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IPRIANO DE CARTAGO E A CÁTEDRA DE PEDRO

Escrito por  Gustavo

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Muitos católicos têm vindo ao site comentar o texto de Cipriano de Cartago, Da


Unidade da Igreja. Para eles, o texto apresentaria um argumento bem forte a favor do
catolicismo romano, ao ponto de se perguntarem por que um site protestante
manteria tal texto? Mas por que os católicos pensam desta forma? Que tipo de
argumento este texto apresentaria a favor do catolicismo?

Provavelmente eles consideram como ponto favorável ao catolicismo romano a


própria interpretação que Cipriano dá ali para a pedra de Mateus 16:18. Cipriano
entende que ela seja Pedro, assim como os católicos. Mas não é apenas isto. Algumas
versões do texto do capítulo 4 de seu Da Unidade da Igreja coloca ainda a própria
cátedra de Pedro como base para toda a igreja.

Aliado a isto, algumas cartas de Cipriano também trazem o mesmo tipo de declaração.
Assim, Cipriano é considerado por católicos como uma fonte de argumentação a favor
de sua eclesiologia.

O objetivo deste texto é, portanto, esclarecer o pensamento de Cipriano a respeito da


cátedra de Pedro, onde percebemos que há o grande mal-entendido por parte dos
católicos. Pretendemos ainda esclarecer a questão do capítulo 4 de Da Unidade da
Igreja, que possui duas redações. Por fim, iremos demonstrar ainda que Cipriano é na
verdade um ótimo exemplo de argumentação contra a alegada primazia de Roma.

A cátedra de Pedro

Algumas versões do capítulo 4 do tratado de Cipriano, Da Unidade da Igreja, trazem o


seguinte texto:

É verdade que os demais [Apóstolos] eram o mesmo que Pedro, mas o primado é
conferido a Pedro para que fosse evidente que há uma só Igreja e uma só cátedra. Todos
são pastores, mas é anunciado um só rebanho, que deve ser apascentado por todos os
Apóstolos em unânime harmonia. Aquele que não guarda esta unidade, proclamada
também por Paulo, poderá pensar que ainda guarda a fé? Aquele que abandona a cátedra
de Pedro, sobre o qual foi fundada a Igreja, poderá confiar que ainda está na Igreja? 1

Encontramos ainda em suas epístolas muitas expressões que lembram as doutrinas


ensinadas pelo catolicismo romano. Na sua carta 59, Cipriano também diz:

Depois de coisas como estas, eles ainda ousam – um falso bispo sendo apontado para eles
por heréticos – a navegar e enviar cartas de cismáticos e profanos à cátedra de Pedro, e
para a igreja chefe, de onde a unidade episcopal toma sua fonte; e não considerar que
estes eram os romanos cuja fé foi louvada na oração do apóstolo, para quem a falta de fé
não teria acesso2.

Onde o texto acima deixa claro que a cátedra de Pedro em questão é Roma. Além
deste texto, na mesma carta, Cipriano declara que a igreja é fundada sobre Pedro, algo
bastante peculiar na teologia católica romana:

No entanto, Pedro, sobre quem pelo próprio Senhor a Igreja foi construída, falando um
por todos, e respondendo com a voz da Igreja, diz, “Senhor, a quem devemos ir? Tu tens as
palavras de vida eterna; e nós cremos, e estamos certos que tu és o Cristo, o Filho do Deus
vivo”3.

Com base em palavras como estas, portanto, o catolicismo romano tem argumentado
que Cipriano defendia uma primazia para o bispo de Roma. No entanto, devemos
notar aqui que aquilo que Cipriano entende por “cátedra de Pedro” é bem diferente do
que o católico romano de nossos dias entende. Além disto, o fato da igreja ser
edificada sobre Pedro é entendido por Cipriano de uma forma totalmente diferente
daquela entendida pelos atuais católicos romanos.

Podemos ver isto na introdução de sua epístola 33:

Nosso Senhor, cujos preceitos e admoestações nós devemos observar, descrevendo a


honra de um bispo e a ordem de sua Igreja, fala no Evangelho dizendo a Pedro: “Eu te
digo, Tu és Pedro, e sobre esta pedra eu edificarei minha Igreja; e os portões do inferno
não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus, o que for que você
ligar na terra será ligado no céu e o que for que você desligar na terra será desligado no
céu”. Por isto, através das mudanças dos tempos e sucessões, a ordenação de bispos e o
plano da Igreja continuam fluindo, de forma que a Igreja é fundada sobre os bispos, e
cada ato da Igreja é controlado por estes mesmos governantes4.

Aqui, Cipriano conclui que a fundação da Igreja está sobre os bispos, não sobre um
bispo em específico, muito menos sobre o bispo de Roma. São eles que governam a
mesma Igreja, e sua sucessão (a dos bispos) continua fluindo. Cipriano então vê Pedro
como um representante do episcopado, não de apenas um bispo. Este episcopado é
indiviso, mas representado por cada bispo da igreja, como ele esclarece em Da
Unidade da Igreja:

E esta unidade nós devemos firmemente manter e declarar, especialmente aqueles de nós
que somos bispos que presidem na Igreja, para que nós também possamos provar que o
próprio episcopado é uno e indiviso. Que ninguém engane a irmandade com uma
falsidade, que ninguém corrompa a verdade da fé com prevaricações perfidiosas. O
episcopado é uno, cada parte do qual é mantido por cada um para o todo 5.

Na epístola 66, Cipriano também traz estas palavras:

Pedro fala ali, sobre quem a Igreja foi construída, ensinando e mostrando em nome da
Igreja, que apesar de uma multidão rebelde e arrogante daqueles que não ouvem e
obedecem podem se separar, a Igreja não se afasta de Cristo; e eles são a Igreja que é o
povo unido ao sacerdote e o rebanho unido ao pastor. De onde você deve saber que o
bispo está na Igreja e a Igreja no Bispo; e se alguém não estiver com o bispo, ele
não está na igreja, e que se bajulam em vão aqueles que se esgueiram, não tendo paz com
os sacerdotes de Deus, pensando estar comunicando secretamente com alguns; enquanto
que a Igreja, que é Católica e una, não é cortada ou dividida, mas é de fato conectada e
ligada pelo cimento dos sacerdotes que coerem uns com os outros 6.

Onde Pedro representa os bispos, não o bispo de Roma. Vemos aqui uma mostra da
eclesiologia de Cipriano, onde a submissão ao bispo é considerado o critério de
filiação à Igreja. Mas note que é a submissão ao bispo local, não ao bispo de Roma.
Note ainda que a união destes bispos é o cimento da igreja, e a união pela coerência,
não por um governo central.

A definição de cátedra de Pedro fica ainda mais clara, quando Cipriano, ao tratar de
cismáticos em sua própria igreja, utiliza este conceito em relação ao seu próprio cargo.
Cipriano esteve envolvido em sua época em uma controvérsia relacionada com a
restauração dos caídos na igreja, contra os confessores, que foram aqueles que
resistiram às perseguições. Justo Gonzales nos informa que:

Alguns dos confessores desejaram que os caídos que desejassem voltar à igreja fossem
admitidos imediatamente, somente baseados no seu arrependimento. Logo, vários
presbíteros, que haviam tido outros conflitos com Cipriano, uniram-se aos confessores, e
se produziu um cisma que dividiu a igreja de Cartago e toda a região circundante.

[...]

A principal razão pela qual Cipriano insistia na necessidade de regular a admissão dos
caídos à comunhão da igreja era seu próprio conceito de igreja. A igreja é o corpo de
Cristo, que há de participar da vitória da sua Cabeça. Por isso, “fora da igreja não há
salvação”, e “ninguém que não tenha a igreja por mãe pode ter Deus por pai”. Em seu
caso, isto não queria dizer que tivesse de estar de acordo em tudo com a hierarquia da
igreja – Cipriano mesmo teve suas disputas com a hierarquia da igreja de Roma – mas
implicava que a unidade da Igreja era de suma importância. Posto que as ações dos
confessores ameaçavam quebrantar essa unidade, Cipriano sentia obrigação de rejeitar
essas ações e insistir em que fosse um sínodo que decidisse o que se devia fazer com os
caídos7.

Portanto, a controvérsia de Cipriano com os confessores é que eles queriam


representar uma espécie de fonte de poder paralelo. Estes inclusive conspiraram
contra o próprio Cipriano, como é registrado na sua epístola 43:

Por minhas cartas eu digo, caríssimos irmãos, pois a malignidade e a traição de certos
presbíteros conseguiu que eu não fosse permitido a vir perante vocês na Páscoa, já que
consciente de sua conspiração, e mantendo aquele antigo veneno contra meu episcopado,
ou seja, contra seu sufrágio e julgamento de Deus, eles renovam seu velho ataque contra
mim, e mais uma vez começam suas maquinações sacrílegas com seus costumeiros
estratagemas8.

Mais adiante, Cipriano passa a combater as falsas promessas destes conspiradores,


que ofereciam o que não possuíam, exatamente como se fossem uma fonte paralela
de poder:

Aqueles mesmos que se afastaram da Igreja estão prometendo chamar e trazer de volta os
caídos para a Igreja. Há um Deus e Cristo é um, e há uma Igreja, e uma cátedra fundada
na rocha pela palavra do Senhor. Outro altar não pode ser constituído nem um novo
sacerdócio pode ser feito, senão um altar e um sacerdócio 9.

O argumento de Cipriano portanto é que os confessores não poderiam criar outra


cátedra diferente daquela que era representada pelo próprio Cipriano. A cátedra de
Pedro aqui, é aplicada ao próprio episcopado em Cartago, não em Roma, concordando
com o que Cipriano já havia dito que é no episcopado que a igreja é fundada.

Este conceito de cátedra de Pedro, portanto, é muito diferente daquele defendido hoje
pelos católicos romanos. Por não perceberem esta diferença, ao ler o texto de
Cipriano, eles imaginam que ele defendia a primazia de Roma. No entanto, vários
historiadores, inclusive católicos, defendem que o significado da expressão “cátedra de
Pedro” para Cipriano é diferente da entendida atualmente por católicos romanos. Por
exemplo, James McCue, escrevendo para um diálogo entre Católicos e Luteranos, nos
diz:

De acordo com a interpretação de Cipriano de Mateus 16:18, Jesus primeiro conferiu a


Pedro a autoridade com que ele subsequentemente daria a todos os apóstolos. Isto, de
acordo com Cipriano, foi para deixar claro a unidade de poder que estava sendo
conferida e da igreja que estava sendo estabelecida. Cipriano frequentemente fala de
Pedro como a fundação da igreja, e seu significado parece ser que era em Pedro que Jesus
primeiramente estabeleceu todos os poderes de edificação da igreja e responsabilidades
que subsequentemente iriam também ser dados aos apóstolos e bispos.
Pedro é a fonte da unidade da igreja somente em uma forma exemplar ou simbólica... O
próprio Pedro parece, no pensamento de Cipriano, não ter autoridade sobre os outros
apóstolos, e consequentemente a igreja de Pedro não pode razoavelmente clamar ter
autoridade sobre as outras igrejas10.

O pensamento acima é complementado pelo historiador católico romano, Michael


Winter:

Cipriano usou o texto Petrino de Mateus para defender a autoridade episcopal, mas
muitos teólogos posteriores, influenciados pelas conexões papais do texto, interpretaram
Cipriano em um sentido pró-papal que era estranho ao seu pensamento... Cipriano teria
usado Mateus 16 para defender a autoridade de qualquer bispo, mas já que aconteceu de
empregá-lo para o bem do bispo de Roma, isto criou a impressão de que ele entendia isto
como se referindo à autoridade papal... Católicos assim como Protestantes estão agora
geralmente concordando que Cipriano não atribuiu autoridade superior a Pedro 11.

John Meyendorff ainda destaca que o próprio Cipriano usa o conceito de cátedra de
Pedro para defender seu próprio episcopado:

A visão de Cipriano da ‘cátedra’ de Pedro (cathedri Petri) foi que ela pertencia não apenas
ao bispo de Roma mas a todo bispo de cada comunidade. Assim Cipriano usou não o
argumento da primazia de Roma mas de sua própria autoridade como ‘sucessor de Pedro’
em Cartago... Para Cipriano, a ‘cátedra de Pedro’ era um conceito sacramental,
necessariamente presente em cada igreja local: Pedro era o exemplo e modelo de cada
bispo local, que, em sua comunidade, preside sobre a Eucaristia e possui ‘o poder das
chaves’ para remir pecados. E já que o modelo é único, único também é o episcopado
(episcopatus unus est) compartilhado, em completamente igual (in solidum) por todos os
bispos12.

Esta igualdade de poderes pode ser visto, de fato, nas duas versões do texto do
capítulo 4 de Da Unidade da Igreja. O texto declara:

Sem dúvida o resto dos apóstolos foram também o mesmo que era Pedro, favorecidos com
uma igual parceria tanto de honra quanto poder, mas o princípio procede da unidade 13.

Aqui, a questão dos dois textos do capítulo 4 de Da Unidade da Igreja se torna


relevante. Passaremos a tratar agora dos motivos para isto.

Os dois capítulos 4 de Da Unidade da Igreja

Há duas versões do capítulo 4, do tratado Da Unidade da Igreja, de Cipriano. Uma


versão é bem mais favorável à primazia de Pedro, como podemos ver acima. Esta
versão foi apelidada de “versão papal”.
Aparentemente, Phillip Schaff que organizou vários textos dos pais da igreja,
acreditava que a “versão papal” era resultado de uma interpolação, como lemos em
uma de suas Elucidações:

Este é apenas um exemplo da forma como Cipriano foi “doutorado”, para trazê-lo para
uma forma capaz de ser reinterpretado. Mas você perguntar quais as provas de tais
interpolações? A grandemente celebrada edição Beneditina lê da mesma forma que a
coluna interpolada lê, e quem não iria dar crédito a Balúzio? Agora note, Balúzio
rejeitava estas interpolações e outras, mas, morrendo (1718 D.C) com seu trabalho
inacabado, o término da tarefa foi atribuído a um monge sem nome, que confessa que ele
corrompeu o trabalho de Balúzio, ou melhor, se gloria na façanha. “Não, além disto,” diz
ele, “foi necessário alterar não poucas coisas nas notas de Balúzio; e mais poderia ser
alterado se pudesse ser feito convenientemente”. Mas a edição saiu, e se passou como o
genuíno trabalho do próprio erudito Balúzio14.

No entanto, parece que muita coisa aconteceu desde que Phillip Schaff escreveu isto.
Atualmente, há um grande consenso entre católicos e protestantes, de que as duas
versões sejam legítimas. O historiador católico romano, Robert Eno, nos explica como
se deu a reviravolta:

O simbolismo da cathedri Petri tem sido a fonte de muitos mal-entendidos e disputas.


Talvez ele pode ser entendido mais facilmente por se olhar ao tratado especial que ele
escreveu para defender sua própria posição como único bispo por direito de Cartago e a
de Cornélio contra Novaciano, a saber, o De unitate ecclesiae, ou, como ele foi conhecido
na Idade Média, Sobre a Simplicidade dos Prelados. O capítulo de maior interesse é o
quarto. Controvérsia tem seguido este trabalho porque duas versões deste capítulo
existem. Desde a Reforma, a aceitação de uma versão ou outra tem geralmente seguido
linhas denominacionais.
Muito disto tem diminuído nas décadas recentes especialmente com o trabalho de Fr.
Maurice Bevenot, um jesuíta inglês, que devotou sua vida acadêmica a este texto. Ele
promoveu a sugestão do Beneditino inglês, John Chapman, que o que nós estamos lidando
aqui é com duas versões de um texto, ambas escritas por Cipriano. Esta visão tem
ganhado grande aceitação nas décadas recentes. Não só Cipriano escreveu ambos, mas
sua teologia da Igreja se mantém da primeira para a segunda. Ele fez mudanças textuais
porque sua versão anterior estava sendo mal usada 15.

Aqui vemos que a teoria mais aceita hoje é que os dois textos são autênticos, sendo
que a “versão papal” é a versão mais antiga do texto. Eno nos diz que Cipriano
precisou alterar o texto do capítulo 4 por que ele estava sendo mal usado... J.N.D. Kelly
confirma as palavras de Eno, nos explicando melhor os motivos para Cipriano alterar o
texto original:

Existe porém, outra versão do trecho (chamada versão “papal”), que: (a) fala do
estabelecimento de “uma só cadeira” (unam cathedram) e da concessão de primazia a
Pedro (primatus Petro datur) e (b) não menciona os outros apóstolos recebendo a mesma
autoridade conferida a Pedro. Parece provável que esse trecho também tenha surgido da
pena de Cipriano, sendo mais antigo que o textus receptus, e representa sua atitude antes
da disputa acerca da necessidade de rebatizar hereges e cismáticos travada com o papa
Estêvão. O uso que os partidários de Estêvão fizeram do texto, afirmando a autoridade de
Roma sobre as outras sés, pode muito bem tê-los induzido a modificá-lo em favor de uma
versão menos desajeitada. Mesmo o “texto papal”, porém, não conflita obrigatoriamente
com seu ensino geral, a saber, que a unidade da igreja deve ser encontrada no consenso
do episcopado coletivo16.

O Dicionário Patrístico concorda com Kelly:

Quando Cipriano percebeu que o bispo de Roma intervinha nas questões internas das
igrejas africanas, sentiu-se ferido em sua autoridade. Mas ainda havia mais: Estêvão
parecia ter interpretado em sentido largo demais o primado de Roma, como se deduzia do
cap. 4 do De unitate de Cipriano. Ferido no mais sensível, o bispo de Cartago reescreveu
por inteiro o trecho em questão, passando em silêncio o primado de Pedro 17.
Ou seja, o bispo de Roma, Estêvão, ou seus partidários, em sua controvérsia contra
Cipriano, tentaram usar o tratado de Cipriano contra ele mesmo. E é interessante aqui,
que Estêvão estaria usando este tratado da mesma forma que alguns católicos
romanos tentam usar ele hoje. A reação de Cipriano, que reeditou o texto, nos mostra
que sua intenção não era defender a primazia de Roma.

Mas a própria controvérsia de Cipriano com o bispo Estêvão nos mostra que longe de
ser um defensor da primazia de Roma, Cipriano rejeitava completamente a noção de
um bispo sobre bispos. É para esta controvérsia de dirigimos nossa atenção na parte
final deste texto.

Cipriano e Estêvão

Depois de discutida toda a questão da cátedra de Pedro em Cipriano, resta ainda


esclarecer a relação de Cipriano com a igreja de Roma. Afinal de contas, as palavras de
Cipriano em sua carta são sempre lembradas por católicos romanos:

Depois de coisas como estas, eles ainda ousam – um falso bispo sendo apontado para eles
por heréticos – a navegar e enviar cartas de cismáticos e profanos à cátedra de Pedro, e
para a igreja chefe, de onde a unidade episcopal toma sua fonte; e não considerar que
estes eram os romanos cuja fé foi louvada na oração do apóstolo, para quem a falta de fé
não teria acesso18.

Por que Roma seria considerada igreja chefe? Phillip Schaff comenta sobre este texto,
dizendo que:

A Sé Apostólica do Oeste era necessariamente tudo isto aos olhos de um não ambicioso e
fiel co-bispo ocidental; mas a carta em si prova que não era a Sé que tinha a autoridade
sobre tudo ou à parte de seus co-bispos. Não leiamos em suas expressões ideias que são
um pensamento posterior, e que conflitam com a vida e todo o testemunho de Cipriano 19.

Para Schaff, portanto, a linguagem de Cipriano demonstra apenas o respeito que ele
tinha por Roma como a única Sé Apostólica do Ocidente. J.N.D. Kelly nos diz o mesmo:

Embora numa passagem conhecida ele se disponha a falar de Roma como “igreja líder”,
parece que a primazia que ele tem em mente diz respeito à honra. De qualquer forma,
algumas linhas abaixo ele escreve que “cada um dos pastores (isto é, bispos) recebeu uma
porção do rebanho para dirigir e governar, e terá que prestar contas de sua tarefa ao
Senhor”20.

Assim, há sim um respeito da parte de Cipriano com relação a Roma. No entanto, isto
não significa que Cipriano reconhecia alguma autoridade de Estêvão sobre ele. E isto
pode ser visto em sua controvérsia com o bispo Estêvão, de Roma. O Dicionário
Patrístico nos esclarece sobre os motivos desta controvérsia:

Já a questão dos bispos espanhóis depostos (Ep. 67) e, depois, a de Marciano de Arles (Ep.
68) haviam causado atritos entre Roma e Cartago. A controvérsia batismal tornou claras
as divergências entre os dois homens. O problema estava em saber com que condições
poderiam ser readmitidos na Igreja católica os heréticos e cismáticos que haviam
recebido o batismo fora de seu seio. Em Roma, considerava-se válido este batismo,
contentando-se com impor as mãos sobre aqueles que voltavam para a comunidade; em
Cartago, ao invés, o batismo por parte dos hereges era considerado nulo, e os batizados
por hereges deviam ser batizados de novo. A prática, aliás, já se tornara tradicional na
África depois de Agripino (apr. 220). As duas igrejas poderiam ter continuado, como no
passado, a viver em bom acordo, embora com práticas diferentes. Mas não foi possível,
porque Estêvão havia julgado ser seu dever levar para seu ponto de vista os bispos
africanos21.

Assim, Estêvão tentou impor os costumes da igreja de Roma sobre as igrejas do norte
da África. No entanto, Cipriano não concedeu ao bispo de Roma qualquer jurisdição
em assuntos externos a sua diocese. Em sua Epístola 71, escrevendo para Quinto, um
bispo da Mauritânia, ele diz:

Pois nem Pedro, a quem o Senhor escolheu primeiro, e sobre quem Ele edificou Sua Igreja,
quando Paulo, mais tarde, disputou com ele sobre a circuncisão, reivindica
insolentemente algo para si, nem arrogantemente assume algo, como dizer que ele
defendeu a primazia e que ele devia ser obedecido pelos novatos e por aqueles que vieram
mais tarde22.

Esta não é a única crítica que Cipriano faz a Estêvão. A sua Epístola 74, escrita para
Pompeio tratando exatamente da resposta de Estêvão às decisões do sínodo norte-
africano a respeito do batismo de hereges e cismáticos. É nesta carta que vemos as
críticas mais duras:

Ele proibiu que alguém vindo de qualquer heresia seja batizado na Igreja, ou seja, ele
julgou o batismo de todos os hereges ser justo e reto. E apesar de heresias especiais ter
batismos especiais e diferentes pecados, ele, mantendo comunhão com o batismo de todos,
juntou os pecados de todos e os juntou em seu próprio peito. E ele ordenou que nada
deveria ser inventado, a não ser aquilo que tem sido transmitido, como se aquele que
mantém a unidade, clamando por uma Igreja um batismo, fosse um inventor, e não
manifestamente aquele que, se esquecendo da unidade, adota as mentiras e contágios do
lavar profano. Que nada seja inovado, diz ele, nada mantido, exceto aquilo que foi
transmitido. De onde é aquela tradição? Ela vem da autoridade do Senhor e do
Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos? Pois que aquelas
coisas que estão escritas devem ser feitas, Deus testemunha e admoesta, dizendo a Josué o
filho de Num: “O livro desta lei não deve se afastar de tua boca; mas tu deves meditar nele
dia e noite, para que tu possas observar para fazer de acordo com tudo que está escrito
ali”. Também o Senhor, enviando Seus apóstolos, os ordena para que as nações sejam
batizadas, e ensinadas a observar todas as coisas que Ele comandou. Se, então, é ou
prescrito no Evangelho, ou contido nas epístolas ou Atos dos Apóstolos, para que aqueles
que vêm de alguma heresia não devam ser batizados, mas somente as mãos sejam
impostas a eles em arrependimento, que esta divina e santa tradição seja observada. Mas
se em todo lugar os hereges são chamados nada mais do que adversários e anticristos, se
deles se pronuncia que são pessoas a ser evitadas, e serem pervertidas e condenadas por
si mesmos, porque é que não deveríamos pensar que eles sejam dignos de ser condenados,
já que é evidente do testemunho apostólico que eles são de si mesmos condenados? 23

Cipriano não apenas condena o posicionamento de Estêvão acima, mas ele faz isto
com base no fato de que as Escrituras não ensinam aquilo que Estêvão quer
estabelecer como tradição. Há ainda maiores condenações à tradição que Estêvão
queria impor às igrejas norte-africanas:

Nem deve o costume, que se esgueirou entre alguns, prevenir a verdade de prevalecer e
conquistar, pois o costume sem verdade é a antiguidade do erro 24.

E diante de ameaças de excomunhão, Cipriano se torna mais duro:

Dá gloria a Deus quem, sendo amigo de hereges e inimigo dos cristãos, acha que os
sacerdotes de Deus que suportam a verdade de Cristo e a unidade da Igreja, devem ser
excomungados?25

Provavelmente do ponto de vista católico romano, a Reforma seria considerada um


cisma que seria condenado por Cipriano. Diante destes trechos acima, podemos ter
mesmo esta certeza? Afinal de contas, Martinho Lutero não foi apenas ameaçado de
excomunhão, mas foi de fato excomungado por questionar a validade de certas
tradições ou costumes que não se baseavam nas Escrituras.

Logo depois de Estêvão condenar as decisões do sínodo norte-africano, Cipriano


convocou outro sínodo, conhecido como Sétimo Concílio de Cartago, presidido por ele
mesmo. É nas decisões deste concílio que palavras claramente dirigidas ao bispo de
Roma podem ser encontradas:

Pois nenhum de nós coloca-se como um bispo de bispos, nem por terror tirânico alguém
força seu colega à obediência obrigatória; visto que cada bispo, de acordo com a
permissão de sua liberdade e poder, tem seu próprio direito de julgamento, e não pode ser
julgado por outro mais do que ele mesmo pode julgar um outro. Mas esperemos todos o
julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, que é o único que tem o poder de nos designar
no governo de Sua Igreja, e de nos julgar em nossa conduta nela 26.
É curioso como eles aqui negam a existência de um bispo de bispos. Isto se deve
provavelmente às exigências de Estêvão.

Com os dois bispos firmes em sua posição, não parecia haver uma forma da disputa
ser resolvida. Até que finalmente os dois bispos entregaram a vida em martírio.
Conclusão

Cipriano poderia ser mencionado como fonte para a primazia de Roma? A análise feita
aqui demonstra que não. Os próprios conflitos que ele teve com o bispo Estêvão são
prova de que, embora a Sé romana tivesse alguma honra na época, esta honra não
significava que ela era vista como uma espécie de “governo central” para o
cristianismo.

A cátedra de Pedro, para Cipriano, era simplesmente o episcopado de todos os bispos.


Ele como bispo de Cartago era tão representante da cátedra de Pedro quanto o bispo
Romano.

Assim, muitos católicos que nos visitam no site, e mencionam que se converteram
devido ao tratado de Cipriano, Da Unidade da Igreja, deveriam conhecer também os
outros escritos deste autor. Fazendo isto perceberão que o pensamento de Cipriano é
bem diferente daquele que imaginavam.

Notas

1. Conforme é apresentado pelo site Ecclesia, no


link http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/pais_da_igreja/s_cipriano_sobre_a_unidade.
html
2. Epístola 59, parágrafo 14, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.liv.html
3. Epístola 59, parágrafo 7, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.liv.html
4. Epístola 33, parágrafo 1, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.xxvi.html
5.Da Unidade da Igreja, capítulo 5.
6. Epístola 66, parágrafo 8, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.lxviii.html
7. Justo L. Gonzales, Uma história ilustrada do Cristianismo, Volume 1, pág. 143.
8. Epístola 43, parágrafo 1, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.xxxix.html
9. Epístola 43, parágrafo 8, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.xxxix.html
10.Papal Primacy and the Universal Church, Editado por Paul Empie e Austin Murphy
(Minneapolis: Augsburg, 1974), Lutherans and Catholics in Dialogue V, pp. 68-69),
citado por William Webster
em http://www.christiantruth.com/articles/stephenray.html
11. Michael Winter, St. Peter and the Popes (Baltimore: Helikon, 1960), págs. 47-48,
citado por William Webster
em http://www.christiantruth.com/articles/stephenray.html
12. John Meyendorff, Imperial Unity and Christian Divisions (Crestwood: St. Vladimir’s,
1989), págs. 61, 152, citado por William Webster
em http://www.christiantruth.com/articles/stephenray.html
13. Da Unidade da Igreja, capítulo 4.
14. Da Unidade da Igreja, Elucidação 2.
15. Robert Eno, The Rise of the Papacy (Wilmington: Michael Glazier, 1990), págs. 57-60,
citado por William Webster
em http://www.christiantruth.com/articles/stephenray.html
16. J.N.D Kelly, Patrística, Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé
cristã (Editora Vida Nova, 1994), pág. 155.
17. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs (Vozes, 2002), pág. 293, verbete
Cipriano de Cartago.
18. Epístola 59, parágrafo 14, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.liv.html
19. Phillip Schaff, Ante Nicene Fathers, Volume 5, Epístola 54, nota 2572, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.liv.html
20. J.N.D Kelly, Patrística, Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé
cristã (Editora Vida Nova, 1994), pág. 155.
21. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs (Vozes, 2002), pág. 293, verbete
Cipriano de Cartago.
22. Epístola 71, parágrafo 3, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.lxx.html
23. Epístola 74, parágrafo 2, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.lxxiii.html
24. Epístola 74, parágrafo 9, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.lxxiii.html
25. Epístola 74, parágrafo 8, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.lxxiii.html
26. O sétimo concílio de Cartago sob Cipriano, traduzido
de http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.vi.i.html

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