredi-la a cometer tal
sacrilégio.
Ela balançou a cabeça como se tentasse colocar tudo nos
seus devidos lugares. Estava confusa, perplexa e como era do
seu feitio, mamãe ativou o seu mecanismo de defesa que, de vez
em quando, ela acionava para conseguir sobreviver. Levantou-se
e simplesmente disse:
– Vamos falar disso depois. Se vamos sair agora, melhor nos
arrumarmos.
Os dois subiram. Tinha que tomar uma atitude, senão eles
iriam acabar me internando. Fui para o quarto. Abri a gaveta e
peguei as três balas. Pensei e tomei a decisão, seria naquele dia.
Não sei se daria certo, mas iria tentar. Fui pensando e trocando
de roupa. O dia estava muito quente e exigia uma bermuda bem
larga com uma camiseta. Peguei as balas e joguei no bolso da
frente da bermuda. A hora que desse...
Depois fui para a cozinha. Estava com vontade de comer
musse de chocolate e enquanto todos se arrumavam, peguei um
tablete de chocolate, piquei-o e coloquei em banho-maria. Depois
que ele derreteu, misturei com a gelatina dissolvida em meia
xícara de água. Bati duas gemas no liquidificador, misturei com o
chocolate...
Ia fazendo tudo com muita rapidez. A cozinha estava uma
bagunça.
– Deus do céu! Um furacão passou por aqui! – exclamou
mamãe, toda empetecada, parecendo que ia a um casamento.
– Acabei de fazer uma musse de chocolate, está na geladeira,
à noite vamos comer.
Aline foi a próxima a chegar. Estava impecavelmente bela.
Minha irmã era muito bonita.
– Que cheiro gostoso – falou, abrindo a geladeira, ameaçando
atacar a musse ainda mole.
– Não se atreva, isso vai ser para a noite – falei, fechando a
geladeira na cara dela.
Papai buzinou. Como sempre apressado, ele já estava pondo o
carro para fora. Olhei para a bagunça e mamãe falou:
– Não se preocupe, quando chegarmos eu limpo tudo.
Corremos para o carro. Ele tinha uma impaciência que beirava
a neurose. Resmungou alguma coisa enquanto entrávamos no
carro e saiu em disparada.
O shopping, com suas luzes brilhantes, vitrinas decoradas com
fantasias e sonhos, nos aguardava. Andando pelos corredores,
eu observava outras tantas famílias como a minha: um pai, uma
mãe e filhos. Parecíamos ter saído da mesma fôrma, todos
aparentando uma mesma felicidade que eu me perguntava:
existe?
Papai nos deixou à vontade. Entrávamos e saíamos das lojas.
Eu não comprava nada. Admirava tudo, passava a mão, mas não
me sentia tentada. Já Aline...
– O que será que deu em papai? Ele nunca foi assim – disse
ela baixinho no meu ouvido, enquanto pegava uma blusa linda e
cara para experimentar.
– Acho que foi a surra de ontem à noite que eu levei – falei
séria, tendo certeza de que era isso.
– Se for, vou ficar esperando pela próxima – disse ela, toda
feliz.
– Vou torcer para que seja em você – retruquei, saindo de
perto dela.
Assim foi a tarde. Aline comprou a blusa que queria e
aproveitou e levou uma sandália, uma bolsa, uma saia, uma calça
e lingeries. Mamãe comprou uma bolsa, papai não comprou nada
e eu idem. Só sentia minha barriga roncar de fome. Finalmente
ele decidiu que era hora de comermos. E que comeríamos em
uma churrascaria que ficava na estrada da saída da cidade.
Fomos para lá.
A churrascaria era a melhor da cidade. Um ambiente agradável
e sofisticado para eles; para mim, lúgubre e enfadonho. Antes de
começarmos a comer, resolvi ir ao banheiro. Na verdade, era uma
desculpa, precisava telefonar.
– Eu vou com você – falou Aline. – Também estou precisando.
– De novo? Você foi no banheiro do shopping – cutuquei, na
esperança de que ela desistisse.
– Mas vou de novo, acho que vou menstruar – respondeu,
pegando a bolsa e se levantando.
Levantei-me e a segui. Ao lado do banheiro havia um telefone.
Entramos no banheiro, ela insistiu para que eu fosse primeiro.
Disse para ela que esperaria, que ela podia usar. Ela entrou no
reservado e eu aproveitei para sair e ir ao telefone. Disquei o
número rapidamente. Torcia para que atendesse logo. Enquanto
isso observava meus pais na mesa nos aguardando. Atenderam.
– Por que demorou?...Não importa! Vai ser hoje... estou
decidida. Vou precisar da sua ajuda depois, do seu carinho, do
seu amor... diga que me ama... vamos, diga, eu preciso ouvir
isso, senão não vou ter coragem... certo, amanhã você vai ficar
sabendo. Te amo... tchau.
Desliguei no exato momento em que Aline saía do banheiro.
– Você estava no telefone? – perguntou ela.
– Não, é que você demorou tanto que perdi a vontade de usar
o banheiro – respondi, dando as costas sem me preocupar se a
resposta tinha sido convincente ou não.
Voltamos para a mesa onde os dois comiam, de forma
comportada, um prato de folhas verdes. Eu odiava verduras,
gostava mesmo de massas, doces e carne. Fiz sinal para o
garçom e pedi carne, todas, as mais suculentas...
Uma hora depois estávamos os quatro à beira da explosão.
Empanturrados, comemos mais do que a boa educação
mandava.
Na volta para casa, a sensação era de que carregávamos o
mundo em nossos estômagos. Quem disse isso foi mamãe; e era
a pura verdade. Entre um arroto e outro, Aline se lamentava e
jurava que no dia seguinte iria procurar uma academia.
– E nós ainda temos a minha musse de chocolate – lembrei a
ela.
– Não ponho mais nada na boca hoje, acho que nem amanhã,
nem depois...
E eu pensei: “Fodeu”.
Chegamos em casa e a tarde anunciava seu fim. Aline foi para
o seu quarto. Papai e mamãe foram para a sala de tevê assistir
àqueles programas horrorosos de domingo. Eu fui para o quintal
brincar com Fred. Ele era um bom cachorro. Se ele pudesse me
entender, acho que lhe agradeceria por ter passado a noite
comigo. Podia dizer qualquer coisa que ele me olhava sempre
com aquela cara parva, de quem não faz a mínima ideia das
coisas.
De repente escureceu. Eu estava deitada na espreguiçadeira
ao lado da piscina. Vi papai acendendo as luzes de fora. Era hora
de me recolher e pôr meu plano em ação. Um plano louco que
podia ou não dar certo, mas que precisava fazer para ver se
conseguia ter um pouco mais de paz na vida.
Entrei, passei pela sala de tevê, mamãe deitou-se no colo de
papai que acabava de se sentar no sofá.
– Venha sentar-se aqui com a gente, Laura – falou ela, com a
voz de quem acabara de acordar de um cochilo.
– Vou chamar Aline, daqui a pouco eu desço.
Subi as escadas e fui direto para o quarto dela. Bati na porta e
chamei o nome dela. Ela pediu que eu entrasse. Estava deitada,
ouvindo música.
– O que você quer?
– Te chamar para comer a musse.
– Estou tão cheia.
– Mas é só um pouco. Você não vai me fazer esta desfeita.
Ela pulou da cama e me encarou.
– O que deu em você? Odeia mexer com comida, por que fez
aquela musse?
Ergui os ombros tentando ser o mais natural possível.
– Me deu vontade.
Ela sorriu sentindo pena de mim. Pude perceber isso pelo seu
olhar.
– Está bem, vamos lá, mas é só um pouquinho. Acho que
engordei uns dez quilos hoje – falou, segurando minha mão e
saindo do quarto.

8.

Estávamos sentados diante da tevê, cada um com um prato de


sobremesa cheio de musse. Comíamos sem conversar. Para uma
família que se esforçava em ser normal, estávamos indo até que
bem demais.
– Está uma delícia, Laura. Onde você aprendeu? – perguntou
mamãe, colocando o prato na mesa de centro.
– Deve ser num desses programas de culinária que tem na
tevê – respondeu Aline, com a boca cheia.
– Tenho que admitir, você é muito boa com essas coisas de
doces, minha querida – falou papai, também depositando o prato
dele sobre a mesa de centro. – Acho que vou abrir uma
doceria pra você, o que acha?
– Adoraria – respondi, satisfeita ao ver que todos gostaram do
meu preparo. – Sabem que eu gostaria de arrumar um emprego?
– todos me olharam. Tratei logo de explicar: – Estou cansada de
ficar sem fazer nada. Acho que preciso de uma ocupação.
– Você está louca – retrucou Aline. – Já não basta estudar? A
não ser que você esteja pensando em parar de estudar.
– Isso nunca – bradou papai. – Filha minha só para de estudar
depois de se formar na faculdade.
– Não estou pensando em parar de estudar. É que é maçante
ficar só nos livros, todos os dias ali, lendo e escrevendo...
– Mas você não gosta de escrever? – cortou mamãe. –
Sempre achei que você seria uma escritora.
– Não tenho capacidade para tal.
Levantei-me e tirei do bolso as balas que estavam comigo o
dia todo. Peguei uma azul e entreguei para mamãe, a outra para
Aline e a branca para papai. Os três ficaram me olhando.
– O que é isso? – perguntou papai.
– Balas de gengibre com maracujá – respondi, voltando para o
meu lugar.
– Odeio gengibre – reclamou Aline. – Não vou querer – jogou
a bala sobre a mesa de centro.
– Pois eu adoro balas de gengibre – falou papai. – Onde você
arrumou?
– Na festa de ontem – respondi.
– Deve ser boa – completou mamãe. – Não faça essa desfeita
para a sua irmã, Aline, pegue a bala e chupe.
Papai olhou para as balas, ele era muito esperto e
desconfiado.
– Por que as balas delas estão embrulhadas em papel azul e a
minha em papel branco?
Fiquei sem saber o que dizer. Não esperava um tipo de
pergunta assim. Mamãe intercedeu:
– Se quiser trocar, pega a minha.
Quase gritei e disse que não, tive que me controlar. A coisa
parecia ter saído do meu controle.
– Não – disse papai friamente, desembrulhando a bala que
estava com ele. – A cor do papel não quer dizer nada, estava
apenas enchendo o saco dela. Virou-se para mim e perguntou: –
Falando nisso, e a sua bala? Nós vamos chupar e você não?
– Estou fazendo regime. E só tem três balas.
– Pode ficar com a minha – falou Aline.
– Não senhora – resmungou papai, olhando para ela. – A
senhora vai chupar a bala sim, larga de ser fresca – depois virou
para mim e estendeu a mão me dando a bala dele. – Toma,
chupa a minha.
Senti meu coração disparar. A coisa parecia que ia melar e eu
me ferrar.
– Querido, você gosta tanto dessa bala... toma Laura, fique
com a minha – cortou mamãe com toda delicadeza do mundo.
– Puta que o pariu! – berrou papai. – Vocês fazem confusão
com tudo! Chupem a bala de vocês, Laura chupa a minha.
Vamos, pegue! – exigiu ele.
Olhei para mamãe, para Aline, minha mão tremia. Ia
estendendo a mão, quando uma ideia salvadora de minha irmã
acabou resolvendo a situação. Ela segurou a mão estendida de
papai, olhou com jeito carinhoso e disse:
– Fique com a sua bala, papai, eu posso dividir a minha com
ela – e pegou a colher em forma de pá que usáramos para pegar
a musse, desembrulhou a bala, colocou-a sobre a mesa, calculou
mais ou menos a metade e quebrou-a. Não quebrou bem no meio
e ela pegou a parte maior, jogou na boca e me passou a outra.
Mamãe tirou a bala do papel, olhou para ela que não tinha o
formato convencional de uma bala comum: era comprida como se
fosse um pequeno tubo.
– Diferente essa bala. O que são essas coisas pretas dentro?
– Larga de ser chata, Lívia, chupa a bala e pronto! Parece até
que ela está envenenada – falou papai, bravo, jogando a bala na
boca e degustando.
– É caroço de maracujá. Está uma delícia, mamãe – murmurei,
sentindo um alívio e vendo que a minha missão estava se
completando, enquanto eu pegava os papéis das balas para
depois jogar na privada e dar descarga.

9.

Sonhava com um rio cheio de peixes, barcos com redes


trazendo-os para a terra. Eu caminhava descalça pisando na
areia quente do seu leito. Havia uma cabana logo à frente. Tinha
sede, mas não tinha coragem de beber da água daquele rio tão
caudaloso. Se o fizesse, podia pegar um peixe com a mão. Tinha
nojo de peixe. Preferiria morrer de sede a abaixar-me diante
daquela água. Fui até a cabana, bati na porta. Havia gente lá
dentro, tinha certeza, mas eles não abriam para mim. O
desespero foi aumentando. Por que eles não abriam para mim?
Eu batia, esmurrava e nada de eles abrirem. Pelo amor de Deus,
abram esta porta, eu preciso de água...
Acordei assustada, suando, um calor infernal dentro do quarto.
Ouvi uma batida na porta. Eu a havia trancado, assim como a
janela. Foi um custo dormir ali, havia jurado que nunca mais
dormiria naquele quarto, mas nem sempre tudo que é juramento
pode ser cumprido...
Outra batida forte na porta. Só podia ser ele. O que será que
papai queria? O que fiz de errado dessa vez? Pulei da cama, fui
até a porta, pensei em abrir, mas antes perguntei quem era. Não
houve resposta e sim uma nova batida, fraca, como se alguém
que estivesse do outro lado carecesse de forças. Tive certeza de
que não era ele. Abri a porta. Fiquei horrorizada com o que vi.
– Água, por favor!
Era Aline, boca espumando, pernas capengando, olhos
vermelhos soltando sangue.
– O que aconteceu? – perguntei, dando-me conta do que se
passava.
Ela caiu nos meus braços. Estava toda suja de excremento.
Cheirava mal. Não sabia o que fazer com ela. Deixei-a estendida
no chão do meu quarto. Corri para o quarto dos meus pais. A
porta estava entreaberta, a luz fraca do abajur dava um ar
lúgubre ao lugar. Entrei e vi mamãe ajoelhada rezando na beira
da cama. Havia um cheiro de vômito no ar.
– Mamãe – disse, me aproximando dela. Quando ela se virou,
pude ver seu rosto, uma gosma branca saindo de sua boca, o
sangue vertendo pelo nariz e pelos olhos.
– O que você quer aqui? – virei-me e vi papai atrás de mim,
fechando a porta com a chave. Trêmula, ainda consegui dizer: –
Mamãe não está bem.
– E quem está? – murmurou ele com a voz falha, acendendo a
luz.
Quase desmaiei ao ver a feição dele com os olhos
esbugalhados, o corpo todo molhado de suor e jeito ameaçador.
– Vou ligar para o hospital – falei, dando a volta pela cama e
indo até o telefone. Por mim teria saído daquele quarto, mas ele
bloqueava a porta, parecendo um animal ferido. Quando peguei o
telefone, vi que ele estava sem linha. Ergui o fone e vi o fio
quebrado. – Você fez isso, papai?
– Ninguém vai ligar. Vamos todos morrer – disse ele,
vomitando sobre o carpete.
Não sei onde encontrei forças; enquanto ele se curvava para
vomitar, dei-lhe um empurrão, abri a porta virando a chave e
passei correndo, ganhando o corredor. Entrei no quarto de Aline
que ficava logo ao lado. Peguei o telefone e o fio estava cortado.
O que estava acontecendo? Não era isso que eu planejara.
Alguma coisa dera errada. O quê?
Saí do quarto de Aline e fui para o meu que ficava no fundo do
corredor, logo depois do quarto de hóspede. Abri a porta olhando
para o chão para ver como estava Aline. Ela não estava. Levantei
a cabeça e vi papai arrancando o fio da minha extensão. Ele veio
em minha direção, mesmo caminhando com dificuldade. Fechei a
porta e saí correndo. Havia um banheiro no corredor. A porta
estava aberta. Vi Aline segurando-se na pia, tentando chegar ao
vaso sanitário. Ia ajudá-la, mas vi papai vindo em minha direção.
Precisava buscar ajuda. Aquilo não estava programado. Desci as
escadas correndo, fui ao telefone da sala, depois ao da copa, da
cozinha... todos eles estavam fora de serviço com os fios
devidamente arrancados. Peguei a chave da porta para abri-la.
Estava desesperada. Ele vinha em minha direção. Onde diabos
ele arrumava forças!? A chave parecia não querer entrar na
fechadura. Precisava abrir a porta, sair.
Finalmente consegui, exatamente quando papai estava para
me pegar. Passei por ela e a fechei. Ele demonstrou sinal de
fraqueza, não conseguiu forçar a porta. Com a chave na mão eu
a tranquei. Agora estava salva. Mas e mamãe? E Aline?
Abri o portão principal e fui para a rua. Deviam ser umas três
horas da manhã de uma madrugada quente e as ruas estavam
desertas. Corri até a esquina onde havia um orelhão. Estava tão
nervosa que só naquele momento me dei conta de que não sabia
o telefone de nenhum hospital. Pensei em ligar para a polícia,
mas o número não me ocorria. O único telefone que vinha à
minha cabeça naquele momento era o do tio Marcos. Liguei.
– Tio, sou eu. Vem pra cá, aconteceu uma desgraça...

10.

Parece que eles tinham combinado um encontro. Meu tio


chegou junto com a ambulância e a polícia. Fizeram tanto barulho
que, aos poucos, as casas vizinhas foram acendendo as luzes.
Era um espetáculo e tanto de se ver, com as luzes coloridas do
carro da polícia, da ambulância e meu tio gritando desesperado.
Eu não quis entrar na casa. A única coisa que fiz foi prender o
Fred. Depois saí e me sentei na guia. Não imaginava que a coisa
fosse ter toda aquela magnitude. Imaginei algo mais simples. Que
papai ia simplesmente morrer, cair duro, sem fazer tanto
escarcéu...
Um paramédico veio e me deu um cobertor para eu jogar sobre
o meu corpo. Pensei em dizer que não, que sentia calor, só então
me dei conta de que estava de pijama; um short curto e uma
blusinha de botões.
– Você está bem? – perguntou ele, sentando-se ao meu lado.
– A coisa parece que está feia lá dentro.
– Como eles estão? – indaguei com o olhar perdido, a cabeça
vazia e o estômago fundo.
– Veja você mesmo – respondeu ele, levantando-se e indo em
direção às macas que iam saindo.
Pensei em levantar e ir até lá, ver como eles estavam. Desisti e
resolvi ficar ali mesmo quietinha. A ambulância saiu em disparada
levando mamãe e Aline. Papai foi na outra, que chegou logo em
seguida.
Tio Marcos veio e me levantou. Olhou-me com um olhar grave
e não me perguntou nem disse nada. Colocou-me no seu carro e
fomos para o hospital. Quando chegamos, eles já haviam sido
atendidos. Sentamo-nos naqueles bancos frios de corredor e
aguardamos. Estava fora de mim, como se eu estivesse em uma
outra dimensão. Voltei a mim quando senti meu estômago revirar
e o que tinha dentro, pular para fora. Na hora uma enfermeira
chegou e chamou um médico. Colocaram-me em uma maca e me
levaram para uma sala. Colheram sangue, urina e tudo mais que
tinham direito. Depois saíram e me deixaram sozinha. Acabei
dormindo. Acordei com um médico me examinando. Custei para
entender o que estava acontecendo.
– Estou bem, doutor?
– Aparentemente sim. Vamos esperar o resultado dos exames.
– E a minha família? Minha mãe, minha irmã...
Ele não respondeu, ficou sério e apontou para a porta.
– Está vendo aquele homem? Ele quer falar com você –
levantei a cabeça pensando que fosse o tio Marcos, mas era um
homem muito mais velho que ele, de terno, gravata e uma
enorme barriga. – Se você disser que não está se sentindo bem,
eu mando ele embora.
– Quem é ele?
– Ele é da polícia, quer conversar com você.
Fiz cara de choro. Não podia imaginar que a polícia fosse
aparecer. Olhei para o homem na porta, ele parecia ansioso.
Bastava um gesto do médico para ele se aproximar.
– Eu não sei de nada. Eu não fiz nada.
– Calma – tranquilizou-me o médico. – Ele não vai fazer nada
com você. Só quer saber algumas coisas. Converse com ele, eu
vou ficar ali no corredor, qualquer coisa você grita, que eu coloco
ele pra correr, combinado?
Eu não respondi, apenas chorava. O médico notou que eu
estava bem e podia falar com o homem. Dessa forma, acenou
com a cabeça e ele se aproximou.
– Eu sou o delegado Lima, como você está? – indagou,
estendendo-me a mão fofa.
Segurei-me tentando conter o choro. Precisava me acalmar. Já
que a coisa tinha descambado, melhor mesmo era ser firme.
– Quero saber da minha mãe e da minha irmã – exclamei
antes que ele viesse com as perguntas.
– Elas estão bem. Os médicos estão cuidando delas. Só que a
única pessoa neste momento capaz de falar é você, e nós
precisamos saber o que aconteceu.
– Quem precisa?
– A polícia.
– Eu não sei direito o que aconteceu. Acordei de madrugada
com a minha irmã batendo na minha porta e...
Fui contando os detalhes do ocorrido. Contei sobre o domingo,
o passeio no shopping, o almoço na churrascaria, a musse de
chocolate... Só omiti a bala, é claro.
– Quem cortou os fios do telefone? – perguntou o delegado.
– Foi ele, papai.
– Por quê?
– Porque ele é louco. Ele queria nos matar – respondi em
prantos.
– Você está dizendo que foi ele quem fez tudo isso?
– Não sei, não sei! – berrei descontrolada a ponto do médico
chegar e pedir para que o delegado se retirasse.
Passei o dia no hospital. Só no fim da tarde é que recebi alta.
Recebi também a notícia da morte de papai, mamãe e Aline. Os
três morreram quase na mesma hora. Diagnóstico não
conclusivo: envenenamento. A imprensa abraçou o caso como se
fosse algo fantástico. Já à tarde, as emissoras do país inteiro
noticiavam o caso da família que morreu envenenada e só a filha
caçula conseguiu sobreviver.
Naquele momento, o único tio que estava comigo era o tio
Marcos. Os outros estavam cuidando dos assuntos do óbito e de
dar explicações para a polícia e a imprensa. Tio Marcos me
abraçava e me dava carinho, me consolando e tentando pôr
alguma luz na treva que se tornou a minha vida.
Literalmente eu sequei. Sequei todas as lágrimas que tinha nos
olhos. Eu pensava que com a morte de papai eu seria uma
menina livre e feliz, no entanto, a solidão se apossou de mim e,
de repente, descobri-me sozinha, sem ninguém, sem mamãe e
sem Aline.
No final da tarde a enfermeira me trouxe roupa, pediu para que
eu tomasse um banho; estava de alta. Saí do hospital e tio
Marcos me levou para a casa de vovó, que ficava do outro lado
da cidade. Naquela casa grande, moravam tio Marcos e ela, que
era a mãe de papai.
Eu podia classificar vovó como uma mulher séria, rígida, cheia
de preceitos e com uma visão arcaica do mundo. Literalmente um
saco de mulher! Ela nunca aprovou o casamento do filho dela
com mamãe. Achava o cúmulo ele se casar com uma mulher
viúva e com duas filhas. Por isso, nunca nos considerou como
netas, apesar de tanto eu como Aline a chamarmos de vovó e
sempre que possível irmos visitá-la com papai.
Esta era a única casa que tinha para ir. Mamãe não tinha
parentes, todos haviam morrido. Os dois irmãos de papai, além
de tio Marcos, moravam em outras cidades e só se viam em
ocasiões especiais, como natal e ano novo.
Tio Marcos parou o carro. Esperei que ele descesse comigo,
mas ele ficou parado, esperando que eu tomasse a iniciativa de
descer.
– Você não vai descer? – perguntei.
– Não. Vou passar uns dias no apartamento, lá no centro. Está
difícil aguentar a velha. Você fica aí até a gente decidir o seu
futuro.
– Mas eu e vovó aqui nessa casa, sozinhas? – indaguei,
achando aquilo o fim da picada.
– Só por alguns dias... uns dois ou três dias, no máximo. Nós
temos um pepino enorme nas mãos, menina, que tem que ser
resolvido. Tenho que ajudar a tratar do velório e do enterro de
uma família quase inteira. Isso não é nada fácil...
Concordei, aquilo era no mínimo inusitado. Se já era difícil
enterrar um, imagine três. Ia saindo quando ele completou: –
Pega suas coisas no banco de trás. Não deu pra pegar tudo, mas
trouxe umas mudas de roupa. Você não pode ficar só com essa
roupa no corpo.
– Você trouxe o meu vestido preto, um que estava jogado no
armário?
– Um todo amassado? Sim, está aí.
– Ótimo, vou precisar dele para amanhã.
Peguei minhas coisas, olhei aquele casarão, maior do que a
minha casa, abri o portão e entrei. A empregada me esperava na
porta. Entrei como se estivesse entrando num outro universo,
num outro tipo de presídio, diferente da minha casa; mas um
presídio.
Vovó estava na sala, sentada, fingindo que tricotava como uma
boa velha. Mal me olhou. Notei que não estava feliz em me ver
ali. Seus olhos me diziam algo que naquele momento não pude
entender. Pensei que ela fosse me abraçar, passar a mão na
minha cabeça, chorar, dizer que lamentava tudo aquilo. No
entanto, ela apenas me olhou, acertou os óculos no rosto e falou:
– Você deve estar cansada, tome um banho e troque de roupa.
Fiquei com vontade de dizer a ela que já havia feito tudo isso lá
no hospital. Que precisava de colo, de alguém que pudesse
amparar-me no ombro ou, talvez, quem sabe, dizer que sentia
muito.
Que nada, ela não era disso! Nunca fora. Não me lembro de
vovó ser carinhosa comigo, ou com Aline, muito menos com
papai. Olhei para a empregada que me estendia a mão querendo
que eu a acompanhasse. Foi isso que fiz.
A casa era térrea e cheia de cômodos. Entramos no corredor
escuro que nos levava aos quartos. No fim do corredor estava o
quarto reservado de última hora para mim. A empregada abriu a
porta e entrou. Eu entrei atrás. Ela ficou me olhando, esperando
que eu esboçasse alguma reação.
– Se quiser chorar... – disse ela, demonstrando piedade. –
Chorar faz bem, ajuda a diminuir a dor.
Olhei para ela com cara de gratidão por aquelas palavras.
Então falei me sentando na beirada da cama:
– Acho que já chorei tudo que tinha que chorar. Não quero
mais chorar... Nunca mais.
Ela ficou sem saber o que dizer. Mulher simples, não fazia
muito uso das palavras.
– Se precisar, é só me chamar – disse, saindo e fechando a
porta.
Abri a mochila e procurei pelo meu diário ou o caderno de
anotações. Não estavam. Praguejei. Estava com vontade de
escrever. Acho que naquele momento conseguiria escrever algo
belo. Nem caneta eu tinha. Joguei-me na cama e praguejei.
Fiquei ali deitada até o sol se pôr.
A empregada veio me chamar para o jantar. Levantei-me e fui.
Estava com fome. A comida do hospital era horrível. O corredor
estava todo escuro, sorte ele ser limpo de móveis e plano, sem
nenhum declive.
– Vovó continua com mania de economizar energia?
– Continua. Depois das dez não fica uma luz acesa nesta casa
– respondeu a empregada, com ar de resignação.
– Mas ela é tão rica.
– Pois é – murmurou ela, pondo um ponto final na conversa.
Chegamos à copa. A mesa estava posta. Vovó estava sentada
com o prato a sua frente. Aproximei-me e beijei-lhe o rosto. Ela
esboçou um sorriso forçado, de quem não tinha mesmo o
costume de sorrir.
– Sente-se, minha filha. Você deve estar com fome.
Notei que a mesa estava posta só para nós duas.
– Os tios não vêm?
– Não, estão preparando tudo para os enterros. Sente-se e
coma, antes que a comida esfrie.
Obedeci. Vovó era assim mesmo, um general de plantão, cujas
ordens deviam ser cumpridas e nunca discutidas.
Ficamos em silêncio por um tempo. Parecia que estudávamos
uma a outra para saber, com certeza, até onde podíamos chegar
com as nossas indagações. Foi ela quem quebrou o silêncio; e de
forma arrasadora.
– Menina, me responda, pelo amor de Deus, o que você fez
com a sua família?
Eu estava segurando o talher quando ela detonou a pergunta.
Fiquei com as mãos bobas e deixei a faca e o garfo caírem sobre
o prato. Ela arregalou os olhos ao ouvir o barulho.
– Por que a senhora está dizendo isso?
– Porque eu sei. Você nunca me enganou, menina. Você tem o
demônio aí dentro do seu coração.
– Não diga isso, por favor! – exclamei, como se o mundo
estivesse desabando em minha cabeça.
– Digo. E digo mais, o que você fez com a sua família não tem
perdão. Você vai pagar por tudo.
Levantei-me bruscamente jogando a cadeira no chão. A
empregada, que assistia à cena, não disse nada. Veio atrás de
mim que corri para o jardim.
– Não fique assim, Laura, ela está gagá, fala coisas da boca
pra fora.
– Ela acha que eu matei eles. Como pode ela pensar assim?
Ela é minha avó.
– Ela está chocada com tudo o que aconteceu. Ela vai pensar
melhor e depois vai te pedir desculpas – falou, passando a mão
na minha cabeça. Ia dizer mais coisas, mas vovó berrou seu
nome. Sem pensar duas vezes, saiu correndo para atendê-la.
Fiquei andando pelo jardim no escuro da noite. Eu havia
chupado a bala, que diabo estava fazendo viva? Se fosse para
todos morrerem, por que eu não morri também? Que merda! Que
inferno!
Passei pela janela da sala e vi a empregada colocando a
máscara de oxigênio no rosto de vovó. Quando ela ficava
nervosa, faltava-lhe ar, por isso havia na casa um tanque
pequeno de oxigênio e uma máscara.
Em silêncio, ouvindo apenas o barulho do gás que ela inalava,
entrei na sala, passei por ela e fui para o meu quarto. Peguei o
telefone, morrendo de medo que alguém estivesse na extensão.
Mesmo assim resolvi arriscar. Disquei o número.
– Oi, sou eu... quero falar com você... eu sei que não é o
momento, mas preciso que você me esclareça umas coisas... me
escuta, seu filho da puta! Me escuta antes que eu dê com a
língua nos dentes... Que diabo de balas eram aquelas?... Eu não
disse que queria minha mãe e minha irmã mortas, só o meu pai!
Você disse que só a bala branca tinha o veneno... não interessa,
seu desgraçado! Quero falar com você pessoalmente...amanhã,
sem falta. Eu sei que amanhã é o enterro, mas preciso falar com
você. Arrume um jeito... que se foda... dane-se – bati o telefone,
ele quase espatifou na base. Joguei-me na cama e fechei os
olhos, era hora de esperar o tempo passar.
11.

O dia parecia que chorava. Uma chuva fina foi trazida por um
vento gelado. Logo cedo tio Marcos apareceu para levar a mim e
a vovó ao enterro. No carro ela foi atrás e eu na frente, ao lado
dele. De vez em quando eu o olhava como se pedindo,
implorando por uma palavra. Ele evitava me olhar. No caminho,
íamos sendo seguidos pela imprensa. A sorte era eu ser menor
de idade, assim eles não podiam se aproximar.
Chegamos ao velório. Estava vazio. Alguns amigos de Aline,
alguns professores, um grupo de representantes da firma de
papai e só. De resto, uma dúzia de parentes ressurgidos das
cinzas. Pude ver ali como a minha família era distante do mundo,
das pessoas que nos rodeavam, da coletividade e de tudo mais
que poderíamos chamar de sociedade.
No começo eu não tive coragem de me aproximar dos caixões.
Vi que todos passavam por lá, ameaçavam um choro e depois se
afastavam. Criei coragem e fui. Não havia como fugir daquela
triste realidade. O primeiro caixão de que me aproximei foi o de
Aline. Parecia que dormia e eu fiquei imaginando se a morte não
era, na verdade, um sono eterno de onde jamais acordaríamos.
Passei a mão de leve no rosto dela. Um rosto frio e pálido. Não
podia negar, a morte é um feito triste, enormemente triste. Dei as
costas e fui para o outro caixão; o de mamãe. Ela também dormia
um sono de anjo. Parecia descansar. Acho que agora, de fato, ela
estava dormindo. Ela nunca dormiu direito, sempre reclamava
das noites maldormidas, das dores que a incomodavam durante a
noite, da vontade de descansar... Pronto, agora ela estava
descansando.
O de papai eu não fui ver, não queria me despedir dele. Na
minha cabeça perturbada, achei que, de repente, ele podia se
levantar e cometer seu último ato: cuspir na minha cara, que foi o
que em vida faltou ele fazer.
Vi tio Marcos sentado num banco sozinho. Parecia cansado.
Usava uns óculos escuros para esconder as olheiras. Ele era
muito vaidoso. Fui até ele e sentei-me ao seu lado.
– Preciso falar com você – falei, querendo me encostar nele.
– Agora é impossível, não está vendo o que está
acontecendo? – respondeu em tom ríspido.
– Não só sei, como estou sentindo. Estou me sentindo muito
só – falei, com a voz embargada.
Ele tirou os óculos, olhou-me com seus olhos escuros e
passou a mão na minha cabeça, para depois me abraçar.
– Tudo vai se resolver, pode ficar tranquila. Eu vou te ajudar no
que precisar. Você não está sozinha, você sabe disso.
Foi bom ter ouvido aquilo, deixou-me mais calma saber que
não ficaria sozinha. Levantei-me e saí, fui andar lá fora no meio
da garoa. O cemitério ficava no alto de uma colina. Dali se podia
ver um lago cercado pelos jazigos simples, bem ao estilo
americano. Ia andando sem me preocupar com o vento gelado e
com a garoa que molhava meu cabelo. Parecia que eu não
estava em mim.
– Você sabia que agora você é uma garota rica? – assustada,
virei-me de lado e dei de cara com o delegado. – Desculpa, não
queria te assustar.
– O que o senhor disse?
– Que você agora é uma moça rica, vai herdar tudo o que a
sua família deixou.
– O senhor está pensando em dinheiro numa hora dessa?
– Eu não – disse ele abrindo o guarda-chuva. – Mas tem gente
que pensa. Eu mandei interditar a churrascaria onde vocês
comeram no domingo.
– E?
– Não acho que foi lá que vocês comeram algo que estivesse
envenenado. Muita gente comeu lá no domingo e ninguém
reclamou da comida, pelo menos ninguém deu entrada no
hospital com os mesmos sintomas da sua família. Também
mandei analisar a musse que você fez, mas deu negativo, ou
seja, estava ótima para o consumo. Dizem que a sua musse é
uma delícia, você precisa me dar a receita.
– Eu... – perdi a voz. Ele me olhou frustrado. Tudo o que ele
falara fora apenas para forçar uma reação minha. Eu sabia disso,
por isso o meu mecanismo de autodefesa disparou e travou a
minha boca.
– Diga, Laura, eu quero te ajudar, será que você não entende?
– Eu estou com medo. Todo mundo está achando que eu matei
meus pais e minha irmã. Vocês vão me prender?
Ele deu uma gargalhada e passou a mão no meu ombro,
trazendo-me para debaixo do guarda-chuva.
– Imagina! Você é uma criança, só tem quinze anos. Prisão é
para marmanjos. Além do mais, eu não acredito que você tenha
cometido tal barbaridade. Você se dava bem com seus pais, não
se dava?
Pensei no que dizer. Podia mentir e dizer que sim, mas ele não
teria dificuldade em descobrir a verdade.
– Eu não me dava bem com meu pai.
– Isso é comum na sua idade. Eu tenho uma filha que, na sua
idade, também não se dava comigo. Ela cresceu, virou mulher e
hoje somos amigos.
– Mas o senhor já espancou a sua filha, de arrancar sangue?
– Ele fez isso com você? – balancei a cabeça afirmativamente.
– Isso é meio duro... Não, nunca fiz isso com a minha filha. Mas
o que você aprontou?
– Fugi de casa. Queria visitar o cemitério onde o Renato Russo
foi cremado.
– Quem é Renato Russo, seu namorado?... Quer dizer, seu
ex?...
– Não acredito que você nunca tenha ouvido falar do Renato
Russo, o vocalista do Legião Urbana.
– Ah, sei! Aquela banda de rock...
– Isso, eu sou apaixonada por ele. Queria levar flores para ele.
– Mas ele não era gay?
– Não sei se ele era, nem me importa saber – virei o rosto para
ele e o encarei. – E o que o senhor tem contra os gays?
Notei que ele ficou desconcertado. Acho que ele estava
acostumado a lidar com bandidos, gente da pesada, agora
tentava arrancar alguma coisa de mim, sabendo que não poderia
me tocar, nem forçar a situação.
– Eu? Nada. Imagina, quem sou eu para achar alguma coisa.
Mas me conta essa história.
Então fui contando tudo sobre as malvadezas que papai
praticava comigo. Omiti certas coisas ou por vergonha ou mesmo
para me preservar. Naquele momento eu tinha que me trancar
para sobreviver aos leões.
Ficamos conversando por um bom tempo. De vez em quando
um ou outro tio aparecia para me ver, dava as costas e voltava
para o velório. Nem vi o tempo passar. Aquele homem se
mostrava atencioso, mas eu não me deixava enganar. Era tudo
falso. Ele queria ganhar a minha confiança para que eu me
abrisse com ele. A conversa acabou quando vi o cortejo fúnebre
saindo da capela e indo para o jazigo da família. Fiquei com
vontade de correr até lá, abraçar os caixões, não deixar que
jogassem terra sobre eles. No entanto, fiquei quieta, sentada no
parapeito que separava a capela do cemitério. Dali eu podia ver
as pessoas acompanhando o enterro.
Adeus mamãe!
Adeus Aline!
Em breve nos encontraremos...

12.

Os dias que se seguiram foram de suplícios e confusões.


Sentia-me como uma laranja sendo espremida para dar suco. Já
não estava aguentando mais, precisava sair da casa de vovó. Ela
continuava me acusando, quase não me dirigia a palavra. Sentia-
me como uma intrusa. Mas ir para onde?
Então resolvi ficar e segurar o rojão. A polícia, por mais astuta
que fosse, não conseguia juntar nenhuma prova que me
incriminasse. Aquele era o típico crime perfeito. Melhor mesmo
era eu manter o rumo e ficar, como dizem os mais antigos,
amoitada.
Mas algo aconteceu que acabou me obrigando a sair da toca.
Uma noite acordei com um barulho de vozes na sala. Olhei para o
relógio e passava um pouco das dez. Vovó tinha o hábito de
dormir cedo. A empregada, naquele dia, não estava em casa; era
dia da sua folga. Levantei-me e fui lentamente andando pelo
corredor escuro. Temia ser vista, por isso não coloquei o rosto na
sala para ver quem conversava. Nem precisava, eu conhecia a
voz da pessoa que discutia com vovó.
– Você está louca! Literalmente louca!
– Louca, eu?! Posso ser tudo, menos louca. Tenho certeza de
que você e aquela menina tramaram a morte do meu filho e da
família dele.
– E se eu tiver feito isso, qual o problema? O seu filho não
valia nada, assim como você, sua velha caquética.
– Eu vou entregar você para a polícia. Você e aquela menina
demoníaca. Quero que vocês dois apodreçam na cadeia. Pensa
que eu não sei do caso que você tem com a menina?
– Sabe, e daí? E você não vai entregar ninguém à polícia –
falou ele, com um ar sarcástico. – Você não teria coragem. Aliás,
quem acreditaria numa mulher senil, insana, à beira da morte?
Não tinha coragem de olhar. Minhas pernas ficaram bambas.
Fui escorregando pela parede até ficar sentada, prostrada e
tremendo dos pés à cabeça.
– Você me respeita...
– Respeitar por quê? O que você fez por mim que valha um
pingo do meu respeito?
Ouvi vovó ofegar, notei que ela começava a sentir falta de ar.
Era sempre assim, ela não podia ficar nervosa.
– Me passa a máscara de ar. Estou precisando de ar.
Estiquei a cabeça e vi que ele se dirigia até o botijão de
oxigênio.
– Este aqui? – perguntou ele, cinicamente.
– Traga-o aqui – exigiu ela, com a voz rouca e falha.
– De jeito nenhum – falou ele.
Estiquei a cabeça e vi que ele levava a máscara e o botijão
para longe dela.
– O que você vai fazer? – gritou vovó, com a voz trêmula.
– Nada, sua velha caduca, só quero ver por quanto tempo você
aguenta ficar sem ar.
– Preciso de ar. Eu vou pegar a máscara – disse ela, tentando
se levantar. Ele aproximou-se dela e a empurrou, fazendo com
que voltasse para o seu lugar. – V...vo...você vai... me...
ma...matar.
– É esta a intenção – falou ele.
Silêncio. Olhei de novo e vi vovó sentada, quase desacordada.
Ele estava ajoelhado na frente dela, impedindo-a de se mover.
Ficaram assim por alguns minutos. Eu queria fazer alguma coisa,
mas o quê? Coloquei a cabeça entre as pernas e fiquei
pensando. Estava ali sentada no chão, encostada na parede, com
as pernas bobas e o coração disparado.
Ouvi barulho, ajeitei-me e estiquei a cabeça. Ele mexia com
vovó que estava desacordada. Levantou-se, pegou-a no colo e
veio em direção ao corredor. Antes que ele me visse, corri para o
meu quarto. Tranquei a porta. Meu coração queria sair pela boca.
Que diabo ele estava fazendo? Não podia acreditar que ele fosse
um assassino tão frio e calculista.
Minutos depois ouvi passos no corredor. Era ele que vinha em
direção ao meu quarto. A porta estava fechada, mas eu estava
com tanto medo, que corri para o banheiro. Ouvi o barulho da
maçaneta sendo forçada, pensei que ele fosse bater na porta. No
entanto, ele apenas falou calmamente:
– Laura, sei que você está acordada. Não precisa abrir a porta,
já estou de saída. Amanhã sem falta nós conversaremos. Não me
procure... Eu te procuro.
Ouvi os passos dele pelo corredor. Andava tranquilamente
como se nada tivesse acontecido. Só então saí do banheiro. Não
sei por quê, mas fiquei com a impressão de que a próxima seria
eu.
Arrumei as minhas coisas lentamente, tentando imaginar para
onde ir, onde me esconder de toda aquela loucura. Decidi que
tinha que ser um lugar longe. Peguei minha mochila, respirei
fundo e abri a porta; precisava ir até o quarto de vovó. Andei pelo
corredor com a impressão de que ele ainda estava por ali. Isso
fazia com que eu caminhasse rápido e com medo. Abri a porta do
quarto de vovó. Entrei e acendi a luz. Ela estava deitada, olhos
fechados como se estivesse dormindo. Aproximei-me do ouvido
dela.
– Vovó?
Ela não respondeu. Para o meu espanto, ela abriu os olhos,
arreganhou a boca deixando sair uma gosma branca e segurou
minha mão. Dei um grito e num reflexo saltei para trás, caindo de
costas. Levantei-me. Minhas pernas tremiam. Peguei a mão dela
jogada fora da cama e coloquei-a de volta sobre o seu peito. Os
olhos dela estavam esbugalhados, tratei de fechá-los. Só na boca
que eu não mexi.
Precisava de dinheiro. Papai vivia dizendo que ela guardava
uma verdadeira fortuna em casa, mais precisamente no quarto
dela. Não podia fazer bagunça, nem ficar tocando nas coisas.
Aquilo podia me comprometer. Fui até a cômoda repleta de porta-
retratos. Olhei um por um. Tinha foto de todos os filhos, noras e
netos. Procurei pela minha foto, não encontrei. Acho que ela
estava com muita raiva de mim, por isso tirara a foto dali. Do lado
havia um porta-joias em forma de baú. Abri. Lá dentro havia
anéis, pulseiras e colares. Não sabia se eram autênticos, mas
deveriam valer alguma coisa. Se não achasse dinheiro... Nem
deu tempo de concluir o pensamento, abri a primeira gaveta e vi
um saco tipo bornal. Meti a mão lá dentro e tirei um pacote de
dinheiro. Nunca tinha visto tanto dinheiro assim junto,
devidamente arrumado, em notas graúdas. Eu não precisava de
tudo aquilo. Peguei apenas algumas notas, enfiei no bolso da
calça e guardei o resto. Olhei para ver se tudo estava no seu
devido lugar, fui ao meu quarto, peguei minhas coisas e... rua.

PALAVRAS SÃO ERROS E OS ERROS SÃO SEUS

A médica está sentada no beiral que dá para o jardim.


Come um pedaço de chocolate. A madrugada parece não querer
dar lugar ao dia. Ela se sente angustiada. Aquela noite foi por
demais agitada. A presença de todo aquele pessoal, inclusive a
do delegado, tirara o plantão dela do normal. Aquele homem lhe
dava nos nervos. Não gostava dele, apesar de sequer o conhecer
direito. Acha que o fato de ele ser da polícia contribuía para isso.
Não vê a hora de dar o seu horário, ir embora e nunca mais ver a
cara dele.
– Descansando um pouco? – fala o delegado, aproximando-se
e sentando-se ao lado dela, que tira os pés para lhe ceder lugar.
– Um pouco – responde ela sem vontade de conversar e não
deixando de demonstrar surpresa com a presença dele ali. – O
que faz aqui, doutor? Cansou de ficar na porta da UTI?
Ele ajeita a camisa, que parece não querer ficar dentro da
calça. Faz isso sem a menor cerimônia.
– Resolvi tomar um pouco de ar – mentiu ele, estando ali com
o claro propósito de ficar ao lado dela. E continua: – As noites no
interior são sempre mais frescas.
– Acho que são mais demoradas – diz ela, enquanto ele a
encara demonstrando não entender o que ela quis dizer. – É que
o tempo parece passar mais devagar em cidades pequenas.
Quer? – pergunta mostrando o pedaço de chocolate que tem na
mão.
– Não, obrigado, não tenho um corpo como o seu – responde
ele, olhando-a de cima a baixo sobre o uniforme azul que ela usa.
– Não me olhe assim, delegado, não sou mais nenhuma
mocinha. Este corpo já não é mais tão perfeito como sua libido
gostaria que fosse.
Os dois dão risada. Aos poucos ela percebe que o delegado
não é uma pessoa tão ruim, que o estigma de ser o homem da lei
corrupto e amigo de bandido, não fazia muito jus àquele homem
bonachão de falar pausado que demonstrava uma enorme
paciência.
Ele retira do bolso um maço de cigarros.
– Posso?
– À vontade, o pulmão é seu.
Ele acende o cigarro. Parece buscar assunto. Gostou da
médica, do jeito dela, da boca, do seu jeito de trançar as mãos
quando fala. Há muito ele não encontrava uma mulher que lhe
chamasse a atenção como acontecia agora.
– Casada?
– Fui – ele a encara; ela explica: – Ele era médico, fugiu com
uma paciente daqui deste hospital. Foi embora trabalhar no
hospital lá na capital.
– E depois disso?
– Sofri igual a uma condenada, depois vi que existe vida após
um pé na bunda e segui meu caminho...
– Não pensa em ir embora, morar numa cidade maior,
trabalhar num hospital mais equipado, ganhar mais?
– Pra quê? Estou bem aqui, doutor delegado, não me falta
nada.
Ele sorri. Começa a perceber que há um ser humano por
detrás daquele corpo magro vestido de azul.
– E o senhor, é casado?
– Por favor, você me faz sentir um ancião me chamando de
senhor.
– Não é assim que te chamam na delegacia?
– Mas aqui não estamos na delegacia.
– Tudo bem, mas o senhor... quer dizer, você não me
respondeu.
– Fui – ela o encara achando engraçado o jeito dele responder.
– Ela fugiu com Jesus, depois de um câncer no intestino acabar
com a sua vontade de viver. Ela deve estar num bom lugar, que
Deus a tenha.
Ele abaixa a cabeça e fica triste. Traga o cigarro como se
estivesse com raiva. Ela se sente culpada por ter perguntado.
Não tem o direito de entrar na vida das pessoas.
– Sinto muito.
– Não sinta – diz ele, empestando o ar com a fumaça branca
do cigarro. – Na nossa idade, acho que não devemos ficar
sofrendo por qualquer coisa, principalmente por coisas
passadas.
– Concordo, se bem que da forma como o senhor... quer dizer,
você, fala, fico com a impressão de que somos dois velhos
esperando a morte chegar.
– Esperando a morte chegar... – exclama ele quase
suspirando. – Não seria isso que todos nós estamos fazendo
aqui?
– Por favor, senhor delegado, sem filosofias baratas. Acho que
vai ser uma longa noite esta. A hora parece que não passa e se
ficarmos filosofando sobre a vida e a morte é capaz de termos um
ataque cardíaco aqui.
Ele sorri e aproveita para estender a mão e segurar a dela, que
parecia largada. Ela o encara e mantém a mão sobre a coxa,
quieta, gostando do calor que emana da dele. Ele bem que
espera que ela retire a mão como forma de reação. Mas ela
apenas sorri desviando o olhar para o céu cheio de estrelas.
– O que o preocupa, delegado?
– Deixar gente impune. Não suporto saber que criminosos
possam andar por aí sem pagarem pelos seus crimes.
– Iiiiiii! Mas está cheio aí fora. O que tem de político bandido
andando de carro oficial não é brincadeira. O senhor sabe disso
melhor do que eu.
– Mas nunca peguei um caso em que o assassino saísse
impune. Pode levar tempo, mas acabo pondo as mãos neles. Se
essa menina morrer, morre com ela um segredo.
– Já lhe ocorreu que ela pode ter feito tudo sozinha?
Ele fica pensativo. Ela aproveita e recolhe a mão, ele também.
Os dois agora estão com as mãos distantes e o delegado está
mais preocupado em lhe dar uma resposta que prove que o seu
raciocínio está correto.
– Não acredito. Ela é muito criança para ter feito tudo sozinha.
Se ela participou, coisa que eu chego a duvidar, ela teve ajuda.
Se bem que acho que foi o pai dela quem envenenou a família
e...
– Pronto, o senhor já matou a charada. Foi o pai dela, e ela é
inocente.
– Pode ser, mas falta então responder a seguinte pergunta: Por
quê? E só quem pode me responder isso é aquela garota que
está nas suas mãos.
A doutora ia dizer algo, um protesto, mas foi interrompida pela
chegada de Marcos, olhos inchados e completamente
descontrolado. Sentou-se entre os dois e começou a chorar.
– Ela não pode morrer. Já foi meu irmão, minha cunhada,
minha sobrinha, minha mãe... Laura não pode morrer.
Nem a médica nem o delegado dizem nada. Não há o que
dizer. Ela odiava o choro de familiares, não suportava a reação
deles. Por isso, quando tinha que dar a notícia de um falecimento
era fria, rápida e objetiva. Depois dava as costas e saía.
– Acho que vou para a UTI, preciso ver como ela está – diz a
médica se levantando.
– Eu gostaria de ir junto e se possível entrar – fala o delegado
se levantando também. Demonstra claramente que também não
está disposto a ouvir lamúrias e choros.
– Não costumamos permitir entrada de estranhos na UTI.
– Mas é um caso especial, doutora. Preciso vê-la de perto –
retruca o delegado, com certo ar de autoridade.
Marcos dá um salto, põe-se de pé e diz:
– Eu também gostaria de ver a minha sobrinha, nem que seja
pela última vez.
Na sala da UTI, Laura continua lutando, se interpondo entre a
vida e a morte. O seu juiz levanta-se depois de ter ouvido a
história dela.
“Bela história, menina Laura. Como devo classificá-la?
Romance, novela, conto... nunca fui bom nisso, mas posso lhe
garantir, você é extremamente detalhista.”
“Classifique como a história da minha vida.”
“E você, como devo classificá-la? Heroína? Assassina?”
“Que tal vítima?”, responde ela de repente, demonstrando toda
segurança do mundo.
“Não sei, não sei...”, resmunga ele, andando de um lado para
outro. “Você se meteu numa grande enrascada, menina. Como
pode alguém tão jovem se enroscar assim?”
“Mamãe costumava dizer que eu era precoce.”
“E você acreditou?”
“E não devia?”
“Deixa pra lá, acho que você vai receber visita.”
Laura ouve passos vindo em sua direção.
“Quem vem lá?”, pergunta ela.
“A doutora, o delegado e uma outra pessoa que não sei se
você vai gostar de ver aqui.”
“Quem?”
“Você já vai saber.”
Lá fora o padre, Roseli e Marcelo estão sentados. O padre
bem que quis entrar quando viu o delegado e Marcos entrando.
Sugeriu dar a extrema-unção. O delegado ficou indignado, não
cogitava a morte da menina. A médica foi firme e disse que só
permitiria a entrada de duas pessoas, ninguém mais.
Por isso os três estavam ali, sentados, aguardando. Roseli
estava pensativa, tentando domar o cansaço que dominava o seu
corpo. Marcelo tira novamente a receita do bolso e a entrega à
mãe.
– Precisa comprar o remédio dela. Ela precisa tomar o
remédio.
Roseli está cansada e sem paciência. Pega o papel da mão
dele e briga:
– Já falei que ela não precisa mais desse papel. Joga fora isso
– faz uma bola e joga no cesto de lixo que estava logo em frente.
Marcelo dá um salto e vai lá pegar. Roseli não diz nada, não quer
brigar com o filho. Ele volta desamassando o papel e falando
coisas que ela e o padre não conseguem entender. Coloca o
papel no bolso e, cansado, deita-se colocando a cabeça no colo
dela. Roseli continua falando, agora para o padre: – Ela ficou
quatro dias em casa, e eu aprendi a gostar dela como uma filha.
Havia algo de diferente nela.
– Passar pelo que ela passou, só podia tê-la transformado em
alguém diferente.
– O senhor acha que ela matou a família?
– Só quem sabe é ela e Deus. Ele será o seu juiz.
– Já orei tudo que tinha que orar por ela.
– Reze mais, minha filha; para Deus, pedir nunca é demais.
Ficam em silêncio por alguns instantes. Roseli está saturada,
suas costas doem e ela se lembra de que está a dezenas de
quilômetros de casa, da sua cama macia, do seu café doce e do
seu dia corriqueiro. Parece que dá um estalo na cabeça dela e se
não estivesse com Marcelo jogado com a cabeça na sua perna,
levantar-se-ia e rumaria para casa.
– O que nós estamos fazendo aqui, padre?
– Como assim? – estranha ele.
– Nós mal conhecemos essa menina. Não sabíamos nada dela
até agora há pouco. Saímos da nossa cidade para socorrê-la,
viemos juntos na ambulância... Ela não tem nada a ver com a
gente. Parece ser uma menina amaldiçoada que carrega a morte
ao seu lado.
– A morte não é um mal, Roseli, é uma necessidade da vida. A
morte está ao lado de todos. Se estamos aqui, algum motivo tem.
– Que motivo, padre?
– Não sei. Acho que só ficaremos sabendo lá na frente, no
futuro, mas pense bem, não fomos nós que procuramos essa
menina, foi ela quem veio ao nosso encontro. Ela podia ter fugido
para qualquer lugar ou então ter encontrado outra casa que não
fosse a sua para ficar, e teria ido à sua igreja, no entanto foi na
minha...
– Ela é católica, só por isso.
– Não, não é só por isso. Ela tem fé. Quando ela entrou na
igreja, meus olhos foram ao encontro dos dela. Eu senti naquele
momento que havia uma presença divina ali. Você acredita em
milagre, Roseli?
Ela não responde de imediato, busca palavras para tentar
conversar com o padre de igual para igual. Lembra-se das
palavras do pastor de sua igreja, que dizia ser o padre uma
pessoa comum, tão despreparada e pecadora como qualquer
outra e que deveria ser enfrentado e posto à prova. Pensando
assim ela responde:
– Se for o milagre que a tua igreja prega, não.
– Não estou falando de igreja, Roseli. Não venha pôr à prova
os seus conhecimentos religiosos, isso não vem ao caso agora. O
que eu quero dizer é sobre o milagre da transformação. Aquele
que é capaz de mudar as pessoas.
– Sim, nesse eu acredito. Por que o senhor está falando isso?
Ele abaixa a cabeça e olha para Marcelo. Não sabe o que
dizer, nem o que explicar, mas acredita que na vida nada é em
vão, que tudo que acontece tem um motivo de ser.
– Porque eu acho que a presença dessa menina no nosso
meio representa alguma coisa.
– O quê? – pergunta Roseli, achando que o padre delira
naquele momento.
– Não sei. Já disse, acho que só o tempo nos dirá.
– Eu não estou preocupada com o futuro, padre. Estou
preocupada com aquela menina lá dentro.
O padre se levanta, como se tivesse descoberto a chave de
tudo.
– Está vendo?! Você está preocupada com a menina, eu estou
preocupado com a menina, o delegado está preocupado... com
uma menina que mal conhecemos.
Roseli não entende a atitude, nem os dizeres do padre.
Mostra-se indiferente e apenas indaga:
– Qual o problema? Ela é um ser humano como nós. Quem
não iria se comover com o drama que essa menina está vivendo?
– Tô com fome – reclama Marcelo, virando-se no banco.
Roseli olha para ele e só então se dá conta de que não
comeram nada desde a tarde de ontem.
– Tem algum lugar para se comer aqui? – pergunta ela para o
padre, achando ótimo o fato de poder mudar de assunto.
– Tem uma lanchonete lá no térreo. Vamos lá?
Ela se levanta seguida de Marcelo. Os três descem a escada.
Todos eles estão com fome.
Na UTI a médica examina os equipamentos. Faz isso por
praxe, quer mostrar que está fazendo alguma coisa, mas na
verdade o que pode fazer é esperar. O delegado se aproxima.
Laura pode ouvir a sua voz quando ele indaga:
– Será que ela pode me ouvir?
– Infelizmente não, ela está num processo letárgico profundo,
não pode ouvir ninguém. Mas se você quiser falar com ela pode,
só não espere respostas.
Marcos chega perto dela, tão perto que ela vê o seu rosto. Ela
sente um misto de alegria e tristeza. Pelo menos tem alguém de
sua família ali. Ele sai da frente dela, vai até a médica e pergunta:
– Por que todos esses aparelhos?
– Porque muito provavelmente se não fossem eles, ela já
estaria morta. Ela está tão fraca que mal consegue respirar.
Então este aparelho acaba fazendo isso por ela. Basta desligar e
a vida dela se vai.
Ele se volta para Laura e chora:
– Por favor, querida, não morra, não se vá. Fique com o titio.
Você não imagina como está difícil suportar as coisas. Se você se
for, vai ficar ainda mais difícil.
O delegado, que não suporta ver choro, muito menos de
homem marmanjo, segura-o pelo braço e o tira dali. A médica vai
até perto do rosto de Laura, abre seus olhos e testa a reação da
pupila em relação à luz da lanterna de bolso que ela acende.
– É, garota, este seu tio parece gostar um bocado de você –
acerta o lençol que cobre o corpo de Laura e sai.
Ela ouve os passos dele se aproximando.
“Concorda com a médica que disse que ele gosta um bocado
de você?”
“Não sei.”
“Mas você gosta dele. Você o ama, não é verdade?”
“Ele é meu tio. Não posso amá-lo.”
“Mentira, ele não é seu tio.”
“Ele é irmão do meu pai.”
“Aquele homem não era o seu pai. Esqueceu-se de que
quando sua mãe se casou com ele, você e sua irmã já existiam?
O que está acontecendo com você, Laura? Seu pai era um outro
homem que morreu num acidente de carro. Você era pequena,
esqueceu-se disso? Esse engenheiro químico que você chama
de pai... quer dizer, chamava, porque você deu cabo dele,
apareceu depois, se apaixonou pela sua mãe e ajudou a criar
vocês. Por que insiste?”
“Não sei, mamãe sempre disse que ele era o nosso pai, que
deveríamos tratá-lo assim. Qual o problema?”
“O problema é que nenhum pai de verdade trataria os filhos do
jeito que ele tratou você e sua irmã.”
“Mas afinal, de quem é este julgamento? Quem está sendo
julgado aqui, eu ou ele?”
O rosto dele aparece na frente dela. Parece se divertir nesta
situação inusitada. Ele não deixa de ficar impressionado com a
capacidade que ela tem de discernir e julgar as coisas. Ele está
fortemente inclinado a permitir que ela mesma se julgue, que ela
mesma determine o seu destino.
“Este julgamento é o seu, menina Laura. E está chegando ao
fim. Quer o veredicto?”
“Por favor. Estou enjoada dessa situação. Vai logo e dê o
veredicto.”
“Ainda não, preciso ouvir mais.”
“Já ouviu tudo o que eu poderia lhe dizer, agora chega!”,
exclama ela, demonstrando estar chateada.
“Não senhora, preciso ouvir de você, quem lhe ajudou a matar
o seu padrasto...”
“Pai!”, berra ela.
“Tá bom, pai. Quem foi o mentor intelectual daquele crime, e
aproveita e fala um pouco desse teu amor meio que platônico
com esse seu pretenso tio.”
“Por que insiste?”, indaga Laura, com vontade de não dizer
mais nada.
“Porque é praxe. Sempre antes de morrer, de partir dessa pra
melhor, as pessoas costumam rever a sua vida, os seus
momentos mais marcantes, mais derradeiros, mais...”
“Pare com isso, por favor! Se eu não estivesse entubada e
tivesse algo no estômago, acho que vomitaria na sua cara. Pare
de brincar comigo, se tenho que morrer, que morra agora, sem
essa tortura de ficar falando da minha vida.”
“Mas está tão bonita, menina Laura. Sua narrativa é tão
perfeita, parece a de uma escritora.”
“É você que está pondo palavras na minha boca. Não consigo
nem falar.”
“Certo, sou eu que coloco as palavras na sua boca, mas a
narrativa é sua, a história é sua, o sofrimento é seu... por favor,
continue.”
“Não.”
“Vamos, continue.”
“Não.”
“Continue... porra.”
“Não precisa falar palavrão.”
“É que você me dá nos nervos. Continue a contar a sua
história.”

NO SILÊNCIO EU NÃO OUÇO OS MEUS GRITOS


1.

Papai era um homem bem-sucedido. Tinha tudo que um


homem na sua idade podia sonhar. Sabíamos disso pelos
recursos que ele nos oferecia. Sobre o trabalho dele, quase nada
sabíamos. Nunca fomos à empresa em que ele era diretor, nem
nunca recebemos a visita de nenhum amigo dele. Em casa ele
não falava sobre trabalho, parecia que vivia em dois mundos.
Certa vez ele chegou em casa ansioso e durante o jantar falou
para mamãe que precisava falar com ela na biblioteca, que ela
teria que assinar alguns documentos para concretizar alguns
negócios que ele estava fazendo. Foi só, não disse mais nada.
Mamãe era do tipo que não pedia muitas explicações, apenas
concordou e pronto.
Depois do jantar eu fiquei na sala deitada no sofá olhando o
tempo passar. Aline assistia à televisão. Os dois estavam na
biblioteca, de vez em quando eu podia ouvir a voz dele aumentar,
como se estivesse sem paciência. Ele explicava algo para
mamãe e ela parecia não entender. Eu pouco me importei com a
conversa deles, não era a minha área tentar saber dos negócios
de papai. Só sei que depois ele saiu todo satisfeito com uma
pasta cheia de papéis debaixo do braço.
Dias depois ele começou a receber telefonemas. Era sempre
a mesma pessoa. Ligava sempre no celular, às vezes na hora do
jantar, às vezes na hora do jornal da tevê. Quando ele atendia,
logo se afastava da gente deixando claro que se tratava de um
assunto sigiloso. Ele raramente recebia ligação à noite.
Uma pergunta pairava no ar: Quem era o autor das ligações?
Numa certa noite o celular tocou. Estávamos jantando. O
celular tocou e ele, antes mesmo de atender, deixou a mesa e foi
se trancar na biblioteca.
– Papai anda muito misterioso, deve estar com algum
problema na empresa – falei, como se alertando mamãe.
Dez minutos depois ele voltou, sentou-se à mesa e, como se
não tivesse acontecido nada, pegou a faca e o garfo e começou a
comer.
– Querido, está acontecendo alguma coisa? – perguntou
mamãe com a voz tranquila.
– Não, é que estou fazendo um negócio com o Marcos, aquele
meu irmão que mora nos Estados Unidos... quer dizer, morava,
agora está no Brasil.
– Irmão?! – exclamou Aline, enquanto nós três nos
olhávamos.
– Sim, irmão, qual o problema? – perguntou ele sério, levando
a comida à boca.
– Você nunca disse que tinha um irmão nos Estados Unidos –
falou Aline, encarando-o. – Com exceção desses tios chatos que
moram em outro Estado, não conhecemos mais nenhum.
– Marcos é o irmão mais novo do seu pai – esclareceu mamãe.
– Ele foi muito cedo pra lá, perdeu contato com todo mundo, eu
mesma não o conheço, a não ser de nome.
– Satisfeitas? Bando de curiosas... – falou ele, dirigindo o olhar
ríspido para nós duas.
Eu quase virei para ele e disse que não fazia parte daquele
bando, que estava pouco me lixando para a vida dele e do irmão
que morava nos Estados Unidos.
– E nós não vamos conhecê-lo? – perguntou Aline.
– Ele está na casa de minha mãe – respondeu ele.
Aline fez uma careta e falou:
– Então não vamos conhecê-lo, nós não vamos na casa da
vovó.
Papai olhou feio para Aline e resmungou:
– Não vão porque não querem, vocês sabem o caminho.
– Eu não – falou Aline, demonstrando despeito. – Ela é chata,
maltrata a gente.
– Ela é uma velha doente, está à beira da morte, se vocês não
tiverem paciência com ela...
Aline ia dizer algo, o clima estava mudando para briga. Papai
já estava mal-humorado e não gostava que falassem da mãe
dele. Mamãe percebendo o clima intercedeu:
– Querido, por que não convidamos o Marcos para vir aqui em
casa. Podemos fazer um almoço e ele passa o dia aqui com a
gente. Acho que as meninas iam adorar conhecer o tio dos
Estados Unidos.
Aline esboçou um sorriso, eu fiquei na minha enquanto ele
olhava a nossa cara para ver se topava ou não o que mamãe
sugerira.
– Vou ver.
“Vou ver”, essa resposta era apenas a forma econômica de ele
dizer assim: Tudo bem, se vocês querem, vou marcar com ele um
almoço no próximo sábado, dessa forma ele fica conhecendo
vocês e a nossa casa. Assim era papai.
Um dia antes de ele aparecer em casa, eu e Aline ficamos
imaginando como era esse tal tio. Era noite e estávamos no
quarto dela. Papai dizia que pouco o conhecia, que ele havia ido
embora muito cedo para os Estados Unidos, que era um bem-
sucedido executivo na área de finanças e que estavam fazendo
alguns negócios juntos. Ficamos sabendo que ele era bem mais
novo que nosso pai, era o irmão caçula.
– Será que ele é bonito? – perguntou Aline, toda sonhadora.
– O que importa isso, ele é nosso tio – respondi, achando a
minha irmã um tanto quanto infantil.
– Eu sei disso, mas estou ansiosa para conhecê-lo. Finalmente
vamos receber uma visita nesta casa. Papai não deixa ninguém
vir aqui, nem os nossos amigos.
– E o que você espera dele? Que ele saia com a gente, que
nos leve para passear no parquinho nos fins de semana?
Ela estava deitada; quando ouviu isso, deu um salto
demonstrando ter ficado chateada.
– O que você pensa que eu sou, Laura, uma garotinha bobona
esperando o príncipe encantado?
– Não – respondi. – Esperando o tio encantado.
Ela pegou o travesseiro e jogou na minha cara. Depois pegou
outro e saiu correndo atrás de mim, que desapareci daquele
quarto antes que levasse um cascudo.
Assim era o meu relacionamento com Aline: conversávamos
muito, brigávamos muito e nos amávamos muito também.
No dia seguinte acordei tarde, levantei-me e fui tomar café.
Encontrei mamãe preparando um café diferente do normal. Havia
um certo clima festivo no ar.
– Vai ter festa hoje? – perguntei, sentando-me à mesa.
– Esqueceu? O irmão do seu pai vem nos visitar, daqui a
pouco ele chega.
Claro que não me esqueci, apenas fingia demonstrar
naturalidade, mas aquilo era um evento. Nossa casa mais parecia
um claustro, onde vivíamos solitariamente abandonados. Papai
não gostava de receber pessoas em casa. Acho que por isso
ficamos tão ansiosas em receber a visita do tão ilustre tio.
Tomei um suco e comi duas bolachas, levantei-me e fui para o
quarto de Aline. Entrei sem bater, fazia isso para irritá-la. Queria
começar o dia fazendo-a ficar nervosa.
– Odeio quando entram no meu quarto sem bater – disse ela
de frente ao espelho, escolhendo um biquíni.
– Eu sei – retruquei, sentando-me na beira da sua cama.
– Qual desses você acha melhor? – perguntou, jogando três
biquínis na minha frente.
Eu olhei, não entendi o que ela queria.
– É para receber o nosso tio? – escarneci, fazendo-me de
séria.
– Não, sua besta! Olha o sol lá fora. Quero me bronzear e
nadar um pouco.
– Bom – falei, demonstrando pouco-caso –, este aqui te deixa
com a bunda praticamente de fora. Não sei se papai vai aprovar.
Este aqui é muito apertado, vai deixar sua “sapona” do tamanho...
Ela não esperou que eu terminasse, pegou as peças e retirou-
as da minha mão. Sabia como eu era, arrependeu-se de ter
perguntado.
– Pode deixar que eu mesma escolho.
– Você parece ansiosa – reparei no jeito dela.
Ela largou os biquínis no canto, sentou-se do meu lado e
segurou as minhas mãos.
– Sabe o que é, irmãzinha, é que hoje à tarde vou ter um
encontro com o Paulo.
– Paulo? Aquele magrelo alto da sua sala? – indaguei,
erguendo a mão o máximo que podia para demonstrar o tamanho
dele.
– Isso mesmo. Os pais vão sair e ele vai fazer uma festinha
íntima na casa dele hoje à tarde.
– E você vai? Papai não vai deixar.
– Este é o problema, como ir? Talvez, se você dissesse que vai
na casa de uma amiga, daí eu te levaria, a gente volta rapidinho.
Olhei para ela quase não acreditando no que ouvia. Ela devia
ser meio louca mesmo.
– Eu? Você quer que eu peça ao papai para ele me deixar ir na
casa de uma amiga?
– Isso mesmo – concordou ela, toda animada. – Ele não vai
deixar você ir, claro, daí eu entro na história e falo que vou te
levar e ficar cuidando de você. Que tal?
– Não sei. Tenho medo de dar alguma coisa errada e depois
quem paga o pato sou eu.
Ela jogou-se aos meus pés. Aline tinha um defeito ou uma
virtude, sei lá, que quando queria algo, ela conseguia.
– Por favor, Laura, diga que sim.
– Mas eu vou ter que pedir para o papai?
– Vai.
– E se ele me bater?
– Eu não deixo, eu vou estar perto, confie em mim.
– É uma reunião na casa do Paulo?
– É – concordou ela. – Reunião íntima, para poucas pessoas,
nós não vamos demorar.
– Está bem – aceitei me levantando, sentindo ódio de mim por
não saber dizer não a ela. Algo me dizia que eu havia feito uma
grande besteira.
Saí do quarto dela, desci as escadas e fui para o jardim.
Aquela manhã de sábado estava mesmo uma delícia. Papai lia
um livro na espreguiçadeira, estava apenas de calção. Passei por
ele sem a mínima intenção de conversar. Ainda bem que ele não
me dirigiu a palavra. Sentei-me na outra espreguiçadeira onde
tinha sombra e fiquei divagando. Só então ele me dirigiu a
palavra:
– Por que não põe roupa de banho?
– Não estou com vontade – respondi mentindo. Na verdade, a
água parecia estar uma delícia, mas estava envergonhada, andei
me olhando no espelho e me achando um pouco gorda.
Minutos depois Aline chegou com aquele minúsculo biquíni que
mais mostrava do que escondia. Papai não deixou de reparar e
reclamou:
– Aline, não dava pra vestir algo mais decente? Você está
quase pelada.
– Mas nós estamos sós, aqui. Qual o problema?
Ele fez cara feia, não disse nada porque ele sabia que com ela
não adiantava discutir. Voltou-se para o livro, enquanto Aline
entrava na água. De vez em quando papai levantava os olhos
para vê-la, principalmente quando ela estava na parte rasa, e de
costas.
Em seguida ouvimos a campainha. Meu Deus, era ele! Fiquei
com vontade de subir e me trancar no quarto.
Mamãe veio ficar junto conosco, enquanto a empregada ia
recebê-lo. Vi quando um homem magro, estatura mediana,
cabelo negro escorrido, apareceu seguindo a empregada. Meu
pai levantou-se e foi recebê-lo. Parecia feliz ao vê-lo. Os dois se
abraçaram e abraçados vieram ter com a gente. Primeiro meu pai
apresentou-o a minha mãe. Aline tratou de sair da água e foi logo
cumprimentá-lo. Evidente que ele não deixou de reparar no corpo
dela. Ele abraçou-a e beijou-lhe o rosto sem se preocupar pelo
fato de ela estar molhada.
Meu pai fez sinal para que eu me aproximasse. Estava
envergonhada. Estendi-lhe a mão que ele segurou e depois me
abraçou, beijando meu rosto. Senti o calor do corpo dele e aquilo
me queimou por dentro. Nunca havia sido abraçada por um
homem, nem pelos meninos da escola. Aquilo mexeu comigo e,
como bicho do mato, voltei para a minha espreguiçadeira e fiquei
observando o irmão do meu pai.
Ele demonstrou ser uma pessoa muito simpática e loquaz.
Diferente de papai, sempre calado e taciturno. Conversaram
sobre tudo. Ele falou da sua vida nos Estados Unidos, das suas
aventuras. Papai falou da empresa em que era diretor, falou do
seu curso de engenharia química, dos seus dotes culinários e
tudo mais.
Notei que de vez em quando ele me olhava e sorria. Eu ficava
vermelha, tímida, sem saber para onde olhar, mas no fundo
queria ter a oportunidade de conhecê-lo um pouco melhor, de
conversar com ele sozinha.
Houve uma hora em que ele deixou papai e mamãe
conversando na espreguiçadeira e foi falar comigo do outro lado
da piscina.
– Como você se chama mesmo?
– Laura.
– Está fazendo que série?
– Oitava série.
– Quantos anos você tem?
– Quatorze, mas vou fazer quinze logo, logo. E você?
Ele sorriu, notei que ficou meio constrangido com a minha
pergunta. Pensei até que ele não fosse responder, mas
respondeu:
– Trinta e cinco. Viu como sou velho?
– Nem tanto assim. É casado?
– Por que pergunta? Está interessada?
Corei, não imaginava que ele fosse me responder assim.
Pronto, não faria mais nenhuma pergunta.
– Não, é que...
– Não sou casado, não tenho filho, não tenho ninguém. Sou
um homem solitário, sabia?
“E eu sou uma garota solitária, sabia?”, fiquei com vontade de
responder. Mas ficou mesmo só na vontade. Não teria coragem
de dizer aquilo para um homem que acabara de conhecer.
Neste momento papai se aproximou, chamando-o para irmos
tomar um café. Não sei o que aconteceu comigo, mas fiquei com
vontade de rir, dei um pulo da espreguiçadeira, ameacei uns
passos de dança e caí na água de roupa e tudo.
– Você está louca? – berrou Aline, enquanto eu a abraçava
dentro d’água.
– Não, é que eu estou com muito calor – respondi, feliz da
vida.
– Mas precisava cair de roupa e tudo?
Só então me dei conta da loucura que fizera. Saí da água com
a roupa colada no corpo. Procurei por uma toalha e não encontrei
nenhuma ali. Corri para a lavanderia para ver se achava uma. No
varal, perto do tanque, havia uma. Quando cheguei lá, dei de cara
com ele. Ele me olhou toda molhada e abaixou os olhos em
direção aos meus seios. A camiseta branca que eu usava, ao
molhar, ficou transparente. Fiquei rubra e cobri os peitos com as
mãos. Gentilmente ele pegou a toalha que estava perto dele e me
entregou. Embrulhei-me exatamente quando papai chegou.
– O que aconteceu?
– Caí na água, vou subir e me trocar – falei saindo correndo,
enquanto papai mostrava a casa para ele.
Durante o almoço tudo correu tranquilamente. Achei aquele tio
bonito de morrer. Não tirava os olhos dele. Fiquei até com medo
de que alguém percebesse. Depois do almoço, mais uma rodada
de conversa e depois ele se despediu, abraçando papai, mamãe,
Aline e eu. Senti seu corpo grudar no meu. Fiquei com vontade
de grudar no corpo dele ainda mais e ficar quietinha, calada,
apenas grudada nele.
– Foi um prazer te conhecer, Laura, você é muito bonita – falou
ele no meu ouvido enquanto minhas pernas falseavam.
2.

– Deixa ela ir, papai, eu vou com ela, prometo cuidar direitinho
da sua menina – falou Aline.
– Não gosto dessa conversa de ir fazer trabalho de escola na
casa de amiga. Vai fazer sozinha no seu quarto – bradou ele,
fuzilando-me com os olhos.
Eu estava disposta a desistir, não ia insistir com ele, conhecia
bem a fera. Mas mamãe resolveu entrar na conversa.
– Deixa ela ir, querido, Aline vai junto, toma conta dela.
Ele pensou bem, disposto a dizer não, mas diante do pedido
de mamãe, concordou e fez uma série de recomendações,
determinou um horário para a nossa volta e tudo mais.
Mamãe sugeriu nos levar, Aline protestou e disse que não
éramos mais crianças, podíamos ir de ônibus, que não ficava tão
longe assim. Foi uma luta convencer os dois a nos liberar, mas
como já disse, Aline conseguia tudo o que queria.
Chegamos em frente ao portão da casa de Paulo. Eu o
conhecia de vista na escola, mas nunca trocamos ideias. Ele era
da turma da minha irmã, quanto a mim, nem turma eu tinha.
Aline tocou o interfone avisando que estava lá. Ele pediu para
aguardar e pela voz dele, parecia ter ficado feliz. Quando abriu o
portão e me viu ao lado dela, não ficou tão satisfeito assim.
Olhou-me como a uma intrusa, como alguém que estava ali para
cortar o barato. E era verdade.
– Esta é a minha irmã – apresentou-me.
Ele mal me olhou na cara e disse:
– Você não me falou que ia trazer a sua irmã.
– Imagina que meu pai ia me deixar sair sozinha – disse ela,
olhando para o portão aberto e ele parado, fechando a nossa
entrada. – Não vai convidar a gente para entrar?
– Claro – respondeu ele, abrindo passagem.
Entramos. A casa não era lá muito grande, mas era uma casa
bonita e aconchegante. Fomos para a sala. Pensei que iríamos
encontrar mais gente, então questionei:
– Somos os primeiros a chegar?
Ele olhou para a minha irmã, que olhou para mim e eu fiquei
aguardando uma resposta.
– Não vai vir ninguém – explicou ela. – É uma festa íntima, só
para nós dois.
– E eu? – perguntei, não querendo ficar chateada.
– Eu tenho um videogame novinho lá no meu quarto, se quiser
jogar... – falou ele, tentando me agradar e ao mesmo tempo,
tentando se livrar de mim.
Fui categórica:
– Odeio videogame. Isso é coisa de criança.
– Tenho uns livros lá no quarto – insistiu ele.
– Não costumo ficar em quarto de estranhos.
– Laura, deixa de ser chata, vai passear lá no quintal, tem um
jardim cheio de flores lá fora – disse ela abraçando-o,
demonstrando estar louquinha para ficar sozinha com ele.
Eu resolvi bancar a chata.
– Como você sabe, já esteve aqui?
– Não, mas toda casa sempre tem um jardim. Com certeza
essa tem, vai.
– Tem sim – cortou ele, preparando-se para me pôr para fora.
Diante de tanta insistência, resolvi sair. Passei pela cozinha e
fiquei andando pelo quintal pequeno, quase sem espaço. Procurei
uma cadeira e fiquei ali esperando a hora passar enquanto os
dois se divertiam lá dentro. De vez em quando ouvia umas
risadas, uns estalidos como se fossem beijos de desentupir pia.
Aquilo estava ficando interessante. Fiquei prestando atenção
tentando ouvir mais, mas ele ligou o som e passei a ouvir um rock
pesado que vinha lá de dentro.
Já fazia meia hora que estava lá fora cozinhando o galo. Já
havia conversado com as flores, desencravado uma unha do
dedão do pé com um graveto que achei caído e a hora se
arrastava. Cansada, resolvi ver o que estava acontecendo. Podia
ter entrado pela cozinha, mas preferi ir pelo canto do quintal e ver
pela janela da sala. Aproximei-me lentamente, os dois estavam
num amasso só. Não podia acreditar que a minha irmã fosse
capaz de tudo aquilo. Fiquei observando e notando que na hora
H, ela se esquivava, pelo menos estava conseguindo resistir aos
ataques furiosos dele. Senti um cheiro forte saindo de dentro da
sala. Olhei na mesa de centro e vi um cigarro de maconha aceso.
De vez em quando ele parava, dava uns pegas e passava para
ela. Depois os dois voltavam a se atracar. Minha irmã estava toda
amarrotada. Ela não iria resistir por muito tempo.
“Chega”, pensei comigo, “hora da festa acabar!” Saí dali, entrei
na cozinha e fui parar na sala exatamente quando ela tirava a
calça dele. Ele, que estava a todo vapor, quando me viu,
murchou.
– O que foi, Laura? – perguntou ela, colocando os peitos para
dentro e fechando os botões da blusa.
– Acho que está na hora de irmos – falei olhando para ele, que
erguia as calças.
Ele sentou-se desanimado, pegou o cigarro de maconha e,
antes de levar à boca, ofereceu-me.
– Quer?
– Posso? – olhei para Aline.
– Fique à vontade – respondeu ela, com cara de frustrada.
Eu nunca tinha experimentado. Aquilo para mim seria uma
experiência nova. Eu sabia que Aline, de vez em quando, usava.
Nunca tive coragem de pedir.
Peguei da mão dele e levei à boca. Eu sabia fumar. Tinha um
maço de cigarros guardado no meu quarto. Só que eu não
gostava muito de fumar, achava fraco, amargo, gostava mesmo
de bebida. Sempre quando dava, tomava dos uísques que papai
tinha no bar da sala. Dei um trago forte e se não tivesse acabado
de sentar, acho que teria caído. O mundo virou na minha frente
feito bola de futebol em direção ao gol. Não sei se foi obra do
acaso, mas começou a tocar uma música da Legião Urbana.
Senti meu corpo planar e comecei a dançar, rodopiar pela sala.
Não me sentia gente, não me sentia humana, eu era um pássaro
que pela primeira vez saía do chão e voava.
Dessa forma Aline me arrastou dali. Ainda bem que ela me
segurava pela mão, senão seria capaz de sair voando como uma
pipa.
– Você é louca, sabia?
– Eu? Por quê? – perguntei.
Estávamos chegando em casa. Durante todo o trajeto não
falamos nada, viemos em absoluto silêncio.
– Não devia ter fumado. Pensei que você fosse morrer. Correu
pela casa do menino como uma alucinada. O que será que ele
deve estar pensando de você?
– É importante?
– O quê? – perguntou ela me encarando.
– O que ele pensa sobre mim?
– Não, mas...
– Você trouxe? – interrompi, demonstrando não ter o mínimo
interesse em ouvir o que ela iria dizer.
– Claro, você quase me obrigou. Toma, aproveita e põe na sua
bolsa, fica como pagamento pelo favor que você me fez.
Peguei o embrulho e coloquei na minha bolsa. Estava
satisfeita, aquela tarde para mim tinha sido por demais excitante
e, para encerrar, eu não podia deixar de jogar na cara dela:
– Você me deve muito mais que isso. Se não fosse eu, acho
que a tua virgindade teria ido para o espaço.
– Você foi uma estraga prazer.
– Da próxima vez não me chama – falei, achando que ela
estava sendo muito mal-agradecida.
Chegamos em frente de casa e a conversa morreu ali. Papai e
mamãe estavam na sala, ele tomando uísque e ela um suco,
conversavam animadamente. Eu ainda estava sob efeito do fumo,
sentia meu corpo leve e uma vontade enorme de me deitar. Mal
conversei com eles, subi as escadas e fui para o meu quarto.
Peguei o meu diário, caí na cama e comecei a escrever. Escrevi
cartas de amor para o Renato Russo, imaginei-me fazendo com
ele o que Aline fez com o Paulo naquela tarde.

3.

Era madrugada de segunda-feira e eu não conseguia dormir.


Rolava de um lado para outro e o calor infernal transformava a
cama numa fogueira em brasa. Estava agitada, com vontade de
gritar e xingar. Lembrei-me do baseado que Aline me dera. Não,
eu só podia estar ficando louca! Usar aquilo dentro de casa, e se
alguém visse? Levantei-me e no escuro saí do meu quarto. Andei
pelo corredor pisando bem devagar. Abri o quarto de Aline e ela
dormia um sono de anjo. Fui ao quarto dos meus pais e eles
também dormiam; papai roncava.
Voltei para o meu quarto e peguei o baseado. Desci, passei
pela cozinha e peguei um fósforo, abri a porta que dava para a
lavanderia e fui para o quintal. Lá fora a madrugada estava
agradável. A lua cheia dava um tom amarelado às coisas. Fui até
a edícula, sentei-me num canto atrás de um vaso com uma planta
bem grande e acendi o cigarro. Fred veio ao meu encontro.
Mandei-o embora. Ele obedeceu e foi para o quintal da frente.
Fumei como uma louca desvairada. Mais um pouco e eu comia o
cigarro com papel e tudo. Tive medo de que alguém me visse.
Estava fazendo uma coisa errada, terrivelmente errada, mas
aquilo me dava um prazer enorme. Não sei se pelo fato de estar
transgredindo as normas ou se simplesmente pelo poder que a
droga tinha no meu corpo.
Terminei. Levantei-me sentindo meus pés nas nuvens. Tinha
certeza de que agora eu conseguiria dormir. Entrei na cozinha e
fechei a porta, quando me virei para seguir em frente, a luz se
acendeu queimando minha vista. Coloquei a mão na frente dos
olhos para tentar minimizar o efeito da luz e pude ver o vulto de
papai se aproximando.
– O que você estava fazendo lá fora?
– Na... nada. Eu n... não est...va... fazendo...
Estava tão assustada que mal conseguia pronunciar as
palavras corretamente.
– Deixe eu cheirar as suas mãos, anda! – ergui as mãos e ele
meteu o nariz nelas. Cheirou uma e cheirou a outra como se
fosse um cão perdigueiro. Depois não disse nada, absolutamente
nada, apenas ergueu os cinco dedos e levou-os à minha cara.
Rodopiei feito pião e caí batendo na parede. Mal deu tempo de
me levantar e ele grudou no meu cabelo que, naquela época, era
comprido e cacheado. – Sua filha-da-puta! Sua ordinária! Agora
deu pra usar drogas?!
– Papai, eu...
– Psiu! – murmurou ele baixinho no meu ouvido e colocando a
mão na minha boca para que eu não fizesse barulho. – Sua mãe
está doente, sua ordinária, por isso eu vou bater em você lá no
quintal e você não vai gritar, só vai me contar onde arrumou essa
porcaria.
Abriu a porta da cozinha, levou-me lá para a edícula, que era o
lugar mais distante de casa. Estava assustada, já perdera a conta
das vezes que ele me batera, mas daquela vez a coisa seria
diferente.
Fred veio e pulou em mim, queria brincar, não imaginava que
eu estava ali para apanhar. Papai pegou uma vassoura e deu
uma vassourada nele que saiu gritando e sumiu. Com aquele
mesmo cabo de vassoura ele golpeou a minha cabeça, as minhas
pernas e as minhas costas. Ele queria saber onde eu arrumara a
droga, se Aline tinha alguma coisa a ver com tudo aquilo. Eu não
dizia nada, ficava quieta, tentando conter as lágrimas que
insistiam em cair. Só uma frase acabou saindo da minha boca
quando ele já havia me batido tudo o que tinha que bater:
– Vou contar pra mamãe, vou denunciar você na polícia.
Ele deu risada e falou na minha cara:
– Conta, isso mesmo, conta! Mata a sua mãe de desgosto. Já
não basta o câncer... Vai na polícia também, conta pra eles que
você é uma drogada, traficante... quem vai ficar presa é você – e
deu-me um empurrão que eu caí de costas.
Fiquei caída olhando-o entrar, depois me levantei e fui quase
me arrastando até o meu quarto. Estranho era que eu não sentia
dor. Sentia meu corpo cansado, como se tivesse corrido uma
maratona, mas dor eu não sentia. Joguei-me na cama e dormi um
sono pesado, um sono de morte.
Foi só quando acordei que pude sentir todas as dores do
mundo. Sentia-me como se um trator tivesse passado por cima
de mim. Desliguei o despertador que se esgoelava ao meu lado.
Fiquei com vontade de jogá-lo na parede, cobrir a cabeça e ficar
deitada quieta. Meu corpo doía, precisava levantar, olhar-me no
espelho, ver se tudo ainda estava no lugar. Minha cabeça
latejava, havia dois galos, resultados do cabo de vassoura. Fui
até o espelho, tudo aparentemente normal, os galos o cabelo
cobria, os vergões no corpo, a roupa cobria, então ninguém veria
nada e eu não precisaria dar explicação. Arrumei-me lentamente,
peguei meu material e deixei para sair do quarto em cima da
hora. Não queria tomar café, nem ver a cara dele.
Quando cheguei na copa, os três já estavam tomando café.
– Senta aqui para tomar café, minha filha, você está atrasada –
falou mamãe, afastando a cadeira do lado dela.
– Não estou com fome – respondi.
– E cadê a educação, não se diz mais bom-dia? – resmungou
papai, olhando para mim.
– Bom-dia! – exclamei mal-humorada.
– Nossa, você está péssima, Laura, dormiu bem? – perguntou
Aline com aquela cara de anjo.
Fiquei com vontade de mandá-la para aquele lugar, mas seria
louca se fizesse isso.
– Por que pergunta?
– Sua cara...
– Minha cara é feia assim mesmo, você não se acostumou?
– Iiiii! Ela está virada hoje, melhor a gente ir – disse ela
levantando-se, beijando mamãe e papai.
Eu ia dando as costas quando papai me chamou:
– Laura, não vai beijar a sua mãe? – voltei-me e fui até ela e
dei-lhe um beijo de leve na face. Fui saindo quando ele insistiu: –
E eu, não mereço um beijo? – parei, fiquei paralisada, aquilo era
demais. Aquele homem era louco de tudo. Olhei para mamãe
que, com os olhos, pedia que eu fizesse. Então fui até ele e
beijei-lhe o rosto. Ele virou a cabeça sutilmente e o beijo quase
pegou no canto da sua boca. Fiquei com vontade de vomitar na
cara dele.
Saí quase correndo de casa e fiquei esperando Aline lá fora.
Ela chegou toda nervosa, disposta a tomar satisfação comigo.
– O que deu em você?
– Eu odeio aquele homem. Se pudesse, eu o mataria, juro por
Deus!
– Bobagem, ele até que é um pai legal, tem cada um por aí
que não vale um tostão furado. Olha, o ônibus está chegando.
O ônibus da escola encostou e entramos. Durante todo o
percurso eu não disse nada. Mas havia tomado uma decisão
importante naquele dia. Decidi que precisava crescer, que não
poderia mais ser uma menininha. Que era uma questão de
sobrevivência que eu mudasse, mesmo que fosse para pior.
Quando o ônibus chegou, descemos e Aline rumava para o
portão de entrada. Segurei-a pelo braço e falei:
– Aline, eu não vou entrar, preciso fazer uma coisa.
– Você vai matar aula? Você nunca fez isso. O que está
acontecendo, está delirando?
– Não, só estou te avisando que vou direto para casa depois.
– Mas...
Não esperei que ela completasse, dei as costas e atravessei a
rua. Fui andando até atravessar a praça que ficava em frente à
escola. Precisava pensar, traçar um caminho, descobrir uma rota
que pudesse me levar à felicidade.
Andei não sei por quanto tempo. A escola não ficava muito
longe do centro da cidade. Segui para lá. Estava cansada e o sol
queimava minha cabeça. Minha cabeça! Precisava mudar minha
cabeça. Olhei para o outro lado da rua e vi um salão de
cabeleireiro; na verdade, era elogio demais chamar aquilo de
salão.
Estava vazio. Entrei e um velho com cara de barbeiro veio me
atender.
– Quero cortar meu cabelo.
O velho deu risada, parecia não acreditar no que acabara de
ouvir.
– Desculpe, mocinha, mas aqui eu só faço corte masculino e
tiro barba de homem.
– Quero que o senhor passe máquina zero no meu cabelo.
Ele ficou pasmo. Não acreditava no que ouvia.
– Você está fazendo alguma brincadeira comigo? – olhou-me
de cima a baixo, viu meu uniforme da escola e deduziu: – Já sei,
é um trote, vocês estudantes adoram aprontar.
Confesso que naquele momento eu não estava com um pingo
de vontade de dar explicações; apenas queria cortar meu cabelo
e pronto. Dessa forma, ignorei o comentário dele, joguei meu
material no sofá e sentei-me na cadeira que, de tanto ser usada
por marmanjo, tinha um buraco no meio que cabia direitinho uma
bunda.
Percebendo que não era brincadeira, ele se aproximou de
mim, passou a mão no meu cabelo e comentou:
– É uma judiação, seu cabelo é tão bonito... escuta, tem um
salão de cabeleireiro aqui na esquina, você não quer ir lá... se
bem que hoje é segunda, não sei se está aberto...
– Corte o meu cabelo, por favor – ele ia protestar de novo... –
Eu vou pagar, não estou pedindo para o senhor cortar de graça.
Ele engoliu o que ia falar, pegou uma capa preta, gasta, e
colocou em mim. Pegou a tesoura, reclamou mais um pouco e
com muito dó foi passando a tesoura e os cachos caindo. De
tanto ele protestar, acabei concordando em não passar a
máquina zero. Deixou apenas o cabelo bem baixinho.
Meia hora depois eu estava quase pelada, literalmente despida
do meu cabelo castanho, encaracolado, que nunca fora cortado;
apenas tivera as pontas aparadas. Gostei do que vi. Minha
cabeça não era feia e a falta de cabelo realçou os meus olhos.
Estava satisfeita. Levantei-me, paguei o velho que ainda
demonstrava certa contrariedade e fui embora. Um longo dia me
esperava.
Liguei e avisei mamãe que só chegaria em casa mais tarde e
que estava tudo bem comigo. Passei o dia todo passeando, fui ao
cinema e comi cachorro-quente. Quando ia anoitecendo foi que
cheguei em casa. Encontrei a família toda no quintal da frente me
esperando como se eu regressasse de uma longa viagem.
Quando me viram com a cabeça quase pelada, ficaram sem
saber o que dizer. Mamãe foi a primeira a se manifestar:
– Deus do céu! O que aconteceu com você, minha filha?
– Acho que ela foi presa – brincou Aline.
– Onde a senhora esteve? Quer deixar a gente louco? Pensei
que tivesse sido sequestrada – berrou papai no meu ouvido.
Não respondi, ainda continuava azeda, sem vontade de
conversar, queria apenas ir para o meu quarto e ficar quieta.
Passei por eles evitando qualquer contato e apenas respondi:
– Estive por aí, pensando um pouco na vida.
Mamãe veio atrás, sendo seguida pelos outros. Segurou-me
com carinho pelo braço.
– O que aconteceu com o seu cabelo?
Passei a mão nele que estava rente, espigado, quase
deixando aparecer o couro cabeludo.
– Cortei.
– Por quê? – insistiu ela.
– Para que ninguém mais possa puxá-lo – respondi, olhando
para papai. Dei as costas e subi a escada.

4.

Os dias que se seguiram foram de profunda chateação. Ainda


não conseguira digerir o fato de ter levado uma surra de papai.
Na escola, fui motivo de chacota e de perguntas sobre o que
aconteceu com o meu lindo cabelo cacheado. Só uma coisa me
alegrava: tio Marcos. Ele passou a frequentar a nossa casa todas
as noites. Ficavam tratando de negócios e pareciam ter se
tornado grandes amigos. Ele foi o único que elogiou o meu corte.
Fiquei ainda mais encantada por ele.
Os dias viraram semanas; as semanas, meses. Tinha uma
necessidade de conversar com tio Marcos, falar dos meus
sentimentos, dos meus desejos em relação a ele. Buscava uma
oportunidade que parecia nunca acontecer.
Mas um dia...
Era fim de semana e papai resolveu sair com a gente. Eu não
queria ir, precisava fazer um trabalho de escola. Com muito custo,
consegui convencer papai a me deixar ficar em casa. Quando
eles saíram, corri até o bar de papai, peguei um litro de uísque,
um copo e gelo e tranquei-me no quarto. Ouvindo Renato Russo
e enchendo a cara, fui dar conta do meu trabalho. Naquele
momento tive uma ideia: ligar para o tio Marcos. Ele havia me
dado o número do celular. Pensei numa boa desculpa para trazê-
lo em casa. Não sei se foi boa, mas foi o que me ocorreu:
– Tio, sou eu, Laura.... Você está ocupado? Preciso da sua
ajuda... estou fazendo um trabalho de Biologia sobre a
reprodução das espécies, será que você poderia me ajudar?...
Estou sozinha em casa, todo mundo saiu... A minha voz está
estranha? Não, ela é assim mesma, você nunca falou comigo
pelo telefone...
Tentei ser a mais natural do mundo, mas ele como homem
vivido percebeu a minha intenção e a minha embriaguez, tive
certeza disso. Não podia beber mais, papai poderia perceber se
eu secasse a garrafa.
Tempo depois toca a campainha. Desci a escada e fui até o
interfone.
– Quem é?
– Sou eu, Marcos.
Meu coração balançou. Senti minhas pernas tremerem. Ele
veio rápido, fiquei ouvindo música e esqueci das horas. Estava
toda desarrumada, o cabelo espigado, uma camiseta larga e
velha, um short curto e apertado. Não dava tempo para me
arrumar. Apertei o botão e ouvi o trinco do portão se abrindo. Da
janela vi quando ele entrou. Fui até a porta e abri assim que ele
chegou. Abraçou-me e eu aproveitei para grudar bem nele. Ele
percebeu e me deu mais dois beijos no rosto.
– O pessoal saiu mesmo? – perguntou ele, incrédulo.
– Saiu.
Ele demonstrou certo nervosismo. Aquilo o pegara de
surpresa. Claro que durante todos esses meses ele percebeu os
meus olhares pedintes, mas qualquer homem de trinta e cinco
anos, em sã consciência, não se envolveria com uma garota de
quinze anos, principalmente sendo sua sobrinha. Acontece que
eu estava decidida.
– Seu pai disse que dificilmente sai aos domingos.
– Pois hoje ele resolveu sair.
– E você está sozinha? – balancei a cabeça, afirmativa.

– O que está fazendo?


– Estudando.
– O quê? – indagou ele, encarando-me.
– Falei no telefone, Biologia. Estou estudando sobre a
reprodução dos seres – falei com a voz melosa, sensual,
tentando demonstrar as minhas reais intenções.
– Tem certeza de que precisa mesmo de ajuda?
– Preciso. Você entende mesmo sobre reprodução? –
perguntei me insinuando.
Ele me olhou desconfiado. Acho que aquela situação para ele
também era inusitada.
– Você está bem? Andou bebendo alguma coisa? – aproximou
o nariz da minha boca. – Deixa eu sentir o cheiro na sua boca.
Eu abri a boca para que ele pudesse sentir. Ele aproximou-se o
mais que pôde, o suficiente para que eu o agarrasse e lhe desse
um beijo na boca. Fazia tudo com muita pressa. Não tinha muito
tempo, logo eles chegariam. Ele sorriu e me abraçou ainda
tentando entender o que se passava. Nos beijamos novamente
como loucos ali mesmo. Para quem nunca tinha beijado, acho
que me saí bem demais. O beijo deve ter despertado sua libido e
ele começou a me apertar, beijar o meu pescoço... lembrei-me do
Paulo com Aline. Cheguei à conclusão de que todos os homens
são iguais, todos loucos e insanos por sexo.
– Tio, vai devagar, é a minha primeira vez.
De fato, acho que ele não pensava mais com a cabeça e sim
com os testículos. Por ele, tudo teria acontecido ali mesmo, no
tapete da sala. Afastei-me dele, segurei-o pela mão e o levei para
o meu quarto.
A primeira vez...
A gente sonha, imagina e a primeira vez é sempre menos do
que a gente espera.
Fiquei frustrada, pensei que ouviria fogos de artifício, rojões
explodindo a céu aberto. No entanto, o que via era o rosto de
papai descobrindo tudo e me batendo. O peso do corpo de tio
Marcos sobre o meu me pareceu um tanto quanto incômodo. E
ele fungava no meu ouvido e aquilo me incomodou um pouco.
Sem contar a dor, a sujeira e o sentimento de perda de um hímen
que estava lá quietinho, sem incomodar ninguém e que, de
repente, se foi.
Mas seja lá como for, eu estava apaixonada por aquele
homem. Fiquei deitada no peito dele, olhando bem de perto o seu
rosto másculo.
– Eu sou seu tio – respondeu ele, quando lhe revelei o meu
sentimento.
– Mais ou menos tio, na verdade seu irmão não é meu pai de
verdade.
Ele ignorou o que eu disse, parecia pensar em outras coisas.
– Tenho trinta e seis anos, completados no mês passado.
Tenho idade para ser seu pai.
“E eu para ser sua amante”, fiquei com vontade de dizer, mas
seria louca se dissesse isso, então:
– Isso não importa.
– Se seu pai descobrir, vai sobrar para nós dois.
– Falando nisso, daqui a pouco eles chegam.
Ao ouvir minhas palavras ele deu um salto, pegou sua roupa e
foi para o banheiro. Tratei de arrumar a bagunça no quarto, abrir
a janela para o ar entrar. Depois que eu tomei banho, ajeitei tudo,
descemos para a sala e ficamos conversando.
– Você parece ter problemas com seu pai.
– Um pouco – respondi, disposta a abrir o jogo, falar tudo o
que eu sentia, afinal, ele se tornara o meu homem, aquele
que pela primeira vez me conhecera por completo. – Ele não é o
que aparenta.
– Como assim? – perguntou tio Marcos.
– Ele é louco. Ele me espanca, fica me olhando de um jeito...
– Que jeito?
– Acho que ele sente vontade de transar comigo – senti asco
ao dizer aquilo. Sempre imaginara isso, mas ao dizer, aquilo soou
pesado aos meus ouvidos.
– Deve ser impressão sua.
– Pode ser, mas ele me maltrata muito, me persegue, me faz
sofrer.
– E sua mãe?
– Ela não sabe de nada. Nem quero que ela saiba, ela tem
câncer, você sabia?
– Sabia. Ele faz isso com a sua irmã?
– Não. Com ela é diferente. Parece que ele a vê como uma
filha de verdade, quanto a mim...
– Quer que eu fale com ele?
– Claro que não! – exclamei, achando um absurdo o que ele
acabara de dizer. – Ele não deve saber que conversamos sobre
isso.
– Acho que ele não deve saber o que aconteceu entre nós.
Ninguém deve saber. Tenho negócios com seu pai, estamos
ganhando um bom dinheiro, não quero que isso nos prejudique –
falou tio Marcos, deixando claro que estava apenas blefando
quando disse aquilo.
– Ninguém vai saber, pode ficar tranquilo – falei com toda a
sobriedade do mundo.
– Mas é muito sério o que você me falou. Não é impressão
sua?
– Queria que fosse impressão – ergui as pernas e mostrei as
marcas das pauladas. – Tenho ódio dele, queria que ele
morresse.
Tio Marcos ficou me olhando. Parecia pensativo. Eu ia
perguntar que olhar era aquele, antes mesmo que fizesse a
pergunta, ele respondeu:
– Cuidado, menina, os sonhos às vezes se tornam realidade.
Ia pedir para que ele me explicasse melhor aquela afirmação,
mas o barulho da garagem abrindo nos chamou a atenção para
eles que chegavam.
Papai foi o primeiro que entrou. Cumprimentou tio Marcos com
certa reserva. Parecia desconfiado. Enquanto mamãe e Aline o
cumprimentavam, papai foi até o bar, viu a garrafa de uísque
pouco acima da metade.
– Quem bebeu uísque? – perguntou ele, olhando feio para
mim.
– Eu – respondeu tio Marcos mentindo, ele sequer tocara na
garrafa. – Desculpa, mano, mas não resisti ao ver este doze
anos. Tenho um em casa que comprei na Escócia, quando voltar
aqui, eu prometo lhe trazer.
Papai não disse nada. Não sei se acreditou, ele parecia um
felino, sentia o cheiro de coisa errada no ar.
– Está precisando de alguma coisa, Marcos? Você costuma
ligar quando vem aqui.
Ele ficou sem graça, não esperava que papai falasse desse
jeito. Ainda bem que ele era esperto e tinha sempre uma resposta
na ponta da língua.
– Mas eu liguei, falei com Laura, ela disse que vocês deviam
estar chegando... eu acabei de chegar, tem o que, uns vinte
minutos que estou aqui. Preciso tratar de um assunto com você.
Na verdade, preciso de um conselho...
Ficaram conversando. Marcos era um ótimo ator, conseguiu
enganar papai direitinho. Mais tranquila, saí da sala e fui para a
cozinha. Mamãe preparava um tira-gosto para servir na sala,
senti vontade de abraçá-la. Caí nos seus braços. Ela largou o que
estava fazendo e alisou a minha cabeça.
– O que andou aprontando, minha filha? Você bebeu, não
bebeu?
– Só um pouco – respondi, tentando disfarçar.
– Se seu pai souber, ele vai ficar bravo.
“Ficar bravo?”, pensei, “se fosse só isso, tava bom...”
Quando anoiteceu, titio foi embora, despediu-se de todos e,
quando me abraçou, falou baixinho no meu ouvido:
– Me liga assim que der.
Fui para o meu quarto pôr a lição de casa em dia. Não
conseguia me concentrar. Não tinha a mínima ideia de como seria
na escola. Estava chegando o fim do ano e minhas notas
beiravam o ridículo.
A porta se abriu e vi papai entrando. Tentei imaginar o que ele
queria, o que havia descoberto. Fiquei olhando para o lençol da
cama para ver se havia alguma coisa que pudesse me denunciar.
Não vi nada. Ele sentou-se na cadeira da escrivaninha. Ficou me
olhando enquanto eu fingia que lia o livro.
– O que você aprontou?
– Nada – respondi, pensando se aquele homem era alguma
espécie de bruxo.
– O que o Marcos veio fazer aqui?
– Não sei, ele não te falou?
– Sabe, Laura – disse ele cruzando as pernas e se ajeitando
na cadeira –, eu tenho quarenta e cinco anos, já passei por cada
coisa que você nem imagina. Sou diretor de uma empresa onde
tem um monte de safados querendo me enganar, passar a perna,
me derrubar. E sabe por que eles não conseguem? Porque eu
tenho um dom, algo que Deus (ou o diabo) me deu, que foi saber
ler nos olhos das pessoas quando elas estão tramando ou
aprontando algo.
– O que tenho eu a ver com isso, papai? – questionei,
mordendo a ponta do lápis para disfarçar o meu nervosismo.
– Tem que os seus olhos não me enganam. Você aprontou
algo ou vai aprontar, tenho certeza disso. A presença do seu tio
aqui foi muito estranha. Ele tem meu celular, me ligou a semana
toda, por que não me ligou no celular dizendo que vinha? Por que
não chegou depois da gente? Chegou antes para ficar sozinho
com você e...
– Papai! – exclamei, tentando mostrar indignação.
– Você não me engana, menina, mas tome cuidado, eu vou
ficar na sua cola. Não apronte nada, não se envolva com o meu
irmão. Ele é perigoso, não presta, está lá, escrito nos olhos dele.
Você também não presta, está aí escrito nos seus olhos. Se
vocês dois se misturarem, coisa boa não vai acontecer, por isso
eu não vou deixar – levantou-se e foi saindo. Falou como um
profeta, como se soubesse de tudo o que acontecera e que iria
acontecer. Fiquei assustada. Antes de sair, segurando a porta, ele
virou-se para mim e concluiu: – Marcos adora menina novinha,
não vá se perder com ele. Você só vai transar depois de casar –
saiu e bateu a porta.

5.

Durante meses eu me encontrei com tio Marcos.


Definitivamente eu o amava. Não podia mais negar isso. Papai
fazia marcação cerrada. Eu conseguia me safar tendo como
aliada a sorte. Passei a matar aula e nos períodos da manhã nos
encontrávamos em um flat que ele alugou só para os nossos
encontros amorosos.
Não era sempre, claro. Não podíamos tornar os nossos
encontros uma rotina. Mas quando eles aconteciam, era sempre
um momento especial. Passei a confiar nele, a dizer-lhe coisas
que nunca tivera coragem de dizer a ninguém. Ele me fez voltar a
sonhar, a suportar os dias, a aguentar viver ao lado da minha
família, principalmente de papai.
Ele sempre me ouvia, era capaz de ficar horas me ouvindo,
passando a mão no meu cabelo e beijando o lóbulo da minha
orelha, passando a mão no meu corpo. Às vezes me fazia
perguntas sobre meu pai, sobre o dinheiro que ele tinha, quanto
ele ganhava etc. Respondia sempre o que sabia. Não escondia
nada dele.
Aline era a única que sabia que eu cabulava as aulas. Não
dizia nada porque ela, de vez em quando, fazia isso também. Só
que ela não imaginava o que eu fazia, com quem eu saía. Ela
bem que imaginava que havia um homem na jogada. Eu não dizia
nada. Era um segredo meu que eu levaria para o túmulo.
Tudo ia bem, até que um dia...
Sim, um dia, porque nada neste mundo fica encoberto, e um
dia a casa cai.
Exatamente no dia em que matei aula, Aline passou mal. Mal
mesmo, com uma cólica terrível que nem o médico que dava
plantão na escola conseguiu resolver. Ligaram para a minha
casa, mamãe não estava. Como segunda alternativa, ligaram
para papai no escritório. A primeira coisa que ele falou foi que
pedissem para que eu tomasse um táxi com ela e fosse ao
hospital do convênio. A resposta do pessoal da secretaria foi
categórica: “Procuramos por ela, mas ela não veio à escola hoje”.
Papai era muito prático nesses assuntos. Conseguiu localizar
mamãe e os dois foram para a escola. Mamãe preocupada com
Aline, papai “preocupado” comigo. Pressionada por ele, minha
adorada irmã deu com a língua nos dentes, disse que de vez em
quando eu matava aula, mas sempre antes do sinal eu chegava e
ficava lá fora esperando por ela.
Mamãe colocou Aline no carro e foram para o hospital. Papai
ficou me esperando.
Quando deu a hora, coloquei minha roupa, arrumei-me o mais
que pude, chequei meu rosto no espelho para ver se não tinha
nenhuma marca e saímos do flat.
– Quando vamos nos encontrar novamente? – perguntei,
passando a mão na perna dele enquanto ele dirigia.
– Não sei, vou ter que viajar. Estou com um problema.
– Que problema?
– Seu pai.
– O que tem ele?
– Esqueceu que temos negócios? Eu e seu pai somos sócios.

– E o que tem isso? – perguntei, fazendo um esforço enorme


para entender aonde ele queria chegar.
– Ele me entregou um dinheiro para mandar para fora do país,
só que eu acabei gastando o dinheiro, agora ele está me
cobrando.
– Que dinheiro é esse?
– Dinheiro sujo. Dinheiro que ele desviou da empresa. Ele
pediu para que eu abrisse uma conta na Suíça em nome da sua
mãe com esse dinheiro.
Olhei para ele. Não entendia desse negócio de dinheiro sujo,
Suíça, conta bancária... Para mim aquilo tudo era coisa que não
dizia respeito a minha personalidade.
– E o que você vai fazer?
– Não sei. Vou enrolar ele o máximo que puder.
– Se eu puder te ajudar em algum coisa...
Ele me deu um abraço, beijou a minha boca e falou:
– Acho que você pode.
– O quê?
– Me ajudar a ficar livre do seu pai.
Dei risada. Achei que ele estava brincando. Resolvi, então,
entrar na brincadeira.
– Cadê a arma? Dou um tiro no coração dele e ficamos livres
para sempre daquela praga.
Afastei-me dele, liguei o som e ficamos ouvindo a Legião
Urbana. Ele passou a gostar da banda, não sei se só para me
agradar, ou porque gostou mesmo. Acho que foi pelas duas
coisas.
Marcos não falou mais nada sobre papai. Saímos do flat,
entramos no carro e fomos para a escola. Ele parou o carro perto
da praça. Naquele dia a garoa tomava conta da manhã. Estava
tão bom dentro do carro que não desci. Olhei no relógio e ainda
faltavam dez minutos para dar o sinal.
– Já estou com saudade – falei, deitando no ombro dele.
– Vamos dar um tempo de algumas semanas, depois a gente
se encontra.
– Fica tranquilo, você vai conseguir arrumar o dinheiro.
Ele ia responder, quando um barulho forte no vidro fez a gente
se assustar. Quando olhei, vi a cara de papai espumando de raiva
do lado de fora. Tio Marcos abriu a porta e antes que ameaçasse
sair, foi arrancado do carro.
– Seu filho-da-mãe! O que você está fazendo com ela?
– Calma, mano, não é o que você está pensando – tentou
justificar tio Marcos.
Não deu nem tempo. Papai desferiu-lhe um soco no rosto que
ele caiu na calçada. Saí do carro desesperada, sem saber o que
fazer. A turma do deixa disso não demorou a chegar. Apareceu
gente de tudo quanto é lugar. Papai parecia um animal selvagem,
precisou de três homens para segurá-lo.
– Nunca mais chegue perto de minha filha. Não toque mais
nela! – berrou ele para que todos ouvissem.
Tudo isso aconteceu exatamente na saída da turma. Não sabia
onde colocar a cara. E falando em cara, ainda deu tempo de ver a
cara toda amassada, sangrando, do coitado do tio Marcos.
Pensei em ir lá ajudá-lo a se levantar, mas papai me segurou pelo
braço e, literalmente, arrastou-me dali.
Jogou-me dentro do carro, deu a volta, entrou e saiu em
disparada. Não disse nada durante todo o percurso. Ficava só
ouvindo a respiração ofegante dele. O celular tocou.
– Oi querida, como está Aline?... Ótimo... Laura está aqui
comigo. Não aconteceu nada, isso são coisas típicas de
adolescentes. Nada que eu não possa dar um jeito. Que horas
você volta?... Só à tarde... Aline vai ficar tomando soro, tudo bem,
não se preocupe, cuide de tudo aí que eu cuido de tudo aqui... –
disse isso me olhando.
Como era dissimulado. Ali no telefone, ao falar com mamãe,
ele parecia paciente e tranquilo, capaz de entender todas as
fraquezas humanas. Sua expressão até mudou enquanto falava
com ela. Chegou até a sorrir. Quando desligou, seu rosto trancou
e ele voltou ao seu normal. Não havia outra palavra para definir a
minha situação: fodida. Eu estava FO-DI-DA!
Chegamos em casa. Ele desceu do carro e foi em direção à
porta da sala. Fiquei no carro. Sentia um pavor, minhas mãos
suavam frio. Ele virou-se e gritou para que eu saísse do carro.
Com muito cuidado fui saindo. Quando estava em pé, senti algo
quente escorrer pela minha perna. Vendo que eu não andava, ele
veio em minha direção.
– O que está acontecendo? Por que você não anda!? –
berrou na minha cara.
– Acho que molhei as calças.
Ele sorriu, me abraçou e foi me arrastando gentilmente para
dentro. A empregada veio nos receber, parecia preocupada.
Papai tranquilizou-a, pediu para que ela fosse cuidar dos seus
afazeres e que não atrapalhasse. A empregada conhecia bem
papai e tratou de obedecer.
– Não sei por que você está com tanto medo, Laura, está
tremendo. Me diga uma coisa, você acha que há motivo para ter
medo de mim? Diga? – indagou ele enquanto subíamos a
escada.
– Você bate forte – respondi, com a voz trêmula.
– Hoje eu não vou te bater, nós só vamos conversar. Podemos
conversar, não podemos? – balancei a cabeça dizendo que sim. –
Então, vamos conversar como duas pessoas civilizadas, como
pai e filha... não, como amigos, já que você nunca me considerou
como um pai mesmo – ele abriu a porta do meu quarto e
entramos. Fiquei sem saber o que fazer. Estava perdida no meu
próprio espaço, no pequeno universo que era o meu quarto. – Vá
trocar de roupa, você está toda molhada – ordenou ele. Não
esperei duas vezes, fui até o armário, peguei uma muda de
roupa; a primeira que achei e rumei para o banheiro. – Aonde
você vai?
– Ao banheiro, o senhor não pediu para que tirasse essa
roupa?
Ele ficou desconcertado, acho que esperava que eu tirasse a
roupa ali, na frente dele. Sem saber o que dizer, ele sentou-se na
minha cama e tentou se controlar. Aproveitei e corri para o
banheiro. Tranquei a porta. Sentia uma dor no coração que
parecia me consumir. Tomei um banho rápido, vesti-me; estava
com medo de que ele batesse na porta. Se eu pudesse sumir,
sumiria; como não podia, melhor mesmo era enfrentar a
situação.
Abri a porta e entrei no quarto. Ele permanecia sentado no
mesmo lugar, seus olhos piscavam sem parar. Dava-me a
impressão de que ele tentava concatenar as ideias, se controlar,
senão acabaria me matando.
– O que eu faço com você?
– O de sempre, me bate – respondi com a voz quase sumindo.
– Você me surpreende a cada dia que passa, Laura – disse ele
se levantando e se aproximando de mim. Ficamos os dois frente
a frente. – Agora age como mulher de malandro, resignada,
pronta para levar porrada. Não, hoje não. Hoje eu não vou te
bater, mesmo porque, acho que não resolve nada, quanto mais
você apanha, mais desavergonhada você fica.
– Eu não fiz nada, juro.
– Não vá me dizer que você não se entregou a ele?
– Não – menti, disposta a sustentar isso eternamente.
– Não minta pra mim! – exclamou, segurando-me pelo braço.
Fiquei cara a cara com ele. Sentia seu hálito e tive a impressão
de que não estava diante de um homem, mas sim diante de uma
fera faminta.
– Juro por Deus, não fizemos nada.
– Então vai me dizer que hoje foi a primeira vez que vocês se
encontraram.
– Já nos encontramos antes, mas somos só amigos, nunca
aconteceu nada entre nós.
– Não?
– Não – respondi tremendo dos pés à cabeça e sentindo meus
braços doerem pela força de seus dedos.
Ele ficou me olhando. Seus olhos me olhavam tão
profundamente que pareciam me ver por dentro. Naquele
momento eu só queria me proteger. Não queria apanhar, nem que
ele me tocasse. Ficaria louca se isso acontecesse.
– Sabe o que eu descobri, Laura? Que eu tenho nojo de você.
Que uma menina como você, que se entrega a um homem como
aquele, não pode valer muita coisa. Você não tem futuro, você
não é nada – disse isso e, com cara de asco, empurrou-me sobre
a cama e esfregou as mãos como se as lavasse. – Pode ficar
tranquila, eu nunca mais vou tocar em você. Pra mim você
morreu.
Deu as costas e saiu batendo a porta. Aquilo doeu mais do que
as pancadas que ele costumava me dar. Senti-me a pior das
piores, comecei a chorar, não consegui me controlar e gritei:
– Pois quem vai morrer é você!
6.

“Tenho andado distraída,


Impaciente e indecisa
E ainda estou confusa...
Com a música do Renato Russo na cabeça, um mês depois
fugi. Podia até dizer que naquela noite, enquanto todos dormiam,
eu saí de casa sem lenço, sem documento, igual àquela música
do Caetano que mamãe vivia ouvindo.
Não suportava mais ficar naquela casa, prisioneira de uma
situação de que eu não tinha como sair, a não ser fugindo. Desde
aquele fatídico dia, mamãe passou a nos levar e trazer da escola;
para desespero e ódio de Aline.
– Viu o que você fez?
– Eu não fiz nada, foi você que inventou de ficar doente logo
no dia que resolvi matar aula.
– Irresponsável, matar aula para sair com o nosso tio. Você
não tem vergonha na cara? Viu o vexame que você fez o papai
passar? Agora todo mundo vai ficar falando nas nossas costas,
dando risada da gente.
Estávamos no intervalo, tomando lanche e andando pela
quadra. Fiquei calada, não havia o que dizer. No fundo, ela
estava certa.
Quanto ao meu romance com Marcos, literalmente acabou.
Nunca mais liguei para ele, nem ele apareceu em casa. Mamãe
achou um absurdo, mas eu jurei de pés juntos que não havia
acontecido nada entre nós. Ela só acreditou porque papai disse
que acreditava em mim.
Aquela casa aos poucos foi se tornando pequena demais para
mim e papai. Depois do que aconteceu, ele se acalmou, deixou-
me um pouco de lado, mas tinha uma certa impressão de que
aquilo era apenas uma questão de tempo, que logo ele voltaria a
me infernizar de novo.
Na noite da minha fuga, eu sonhei com Renato Russo pedindo
para que eu fosse ao cemitério onde ele fora cremado e deixasse
uma flor em qualquer lugar. Que depois disso eu seria
eternamente feliz. Era o que eu mais queria: ser feliz.
Enquanto todos dormiam, peguei minha mochila, um pouco de
dinheiro que havia juntado e ganhei a rua. Não havia ônibus,
passava das duas da madrugada. Peguei um táxi que me levou
até a rodoviária.
O primeiro ônibus para o Rio de Janeiro partia logo ao
amanhecer. Comprei passagem e fiquei sentada no banco frio e
duro da plataforma de embarque até dar a hora. Não conseguia
pensar em nada que não fosse estar no cemitério onde ele fora
cremado. Precisava estar lá, quem sabe ele aparecesse para
mim e me levasse para bem longe, para um lugar onde os anjos
são felizes.
Finalmente embarquei. A viagem parecia interminável. A
estrada custava a terminar. Não imaginava que o Rio de Janeiro
fosse tão longe e tão perto de lugar nenhum. Desci do ônibus
com a sensação de que estava me perdendo numa selva
enigmática, bonita e indiferente a todos os meus sofrimentos.
Sentia fome, tratei de comer um pastel daqueles de barraca. Não
podia perder tempo. Também não tinha dinheiro para ficar
gastando à vontade.
Fui colhendo informações até conseguir chegar ao cemitério. O
calor era de torrar os miolos. Passava, e muito, do meio-dia.
Comprei uma rosa em botão e entrei no cemitério com suas
lápides centenárias. Fiquei vagando não sei por quanto tempo por
ali. Quando me cansei, deixei a rosa em um túmulo qualquer.
Lamentei por ele não ter um túmulo em que eu pudesse me
ajoelhar, rezar e, quem sabe, derramar algumas lágrimas.
Depois voltei para o centro da cidade com a leve sensação de
ter cumprido minha missão. Falavam tanto das praias da cidade;
e eu já vira tanto pela televisão, que preferi ficar por ali e não pôr
os pés na areia.
Começou a escurecer. Uma dúvida pairava no ar: O que fazer?
Para onde ir? Estava cansada, precisando de um bom banho e
de uma noite de sono. Fiquei vagando pelas ruas antigas sem
prestar atenção em nada a minha volta.
– Tá procurando alguma coisa, garota?
Assustei-me e olhei para o lado. Um garoto negro estava lá,
pouco mais alto do que eu, porém mais jovem. Usava uma
bermuda de surfista, camiseta e um tênis, tudo muito surrado e
sujo.
– Estou procurando um lugar para dormir – respondi, tentando
não dar muita confiança.
– Isso é mole, ali na frente tem uns hotel à pampa.
Eu não entendia o que eram esses “hotel à pampa”, então
tentei entender:
– Não tenho muita grana, é só para passar uma noite.
– Mas se tu não tem grana, melhor mesmo é passá a noite na
rua, como eu.
Olhei para ele, parecia-me uma caricatura de garoto. Seu
sorriso era largo e seus dentes extremamente brancos.
– Você mora na rua?
– Ham, ham! – murmurou ele, sem muita cerimônia. – E tu não
é daqui, estou certo?
– Certíssimo.
– Pois nem precisa dizê, pelo seu jeito de falar, já sei da onde
tu vem.
“Melhor”, pensei comigo, “assim não preciso ficar dando
explicações.”
Ele acabou me contando um pouco da sua vida, que nasceu
no morro e largou a família para viver nas praias e nas praças.
Gostei daquele menino, do jeito que ele falava, do jeito que sorria,
do jeito que andava quase saltitando com suas pernas magras.
– Você não me disse seu nome.
– E tu não disse o seu.
– Laura.
– Pelé.
Ele me estendeu a mão e ficou segurando a minha por alguns
segundos. Fiquei imaginando o que ele poderia querer comigo.
– Pelé é apelido, não é mesmo?
– É. Sabe por que eles me chamam de Pelé? Porque eu bato o
maió bolão – disse, erguendo o pé esquerdo como se estivesse
fazendo embaixada com uma bola invisível.
Ao fazer isso, a sola se abriu como se o tênis tivesse soltado
uma enorme gargalhada. Ao perceber isso ele ficou sem graça e
tentou disfarçar.
– Mas você tem um nome, não tem?
– Tenho, mas prefiro Pelé. Vai ficá muito tempo aqui?
– Amanhã cedo eu vou embora.
Ele parecia querer dizer algo e buscava coragem para fazê-lo.
Finalmente disse.
– Escuta, eu tenho uns baguio aqui do bom, não tá
interessada? Coisa fina, é viagem garantida – ele olhou para os
lados para ter a certeza de que ninguém nos ouvia. – Tá
interessada?
– Que tipo de bagulho?
– Farinha, de primeira, direto da Colômbia.
– Não tem fumo?
– Posso arrumá, mas essa aqui é de primeira, tu devia
exprimentar.
– Não tenho grana, deve ser caro.
– Cinquenta pilas – falou ele, tentando demonstrar que era um
grande negociante.
– Não tenho, fica pra próxima – falei, afastando-me dele.
Ele me segurou pelo braço, demonstrava não estar disposto a
perder a venda.
– Vamo fazê o seguinte, gostei de ti, podemo rachá a farinha,
meio a meio...
– Só posso dar dez.
– Fechado – concordou ele, segurando-me pelo braço.
– Para onde vamos? – perguntei, achando estranho o jeito
como ele me segurava pelo braço.
– Vou te apresentar a minha turma. Se quiser, pode ficar com a
gente essa noite.
– Quantos anos você tem? – perguntei para ele.
– Dezesseis.
– Mentira – afirmei.
– Quinze... – balancei a cabeça como se não
acreditasse. – Catorze... treze e não se fala mais
nisso.
Dei risada. Treze combinava mais com a cara de moleque que
ele tinha.
– Cadê sua família? – perguntei, enquanto tirava a mão dele
do meu braço.
– Por aí. Não sei deles não – falou, indo em direção a um
grupo de meninos e meninas que estavam sentados num banco
no meio da praça que, àquela hora, estava repleta de
transeuntes.
Quando ele se aproximou, todos olharam para mim. Alguns
fumavam, outros cheiravam cola.
– Gente nova no pedaço, Pelé? – falou uma garota morena,
corpo troncudo e cabelo despenteado. Fumava um cigarro que
não era de maconha.
– Essa é a Laura, acabei de conhecê, tá precisando de ajuda.
Todos se levantaram e ficaram me olhando. A garota me mediu
de cima a baixo.
– Tu veste uma beca de primeira, garota. É filhinha de papai?
Ia dizer algo, mas Pelé tomou a frente.
– Pô, Bilu, não vai começá a enchê o saco. Ela é minha amiga
e amigo a gente respeita, tu sabe disso.
Ela deu um trago no cigarro e jogou a bituca fora. Deixou claro
naquele gesto que não gostou de mim, que eu era uma intrusa
ali.
– E ela vai ficar aqui pra sempre com a gente? – perguntou
Bilu.
– Só hoje, ela não é da cidade, amanhã cai fora.
Bilu parecia ser a líder daquela turma, talvez pela sua idade e
pelo seu porte físico. Ela encarou Pelé e falou:
– Pois tu trata de dar o fora amanhã também, o Leco lá do
morro tá atrás de tu, quer o dinheiro do pó que ele disse que te
passou.
– Fodeu! – exclamou ele passando a mão no cabelo ralo. –
Mas amanhã eu arrumo o dinheiro. Eu ainda não consegui vendê
o pó.
– Pois trata de se virar, tu sabe que o malandro lá do morro
não gosta de dá viagem perdida.
Ela deu as costas e voltou para o meio da garotada. Pelé
abaixou a cabeça e ficou triste. Virou-se e foi andando pensativo.
Eu não tinha o que fazer, senão acompanhá-lo.
– É muita grana que você deve?
Ele não respondeu de imediato. Eu ia insistir, quando veio a
resposta.
– Se mete nisso não, garota. Tu não é daqui, não conhece a
barra pesada que é esse lugá.
Parou num banco que ficava mais afastado, logo embaixo de
uma árvore. Sentou-se. Estava acabrunhado. Aquele jeito de
moleque deu lugar ao jeito sombrio de quem estava em maus
lençóis.
– Passa os dez mangos – disse ele, estendendo-me a mão.
Enfiei a mão no bolso da calça e tirei uma nota toda amassada
que ele imediatamente pegou e tratou de tentar desamassá-la.
Depois que guardou a nota, tirou do bolso um pequeno embrulho
em papel alumínio. Sentei-me ao lado dele. Ele abriu o papel e
dentro pude ver um pó branco. Ele despejou o conteúdo ali
mesmo no banco de concreto, pegou uma lâmina de fazer barba
e começou a separar o pó e fazer duas fileiras. Eu o observava.
Ele tinha uma prática impressionante para um garoto tão novo.
Depois que preparou tudo direitinho, ele se levantou, bateu nos
bolsos e ficou olhando em volta, procurando por algo.
– O que você quer? – perguntei, curiosa.
– Uma caneta. Acho que perdi a minha. Tem uma caneta Bic,
aí?
Abri minha mochila, tirei uma caneta que vivia jogada lá no
fundo sem nenhuma utilidade. Entreguei para ele que retirou a
carga, jogando-a de lado. Entregou-me o tubinho. Eu segurei o
tubinho sem saber ao certo o que fazer. Fiquei olhando as
pessoas passarem por nós. Ali não era lugar de fazer aquilo. Na
verdade, eu não sabia o que fazer. Ele percebeu e pegou o
tubinho da minha mão, colocou-o no nariz, aproximou-o da linha
de pó e aspirou fundo. A carreira de pó desapareceu. Ele se
levantou passando a mão no nariz e me passou o tubinho. Peguei
da mão dele e fiz exatamente igual com a outra fileira de pó. Senti
uma ardência forte no nariz para, depois, sentir meu corpo
alucinadamente elétrico. Uma sensação diferente tomou conta de
mim. Aquilo que me doía por dentro, que dilacerava meu coração
simplesmente desapareceu. Era como se todos os problemas do
mundo sumissem e eu, novamente, voltasse a sonhar.
Ficamos os dois sentados no banco vendo as estrelas no céu.
Elas pareciam correr de um lado para outro. Ríamos de nada e
das pessoas que passavam por nós e que, naquele momento,
eram apenas vultos fantasmagóricos.
Ficamos assim por um tempo até ouvirmos o barulho de algo
vindo em nossa direção. Olhamos e vimos uma bola de futebol,
que veio repousar bem ao lado do pé direito de Pelé.
– Anda Pelé, vamos bater uma bolinha – gritou o garoto, que
jogara a bola para ele.
Pelé se levantou, pegou a bola e ia se preparar para fazer
embaixada quando o tênis novamente lhe sorriu. Notei que ele
estava envergonhado. Ele deu um chute na bola e sentou-se
desanimado.
– O que foi, desistiu de jogar bola? Cadê o grande Pelé? –
perguntei, olhando para o rosto desanimado dele. Ele mexia na
sola do tênis tentando fechá-la. – Seu tênis tá ferrado, cara –
falei, morrendo de pena dele. – Acho que temos o mesmo
tamanho de pé, quer o meu tênis emprestado?
Ele olhou o meu, viu que era de marca, levantou-se, respirou
fundo como se fosse se impor:
– Qualé, acha que eu vou usá um tênis de mulher, cor-de-rosa
ainda por cima? Eu vou é jogá descalço mesmo – tirou o tênis e
saiu correndo.
Cor-de-rosa. Qual o problema se ele usasse um tênis com
detalhe cor-de-rosa?
Fiquei sentada no banco observando-os. Eles jogavam bola ali
mesmo no meio da praça. Deviam ser umas dez horas da noite e
a praça começava a ficar vazia. Disputavam uma pelada, todos
jogando contra todos. Meninas e meninos misturados. Até eu fui
convidada para participar. Recusei. Nunca havia jogado futebol,
não seria naquela noite a minha estreia. Estavam todos felizes. E
aquele menino, o Pelé, jogava como se fosse um mestre.
Passava por um, passava por outro e marcava gol. Eu delirava e
fazia torcida. Eles pareciam anjos no céu, correndo de um lado
para outro. A noite parecia ser solidária com eles, dando-lhes
alegria para suportar o dia.
Depois todos se cansaram. Cada um foi para o seu canto. Uns
deitaram debaixo de árvores, outros em bancos e um grupo foi
para a porta da igreja que ficava do outro lado da rua. Fazia um
calor infernal. Eu já estava com a bunda doendo de ficar sentada
naquele banco frio e duro. Pelé chegou todo suado, cheiro forte
na roupa.
– Cara, você joga demais. Desse jeito você vai parar na
seleção – falei para ele, toda animada.
Ele não disse nada, sentou-se do meu lado e ficou quieto. Eu
ainda estava sob o efeito da droga. Ainda via as estrelas
saltitando no céu. Senti a respiração acelerada dele ao meu lado;
senti também a mão dele alisar a minha perna, depois ir subindo.
– Não quero, cara.
– Por quê? O que tá rolando? – perguntou ele, encostando a
cabeça no meu ombro.
– Estamos numa praça.
– E daí? A praça é nossa, nóis faiz o que quisé. A praça é da
gente.
Eu podia ser louca de tudo, mas jamais transaria com um
menino de rua ali em plena praça central. Mas sabia também que
se dissesse simplesmente não, poderia me complicar.
– Você tem camisinha?
– Pra que isso? Vamo transá assim memo.
– Não dá, mano – respondi, tentando ser a mais natural
possível. – Gostei de você, cara, por isso não quero te passar
nada de mal.
Ele, que estava pronto para dizer algo que me convencesse,
quando ouviu o que eu disse, mudou o tom de voz.
– Tu tá suja?
– Tô! Três caras já morreram. A Aids está me consumindo.
Ele arregalou os olhos, fez o sinal da cruz e demonstrou certa
repugnância.
– Aids?
– Aids. Tô morrendo cara, melhor você se controlar e não
correr risco.
Ele pensou um pouco, tentou resistir, mas acabou cedendo.
– Mina, como tu foi deixá acontecê isso?
– Loucura, cara. A gente faz e pensa depois.
– Por isso se fode... – concluiu ele, demonstrando pena de
mim. – Eu tomo o maió cuidado, mano. Aqui tem um monte de
mina que tá suja. Eu não transo com elas não, nem de
camisinha... – olhou-me de cima a baixo. – Mas com tu eu
transava. Vou arrumá umas camisinhas e...
Ele ia se levantando, segurei-lhe o braço.
– Esquenta não, mano. Deixa pra próxima. Eu tô mesmo com
vontade de comer – enfiei a mão no bolso e tirei outra nota de
dez. – Vai lá buscar comida pra gente.
Ele olhou para mim, para a minha mão com o dinheiro.
Hesitou, mas acabou pegando.
– Gostei de ti, mina. Gostei de ti mesmo – disse e foi saindo.
Parou quando se lembrou de que eu podia, sozinha ali, estar
correndo algum perigo. Então gritou bem alto para que todos
ouvissem: – Esta aqui é a minha gata, ninguém toca nela não. Eu
vou saí um pouquinho e o filho-da-puta que fizé uma gracinha
com ela, vai tê aqui com o Pelé, o rei da bola.
Todos ouviram, ninguém disse nada. Dei risada. Apesar de
tudo, ele não deixava de ser um garoto boboca que acreditava
em tudo que lhe diziam. Não sei como tive coragem de inventar
aquilo. Só na minha cabeça mesmo.
Meia hora depois ele voltava com dois pães com mortadela e
dois refrigerantes. Eu estava morrendo de fome. O pão parecia
amanhecido, a mortadela rançosa. Mesmo assim, comi como se
estivesse numa lanchonete americana, para depois ficar
empachada, com o estômago queimando e arrotando mortadela.
As horas foram passando e o sono chegando. Pelé deitou-se
no chão ao lado do banco que só cabia um, no caso, eu. Olhei
para ele e lembrei-me do Fred deitado ao meu lado na edícula.
Naquele momento tive a impressão de que o ser humano, na
sociedade capitalista, não valia muito mais do que um cachorro.
Eu bem que tentava dormir, mas a minha barriga não deixava.
Precisava usar o banheiro. Mas onde havia um banheiro que eu
pudesse usar?
– Pelé – chamei, cutucando-o. Ele tinha o sono pesado, não
sei como conseguia dormir naquele chão duro e frio.
– O que foi? – perguntou, virando-se para mim.
– Preciso usar o banheiro.
– O que tu vai fazê? – perguntou ele, ainda sonolento.
– Tudo o que você pode imaginar.
Ele finalmente despertou, levantou-se e ficou do meu lado,
sentado com cara de sono.
– Aqui nóis não tem luxo não, mina. Se você quisé, vai tê que ir
ali atrais da moita.
Olhei e vi um canteiro de rosas que fazia um cercado em torno
de um gramado. Pensei em protestar, dizer que jamais iria ali,
que sairia para procurar um banheiro... mas a minha barriga
roncou feio. Ele arregalou os olhos.
– Iiiiii! A coisa tá feia, se eu fosse tu, corria rapidinho lá –
meteu a mão no bolso e tirou um pedaço de papel higiênico
dobrado em quatro. – Toma, tu vai precisá.

7.

Passei a noite em claro. Vi o sol nascer por detrás das árvores


e pude ouvir o barulho do mar que parecia despertar a cidade. Eu
podia ter ido embora ontem mesmo. Não precisava ter passado a
noite em um banco de praça. Mas precisava ganhar tempo para
poder decidir o que fazer da vida. Pensei que ao sair de casa um
caminho se abriria para mim e que nunca mais voltaria. Este
caminho não apareceu e eu não sabia o que fazer, nem para
onde ir. De uma coisa eu tinha certeza, não podia ficar vivendo ali
com aqueles garotos.
Meu corpo doía; peguei minha mochila e me preparei para ir
embora. Pelé dormia enrolado numa blusa suja e fedida.
– Pelé, acorda, estou indo embora – falei, dando um cutucão
nele. – Acorda, estou indo embora.
Ele deu um salto e se pôs de pé. Olhou em volta e viu que toda
a garotada dormia, mesmo com o sol batendo na cara deles.
– O que aconteceu?
– Estou indo embora.
– Vai voltá pra sua casa? – perguntou ele indo até o canteiro
de rosas e, sem a menor cerimônia, começou a fazer xixi de
costas para mim.
– Acho que vou. Onde fica a rodoviária?
– Eu te levo lá.
Andamos alguns quarteirões e chegamos à rodoviária.
Comprei passagem e o ônibus sairia dali a uma hora. Sobrou um
pouco de dinheiro, compramos um lanche e ficamos comendo.
Gostei daquele garoto, do jeito que ele jogava bola, do jeito que
ele falava aquele português típico de quem não teve a
oportunidade de ir à escola. Fiquei pensando em quantos garotos
como ele viviam pelas ruas. Se aquilo me serviu de consolo eu
não sei, apenas descobri que não era a única fodida do mundo.
– Posso te fazer uma pergunta?
– Manda.
– Como você vai pagar o dinheiro pro cara? Aqueles dez
mangos dão pra pagar? – perguntei, sabendo que ele não
gostava de falar daquele assunto.
– Dá nada. Devo uma grana preta pro filho-da-puta. Acho que
vô tê que fugi daqui, senão ele me mata.
– Quer ir comigo? – perguntei, já imaginando a sua resposta.
– Eu? I pra sua casa? Olha pra mim, mina: preto, moleque de
rua, cara de bandido... seu pai me mata.
– Acho que ele me mata antes. Já tô até imaginando a cara
dele quando eu chegar em casa.
Pelé terminava de comer o seu lanche, sua mão encardida
estava toda cheia de gordura. Ele tratou de limpá-la na bermuda
mais suja ainda e falou:
– Não vai pra casa não, vai pra outro canto. Se o seu pai é
bravo assim, melhor continuar fugindo.
“Fugir de quem? E para onde?”, pensei.
– Acho que não adianta fugir, melhor mesmo é enfrentar a
situação – falei jogando o resto de sanduíche na lata de lixo.
Olhei no relógio e faltavam poucos minutos para o ônibus partir.
Levantei-me e fiquei de frente para ele. – Tá na hora.
Ele se levantou, encarou-me e não soube o que dizer. Mas
seus olhos me diziam tudo, tudo o que o seu curto linguajar não
conseguia. De uma forma ou de outra eu estava grata àquele
garoto. Enfiei a mão no bolso e tirei o resto de dinheiro que tinha.
Separei uns trocados para mim e lhe entreguei o resto. Ele
hesitou em pegar.
– Pra que isso, meu? Acho que tu precisa mais que eu.
– Fica Pelé, intera pra poder pagar o cara. Não vai morrer de
bobeira. Eu tô indo pra casa, não vou precisar – ele pegou o
dinheiro, mexeu nas notas sem contar. Eu sabia que aquilo não
dava para nada. Então eu tirei o relógio do pulso e lhe entreguei.
– Mas o que tu tá fazendo? – indagou ele, arregalando os
olhos.
– Esse relógio vale muito dinheiro, ganhei de presente de
aniversário da minha mãe, mas quer saber, eu não gosto dele.
Entrega pro cara e paga a sua dívida.
Ele estava admirado, não sei se pela minha atitude ou se pela
beleza do relógio.
– Não posso ficá – disse ele, estendendo o relógio para mim. –
Se a polícia me pega com esse bagulho, vai pensá que eu roubei.
Dei um sorriso e passei a mão no rosto liso dele. Era um bom
menino, pena que estava fadado a morrer menino.
Dei as costas e fui para a ala de embarque. Não olhei para trás
para ver se ele me seguia, nem que fosse com os olhos.
Entreguei a passagem temendo que o motorista pedisse minha
identidade. O tumulto do embarque era tanto que ele sequer
olhou para o meu rosto. Assim embarquei sem sequer olhar pela
janela. Não queria mais ver a cara daquele menino chamado
Pelé, que jogava bola como o ídolo e vivia jogado nas ruas do Rio
de Janeiro.
Dessa forma voltei para casa. Tinha a chave do portão. Abri e
entrei. Fred veio latindo denunciando a minha presença. Primeiro
foi a empregada, depois mamãe, Aline e papai, que parou na
minha frente e me deu um soco na boca que me fez cair no chão.
Era a primeira vez que ele me batia na frente de todos.
Espumava feito cachorro louco. Ia me bater mais quando me pus
de pé. Mamãe segurou-o pelo braço, apesar de toda a sua
fragilidade.
– Não toque na menina! Não faça isso com ela.
Correu para mim e me abraçou. Aline também veio chorando.
Ele se deu conta da bobagem que fizera. Era a primeira vez que
ele mostrava sua verdadeira face para mamãe. Para se redimir e
mostrar o quão gentil era, começou a chorar e me abraçou
também. Ficamos todos grudados, chorando; e eu com uma leve
vontade de matá-lo, enquanto sentia o inchaço e um dente mole
na boca.
Depois dos abraços, foi a hora dos questionamentos. Todos
queriam saber por onde eu andara. Eu demonstrava que não
estava nem um pouco com vontade de falar.
– Então vai tomar um banho, minha filha, depois conversamos
– falou mamãe me abrindo a porta da casa.
– Vai mesmo, você está mais fedida do que gambá – brincou
Aline, falando a verdade.
À noite mamãe veio falar comigo. Eu estava deitada
ouvindo Legião Urbana e com meu diário e caneta nas mãos.
Estava tentando escrever para ver se matava o tempo. Ela bateu
na porta, que estava trancada. Insistiu, com força, até eu
conseguir ouvir. Levantei-me e fui abrir com todo o medo do
mundo que fosse aquela visita que eu já esperava. Não ia abrir,
não ia permitir que ele me punisse. Estava disposta a gritar,
berrar, acordar o mundo.
– Quem é?
– Sou eu, filha – respondeu mamãe.
Abri a porta, confesso que fiquei surpresa com a presença dela
no meu quarto. Mamãe estava tão envolvida na luta contra o
câncer que não tinha mais tempo para nada. Não me lembro da
última vez que ela entrou no meu quarto. Tirei o fone de ouvido e
fiquei observando aquela mulher de olhar triste, falar macio,
olhando o meu quarto como se fosse a primeira vez, enquanto
buscava o que dizer. Mamãe nunca foi boa com as palavras, tinha
muita dificuldade em se expressar.
Eu sabia que ela era capaz de ficar ali por minutos sem dizer
nada, esperando que eu começasse a dizer e foi o que eu fiz:
– Mamãe, eu...
Ela sentou-se na beirada da cama. Ergueu a mão como se me
pedindo silêncio. Não deixou que eu terminasse, bateu com a
mão no colchão do lado dela.
– Sente-se aqui, minha filha. Vamos conversar – sentei-me ao
lado dela, coloquei a cabeça no seu ombro. Eu a amava mais do
que tudo no mundo. Precisava da ajuda dela, mas ela não podia
ajudar a si mesma, como poderia me ajudar? – Sabe, filha, a
mamãe está muito doente, não tenho muito tempo de vida...
– Não diga isso – interrompi a fala dela, preparando-me para
chorar.
– Não chore. Não vai resolver você chorar, não vai mudar
nada, entendeu? Eu sei de tudo que você está passando. Em
parte, eu tenho culpa. Eu sei que abandonei você e a sua irmã,
não fui uma boa mãe. Eu queria entender o que se passa na
cabeça de uma jovem como você, sentir um pouco o que você
sente para poder explicar a mim mesma o que leva uma garota a
fugir de casa, a fazer as coisas que você faz. Se eu pudesse te
ajudar, minha filha, juro que faria qualquer coisa para que você
pudesse ser feliz. Por que não me fala o que está sentindo, o que
você deseja para o seu futuro... me diga por que você é assim?
Eu podia dizer um monte de coisas. Podia explicar em poucas
palavras todas as dúvidas sobre mim que atormentavam a
cabeça dela. Mas será que resolveria algo? Será que ela
acreditaria no que eu dissesse? Se fui espancada dentro de casa,
quase violentada no meu próprio quarto e ela nunca teve olhos
para ver, será que teria ouvidos para ouvir? Melhor mesmo era
ficar calada e ouvir os seus lamentos e suas indagações.
A porta se abriu num relance. Papai entrou como sempre fazia,
com ar de dominador. Por puro impulso, encolhi-me toda tentando
me proteger. Esqueci, por instantes, que estava do lado de
mamãe. Ele ficou sem graça ao vê-la. Não esperava encontrá-la
ali.
Papai sabia disfarçar como ninguém. Olhou para mim, depois
para mamãe e sorriu.
– Querida, estava te procurando, não está na hora de você
tomar o seu remédio e dormir?
– Estou aqui conversando com Laura.
– Está tarde, deixa para conversar com ela depois. Mais tarde
eu venho conversar com ela.
Tremi ao ouvi-lo falar assim. Mamãe percebeu, levantou-se e o
encarou:
– Deixe a menina em paz. Você não vai conversar nada com
ela.
– Mas o que está acontecendo? Como não posso conversar
com ela? Eu sou o pai e... – fuzilou-me com os olhos e disparou:
– O que você andou falando para a sua mãe?
– Eu não disse nada – respondi, afastando-me e colocando a
mão na cabeça. Não queria apanhar, de novo não.
– Deixe a menina em paz – berrou mamãe, como se disposta a
tomar uma atitude.
– Era só o que me faltava, você ficar contra mim para defender
essa vadia – gritou ele, completamente fora de si.
– Não fale assim da minha filha. Ela não falou nada, mas eu
não sou burra. Está acontecendo alguma coisa nesta casa e eu
vou descobrir – falou mamãe, com ar de ameaça e pondo-se de
pé.
Ele rodopiou como se tentando buscar seu autocontrole.
– O que você quer dizer? Que eu fiz alguma coisa com ela?
Mamãe me olhou como se buscando uma resposta nos meus
olhos.
– Não sei, mas de um tempo pra cá tenho notado que ela anda
com muito medo de você.
– Meu Deus do céu! Eu nunca encostei a mão nessa menina –
olhou para mamãe que o fitava. – Quer dizer, hoje eu perdi a
cabeça... Mas que diabo! Ela não tem o direito de acabar com o
nosso sossego. Por que ela tem que agir assim?
– Eu espero que você, de fato, nunca tenha encostado a mão
nessa menina – ameaçou mamãe, colocando a mão em riste na
cara dele.
Ele ia dizer algo, ela deu as costas e saiu. Deixou a porta
escancarada como se dissesse para que ele saísse também.

8.

Os dias se passaram e eu nem percebi. De uma forma ou de


outra as coisas pareciam ter melhorado um pouco em casa.
Depois daquela conversa que parece ter se estendido até o
quarto deles, papai me deixou em paz. Quase não me dirigia a
palavra, mas buscava sempre uma oportunidade para ficar
próximo de mim ou me censurar.
Uma tarde eu estava no meu quarto estudando. Ouvi o
telefone tocar. Não atendi, nunca me ligavam, deixei que a
empregada ou mamãe o fizesse. Segundos depois ouvi passos
no corredor, uma batida leve na porta e a voz da empregada
dizendo:
– Telefone para você, Laura.
“Pra mim”, pensei, enquanto me esticava e pegava o telefone
na minha cabeceira.
– Alô?... Sim... É você?... Quanto tempo. Como teve coragem
de me ligar? Se papai descobre... Sei...
Era tio Marcos, disse que há dias criava coragem para me
ligar, que precisava falar comigo. Fazia muito tempo que eu não
falava com ele. Morria de saudade, por vezes pensei em ligar,
tentar marcar um encontro, mas não havia como. Agora ele
estava no telefone, dizendo que precisava falar comigo de
qualquer jeito. No começo achei aquilo tudo muito louco. Não
estava querendo arriscar minha tranquilidade em casa. Se
descobrissem, não sei o que poderia acontecer. Mas ele insistiu,
disse que tinha uma ideia que poderia resolver não só o meu
problema, como o dele também. Fiquei quieta, pensativa, por fim,
falei que ia pensar, arrumar um jeito e que depois ligaria para ele.
Passei o resto da tarde e quase toda a noite pensando num
jeito de me encontrar com ele. Não haveria como, se eu não
transgredisse as regras. De manhã estava na escola, à tarde em
casa sob a vigília de mamãe, à noite sob a batuta de papai. Dizer
que ia fazer trabalho na escola, nem pensar. Ir ao shopping, só
acompanhada. Eu virava na cama de um lado para outro, sem
conseguir pensar em nada que pudesse fazer com que eu me
encontrasse com ele e voltasse para casa sem ter que enfrentar a
fúria de papai.
Dormi com a cabeça fervilhando. Acordei com ela doendo e
com uma coragem que nunca tive antes. Resolvi, naquele
instante, assumir uma postura de quem é gente, que pensa, que
fala e que quer viver a vida em liberdade. Desci e todos estavam
tomando café. Dei um bom-dia geral, me sentei à mesa e me
servi. Estava me sentindo como gente grande.
– Mamãe, depois da aula eu não volto para casa, vou resolver
uns negócios – falei tranquilamente, passando manteiga num
pedaço de torrada.
Papai deu um murro na mesa. Ia dizer algo, mas mamãe olhou
para ele, que se aquietou.
– Onde você vai, querida?
– Preciso resolver umas coisas, mas eu volto logo, antes do
anoitecer.
– Você vai é se drogar! – berrou papai, possesso.
Eu não olhava para ele, olhava para mamãe.
– Não é nada disso, mamãe. Preciso resolver umas coisas.
– Vai se entregar para aquele canalha! – insistiu ele.
Aline parou de comer e ficou me observando, boquiaberta. Não
imaginava que eu fosse ter coragem para enfrentá-lo. Quanto a
mim, fingi que não tinha ouvido e continuei:
– É só hoje, mamãe.
– Aline vai com você, então – falou ela, tentando apaziguar.
– Quero ir sozinha.
Ele deu outro murro na mesa.
– Ela vai fugir.
– Cala a boca, Roberto! – berrou mamãe ainda mais alto.
Ele arregalou os olhos. Viu que a conversa definitivamente não
era com ele. Jogou o guardanapo na mesa, arrastou a cadeira de
forma brusca e se levantou.
– Acho que estou demais aqui. Eu só digo uma coisa, lavei as
mãos. Se acontecer alguma coisa, não serei o responsável – e
saiu.
– Por favor, mamãe, confie em mim. Vocês não podem nos
manter presas aqui dentro. Tem um mundo lá fora que nós
queremos conhecer. É um direito nosso. Eu não sou um objeto,
sou um ser humano, uma mulher...
Ela deu três tapinhas na minha mão como se tivesse entendido
tudo e que eu parasse de falar.
– Vai, minha filha. Pode ir, vá construir a sua felicidade. Só não
faça coisa errada, é só o que lhe peço.
Terminamos o café em silêncio. Depois eu e Aline nos
levantamos, nos despedimos dela e saímos. Fomos lá para a rua
esperar o ônibus da escola. Quando passei o portão, já na
calçada senti um puxão no braço. Era ele.
– Sua vadiazinha, se pensa que pode pôr as asinhas de fora,
está muito enganada.
– Solta ela, papai! – gritou Aline, segurando-o pelo braço.
Ele parou e pensou bem na besteira que estava fazendo.
Soltou-me, entrou no carro e saiu em disparada, cantando pneu.
– Você mexeu com os brios dele – falou Aline. – Menina, estou
admirada com a sua coragem. Eu tenho dezessete anos e não
me atrevo a falar desse jeito.
– Que jeito? Eu só pedi para mamãe...
– Eu sei, mas você passou por cima da autoridade dele.
Esqueceu que em casa ele é o todo-poderoso?
– Pra mim ele não é nada – falei, entrando no ônibus que
acabara de parar e abrir a porta.
Durante a viagem fomos quietas. Não estava com muita
vontade de conversar. Se desse trela, Aline ia querer saber o que
eu ia fazer após a aula e eu não ia contar, de jeito nenhum.
Quando chegamos, a primeira coisa que fiz foi me dirigir ao
orelhão que ficava perto da cantina. Os alunos iam passando por
mim enquanto eu discava os números. Não demorou e ele
atendeu.
– Sou eu... pensei... pode ser hoje depois da escola?... Certo,
a gente se encontra na rua de trás... Ninguém está sabendo, fica
tranquilo... esse é um cuidado que a gente vai ter que ter.... eu
vou tomar todo o cuidado do mundo... até mais tarde.
Coloquei o telefone no gancho e fui direto para a sala. A
primeira aula era a de Matemática, uma tortura logo cedo.
As horas se arrastaram e eu consultava o relógio de cinco em
cinco minutos. Finalmente deu o sinal e eu já estava com o
material todo arrumado. Fui a primeira a sair. Andava com uma
rapidez como se estivesse para perder um voo. Passei pelo
portão, entrei na rua estreita que dava para a rua de baixo. Parei
um pouco para observar se estava sendo seguida ou observada.
A rua estava deserta. Continuei caminhando e vi o carro de
Marcos na esquina. Parei mais um pouco para observar. Não
queria ser pega novamente em flagrante. A barra estava limpa.
Sendo assim, corri para ele que estava fora do carro me
aguardando. Abraçamo-nos e beijamo-nos como se a eternidade
nos separasse.
Entramos no carro. Ele fez caminho diferente do que
estávamos acostumados. Tudo bem que fazia meses que não
nos encontrávamos, mas não estávamos seguindo a nossa antiga
rota.
– Não vamos no flat?
– Não. Não tenho mais dinheiro para pagar o aluguel.
Seguimos para a periferia e depois pegamos uma estrada
vicinal quase deserta. Entramos num motel que ficava logo no
começo. Nunca tinha entrado num motel. Era só o que faltava
para completar as minhas andanças no reino do amor.
O quarto era todo espelhado, uma cama redonda no centro e,
logo subindo dois degraus, uma hidromassagem. Achei aquilo
tudo o máximo, só não pulei de alegria e saltitei sobre a cama
porque Marcos não estava com cara de bom amigo. Então achei
melhor me comportar. Coloquei meu material sobre uma mesa
perto da porta, abracei-o e fui beijando seu rosto, sua boca,
enquanto minhas mãos se encarregavam de despir-lhe as
roupas. Joguei-o na cama, tirei as minhas roupas e caí sobre ele
que estava apático, indiferente. Fiquei com a impressão de que
fazia amor comigo mesma. Mesmo assim foi maravilhoso estar
com ele ali. Depois, completamente exausta, deitei-me ao seu
lado e perguntei:
– O que está acontecendo, meu amor?
– Estou arruinado.
Ele me deu uma resposta que eu não entendia muito bem. O
que era estar arruinado se eu nunca soube da real situação
financeira dele?
– O que quer dizer estar arruinado?
– Sem dinheiro, sem nada. Estou quebrado. Andei investindo
errado o dinheiro que ganhei, agora seu pai está me cobrando o
dinheiro dele.
– O que você vai fazer? – perguntei, sem ter a mínima ideia do
que eu poderia fazer para ajudá-lo.
– Vou embora, vou voltar para os Estados Unidos.
Ergui a cabeça para ver melhor o seu rosto e notar se ele
falava sério.
– E eu?
– Se você quiser, pode vir comigo.
– Como? Você bem conhece o seu irmão, ele é capaz de rodar
o mundo e acabar com a gente.
– Tem razão – concordou ele, fechando os olhos e
demonstrando que estava tudo perdido. – Então está tudo
acabado entre nós.
– Não, não está, você disse que havia uma solução para o
nosso caso. Não foi por isso que você me chamou?
Ele se levantou, sentou-se na cama e ficou pensativo.
– Não sei, acho perigoso, você é nova demais, uma menina de
tudo.
– Vai se ferrar! – exclamei nervosa. – Acabei de transar com
você, como posso ser menina de tudo?
Ele me abraçou como se pedindo desculpas.
– Não é nada disso, paixão, é que eu tenho uma ideia para
podermos ficar juntos para sempre.
Fiquei de joelhos na cama e o abracei.
– Isso muito me interessa. O que vamos fazer para podermos
realizar este sonho?
Ele fez silêncio, olhou-me bem fundo nos olhos para ver a
minha reação e simplesmente falou:
– Vamos nos livrar do Roberto.
– Do papai? – falei, caindo de costas na cama. – Como? Só se
a gente contratasse uns bandidos para dar uns tiros nele.
– Você odeia meu irmão, não é verdade? – perguntou ele,
enquanto se levantava e pegava sua calça.
– Se odeio? Não, odiar é pouco. Tenho vontade de matá-lo.
Ele é louco, você sabia?
– Sabia. E acho que podemos usar essa sua vontade de
acabar com a vida dele – disse Marcos, tirando uma bala do
bolso da calça e me entregando.
– É pra mim?
– Experimenta.
– Não, obrigada, estou de regime e odeio balas, elas dão cárie.
Ele continuava com a mão estendida e insistiu.
– Prove, por favor.
Peguei a bala da mão dele, que era diferente, comprida,
transparente e parecia de mel com algumas coisas dentro. Abri e
a levei à boca.
– Ela arde um pouco.
– É de gengibre, refresca a boca e alivia as cordas vocais.
Não suportei aquele ardido, tirei da boca e joguei no lixo.
– É horrível. Mas eu não estou entendendo, Marcos, o que tem
a bala a ver com o nosso caso?
Ele olhou para o relógio que estava no seu pulso.
– Está tarde, temos que ir. No caminho eu te explico o que
você pode fazer. Já ouviu falar daquele ditado que diz que o peixe
morre pela boca?
– Já – respondi me vestindo.
Ele era muito rápido, vestiu-se e saiu, ficou me esperando no
carro. Nem deu tempo de eu me arrumar direito. Peguei minhas
coisas e entrei no carro. Estava curiosa, queria entender o plano
que martelava na cabeça dele.
Entrei no carro. Ele estava sentado com quatro balas na mão.
– Fala logo, Marcos, não gosto de suspense.
– Você já esteve no escritório do seu pai?
– Não, nunca.
– Ele é muito organizado. A mesa dele é impecável, sem papel
jogado, sem caneta solta, nada... Ah! Tem um pote de bala de
gengibre, igual essa que eu te dei. Ele adora esse tipo de bala.
– Sei, e daí? – perguntei, começando a entender onde ele
queria chegar.
– Eu tenho um amigo que é um grande farmacêutico, sabe
como ninguém manipular fórmulas. Veja, eu tenho quatro balas
aqui na minha mão. Três embrulhadas em papéis azuis e esta
aqui em papel branco. Pedi para que o meu amigo colocasse
uma coisa aqui dentro que derruba um elefante. É só você
entregar esta bala pra ele.
– Não sei se vou conseguir. Acho que ele não receberia uma
bala de mim, ele é esperto, poderia ficar desconfiado.
Então ele me mostrou as outras três balas.
– Você pode criar uma situação e dar uma bala para cada um,
inclusive para você. Esta bala você daria para a sua mãe, outra
para sua irmã e esta para ele. Com certeza ele não desconfiaria.
Fiquei pensativa. Não acreditava que aquele plano pudesse
dar certo e algumas dúvidas ainda pairavam na minha cabeça.
– Marcos, eu quero ficar livre do meu pai, mas não quero que
nada aconteça à Aline e à mamãe.
Ele riu, olhou para as balas que estavam em suas mãos
estendidas e falou:
– Por isso essas três são diferentes. Elas estão limpas. A única
que contém o veneno é esta com o papel branco.
– E se alguém descobrir?
– Impossível. A não ser que a bala tenha sido o seu único
alimento durante o dia. Se ele comer outras coisas, ninguém vai
conseguir descobrir.
Olhei para ele, peguei apenas três balas. Deixei uma azul.
– Vou levar só três. Não vou conseguir pôr esta porcaria na
boca.
Ele pareceu não se importar com a minha recusa em levar a
bala que seria a minha. Continuou falando:
– Crie uma situação, você tem todo o tempo do mundo. Não vá
se precipitar. Espere o momento certo e entregue a bala. Vamos
ficar livres dele para sempre.
– E o seu problema financeiro?
– Fico livre. Ele não vai mais me cobrar e ainda vou poder
sacar uma quantia que ele depositou nos Estados Unidos. O
problema é que não está em meu nome... mas eu dou um jeito
nisso.
– Está em nome de quem? – perguntei por perguntar, sem
entender nada daquilo.
– Da sua mãe.
Primeiro fiquei pensando o que mamãe tinha a ver com tudo
aquilo. Depois fiquei pensando que jeito era esse que ele daria,
para, depois, ficar feliz e beijar-lhe a boca com toda paixão do
mundo. Se não fosse tão tarde, ia sugerir que entrássemos de
novo para mais uma rodada de sexo selvagem.
Guardei as balas na minha bolsa enquanto ele saía com o
carro. Ainda tive tempo de insistir:
– Tio Marcos, tem certeza de que mamãe e Aline vão estar
bem?
– Eu adoro as duas, Laura, não teria coragem de fazer nada
contra elas.

TIC-TAC, TIC-TAC: OS MINUTOS FINAIS

1.

“Fantástica a sua história, menina Laura”, falou ele aparecendo


na frente dela. “Mais alguma coisa que você queira dizer?”
Ela fica pensando. Claro que havia muita coisa que ela deixou
para trás, que preferiu não contar. Será que deixou escapar
alguma coisa que pudesse ajudá-la?
“Não, esta é a minha história, você é o meu juiz, faça então o
meu julgamento.”
“Sozinho, eu? Não, Laura, nós vamos fazer o seu julgamento.
Agora é hora de trabalharmos o presente. O tempo está se
esgotando.”
Ela olha para ele. Fica pensando se um dia vira um rosto tão
bonito assim.
“Posso fazer uma pergunta?”
“À vontade.”
“De onde você veio?”
“Pergunta fácil, esta. Vim de dentro de você.”
“E pra onde você vai?”
“Para onde você for.”
“Se eu morrer...”
“Eu morro junto.”
“Eu não quero morrer”, diz ela chorando. “A minha vida foi uma
merda, eu só tenho quinze anos, ainda tenho tempo para viver
alguns momentos felizes.”
“Será que você não teve nenhum momento feliz na sua vida?
Pense bem. A vida é feita de altos e baixos, ninguém é feliz por
completo. Talvez se você tivesse tido um pouco mais de
paciência...”
“Prometo ter.”
“Agora pode ser tarde”, retruca, fazendo cara de sério. “O que
você fez de bom na vida, menina, você pode me dizer? Em
poucas palavras, pois o nosso tempo está se esgotando.”
Ela dá um suspiro de amargura. Aquilo está parecendo uma
sessão de tortura.
“Isso é fácil, posso dizer em uma única palavra: Nada.”
Ele balança a cabeça em sinal de reprovação. Não concorda
com o que ela diz.
“Você está sendo muito dura consigo mesma. O ser humano
se relaciona, e nesse relacionamento é que as pessoas vão se
moldando, vão se transformando em melhores ou piores. Você é
fruto de uma estrutura, de um relacionamento que te levou a
cometer todos esses atos. Mas você também foi capaz de mudar
as pessoas, para melhor e para pior.”
“Não acho que tive essa capacidade, sou tão insignificante.”
“Não é não. Aqui neste hospital há duas pessoas que você
ajudou a forjar, uma para o bem, outra para o mal.”
“Quem?”
“Pense, dou-lhe alguns minutos – tempo suficiente para que eu
possa dar duas ou três voltas pela sala.”
“Mas, por favor, não faça barulho com os pés, isso me dói na
cabeça.”
“Ora, não é o barulho dos meus passos que lhe dói e sim a sua
consciência.”
Enquanto isso, no pequeno saguão onde fica a lanchonete,
Roseli, o padre e Marcelo estão sentados numa mesa bem no
canto. Café com leite e pão com manteiga é o que tem àquela
hora para servir, foi o que informou o sonolento senhor que toma
conta do balcão. A fome era tanta que comeriam pedra, se fosse
o caso.
Comiam em silêncio. O padre bem que queria continuar o
assunto, mas percebeu que Roseli não estava disposta a discutir
com ele as questões envoltas no destino de cada um. Ela bem
que compreendia e acreditava que a vida era uma linha traçada,
na maioria das vezes torta e espinhosa, e que por mais que
tentássemos sair dessa linha, uma hora, mesmo sem querer,
estaríamos de volta a ela.
Ficaram então comendo e olhando um para a cara do outro.
Roseli achava horrível não ter o que dizer na frente de outra
pessoa. Poderia inventar qualquer coisa para conversar com o
padre, mas ela não gostava de padres. Preconceito ou não,
aprendeu a não lhes dar valor. Então, falar sobre o que com ele?
Não tinha jeito, tinha que voltar ao assunto Laura:
– Como o senhor descobriu que era ela? Laura apareceu na
televisão?
– Não – respondeu ele, limpando a boca com um guardanapo
de papel. – Em parte foi por pura intuição. Já lhe disse; quando a
vi pela primeira vez, senti que havia algo de estranho naquela
menina. Depois fui juntando os fatos e... – vai contando os
detalhes de sua descoberta.
A médica, o delegado e Marcos saem da UTI.
– Ela vai ficar sozinha na UTI? – pergunta Marcos para a
médica. Já estão no corredor.
– Não. Daqui a pouco chega a enfermeira – responde ela
olhando para o relógio. – Daqui a dez minutos no máximo ela vai
estar ali cuidando da sua sobrinha, pode ficar tranquilo.
O delegado abraça Marcos, como se para confortá-lo.
– Vamos tomar um café, daqui a pouco a gente volta, ela vai
estar bem, fique tranquilo, senhor Marcos.
Marcos percebe que tem uma oportunidade única. Dez
minutos, é o tempo que ele tem para resolver de vez as coisas.
Eles acabaram de descer as escadas, estão indo para o fim do
corredor que vai dar na lanchonete. Então ele para como se
alguém lhe segurasse as pernas.
– Preciso ir no banheiro.
O delegado, que ainda o abraçava, separa-se dele.
– Então vai, nos encontramos na lanchonete – diz o delegado
seguindo a médica, que continua andando.
O delegado aperta um pouco o passo para ficar ao lado da
médica.
– Tem banheiro lá na lanchonete – fala a médica, enquanto
olha para trás e vê Marcos voltando pelo corredor.
– Devia ter falado antes, doutora, agora o coitado vai ficar
rodando pelos corredores.
Marcos olha para trás e vê o delegado e a médica sumirem
atrás da porta que leva à lanchonete. Não perde tempo, sobe as
escadas correndo. O corredor da UTI está vazio. Olha pelo vidro
da porta e vê o corpo de Laura preso aos instrumentos. Faz
menção de empurrar a porta. Suas mãos suam. Ele sente uma
certa excitação. Não está com medo, mas sabe que precisa ter
toda a cautela do mundo. Chega a questionar se o que vai fazer é
correto ou não. Pensando assim, ele sai de perto da porta e se
senta no banco em frente. Fica pensativo enquanto tenta ouvir
passos de alguém que pudesse estar chegando. Não ouve nada.

Na cantina do hospital, o delegado tenta animar a conversa


com a médica enquanto tomam um café amargo com gosto de
ontem. Os dois estão sentados exatamente do lado oposto à
mesa onde estão o padre, Roseli e Marcelo. O delegado escolheu
aquela mesa de propósito. Não queria ninguém entre ele e a
médica. Ela parece estar angustiada.
– Não vou conseguir salvá-la.
– Calma, você parece uma médica iniciante. Você fez o que
tinha que fazer, não pode fazer mais nada.
– Mas ela é tão jovem!
Ele dá um meio sorriso diante da insegurança dela.
– Quem te vê, não imagina quantos jovens você já viu morrer
ali, naquela mesma cama.
– Mas nenhum que tenha perdido a família do jeito que ela
perdeu.
– E se ela morrer, levará um segredo para o túmulo.
A médica olha para ele. Seus olhos parecem querer dizer um
monte de coisas. Parecia que eles se conheciam há décadas.
– É muito importante para você desvendar este crime, não é
mesmo?
– Acho que não só para mim, mas para toda a polícia.
– E se não conseguir desvendar? – pergunta ela, terminando o
café.
– Adianto a minha aposentadoria.
– E o que vai fazer depois?
– Não sei. Talvez eu pegue o dinheiro que juntei durante todos
esses anos, me mude para uma cidade pequena, de preferência
que tenha uma médica bonita e humana que possa cuidar de
mim.
O padre e Roseli conversam. Marcelo fica com os olhos
vidrados no delegado e na médica. Ele havia comido todo o pão,
se bem que derrubara metade do café na mesa e na camisa.
Impossível descrever os pensamentos dele. E como se impelido
por algo, ele se levanta e vai até a mesa onde o delegado está
com a médica. Para diante dos dois.
– Aconteceu alguma coisa? – pergunta a médica, olhando para
ele.
Marcelo não diz nada, fica olhando os dois como se
procurasse palavras.
– Quer se sentar com a gente? – pergunta o delegado
gentilmente.
Roseli vê a cena, pede licença ao padre e se levanta, indo até
lá para buscar o filho.
– Marcelo, o que você está fazendo? Não atrapalhe a conversa
dos outros. Vamos para a nossa mesa.
Marcelo se mantém irredutível. Quer dizer algo; parecia que ia
conseguir se não fosse a chegada da mãe. Como não consegue
dizer, mete a mão no bolso e tira a receita e estende para o
delegado.
– Marcelo! – exclama a mãe, fazendo menção de pegar a
receita da mão dele.
Como Marcelo está de frente para o delegado, ele só esticou o
braço e pegou a receita da mão do rapaz. O delegado olha para a
Roseli e diz:
– Ele quer me mostrar esse papel, deixa o garoto.
– Mas isso é bobeira – tenta se justificar Roseli.
– É uma receita – corrige o delegado.
– Ela não tomou o remédio, agora vai morrer – resmunga
Marcelo.
O delegado vira a receita e vê que algo está escrito atrás. Ele
procura pelos óculos no bolso da camisa, coloca-os e lê
atentamente. Roseli se sente envergonhada. Receia das pessoas
fazerem comentários sobre o filho. Teme que o delegado o chame
de parvo, por isso trata de se retratar.
– Desculpem o Marcelo, ele encasquetou com essa receita,
mas agora ela não vale mais nada.
– Engano o seu, dona, a senhora pode não acreditar, mas
essa receita pode resolver um monte de coisas.
Na UTI o tempo passa. Parece passar mais rápido do que lá
fora.
“Tempo esgotado, menina Laura, é hora de você responder.”
“Pensei naquele garoto, o Marcelo.”
Ela ouve-o bater palmas.
“Bravo! Isso mesmo.”
“Mas ele está aqui?”
“Está. Mas ele não está bem.”
“O que ele tem?”
“Saudade de você. Viu como você foi importante na vida dele?
E pode ser muito mais, só vai depender de você.”
“O que eu posso fazer para ajudá-lo?”
“Na hora certa você saberá. Anda, me diga qual a outra
pessoa.”
“Só pode ser o Marcos. Mas não posso ser acusada pelos atos
dele.”
“Não, mas você, de uma forma ou de outra, despertou nele o
instinto assassino.”
“Não pode ser”, murmurou ela.
“Pode.”
Ela fica em silêncio. Chora suas últimas lágrimas. Por fim fala:
“Chega, não quero mais falar com você, vai embora, me deixa
morrer em paz.”
“Então você chegou ao veredicto final: A morte!”
“Sim, eu quero morrer. Depois de tudo, chego à conclusão de
que sou culpada.”
“Mas há uma chance de você se redimir, salvar sua vida.”
“Não quero mais viver.”
“Mesmo assim vou lhe dar uma última chance. Lá fora está seu
querido tio. Ele está indeciso entre entrar aqui e lhe fazer uma
visita ou ir lá para baixo tomar café.”
“Se ele entrar aqui, ele vai me matar, igual matou vovó.”
“Mas você não quer morrer?”
É um momento único. Marcos se levanta, olha o corredor
vazio, olha pelo vidro e respira fundo criando coragem. Não tem
muito tempo. Sabe que se não for agora, não será em momento
algum.
Abre a porta, sente um ar frio sair dali de dentro. Aproxima-se
do corpo inerte da menina. Olha-o com uma certa saudade.
Passa a mão no cabelo dela. Ao ficar de frente para o rosto dela,
ela pode ver-lhe a feição.
“Tio, eu estou aqui, estou viva. Estou em suas mãos. Se você
me quiser viva, é só não fazer nada e sair dessa sala para
sempre...”
Laura diz, chorando. Sabe que não pode ser ouvida. Olha para
o rosto dele. Era o rosto do homem que ela amava.
Marcos vê a mão dela aberta, estendida para cima. Ele a
segura. Sente a mão gelada dela. Ao contrário, Laura sente a
mão dele quente, cheia de vida. Ele fica parado, segurando a
mão dela. Não precisa sair do lugar, nem dar um passo; só
estende a outra mão e desliga o aparelho. Exatamente aquele
que faz barulho. Exatamente aquele que leva o ar para o pulmão
dela. A sala fica num silêncio total. Ele sente quando a mão de
Laura segura firme a sua.
“Tá vendo, tio, eu posso segurar a sua mão. Eu posso...”
Sua mão fica presa à dela. Ele tenta soltar, mas ela o segura
forte. Ele usa a outra mão para conseguir se livrar dela. Passa o
tempo e ele começa a sentir desespero. Com medo que alguém
chegue, ele liga o aparelho de novo. Sai da sala, sua testa verte
suor. Olha para os lados, ninguém no corredor. Desce as escadas
e quase atropela a enfermeira que ia subindo. Para na frente dela
e pergunta, fazendo cara de vítima:
– Aqui tem lugar para rezar?
– A capela – responde ela mostrando com as mãos.
Marcos sequer agradece, sai andando rápido, quase correndo.
Passa perto da porta que leva à lanchonete. Por um momento
pensa em entrar lá, conversar com todos como se nada tivesse
acontecido, mas prefere ir à capela, naquele momento parece ser
o mais convincente.
O delegado continua com a receita na mão. Lê novamente o
que está no verso. A médica está curiosa. Se fosse mais íntima,
não só perguntaria como tiraria da mão dele aquele papel que,
dali onde ela está, consegue ver apenas os garranchos do
médico que prescrevera aquela receita.
– Foi ele quem escreveu isso aqui? – pergunta o delegado
para Roseli.
Ela pega o papel e só então se dá conta de que havia algo
escrito no verso. Ela lê, arregala os olhos e coloca a mão na
boca.
– Ele não sabe escrever, doutor.
– Então foi a senhora quem escreveu isso.
– Não – protestou Roseli quase gritando. – Foi ela. Foi Laura
quem escreveu.
O padre, notando a situação, aproxima-se. A médica, não
suportando mais tanto suspense, resolve intervir:
– Qual o problema? Alguma descoberta sensacional? Se for,
por favor, eu quero participar também.
O delegado, gentilmente, retira da mão de Roseli o papel.
Ajeita os óculos, aproxima o papel dos olhos e lê:
“Não consigo te odiar, tio Marcos, apesar de você ter me
enganado e ter me dado todas as balas envenenadas. Não
consigo entender por que matar mamãe e Aline... e a mim. O que
nós fizemos de errado? Tudo bem, eu não vou mais te atrapalhar,
fique com todo o dinheiro de papai, eu não preciso disso, nem de
você, nem de ninguém, preciso apenas de paz.”
Olha para todos e pergunta:
– Onde está o tio dela?
– Deve estar com caganeira, pois ainda não voltou do banheiro
– diz a médica, tentando quebrar aquele momento de tensão.
Mal termina de dizer e vê o delegado se levantando. Ele sai
apressadamente sendo acompanhado por todos. Sobem as
escadas que levam à UTI. A enfermeira está lá dentro. Quando
pensa em chamar os médicos, a porta se abre e a médica é a
primeira que entra, seguida do delegado e do padre. Roseli e
Marcelo ficam do lado de fora
A médica olha os equipamentos. O do coração não dá sinal. O
coração de Laura está parado. Desesperada, ela começa a fazer
massagem cardíaca. Xinga, pragueja, faz tanto barulho que outro
médico entra na sala.
– Onde vocês estavam quando esses aparelhos pararam de
funcionar? – perguntou ela histérica, fazendo massagem no peito
da menina.
– Estava atendendo outros pacientes. Passei aqui agora há
pouco, estava tudo bem – mentiu o médico, pois se atrasara mais
de quinze minutos para voltar à UTI.
A enfermeira não diz nada, ela também se atrasou, por isso se
limita a prestar assistência aos médicos.
– Por onde anda o tio dela? – pergunta o delegado, para quem
quisesse ouvir.
A enfermeira responde com uma certa tranquilidade:
– Deve estar na capela. Pelo menos encontrei um homem
agora há pouco descendo as escadas e ele me perguntou onde
ficava a capela. Deduzo que seja ele.
– Mas ele estava no banheiro! – exclama o delegado.
– Foi isso que ele falou pra gente, mas acho que ele resolveu
mudar o trajeto – falou a médica, afastando-se do corpo de Laura
e passando a mão no rosto.
O delegado ajeita a camisa, certifica-se de que a arma está na
cintura e se prepara para sair. O padre o segura pelo braço.
– Fique aqui, doutor delegado, se ele está na capela, lá é meu
território. Deixa que eu o trago aqui.
– O policial aqui sou eu, padre. Ele pode fugir.
Vão saindo à medida que percebem que estão demais ali. Os
médicos continuam lutando para trazer Laura de volta.
– Fugir do quê? Ele nem imagina que sabemos. Fique aqui e
confie em mim. Se ele estiver lá eu o trarei para o senhor.
Os dois se deparam com Roseli e Marcelo. Ela acompanhava
o movimento da equipe lá dentro. Não é boba nem nada, sabe
que tudo está terminado. O delegado fica em pé na porta,
enquanto ela e Marcelo se sentam. Os dois observam o padre
que desce as escadas.
A capela fica do lado de fora do hospital. É passar a recepção
agora vazia, atravessar o saguão e passar por uma porta de vidro
que dá para um jardim de rosas amarelas. A capela fica
exatamente do outro lado. O padre vai até lá e vê a porta aberta.
A capela é muito pequena, cabe não mais do que meia dúzia de
bancos. Ele entra e vê Marcos sentado. Para na porta e pensa no
que dizer, em como se portar. Marcos, por sua vez, ao perceber a
presença do pároco, joga-se de joelho e começa a rezar. De fato,
ele é um bom farsante. O padre aproxima-se e senta-se ao seu
lado.
– Rezar faz bem, meu filho.
– Como ela está, padre? – pergunta ele, sentando ao lado do
padre.
– Não sei. Estou indo para lá, mas antes resolvi dar uma
passada aqui e pedir por ela.
O padre encara Marcos. Gostaria de estar dentro dele para
saber o que ele sente, o que ele de fato pensa. Marcos tem os
olhos vermelhos, encharcados de tanto chorar. A grande pergunta
que fica é: chora por quê?
– Acho que ela não vai sobreviver – diz Marcos, olhando para
o pequeno altar.
– Não diga isso, para Deus nada é impossível. Vamos imaginar
que ela sobreviva a mais esta desgraça... não é a primeira pela
qual ela passa. Aquela menina é forte, talvez resista a mais esta
avalanche.
– Estou rezando para isso.
O padre se ajeita no banco, parece buscar palavras na dose
certa. Quer dizer um monte de coisas para Marcos, mas sabe que
não pode se precipitar.
– Quando ela sair do hospital, é você quem vai tomar conta
dela? – pergunta ele medindo a expressão de Marcos.
– Vou pedir a guarda dela. Ela ainda é uma criança, precisa ser
educada.
– O pai dela tinha muito dinheiro, não tinha?
Marcos franze a testa, não é bobo nem nada e quer entender
onde o padre quer chegar.
– O que o senhor quer dizer com isso, padre?
– Que pelo menos ela vai ficar bem de vida, não vai passar por
apuros.
– Não devemos pensar nisso agora, padre, minha sobrinha
está agonizando lá dentro e o senhor está pensando em
dinheiro?
O padre sorri com a paciência que lhe é peculiar. Bate no
ombro de Marcos, como se para lhe chamar a atenção sobre
algo.
– Olhe para mim, meu rapaz. Sou um velho, logo morrerei e
não construí sequer um castelo na areia da praia. Nunca pensei
em dinheiro, se pensasse, teria sido um empresário ou um
banqueiro. Só falei isso porque me ocorreu que as pessoas
fazem certas coisas pensando no dinheiro, na felicidade que ele
promete trazer, mas que nunca chega. Fico pensando nas coisas
erradas que as pessoas fazem em nome desse maldito dinheiro,
que traz poder e leva as pessoas para o outro lado, o lado do
mal.
Marcos meneia a cabeça, não entende o que o padre quer
dizer. Para ele aquele não é o momento de discursos filosóficos
sobre o bem e o mal que o dinheiro faz. Por isso ele resolve falar:
– Por que o senhor está me dizendo isso?
– Porque estou pensando aqui, acredito piamente que aquela
menina vai sobreviver, então ela vai poder usufruir daquele
dinheiro... mas e se ela morrer?
Marcos esboça uma risada, o padre vê ali o verdadeiro retrato
do rosto dele. Naquele meio sorriso, o velho pároco pôde ver a
imagem de alguém frio, calculista, movido pela ânsia do dinheiro.
– Eu sou um homem rico, padre. Já tenho minhas posses.
– Mais o que a sua mãe deixou – completou o padre.
– Exatamente. Se vou herdar alguma coisa se minha sobrinha
se for, ainda não parei para pensar. O senhor está me testando,
padre, não é mesmo? Querendo saber a minha real situação em
relação à Laura. Se quiser eu posso lhe contar tudo, tudo mesmo,
mas só se for em confissão.
O padre tira os óculos, limpa-os na camisa branca amassada e
suada. O dia começa amanhecer e o calor já se faz presente.
– Você não me parece católico.
– Engano seu, padre, se eu não fosse, o que estaria fazendo
aqui?
– Remorso, talvez.
Marcos dá um salto se pondo em pé. Aquilo parece que o
atingiu em cheio. Ele sabe que não pode fraquejar diante do
pároco. Sabe que dali para frente vai ter que enfrentar as
consequências com toda naturalidade do mundo.
– Todos nós temos remorso. Ninguém é tão perfeito que não
se arrependa de algo. O senhor não se arrepende de nada?
– De muitas coisas. E você, se arrepende do quê?
Ele encarava o padre; ao ouvir esta pergunta, desvia o olhar.
Não está gostando daquela conversa, mas não pode fugir do
assunto. Para ele aquela conversa é um teste para o que virá lá
na frente.
– De não ter cuidado melhor de minha sobrinha. Se eu tivesse
sido mais atencioso, talvez ela não estivesse aqui.
O padre dá um tapa nas coxas e se levanta.
– Tem razão, talvez ela já estivesse morta.
– O senhor está me acusando de algo?
O padre sorri, abraça Marcos como se fossem velhos amigos e
vai saindo com ele dali.
– Quem sou eu para acusar alguém. Sou um velho padre
pecador e sei muito bem que cada um sabe o peso do seu
pecado. A única coisa que eu sei é que nesta vida nada fica
encoberto por muito tempo. Tenho certeza absoluta de que vão
descobrir quem cometeu aquela barbaridade com a família de
Laura...
Na UTI está tudo terminado. Nada mais pode ser feito. A
médica sai, demonstrando estar esgotada. Fez tudo o que pôde.
A enfermeira sai em seguida, enquanto ela senta-se ao lado do
delegado e ameaça falar algo, mas ele segura sua mão como se
pedisse silêncio. Minutos depois o padre chega acompanhado de
Marcos. Todos se levantam. Pelo olhar deles, Marcos percebe
que Laura se foi. Começa a chorar e a querer fazer escândalo. O
delegado o acalma. O padre entra na UTI, aproxima-se e reza
perto do corpo sem vida. Olha para o rosto de Laura, que parece
dormir. Ele não sabe de um terço da vida daquela menina, mas
pode imaginar. Sabe que naquele momento ela está
descansando, pois finalmente encontrou a paz e a felicidade.
A enfermeira volta minutos depois trazendo a maca e um
ajudante. O padre não aguenta e sai. Lá fora todos estão sem
palavras. Nada mais pode ser feito. De vez em quando um ou
outro olha para Marcos que está desconsolado. Tentam imaginar
o que se passa na cabeça dele.
A médica entra para ajudar na remoção do corpo. Roseli se
abraça ao filho, o delegado olha pelo vidro da porta, o padre
conversa com Marcos, que age com toda naturalidade que o
momento pede.
Minutos depois a maca sai da UTI trazendo o corpo de Laura
coberto por um pano azul. Todos olham. Marcelo faz menção de
parar a maca e levantar o pano. Roseli o impede. Dessa forma a
maca segue e some pelo corredor.
O delegado se aproxima de Marcos, que está com os olhos
vermelhos. Coloca a mão no ombro dele e, como se fosse um
velho amigo, diz:
– Senhor Marcos, não fique assim, a vida continua; lembre-se,
nós temos um assassino para pegar.
Segura Marcos pelo braço e vão saindo.

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