Você está na página 1de 368

A FELICIDADE ATRAVÉS DA

CASTIDADE
Prezado leitor; tens diante de ti um texto preparado para fortalecer tua
alma no combate à impureza e para que possas mais eficazmente velar por tua
castidade. Se és casto, a fortalecerás; se não és, encontrarás meios com que pos-
sa recuperá-la e fortalecê-la. Se estiveres sendo tentado, encontrarás também
argumentos para fortalecer teu intelecto e a vontade e assim vencer a tentação.
Lembra-te que nada disso conseguirás se não tiveres o auxílio divino, pois ne-
nhum homem conseguiu manter-se casto sem as graças de Deus, principalmen-
te sem a prática dos Sacramentos, de modo especial o da Confissão e o da Eu-
caristia. E este conselho tanto vale para a castidade perfeita, da virgindade con-
sagrada, quanto da castidade matrimonial.
Inicialmente, imaginamos um diálogo, supostamente ocorrido entre um
recém-nascido e seu pai, onde se debate os principais aspectos da luta ocorrida
no interior de uma alma: tanto para proteger a castidade quanto para vencer e
expulsar a impureza. Neste diálogo, pensamos em colocar na mente do leitor
todos aqueles aspectos que normalmente a pessoa não imagina que ocorra, por
exemplo, nos momentos de uma tentação. Imaginando que eles possam estar
ocorrendo naqueles momentos críticos, a alma pode ficar fortalecida para ven-
cer o tentador e crescer na virtude.
Passamos depois a enumerar, citando as fontes, a doutrina católica sobre
a Castidade expressa pelos Doutores, pelos Santos e por teólogos e moralistas
católicos. A leitura de tal doutrina nos faz conhecer o valor da Castidade e de-
fendê-la com conhecimento de causa, praticá-la como coisa necessária ao nosso
crescimento espiritual, vivenciá-la como a virtude mais essencial para que pos-
samos alcançar a nossa salvação,
Após citar vários autores sacros que falaram da castidade da Virgem Ma-
ria e de São José, narramos alguns exemplos, contamos alguns casos, em que se
viu a luta em defesa da castidade ou então os castigos que caíram sobre aqueles
que se tornaram impuros e ofenderam acintosamente a Deus. E, por fim, fala-
mos sobre a castidade matrimonial, hoje também tão esquecida, e comentamos
sobre o infame pecado contra a natureza.
Se o tens em tua mão, lê este trabalho para se aperfeiçoar e crescer em
tão excelsa virtude. Medita-o, se for possível. O autor dele gostaria de permane-
cer anônimo se isto fosse possível, pois o que objetiva é tão somente fazer bem
às almas. Faz, pois, tu mesmo, bem à tua alma e procura viver estes princípios.
Sede casto! Terás o eterno paraíso como recompensa.
Oferecemos esta obra a São Luís Gonzaga,
Patrono da Juventude e modelo de castidade

2
Um imaginado diálogo sobre a luta interior de uma alma
1 contra as tentações de impureza

O pequeno Rafael acabara de nascer. Estando com ele a sós no quarto,


seu pai, que se chamava Tobias, começou a fitar-lhe o cândido e inocente
olhar. Tobias procurou penetrar, dentro do silencioso e bem iluminado quar-
to, na alma simples e pura que se revelava naquele olhar. Havia um tal brilho,
uma tal candidez, uma tal pureza naquele olhar tão singelo, que o deixou en-
cantado. Contemplava pensativo e como que extasiado os olhos da criança,
quando de repente pareceu-lhe ouvir sua voz:
- Papai, vês como trago neste olhar tanta pureza, a qual Deus concede a
todo recém-nascido. Responda-me: promete ajudar a conservar-me assim puro
até o dia em que aparecerei perante Deus no final de minha vida?
- O quê?! Que quer dizer com isso? Como consegue falar?
- Não importa, por enquanto, saber como consigo falar. Mas, sim, que
resposta pode dar à minha pergunta.
- E por que devo ajudá-lo a conservar a pureza?
- Deus entregou-me nesse momento aos seus cuidados inteiramente casto
e virgem, possuindo toda essa pureza de que tanto se admira. Mas tal pureza
encontra-se agora em estado germinal. Necessito que ela cresça e se fortaleça,
obviamente amparado com as graças divinas. Mas, sozinho, nada conseguirei.
- Entendo. Prometo, então, com as graças de Deus, ajudá-lo não só a
conservar essa pureza tão maravilhosa, mas auxiliá-lo a lutar para que ela cresça
e se desenvolva mais ainda no decorrer de sua vida. Pelo jeito já entende algu-
ma coisa sobre a graça divina: por onde devo começar?
- Inicialmente, um passo de grande importância é realizar o mais cedo
possível o meu batizado. Pois começando cedo a vida de cristão, as graças de
Deus fortalecerão minha alma já desde a sua primeira inocência. Será oportu-
no, na ocasião, que eu seja consagrado a Nossa Senhora, a Santa Mãe de Deus,
Medianeira Universal de todas as graças divinas, pois pertencendo a Ela desde
o batismo poderei contar com uma proteção mais eficaz e segura durante o res-
to da vida.
- Sim, prometo também batizá-lo o mais cedo possível e consagrá-lo a
Nossa Senhora. Mas é preciso saber da grande responsabilidade de ser cristão,
aprender, quando crescer, a Doutrina Cristã para depois, não só crer, mas pro-
fessar a Doutrina de Cristo até à morte. Pois a pureza em que nasceste um dia

3
acabará se não adquirires o espírito de luta para defender-se dos inimigos dela e
da tua alma.
- Tudo isso é realmente muito necessário como base para o trabalho da
graça divina. No entanto, muito mais importante, doravante, é que durante o
desenvolvimento de minhas potencialidades eu tenha um modelo vivo a imitar.
E Deus instituiu que o modelo mais perfeito para os filhos é seu próprio pai.
Preciso ver em sua alma a prática desta mesma pureza com que nasci. É possí-
vel?
- Nunca havia pensado nisso. Como poderei ser seu modelo? Um exem-
plo a ser seguido se hoje já não guardo mais a pureza como deveria? É bem
verdade que procuro lutar para conservá-la, mas como tenho tido quedas...
- Pois é. Se no seu interior existem quedas e uma luta, é preciso que no
exterior eu veja exemplos tais de fidelidade, de castidade, de pureza, que imagi-
ne ser isso o normal de sua alma e, procurando imitá-lo, siga mantendo fideli-
dade a tão perseguida virtude. Basta que me conte sobre sua luta interior contra
a impureza...
- Qual a vantagem de contar-lhe a luta que tenho em meu interior?
- Sabendo como se trava essa luta no interior de sua alma saberei dora-
vante entrar no combate de forma mais hábil e vitoriosa. Saberei também que
recursos se utiliza para ser interiormente aquilo que se manifesta no exterior,
nos atos.
- Pois bem, já que insiste, vou tentar mostrar como se desenrola essa luta
no interior de minha alma. Realmente, trata-se de uma luta, e de uma luta sem
quartel. De um lado, a luta de minha alma contra as tentações de impureza; e
de outro, a luta dos inimigos dela (as más inclinações - provindas dos instintos -
o demônio e a carne) contra a castidade. Pois a alma pura é como se fosse uma
alvíssima pedra de cristal, que, exposta a um ambiente fuliginoso (como assim
se mostra o ambiente infestado pelos ares da impureza), fica inteiramente em-
baçada. Para permanecer sempre limpa torna-se necessário que a estejamos
sempre limpando contra as intempéries exteriores.
- Vamos começar. Responda-me a mais esta pergunta: de que modo a
impureza inicia seu ataque à alma pura?
- Através de assédio, utilizando-se das más inclinações (nascidas nos maus
instintos) e das sugestões exteriores ao pecado.
- Que quer dizer má inclinação?
- Nós temos boas e más inclinações. Inclinar-se é pender para um lado, é
ter preferência ou gosto por determinada coisa. Então quando nós temos prazer
e gosto pela prática das virtudes ou dos próprios deveres de estado, diz-se que
temos boas inclinações. Pelo contrário, quando se manifesta mais forte a pre-
guiça e o gosto pelos vícios, temos aí então as más inclinações. Tanto estas

4
quanto aquelas se manifestam alternadamente em nossa alma. Tanto as boas
quanto as más inclinações podem crescer ou decrescer em nós conforme as
estimulemos ou as combatemos.
- Então a pessoa combate as boas inclinações?
- Abertamente, não. Mas tudo o que diz respeito às boas inclinações exi-
ge esforço, sacrifício e sofrimento. Enquanto que as más inclinações pedem
apenas prazer e boa vida. Assim, quando a pessoa tem um dever a cumprir,
mas o negligencia por preguiça, está automaticamente estimulando uma má in-
clinação e combatendo uma boa.
- Isto são nossas inclinações. Mas como ocorrem as sugestões?
- Estas vêm através de nossos sentidos, agindo diretamente na memória.
Sempre que nossos olhos vêem uma figura imoral, por exemplo, a memória é
ativada para o gozo que aquela figura inspira. Ela é retida na memória de uma
forma insinuante, convidativa, sugestiva para o pecado. É preciso ter presente
que os espíritos malignos têm grande influência, pois eles são os responsáveis
pela introdução em nossa memória de maus pensamentos. Que, geralmente,
vêm através dos nossos olhos... embora, às vezes, também pelos ouvidos ou
qualquer um dos outros sentidos. Ou mesmo pelo simples pensamento em algo
- Então não são somente os sentidos dos olhos e ouvidos que nos trazem
tais sugestões?
- Não, elas podem vir também através dos outros sentidos, pois os olhos
nos mostram a sensualidade na frente (como fotos, pessoas, etc.) e os ouvidos
nos faz senti-la mais longe (ao se ouvir uma música sensual), mas outro sentido,
como, por exemplo, o olfato também pode causar tais sensações (ao se sentir
algum perfume de natureza provocativa), ou até mesmo o tato através do conta-
to pessoal.
- Cite um exemplo de como o tato pode nos causar inspiração de peca-
do.
- Existem várias ocasiões em que o sentido do tato pode provocar na nos-
sa mente inspirações para o pecado. São os toques e carícias, às vezes proposi-
tais ou não, que as pessoas nos fazem, principalmente as do sexo oposto. No
entanto, é preciso ter muito cuidado com outros tipos de toques e carícias, que
são aqueles feitos em nós mesmos, os quais, em geral, podem ocorrer no de-
correr do dia, sendo mais freqüentes nos banhos. Como vê, não são somente os
olhos e os ouvidos que podem estimular nossas más inclinações para o pecado
contra a castidade.
- Que devemos fazer nesses casos? Fechar os olhos, tapar os ouvidos ou
o nariz?
- Às vezes desviar os olhos ou qualquer outro sentido nosso pode muito
bem evitar que sejamos vítimas de tais sugestões. Há casos, porém, que não há

5
tempo, pois somos pegos de surpresa e a sugestão pecaminosa vem de imedia-
to.
- E aí que fazer?
- Devemos lutar contra as sugestões, fazendo jaculatórias e atos de rejei-
ção ao que foi captado por nossa memória. Pode até ocorrer o caso em que
nossas más inclinações vençam temporariamente os propósitos de pureza, e aí
nos sentimos de repente fruindo aquele gozo passageiro em nossa mente, seja
por um lapso de tempo ás vezes rápido, às vezes demorado.
- E quando isto ocorrer o pecado de impureza já foi consumado?
- Depende. Desde que não haja adesão da vontade e a pessoa logo reco-
nheça o mal em que está caindo, rejeitando-o interiormente, fazendo atos de
contrição, arrependendo-se, não há pecado; mas se houver consentimento da
vontade, mesmo levemente, aí temos matéria de pecado que pode ser grave.
- O senhor falou em ato de contrição: que quer dizer e por que fazê-lo?
- Trata-se de uma belíssima oração destinada às pessoas arrependidas de
seus pecados. Ela é rezada logo após a Confissão, mas pode também ser recita-
da tão logo a pessoa se veja em estado de pecado e se arrependa do mesmo.
Pode ser um meio muito eficaz de combater as más inclinações e os vícios. Ela
coroa como que nossos propósitos de penitência.
- Como o senhor reza? Entra numa igreja - o que faz?
- Não é bem assim. Reza-se instintivamente, no subconsciente, estando
em casa, na rua ou trabalho, em qualquer lugar. É só meditar interiormente al-
guns segundos, rezando, sem que seja necessário parar o que está fazendo.
- Quais os lugares onde os homens são mais tentados?
- Em todo e qualquer lugar que haja ajuntamento de pessoas.
- Quem é que realmente nos tenta, o demônio ou as pessoas?
- Todos participam das tentações: os demônios apenas sugerem às pesso-
as que tomem tais atitudes, digam tais coisas ou provoquem tais casos, etc. Por
exemplo, as mulheres mundanas, mal vestidas, muitas vezes nem sequer perce-
bem que estão provocando uma multidão de pecados por onde passam. Se
uma determinada jovem anda na rua com uma roupa provocante, toda vez que
passa pelas pessoas ela suscita uma multidão de pecados que os homens come-
tem ao olhá-la com sensualidade, com desejos de libidinagem. É ela quem pro-
voca naqueles homens todas as más inclinações de suas almas, pois sua figura
imoral irá fatalmente se fixar em seus olhares e de lá irá para a memória deles,
provocando-lhes o desejo de pecar, a fruição do gozo pecaminoso.
- Neste caso, que parte tem o demônio neste tipo de tentação?
- Como já disse ele apenas sugere, tanto sugere às mulheres (através de
inspirações diretas ou indiretas à mente, à memória delas) o vestir-se daquela
forma provocante, como sugere aos homens (da mesma forma, na memória) o

6
desejo de fruir aquele gozo pecaminoso. São Bernardo disse que os demônios
enviam à alma ociosa maus pensamentos em que se ocupe, porque mesmo que
cesse de mal obrar não cesse de mal pensar. Depois vem a parte da carne tam-
bém, pois é ela que alimenta nossas más inclinações.
- Quer dizer que, apenas acatando a sugestão do desejo, embora sem rea-
lizar o pecado explícito, a pessoa comete pecado?
- Sim, o desejo é tudo. Lúcifer pecou por um desejo e por isso está no in-
ferno. Veja o que diz Nosso Senhor no Evangelho: "Ouvimos o que foi dito:
não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo: todo aquele que olha para uma
mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério em seu coração" (Mt 5, 27-
28). Portanto, haja ou não consumação do pecado em ato, se o desejamos já
pecamos.
- Mas, se o desejo é tudo, não há diferença entre ele e o ato?
- Existem diferenças entre o pensamento, o desejo e o ato. A maldade
existente no pensamento tem um grau menor, aumenta com o desejo e atinge o
seu apogeu com a ação. Em primeiro lugar, a imaginação nos faz pensar no pe-
cado "vendo-o" em outros já praticados da mesma natureza ou então pensando
no prazer do ato futuro. O desejo surge concomitante com o pensamento e a
imaginação, mas é o querer, é a decisão interior de executar o que pensou que
consuma a malícia do pecado. Em último lugar vem o ato, que é a mera conse-
qüência do que se pensou e se desejou.
- Se o ato não for concretizado, diminui a culpa?
- Sim, mas não faz com que ela inexista. No exemplo acima (Mt 5, 27-
28), Nosso Senhor diz que só em olhar para uma mulher com desejo libidino-
so a pessoa já cometeu o pecado de adultério, embora esteja escrito que "em
seu coração", quer dizer, em seu interior, em seu querer. Se ele parte para
executar o seu desejo o pecado aumenta de gravidade. Pois o desejo acarreta
perca momentânea das virtudes e de Deus no coração da pessoa, mas o cum-
primento do mesmo faz com que Deus se afaste completamente da pessoa e
faça-a ficar sujeita à posse diabólica. Mas não devemos levar em pouca conside-
ração os desejos, pois eles levam a pessoa a cumprir efetivamente pecados mai-
ores.
- Pelo que se vê, tudo indica que nos dias atuais o demônio obteve pode-
res extraordinários para tentar os homens, pois nunca a memória humana foi
tão assediada por sugestões malignas, principalmente por causa do exagero do
uso da imagem. Se Deus o permite, como é isto possível? Então Deus permite
a perdição dos homens?
- Não é bem isso. Quando é dado ou permitido poderes maiores para
eles, é que Deus quer mostrar-lhes que apesar de tanto poder, e de serem supe-
riores por natureza aos homens, nunca conseguirão vencer a simples vontade

7
humana fortalecida pela graça divina. Nem todos os demônios do inferno, com
todo o poder que possuem, inclusive de tortura e terror, intimidação ou o que
for, podem vencer a mais simples e humilde alminha se esta tem sua vontade
fortemente unida a Deus pela graça divina. Um dos maiores exemplos nós po-
demos ver no Patriarca Jó, o qual conseguiu sobrepujar todos os poderes dados
aos demônios apenas com a submissão de sua vontade a Deus.
- Como Deus deve se alegrar com uma alma que repele o pecado por
amor a Ele. Pois se o Inimigo é derrotado, Ele só pode ficar muito satisfeito.
- Realmente, se há uma forma do homem dar uma espécie de alegria a
Deus, fá-lo recusando o pecado por amor a Ele. Cada vitória de uma alma é
motivo de júbilo no Céu. A alegria é maior se conseguirmos colecionar vitórias
sobre vitórias. De outro lado, se ocorre alguma derrota nossa há muita tristeza
no Céu. Esta é uma guerra que tem de ser ganha batalha a batalha...
- É incrível imaginar como se trava uma guerra dentro da alma. Como se
dá isto?
- Vou explicar. Mas antes devo mostrar como é o campo de batalha.
- Há um campo de batalha no interior da alma?
- Dentro e fora. Falarei de um campo de batalha que existe fora da alma,
mas que se transporta para dentro dela facilmente. Fora, ele é um campo mate-
rial, composto dos ambientes e das pessoas; dentro da alma é um campo intei-
ramente espiritual, composto de pensamentos, de desejos, de inclinações, de
sugestões, etc. Tudo o que ocorre no campo externo influi fortemente no inte-
rior.
- Então é falando do campo exterior que entenderemos o interior?
- Exatamente. No campo de batalha exterior, nós contemplamos o ambi-
ente, as modas, os modos, a indumentária, o andado, o liberalismo, o natura-
lismo e a sensualidade que impregna todo o ambiente social influenciado pelos
pecados. A mulher é o ponto central onde se jogam todas as concepções e mo-
do de vida da impureza; isso porque ela tem no corpo todos os atrativos para as
delícias carnais, onde as más inclinações agem com mais força, é o ponto de
fruição de todos os gozos. A Revolução sensual e igualitária sabe explorar isso
muito bem. Desde criança já vão habituando a mulher com o uso de pouca
roupa, e com a pouca roupa vai aprendendo também uma maneira de ser, um
estado de espírito liberal e naturalista, incentivado, estimulado, incrementado e
explorado ao máximo pelas novelas, pelas revistas, pelas modas, pelos costu-
mes, até mesmo pela maneira de falar e de andar. O gingado de certo andado
sensual é treinado desde a mais tenra infância, constituindo-se motivo de vaida-
de entre meninotas e moçoilas.
- Mas só as mulheres são visadas por tais costumes?

8
- Não. Os homens também. Mas preste bem atenção: os homens são ten-
tados mais pelos olhos, daí o nudismo inspirar tanto a sensualidade masculina,
mais do que a feminina; enquanto que as mulheres são mais tentadas pelos ou-
vidos: gostam de ouvir músicas sensuais e de elogios despudorados dos ho-
mens. Por causa disso, gostam de posar com sensualidade, para atrair a cobiça
pecaminosa deles. E nem passa pelas cabeças delas a gravidade do pecado que
cometem, pois ofendem a Deus diretamente por seus modos e costumes além
de atraírem os homens para cometerem outros pecados por causa de suas figu-
ras provocativas.
- Existe a nudez completa e a insinuação pela silhueta do corpo. Expli-
que-me a razão disso ser pecado e ofender a Deus...
- Deus abomina a nudez, isto é mais do que patente na Sagrada Escritura,
onde consta que a nudez mostra nossa fealdade, isto é, nossa indignidade de
pecadores. Nós somos dignos porque somos filhos de Deus e enquanto guar-
damos os seus mandamentos. Expor o corpo aos olhares dos outros é o mesmo
que procurar despertar as más inclinações deixadas pelo pecado original. Co-
mo o corpo humano está reservado a ser o templo da Santíssima Trindade,
com a nudez ele se torna indigno desta condição por causa dos inúmeros peca-
dos que pode causar e assim afastar Deus de sua posse. Principalmente a mu-
lher, ao despir-se perante os homens, estimula naturalmente os apetites mais
baixos da sensualidade humana, induz as más inclinações a se exacerbarem.
Daí Deus afastar-se da pessoa despida. Em suma: como o homem tem em si
duas naturezas, angélica e animal, representadas na alma e no corpo, é despin-
do-se que se reduz à baixa condição animal, e é no vestir-se com dignidade que
ascende à condição angélica. Foi por isso que foi o próprio Deus quem confec-
cionou as roupas para Adão e Eva após os mesmos terem pecado no Paraíso. A
igreja considera como o Padroeiro dos alfaiates o próprio Deus por causa desse
fato.
- Mas, antes do pecado havia nudez total do casal; e como nesse caso era
ela tolerada por Deus, estavam eles rebaixados à condição meramente animal?
- Realmente, era uma nudez decorrente da inocência e, por causa disso,
não os reduzia á condição meramente animal. Este “rebaixamento” só ocorre
após o pecado original.
- Explique melhor como pode ser isso.
- Deus criou o homem com um instinto muito forte que o impele para
Ele, que é o da beatitude ou felicidade. Já a inocência é o estado em que o ho-
mem não possui más inclinações, podendo ficar exposto pela nudez sem que
peque e o impeça de ser feliz. Seu estado natural por isso não deixava de ser
angelical. Após o pecado, no entanto, a mesma nudez passou a produzir a malí-
cia, a maldade. Como vemos hoje em nossa época, pois ninguém pode se con-

9
siderar isento de pecado ao contemplar as figuras tão desnudas ou mal-vestidas
que existem hoje!
- Meu Deus! Deve ser terrível a luta para conservar a pureza nesta época!
- É terrível, mas Deus nos ampara, isto é, se lutarmos.
- E se a pessoa ficar indiferente, não dá resultado?
- Muitos procuram agir dessa forma: ficar indiferente! Não, não dá resul-
tado. Não tem nenhum mérito e valor! Viver na moleza é muito fácil, mas não
forma um caráter. De modo geral, as pessoas hoje vivem em constantes folgue-
dos, férias, passeios, gozos, músicas, danças, mas que lucram depois? Tornam-
se pessoas moles, sensuais, sem força de vontade para vencer o vício e praticar
as virtudes. E a indiferença perante o nudismo vai se tornando comum, natural,
mas esta indiferença, como o ócio, é fonte de todos os vícios. Ao final, acabam
pecando do mesmo modo sem que a consciência lhes desperte qualquer reação
sadia.
- Estamos conversando ainda sobre o campo de batalha exterior, mas na-
da disse sobre o campo que existe no interior da alma.
- É verdade. Vamos falar dele agora. Dentro da alma, veremos o que cau-
sa tais ambientes, modos e modas. Quando a pessoa tem a alma pura dá-se re-
nhido combate interior para rejeitar as sugestões que chegam aos seus sentidos.
Mas tal combate se deflagra quando a pessoa tem muito patente em sua alma
aquilo que denominamos de "Princípio de Contradição".
- "Princípio de Contradição"? quer dizer: maneira de contradizer os ou-
tros?
- Não se trata disso. Segundo nos ensina São Tomás de Aquino, o "Prin-
cípio de Contradição" é o princípio primeiro e supremo do pensamento, o juízo
mais simples e universal de todos, que se traduz na seguinte verdade: é impossí-
vel que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo. Por ter a evidência primeira
desse princípio o homem é capaz de conhecer e de pensar. Sem percebê-lo, o
aplicamos continuamente. Sem ele, não conseguiríamos distinguir o que é do
que não é, nem um ser de outro; não teríamos noção da hierarquia que há en-
tre os seres da Criação; não poderíamos separar o homem da natureza irracio-
nal e do cosmo. A partir do "Princípio de Contradição" e das outras evidências
primeiras vinculadas a ele, a razão não só conhece a distinção universal entre
verdade e erro, senão que é capaz de ir passando do conhecimento de uma coi-
sa a outra. Adquire assim verdades sucessivas, sempre contrastando, explícita
ou implicitamente, o que é do que não é; o que é mais com o que é menos; o
verdadeiro com o falso.
- Não entendo onde cabe o "Princípio de Contradição" na luta contra a
impureza.

10
- É simples. Os puros têm, pelo "Princípio de Contradição" elevado que
possuem, uma capacidade maior de discernir o bem do mal, o que é do que
não é, a pureza da impureza, e isto os faz ir à luta para defender-se. Uma de-
monstração do enfraquecimento de tal princípio na alma humana é o desejo de
ficar indiferente, como anteriormente você se referiu. Daí que os puros verda-
deiros moverem essa guerra de que lhe falo, ocorrida dentro da alma deles. A
luta interior consiste, então, num exercício de constante repúdio à impureza
que quer manchar a alma.
- Quais são as sugestões que podem se insurgir no interior de nossa al-
ma?
- É uma espécie de "pedido" que as carnes fazem aos nossos baixos instin-
tos para que pequemos. Nossas más inclinações estão sempre propensas a acei-
tar tais "pedidos" ou convites, pois, enquanto alguns as herdaram assim, outros
se acostumaram com a idéia do pecado como se fosse uma coisa natural. Resis-
tir a tais convites é lutar contra uma grande força de nossa natureza decaída.
Ninguém o conseguirá sem a graça de Deus, pelo menos por tempo duradouro.
Daí eu haver falado anteriormente da necessidade de termos que encetar uma
verdadeira luta interior contra tais investidas dessas "sugestões" e convites feitos
por nossas más inclinações.
- Então, fale-me um pouco como se desenvolve essa luta em nossa alma...
- Vou tentar descrever o que me parece ocorrer no centro da alma, no
âmago das cogitações, quando essa luta está em curso. Primeiramente, nossa
vontade fica tão bombardeada com constantes apelos de consentimentos ao
pecado que às vezes ela parece fraquejar, e por certo fraqueja realmente se fi-
zermos pequenas ou pequeníssimas concessões que ás vezes julgamos sem im-
portância. Se resistirmos, os ataques subseqüentes poderão ser mais renhidos,
mas nossa vontade se fortalecerá se estiver amparada pela graça de Deus. Pode
ocorrer às vezes que a tentação é tão terrível, tão constante e sem descanso que
parece que vamos ceder em algo. Muitas vezes o estado de alma é propício a
sugestões de desesperos, isso porque às vezes quando estamos imersos em pro-
vações interiores nos parece faltar o auxílio divino.
- Que tipo de desespero? Suicídio ou coisa parecida?
- Nada disso! É o desespero de se entregar de vez e deixar de lutar. A su-
gestão é: para que lutar, não seria melhor se entregar logo de vez? Não seria
mais cômodo se deixar arrastar suave e lentamente no caminho da tentação?
- Seria o demônio que faria esse tipo de sugestão?
- É preciso ficar bem patente que os espíritos malignos procuram inspirar
tais sugestões em nossa mente, mas o fazem por vias terceiras, por exemplo,
dando realce a algum fato, trazendo à nossa memória alguma coisa que já des-
frutamos do pecado, etc., mas de forma alguma eles podem agir diretamente

11
em nossos atos e, às vezes, nem sequer em nossos pensamentos. Podem até
criar algum clima propício para auxiliar os maus pensamentos, por exemplo,
um vento fresco e agradável, um perfume que se espalha pelo ar, uma música
sensual ou alguma figura que é inspirada na memória. Tudo isso é possível que
aconteça, num momento ou noutro, com uma ou outra pessoa, não se sabe se
com muita freqüência, mas o certo é que ele nunca age sozinho, às vezes tem
até mesmo o concurso das outras pessoas ou de nós mesmos...
- Como os anjos bons atuam para evitar que pequemos pelas ações?
- De várias formas: dão-nos avisos do perigo que nossa alma está corren-
do de terminar caindo no inferno; alimentam nossa lembrança com os ensina-
mentos que tivemos dos castigos prometidos para quem peca; alimentam em
nossa alma o temor de Deus. Tudo isso através de nossa memória, onde eles
podem atuar livremente. Para tanto, inspiram a alguém para nos falar, levam-
nos a ler algo sobre o assunto, ou simplesmente agem diretamente no nosso
intelecto sugerindo nele pensamentos que levem ao temor de Deus.
- E a nossa consciência não reclama quando estamos prestes a ceder?
- É neste momento que somos mais ajudados por nossos anjos. São ins-
pirados em nossa mente tudo o que aprendemos sobre o pecado e nosso rela-
cionamento com Deus. Os bons pensamentos são sugeridos também de forma
indireta, eles atuam fortemente em nossa memória, procurando nos mostrar o
lado mau das ações pecaminosas e o dever que temos de cumprir os manda-
mentos de Deus. Seria assim que nossa consciência se despertaria...
- A nossa consciência não está sempre alerta?
- Nem sempre. O mundo está sempre criando meios com que sufocar a
nossa consciência. Em certas horas ela aparentemente nada reclamará das ati-
tudes das pessoas, parecerá morta e inanimada, deixando as pessoas gozar dos
prazeres pecaminosos sem causar nenhum tormento interior. Isso ocorre sem-
pre com as pessoas que nunca tiveram ou perderam a Fé, mas nem sempre
com nós cristãos, que mantemos nossa Fé intacta e amamos a Deus. Mas, di-
gamos que num longo processo de vários anos se consiga sufocá-la, através de
concessões paulatinas e freqüentes, vivendo-se ébrio e anestesiando a consciên-
cia com os "entorpecentes" modernos, nem mesmo os cristãos conseguirão
manter vigilante sua consciência. Terminarão por ceder sem sobressaltos, com
naturalidade...
- E daí?
- Para que tanto esforço apenas para sufocar a consciência e viver con-
forme os outros? Vale a pena levar tal vida?
- Para alguns, sim; por exemplo, para os mundanos...
- Ora, não fomos feitos para o mundanismo, para viver dessa maneira!
Não foi para isso que viemos ao mundo!

12
- E para que, então?
- Está no Catecismo: existimos para amar e servir a Deus, neste mundo, e
depois gozá-Lo para sempre no outro. É este o motivo principal de nossa exis-
tência, e não o mundanismo, o gozo da vida! As duas coisas não andam juntas,
não se combinam: ou se ama a Deus ou se goza a vida! A frase é de Santo
Agostinho: "Quem ama a Deus, se esquece de si mesmo; quem ama a si mes-
mo, se esquece de Deus".
- Qual o resultado prático destas afirmações?
- Maior firmeza de nossa vontade, alicerçada aí por um argumento trans-
cendental sobre nossa existência. Essa firmeza da vontade deverá redundar em
mais uma vitória sobre as tentações. Muitas vitórias sobre sugestões de conces-
sões e desesperos são alcançadas com este simples argumento, que os anjos nos
auxiliam a formar em nosso interior, em nossa mente. Pois diante de tal argu-
mento, mesmo estando com aridez, solidão, tédio, qualquer sofrimento interi-
or, sem algum consolo ou orientação, o pensamento que norteará o rumo de
nossa vida será: "Não posso!", perante as sugestões do pecado...
- Seria esse o fim de nossa resistência ao pecado?
- Na realidade, o fim é o amor a Deus, é a vida eterna. Veja o que escre-
veu São Bento: "Com toda a confiança pode esperar a eterna vida quem aniqui-
la o inimigo, o tentador, expulsando-o juntamente com as suas sugestões do li-
miar do coração, quem, empolgando a ninhada ainda tenra das tentações ruins,
as esmaga contra o rochedo que é Cristo".
- Só em ver já pecamos?
- Nem sempre. Depende da forma como se acata interiormente a figura
sedutora. Olhá-la com complacência, sem uma recusa formal, ou não desviar
logo o olhar é o mesmo que consentir interiormente numa fruição sensitiva da-
quela figura, uma espécie de gozo dos olhos. As pessoas que já estão perverti-
das gozam desta forma antes de pecar de fato com o corpo. Os deleites come-
çam pelos olhos para depois passarem para os outros sentidos, até chegar a atos
mais baixos. Se nós, que julgamos sermos autênticos cristãos e amarmos a
Deus, acaso olharmos tais figuras com o mesmo espírito das pessoas materialis-
tas e imorais, ou até mesmo com indiferença, estaremos agindo da mesma for-
ma que os pagãos e as pessoas depravadas. Então, ao ver a figura imoral se não
a recusamos interiormente, pecamos; se a repudiamos, não pecamos.
- Deve ser quase impossível, então, em nosso mundo atual, um jovem
conseguir vencer as tentações contra a pureza...
- Tudo se resume neste lema: rezar e lutar. É desta luta que estamos fa-
lando, uma luta toda interior e que é mais feroz e renhida nos corações puros
dos jovens. O Beato Cláudio La Clolombière, confessor de Santa Margarida de
Alacoque, que propagou a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, afirmou:

13
"Aquilo que mais medo mete à natureza, como as prisões, as doenças prolon-
gadas, a mesma morte, tudo isso me parece suave em comparação da eterna
luta que é necessário travar comigo mesmo, da vigilância contra as surpresas do
mundo e do amor próprio, desta vida morta no meio do mundo".
- E se a pessoa for viver num ambiente todo diferente, conservador, pu-
ro, onde as pessoas se vistam com recato e pudor, não seria a solução?
- Não existe outra solução a não ser lutar! Pode ser até que se formos vi-
ver num outro ambiente (que hoje inexiste) onde impere o pudor e o recato,
fiquemos completamente desprevenidos, e por falta do hábito de lutar, logo
num primeiro combate sejamos derrotados. Veja o exemplo do rei da Inglater-
ra Henrique VIII, que vivia numa época onde o pudor e o recato predomina-
vam mais que hoje, mas mesmo assim tal rei se transformou num grande impu-
ro e adúltero, "casando-se" com diversas mulheres e se tornando um inimigo de
Deus. Entretanto, antes de se transformar assim num grande pecador era ele
fervoroso católico, tendo até recebido do Papa o título de "Defensor da Fé".
Transformou-se, mudou completamente, num ambiente de recato como o de
sua época... Por que? Faltou-lhe o espírito de luta que deveria ser sempre uma
chama viva no interior de sua alma.
- E a que ponto nos levará este espírito de luta? Qual é seu fim?
- O fim último será sempre o amor de Deus. Mas objetiva também nos
santificar para chegarmos até Ele. O mesmo Beato Cláudio La Colombière diz:
"É estranho verificar quantos inimigos tem a alma de combater, desde o mo-
mento em que se resolve a ser santa. Parece que tudo se desencadeia: o demô-
nio com as suas astúcias, o mundo com as suas seduções enleantes, a natureza
com a resistência que opõe aos nossos bons desejos; os louvores dos bons, a
crítica dos maus, as solicitações dos tíbios. Se Deus nos visita, é de temer a vai-
dade; se se afasta, logo a timidez e o desalento se seguem aos tempos de maior
fervor. Os amigos testam-nos pela complacência que com eles costumamos
usar; os que nos são indiferentes pelo temor de lhes desagradar. Nos momen-
tos de fervor, receamos sermos indiscretos; na moderação, receamos a sensua-
lidade; e sempre, e por toda a parte nos persegue o amor próprio".
- Pelo jeito é impossível se tornar santo.
- Se considerarmos os nossos próprios recursos, sim. Mas ouçamos mais
uma vez o que diz o Beato Cláudio La Colombière: "Mas, sobretudo, consistin-
do a santidade, não em ser fiel por um dia ou por um ano, mas em perseverar
até á morte, é necessário que Deus nos sirva de escudo, mas de escudo que nos
envolva completamente, porque somos atacados por todos os lados. É Deus
que tem de fazer tudo". Vê-se, portanto, que nossa santidade não depende de
nossas forças, mas unicamente de Deus.

14
- O Beato falou que até os bons podem nos atrapalhar, como ocorre is-
to?
- Quando uma pessoa entra em contato com outra, se estabelece um re-
lacionamento ou uma troca que poderíamos chamar de "comércio". Isso quer
dizer que a pessoa considerada superior dá "algo" de si para a inferior, receben-
do desta também "algo" que possa lhe ser útil. Os bons, às vezes, nos elogiam
ou nos procuram como se fôssemos seus superiores, e com isso podem nos
causar vaidade ou presunção. O superior pode dar ao inferior conhecimento,
luzes para a alma, orientação, conselhos, mas pode também transmitir (involun-
tariamente) algo de ruim que ainda está combatendo e que seja contrário a tais
coisas. Quanto ao inferior, pode dar ao superior veneração, maravilhamento,
homenagem e serviço, que podem ser mal interpretadas por ele e ser levado ao
pecado de presunção ou de vaidade. Também nós possuímos outras coisas
com que possamos servir ou transmitir a uma outra pessoa.
- Que outras coisas?
- São as virtudes infusas. A pessoa transmite à outra, através do contato
pessoal, as próprias virtudes que estão infusas em si. Não só as virtudes, mas
também os vícios. E isto é feito de forma imperceptível, através dos gestos, das
maneiras de ser, do modo de falar, das expressões, etc. É possível que um su-
perior adquira algo do inferior neste aspecto, algo que ele ainda não possua, ou,
em se tratando de algum vício, algo que ele conheça, mas não o pratique ainda.
- É. Trata-se de algo muito profundo. Como ocorre tais infusões de vir-
tudes ou vícios?
- Tudo é feito por intermédio dos anjos. Nossos anjos bons, os anjos da
guarda ou quaisquer outros, inspiram em nossas almas a prática de alguma vir-
tude quando praticamos uma boa obra. Ao longo de nossa vida, os anjos vão
acumulando e aprimorando tais virtudes na pessoa. Quando essa pessoa man-
tém contato com uma outra, todas as suas virtudes como que se manifestam e
procuram inspirar a outra a praticá-las. Melhor ainda se essas virtudes são prati-
cadas por um grupo de pessoas, terminando por influir naquele que se aproxi-
ma do grupo.
- E os anjos maus o que fazem?
- Eles procuram também inspirar os vícios contrários a tais virtudes. Se a
pessoa comete um pecado é porque um anjo mau inspirou-lhe a prática de uma
"virtude" às avessas (um vício) e vai ao longo dos anos "cristalizando" aquele ví-
cio na alma daquela pessoa. Com o acúmulo daquele tipo de pecados, aquele
vício se solidifica e passa a servir de exemplo para os outros. Ele vira um hábi-
to, em alguns causa até transformações genéticas. Onde quer que pessoas assim
estejam, todo o ar em sua volta estará impregnado de seus vícios. É assim que
se dá o "comércio" espiritual entre as pessoas, tem que haver clima propício.

15
- Na prática como isso funciona? Pode dar exemplos?
- Sim. Vamos ver os exemplos para facilitar o entendimento. Um pai tem
uma boa virtude e pratica a bondade com todos com quem convive. Ele tem
um filho que o observa constantemente. Ao receber uma visita o filho vê com
que solicitude seu pai trata o visitante, com que lhaneza de trato, com que res-
peito e acato, enfim, com quantas virtudes e boas maneiras ele estabelece a
conversação com o visitante. Ao longo dos dias, o filho vai observando nele, o
seu pai, que é o seu exemplo vivo, como ele pratica uma infinidade de virtudes
no trato (diríamos "comércio") com as pessoas. Mas para que chegue a esta ob-
servação é necessário que todo o ambiente em que vivem contribua, seja através
do asseio, da beleza, da arte, enfim, de um clima que como que “respira” e ins-
pira aquelas virtudes. Ele é, então, inspirado a agir da mesma forma. Mas se
temos o contrário, um pai que é genioso, cheio de maus atributos e, no conví-
vio com as pessoas, manifesta constantemente um caráter agressivo ou repulsi-
vo, cheio de azedumes, e todo seu ambiente é composto de coisas e aspectos
compatíveis com este modo de viver, etc., o filho poderá ser tentado a seguir
aquele mau exemplo, certamente, e se tornará um homem cheio de tais maus
atributos.
- Realmente, deve ser estranho um filho ver um pai dar maus exemplos.
- É. E os piores maus exemplos são de natureza moral. Por exemplo, se
ele mantém perante o filho conversas indecorosas, ou se o filho o vê falar ou
agir indecorosamente com terceiros. É um péssimo exemplo. Mas se o pai é
uma pessoa de boas virtudes, vai servir de bom exemplo em tudo o que faz ou
em tudo o que fala, tanto a seus filhos quanto às pessoas que o cercam.
- Tem outro exemplo?
- Temos vários exemplos da mesma espécie: pode ser um tio ou até
mesmo um irmão que pode espelhar bons ou maus costumes. Pode ser tam-
bém o professor, o patrão, o vizinho, o amigo, etc., aqueles com os quais se
mantém certo relacionamento diário e que podem transmitir o que chamo de
“virtudes” ou “ciências infusas”. A propósito, veio-me à memória um caso que
me contaram. Eram dois amigos que se conheceram desde jovens. Um deles
era casto e o outro, embora não o fosse, tinha-lhe grande admiração por causa
de sua pureza. Após muitos anos sem se encontrarem, certo dia viram-se casu-
almente na rua. Aquele que admirava, mas não praticara a castidade havia se
enveredado por caminhos terríveis, havia se transformado num poço de luxúria
e de sensualidade. Sua alma estava enegrecida pelos pecados contra a pureza,
mas na hora em que reviu certo dia o amigo de outrora, que mantinha ainda
em seu semblante o ar de castidade, sentiu em seu interior um grande remorso
e certo desejo de praticar aquilo que admirava e não praticara na sua juventude.
Aquele sentimento admirativo, momentâneo, lhe foi despertado pelo eflúvio da

16
castidade proveniente do outro, e se lhe tocou no fundo da alma é porque a
graça de Deus o visitava. É claro que seu Anjo o ajudava nesta hora. No entan-
to, logo após despedir-se do amigo o ambiente da rua (as pessoas cheias de as-
pectos pecaminosos, o calor, os maus odores, o barulhos, as buzinas, etc.) o fez
imediatamente mudar de propósitos e voltar seu pensamento para seus anseios
de impureza.
- O senhor falou das "virtudes infusas", que a pessoa pode transmitir ou
inspirar naturalmente aos outros através de seu comportamento. Mas podere-
mos ter também o contrário, ou seja, não uma virtude, mas uma espécie de "ci-
ência infusa" do mal?
- Claro. Isso que se chama "ciência infusa" é todo o conhecimento interi-
or que uma pessoa herda de seus ancestrais e é absorvida na convivência com
os pais. E assim se propagam da mesma forma que as virtudes e os vícios.
- Como pode ocorrer na prática a propagação de um vício infuso?
- Um exemplo. Se um cristão, determinado homem, cai na tentação de
ter um relacionamento com uma mulher de má vida e consente em pecar com
ela, não sabe ele de antemão que tipos de pecados e de possessões satânicas
aquela pessoa poderia estar possuída. Ela poderá ter praticado vários pecados
abomináveis, como por exemplos, abortos, assassínios, magia negra, etc., e com
tais pecados ter atraído para sua alma a possessão diabólica. Não a possessão
clássica com convulsões e agressividades, mas uma possessão interior de mal-
dade e vícios, ou até mesmo a dureza de coração. Ao manter o relacionamento
com tal mulher o cristão corre o risco de perder suas virtudes e adquirir um
"vício infuso" em sua alma, pelo qual ficará apegado ao pecado e se verá em di-
ficuldades futuramente para se sair dele. É como se aquele tipo de "possessão"
passasse para o cristão, como diz a Sagrada Escritura: "Nunca entregues a tua
alma ás prostituta, para que não te percas a ti e aos teus bens" (Eclesiástico 9, 6),
aí incluído como "bens" as virtudes do espírito, podendo até adquirir a dureza
de coração, que começa com a tibieza e frieza para as coisas divinas.
- De onde vem, realmente, a dureza de coração?
- Vou responder com as palavras de um santo missionário português, Pa-
dre Tomé de Jesus, do século XVI: "A raiz deste desventurado mal [a dureza de
coração], é ser o homem atado a seu próprio parecer e vontade; e que é coisa
de que menos na vida se faz, e muitas vezes se tem por virtude e entendimento.
Mas é tão má essa raiz, que se com cedo e com cuidado se não corta, vem o
humano coração (que de seu nascimento sempre é inclinado ao mal) a se afer-
rar muito mais a seu parecer quando é errado, que quando acerta; que é seme-
lhantíssima qualidade dos danados. Nascem daqui diferentes gêneros de dureza
de coração, não juntamente mas pouco a pouco, até dar em obstinação infer-
nal".

17
- Mas, numa relação desse tipo, sendo o homem um cristão, sua consci-
ência não o acusa?
- Enquanto homem ou enquanto cristão a nossa consciência sempre nos
acusa do mal que praticamos. Que é a consciência? Um registro? Um mero
conhecimento? Ter consciência é ter conhecimento? É saber com clareza o
que se passa? Tudo indica que a "ciência do bem e do mal", como diz a Sagra-
da Escritura, recebida por Adão ao ingerir o fruto proibido, tem algo a ver com
o que chamamos de consciência. Pois a consciência é uma espécie de discer-
nimento do bem e do mal que temos em nossa alma, capaz de nos acusar nos
momentos de pecado. Foi isto que fez Adão se sentir culpado logo após seu
erro. Nossa alma e nossa mente registram para sempre todos os atos que prati-
camos, mas nossa consciência é quem acusa os maus atos e aprova os bons.
Neste sentido, nossa consciência tem uma função como que profética no interi-
or de nossa alma.
- O senhor já temeu pela sua salvação? Não percebe que o mundo mo-
derno nos coloca à beira de um abismo? Um dia pode ser tentado, cair e en-
tão...
- É verdade. Sofremos sugestões e insinuações mentais de todos os tipos,
tentações de orgulho e outras sensitivas. Em meio a tudo isso, surge sempre
uma sugestão terrível e infernal para acabar com a luta: passar para o outro la-
do, quer dizer, se revoltar contra Deus e seus mandamentos. Foi o que fizeram
Lutero, Henrique VIII e tantos outros hereges e uma infinidade de homens
que, simplesmente, se acomodaram no mal. Mas se nos mantivermos bem uni-
dos a Deus pela vontade, firmes em Sua graça, arrependendo-se sempre de
nossos pecados, Ele agirá por intermédio de Seus Anjos nos animando com
aquele raciocínio lógico que falei antes: "Não foi para gozar a vida que viemos
ao mundo, não é este o fim último do homem, mas sim, nesta vida amar a
Deus sobre todas as coisas e gozá-Lo para sempre na outra". Viver de deleites
da vida é o lugar-comum das pessoas de hoje, próprio de medíocres. Desejar
isto é o mais baixo anseio que se pode ter.
- Como é que surge a idéia de pecado na alma humana?
- É porque temos as nossas más inclinações, elas criam e alimentam em
nós os vícios, como por exemplo o olhar lascivo, um mau hábito de impureza
tão profundo que às vezes a pessoa não percebe nela mesma. E ocorre que no
mais íntimo, no maior recôndito possível, no mais escondido cantinho da alma,
medra aquele vício engendrado por nossas más inclinações. Ali mesmo começa
a crescer aquela pequena semente, uma pequena concessão, um olhar rápido,
um pensamento fortuito, uma idéia passageira, a concepção voluntariamente
aceita (embora tímida, mas completa) do pecado. Ele começa a tomar forma e
inicia o seu inexorável curso para a superfície da alma, onde às vezes rompe

18
abruptamente. E acontece que aquela imagem ou aquela conversa despudorada
passa de nossos sentidos externos para o interior da mente para sugerir desejos,
uma idéia, um pensamento, um querer. Quando surge este querer, a idéia do
pecado é aceita pela vontade se não houver pronta recusa. Nasceu o pecado e a
alma é posta em ânimo de revolta. Este ânimo de revolta não surge de uma
forma explícita, como ódio declarado a Deus e à sua Obra. Às vezes é aquela
idéia de liberdade.
- Liberdade?
- Sim; libertar-se daquela luta de que lhe falo, do sacrifício, do sofrimen-
to, do martírio, do cumprimento da Lei, para se entregar ávida e suavemente,
como se fosse num refrigério de descanso, ao prazer, ao gozo, aos apetites da
luxúria. Somente com as graças de Deus, e maduro exame de consciência, nota-
se o engodo dessa falsa liberdade, pois se de um lado a gente se liberta da luta
(embora na aparência, pois deverá lutar ao lado do Mal a partir daí), do sacrifí-
cio, da dor, etc., de outro lado se escraviza ao vício, ao comodismo, à baixeza, à
decadência moral, a todo tipo de vilania. Concebida a idéia, aprovada pela von-
tade, onde é dado o consentimento todo interior, nasce logo o ânimo de revol-
ta, tudo no mesmo instante - eis aí o pecado em seu nascedouro, principalmen-
te o de impureza.
- Acontecendo isso, que fazer?
- Inércia ou ação. Se ainda existe algum ânimo de lutar, algum espírito de
combate, a ação se faz sentir logo: jaculatórias, atos de contrição, arrependimen-
to sincero e confissão! Quando a provação é grande a alma pode ficar numa
estranha complacência e inércia, as camadas mais profundas de nossas más in-
clinações, enraizadas durante anos, parecem neste momento levar vantagem.
Inexplicavelmente, não há reação, o mal então toma conta da alma e nela ad-
quire cidadania.
- Para vencer tal estado de alma temos que rezar, nós mesmos, ou pode-
mos pedir a alguém que reze por nós?
- Outros podem rezar por nós quando não temos disposições. Serão
muito úteis também os tesouros de graças que tivermos acumulados na vida de
piedade passada. Acontece sempre que a pessoa não tem a mínima disposição
para rezar, parece tudo escuro por dentro, mas pode ocorrer uma graça externa
que quebre instantaneamente o gelo. É por isso que é muito importante que
rezemos uns pelos outros.
- E essas pessoas que andam pela rua, olhando as figuras imorais com
tanta naturalidade: elas não parecem estar pecando, não se notando nenhuma
aversão delas ao pecado ou mesmo algum sentimento de culpa. Como se expli-
ca isso?

19
- Realmente, isso ocorre. É incrível! Seja quem for, jovem ou velho, olha
a mulher seminua, ou mesmo nua nas fotos ou "ao vivo" como se diz, com tal
naturalidade que desconcerta as pessoas de verdadeira piedade e puras. A per-
gunta tem cabimento: estas pessoas agem assim tão naturalmente e não perce-
bem que estão pecando? Como se explica tanta indiferença? Não são também
tentados como os puros? E se não o não, por que isto ocorre?
- Boas perguntas; merecem boas respostas.
- Parece que dependendo do grau de embotamento no pecado é possível
que o impuro seja tentado ou não. Tudo isso se resume na questão do "Princí-
pio de Contradição". Quem tem a alma embotada pelo pecado, a depender do
grau deste embotamento, perdeu algo do "Princípio de Contradição" que lhe
impede de discernir com clareza o Bem do Mal. Justamente por isso o demô-
nio o despreza, não o tenta, pois qualquer pecado que pratique não é plena-
mente consciente, premeditado, claro e objetivo, e não ofenderia tanto a Deus
quanto o demônio o quereria. Embora tal indiferença já seja, de si, uma ofensa
a Deus. Daí porque as tentações são mais intensas nos justos e puros, pois se
pecarem estarão ofendendo a Deus mais conscientemente e mais ferinamente
que os demais.
- Olhar as figuras imorais com indiferença (isto é, sem o desejo de possuí-
las ou com naturalidade) é pecado?
- Em qualquer circunstância tal olhar é pecaminoso. O fato do homem
ser indiferente mostra apenas o estado torpe de sua alma, cuja sensibilidade está
muito amortecida. Pois o pecado, neste caso, consiste em não fazer um ato de
rejeição a um outro pecado praticado perante seus olhos. É como se alguém
deixasse as janelas de sua casa abertas, indiferente aos perigos dos ladrões. Os
nossos olhos são como as janelas de uma casa, pelas quais os ladrões podem
penetrar (além das portas), como diz o Profeta Jeremias: "Porque a morte subiu
pelas nossas janelas e entrou nas nossas casas" (Jer. 9, 21). No caso, as janelas
seriam os olhos, e a casa seria nossa alma.
- E como deveria ser tal rejeição? Recriminar a pecadora?
- Isto depende muito das circunstâncias, do ambiente, das pessoas que
nos rodeiam, do modo em que se vive. Normalmente, hoje em dia, a rejeição
deve ser apenas interior, dentro de nossa alma. No entanto, podem ocorrer cir-
cunstâncias em que tenhamos que ser obrigados a uma rejeição pública. Tudo
depende do momento e da pessoa que se deve rejeitar.
- Qual pecado agrada mais ao demônio e ofende mais a Deus?
- Aquele praticado com plena consciência de seu gesto e feito por um
cristão, filho de Deus, que sabe a gravidade de seu ato.
- Um puro, por exemplo...

20
- Um puro, ou um casto ou virgem, se peca contra a sua virtude principal,
primeiramente logo deixa de ser puro; em segundo lugar ele causa uma ofensa
a Deus muito maior do que os pecados cometidos pelos maiores impuros da
terra. É como se você tivesse um grande amigo, ou um filho muito querido, e
ele se voltasse contra você, por exemplo, dando-lhe um murro no rosto; o
mesmo murro sendo recebido pelo pior de seus inimigos não dói tanto, não
ofende tanto. Portanto, quanto mais nos aproximamos de Deus e nos asseme-
lhamos a Ele, mais devemos ser perfeitos e vigiar, pois qualquer pecadinho,
mesmo qualquer pequena imperfeição, O ofende muito, pois parte de quem
está do Seu lado, de um amigo. É preciso, pois, vigiar muito e nunca abrir a al-
ma para o demônio.
- O que significa "abrir a alma"?
- Quando a pessoa está ensimesmada, fechada dentro de si mesma, ela
está com o coração fechado, nada ouve de outrem e às vezes nem da própria
consciência. De outro lado, ela pode está com o coração aberto aceitando tudo
o que os outros tentam lhe inculcar na alma. Então, abrir a alma significa estar
predisposto a aceitar tudo o que vem do exterior para dentro dela. No caso
concreto, abrir a alma para o demônio é se deixar levar por tudo o que ele ins-
pira de mal para corromper a alma, aceitar tudo o que ele diz, sugere e ordena
através do mundanismo e dos vícios capitais. O contrário é abrir a alma para
Deus, aceitando todas as inspirações do nosso Anjo da Guarda para o bem de
nossa alma.
- Como se opera esta abertura da alma para o demônio?
- Inicialmente a pessoa fica indiferente à ação da graça, e como conse-
qüência se torna objeto fácil das tentações. Da indiferença passa-se para a negli-
gências nas orações, na falta de vigilância, etc. A alma fica árida a tudo o que se
relaciona com as coisas de piedade e oração, mas completamente ávida para
tudo o que diz respeito à sensibilidade. A tibieza coroa este estado de espírito,
abrindo mais ainda a alma. Tudo o que vem do lado do mal é aceito com avi-
dez, enquanto que do lado do bem tudo é difícil, espinhoso, cruciante, de má
vontade.
- O senhor já teve, algum dia, sua alma aberta para o demônio?
- Embora sejamos cristãos, é lamentável dizer que às vezes abrimos nossa
alma para o maligno. E isto que ocorre com os outros, já ocorreu comigo tam-
bém...
- Explique-me seu caso concreto, como se deu. Que fez para sair dele?
- Nossa alma é comparada a uma casa, nossa morada. Abrir a porta signi-
fica permitir a entrada franca de quem está do lado de fora. Um dia isso ocor-
reu com minha "casa", por causa de algumas concessões interiores (que julgava
sem importância) e muitos inimigos a invadiram. Foi num daqueles momentos

21
de indiferença ou de relaxamento espiritual por causa de nossa preguiça em
lutar contra o pecado. Aproveitou-se o inimigo deste descuido da guarda, que
nós chamamos "guarda do coração" e invadiu a cidadela da alma. Que fiz eu?
Tive que combatê-los para expulsá-los. Para tanto, tive que encetar mais ou
menos quatro fases de luta: primeira, os expulsei de dentro de minha "casa";
segunda, determinei que teria de eliminá-los, afastá-los completamente de mi-
nha "porta"; terceira, teria que mantê-los o mais longe possível da "porta" comba-
tendo-os do lado de fora; e, quarta, determinei que eles não poderiam ficar
nem sequer nas proximidades.
- Explique-me cada fase...
- Para expulsá-los de dentro de minha "casa" foi uma luta titânica. Isso
porque houve um tempo em que eu os acolhi como "amigos”, fizeram pousa-
dos dentro de minha "casa" e nela se refestelaram. Abusaram de minha acolhida
e sujaram-na com suas sujidades. Pretenderam até escravizar-me dentro de mi-
nha própria "casa" e roubaram-me o que possuía de mais precioso. Conhecen-
do-os, então, como uma súcia de malfeitores, tendo Nossa Senhora me revela-
do por uma graça de Sua liberalidade suas más intenções, descoberto suas mal-
dades, resolvi expulsá-los. Descobri, de início, que sozinho seria impossível
vencê-los. Busquei ajuda de amigos, e descobri que os tinha poderosos e em
grande quantidade, que eram os Santos Anjos, os Santos e Nossa Senhora. Eles
exigiram, porém, de minha parte um preito de lealdade para com Deus. A úni-
ca exigência era que lutasse, esperando de Deus a vitória. As armas eram as
orações. De posse das armas e auxiliado por tais Amigos, iniciei o combate.
Travei encarniçada luta contra os invasores, e eles não queriam de modo algum
desalojar-se de dentro de minha "casa", pois estavam ali há muito tempo, alguns
tinham até estabelecido tendas, outros permaneciam como donos irremovíveis
e se apegavam desesperadamente ao que supunham ser sua posse. Palmo a
palmo disputei o terreno aos inimigos e fui expulsando-os um a um, até colocá-
los de porta a fora. Desesperados, ficaram na minha "porta" tentando voltar e
ocupar seus antigos lugares.
- Ficaram na porta? Mas ela continuou aberta?
- Não, claro que não! E aí vem a segunda fase. Tratei de expulsá-los de
minha "porta", pois seria insensatez deixá-los ali tentando voltar. Alguns ficavam
recostados à "porta", outros ficavam acampados nas proximidades como se pre-
tendessem ficar ali para sempre. E eles eram muitos e aumentavam sempre!
Tentavam arrombar a "porta" para entrar, alguns se imiscuíam pelas frestas, co-
locavam um braço, uma mão, um dedo sequer, com o desígnio de futuramente
entrar um pouco mais até o "corpo" inteiro. Alguns usavam até aríetes para ar-
rombar a "porta", faziam barulho, gritavam, reclamavam, choravam, espernea-
vam, grunhiam, tentavam se fazer de condoídos para que a "porta" fosse aberta

22
um pouquinho apenas e assim pudessem entrar. A situação era insustentável.
Precisava acabar com isso. Resolvi, então, travar combate com eles na "porta",
porém do lado de fora para afastá-los mais ainda.
- Eu estou entendendo tudo, mas o senhor na realidade está usando mui-
to de comparações, não é verdade? Pois este clima de tentar arrombar a porta,
usar aríetes, fazer barulho, gritar, etc. são na verdade metáforas para simbolizar
a insistência das tentações. Como foi a terceira fase?
- É, isso mesmo; aí vem a terceira fase, que é mais ou menos igual à se-
gunda. Vou continuar usando de metáforas para se entender melhor como é
grande e terrível esta luta interior para se evitar o pecado. No início foi difícil
desalojar aqueles que se agarravam à porta e às paredes da casa; a luta foi fe-
nomenal, mas com a ajuda de Nossa Senhora, de Seus anjos e de Seus santos,
e com as armas que me forneciam, aos poucos fui conseguindo afastá-los, des-
pregá-los do lugar em que teimavam em ficar. Mas, tinha que continuar lutan-
do porque eles tentavam a todo instante retornar ao seu lugar de origem: en-
quanto uns eram expulsos outros vinham para substituí-los. Organizei-me me-
lhor para o combate a fim de que minhas investidas tivessem impacto mais efi-
ciente. Muni-me de mais armas, procurei conselhos, ouvi instruções, estudei a
forma de derrotá-los e fui em frente. Diversificava os ataques e pedia auxílio aos
meus Amigos. Finalmente, consegui criar ao redor de minha "casa" uma fortifi-
cação que os mantivesse o mais afastado possível. Era algo inexpugnável e com
postos de vigilância a cargo de meus Amigos, os Santos Anjos. Isto me permitiu
dar-lhes combate mais além e expulsá-los das proximidades.
- Conseguiu, então, expulsá-los?
- Sim, mas o combate não acabou. Ele não acaba nunca. E a quarta fase
consiste em manter um sistema de combates constantes, através de fortificações
e defesas bem preparadas, que são as orações e os costumes piedosos. Nesta
fase da luta há necessidade da conjugação de esforços com outras pessoas e
mais Amigos, pois o campo de batalha se ampliou. Não é mais só uma "casa" e
uma "porta" que se está protegendo, mas todo um sistema de defesas. Assim,
precisamos da participação de nossos Amigos, de outras pessoas, com o objeti-
vo de trocarmos informações e experiências, armarmos fortificações conjuntas,
aprendermos a melhor forma de combater o inimigo, especializarmo-nos em
certos tipos de luta, conhecermos os ardis dos adversários, suas sutilidades, ci-
ladas e maquinações. Fomos aumentando o círculo de fortificações o quanto
pudemos. O perigo agora está bem longe.
- Tudo isso para manter a porta de sua casa fechada?
- Não, mas para manter a minha "casa" em ordem. Note bem que os
termos "casa" e "porta" são meramente ilustrativas, comparações. Na realidade, o
que chamo de "casa" é a alma, e o que chamo de "porta" é a vontade, pois é

23
através desta que o pecado entra em nossa alma. As fortificações que nos aju-
dam a manter o inimigo afastado e combatê-lo longe da "porta" são as virtudes
cristãs que praticamos.
- E depois disso tudo, como fica sua casa, isto é, sua alma: abandonada?
Fica sempre fora combatendo o inimigo e nada faz dentro dela?
- Abandonada ela nunca mais ficará, pois agora ela passará a ter como
moradores, além dos Santos Anjos e Santos do céu, a Santíssima Trindade e o
Santíssimo Sacramento juntamente com a Virgem Santíssima. Com relação à
minha volta para dentro dela, já que estou lutando fora com os inimigos, é pre-
ciso levar em consideração que há momentos para a luta e há momentos tam-
bém de preparação para a mesma. Se fora é o combate, no entanto é dentro
dela que me fortaleço.
- E não pode ocorrer um dia de se acomodar novamente dentro de casa
e os inimigos virem, arrombá-la e nela entrar novamente?
- Pode ocorrer. Isto é terrível e está previsto no Evangelho desta forma:
"Quando o espírito imundo saiu de um homem, anda por lugares secos, bus-
cando repouso; e, não o encontrando, diz: Voltarei para minha casa, donde saí.
E, quando vem, a encontra varrida e adornada. Então vai, toma consigo outros
sete espíritos piores do que ele, e, entrando, habitam ali. E o último estado da-
quele homem torna-se pior que o primeiro" (Lc 11, 24-26). O que Nosso Se-
nhor quis dizer com “casa varrida e adornada” é que a casa havia ficado vazia,
isto é, sem o demônio (que não foi expulso, pois ele mesmo “saiu”) mas tam-
bém sem Deus: quando o espírito imundo saiu dela o homem deveria procurar
a Santíssima Trindade, através de seus anjos, para vir morar nela, e assim quan-
do o espírito imundo voltasse a encontraria ocupada.
- Entendi tudo, mas acho que basta de conversa, por hoje...
- E agora, vai me explicar como consegue falar e entender tudo isto?
- Pela graça de Deus...
Alguém bate na porta do quarto, interrompendo o diálogo. Tobias foi
abri-la. Ao retornar para o berço, Rafael dormia tranqüilamente. "Que estranho
- pensou o pai - ele nem chegou a me dar as explicações para o milagre e já está
dormindo. Será que tudo não passou de um sonho enquanto eu vislumbrava a
pureza de seu olhar?". Pouco lhe importava se era sonho ou milagre, pois no
interior de sua alma haviam se esclarecido muitos aspectos da luta de sua alma
para combater a impureza. A partir daquele momento estava mais fortalecido
para tais combates...
Pareceu-lhe ouvir os conselhos de São João Crisóstomo:
"Conheço a dificuldade deste assunto, conheço a violência destas lutas,
conheço a importância desta guerra. É necessário ter um espírito corajoso e for-
te, um espírito que deteste tudo quanto é vil. É mister andar sobre carvões em

24
brasa, sem se queimar; passar entre espadas nuas, sem se ferir. Porquanto a for-
ça da sensualidade é tão violenta, como a do fogo ou a do ferro. Assim, pois, se
a alma não se encontra armada para poder suportar dores, dentro em breve
perecerá. Por conseguinte, necessitamos sentidos de aço, olhos sempre vigilan-
tes, a mais perseverante tenacidade, muralhas, trincheiras e ferrolhos a toda
prova, sentinelas vigorosas sempre alertas, e ,sobretudo, uma celeste disposição
de espírito. Porque, enfim, se o Senhor não vela pela cidade, é debalde que as
sentinelas vigiam"
De repente, os olhos de Tobias se voltam para uma espécie de oração
em forma de 2 poesias e que resumem sua luta interior pela castidade:
Soneto do casto olhar

Minha Senhora e Mãe Puríssima


Defendei-me de toda rudeza:
Preservai, ó Virgem Castíssima
Meus olhos guardados na pureza!

Para que, na hora em que expirar


Eles, puros, mantenham seu brilho
E possam lá no Céu contemplar
A glória de Seu Divino Filho!

Prometo ser casto em meu olhar


Contra a impureza hei de lutar
Com humildade e muita energia

Para fugir duma tentação


Olharei para a palma da mão,
Onde Deus fez o “M” de Maria.

25
Luta contra a impureza

Ó tu que lutas contra a impureza


E sentes a dureza desta luta
Não te exasperes se és provado,
Se te parece infinita esta disputa

Pois quando chegares ao céu dirás:


Consegui na terra uma tal destreza
Que não consenti em nenhum pecado
Morrendo com o cetro da pureza!

Que mérito em dizer: nada lutei?


Ou que, pequena foi tua provação?
Outros te dirão: muito trabalhei!
E tua glória, pequena – que decepção!

Ouças o que lá te dirá Anchieta:


"Vivi cinqüenta anos entre selvagens
Com vistas baixas para não pecar
Nas nuas pagãs daquelas paragens

Lutei sem tréguas contra a impureza


Sem haver consentido em nenhum pecado
Imerso num babilônico incêndio
Dele saí sem ser sequer chamuscado".

Milhões de virgens castas te dirão


Que os sentidos, escravos fizeram,
Foi de tanto lutar que venceram
Foi este o amor a Deus que ofereceram

Luta, pois, meu jovem, não esmoreces


Vês que se vives imerso neste ar
impuro que se respira nesta era
Roga à Virgem para perseverar.

26
Nunca te incomodes se a prova é longa
Pois se é intermitente, tão audaciosa
A tentação que te quer envolver
Terás uma vitória mais gloriosa

E assim para manter-se sempre puro


Fuja da impertinente tentação:
Só olhá-la como se fosse escuro
-Tenha nojo dela, cuspa no chão!

Mas se teu olhar estiver vagando


E a figura lhe causar aflição
Mesmo estando na rua caminhando
Olha bem para a palma de tua mão

Nela verás o “eme” de Maria


Feita por Deus, deu nossa salvação
Dos Santos e dos Anjos a alegria
Refúgio certo contra a tentação

Jovem, conserva casto teu olhar


Pra que tua alma seja também pura
Em seu coração Deus venha morar
Por encontrar nele tanta candura

Foge já das obscenas e imorais


Figuras que andam mal vestidas
E dos lugares onde vicejam mais
Ares impuros que as fazem perdidas

Onde muita gente, muito pecado


Procura, pois, fugir da multidão
Já que teu olho tudo reflete
E nada deixará sem reflexão

E se tua natureza não se acalma


Mas queres permanecer fiel a Deus
Lute contra a impureza em tua alma
Combate sem trégua os vícios teus!

27
2 Alguns princípios doutrinários sobre a virtude da
castidade

1. Os instintos humanos e a busca da felicidade

Ao criar o homem, Deus colocou nele vários instintos naturais, com os


quais ele poderia cumprir sua missão aqui na terra. E Deus fez com que tais
instintos estivessem no homem de forma hierarquizada, uns mais importantes
que outros e uns poucos dominando os demais. Assim, podemos verificar que
alguns desses instintos são inteiramente dependentes de um ou mais que lhe
são superiores. Podemos destacar os instintos de conservação da vida, o da so-
ciabilidade, o da busca da felicidade, o sexual, etc. Existem outros, mas estes
são os mais importantes. Por exemplo, o instinto materno, que só existe na mu-
lher e é completamente diferente, nela, dos animais irracionais, pois procura
proteger os filhos além dos limites da vida comum do dia-a-dia para prepará-los
para o futuro, que a mãe sempre almeja ser o melhor para eles.
Mas o que é o instinto humano? Diferentemente do instinto do animal
irracional, o instinto humano é imanente às duas naturezas com que é formado
o homem: a carnal e a espiritual. Trata-se de um impulso natural que faz com
que o homem aja sem reflexão, às vezes até sem saber a razão do que está fa-
zendo. Alguns são tão inerentes à natureza humana que estão ligados direta-
mente a algumas funções orgânicas e se manifestam às vezes sem que o homem
perceba ou tome consciência formal deles. Estes são os chamados “instintos
animais”, que por sua vez produzem os “atos naturais” do homem. Os atos na-
turais, distintos dos instintos, mas procedentes deles, provêm ainda das potên-
cias vegetativas e sensitivas, sobre os quais o homem não exerce a sua vontade,
como a digestão, as funções orgânicas, a circulação do sangue, as micções, etc.
Todos os animais possuem instintos, com os quais agem impulsivamente.
No entanto, a diferença é que os instintos humanos (com exceção dos de natu-
reza meramente “animal”, conforme acima) podem ser dominados e controla-
dos por ele mesmo, já que o homem é detentor da razão e tem suas potências
sob controle de seu intelecto e de sua vontade. O homem tem, também, alguns
instintos que nenhum outro animal possui, pois estão ligados diretamente à al-
ma imortal. Um destes é, por exemplo, o da busca da felicidade, tão forte no

28
homem que tem sido a meta principal de várias sociedades ao longo dos sécu-
los.
Como se trata de impulsos naturais, implícitos à própria natureza huma-
na, dir-se-ia que os instintos humanos são imanentes apenas à sua parte carnal.
Mas não é bem assim: os instintos humanos são também imanentes à alma, já
que ele é composto de corpo e alma. Nenhum homem tem seus instintos mani-
festados pelas potências carnais sem que a alma também não aja com eles. Ve-
remos adiante por que. E alguns são até mais ligados à alma, como os da socia-
bilidade e da busca da felicidade.
É o caso também de um impulso, que ousamos chamar de instinto, por
nós denominado de “auto-regência”, que é a capacidade de guiar-se, de gover-
nar-se, impulso ou instinto esse que pode até levar o homem a assemelhar-se à
condição angélica pela graça divina. A “auto-regência” pode até estar ligada di-
retamente aos instintos da sobrevivência ou da conservação e preservação da
vida, com impulsos naturais e outros premeditados decorrentes dele.
Há dois graus de importância em nossos instintos: o relativo à sua força
(que predomina sobre a própria vontade do homem) e o que está ligado às po-
tências intelectivas e, por isso, predomina sobre os demais. Nesta hierarquia de
valores, o instinto humano mais forte é o da conservação e preservação da vida,
o chamado “instinto de conservação”, pelo qual o homem procura conservar-se
ou manter-se vivo e com saúde. Dessa forma, o simples ato de comer é uma
satisfação impulsiva de um instinto inato do homem. Mas nem sempre o ho-
mem procura praticar este ato sem que a alma nele também não interfira: por
exemplo, comer sentado, num ambiente agradável e preparando comida que
agrade o paladar com condimentos.
E a auto-regência é uma ação desse instinto no campo meramente espiri-
tual. Assim, várias manifestações desse instinto, no decorrer da vida de um
homem, como ir ao médico, tomar remédios, evitar coisas que tenham risco de
vida, serão sempre acompanhadas de um elemento espiritual, de alguma coisa
acessória que revista o seu ato de certa beleza ou mesmo comodidade, mas
sempre o fazendo guiar-se apropriadamente no decorrer de sua existência. Na
auto-regência, há elementos de natureza inata (como os impulsos naturais dados
por Deus quando nascemos) e há elementos mais elevados que nos faz procu-
rar adquirir um auto-governo sobre as ações e nosso futuro em direção ao fim
último para o qual nascemos. Até no final da vida: por exemplo, os enterros são
sempre revestidos de certa solenidade, embora os defuntos não desfrutem de-
las. Aí já não entra, é claro, o instinto de conservação nem de auto-regência,
mas uma extensão destes que é a propagação da boa fama dos que morreram.
Pelo visto acima, o instinto de conservação já vai gerar uma gama de mi-
núsculos instintos (ou meros impulsos decorrentes dele, mas ligados à parte

29
intelectiva), se é que possam ser chamados de instintos, como o desejo da boa
fama, do status social, ou da benquerença. Nosso instinto de conservação não
se satisfaz somente em manter-se vivo, mas em manter uma vida elevada.
Quando Deus determinou “crescei-vos e multiplicai-vos”, não quis dizer so-
mente que o homem deveria povoar toda a terra, mas também crescer como
pessoa humana em sua vida privada e como sociedade na vida comunitária. Na
hora da morte, todos os familiares do defunto, em geral, querem demonstrar
que sua vida foi elevada, que não só foi conservada e preservada durante anos,
mas de uma forma digna e merecedora de boa fama pós-morte. Daí o solene
enterro...
O instinto que no homem é mais preponderante, sendo, portanto, além
de muito forte ligado à parte intelectiva, é o da sociabilidade. Este instinto talvez
se iguale ao anterior quanto à sua importância, mas nada é mais forte para o
homem do que a conservação e preservação da própria vida. No entanto, o ins-
tinto de sociabilidade, mesmo não sendo o mais forte, é o que comanda todos
os outros por estar ligado mais à parte intelectiva, é o que faz do homem um ser
mais espiritual do que carnal. A auto-regência também teria ligações com esse
instinto em suas variáveis, que é a co-regência (saber guiar-se com seus seme-
lhantes e com os anjos) e a sub-regência (saber guiar-se sob os mandamentos
divinos). Junto à sociabilidade o homem possui também um impulso compara-
do a outro instinto: o da busca da felicidade. E Deus dotou o homem com um
impulso natural, ou um instinto, de busca da felicidade a fim de que, através
deste impulso, procurasse seu fim último que é a beatitude celeste, a felicidade
eterna contida no próprio Deus. É por ele que o homem procura praticar mais
o amor a Deus, pois diz a fórmula: “amar a Deus acima de si mesmo”, quer
dizer, buscar a felicidade eterna acima da própria conservação. Usar mais o ins-
tinto de busca da felicidade do que o da preservação.
Que ligação há entre o instinto da sociabilidade e o da busca da felicida-
de? É que a felicidade plena não atrai o homem se não for compartilhada com
seus semelhantes. Ninguém deseja ser feliz sozinho. E se alguém alcança a al-
mejada felicidade, mesmo a terrena, passageira e enganadora, ele não se satisfaz
enquanto não a compartilhe com um ou mais de seus semelhantes. As alegrias
interiores se completam quando as repartimos com os nossos semelhantes. Um
exemplo foi o que ocorreu com Nossa Senhora tão logo soube, através do An-
jo, que o Verbo havia se encarnado em Seu Sacratíssimo ventre. Tendo o Anjo
lhe dito na mesma ocasião que Santa Isabel também estava para ter um filho, e
isto sendo para Ela também motivo para muita alegria, foi com pressa (segundo
São Lucas) para as montanhas visitar Santa Isabel, com a qual desejava externar
seu júbilo e sua grandiosa felicidade. E tal foi Sua felicidade que operou o mila-
gre de consagrar São João ainda no ventre e produziu o Magnificat. Muito se

30
fala da grande caridade manifestada por Nossa Senhora ao visitar Santa Isabel,
mas outro fator a impulsionou a tanto: a necessidade de manifestar sua infinita
felicidade por conter o Verbo em seu sacratíssimo seio. Ela usou naquele mo-
mento do instinto de sociabilidade ao manifestar sua felicidade à outra pessoa.
O contrário ocorre com o invejoso: vendo alguém desfrutar de certa ale-
gria, de certa felicidade, e como o orgulho o leva a querer desfrutar uma felici-
dade interior sozinho, sem compartilhar com os semelhantes, procura sufocar a
felicidade alheia, que o incomoda. Foi isso o que ocorreu com Caim: vendo a
boa fama que Abel teve junto a Deus, odiou-o e matou-o, já que se via impoten-
te de sufocar aquela felicidade, aquela boa fama, sem tirar-lhe a vida. Há tam-
bém aquela classe de invejoso que sente satisfação ao ver alguém mais miserável
ou infeliz do que ele. Se compraz em ver alguém compartilhar com sua misé-
ria, quando isto lhe deveria causar tristeza.
Deus dotou, então, o homem do instinto de sociabilidade para que, jun-
tamente com a busca da felicidade, pudesse construir uma sociedade perfeita,
que chamaríamos de Corpo Místico de Cristo (embora esta denominação se
refira mais especificamente à Igreja). Outra coisa não é Corpo Místico de Cristo
senão uma sociedade. Sociedade de cristãos, pertencentes e fiéis à Santa Igreja,
que, vivendo na comunhão dos Santos, estariam vivendo aqui uma felicidade
natural com vistas à felicidade ou beatitude celeste. E esta sociedade não seria
perfeita se todos seus componentes gozassem de uma felicidade apenas indivi-
dual, egoística e isolada, sem a participação dos demais.
Ora, é falso então dizer (como os freudianos, para os quais o sexo é o
centro de toda a vida humana) que o instinto mais forte do homem é o instinto
sexual, e também dizer que a felicidade consiste no gozo dos prazeres. O instin-
to sexual pertence ao que se convencionou chamar de “baixos instintos” e, por
isso, inferior aos demais. Dele pode-se gerar o desejo dos prazeres, que é dife-
rente da busca da felicidade. Quem vive imerso no gozo dos prazeres não pos-
sui a verdadeira felicidade, já que os prazeres materiais, por serem meramente
animalescos, não satisfazem o conjunto do homem (composto de corpo e al-
ma). O instinto sexual é, portanto, inferior ao da sociabilidade e da busca da
felicidade. Ele, sozinho, sem ser acompanhado dos outros dois animaliza o
homem, enquanto que junto aos demais o espiritualiza.
Daí decorre que a paixão humana, um sentimento interior forte e pro-
fundo que violenta todo o ser, fruto de um amor ardente e sem medidas, pro-
vindo de um afeto que pode ser desordenado ou não, causa um sofrimento tão
profundo que deixa o homem fora de si, passando a agir de um modo contrário
à sua própria natureza. No caso da paixão, se ela ocorre por causa da exacerba-
ção dos baixos instintos (como o sexual), faz com que o indivíduo tome atitudes
não só desatinadas, mas inteiramente contrárias ao fim último do homem. Mas

31
se ela, mesmo causada por um amor ardente, é proveniente dos instintos mais
elevados (como o da sociabilidade ou da busca da beatitude), faz com que a
pessoa, mesmo chegando ao êxtase, só aja conforme à sua natureza, elevando-a
inclusive a patamares mais altos. É o que se dá, por exemplo, nos êxtases que
elevam o homem, conforme veremos adiante num texto citado de São Francis-
co de Sales.
Buscar a felicidade pelo desfrute do gozo dos prazeres, principalmente
tendo como centro de tais prazeres o sexual, animaliza o homem, o rebaixa da
condição espiritual para a meramente animal e material. E, por isso, o frustra.
A castidade, pelo contrário, espiritualiza e eleva o homem a uma condição su-
perior, dando-lhe contentamento e a verdadeira felicidade. Mesmo a felicidade
efêmera desta vida. E depois, a outra felicidade, a eterna e divina, virá ao final
desta vida como prêmio sempiterno.

Deixar governar-se pelos instintos faz o homem perder a capacidade inata de


auto-regência dada por Deus

A capacidade de regência ou de se governar tanto a si (a auto-regência)


quanto aos outros seres é um dom que somente os Santos Anjos e os homens
possuem. Governar, dirigir, reger, exercer domínio completo sobre si e sobre
outros seres é um dom que nasceu com o homem, é, portanto, um dom inato,
mas necessita que seja exercitado em sua existência terrena.
Os impuros e os que se deixam dominar pela luxúria perdem quase que
por completo essa capacidade de auto-regência, pois são dominados pelos seus
baixos instintos, que impedem ou dificultam o uso da razão. Já aqueles que
dominam e controlam seus baixos instintos, aprimoram sua auto-regência, exer-
cendo, inclusive, outros dons ligados à mesma, que é a co-regência e a sub-
regência (co-reger é o mesmo que “reger com” e sub-reger seria “reger sob uma
regência superior”). E por saber governar-se, saberão também governar os de-
mais, pois governam a quem se governa.
Um dos impulsos que faz o homem perder completamente essa auto-
regência é o da INCONTINÊNCIA, isto é, não saber conter-se, não saber con-
trolar seus instintos ou os impulsos naturais. Os instintos naturais do homem
podem ser sabiamente contidos pelo mesmo, alguns provenientes da boca, em
que muita gente é compulsiva, como o próprio desejo de falar e de comer.
Combater a incontinência é o mesmo que lutar contra a compulsividade, isto é,
o império dos sentidos sobre a razão. As paixões (que têm força mais podero-
sa), como o irascível, a cobiça, a sensualidade, o desejo de vingança, devem es-
tar completamente sob o domínio das potências superiores da alma humana: a
razão e a vontade. Até mesmo a dor, que não é uma paixão, mas uma simples

32
sensação, pode ficar sob o domínio daquele que aprender a reger seus instintos
sob o controle da razão e da vontade.

Os maiores erros daqueles que se deixam reger pelos instintos é a


INTEMPESTIVIDADE (agir fora do tempo, onde entra o desabafo e a incon-
tinência), a INCONSIDERAÇÃO (deixar de considerar fatores importantes e
dá relevância aos menos valorados), a INFORMALIDADE (falta de regras), a
IMPRECAVIBILIDADE (falta de precaução), a COMPULSIVIDADE (agir
sempre por impulsos) e, finalmente, os ATOS IMPENSADOS.

33
2. Os êxtases que elevam e que rebaixam o homem

São Francisco de Sales, bispo de Genebra, foi o grande apóstolo do


Amor a Deus, explicitado por ele em obra de profundo estilo doutrinário, o
livro “Tratado do Amor a Deus”. Foi de lá que extraímos o texto abaixo, onde
é vista a grande importância da castidade para o crescimento do amor a Deus:
"Os antigos filósofos reconheciam que havia duas espécies de êxtase, - um
que nos elevava, outro que nos depreciava; como se quisessem dizer que o ho-
mem era duma natureza média entre os Anjos e os animais, participando da
natureza angélica na sua parte intelectual e da natureza animal na sua parte sen-
sitiva.
“O homem, todavia, por um contínuo exercício e cuidado sobre si mes-
mo, pode subtrair-se e desalojar-se desta média condição; aplicando-se aos atos
intelectuais, torna-se mais semelhante aos Anjos do que aos animais; e entre-
gando-se às ações sensuais, desce da sua média condição e aproxima-se da dos
animais. Como o êxtase não é outra coisa senão a saída que se faz de si mesmo,
de qualquer lado que se saia, fica-se verdadeiramente em êxtase. Aqueles que

34
movidos pelo amor dos sentimentos nobres ou de Deus deixam o seu coração
elevar-se nestes afetos, estão fora de si mesmos, entrando num estado mais san-
to e elevado; são igualmente anjos pela operação de sua alma, como são ho-
mens por sua natureza, e devem ser qualificados ou de anjos humanos ou de
homens angélicos. Ao contrário, os que vivem engolfados no lodaçal dos praze-
res sensuais, descem da sua média condição à dos irracionais, e merecem
igualmente ser chamados animais por suas ações, embora sejam homens por
natureza: são desgraçados, porque só saem fora de si mesmos para entrarem
num estado indigno da sua condição.
“Ora, à medida que o êxtase é maior, quer acima quer abaixo de nós,
mais impede a nossa alma de voltar a si e de fazer as operações opostas ao êx-
tase em que ela está. Por isso os santos arrebatados na contemplação de Deus e
das coisas celestes, enquanto o seu êxtase dura, perdem inteiramente o uso e a
atenção dos sentidos, o movimento de todos os atos exteriores, porque a alma,
embebida desse divino amor, despreza e prescinde de todo o resto. São figura-
dos por Elias, subindo ao céu arrebatado por um carro de fogo.
“Também os homens bestializados nas voluptuosidades sensuais, per-
dem por vezes completamente o uso e a atenção da razão e do entendimento,
porque a sua alma desgraçada, para se apossar mais inteiramente do objeto bru-
tal e dos gozos materiais, afasta-se das operações espirituais.
“...Quando a alma se deixa arrastar pelas paixões más que a colocam
abaixo dela, enfraquece no exercício do amor superior; de forma que o amor
verdadeiro e essencial longe de ser auxiliado e conservado pela união a que
tende o amor sensual, pelo contrário, dissipa-se e perece. Os bois de Jó lavra-
ram a terra, enquanto os jumentos inúteis pastaram à roda deles (Jó 1, 14), co-
mendo as pastagens que eram para os bois que trabalhavam. Enquanto a parte
intelectual da nossa alma aspira ao amor honesto, virtuoso, e verdadeiro por
qualquer objeto que seja digno dela, sucede muitas vezes que, em contraposi-
ção, os sentidos e faculdades da parte inferior tendem à união que lhes é pró-
pria e lhes serve de pasto, embora a união só seja devida ao coração e ao espíri-
to, únicos que podem produzir o verdadeiro amor.
“...O manjericão, o alecrim, a manjerona, o hissopo, o cravo da Índia, a
canela, a noz moscada, os limões e o almíscar, todos reunidos, produzem um
perfume muito agradável, mas não é para comparar ao suco destilado destas
plantas e misturados depois, no qual as suavidades de todos estes ingredientes,
separados das suas substâncias se confundem muito mais unindo-se num sua-
víssimo aroma, que impressiona muito mais o olfato. Assim também pode ha-
ver amor nas uniões das potências sensuais confundidas com as uniões das po-
tências intelectuais, mas nunca é tão perfeito, como quando a alma está separa-

35
da de todos os afetos corpóreos, pois então o perfume dos seus afetos é mais
vivo e suave, mais ativo e mais sólido.
“É verdade que muitos homens de espírito grosseiro, terrestre e vil, apre-
ciam o valor do amor como o das peças de ouro, das quais as mais grossas e
pesadas são as melhores e mais valiosas; e assim lhes parecem que o amor bru-
tal é mais forte, por mais violento e turbulento; mais sólido, por mais grosseiro
e terrestre; maior, por mais sensível e feroz. É um erro. O amor é como o fogo;
quanto mais delicado for o combustível, tanto mais claras e belas são as chamas
que não se podem melhor apagar do que cobrindo-as de terra. Do mesmo mo-
do, quanto mais a causa do amor é elevada e espiritual, tanto mais as suas ações
são vivas, subsistentes e permanentes, e não se poderia melhor aniquilar o amor
do que rebaixando-o às uniões vis e terrestres. "Há esta diferença", como diz S.
Gregório, "entre os prazeres espirituais e corporais : os corporais despertam o
desejo antes de se alcançarem, e produzem o tédio depois de se possuírem; os
espirituais, ao contrário, dão o tédio antes de se alcançarem, e o prazer depois
de se possuírem".
“É assim que o amor animal, pretendendo satisfazer e aperfeiçoar o seu
amor pela união que faz com o objeto amado, e vendo que, ao contrário, o des-
trói pondo-lhe termo, sente-se muitíssimo enfastiado de semelhante união: o
que fez dizer o grande Filósofo, que quase todo o animal, após o gozo do seu
mais ardente e instante prazer corporal, ficava triste, taciturno e aturdido, como
um negociante que, tendo julgado ganhar muito, se encontra enganado e com-
prometido numa grande perda.
“O amor intelectual é o contrário: encontrando na união com o seu obje-
to mais satisfação do que havia esperado, aperfeiçoa nela o seu amor e fica dela
cada vez mais satisfeito". 1

1
"Tratado do Amor a Deus" - São Francisco de Sales - Liv. Apostolado da Imprensa - Porto - Portugal - págs.
47/50.

36
3. São Cura D'Ars e as prerrogativas da alma pura

São João Batista Vianey, o “Cura D’Ars”, mesmo sem ser intelectual,
sempre dissertava sobre assuntos espirituais com a clarividência de um Teólogo
e Doutor. Com a simplicidade de um simples pároco de aldeia, assim se ex-
pressava ele sobre a virtude da castidade:
"Não há nada tão belo quanto uma alma pura!... Se o compreendêsse-
mos, não poderíamos perder a pureza. A alma pura é desprendida da matéria,
das coisas da terra e de si mesma... É por isto que os santos maltratavam o seu
corpo; é por isto que não lhe concediam o que lhe era necessário, nem sequer
levantar-se cinco minutos mais tarde, aquecer-se, comer alguma coisa que lhe
desse prazer... Aí está! O que o corpo perde, a alma ganha, e o que o corpo
ganha, a alma o perde.

37
A pureza vem do céu; há que pedi-la a Deus. Se a pedirmos, alcançá-la-
emos. É preciso termos bem cuidado de não perdê-la. Devemos fechar o nosso
coração ao orgulho, à sensualidade e a todas as demais paixões... como quando
se fecham as portas e as janelas para que ninguém possa entrar.
Que alegria para o anjo da guarda encarregado de conduzir uma alma
pura!... Meus filhos, quando uma alma é pura, todo o céu a olha com amor!...
As almas puras formarão círculos em torno de Nosso Senhor. Quanto
mais puro se tiver sido na terra, tanto mais perto de Deus se estará no céu.
Quando o coração é puro, não se pode deixar de amar, porque se tornou
a achar a fonte do amor, que é Deus. "Felizes, diz Nosso Senhor, os que têm o
coração puro, porque verão a Deus!"
Meus filhos, não se pode compreender o poder que uma alma pura tem
sobre Deus. Não é ela que faz a vontade de Deus, é Deus que faz a vontade
dela. Vede Moisés, aquela alma tão pura! Quando Deus queria punir o povo
judeu, dizia-lhe: "Não me rezes, porque a minha cólera explode contra esse po-
vo". Não obstante, Moisés rezava, e Deus poupava o seu povo; deixava-se do-
brar, não podia resistir à oração daquela alma tão pura. Ó meus filhos! Uma
alma que nunca foi manchada por esse maldito pecado alcança do bom Deus
tudo o que quer.
Para conservar a pureza, há três coisas: a presença de Deus, a oração e os
sacramentos. Há ainda a leitura dos livros santos; esta nutre a alma.
Como é bela uma alma! Nosso Senhor fez ver uma a Santa Catarina; esta
achou-a tão bela que disse: "Senhor, se eu não soubesse que há só um Deus,
julgaria que fosse outro!" A imagem de Deus reflete-se numa alma pura como o
sol na água.
Uma alma pura é a admiração das três pessoas da Santíssima Trindade.
O Padre contempla a sua obra: "Eis aí a minha criatura!...". O Filho, o preço do
seu sangue. Conhece-se a beleza de um objeto pelo preço que ele custou... O
Espírito Santo habita nela como em seu templo.
Conhecemos ainda o preço de nossa alma pelos esforços que o demônio
faz para perdê-la. O inferno liga-se contra ela, o céu por ela... Oh! Como ela é
grande!
Para termos uma idéia da nossa dignidade, devemo-nos lembrar com
freqüência do céu, do calvário e do inferno.
Se compreendêssemos o que é ser filho de Deus, não poderíamos fazer
o mal, seríamos como anjos na terra. Sermos filhos de Deus! Ó bela dignida-
de!...
É alguma coisa de belo termos um coração, e, por mais pequeno que ele
seja, podermo-nos servir dele para amar a Deus! Como é vergonhoso para o
homem descer tão baixo, ele que Deus colocou tão alto!

38
Quando os anjos se revoltaram contra Deus, esse Deus tão bom vendo
que eles não podiam mais fruir da felicidade para a qual os havia criado, fez o
homem e este "pequeno mundo" que nós vemos para alimentar-lhe o corpo.
Havia, porém, que lhe alimentar a alma; e como nada de criado pode alimentar
a alma, que é espírito, Deus quis dar-se Ele próprio por alimento.
Mas a grande desgraça é que descuramos de recorrer a essa divina comi-
da, para atravessarmos o deserto desta vida. Como uma pessoa que morre de
fome ao lado de uma mesa bem servida, há pessoas que levam cinqüenta, ses-
senta anos sem alimentar a própria alma!
Oh! Se os cristãos pudessem compreender esta linguagem de Nosso Se-
nhor que lhes diz: "Apesar da tua miséria, eu quero ver de perto essa bela alma
que criei para mim. Fi-la tão grande, que só eu posso enchê-la. Fi-la tão pura,
que só meu corpo pode alimentá-la.
Nosso Senhor sempre distinguiu as almas puras. Vede São João, o discí-
pulo amado que repousou sobre o seu peito!... Santa Catarina era pura; por
isso passeava muitas vezes no Paraíso. Quando morreu, os anjos tiraram-lhe o
corpo e levaram-no para o monte Sinai, lá onde Moisés recebera os manda-
mentos da Lei. Deus fez ver por esse prodígio que uma alma pura lhe é agradá-
vel, merece que mesmo seu corpo, que lhe participou da pureza, seja sepultado
pelos anjos.
Deus contempla com amor uma alma pura, concede-lhe tudo quanto ela
pede. Como haveria Ele de resistir a uma alma que só vive para Ele e n'Ele? Ela
procura-o, e Deus se lhe mostra; chama-o, e Deus vem; faz uma coisa só com
Ele; acorrenta-lhe a vontade. Uma alma pura é onipotente sobre o coração tão
bom de Nosso Senhor.
Uma alma pura é ao pé de Deus como um filho ao pé da mãe: acaricia-a,
beija-a, e a mãe lhe retribui suas carícias e seus beijos". 2

2
"Espírito do Cura D'Ars" - Abbé A. Monnin - Editora Vozes - 1949

39
4. Catequese de São Cura D'Ars sobre a impureza

Vejamos também como São João Batista Vianey via a impureza:


"Para compreender o quanto é horrível e detestável este pecado que os
demônios fazem cometer, mas não os cometem eles próprios, haveria que sa-
ber o que é um cristão. Um cristão criado à imagem de Deus, remido pelo san-
gue de um Deus! Um cristão, filho de um Deus, irmão de um Deus, herdeiro
de um Deus! Um cristão, objeto da complacência das três pessoas divinas! Um
cristão, cujo corpo é o templo do Espírito Santo: eis aí o que o pecado deson-
ra...
Nós fomos criados para irmos um dia reinar no céu, e se temos a desdita
de cometer esse pecado, tornamo-nos o alvo dos demônios. Nosso Senhor dis-
se que nada de impuro entrará no seu reino. Com efeito, como quereis que
uma alma que se rolou nessas sujeiras vá comparecer perante um Deus puro e
tão santo?
Nós somos todos como pequenos espelhos em que Deus se contempla.
Como quereis que Deus se reconheça numa alma impura?
Há almas que estão tão mortas, tão apodrecidas, que marasmam na sua
infecção sem o perceber e não podem desvencilhar-se dela. Tudo as leva ao
mal, tudo lhes lembra o mal, mesmo as coisas mais santas; elas têm sempre es-

40
sas abominações diante dos olhos: semelhante ao animal imundo que se habi-
tua á porcaria, que se agarra nela, que se rola nela, que nela dorme, que ronca
na sujidade, essas pessoas são um objeto de horror aos olhos de Deus e dos
santos anjos.
Vede, meus filhos, Nosso Senhor foi coroado de espinhos para expiar os
nossos pecados de orgulho; mas por esse maldito pecado Ele foi flagelado e
posto em pedaços, visto que Ele próprio diz que depois da flagelação podiam-
lhe contar os ossos.
Ó meus filhos, se não houvessem alguma almas puras para indenizar a
Deus e lhe desarmar a justiça, haveríeis de ver como seríamos punidos... Por-
que agora esse crime é tão comum no mundo que faz tremer. Pode-se dizer,
meus filhos, que o inferno vomita as suas abominações sobre a terra, como os
canos do vapor vomitam a fumaça.
O demônio faz tudo quanto pode para sujar a nossa alma, e no entanto
nossa alma é tudo... O nosso corpo não é mais que um monte de podridão:
ide ver ao cemitério o que é que se ama quando se ama o próprio corpo.
Como vos hei dito muitas vezes, não há nada de tão ruim quanto a alma
impura. Houve uma vez um santo que pediu a Deus lhe mostrasse uma: viu
essa pobre alma como um animal, rebentando de podre, que arrastaram duran-
te oito dias, em pleno sol pelas ruas.
Só em ver uma pessoa reconhece-se se ela é pura. Há nos seus olhos um
ar de candura e de modéstia que leva a Deus. Vêem-se outras, ao contrário, que
têm um ar todo inflamado... Satanás põe-se-lhes nos olhos para fazer cair os
outros e arrastá-los ao mal.
Os que perderam a pureza são como uma peça de pano molhada em
azeite: lavai-a, fazei-a secar, a mancha volta sempre; assim, também,é preciso
um milagre para lavar a alma impura”. 3

3
"Espírito do Cura D'Ars" - Abbé A. Monnin - Ed. Vozes - 1949.

41
5. O Que é a Castidade

Transcrevemos abaixo a doutrina exposta por Francisco Spirago no seu


“Catecismo Popular Esplanado” sobre a Castidade:

“a). É Casto o que conserva o corpo e a alma limpos de tudo o que ofen-
de à Inocência.
São Estanislau Kostka (1568) evitava até ouvir uma só palavra pouco de-
cente: o mesmo fizera São Luís e outros. Alguns ofereceram de boa vontade o
sangue e quanto tinham, antes que manchar a virtude da pureza; assim o fize-
ram o Patriarca José, solicitado no Egito; as santas Inês, Luzia, Úrsula, Águeda,
etc. A castidade é uma perfeição mais que humana (São Cirilo de Jerusalém). É

42
de origem divina, pois Deus a traz do céu à terra (Santo Ambrósio). Os homens
que vivem com pureza, são como lírios (Cânt. 2, 1). Qualquer pequena sevandi-
ja que aparece num lírio, lhe tira a deslumbrante brancura e o deforma. Assim,
o que vive puro se mancha com qualquer representação desonesta. Qualquer
contato grosseiro tira ao lírio a beleza, e o murcha: assim se arruína a pureza do
que viveu inocente, com o trato inconsiderado com o mundo exterior. O lírio
cresce reto até o céu e tem as pétalas em forma de línguas. Assim o homem
puro caminha direto ao céu, porém é mister que tenha sua língua reprimida. O
lírio enche toda a casa de agradável fragrância, e o homem puro exerce um in-
fluxo benéfico em tudo o que o rodeia. A alma do que vive na pureza se pare-
ce a uma água cristalina: quando se joga nela uma pedrinha, se comove, mas
não por isso se turva (S. Vicente Ferrer).

- Os homens que levam uma vida pura são parecidos aos santos anjos e
muito agradáveis a Deus.,

Os que levam uma vida pura "são anjos em carne" (S. Basílio). A castida-
de é uma virtude angélica, pois por ela se faz o homem semelhante aos anjos
(S. Cristóvão). As almas castas formam uma família de anjos, que Cristo tem
estabelecido na terra, para ter anjos que O louvem não só no céu mas também
na terra (S. Jerônimo). As almas castas sobrepujam, em certo modo, os anjos,
porque conquistam sua pureza, o que não podem fazer eles (S.Cipriano). As
almas puras são anjos de superior hierarquia, pois os anjos não têm combates
que sustentar; mas as almas puras conservam a castidade contra as contínuas
tentações do demônio (S. Basílio). Há, em verdade, diferença entre o anjo e a
alma pura; mas não na virtude, senão na felicidade; a pureza do anjo é mais fe-
liz, porém a do homem é mais forte (S. Ambrósio). Os santos anjos conversam
amiúde com as almas castas, como o mostra a vida dos santos, o que é uma
prova de que reconhecem neles seus semelhantes. O demônio sabe que os
homens, pela castidade, alcançam a dignidade angélica, que ele perdeu; por isso
se esforça com ardor em trazer-nos impuras representações (S. Isidoro).
Os homens que levam uma vida casta são por extremo agradáveis a
Deus. Cristo Nosso Senhor amava sobretudo as almas puras; escolheu por Mãe
a mais pura das virgens; por Pai nutrício, a São José, cuja pureza era angelical; a
São João Batista, santificado antes que nascido, por Precursor, e ao virgem São
João amou entre todos os apóstolos, e o reclinou em seu peito na última Ceia.
Em sua morte estiveram, ao pé da Cruz, duas almas castas. Também amou tan-
to aos meninos, por sua pureza. O que ama a pureza de coração, terá por ami-
go o Rei do céu (Prov. 12, 2). À alma casta, chama Deus irmã, amiga, esposa
(Cânt. 4, 6-8). As virgens têm por esposo o Rei dos anjos (S. Ambrósio). Qual-

43
quer alma casta é rainha, porque está desposada com o Rei dos reis. A virgin-
dade roubou de sorte o coração de Cristo, que quis nascer de uma Virgem e
permanecer Ele mesmo virgem (S. Jerônimo).
Os homens castos gozam também de uma "estimação" (predileção) parti-
cular de seus próximos; já dos pagãos foram muito estimados. Quanto não hon-
raram os romanos às vestais, que tinham de permanecer virgens os trinta anos
de seu serviço no templo! Quando apareciam na rua, se lhes tributavam honras
públicas, e se encontrava-se com elas um malfeitor levado ao suplício, se lhe
indultava e dava liberdade. Vede! Os pagãos premiam suas filhas que preferem
a castidade e virgindade ao matrimônio, e entre nós cristãos, seria menospreza-
da a virgem que se abstém do matrimônio por motivo superior? (S. Ambrósio).
Oh, quão formosa é a geração casta com o resplendor das virtudes! Sua memó-
ria é imortal ante Deus e ante os homens (Sab. 4, 1)

b). Os que vivem vida casta possuem claro conhecimento de Deus,


grande força de vontade, paz de alma e serão particularmente distinguidos no
céu.
A pureza de coração é a saúde do espírito (S. Bernardo). As pessoas cas-
tas têm maior ilustração do entendimento, principalmente claro conhecimento
de Deus. A elas se referem as palavras de Cristo: Bem-aventurados os puros de
coração, porque verão a Deus (Mt 5, 8). Os castos são como um cristal puro,
pelo qual penetram todos os raios do sol. São como uma pura e perene fonte
de água, na qual se reflete o céu. A pureza do coração e a interior formosura e
liberdade do anjo, faz eruditos e mestres, ilustrados, filósofos e teólogos, e em
todas as matérias instruídos (S. Agostinho). A castidade nos faz capazes de olhar
o Sol de justiça, ponto por ponto, com olhos puros (S. Isidoro). A grande pu-
reza habilitou São João Evangelista para penetrar tão fundamente os mistérios
da religião. Como uma águia, se eleva no começo de seu Evangelho até à Di-
vindade. A pureza é a que comunica à alma o heroísmo (S. Ambrósio). A casta
Judite mostrou tal heroísmo, no cerco de Betúlia, que foi ao acampamento dos
inimigos e cortou a cabeça de Holofernes. A Sagrada Escritura diz, dela: Obras-
te varonilmente, porque tens amado a castidade (Jud 15, 11). Os castos chegam
por isto rapidamente à todas as virtudes. Como a cor branca é a harmonia de
todas as outras cores, assim é a castidade a base de todas as outras virtudes (S.
Boaventura).
O que leva vida casta é ditoso já na terra. A castidade traz consigo uma
indescritível graça e suavidade, e proporciona um prazer mais doce que todos
os prazeres da carne (S. Isidoro). É ao próprio tempo saúde para o corpo. O
que leva vida virginal possui já aqui a glória da ressurreição (S. Cipriano). A pu-
reza é uma figura da eterna incorruptibilidade dos corpos (S. Agostinho). Ela

44
derrama sobre todo o corpo humano uma atrativa graça (S. Efrém). Os castos
têm geralmente cor formosa no rosto, sinal de saúde, e regularmente alcançam
grande longevidade. Quando, por exceção, um dos tais morre cedo, o permite
Deus por sábio conselho; o leva deste mundo para que a malícia dos pecado-
res, entre os quais vive, não perverta seu entendimento (Sab 4, 11). Além do
mais, tem vivido bastante quem tem vivido bem.
Os que vivem vida casta serão um dia, no céu, particularmente "distingui-
dos". As almas virgens estarão no céu muito perto de Deus; estarão perto do
Cordeiro e o seguirão onde quer que vá, e cantarão um cântico que não pode-
rão cantar os outros bem-aventurados (Apoc. 14, 4). Deus coroará no céu as
almas castas (Cânt 4, 8), isto é, lhes concederá uma glória (auréola) especial en-
tre os outros bem-aventurados. Eternamente triunfa a geração casta com a co-
roa da vitória (Sab. 4, 2). As almas castas terão no céu sua parte com a Virgem
Maria (S.Cirilo). Já aqui na terra as distingue muitas vezes Deus com particula-
res revelações. As almas virginais são secretárias de Deus, pois Ele lhes desco-
bre seus segredos (S. Teotônio Vilela). Como vivem em trato com Deus, seu
estado se chama com freqüência desponsório com Deus, ou núpcias espirituais
(Tertuliano). Também Deus ouve com benignidade as orações das almas puras.
Como a rainha Ester alcançou de seu esposo tudo o que quis, porque lhe era
fiel amante, assim também o celestial Esposo concederá às almas puras todas
suas petições.

c). Todo homem está estritamente obrigado, até que contraia matrimô-
nio, a levar uma vida virginal

Entre os judeus, era apedrejada a mulher que havia perdido a virgindade


antes de casar-se (Deut 22,21). Os romanos condenavam a ser sepultada viva à
vestal que quebrava sua castidade. Para que vejas como velavam aquelas leis
pela castidade!

d). Para conservar a castidade servem os meios seguintes:

Exercício da própria vontade, temperança no comer e beber, recepção


freqüente dos santos Sacramentos, oração à Mãe de Deus, meditação das ver-
dades religiosas, principalmente da presença de Deus em todo lugar e dos no-
víssimos. Também se devem evitar o baile, o teatro, e o trato livre com pessoas
de sexo diferente.
Entre todos os combates do cristão, o mais duro é o da castidade (S.
Agostinho). Os pagãos gregos tinham entre suas divindades uma virgem, por
nome Minerva, à qual representavam com armadura militar, com elmo, escudo

45
e lança, significando com isto que a castidade não se pode conservar sem com-
bates (S. Jerônimo). Os Doutores da Igreja chamam à castidade um martírio
incruento, porém em certo sentido maior até que o cruento, pois o cruento du-
ra breves instantes e conduz em seguida à glória do céu; pelo contrário, para a
conservação da castidade é necessário um combate larguíssimo que se deve sus-
tentar durante toda a vida.
Tem que enfrentar, sobretudo, a tagarelice e a "concupiscência dos
olhos". Ao que é tagarela e curioso não é possível tê-lo por casto, senão mais
bem por perdido (S. Agostinho). Pelas janelas dos olhos a morte entra na alma
(Jer 9, 21). O leão perde sua ferocidade e se faz tímido quando se cobrem seus
olhos com um pano (Plínio), e assim ficam reprimidos em nós os maus desejos
quando guardamos os olhos. Também o jejum aproveita para a castidade. Uma
fortaleza se ganha seguramente quando se intercepta a introdução de víveres: a
carne rebelde se rende com segurança quando se lhe tira a comida (S. Boaven-
tura). Mas pela intemperança se perde a inocência, como Esaú perdeu sua
primogenitura (S. Efrém). Onde há intemperança, há desonestidade (S. Am-
brósio). O Etna e o Vesúvio, quando arrojam fogo, não se enfurecem tão vio-
lentamente como o sangue juvenil quando se acende com o vinho e a comida
supérflua (S. Jerônimo). Não vos embriagueis com vinho, porque nele está a
luxúria (Ef. 5, 18). A má concupiscência se nutre nos convites (S. Ambrósio)
Com a freqüência aos Sacramentos e a oração se alcança a graça de
Deus, sem a qual não é possível vencer-se. Erra o que imagina que poderá, por
suas próprias forças, vencer a sensualidade e guardar a castidade. A misericór-
dia de Deus há de apagar a ardente chama da natureza (S. Crisóstomo). Não se
pode ser continente se Deus não o concede (Sab 8, 21). A castidade se parece
com a neve: a uma e a outra vêm só de cima. Pela confissão e a comunhão al-
cança o homem força de vontade para permanecer livre de pecado. (Vejam-se
os efeitos de ambos os Sacramentos). O Sacramento do altar é o trigo dos esco-
lhidos, e o vinho que engendra virgens (Zac 9, 17). O vinho da terra é prejudi-
cial para a castidade, porém o celestial, ou seja, o Sacramento do Altar, é meio
para conservá-la (S. Afonso Ligório). Entre todas as orações tem eficácia espe-
cial para isto a oração à Mãe de Deus. Oh, quantos jovens, por meio da devo-
ção à Maria Santíssima, se têm conservado puros como anjos. O Padre Señeri,
célebre pregador, refere de um jovem desonesto, à quem o confessor mandou
em penitência rezar todas as manhãs três Ave-Marias em honra da pureza da
Mãe de Deus: passados alguns anos voltou o jovem a ele e lhe declarou que
devia àquela oração sua conversão perfeita.
A meditação das verdades da religião tira o gosto das coisas sensuais.
Andai em espírito e não cumprireis os desejos da carne (Gál 5, 16). Enquanto
gozamos os santos deleites de Deus, todas as demais coisas se nos fazem insípi-

46
das. O que tem gozado os prazeres espirituais enoja todos os carnais. Sobretu-
do, o que pensa que Deus está presente em todo lugar e vê tudo, nunca fará
coisa que desagrade a Deus (S. Jerônimo). Isto se viu com José, no Egito (Gên
39, 9), e em Susana (Dan 13, 35). Não te deixes enganar pela esperança que
teus pecados ficarão ocultos, pois Deus está presente, a quem nada se oculta
nem se escapa (S. Ambrósio). Pensa, em todas tuas ações, em teus novíssimos,
e nunca pecarás (Eccli 7, 40). Se penetra em teus membros o fogo da impureza,
apague-o o pensamento do fogo infernal (S. Pedro Damião). São Martiniano,
eremita da Palestina, tentado por uma má mulher, meteu seus pés no fogo e
exclamou: Se não posso sofrer um fogo tão fraco como este, como poderia to-
lerar logo o fogo do inferno? Onde há temor de Deus, ali há castidade; mas
onde não há temor de Deus, buscareis a castidade em vão (S. Crisóstimo). Ao
baile se vai com a maior vaidade, e esta é a melhor disposição para os maus
pensamentos e desejos (S. Francisco de Sales). Os bailes soem acontecer de
noite, como se quisesse indicar que neles se penetra outra tanta obscuridade e
malícia na alma. Os bailes são mortalha da inocência e sepulcros do pudor (S.
Ambrósio). O que não quer cair neles tem de ser um anjo. Muitas das peças
que se representam nos teatros são imorais. Um espetáculo todo moral se re-
presentaria em nossos dias ante os bancos vazios. O teatro é, não raras vezes,
mestre de uma hora e sedutor de muitos anos. O "teatro livre" com pessoas de
sexos diferentes é igualmente nocivo para a castidade. Quando a palha se junta
com o fogo, toda ela se acende numa viva chama: uma coisa parecida acontece
quando se trata com liberdade com pessoas de sexo diferente (S. Vicente Fer-
rer). Ninguém diga que as pessoas com quem trata são muito honestas. A um
homem que deu esta resposta a São João Jordão, disse-lhe este: O caminho é
bom e boa é a chuva; mas quando ambos se juntam se faz lodo”. 4

6. O que é a desonestidade ou impureza

O mesmo Francisco Spirago também fala sobre a impureza:


“a). É desonesto o que pensa, diz ou faz coisas que ofendem a pureza.
Assim como o casto se assemelha aos lírios, o desonesto se parece com o
espinho, no qual se fere quem o toca. Para expiar os pecados de impureza se
deixou Cristo açoitar tão desumanamente e cingir de espinhos sua sagrada ca-
beça.
O desonesto é semelhante aos brutos, inteiramente dessemelhante a
Deus e desagradável à sua divina majestade, e é ao final desprezado também
pelos homens.

4
"Catecismo Popular Explanado" - Rdo. Francisco Spirago - pp. 614/622.

47
Pela impureza o homem se faz uma besta (S. Bernardo). Isto o entende-
ram até os pagãos. O sábio Diógenes andava com uma lanterna na mão pela
praça de Atenas, em pleno dia, procurando algo. Como lhe perguntaram o que
procurava; Busco um homem! - disse. Não vês aí muitos homens? Foi-lhe re-
plicado. Mas ele contestou: Esses não são homens, senão bestas, pois se deixam
guiar por seus bestiais apetites. O impuro é como o porco, que se vê a um lado
um charco lamacento e a outro um leito de rosas, escolhe revolver-se na lama.
Assim o desonesto prefere seus deleites sujos aos gozos do Paraíso (S. Bernar-
do). Ao impuro lhe convém as palavras da Escritura Sagrada: O homem, estan-
do em honra, não a entendeu, e se fez semelhante às bestas irracionais (Salmos
48, 21). A soberba é o pecado dos anjos, a avareza o dos homens, a luxúria o
dos brutos (S. Bernardo). É baixeza para o homem, que tão alta dignidade pos-
sui, e pela Encarnação está tão perto de Deus, abater-se de um modo desorde-
nado aos seres inferiores (S. Tomás).
O desonesto é inteiramente "dessemelhante" a Deus. Pelo pecado da im-
pureza mancha o homem a imagem de Deus, que está nele, e ofende a Deus,
como ofende a mim o que cospe em minha imagem, ou de outra sorte a enche
de imundície (S. Agostinho). O desonesto faz algo parecido ao que lançasse
numa fossa uma imagem de Cristo crucificado, pois lança numa fossa a imagem
de Deus, que está nele (S. Vicente Ferrer). Porque mancha ao homem, se
chama este pecado "impureza". O impuro é em todos os pontos "desagradável a
Deus". Quando os homens, nos tempos antigos, incorreram em diversos peca-
dos, até na idolatria, teve Deus paciência com eles; mas quando caíram no pe-
cado de impureza e se afundaram mais e mais nele, encheu-se Deus de tal nojo
que se arrependeu de havê-los criado (Gên 6, 6). Por mais que o desonesto se
enfeite e exale aroma de perfumes, despede aos olhos de Deus um fedor mais
insuportável que o de um cadáver podre (S. Afonso Ligório). O desonesto chei-
ra mal a Deus, aos anjos e aos homens (S. José Cupertino). São Felipe Neri
recebeu de Deus a graça de reconhecer as almas puras pelo bom odor e as im-
puras pelo mal cheiro. Ao impuro se aplicam as palavras das Lamentações de
Jeremias: Como se tem obscurecido o ouro e mudado a preciosa cor? Os fi-
lhos de Sião, ínclitos e vestidos de ouro puro, como são agora tidos como vasos
de barro? Os que comiam voluptuosamente têm abraçado o esterco. Os deso-
nestos são tidos, por seus mesmos próximos, por "pessoas sem honra" e pisote-
ados como o lodo das praças (Eccli 9, 10). A desonestidade se descobre, geral-
mente. A desonestidade ama a solidão e quer ser achada em segredo; porém se
parece ao fogo escondido, que, mesmo que procure ocultar-se, se descobre pe-
la fumaça e pelo cheiro (S. Vicente Ferrer).

48
b). Os desonestos incorrem em muitas loucuras e vícios, atraindo duros
castigos de Deus e a eterna condenação

A desonestidade é um anzol do demônio, o qual, aos que picam nesta is-


ca, os conduz á perdição (S. Basílio). O fim deste pecado é amargo como absin-
to e agudo como uma espada de dois gumes (Prov 5, 4). Oh, quão amargos são
os frutos do deleite impuro! Amargos como o fel! (S. Jerônimo). O pecado, que
te promete prazer, é doce veneno; não te fies dele! Como o Espírito Santo se
afasta do impuro seu entendimento fica completamente obscurecido. Como o
homem pela impureza se faz besta, não tem já aquela penetração, aquela luz do
espírito que o discernia dos brutos (S. Bernardo). Os luxuriosos são como o
cavalo e o mulo que não têm entendimento (Sl 31, 9). Têm uma neve espessa
diante dos olhos, com a qual não vêem o abismo do inferno (Cornélio a Lápi-
de). Os homens carnais não entendem as coisas que são do Espírito de Deus (I
Cor 2, 14). O rei Salomão perdeu por este pecado sua sabedoria, e se fez tão
insensato que chegou a adorar os ídolos de suas favoritas (III Reis 11). Os de-
sonestos se vestem com freqüência como os loucos.
A vontade do luxurioso fica debilitada. É o impuro como um paralítico,
aleijado para o exercício do bem (Beda). Por isso sua emenda é muito difícil.
Está como encadeado, não por mão alheia, senão por suas mesmas paixões,
fortes como o ferro (S. Agostinho). A luxúria é um vício do qual não é fácil li-
vrar-se (S. Tomás). É uma rede do demônio, em que os homens ficam presos,
sem poder desenredar-se. Por isso o desonesto cai com facilidade nos outros
pecados, ciúmes, invejas, ódio, crueldade, homicídio, prodigalidade, sacrilégio,
desespero, etc. A onde se pode conduzir este vício se vê em Henrique VIII da
Inglaterra, o qual havendo sido antes defensor da Fé, cegado logo pela luxúria,
apostatou da Igreja Católica e arrastou consigo ao cisma todo seu reino; saque-
ou os mosteiros, matou uns 25 bispos, 500 sacerdotes e religiosos e a muitas
outras pessoas.
Sobre o impuro descarregam duros castigos. Perde de imediato a paz da
alma. Ao impuro clama São Crisóstomo: Oh homem desventurado! Quão
digno és de compaixão! Mostra-me em cada um de teus dias uma só hora tran-
qüila! A desonestidade produz uma sede ardente (inquietude de consciência) e
faz que o homem se perca (Cornélio a Lápide). Também perde o desonesto a
saúde corporal. Os outros pecados são fora do corpo; porém o luxurioso peca
contra seu mesmo corpo (I Cor 6, 18); isto é, a impureza mancha o corpo mais
que outro pecado qualquer, e o submete a uma servidão vergonhosa. Por isso
este pecado traz contra o corpo diferentes castigos. Ainda que o homem exteri-
or seja gracioso e ande galante, se a alma está suja com a hediondez do pecado,
a formosura do corpo não pode durar muito tempo (S. Efrém). A luxúria rói a

49
flor da juventude e antecipa uma velhice decrépita. Visita os hospitais e mani-
cômios e te assustarás com as conseqüências deste pecado. Sobre os impuros
caem especiais castigos. Assim foi o dilúvio castigo particular da impureza (Gên
6,7). Sodoma e Gomorra, por causa dela, foram arrasadas com fogo e enxofre
(Gên 18, 20). Se agora não castiga Deus aos luxuriosos com estes fogos é por-
que lhes aguarda outro fogo incomparavelmente mais ardente; porque lhes está
preparado um castigo sem comparação mais duro (S. Crisóstomo).
Os luxuriosos não possuirão o reino de Deus (I Cor 6, 9). Não têm parte
no Reino de Cristo (Ef. 5,5). Nada impuro pode entrar no reino dos céus
(Apoc 21, 27). A alma do impuro está desarraigada do número dos vivos (Eccli
19, 3). Se viveis segundo a carne, morrereis (Rom 8, 13). O deleite é de um
instante e o castigo eterno (S. Ambrósio). Santo Afonso de Ligório opina que a
maioria dos condenados o são por este pecado.

c). O melhor meio para evitar o pecado da impureza é a fuga

Lembremo-nos de José do Egito (Gên 39). Há, ademais, outros meios


para escapar deste pecado, quais são, a freqüência de Sacramentos,a devoção à
Maria Santíssima, etc. Não obstante, o meio principal é a "fuga das tentações"
(S. Afonso). O apóstolo disse: (I Cor 6, 18) que há que resistir a todos os ví-
cios; mas com relação á impureza, disse que temos fugir dela (S. Agostinho).
No combate contra a sensualidade, alcançam a vitória os tímidos e medrosos,
isto é, os que empreendem a fuga (S. Felipe Neri). Não te será afrontoso fugir
para alcançar a palma da castidade (S. Agostinho)”.5

5
"Catecismo Popular Explanado" - Rdo. Francisco Spirago - pp. 623/628.

50
7. A doutrina do Papa Pio XII sobre a castidade

Destacamos abaixo alguns trechos da carta Encíclica de Pio XII, "Sacra


Virginitas" sobre a castidade:

A castidade não é nociva ao organismo humano


Primeiramente, afastam-se do senso comum, a que a Igreja sempre aten-
deu, aqueles que vêm no instinto sexual a mais importante e mais profunda das
tendências humanas, e concluem daí que o homem não o pode coibir durante
toda a sua vida sem perigo para o organismo e sem prejuízo do equilíbrio de
sua personalidade.
Ora, segundo a acertada observação de S. Tomás, a mais profunda das
inclinações naturais é o instinto de conservação:6 o instinto sexual não vem se-
não em segundo lugar.7 Além disto, compete à razão, privilégio singular da nos-
sa natureza, regular essas tendências e instintos profundos e, por meio da dire-
ção que lhes dá, enobrecê-los. (Cf. S. Tomas Summa Theologica I-II, q. 94,
a.2).
Infelizmente, depois do pecado de Adão, as faculdades e as paixões do
corpo, estando alteradas, não só procuram dominar os sentidos, mas até o espí-
rito, obscurecendo a razão e enfraquecendo a vontade. Mas é-nos dada a graça

6
Ou da sociabilidade, vindo o da sexualidade em terceiro lugar.
7
O homem tem outros instintos mais fortes como o da sociabilidade e da beatitude (busca da felicidade)

51
de Cristo, especialmente nos sacramentos, para nos ajudar a manter o nosso
corpo em servidão e a viver do espírito (cf. Gál. 5-25; I Cor 9-27). A virtude da
castidade não exige de nós que nos tornemos insensíveis ao estímulo da con-
cupiscência, mas que o subordinemos à razão e à lei da graça, esforçando-nos,
segundo as próprias forças, por seguir o que é mais perfeito na vida humana e
cristã.
Para conseguir, porém, o domínio perfeito do espírito sobre a vida dos
sentidos, não basta abstermo-nos apenas dos atos diretamente contrários à cas-
tidade, mas é absolutamente necessário renunciar com generosidade a tudo o
que ofende de perto ou de longe esta virtude: poderá então o espírito reinar
plenamente no corpo e viver a sua vida espiritual em paz e liberdade. Quem
não verá, à luz dos princípios católicos, que a castidade perfeita e a virgindade,
bem longe de prejudicarem o desenvolvimento normal do homem e da mu-
lher, os elevam pelo contrário à mais alta nobreza moral? 8

O pudor cristão
Bem melhor fariam os educadores da juventude, inculcando-lhe as
normas do pudor cristão, que tanto contribui para manter incólume a virginda-
de, e bem pode chamar-se a prudência da castidade. O pudor advinha o perigo,
obsta a que as afronte, e leva a evitar aquelas mesmas ocasiões de que não se
acautelam os menos prudentes. Ao pudor não agradam as palavras torpes ou
menos honestas, e aborrece-lhe a mais leve imodéstia. Ele afasta-se da familiari-
dade suspeita com pessoas do outro sexo, porque enche a alma de profundo
respeito pelo corpo, membro de Cristo (cf. I Cor 6, 15), e templo do Espírito
Santo (I Cor 19). A alma cristãmente pudica tem horror de qualquer pecado de
impureza e retira-se ao primeiro assomo de sedução.
O pudor sugere ainda aos pais e educadores os termos apropriados para
formar, na castidade, a consciência dos jovens. Evidentemente, como lembrá-
vamos há pouco numa Alocução, "este pudor não se deve confundir com o si-
lêncio perpétuo que vá até excluir, na formação moral, que se fale com sobrie-
dade e prudência destas matérias" (Aloc. "Magis quam mentis", d. 23 sept., à
1951; AAS XLIII, p. 736). Contudo, com freqüência demasiada nos nossos
dias, certos professores e educadores julgam-se obrigados a iniciar as crianças
inocentes nos segredos da geração duma maneira que lhes ofende o pudor.
Ora, neste assunto tem de se observar a justa moderação que exige o pudor.
Alimenta-se do temor de Deus, temor filial baseado numa profunda hu-
mildade, o qual inspira horror ao menor pecado. Já o afirmava o Nosso Prede-
cessor São Clemente I: "Aquele que é casto no seu corpo, não se glorie, pois
deve saber que recebeu doutro o dom da continência" . Mas ninguém mostrou
8
Encíclica “Sacra Virginitas" – Pio XII - Ed. Vozes, 1960 - pág. 16.

52
melhor que Santo Agostinho a importância da humildade cristã para a defesa
da virgindade: "Sendo a continência perpétua, e sobretudo a virgindade, um
grande bem nos santos de Deus, deve-se evitar com maior cuidado que se cor-
rompa com a soberba... Este bem, quanto maior o vejo, mais temo que a so-
berba o roube. Este bem virginal ninguém o conserva senão o próprio Deus
que o deu: e "Deus é caridade" (I Jo 4, 8). Portanto, a guardiã da virgindade é a
caridade; e a morada desta guardiã é a humildade". 9

A fuga das tentações e das ocasiões de pecado


Além disso, segundo a lição dos Santos Padres e Doutores da Igreja, li-
bertamo-nos mais facilmente dos atrativos do pecado e das seduções das pai-
xões, fugindo com todas as forças, do que atacando de frente. Segundo São Je-
rônimo, para conservar a pureza, a fuga vale mais do que a luta aberta: "Fujo
para não ser vencido", dizia de si mesmo. Esta fuga consiste em nos afastarmos
com diligência das ocasiões do pecado, e sobretudo em elevarmos o nosso es-
pírito para as realidades divinas durante as tentações, fixando-o naquele a quem
consagramos a nossa virgindade: "Olhai para a beleza do vosso amante Esposo",
recomenda Santo Agostinho.
Mas esta fuga e vigilância, para nas expormos às ocasiões de pecado, pa-
rece que não são hoje compreendidas por toda a gente, apesar de os santos as
terem considerado sempre o melhor meio de luta nesta matéria. Pensam de
fato alguns que os cristãos, e especialmente os sacerdotes, já não devem ser uns
"separados do mundo", como outrora, mas devem pelo contrário "estar presen-
tes no mundo" e, por conseguinte, "arrostar o perigo" e "pôr à prova" a sua casti-
dade, para assim se patentear se têm ou não suficiente força para resistir. Vejam
portanto tudo os jovens clérigos, para se habituarem a encarar tudo sem pertur-
bação e para se imunizarem assim contra toda a espécie de tentações. Deste
modo, facilmente lhes permitem fixar sem resguardo tudo o que lhes cai debai-
xo dos olhos, freqüentar cinemas, mesmo para ver películas proibidas pelos
sensores eclesiásticos, percorrer toda a espécie de ilustrações, mesmo que se-
jam obscenas, e ler até os romances que estão no Índice ou que proíbe o dire-
tor natural. Concedem-lhe tudo isto sob pretexto de que hoje grande parte da
gente alimenta o espírito com esses espetáculos e publicações, e é preciso que,
os que hão de ajudar, lhes compreendam a maneira de pensar e sentir. É fácil
de ver a falsidade e perigo de tal maneira de formar o clero e de o preparar pa-
ra a santidade da sua missão: pois "quem ama o perigo, nele perecerá" (Ecli 3,
27). A recomendação de Santo Agostinho não perdeu nada da sua oportuni-
dade: "Não digais que tendes almas puras se tendes olhos impuros, porque os
olhos impuros são mensageiros dum coração impuro".
9
op. cit. pág. 26

53
Este funesto método baseia-se numa confusão grave. É verdade que Nos-
so Senhor disse aos Apóstolos: "enviei-vos ao mundo" (Jo 17, 18), mas acabara
de dizer: "eles não são do mundo, como eu também não sou do mundo" (Jo
16) e tinha rogado ao Pai: "Não te peço que os tire do mundo, mas que os livre
do mal" (Jo 15). Segundo estes princípios, a Igreja tomou prudentes medidas
para preservar os padres, que vivem no meio do mundo, das tentações que os
rodeiam: estas normas têm por fim defender-lhes a santidade de vida das preo-
cupações e prazeres próprios aos leigos.
Com maior razão ainda, é necessário separar os jovens clérigos da agita-
ção do século, para os formar na vida espiritual e na perfeição sacerdotal ou
religiosa, antes de os lançar no combate. Por isso, devem estes ficar por longo
tempo no seminário ou nas casas de noviciado e formação, e receber educação
apurada, aprendendo pouco a pouco e com prudência a tomar contato com os
problemas do nosso tempo, como Nós o prescrevemos na Nossa Exortação
Apostólica "Menti Nostrae". Qual é o jardineiro que expõe às intempéries plan-
tas escolhidas, mas ainda tenras, sob o pretexto de as experimentar? Ora, os
seminaristas e os religiosos em formação são plantas novas e delicadas, que pre-
cisam de proteção e só progressivamente vão se habituando a resistir e a lutar".
10

O que é a virgindade cristã no ensino dos Padres e Doutores


Daqui se segue - como os Santos Padres e Doutores da Igreja claramente
ensinaram - que a virgindade não é virtude cristã se não é praticada "por amor
do reino dos céus" (Mt 19, 12); isto é, para mais facilmente nos entregarmos às
coisas divinas, para mais seguramente alcançarmos a bem-aventurança, e para
mais livres e eficazmente podermos levar os outros para o reino dos céus.
Não podem portanto reivindicar o título de virgens as pessoas que se abs-
têm do matrimônio por puro egoísmo, ou para evitarem os seus encargos, co-
mo o nota Santo Agostinho, ou ainda por amor farisaico e orgulhoso da própria
integridade corporal: já o Concílio de Gangres condena a virgem e o continente
que se afastam do matrimônio por o considerarem coisa abominável, e não por
se moverem pela beleza e santidade da virgindade.
Além disso, o Apóstolo das Gentes, inspirado pelo Espírito Santo, obser-
va: "Quem está sem mulher, está cuidando das coisas que são do Senhor, como
há de agradar a Deus... E a mulher solteira e virgem cuida das coisas que são do
Senhor, para ser santa de corpo e de espírito" (I Cor 7, 32-34). É esta portanto
a finalidade primordial e a razão principal da virgindade cristã: encaminhar-se
apenas para as coisas de Deus e orientar, para ele só, o espírito e o coração;
querer agradar a Deus em tudo; concentrar nele o pensamento e consagrar-lhe
inteiramente o corpo e a alma.
10
op. cit. pp. 25/26

54
Nunca deixaram os Santos Padres de interpretar deste modo a lição de
Jesus Cristo e a doutrina do Apóstolo das Gentes: pois, desde os primitivos
tempos da Igreja consideravam a virgindade como consagração do corpo e da
alma a Deus. São Cipriano pede às virgens que, "tendo-se consagrado a Cristo
pela renúncia à concupiscência da carne e tendo-se dedicado a Deus de alma e
corpo, não procurem agora adornar-se nem pretendam agradar a ninguém se-
não a Deus". E mais longe ainda vai Santo Agostinho: "Não honramos a virgin-
dade por si mesma, mas por estar consagrada a Deus... Nem nós louvamos nas
virgens o serem virgens, mas o estarem consagradas a Deus com piedosa conti-
nência". Os Príncipes da Sagrada Teologia, Santo Tomás de Aquino e São Bo-
aventura, apóiam-se na autoridade de Santo Agostinho para ensinarem que a
virgindade não possui a firmeza de virtude se não deriva do voto de a preservar
ilibada perpetuamente. E sem dúvida os que mais plena e perfeitamente põem
em prática a lição de Cristo neste particular, são os que se obrigam com voto
perpétuo a observar a continência; nem se pode afirmar com fundamento que é
melhor e mais perfeita a condição dos que desejam conservar uma porta aberta,
para voltarem atrás.11.

A excelência da virgindade sobre o matrimônio


É sobretudo por este motivo que se deve afirmar - como ensina a Igreja -
que a santa virgindade é mais excelente que o matrimônio. Já o Divino Reden-
tor a aconselhara aos discípulos como vida mais perfeita (Mt 19, 10-11); e São
Paulo, depois de dizer que o pai que dá em casamento a filha "faz bem", acres-
centa logo a seguir: "E quem não a casa, faz melhor ainda" (I Cor 7, 38). Ao
comparar as núpcias com a virgindade, manifesta o Apóstolo mais de uma vez o
seu pensamento, sobretudo ao dizer: "Eu queria que todos vós fôsseis como
eu... Digo aos não casados e às viúvas que lhes é bom permanecer assim, como
também eu" (I Cor 7, 7-8; cf. 1 e 26). Se portanto a virgindade, como dissemos,
é mais excelente que o matrimônio, isso vem em primeiro lugar de ela ter um
fim mais alto (cf. S. Tomás Summa Theol. II-II, q. 152, aa. 3-4): contribui com
a maior eficácia para nos dedicarmos completamente ao serviço divino, en-
quanto o coração das pessoas casadas estará mais ou menos "dividido" (I Cor 7,
33).
Considerando porém a abundância dos frutos que dela nascem, mais cla-
ra aparecerá ainda a excelência da virgindade, "pois pelo fruto se conhece a ár-
vore" (Mt 12, 33). 12

11
op cit. pp. 6 /7.
12
op. cit. pág. 12.

55
8. O pecado da carne provém da árvore da morte

Santa Catarina de Sena teve várias visões em que ouvia a voz de Deus
Pai. Numa delas ouviu o seguinte sobre o pecado da carne:
"Depois de haver expandido aquela alma um pouco seu coração com as
palavras sobre a misericórdia, esperava humildemente que lhe fosse cumprida a
promessa.
Depois tomou novamente a palavra e disse:
- Filha queridíssima, tens apelado para minha misericórdia em minha
presença, porque te a dei a provar e entender por minhas palavras ao dizer-te:
"Estes são aqueles pelos quais vos peço que rezeis"; porém tem por certo que,
sem comparação, é maior minha misericórdia para convosco do que possas
compreender. Como tua compreensão é imperfeita e finita, e minha misericór-
dia é perfeita e infinita, a comparação que se pode estabelecer não é senão en-
tre o finito e o infinito.
Desejei que saboreasses esta misericórdia e a dignidade do homem para
que conheças melhor a crueldade e a indignidade dos pecadores, que vão pelo
caminho de baixo. Abre os olhos de tua inteligência e olha aos que voluntaria-
mente se afogam e quanta indignidade têm caído por seus pecados.

56
Primeiramente caíram enfermos. Sucedeu que, quando conceberam o
pecado mortal em suas mentes, o levaram depois à prática e perderam a vida da
graça.
Como o morto, que não pode empreender movimento algum nem por si
mesmo se move, senão por outro, assim estes, afogados no rio do amor desor-
denado do mundo, encontraram-se mortos para a graça. Por estar mortos, a
memória não tem conservado o recordo de minha misericórdia, os olhos do
entendimento não viram nem conheceram a verdade, quer dizer, seu entendi-
mento não teve ante si mais que a si mesmos e o amor a seus próprios sentidos.
Por isto, sua vontade encontrou-se morta para minha vontade e não amou mais
que coisas mortas.
Ao achar-se mortas as três potências, todas suas obras, temporais e espiri-
tuais, estão mortas perante a graça, e já não podem se defender de seus inimi-
gos nem socorrer-se a si mesmos senão enquanto são ajudados por mim. É cer-
to que cada vez que algum se acha morto e me pede ajuda, pode obtê-la; porém
nunca por si mesmo enquanto está no corpo, no qual não há ficado mais que a
liberdade.
Se há feito insuportável a si mesmo, e, querendo dominar o mundo, é
dominado pelo que é negativo, quer dizer, pelo pecado. O pecado é o nada, e
eles se fazem seus escravos.
Eu lhes fiz árvores de amor pela vida da graça que receberam pelo santo
batismo, e eles se têm convertido em árvores de morte, porque se acham mor-
tos.
Sabes onde tem suas raízes esta árvore? Na presunção da soberba, ali-
mentada pelo mesmo amor-próprio sensitivo. Sua medula é a impaciência, e
sua filha, a indiscrição. . Estes são os quatro vícios principais que matam a alma
daqueles que disse que eram árvore de morte, pois têm tirado dela a vida da
graça.
Dentro desta árvore se alimenta o verme da consciência, o qual, enquan-
to o homem vive em pecado mortal, está cego pelo amor-próprio, e, portanto,
não se lhe sente muito. Os frutos desta árvore são mortais, porque seu jugo tem
saído da raiz da soberba. A miserável alma encontra-se cheia de ingratidão,
donde procede todo mal. Se fosse agradecida aos benefícios recebidos, Me co-
nheceria, e, ao conhecer-Me, se conheceria a si mesma e permaneceria em meu
amor. Porém ela, como cega, vai se apegando mais à corrente e não vê que a
água não espera por ela.

O pecado da carne
"Os frutos desta árvore são tão variados como o são os pecados. Algumas
pessoas não vêem que são frutos próprios para animais: são os que vivem na

57
imundície, fazendo com sua carne e com seu espírito o mesmo que o porco,
que se revolve na lama da carnalidade. É tal sua miséria, que nem os suporto
Eu, suma Pureza, nem os demônios, de quem se têm feito seus amigos e escra-
vos, que não podem ver cometer tanta imundície. Oh alma embrutecida! Onde
deixastes tua dignidade? Eras irmão dos anjos, e te hás convertido numa besta!
Não há pecado tão abominável e que prive o homem tanto da luz do en-
tendimento como este. Isto o compreenderam os filósofos, não pela luz da gra-
ça, que não tinham, senão que a luz natural os iluminou, quer dizer, lhes dizia
que este pecado cega o entendimento. Por isso guardavam continência, para
dedicar-se melhor ao estudo, e até deitavam de si as riquezas, para que as preo-
cupações por elas não lhes enchesse o coração. Não faz assim o falso cristão,
ignorante, que tem perdido a graça por sua culpa. 13

13
"Obras de Santa Catalina de Siena" - BAC- págs. 110/112.

58
9. Os castos seguem o Cordeiro de Deus para onde
quer que Ele vá
Os castos terão um lugar especial reservado para eles no Céu Empíreo. É
desta forma que São João fala deles no Apocalipse:
“Olhei, e eis que o Cordeiro estava de pé sobre o monte de Sião e com
ele cento e quarenta e quatro mil que tinham escrito sobre suas frontes o nome
dele e o nome de seu Pai. Ouvi uma voz do céu, como o rumor de muitas
águas e como o estrondo de um grande trovão. A voz que ouvi, era como de
tocadores de citara que tocavam as suas cítaras. Cantavam um cântico novo di-
ante do trono, diante dos quatro animais e dos anciãos. Ninguém podia cantar
este cântico, senão aqueles cento e quarenta e quatro mil, que foram resgatados
da terra. Estes são os que não se contaminaram com mulheres, porque são vir-
gens. Estes seguem o Cordeiro onde quer que ele vá. Estes foram resgatados
dentre os homens como primícias para Deus e para o Cordeiro, e na sua boca
não se achou mentira, porque estão sem mácula diante do trono de Deus.
(Apoc 14, 1-5).
A propósito, transcrevemos abaixo um texto publicado por Reginaldo
Garrigou-Lagrange, O.P., extraído das anotações de uma Fundadora, Madre
Francisca de Jesus, mística brasileira que fundou a Companhia da Virgem sob o
beneplácito de São Pio X. A exemplo de Santo Inácio de Loiola, Madre Fran-
cisca de Jesus fundou também sua “Companhia”, inteiramente feminina e des-
tinada exclusivamente a rezar pelo Papa e pelo Clero:
“A festa da encantadora santinha romana, uma de nossas mais caras Pa-
droeiras, é particularmente propícia a uma palestra sobre a virgindade. O seu
próprio nome evoca esta lembrança: Inez significa “cordeiro” da palavra latina
“agnus”. Quem não terá experimentado, à vista de um cordeirinho, uma im-
pressão de doçura, candor e pureza? O cordeiro era uma das vítimas escolhi-
das, ofertadas a Deus em holocausto pelos sacerdotes do Antigo Testamento.
Conheceis o “Cordeiro” assim figurado: Aquele a Quem na Santa Missa diari-
amente invocais por três vezes com esse nome, o que apaga os pecados do
mundo, e do qual dizia São João Batista: “Ecce Agnus Dei, ecce tollit peccata
mundi”; Aquele, enfim, que sendo o Cordeiro de Deus – os outros eram ape-
nas cordeiros dos homens – é a única Vítima pura, santa e imaculada; a única
Vítima digna de Deus.
“O Sacrifício do Cordeiro de Deus perdura sempre. Deus tomou posse
de sua Vítima no Calvário e dele se apoderou uma vez por todas.
“A Vítima se imolará dia por dia em nossos altares, de modo incruento
embora, até ao fim dos tempos.

59
“No céu Ela permanecerá eternamente!
Quando em Patmos, arrebatado em espírito, São João viu na Jerusalém
celeste um “cordeiro que parecia ter sido imolado”...
“O Cordeiro divino, Nosso Senhor Jesus Cristo, é o ponto central para
onde tudo converge: desse ponto culminante tudo nos vem e para ele tudo se
dirige. Todas as coisas por Ele nos vêm e só por Ele podemos chegar a Deus.
“Foi figurado na Antiga Aliança; é imitado na Lei Nova.
“Somente em vista de seu Sacrifício, real, completo, perfeito, é que Deus
aceitava as oblações, que apenas fraca e pobremente o figuravam; é ainda só em
consideração desse mesmo Sacrifício que Ele aceita as nossas homenagens,
orações, pobres ofertas, e se digna recompensá-las à medida de nosso amor.
“Até ao fim imitou Inez o Cordeiro de Deus, motivo pelo qual se acha
entre aqueles que São João contemplou a ocupar lugar especial: “Vi sob o altar
as almas do que foram imolados por causa do Verbo de Deus e do testemunho
por eles dado”.
“Inez colheu a palma do martírio na flor de sua virgindade, eis a razão de
achar também entre aqueles que, segundo a palavra do mesmo São João, “não
se tendo maculado, acompanham o Cordeiro por toda parte”.
“Ainda criança, a santa já compreendera a graça da virgindade e a ventura
de ser toda de Jesus. “Pertencerei Àquele, repetia aos que para desposá-la pro-
curavam afastá-la do seu noivo divino, pertencerei Àquele que me amou pri-
meiro”, designando assim o que, sendo Deus e homem, a amara desde toda a
eternidade.
“A virgindade é em si graça mui preciosa; nem a todos é dado compre-
endê-la: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”, disse o Mestre muito amado; a
fidelidade em conservá-la e desenvolvê-la, traz consigo ainda maiores graças. É
tal a misericórdia do nosso Deus que a correspondência a uma graça outras
atrai.
“Dest’arte a fidelidade de Inez a seu Esposo, que era também seu Deus,
lhe mereceu a graça do martírio.
“Não foi também essa fidelidade que valeu a Maria tornar-se Mãe de
Deus?
“A Sagrada Escritura diz que o Messias nasceria de uma Virgem. Maria,
conservando a virgindade, preparava, sem o suspeitar, a vinda do Salvador. O
Autor de toda virgindade só de uma Virgem podia nascer. Fazendo-se homem,
o Verbo devia a si próprio o ornar sua Mãe com essa flor dos céus, antes de a
oferecer a qualquer outra criatura.
“Mãe de Deus e Virgem perpétua, Maria arrastou após si o inumerável
cortejo de almas que, renunciando aos laços terrestres, aspiram à união divina
simbolizada por essas núpcias. Sem diminuir de modo algum a dignidade do

60
matrimônio, deve-se afirmar com os Santos Padres e o Concílio de Trento ser
mais perfeito o estado virginal (Oh! Não há motivo para orgulho, pois se o es-
tado é mais perfeito em si, os indivíduos o podem ser menos).
“Que é a virgindade? É a virtude que eleva as criaturas, adstritas ainda à
condição dos mortais, até à semelhança dos Anjos.
“A virgindade perfeita é a abstenção de tudo o que não é Deus, ou por
outras palavras: a integridade completa da obra de Deus em sua criatura. Para
defender essa integridade (com a qual Deus nos dotou, dando-nos a vida da
natureza e da graça) é preciso lutar, combater até ao último suspiro. A pobre
natureza humana prende-se facilmente a tantas coisas capazes de atrair-lhe o
espírito e o coração!
“Como poderá ser virgem a religiosa que escuta as inspirações do erro
deixando-se seduzir pela linguagem do demônio, sem mais respeito pela auto-
ridade? Como se conservará virgem a religiosa cuja consciência esteja mancha-
da pelos estigmas de funestas doutrinas? Se a virgem destinada ao Esposo celes-
te deve apresentar-lhe o coração livre de qualquer pensamento mundano, a fim
de lhe agradar e merecer o seu amor, poderá acaso conservar a graça da virgin-
dade aquela que traz o coração cheio de pensamentos de independência ou
contrários à caridade?
“Não, sem dúvida; embora haja conservado a pureza do corpo, a parte
mais íntima e bela do ser, a alma, não deixará de assim perder a candura virgi-
nal.
“E que importa permanecer de pé as paredes exteriores do templo, es-
tando o santuário destruído ou profanado?
“Que importa os véus e hábitos resplandecentes de brancura se o espírito
está maculado?
“Deus perscruta os corações e não se detém no exterior. Aliás, a corrup-
ção da alma destrói também a pureza de corpo. Esses juízos ocultos e temerá-
rios, gerados pelo espírito de independência e orgulho, não permanecem no
fundo do coração onde nascem; saem para mancar a boca que os exprime e os
ouvidos que os escutam; insinuam-se como mortal veneno e logo multiplicam
suas devastações... Agradável ao Senhor é a virgem que desde este mundo pro-
cura seguir por toda parte o Cordeiro; são as veredas por vezes abruptas, es-
carpadas, mas por todas passou Ele primeiro. Aliás o Bem-Amado está sempre
presente estendendo a mão protetora, à medida da generosidade da alma. Do-
çura, paciência, mortificação, obediência, humildade, humildade, humildade;
eis os adornos da esposa de Cristo.
“Minhas queridas filhas, não vos orgulheis nem vos glorieis jamais de
vossa virgindade. Temei antes diminuir o brilho dessa angélica virtude que ale-
gra o coração de Deus.

61
“Guardamos tesouro mui precioso em vaso de extrema fragilidade.
“Dai graças a Deus por esse tesouro e acautelai-vos com mil precauções:
sede atentas, prudentes, vigilantes. Jesus, no entanto, vos deseja atentas sem
constrangimento, prudentes sem dureza, vigilantes sem escrúpulos. Encha o
vosso coração sincera caridade, e sede por amor fiéis à santa observância; dilate
esse amor a vossa alma e uma casta liberdade vos regule os atos. Caminhai com
grande amor na presença do Bem-Amado que será vosso Juiz.
“Suplicai-Lhe guarde Ele próprio o precioso tesouro que vos confiou, e
sua doce Mãe, que é vossa Mãe a tantos títulos o guardará também.
“Conheço as vossas almas e corações; pertencem plenamente a Deus, a
seu Cristo, à sua Igreja. É ainda graça muito superior aos vossos méritos; bendi-
zei a Deus muitas vezes, repetindo-Lhe – pura verdade! – que sem Ele nada
podeis. A ação de graças será nova graça: de nós, minhas queridas filhas, só te-
mos o pecado...
“Domo poderíamos então – sem estarmos loucas – ter sequer a tentação
de nos gloriar dessa preciosa graça da virgindade! Estejamos bem certas de que
só a possuímos por mera liberalidade de Deus, cuja misericórdia para conosco
é infinita. Esforcemo-nos por ser dignas, ou antes, o menos indignas possível,
de tanto amor e predileção. Se fordes fiéis, Ele usará para convosco de prodi-
galidade real, divina. Tão poucos Lhe são verdadeiramente fieis!
“O Senhor gostaria que a virgindade fosse virtude comum a todos os
homens”, diz São João Crisóstomo, e esse desejo nos é atestado nestas palavras
do Apóstolo ou antes de Cristo, que por sua boca fala: “Quisera, diz ele, que
todos os homens fossem castos e puros assim como sou”. Deus, porém, é in-
dulgente para conosco; sabe que se o espírito é pronto, a carne é fraca. Não
testemunhou esse desejo sob a forma imperiosa do preceito, deixando-nos a
liberdade de realizá-lo ou de a ele nos subtrair.
“Há, no entanto, convites instantes da parte de nosso Deus e esses convi-
tes Ele não os dirige do mesmo modo a toda a humanidade...
“Para com as almas que chama à Sua intimidade, mostra-se insistente,
suplicante, e lhes revela com tão grande luz o radioso esplendor da virgindade,
que imediatamente elas se apaixonam pela bela virtude, preferindo mil mortes
a dela serem privadas.
“Conheceis todas o apelo do Mestre; vós o sentistes mendigando o vosso
amor... e como Tiago e João tudo deixastes para segui-Lo. Teríeis julgado dar-
Lhe alguma coisa? Não, também neste caso vós é que recebestes.
“Bem pequenina é a nossa parte: não fechar a porta ao seu Amor: eis
tudo.
Sei que a Deus abris completamente a entrada de vosso espírito, de vosso
coração, minhas queridas filhas, e quanto o Bendigo!

62
“Sede generosas! Jamais recueis, o que não seria digno d’Aquele que vos
escolheu”.
“Só Deus, hóspede dos corações puros e amigo das almas sem man-
cha,vos pode elevar pela santa virgindade até à semelhança dos Anjos.
“No que vos toca, nada Lhe deveis recusar; Ele fará o resto. Há de guar-
dar-vos e abençoar-vos, a fim de que, permanecendo sempre virgens sob as ves-
tes de Santa Maria, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, vos apliqueis de contí-
nuo a fazer o que é digno de recompensa.
“Tomai vossas medidas, minhas queridas filhas, para que no grande dia
do Juízo tenhais na mão a lâmpada cintilante...
“Deus não vos faltará e se lhe fordes fiéis sereis daquelas que em compa-
nhia de Santa Inez seguirão por toda parte o Cordeiro”.14

10. A castidade faz o homem não só semelhante aos


Anjos, mas ao próprio Deus

Em sua obra “Luz e Calor”, o Padre Manuel Bernardes assim discorre


no capítulo “Armas da Castidade”:
“Que não somente são os castos semelhantes aos Anjos, senão também
ao mesmo Deus. Assim falam comumente os Santos Padres. São Basílio: “Pre-
cioso benefício, grande mercê e singular dom é o da Castidade, pois faz ao ho-
mem mui semelhante a Deus na incorrupção”. São João Clímaco: “A Castidade
faz ao homem mui familiar a Deus e semelhante a Ele quanto é possível que o
seja”. São Jerônimo diz que Cristo Senhor Nosso nos deu o magnífico dom da
virgindade, pelo qual entramos ao consórcio da Divina natureza: “Grandia no-
bis, et pretiosa virginitatis promissa donavit, ut per hanc efficiamur Divinae con-
sortes Naturae”. E São Pedro Crisólogo diz que o homem vencedor das pai-
xões da carne transcende os Céus e chega voando ao mesmo trono da Divinda-
de: “Homo, dum carnis exuperat passiones, transcendit Coelum, et ad ipsam
Deitatis pevolat sedem”. Com isto concorda o agudo reparo que faz Caetano
sobre um texto do I Livro dos Reis,15 onde se diz que el-rei Saul entregou sua
filha Michol, mulher de David, a Falti, filho de Lais: “Saul autem dedit Michol
filiam suam uxorem David Phalti filio Lais”. Porém, depois, no Livro II16,
quando se trata de como Michol foi restituída a David, já este mesmo homem
se não chama Phalti, mas Phaltiel. A razão deste acrescentamento do nome, diz
Caetano, foi porque “El” é um dos nomes próprios de Deus na língua hebraica;
14
“Madre Francisca de Jesus”, de Reginaldo Garrigou-Lagrange, Tip. Beneditina Santa Maria, págs. 127/135
15
I Sam 25, 44
16
II Sam 3, 14-16 e 6, 20-23.

63
e como Falti se tinha havido com Michol castamente como um mero depositá-
rio, sem lhe tocar, por isso ao recebê-la foi somente Falti, mas ao entregá-la foi
Faltiel, isto é, Falti divino ou endeusado. Porque os castos têm muito de Deus,
que sem muito de Deus não poderiam ser castos: “Iste appelatus est Phalti in I
libro, quando Saul dedit ei Michol in uxorem: modo autem appellatur Phaltiel:
ita quod adauctum est nomini eius nomen Dei El: ea ratione quia nunquam
cognovit Michol, intuitu Dei, eo quod sciebat esse uxorem David”. Grande por
certo é esta excelência de Castidade, Porque se os homens estimam em tanto
aparentar-se ou tocar em sangue com grandes príncipes e reis, quanto mais de-
vem estimar aquele dom, pelo qual participam a natureza e nome do mesmo
Deus?” 17

11. O corpo humano, templo divino


As considerações abaixo visam fazer com que o leitor tenha plena cons-
ciência do que representa o corpo humano perante Deus. Trata-se do templo
de Deus. E tendo plena consciência disso devemos tratá-lo como tal: não só
respeitando as leis divinas, mas fazendo-se crer que estamos sempre não so-
mente na presença de Deus, mas tendo-O continuamente dentro de nós mes-
mos, já que nosso corpo é o seu templo vivo.
Nesse sentido o que representa a alma humana neste templo que é nosso
corpo? Ela é o claustro onde Deus se encontra de forma mais perfeita. Num
templo religioso, o edifício é o corpo e o altar (ou o claustro) é como que a al-
ma do templo, onde Deus é mais adequadamente cultuado, adorado.
Em vista disso, o nosso corpo merece ser respeitado como coisa admirá-
vel, como algo respeitável e venerável, dando-lhe todas as regalias e pompas,
mas tudo isso com único objetivo: que cumpra seu papel de templo divino, aco-
lhendo a Santíssima Trindade no seu claustro (que é nossa alma) e prestando-
lhe o culto devido.

a) O Templo de Deus

Os primórdios do templo de Deus entre o povo eleito encontra-se no


Monte Mória (Gen 22) quando para lá Deus conduziu Abraão e pediu que
imolasse seu filho Isaac em holocausto. Há também referências a um templo
na época dos Juízes: “E estando o pontífice Heli sentado na sua cadeira à porta
do templo do Senhor” (I Sam 1, 9). Na realidade, este “templo” era a Arca da
Aliança, situada em Silo, uma prefigura do templo de Salomão..
17
Obras do Padre Manuel Bernardes – Luz e Calor – vol. II – Lello & Irmãos Editores, Porto, Portugal – “Ar-
mas da Castidade”, págs. 22/23

64
O rei David deixou tudo pronto para Salomão fazer a construção do
mais majestoso Templo que já houve (I Crôn 22, 1-16). Antes de se iniciar a
obra, porém, Deus falou a Salomão, dizendo: se todos Lhe fossem fiéis, Ele
habitará no meio dos filhos de Israel (“no meio”, quer dizer, no coração, onde
se encontra o verdadeiro templo da Santíssima Trindade); caso não fossem fi-
éis, porém, “lançarei para longe de minha presença o templo que consagrei ao
meu nome...” (I Rs 9, 7-8). O Rei David escrevera nos Salmos: “Dentro de
mim orarei ao Deus de minha vida” (Sl 41,9). demonstrando que era o interior
da alma humana que se encontrava o verdadeiro templo de Deus.
De outro lado, qual a finalidade principal do Templo? Oração e repara-
ção dos pecados – que Deus “ouvirá do céu, do lugar de sua morada (I Rs 8,
29-39)”, indicando que o templo era dedicado à oração e reparação mas não
ainda para a adoração de Deus. E para que serviam os holocaustos? Era uma
forma de reparação dos pecados, mas em si mesmo “não é o holocausto que
agrada a Deus, mas o coração contrito e humilhado” (Sl 50, 18-19). O sacrifí-
cio, todo ele ainda simbólico, não era o que Deus mais apreciava: “o que eu
quero é a misericórdia e não o sacrifício” (Oséias 6,5). O sacrifício, pois, em si,
era inútil para reparar os pecados a Deus (Os 5,6).
Quando as calamidades estavam prestes a cair sobre o povo de Israel, o
principal castigo foi ele ficar privado de seu Templo: “O Santuário (o templo)
de Jerusalém terá o mesmo destino de Silo” (Jer 7,1-12). Silo era um lugarejo
que ficava distante 35 km de Jerusalém, onde havia ficado a Arca da Aliança
desde o tempo de Josué, mas nem por isso foi salva da destruição no tempo do
rei Jeroboão (Jer 7, 22-23). Vê-se mais uma vez que Deus não considerava im-
portante o local (edifício) nem o holocausto das vítimas animais, mas “ouvir a
voz de Deus”, coisa que se faz com o coração, com o interior da alma.
E de tal forma o Templo foi abandonado por Deus que permitiu não só
que o destruísse, mas que o amaldiçoasse: “Deus rejeitou o seu Santuário e o
destruiu”. “Amaldiçoou o seu santo lugar” (Lam 2, 6-8). Depois que Nabuco-
donosor (em 586 a.C.) o destruiu e roubou todos os seus vasos sagrados, levan-
do-os para a Babilônia juntamente com os cativos, os hebreus imploraram a
Deus que lhes permitisse reconstruí-lo. Deus não tinha pressa: no reino de Da-
rio “ainda não é chegado o tempo de reedificar a casa do Senhor” (Ageu 1,2),
mas em seguida Deus dizia: “reedifica a minha casa”. Que “casa” era essa? Ex-
plica o Profeta: “aplicai os vossos corações”, indicando que a casa do Senhor
para ser reedificada era, antes de tudo, o coração humano (Ageu 1,7). Comple-
ta o Profeta: “A glória desta última casa será maior do que a primeira”, que só
será reconstruída quando vier “o desejado de todas as nações” (Ageu 2, 1-10),
que a encherá de glória, quer dizer, a Santa Igreja.

65
O segundo templo (edifício para prestar culto público a Deus) é o que foi
construído no tempo de Zorobabel (520 a.C,), cujos trabalhos e guerras estão
descritos nos livros de Esdras (3, 1-6) e Neemias (6, 10). Este foi saqueado por
Antíoco IV em 168 a.C, conforme consta no livro dos Macabeus (I Mac 22,
24; 4, 36; 35-59).
O terceiro templo foi o de Herodes, iniciado em 19 a. C., e aparente-
mente não foi totalmente concluído, tendo sido destruído o de Zorobabel para
se fazer um novo edifício, suntuoso para satisfazer o egoísmo dos judeus. Este
foi definitivamente destruído pelos romanos no ano 70 de nossa era e até hoje
nunca reconstruído.
Fala-se ainda de um quarto templo, que seria o descrito pelo Profeta
Ezequiel (Ez 40, 43), mas este seria mais um templo espiritual, representado
somente pela Igreja Católica, pois nunca existiu de fato como edifício ou mo-
numento com aqueles características.
O quinto templo seria o mais perfeito, o próprio Corpo de Nosso Se-
nhor Jesus Cristo e, por extensão, os corpos dos demais homens, desde que
participantes do Corpo Místico de Cristo. Conforme São Paulo, este é o verda-
deiro templo de Deus: “Porventura não sabeis que os vossos membros são
templo do Espírito Santo, que habita em vós, que vos foi dado por Deus e que
não pertenceis a vós mesmos?” (I Cor 6, 19). Também no Antigo Testamento
há referência sobre o Templo de Deus no “meio dos homens”, quer dizer, no
interior de cada um: "Vós, pois ensinareis aos filhos de Israel, que se guardem
da impureza, para não morrerem nas suas imundícies, tendo violado o meu
tabernáculo, que está no meio deles". (Levítico 15, 31).
Daí entende-se o sentido da frase de Nosso Senhor, quando disse: “Des-
truí este Templo, e eu o reconstruirei em três dias” (Jo 2, 19). E deveria haver
um entendimento entre os doutores mais cultos de que o “templo de Deus” era
o interior do homem. Os judeus replicaram, sem entender ou por malícia, que
naquele templo (o edifício) haviam sido gastos 46 anos em sua construção. Re-
almente, aquele prédio era o terceiro templo erigido pelos judeus, chamado
“templo de Herodes

Para que serve o templo


O templo é dedicado a Deus com três finalidades fundamentais: ofere-
cimento de holocaustos, oração e reparação dos pecados e o culto divino (ado-
ração a Deus). Assim, o edifício onde se espelha o aspecto externo do templo
divino deve refletir o que há no interior dos homens e deve, portanto, propiciar
a todos as facilidades de se praticar estas finalidades. Um templo barulhento ou
em que as cerimônias não convidem à oração e reflexão interior, não levando

66
os homens à reparação de seus pecados, não conduzem, também, para a ver-
dadeira adoração a Deus.
Desta forma, o que mais conspurca as finalidades do verdadeiro templo
de Deus é o que se chama hoje de “sincretismo” religioso, pois a mistura de
religiões no templo de Deus leva os homens a considerar que não há um Deus
verdadeiro que nos ensinou um caminho verdadeiro até Ele. E este sincretismo,
esta tendência a misturar as religiões, numa tentação para agradar a Deus e ao
demônio, foi uma constante na História da humanidade. E talvez não exista
homem algum que tenha procurado ser fiel a Deus, o qual o demônio não haja
tentado com o sincretismo. Foi assim com a feitura do bezerro de ouro no
tempo de Moisés, na construção das sinagogas, na permissão de construção de
oráculos e templos pagãos entre o povo de Israel, e, durante o Cristianismo,
esta tentação foi freqüente em várias épocas, suscitando heresias e pensamentos
acomodatícios deles com a Religião Católica. Até mesmo no tempo da Recon-
quista Espanhola, quando alguns cristãos misturavam-se com os mouros e pro-
curavam ser-lhes agradáveis praticando suas religiões e, ao mesmo tempo, tam-
bém praticando o Cristianismo, os chamados “moçárabes”
Esse tipo de mistura, de sincretismo, não é feito somente com a prática
externa do culto divino. Também no interior da alma humana é uma forte ten-
tação, pois a maioria procura acomodar os preceitos divinos com suas concep-
ções pessoais sobre Deus e sua Lei, criando para si uma falsa imagem de Deus.
Como se trata de ser feliz nesta vida, tudo aquilo que a lei de Deus proíbe pode
ser esquecido, pois, nesta concepção, Deus não poderia desejar nossa infelici-
dade. E assim, de razão em razão, a alma humana vai concebendo concessões
por cima de concessões, até aceitar abertamente os pecados mais abomináveis
como a coisa mais normal do mundo. É por causa deste espírito que muitos
religiosos, até mesmo sacerdotes e bispos, chegam a praticar atos indignos e
ofensivos a Deus, como os pecados contra o sexto mandamento e até mesmo o
homossexualismo e a sodomia, declarando ser isto a coisa mais normal do
mundo e que Deus não os vai levar para o inferno. Contrariam o que disse São
Paulo: “Neque fornicarii, neque adulteri, neque molles regnum Dei posside-
bunt” – Nem os fornicadores, nem os adúlteros, nem os efeminados possuirão
o Reino de Deus. (1 Cor 6, 9-10).

Como destruir o templo interior


No Antigo Testamento a mistura da idolatria com os princípios divinos
era chamada pelos Profetas de “adultério”, o que seria o mesmo que sincretis-
mo. O adultério sempre foi tido como a simples traição dos esposos, mas nas
Escrituras era usado como metáfora para simbolizar a mistura de crenças ou a
traição a Deus, como consta em Esdras (9, 1-2) e em outros lugares comparado

67
com a prostituição, principalmente no livro de Oséias (Os 1, 2): “a terra de Is-
rael não cessa de se prostituir, abandonando o Senhor”. Este “adultério”, prosti-
tuição, sincretismo ou qualquer outra denominação, reflete um estado de espí-
rito de quem não pratica a Religião da forma como Deus ensinou, mas sim con-
forme seus caprichos pessoais.
E tudo isto começa pela maneira como os homens consideram o templo
mais importante, que é o do interior de sua alma.
Eis como destruir o templo da Santíssima Trindade no claustro da alma:
Os pecados da carne:
1 – Contra o 6º. E o 9º mandamentos, destrói o trono de Deus no interi-
or da alma humana como fruto das manchas corporais da impureza;
2 – De outro lado, os pecados, tanto os solitários quanto os demais, en-
tronizam Satanás no coração humano;
3 – Os pecados coletivos levam o demônio ao domínio social e a incre-
mentar a conjuração contra Deus;
4 – A inversão da Ordem, os pecados contra a natureza como a sodomia,
instalam o caos do inferno na alma.
Os pecados de orgulho:
1 – A revolta, a impaciência, a busca da liberdade sem freios, é a rejeição
da soberania divina no interior da alma humana; Peca-se contra o 1º. Manda-
mento com a adesão de qualquer superstição ou gnose em detrimento da ade-
são à verdadeira Fé.
2 – A conjugação de esforços para denegrir, humilhar e perseguir os
bons, principalmente através do respeito humano, faz parte da conjuração con-
tra Deus;
3 – A indiferença, frieza, desleixo e falta de respeito nas orações ou nos
atos de piedade constitui um ato de vanglória e de orgulho contra Deus;
4 – A auto-suficiência, falta de humildade e de retidão nos atos corriquei-
ros faz a pessoa se presumir de si mesmo como um outro Deus.
Só há uma maneira de interromper este processo, salvando a vida, tanto
esta terrena quanto a eterna: “Ne impie agas multum, ne moriaris in tempore
non tuo” – Evita pecar com tanta facilidade, para não vires a morrer antes do
tempo (Ecl 7, 18). Esta morte, prematura, tanto pode ser a terrena quanto a
eterna, esta como conseqüência daquela.

b) O templo de Satanás

Invejoso, Satanás sempre tentou também construir um “templo” para si.


Em outros tempos não se falava abertamente num templo ou construção desti-
nado a Satanás. Nunca se falou senão de templos dedicados aos ídolos, que

68
eram demônios que se faziam ser adorados como entidades sobre-humanas.
Somente a partir do império da Revolução18 se passou a falar em seita diabólica
e templos satânicos, alguns existentes no mundo atual.
Com relação ao interior do homem, porém, o templo de Satanás sempre
existiu e lá predominou em algumas pessoas. Desde que a pessoa faça de seu
corpo e de sua alma instrumentos dos desígnios de Satanás, estará “ipso facto”
construindo seu “templo” interior. E isto pode ocorrer quando a pessoa atenta
contra a glória de Deus, se revolta contra a Ordem do Universo e rejeita o Rei-
no de Deus. Para a conquista deste “templo” não é necessário nenhum comba-
te, pelo contrário, basta se deixar levar pelos impulsos das sensações, onde é
larga e pavimentada a estrada...
Existem outros que vão mais longe e se entregam a Satanás para conse-
guir fama e poder, fazendo-se instrumento para dar ao príncipe das trevas e pa-
ra si maior poder, prestígio e influência entre os homens. Chegam a ter verda-
deira submissão a Satanás. Alguns chegam até a lhes prestar culto.
Como edificar então o templo de Satanás no interior de sua alma? Ini-
cia-se com a destruição do templo de Deus que há no seu interior: sufocando-
se as virtudes com a prática de vícios e pecados, rejeitando dons e inspirações
da graça divina e dando ouvidos às insinuações diabólicas. Pratica-se toda a in-
versão de valores, seja na fé, com o sincretismo ou a heresia, ou mesmo com os
pecados contra natureza, como a sodomia. Tudo isso acarreta mais força e po-
der para construir o reino de Satanás e seu corpo místico.
Ver o exemplo da bruxaria e das missas negras. que têm suas cerimônias
de iniciação com atos de luxúrias desbragadas, desde o estupro de crianças até
o homossexualismo. O prazer nestes atos abomináveis é o da satisfação em de-
sonrar as leis naturais de Deus e com isso atrair a posse diabólica. Praticam tais
atos para mais demonstrar o ódio a Deus naqueles rituais e assim atrair mais a
força e o poder satânico sobre si. Existem vários relatos que falam da prática de
tais atos, inclusive em rituais de iniciação de bruxaria. Sabe-se que, de modo
geral, aqueles elementos dedicados ao xamanismo ou aos cultos de ídolos dia-
bólicos, em geral, são homossexuais, muitos deles iniciados nos rituais do xa-
manismo ainda crianças. O mesmo ocorre com os pajés das tribos indígenas...
O poder do corpo místico de Satanás está, desta forma, baseado em di-
versos “templos” (corpos humanos), isto é, pessoas humanas que o acolheu em
suas entranhas com a prática de atos abomináveis contra Deus e a Ordem do
Universo. E quando tais atos se tornam público, sem que haja uma reação con-

18
Revolução é descrita pelo Dr. Plínio Corrêa de Oliveira em seu ensaio “Revolução e Contra-Revolução”
como o movimento que vem tentando inverter a Ordem na Cristandade após a decadência da Idade Média e
implantar um estado de coisas inteiramente contrário aos preceitos cristãos.

69
trária dos verdadeiros filhos de Deus, o poder do corpo místico de Satanás au-
menta entre os homens.

A raiz do poder dado aos magos e bruxos


O poder que Deus permite ser concedido aos bruxos, de modo geral, é
apenas aparente e baseado em ilusões e logros. Eles, na realidade, detêm “cer-
to” poder, mas limitado e sujeito sempre a fracassos. Para tais bruxos ou magos,
seu sonho de poder e fortuna se torna completo com a participação diabólica,
mas enganam-se pois o demônio nunca dá o que promete, sempre tira mais do
que dá. Para conseguir tal poder para si, estes homens chegam a práticas absur-
das, destroem completamente o templo de Deus em seu interior e nele cons-
troem o de Satanás com a maior desenvoltura e como um ato de revolta contra
Deus.
A construção do templo satânico não é feita de imediato, mas de uma
maneira gradual: primeiramente arruínam as virtudes que porventura ainda
possuam, pilares da vida interior, expulsando de dentro de si tudo o que lembra
a imagem de Deus; em segundo lugar absorvem todos os princípios de males e
de vícios e se encharcam de maledicências e de maus hábitos; finalmente, pro-
curam conspurcar, ultrajar, denegrir, o que resta ainda do templo de Deus em
seu interior, manchando-o com ignomínias, blasfêmias e atos antinaturais. De
modo geral, procuram com tais pecados ferir diretamente o Criador, inverten-
do todas as leis com que Ele formou e rege o Universo e Sua Obra. É a rejei-
ção mais odiosa e completa da imagem de Deus, consubstanciadas em leis sim-
ples e naturais, como a própria vida deleitosa dos prazeres lícitos, a beleza da
arte, as leis da convivência social, etc. Ir de encontro a tais leis, e não só as dos
10 Mandamentos (que é como que uma síntese delas), é o brado máximo de
revolta contra Deus, resultando na construção de um templo satânico no interi-
or da alma.
Um exemplo de inversão da Ordem do Universo é a sodomia e o ho-
mossexualismo. É preciso distinguir o homossexualismo da sodomia. Diz-se
que alguém é homossexual ou que pratica atos tais quando tem relações sexuais
com pessoas do mesmo sexo. Os atos sodomíticos, porém, vão mais além: são
todos aqueles atos praticados que contrariam a natureza humana tal e qual
Deus a criou. Assim, seriam atos de sodomia, por exemplo, evitar a procriação,
aborto, inversão sexual (até mesmo com as próprias mulheres), atos libidinosos
que levam à prática da simples luxúria ou do gozo proibido e todo gozo sexual
que não conduza o ato a seu fim último, que é, antes de tudo, a procriação e a
paz do casal.

70
c) O Padre Eterno, a primeira revelação divina no claustro da alma

As manifestações de Deus Pai, no Novo Testamento, sempre mostram


uma relação de afeto e veneração com o Filho e revelada aos homens. Manifes-
tou-se no batismo de Jesus (Mt 3, 17), dizendo: “este é o meu Filho amado em
quem pus minhas complacências”, frase repetida na Transfiguração sobre o
Monte Tabor (Mt 17, 5), parecendo ter sido estas as únicas vezes em que Deus
Pai se manifestou publicamente para dar testemunho de Jesus. Aliás, tais cenas
revelam uma manifestação da Santíssima Trindade e não só do Pai Eterno.
Nosso Senhor disse que tudo o que fazemos ou o que imaginamos, tudo
o que pensamos, enfim, é segredo do Pai (Mt 6, 1-4). Por isso, recomenda orar
ao Pai em segredo (Mt 6,6 e 6, 18), pois não serão nossos gestos ou palavras
que O farão nos ouvir (Mt 6,7-8). O Pai perdoa a quem perdoa (Mt 6, 14/15)
e só nos concede coisas boas (Mt 7, 11). Por fim, só entrará no reino dos céus
quem faz a vontade do Pai (Mt 7, 21).
A ação de Deus Pai (que, aliás, é sempre conjunta com as outras três
pessoas divinas, pois todas Elas agem ao mesmo tempo) se circunscreve sempre
ao interior mais profundo das almas. E da mesma forma procede do Pai as re-
velações mais importantes, pois é Ele quem revela (a Sabedoria) aos pequeni-
nos e as esconde aos “sábios” (Mt 11,25). Foi Deus Pai quem revelou a São
Pedro o caráter divino da natureza de Jesus (Mt 16, 17): “Não foi a carne e o
sangue que to revelou, mas meu Pai que está nos céus”,
De outro lado Pai e Filho têm tal união que se completam, pois “nin-
guém conhece mais o Pai do que o Filho” (Mt 11, 26-27) e vice-versa. Assim
também como todas as coisas que são reveladas, inclusive a própria revelação
feita a São Pedro, Ele o faz através do Filho, e é o Filho quem revela o Pai (Mt
11,27).
Enfim, Deus Pai se revela no interior de seus filhos verdadeiros, trata-se
da luz primeira, dos primeiros conhecimentos que o homem tem em seu inte-
rior sobre Deus. Esta imagem primeira, estes sinais mais recôndito de Deus, o
homem o encontrará dentro de sua própria alma. Para tanto basta que use a
“luz da razão”.
Aquele, pois, que procurar obscurecer sua própria luz da razão e apagar
em seu interior a imagem de Deus, estará destruindo o templo divino e, como
conseqüência, construindo o de Satanás em seu lugar. É um homem morto não
só para a vida da Graça, mas até mesmo para a vida natural para a qual foi tam-
bém criado.

71
Conselhos para conservar-se puro
3
Abaixo damos alguns conselhos de sábios, obras de piedade, teólogos e
santos sobre a melhor forma de conservar a castidade, quem a possui; ou de
recuperá-la, quem a perdeu.

Santa Catarina de Sena e o modo de se conseguir a perfeita pureza


"Observa a doutrina que sabes que te foi dada por minha Verdade ao
começar tua vida, quando pediste com grande desejo chegar à perfeita pureza
de espírito. Se pensas no modo em que podeis consegui-la, lembras o que te
disse sobre esse desejo quando estavas em êxtase. Não só no espírito, senão na
voz que soou aos teus ouvidos quando voltaste aos sentidos, se bem te recordas,
quando minha Verdade te disse: "Queres chegar à perfeita pureza de espírito e
ver-te livre dos escândalos e que teu espírito não se escandalize por nada? En-
tão façais que sempre te unas a Mim por afeto de amor, porque eu sou suma e
eterna pureza e fogo que purifica a alma. Por isto, quanto mais a alma se apro-
xima de Mim, mais pura se faz, e quanto mais se afasta, se faz mais imunda. Os
homens caem em tantas maldades por encontrar-se separados de Mim, porém
a alma que se une a Mim, sem restrições, participa de minha pureza” 19.

Imitação de Cristo

1. Enquanto vivemos neste mundo, não podemos estar sem trabalhos e


tentações. Por isso lemos no livro de Jó (7, 1): "É um combate a vida do ho-
mem sobre a terra". Cada qual, pois, deve estar acautelado contra as tentações,
mediante a vigilância e a oração, para não dar azo às ilusões do demônio, que
nunca dorme, mas anda por toda parte "em busca de quem possa devorar" (I
Pedr 5, 8). Ninguém há tão perfeito e santo, que não tenha, às vezes, tentações,
e não podendo ser delas totalmente isentos.
2. São, todavia, utilíssimas ao homem as tentações, posto que sejam mo-
lestas e graves, porque nos humilham, purificam e ilustram. Todos os santos
passaram por muitas tribulações e tentações, e com elas aproveitaram; aqueles,
porém, que não as puderam suportar foram reprovados e pereceram. Não há
Ordem tão santa nem lugar tão retirado, em que não haja tentações e adversi-
dades.
19
"Obras de Santa Catalina de Siena" - BAC - pág. 241

72
3. Nenhum homem está totalmente livre de tentações, enquanto vive,
porque em nós mesmos está a causa donde procedem: a concupiscência em
que nascemos. Mal acaba uma tentação ou tribulação, outra sobrevém, e sem-
pre teremos que sofrer, porque perdemos o dom da primitiva felicidade. Mui-
tos procuram fugir às tentações, e outras piores encontram. Não basta a fuga
para vencê-las; é pela paciência e verdadeira humildade que nos tornamos mais
fortes que todos os nossos inimigos.
4. Pouco adianta quem somente evita as ocasiões exteriores, sem arran-
car as raízes; antes lhe voltarão mais depressa as tentações, e se achará pior.
Vencê-las-á melhor com o auxílio de Deus, a pouco e pouco com paciência e
resignação, que com importuna violência e esforço próprio. Toma a miúdo
conselho na tentação e não sejas desabrido e áspero para o que é tentado, trata
antes de o consolar, como desejas ser consolado.
5. O princípio de todas as más tentações é a inconstância do espírito e a
pouca confiança em Deus; pois, assim como as ondas lançam de uma parte a
outra o navio sem leme, assim as tentações combatem o homem descuidado e
inconstante em seus propósitos. O ferro é provado pelo fogo, e o justo pela ten-
tação. Ignoramos muitas vezes o que podemos, mas a tentação manifesta o que
somos. Todavia, devemos vigiar, principalmente no princípio da tentação; por-
que mais fácil nos será vencer o inimigo, quando não o deixarmos entrar na
alma, enfrentando-o logo que bater no limiar. Por isso disse alguém: "Resiste
desde o princípio, que vem tarde o remédio, quando cresceu o mal com a mui-
ta demora" (Ovídio). Porque primeiro ocorre à mente um simples pensamen-
to, donde nasce a importuna imaginação, depois o deleite, o movimento; e as-
sim, pouco a pouco, entra de todo na alma o malvado inimigo, porque se não
lhe resistiu a princípio. E quanto mais alguém for indolente em lhe resistir, tan-
to mais fraco se tornará cada dia, e mais forte o seu adversário.
6. Uns padecem maiores tentações no começo de sua conversão, outros,
no fim; outros por quase toda a vida são molestados por elas. Alguns são ten-
tados levemente, segundo a sabedoria da divina Providência, que pondera as
circunstâncias e o merecimento dos homens, e tudo predispõe para a salvação
de seus eleitos.
7. Por isso não devemos desesperar quando somos tentados; mas até,
com maior fervor, pedir a Deus que se digne ajudar-nos em toda provação, pois
que, no dizer de São Paulo, "nos dará graça suficiente na tentação para que a
possamos vencer" (I Cor 10, 13). Humilhemos, portanto, nossas almas, debai-
xo da mão de Deus, em qualquer tentação ou tribulação porque ele há de salvar
e engrandecer os que são humildes de coração.
8. Nas tentações e adversidades se vê quanto cada um tem aproveitado;
nelas consiste o maior merecimento e se patenteia melhor a virtude. Não é lá

73
grande coisa ser o homem devoto e fervoroso quando tudo lhe corre bem; mas,
se no tempo da adversidade conserva a paciência, pode-se esperar grande pro-
gresso. Alguns há que vencem as grandes tentações e, nas pequenas, caem fre-
qüentemente, para que, humilhados, não presumam de si grandes coisas, visto
que com tão pequenas sucumbem. 20

O exercício da própria vontade


Não temos de ser, portanto, curiosos nem imodestos no olhar, andando
pelas ruas; nem olhar imprudentemente pelas janelas; temos de evitar a conver-
sa inútil, não gritar, não rir às gargalhadas, não queixar-nos imoderadamente do
mau tempo ou da má saúde, não comer fora de hora, enquanto possamos, não
ser cobiçosos, não andar atrás dos bocados deliciosos, não desaprovar a comida
que nos dão, não pegar na bandeja a porção que está mais perto, não ser apres-
sado em abrir cartas, não dormir demais, renunciar a alguma diversão, retirar-
nos de quando em quando à solidão, não falar, sem motivo, de nós mesmos, e,
enquanto se possa, não contradizer aos outros. Estas mortificações não são pe-
sadas, Os santos exercitaram outras mais rigorosas, mas que não podem reco-
mendar-se a todos. São João Batista exercitou a vontade própria em sumo grau.
São Paulo disse de si: Castigo meu corpo e o reduzo á servidão para que, de-
pois de pregar a outros, não seja eu condenado (I Cor 9, 27).
A Igreja Católica procura guiar os fiéis ao controle da vontade pelo pre-
ceito do jejum. O controle da vontade é uma maneira de martírio (S. Bernar-

20
"Imitação de Cristo" - livro I - cap. 13 - Vozes, 1987 - págs. 30/33.

74
do). Não é um martírio jejuar em meio da abundância de manjares, e em meio
das riquezas sofrer os efeitos da pobreza? O que se domina a si mesmo é um
verdadeiro rei, porque em vez de arrastar-se cativo de seus apetites, lhes domi-
na. É um vencedor, pois obtém sobre seus maus desejos uma vitória, na verda-
de, sem sangue nem suor. Dos homens mortificados se podem dizer as palavras
da Escritura: Bem-Aventurados os que morrem no Senhor.
O domínio de si é o próprio sinal do verdadeiro cristão, pois disse Cris-
to: O que quer vir depois de mim, negue-se a si mesmo (Mc 8, 24), a saber: o
que quer ser eu discípulo (cristão), exercite-se no domínio da vontade21. Por isso
disse São Paulo: Os que são de Cristo têm crucificado sua carne com seus ví-
cios e concupiscências (Gál 5, 24). O que é mortificado é santo. O peixe vivo
nada água acima, o morto é levado água abaixo. Assim mesmo podes conhecer
se estás vivificado pelo Espírito de Deus, ou morto: basta que olhes se andas
contra a corrente dos maus desejos,ou te deixas arrebatar por eles. Pelejar con-
sigo é a mais dura guerra; porém vencer-se a si próprio é a mais gloriosa vitória.
22

21
É o mesmo que exercer a auto-regência, da qual falamos atrás.
22
Catecismo Popular Explanado" - Rdo. Francisco Spirago - págs. 644/645.

75
São Francisco de Assis desaconselhava a familiaridade com as mulheres

Aconselhando seus discípulos franciscanos, mandava que se evitassem a


todo custo as melosidades tóxicas, quer dizer, as familiaridades com mulheres,
as quais chegam a enganar até a homens santos. Temia de verdade que por
causa delas se quebrasse pronto o que é frágil, e o forte se fosse debilitando no
espírito. De não ser um varão provadíssimo, não se contaminar no trato com
elas é tão difícil como "andar alguém sobre brasas sem que queimem os pés",
assegurava o Santo recorrendo à Escritura. Mas, com o fim de ensinar a prática,
ele mesmo se mostrava modelo de toda virtude. Tanto é assim que lhe era mo-
léstia a mulher, que pensareis tu que se tratava mais de medo e horror que de
cautela e exemplo. Quando a loquacidade importuna daquelas suscitava na
conversação temas que lhe resultavam fastidioso, com palavra abreviada e hu-
milde, com os olhos baixos, acudia ao silêncio. E em ocasiões, levantando os
olhos para o céu, parecia que tirava dali a resposta que dava a quem falava de
coisas da terra.
Em troca, aquelas cujas mentes - dada sua perseverança numa devoção
consagrada - havia conseguido que fossem morada da sabedoria, as ensinava
com alocuções maravilhosas, se bem que breves. Quando falava com alguma
mulher, o fazia em voz clara, de modo que todos poderiam ouvir o que dizia.
Uma vez chegou a dizer ao companheiro: "Caríssimo, te confesso a verdade: se
as olhasse, não as reconheceria pela face, se não é a dois. Me é conhecida -
acrescentou - a face de tal e de tal outra; de nenhuma mais".
Muito bem, Pai, pois ninguém se santifica por olhá-las; muito bem - direi
-, porque nela não há ganho algum, sim muitíssima perda; ao menos de tempo.
São estorvo para quem quer compreender o caminho árduo e contemplar a
face cheia de graça.

Parábola contra a falta de modéstia em olhar as mulheres

Soía flagelar os olhos não castos com esta parábola: "Um rei muito pode-
roso enviou à rainha, um após outro, dois embaixadores. Volta o primeiro e
refere, nada mais, a estrita resposta; e é que os olhos do sapiente haviam estado
na cabeça e não haviam divagado. Volta o segundo, e, depois da reposta breve e
curta, se entretém tecendo todo um discurso sobre a formosura da senhora:
"Senhor - disse - em verdade que tenho visto uma mulher belíssima. Feliz quem
a possui!" Replica-lhe o rei: Servo mau, pusestes em minha esposa teus olhos
impudicos? Está claro que haveis querido possuir à que tens olhado com tanta
atenção.

76
Manda chamar outra vez o primeiro e lhe diz: Que te parece da rainha? -
Trago muito boa impressão - disse -, porque escutou em silêncio a mensagem e
respondeu sabiamente. - E de sua formosura - replica o rei -, não dizes nada? -
Senhor meu, a ti toca contemplá-la; a mim levar-lhe tua embaixada.
E o rei determina: "Tu, o de olhos castos, como de corpo também casto,
fica como hóspede; e saia desta casa este outro, não aconteça que contamine
também meu leito".
E soía dizer o Bem-Aventurado Pai: "Onde há bem defendida defesa,
preocupa menos o inimigo. Se o diabo consegue com sua habilidade apossar-se
de um cabelo do homem, o transforma com presteza em viga. Nem desiste en-
quanto não tenha podido por muitos anos derrubar ao que tentou, esperando
ceda no final. Este é seu ofício; dia e noite não tem outra preocupação"

Exemplo de São Francisco contra a demasiada familiaridade

Uma vez que São Francisco se encaminhava a Bevagna não pôde chegar
ao claustro pela fraqueza que lhe havia causado o jejum. Então, o companheiro,
passando atento a uma senhora espiritual, pediu humildemente pão e vinho
para o santo. Enquanto o ouviu, ela, com uma filha consagrada a Deus, correu
até o santo para levar-lhe o que necessitava. Mas o santo, reanimado algum tan-
to com a refeição, em agradecimento, confortou a mãe e a filha com a palavra
de Deus. Porém enquanto lhes falava não olhou o rosto de nenhuma das duas.
Quando elas se foram, o companheiro lhe disse: "Irmão, porque não olhastes
essa virgem santa que veio a ti com tanta devoção?" O Pai respondeu: "Quem
não terá o que olhar numa esposa de Cristo? Porque, se os olhos e o rosto dão
expressão à pregação, ela tinha que me olhar a mim e não eu a ela".
E muitas vezes, falando disto, afirmava que é frivolidade toda conversa-
ção com mulheres, fora da confissão ou de algum breve ensejo que seja costu-
me. Acrescentava: "De que assunto tem de tratar o irmão menor com mulheres,
se não é quando, por motivos religiosos, pede a santa penitência ou um conse-
lho para melhorar de vida?" 23

Remédios contra a luxúria


Em seu livro “Guia de Pecadores” Frei Luis de Granada tece várias con-
siderações sobre os remédios para se combater o vício da luxúria. Ei-los:
“Luxúria é apetite desordenado de sujos e desonestos deleites. Este é um
dos vícios mais comuns, mais acossador e mais furioso em acometer que existe.

23
"San Francisco de Asis - B.A.C. - Celano. Vida Segunda. Págs. 295/297.

77
Porque (como disse São Bernardo) entre todas as batalhas dos cristãos as mais
duras são as da castidade, onde é muito cotidiana a peleja e muito rara a vitória.
Pois quando este feio e abominável vício tentar teu coração, podes sair
em campo com as seguintes considerações:
Primeiramente considera que este vício não só suja a alma (que o Filho
de Deus limpou com seu sangue), senão também o corpo, no qual, como num
sagrado relicário, é depositado o sacratíssimo Corpo de Cristo. Pois se tão
grande culpa é profanar e sujar o templo material de Deus, que será profanar
este templo em que mora Deus? Por isto disse o Apóstolo: "Fugi, irmãos, do
pecado da fornicação, porque todo outro pecado que fizer o homem, é fora do
seu corpo; mas o que cai em fornicação, peca contra seu próprio corpo, profa-
nando-o e sujando-o com o pecado carnal" Considera também que este pecado
não se pode pôr por obra sem escândalo e prejuízo de outros muitos que co-
mumente intervêm nele, que é a coisa que à hora da morte mais agudamente
soe ferir a consciência. Porque se a lei de Deus manda que se dê vida por vida,
olho por olho e dente por dente, que poderá dar a Deus o que tantas almas
destruiu? E com que pagará o que Ele com seu próprio sangue redimiu?
Considera também que este vício tem muitos doces começos e muitos
amargos fins, muito fáceis as entradas e muito difíceis as saídas. Por onde disse
o Sábio que a má mulher era como uma cova muito funda e um poço profundo
onde, sendo tão fácil a entrada, é dificultosíssima a saída. Porque verdadeira-
mente não há coisa em que mais facilmente se enredam os homens que neste
doce vício, segundo que aos princípios se demonstra; mas depois de enlaçados
nele e travadas as amizades e amassado véu da vergonha, que os tirará daí? Pelo
qual com muita razão se compara com as iscas dos pescadores que, tendo as
entradas muito largas, têm as saídas muito estreitas, por onde o peixe que uma
vez entra, por nada sai daí. E por aqui entenderás quanta multidão de pecados
para este tão prolixo pecado, pois em todo este tempo tão largo está claro que
assim por pensamento, como por obra, como por desejo, há de ser Deus quase
infinitas vezes ofendido.
Considera também, sobretudo isto (como disse um doutor), quanta mul-
tidão de outros males traz consigo esta maldita pestilência. Primeiramente rou-
ba a fama (que, entre as coisas humanas, é a mais formosa possessão que podes
ter); aqui nenhum rumor de vício produz mais mal, nem traz consigo maior
infâmia que este. E, além disto, debilita as forças, amortiza a formosura, tira a
boa disposição, faz mal à saúde, gera enfermidades sem conta (estas muito feias
e sujas), deflora antes do tempo a frescura da juventude, e faz chegar mais cedo
uma torpe velhice; tira a força do gênio, embota agudeza do entendimento e
quase o torna brutal; afasta o homem de todos os honestos estudos e exercícios,
e lhe lambuza todo no seio deste deleite, que já não para de pensar, nem falar,

78
nem tratar coisa que não seja vileza e sujeira. Faz a juventude louca e infame, e
a velhice aborrecível e miserável. Mas não se contenta este vício com todo este
estrago que faz na pessoa do homem, senão também o faz em suas coisas. Por-
que nenhuma fazenda há tão grossa, nenhum tão grande tesouro a quem a lu-
xúria não gaste e consuma em pouco tempo. Porque o estômago e os membros
vergonhosos são vizinhos e companheiros, e uns aos outros se ajudam e con-
formam nos vícios. De onde os homens dados a vícios carnais comumente são
comedores e bebedores, e assim em banquetes e vestidos gastam tudo quanto
possuem. E, além disto, as mulheres desonestas nunca se fartam de jóias, anéis,
vestidos, enfeites, perfumes e aromas e coisas tais, e mais amam estes presentes
que aos próprios amantes que os dão. Para cuja confirmação basta o exemplo
daquele filho pródigo que nisto gastou toda a herança de seu pai.
Olha também que quanto mais entregares teus pensamentos e teu corpo
a deleites, tanto menos fartura acharás: aqui este deleite não causa fartura, senão
fome, porque o amor do homem à mulher, ou da mulher ao homem, nunca se
perde, antes apagado uma vez se torna a acender. E olha, outrossim, como este
deleite é breve, e pena que por ele se dá perpetua, e, por conseguinte, que é
muito desigual troque por uma brevíssima e torpíssima hora de prazer perder
nesta vida o gozo da boa consciência, e depois a glória que para sempre dura, e
padecer a pena que nunca se acaba. Pelo qual disse São Gregório: "Um mo-
mento dura o que deleita, e eternamente o que atormenta".
Considera também, por outra parte, a dignidade e preço da pureza virgi-
nal que este vício destrói, porque os virgens nesta vida começam a viver vida de
anjos, e principalmente por sua limpeza são semelhantes aos espíritos celestiais,
porque viver em carne sem obras de carne, mais é virtude angélica que huma-
na. Só a virgindade (como disse São Jerônimo) é a que neste lugar e tempo de
mortalidade representa o estado de glória imortal. Só ela guarda o costume da-
quela cidade soberana onde não há bodas nem desponsórios, e assim dá aos
homens terrenos experiência daquela celestial conversação. Pela qual no céu se
dá certo e singular prêmio aos virgens, dos quais escreve São João no Apocalip-
se, dizendo: "Estes são os que não amaciaram sua carne com mulheres, mas
permaneceram virgens: e estes seguem ao Cordeiro por onde quer que vá". E
porque neste mundo se avantajaram sobre os outros homens em parecer-se
com Cristo na pureza virginal, por isto no outro se chegarão a Ele mais famili-
armente, e singularmente se deleitarão da limpeza de seus corpos.
E não só faz esta virtude, aos que a têm, semelhantes a Cristo, mas os faz
também templos vivos do Espírito Santo: porque aquele divino Espírito, aman-
te da limpeza, assim como um dos vícios que mais repele é a desonestidade,
assim em nenhuma parte mais alegremente repousa que nas almas puras e lim-
pas. Pelo qual o Filho de Deus, concebido pelo Espírito Santo, tanto amou e

79
honrou a virgindade, que por ela fez um tão grande milagre como foi nascer de
Mãe virgem. Mas tu, já que perdeste a virgindade, ao menos depois do naufrá-
gio teme os perigos que já experimentastes. E já que não quiseste guardar intei-
ro o bem da natureza, sequer depois de quebrado repara-lhe e tornando-te a
Deus depois do pecado, tanto mais diligentemente te ocupa em boas obras,
quando pelas más que tens feito te conheces por mais merecedor de castigo.
Porque muitas vezes acontece (como disse São Gregório) que depois da culpa
se faz mais fervente a alma, a qual, no estado de inocência, estava mais frouxa e
descuidada. E pois Deus te guardou, havendo cometido tantos males, não faças
agora por onde pagues o presente e o passado, e seja o futuro ônus pior que o
primeiro.
Pois com estas e outras considerações deve o homem estar apercebido e
armado contra este vício, e este seja a primeira maneira de remédios que damos
contra ele.

De outros remédios mais particulares contra a luxúria


Além destes comuns remédios que se dão contra este vício, existem ou-
tros mais especiais e eficazes, de que também será razão tratar. Entre os quais, o
primeiro é resistir aos princípios (como já em outra parte dissemos), porque se
no início não se rechaça o inimigo, logo cresce e se fortalece; porque (como
disse São Gregório) depois que a gulodice do deleite se apodera do coração,
não lhe deixa pensar outra coisa que aquilo que o deleita. Por isto se deve resis-
tir no início, deitando fora os pensamentos carnais, porque assim como a lenha
sustenta o fogo, assim os pensamentos mantêm os desejos, os quais, se forem
bons, acende-se no fogo da caridade, e se maus, no da luxúria.
Além disto, convém guardar com diligência todos os sentidos, principal-
mente os olhos, de ver coisas que te podem causar perigo. Porque muitas vezes
olha o homem sensivelmente, e só pela vista fica a alma ferida. E porque o
olhar inconsideravelmente as mulheres o inclina ou abranda a consciência do
que as olha, nos aconselhou o "Eclesiástico", dizendo: "Não queiras trazer os
olhos pelos rincões da cidade, nem por suas ruas ou praças; afasta os olhos da
mulher ataviada, e não vejas sua formosura". Para o qual nos deveria bastar o
exemplo de Jó, que (com ser varão de tanta santidade), guardava muito bem
seus olhos (como o mesmo o confessa), não fiando-se de si, nem de tão largo
uso da virtude como tinha. E se este não basta, ao menos deveria bastar o de
David que, sendo varão santíssimo, e tão fiel à vontade de Deus, bastou a vista
de uma mulher para trazer-lhe três grandes males, como foram homicídio, es-
cândalo e adultério.
E não menos também deves guardar os ouvidos de ouvir coisas desones-
tas; e quando as ouvires recebe-as com rosto triste, porque facilmente se faz o

80
que de boa vontade se ouve. Guarda também tua língua de qualquer palavra
torpe, porque os bons costumes se corrompem com as más práticas. A língua
descobre as afeições do homem, porque qual se mostra a prática, tal se desco-
bre o coração; a língua fala do que o coração está cheio.
Trabalha por trazer ocupado teu coração em santos pensamentos e teu
corpo em bons exercícios, porque (como disse São Bernardo) os demônios en-
viam à alma ociosa maus pensamentos em que se ocupe, porque mesmo que
cesse de mal obrar não cesse de mal pensar.
Em toda tentação, principalmente nesta, põe ante teus olhos de teu cora-
ção o Anjo da tua guarda, e o demônio teu acusador, os quais na verdade sem-
pre estão olhando tudo o que fazes, e o representam ao mesmo Juiz que tudo
vê; porque sendo isto assim, como te atreverás a fazer obra tão feia, que diante
de outro homenzinho como tu não ousarias fazer, tendo diante teu guardador,
teu acusador e teu Juiz? Põe também ante os olhos o espanto do juízo divino e
a chama dos tormentos eternos, porque qualquer pena se vence com temor de
outra mais grave, como um cravo se tira com outro; e assim muitas vezes o fogo
da luxúria se mata com a memória do fogo do inferno. Além disto, escusa-te,
quanto for possível, de falar só com mulheres de suspeitosa idade, porque
(como disse Crisóstomo) então acomete mais atrevidamente nosso adversário
aos homens e mulheres quando os vê sós; porque onde não se teme repreen-
sor, mais ousado chega o tentador. Portanto, nunca te ponhas a tratar com
mulher sem testemunhas, porque estar só incita e convida a todos os males.
Nem confies na virtude passada, ainda que seja muito antiga, pois sabes
que aqueles velhos se acenderam no amor de Susana porque a viram muitas
vezes só em seu jardim. Recusa, pois, toda suspeitosa companhia de mulheres,
porque vê-las dana os corações, ouvi-las os atrai, falá-las os inflama, tocá-las os
estimula, e, finalmente, tudo delas é laço para os que tratam com elas. Por isso
disse São Gregório: "Os que dedicaram seus corpos à continência não se atre-
vam a morar com mulheres, porque enquanto o calor vive no corpo, ninguém
presuma que de todo tem apagado o fogo do coração".
Afaste também os presentinhos, visitações e cartas de mulheres, porque
tudo isto é liga para prender os corações e sopros para acender o fogo do mau
desejo quando a chama vai se apagando. E se amas a alguma mulher honesta e
santa, ama-a em tua alma, sem procurar visitá-la amiúde, nem tratar com ela
familiarmente”. 24

24
Fray Luís de Granada - "Guia de Pecadores" - págs. 139/141.

81
São Francisco de Sales fala sobre a Castidade e os conselhos para conservá-la
A castidade é lírio entre as virtudes e já nesta vida nos torna semelhantes
aos anjos. Nada há de mais belo que a pureza e a pureza dos homens é a casti-
dade. Chama-se a esta virtude honestidade; e à sua prática de honra.
Denomina-se também integridade; e o vício contrário, corrupção. Numa
palavra, entre as virtudes tem esta a glória de ser o ornamento da alma e do
corpo ao mesmo tempo.
Nunca é lícito usar dos sentidos para um prazer impuro, de qualquer
maneira que seja, a não ser num legítimo matrimônio, cuja santidade passa por
uma justa compensação reparar o desaire que a deleitação importa. E no pró-
prio casamento ainda há de se guardar a honestidade da intenção, para que, se
houver alguma imperfeição no prazer, não haja senão honestidade na vontade
que o realiza. O coração puro é como a madrepérola, que não recebe uma gota
de água que não venha do céu, pois ele não consente em nenhuma prazer afora
o do matrimônio que é ordenado pelo Céu. Salvo isso, nem sequer nele pensa
voluptuosa, voluntária e demoradamente.
Quanto ao primeiro grau desta virtude, Filotéia, não admitas a menor
coisa de tudo aquilo que é proibido como desonesto, isto é, geralmente falan-
do, todas as coisas semelhantes que se fazem fora do estado matrimonial ou no
matrimônio contra as regras deste estado.
Quanto ao segundo grau, restringe, quanto possível for, as deleitações
supérfluas e inúteis, posto que honestas e permitidas.
Quanto ao terceiro grau, não te afeiçoes aos deleites necessários e de
preceito; pois, embora seja necessário conformar-se aos que o são segundo a
instituição e fim do matrimônio, não se deve apegar a eles o espírito e o cora-
ção.
Demais, esta virtude é sumamente necessária a todos os estados. No da
viuvez a castidade deve ser de uma generosidade extrema, para precaver-se dos
prazeres sensuais, não só quanto ao presente e ao futuro, mas também ao pas-
sado; lembrando prazeres já havidos, a imaginação excita as más impressões. É
por isso que Santo Agostinho tanto se admirava da pureza de seu amado Alípio,
que já não conservava nem o sentimento nem a lembrança de sua vida desre-
grada anterior. E, com efeito, é sabido que os frutos ainda inteiros se conservam
facilmente por muito tempo; mas, se forem cortados ou machucados, o único
meio de conservá-los é pô-los em conserva com açúcar ou mel. Do mesmo
modo eu digo que, enquanto a castidade estiver intacta, se têm muitos meios de
conservá-la; mas, uma vez perdida, só pode ser conservada pela devoção que,
pelas suas doçuras, muitas vezes tenho comparado ao mel.
No estado virginal a castidade exige uma muito grande simplicidade de
alma e uma consciência muito delicada, para afastar toda sorte de pensamentos

82
curiosos e elevar-se acima de todos os prazeres sensuais, por um desprezo abso-
luto e completo de tudo o que o homem tem de comum com os animais e que
mais convém aos brutos que a ele. Nem por pensamento duvidem essas almas
que a castidade é muito superior a tudo o que é incompatível com a sua perfei-
ção; pois o demônio, como diz São Jerônimo, não podendo suportar esta salu-
tar ignorância do prazer sensual, procura excitar nestas almas ao menos o dese-
jo de conhecê-los e sugere-lhes idéias tão atraentes, embora inteiramente falsas,
que muito as perturbam, levando-as, como acrescenta este santo padre, a dar
imprudentemente grande estima ao que não conhecem. É assim que muitos
jovens, seduzidos pela ilusória e tola estima dos prazeres voluptuosos e por uma
curiosidade sensual e inquieta, se entregam a uma vida desregrada, com perda
completa dos seus interesses temporais e eternos; assemelham-se a borboletas
que, pensando que o fogo é tão doce quão belo, se atiram a ele e se queimam
nas chamas.
Quanto aos casados, é certo que a castidade lhes é necessária, muito mais
do que se pensa, pois a castidade deles não é uma abstenção absoluta dos pra-
zeres carnais, mas refrear-se neles. Ora, como aquele preceito - "Irai-vos e não
pequeis" - é mais difícil que o outro - "Não vos ireis nunca" - por ser bem mais
fácil evitar a raiva do que regrá-la, assim também é mais fácil a abstenção total
dos prazeres carnais do que a moderação neles. É certo que a santa licença que
o matrimônio confere tem uma força e virtude particular para apagar a concu-
piscência, mas a fraqueza dos que usam dela passa facilmente da permissão á
dissolução, do uso ao abuso. E como vemos muitos ricos roubarem, não por
indigência, mas por avareza, também se vêem muitos casados excederem-se por
intemperança e luxúria; porque a sua concupiscência é como um fogo cheio de
veleidade, ardendo aqui e ali, sem se fixar em parte alguma. É sempre perigoso
tomar remédios violentos. Tomando-se demais, ou se não forem bem dosados,
prejudicam imensamente. O matrimônio, entre outros fins, existe para remé-
dio da concupiscência e sem dúvida é ótimo remédio, mas violento e perigoso,
se não for usado com discrição.
Noto ainda que, além das longas doenças, os vários negócios separam
muitas vezes os maridos de suas mulheres. E é por isso que os casados preci-
sam de duas espécies de castidade: uma para a continência absoluta, naqueles
casos de separação forçada, a outra, para a moderação quando estão juntos, na
vida normal. Viu Santa Catarina de Sena muitos condenados ao inferno sofren-
do atrozmente pelas faltas cometidas contra a santidade matrimonial. E isso,
dizia ela, não tanto pela enormidade do pecado, porque assassínios e blasfêmias
são pecados muito maiores, mas porque os que caem naqueles não têm escrú-
pulos e continuam assim a cometê-los por muito tempo. Já vês, pois que a cas-
tidade é necessária para todos os estados. "Segui a paz com todos" - diz o após-

83
tolo - "e a santidade sem a qual ninguém verá a Deus". Ora, é de notar que por
santidade ele entende aqui a castidade, como observam São Jerônimo e São
Crisóstomo. Não, Filotéia, ninguém verá a Deus sem a castidade; em seus san-
tos tabernáculos não habitará ninguém que não tenha o coração puro e, como
diz Nosso Senhor mesmo, os cães e os desonestos serão desterrados daí; e:
"Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus".

Outros conselhos de como conservar a castidade


Estejas sempre de sobreaviso para afastar logo de ti tudo o que te possa
inclinar à sensualidade; pois este mal se vai alastrando insensivelmente e de pe-
quenos princípios faz rápidos progressos. Numa palavra, é mais fácil fugir-lhe
que curá-lo.
Parecem-se os corpos humanos com os vidros, que não se pode lavar
juntos, tocando-se, sem correr perigo de se quebrarem, e com as frutas, que,
embora inteiras e bem maduras, recebem manchas chocando umas com as ou-
tras. A água mais fresca que se quer conservar num vaso perde logo a sua fres-
cura mal um animal a toca.
Nunca permitas, Filotéia, nem a outros nem a ti mesma, todo esse tocar
exterior das mãos igualmente contra a modéstia cristã e contra o respeito que se
deve à qualidade e á virtude duma pessoa; pois, ainda que não seja de todo im-
possível conservar o coração puro entre essas ações mais levianas que malicio-
sas, todavia sempre se recebe daí algum dano; nem falo aqui desses tatos deso-
nestos que arruínam por completo a castidade.
A castidade depende do coração, quanto à sua origem, mas sua prática
exterior consiste em moderar e purificar os sentidos; por isso podemos perdê-la
tanto pelos sentidos exteriores como por pensamentos e desejos do coração. É
impudicícia olhar, ouvir, falar, cheirar, palpar coisas desonestas, quando nisso o
coração se demora e toma gosto. São Paulo chega a dizer: "Meus irmãos, a for-
nicação nem se nomeie entre vós".
As abelhas não só não pousam num cadáver corrompido, mas até fogem
do mau cheiro que exala.
Observa o que a Sagrada Escritura nos diz da Esposa dos Cantares: "Tu-
do aí é místico: suas mãos destilam mirra", e este líquido, como sabes, preserva
da corrupção; "seus lábios são fitas de rubim vermelho", o que nos indica o seu
pudor até à palavra menos desonesta; "seus olhos", são comparados aos "olhos
da pomba", por causa da sua inocência; "suas orelhas têm brincos de ouro", des-
se metal precioso que significa a pureza; "seu nariz" é comparado ao "cedo do
Líbano", cujo odor é suavíssimo e que tem uma madeira incorruptível. Que
quer dizer tudo isso? A alma devota deve ser casta, inocente, pura e honesta em
todos os sentidos exteriores.

84
Nunca trates com pessoas de indubitáveis costumes corrompidos, sobre-
tudo se forem também imprudentes, como quase sempre o são.
Diz-se que os cabritos, tocando com a língua nas amendoeiras doces,
tornam os seus frutos amargos; e essas almas brutais e infectas, falando a pesso-
as do mesmo sexo ou de sexo diferente, causam grande dano ao pudor, asse-
melhando-se também aos basiliscos25 (*), que têm o veneno nos lábios e no
hálito.
A contrário, procura a companhia de pessoas castas e virtuosas; ocupa-te
muitas vezes com a leitura da Sagrada Escritura; porque a palavra de Deus é
casta e torna castos os que a amam. Daí vem que Davi a compara a este pedra
preciosa que se chama topázio e que tem a propriedade especial de mitigar o
ardor da concupiscência.
Conserva-te ao lado de Jesus Cristo crucificado, quer espiritualmente -
pela meditação, quer real e corporalmente - na santa comunhão. Sabes de certo
que os que se deitam sobre aquela erva "agnus castus" vão tomando insensivel-
mente disposições favoráveis à castidade; estejas certo que, se teu coração des-
cansar em Nosso Senhor, que é realmente o Cordeiro imaculado, bem depres-
sa purificará tua alma, teu coração e teus sentidos, interiormente, de todos os
prazeres sensuais. 26

Meio mais eficaz: o exercício da presença de Deus


São João Bosco, o Apóstolo da Juventude, assim fala sobre a castidade e
os meios com que conservá-la:
“Toda virtude nos jovens é um precioso adorno que lhes faz amáveis a
Deus e aos homens. Porém a virtude rainha, a virtude angélica, a santa pureza,
é um tesouro tão valioso, que os jovens que a possuem se fazem semelhantes
aos anjos de Deus, embora sejam homens mortais na terra. Serão como anjos
de Deus: são palavras do Salvador. Esta virtude é como o centro a cuja volta se
reúnem e conservam todos os dons e, se por desgraça, se perde, todas as de-
mais virtudes estão perdidas. “Com ela me vieram todos os benefícios”, disse o
Senhor.
“Porém esta virtude que os converte, queridos jovens, em outros tantos
anjos do céu, “virtude que tanto agrada a Jesus e a Maria, é sumamente invejada
pelos inimigos das almas”; por isto vem dar-lhe terríveis assaltos, para fazê-la
perder, ou ao menos para que a mancheis. Por este motivo eu os sugiro algu-
mas normas ou armas com as quais conseguireis certamente conservá-la e re-
chaçar o inimigo tentador. “A arma principal consiste em afastar-se dos peri-

25
Basilisco era uma cobra fabulosa que matava somente com o olhar.
26
"Filotéia ou Introdução à Vida :Devota" - São Francisco de Sales - Bispo e príncipe de Genebra - Ed. Vozes -
págs. 228/236.

85
gos”. A pureza é um diamante de grande valor. Se, levando um grande tesouro,
o exponhais à vista de um ladrão, correis grave risco de ser assassinado. São
Gregório Magno declarou que deseja ser roubado o que leva seu tesouro à vista
de todo o mundo.
“Além da fuga dos perigos, praticai a freqüência da confissão, sincera-
mente feita, e da comunhão devota, evitando todas aquelas pessoas que com
obras ou palavras menosprezam esta virtude.
“Para prevenir os assaltos do demônio, lembro-os do aviso de Jesus: “Es-
ta classe de demônios – quer dizer, a tentação contra a pureza – não se vencem
senão com o jejum e a oração. Com jejum, ou seja, a mortificação dos senti-
dos”, pondo freio aos olhos e à gula, fugindo do ócio, dando ao corpo o repou-
so estritamente necessário. Jesus Cristo nos recomenda que recorramos à ora-
ção; porém que se trate de uma oração feita com fé e fervor, na qual “não se
aconteça de parar até que a tentação seja vencida”.
“Possuís aliás uma arma formidável nas jaculatórias, invocando os nomes
de Jesus, José e Maria. Portanto, dizei amiúde: “Jesus meu, misericórdia. Jesus,
salvai-me. Maria, concebida sem pecado, roga por mim que em ti confio. Ma-
ria, Auxílio dos Cristãos, rogai por mim. Sagrado Coração de Maria, sede a sal-
vação da minha alma. Coração de Jesus, não quero ofender-te mais”.
“Ajuda, ademais, beijar o santo crucifixo, ou a medalha ou o escapulário
de Maria. Porém, se todas estas armas não bastarem para deixar esta maligna
tentação, então recorrei à “arma invencível da presença de Deus”. Estamos nas
mãos de Deus, que, como dono absoluto de nossa vida, pode mandar-nos a
morte em qualquer momento. Como nos atreveremos, pois, a ofender-Lhe na
sua presença?
O patriarca José, sendo escravo no Egito, foi provocado a cometer uma
ação infame; porém em seguida respondeu a quem o tentava: “Como posso
cometer tal coisa na presença de meu Senhor?” Acrescentai por vossa conta:
“Como vou deixar-me induzir a cometer este pecado em presença de Deus, do
Deus Criador, do Deus Salvador, daquele Deus que pode privar-me instanta-
neamente da vida? E vou a fazê-lo na presença de Deus, que, enquanto Lhe
ofendo, pode mandar-me às penas eternas do inferno?” É impossível que al-
guém possa ser vencido durante as tentações se, enquanto se encontra nesse
perigo, emprega o recurso da presença de Deus”. 27

27
São João Bosco – Obras Fundamentais – BAC –págs. 525/526

86
Considerações de São Luís Grignion de Montfort sobre a castidade

Primeiro ponto - Considerai que a virtude da castidade faz a alma seme-


lhante aos anjos e ao mesmo Deus e que o voto a faz esposa de Nosso Senhor;
de sorte que já não pode dividir o coração e amar algo diferente d’Ele. Senti-
mentos de alegria, de reconhecimento, de confusão pelo passado, de fidelidade
inviolável para o futuro.
Segundo ponto - Considerai quanto estima Nosso Senhor esta virtude.
Quis ter neste mundo uma Mãe Virgem, assim como no céu tem um pai vir-
gem. No Paraíso se acha rodeado de virgens. Foi acusado de toda classe de ví-
cios, exceto do que é contrário à pureza. Entre todas as bem-aventuranças, so-
mente a pureza de coração tem como prêmio a visão de Deus; de sorte que, se
não sois puros, não podereis ver a Deus.
Terceiro ponto - Os meios para ser casto são: 1o., fidelidade à oração; 2o.
, humildade porque Deus deixa cair aos soberbos na mais profunda confusão;
3o., obediência, porque é impossível que a carne obedeça a seu superior, que é
o espírito, se este - por sua vez - não obedece ao seu; 4o., fuga das ocasiões, das
visitas e conversações perigosas, porque quem ama o perigo cai e perece nele;

87
5o., vigilância sobre o próprio coração, mortificação dos sentidos e manifestação
das tentações a quem possa pôr remédio. 28

Deus pede a pureza em especial aos sacerdotes


Falando a Santa Catarina de Sena, o Padre Eterno assim se referiu sobre
a virgindade entre os sacerdotes:
"A toda alma lhe peço pureza e caridade por amor a mim e a seu próxi-
mo e que lhe ajudem no que possam, oferecendo orações por ele e permane-
cendo na dilação da caridade. Mais pureza peço ainda a meus ministros e mais
amor a mim e a seu próximo, devendo administrar o corpo e o sangue de meu
Filho unigênito com ardor de caridade e fome da salvação das almas para glória
e por amor de meu nome.
Como os ministros querem limpeza no cálice onde se celebra este sacri-
fício, assim exijo eu limpeza e pureza de coração, de sua alma e de seu espírito.
Quero que o corpo, como instrumento de sua alma, se conserve em perfeita
pureza. Não quero que se alimentem de imundície e se chafurdem nela, nem
se encontrem inchados de soberba, buscando os grandes cargos; nem que se-
jam cruéis consigo mesmos e com o próprio. Porque, se são cruéis consigo
mesmos pela culpa, são cruéis com as almas de seus próximos, já que não lhes
dão exemplo de vida, nem se preocupam de arrancar as almas das mãos do
demônio, nem de administrar o corpo e o sangue de meu Filho unigênito e mi-
nha verdadeira Luz nos sacramentos da Santa Igreja. E assim, sendo cruéis con-
sigo, são cruéis com os demais. 29

Não há castidade sem religiosidade


Para ser e se conservar casto, o homem precisa ter vida interior intensa e
seguir princípios religiosos. A propósito, vejamos o seguinte caso, consignado
no livro “Tesouro de Exemplos”:
“Estava aquele médico na flor da idade. Era cabeça leviana e andava
cheio de orgulho por sua ciência vã. Além disso, relegara a fé a um canto de sua
inteligência e, segundo havia aprendido de seus mestres sem religião, afirmava
que para viver bem e ser feliz bastava a luz da razão.
Por aqueles dias um famoso pregador, um homem de eloqüência singu-
lar, alvoroçara toda a cidade.
O vaidoso doutor afirmava á boca-cheia, no círculo de suas amizades,
que iria entrevistar o famoso orador e que o havia de encurralar com a força de
sua discussão.
28
"San Luís Maria Grignion de Montfort" - B.A.C. - "Cuatro esquemas de meditações" - pág. 722.
29
"Obras de Santa Catalina de Siena" - B. A. C. - "El Diálogo" - pág. 265).

88
E lá se foi, com efeito, seguido de alguns amigos zombeteiros e curiosos.
Achando-se frente a frente com o missionário, o doutor disse entre outras coi-
sas:
- Padre, eu não pratico a religião; sou, porém, homem honrado e posso
garantir-lhe que sou casto. - Sorriu maliciosamente o ilustre pregador e obser-
vou:
- Casto?!... Casto sem religião?!
- Sim, casto... – insistia o doutor.
- E vai a toda espécie de cinema?
- Naturalmente.
- E lê toda espécie de livros?
- Tudo o que cai sob os meus olhos.
- Desvia o olhar quando se encontra com alguma beleza provocadora?
- Oh! pelo contrário.
- E diz que não reza?
- Nada.
- E diz que é casto?
- Digo.
- Pois bem – replicou aquele homem apostólico, aquele profundo co-
nhecedor do coração humano; - acredito que o senhor seja casto, mas casto
como os cachorros.
E nada mais disse... E havia dito tudo... O doutor mordeu a língua... os
amigos sorriam maliciosamente... e o missionário interrompeu bruscamente o
diálogo. Todos estavam de acordo: sem a prática da oração não podiam ser cas-
tos. E seria refinada loucura afirmar o contrário”.30

30
“Tesouro de Exemplos”, do padre Francisco Alves, C.SS.R., (editora Vozes, 1958), pág. 144/145

89
4 Tratado da Castidade

Reproduzimos a seguir o “Tratado da Castida-


de”, publicado por Santo Afonso Maria de
Ligório, onde consta uma doutrina mais perfei-
ta sobre o assunto. Pureza, Castidade, Virgin-
dade, são virtudes afins que o Santo trata sob o
mesmo enfoque.

90
§ I. EXCELÊNCIA DA CASTIDADE

Ninguém melhor que o Espírito Santo saberá apreciar o valor da castida-


de. Ora, Ele diz: "Tudo o que se estima não pode ser comparado com uma al-
ma continente" (Ecli 26, 20), isto é, todas as riquezas da terra, todas as honras,
todas as dignidades, não lhe são comparáveis. Santo Efrém chama a castidade
de "a vida do espírito"; São Pedro Damião, "a rainha das virtudes"; e São Cipria-
no diz que, por meio dela, se alcançam os triunfos mais esplêndidos. Quem
supera o vício contrário à castidade, facilmente triunfará de todos os mais;
quem, pelo contrário, se deixa dominar pela impureza, facilmente cairá em
muitos outro vícios e far-se-á réu de ódio, injustiça, sacrilégio, etc.
A castidade faz do homem um anjo. "Ó castidade, exclama Santo Efrém
(De cast.), tu fazes o homem semelhante aos anjos". Essa comparação é muito
acertada, pois os anjos vivem isentos de todos os deleites carnais; eles são puros
por natureza; as almas castas, por virtude. "Pelo mérito desta virtude, diz Cassi-
ano (De Coen. Int., 1. 6, c. 6), assemelham-se os homens aos anjos"; e São Ber-
nardo (De mor. et off., ep., c. 3): "O homem casto difere do anjo não em razão
da virtude, mas da bem-aventurança; se a castidade do anjo é mais ditosa, a do
homem é mais intrépida". "A castidade torna o homem semelhante ao próprio
Deus, que é um puro espírito", afirma São Basílio (De ver. virg.).
O Verbo Eterno, vindo a este mundo, escolheu para Sua Mãe uma Vir-
gem, para pai adotivo um virgem, para precursor um virgem, e a São João
Evangelista amou com predileção porque era virgem, e, por isso, confiou-lhe
Sua santa Mãe, da mesma forma como entrega ao sacerdote, por causa de sua
castidade, a santa Igreja e Sua própria Pessoa.
Com toda a razão, pois, exclama o grande doutor da Igreja, Santo Ataná-
sio (De virg.): 'Ó santa pureza, és o templo do Espírito Santo, a vida dos Anjos
e a coroa dos Santos!".
Grande, portanto, é a excelência da castidade; mas também terrível é a
guerra que a carne nos declara para no-la roubar. Nossa carne é a arma mais
poderosa que possui o demônio para nos escravizar; é, por isso, coisa muito
rara sair-se ileso ou mesmo vencedor deste combate. Santo Agostinho diz
(Serm. 293): "O combate pela castidade é o mais renhido de todos: ele repete-
se cotidianamente, e a vitória é rara".
"Quantos infelizes que passaram anos na solidão, exclama São Lourenço
Justiniano, em orações, jejuns e mortificações, não se deixaram levar, finalmen-
te, pela concupiscência da carne, abandonaram a vida devota da solidão e per-
deram, com a castidade, o próprio Deus!"
Por isso, todos os que desejam conservar a virtude da castidade devem
ter suma cautela: "É impossível que te conserves casto, diz São Carlos Borro-

91
meu, se não vigiares continuamente sobre ti mesmo, pois negligência traz consi-
go mui facilmente a perda da castidade".

§ II. DA VIGILÂNCIA SOBRE OS PENSAMENTOS

1) A respeito dos maus pensamentos encontra-se, muitas vezes, um du-


plo engano:

a) Almas que temem a Deus e não possuem o dom do discernimento e


são inclinadas aos escrúpulos, pensam que todo mau pensamento que lhes so-
brevêm é já um pecado. Elas estão enganadas, porque os maus pensamentos
em si não são pecados, mas só e unicamente o consentimento neles. A malícia
do pecado mortal consiste toda e só na má vontade, que se entrega ao pecado
com claro conhecimento de sua maldade e plena deliberação de sua parte. E,
por isto, Santo Agostinho ensina que não pode haver pecado onde falta o con-
sentimento da vontade.
Por mais que sejamos atormentados pelas tentações, pela rebelião de
nossos sentidos, pelas comoções ou sensações desregradas de nossa natureza
corpórea, não existe pecado algum enquanto faltar o consentimento, como en-
sina também São Bernardo, dizendo: "O sentimento não causa dano algum,
contanto que não sobrevenha o consentimento".
Para consolar tais almas timoratas e escrupulosas, quero oferecer-lhes
aqui uma regra prática, aceita por quase todos os teólogos: Quando uma alma
que teme a Deus e detesta o pecado, duvida se consentiu ou não em um mau
pensamento, não está obrigada a confessar-se disso, porque, em tal caso, se ti-
vesse realmente cometido um pecado mortal, não estaria em dúvida a esse res-
peito, porque o pecado mortal, para uma alma que teme a Deus, é um monstro
tão horrendo, que não poderá ter entrada em seu coração sem o perceber.

b) Outros, que possuem uma consciência mais relaxada e são mal instru-
ídos, julgam, pelo contrário, que os maus pensamentos nunca são pecados,
mesmo havendo consentimento neles, contanto que não se chegue a praticar.
Este erro é muito mais pernicioso que o primeiro. O que se não pode fazer,
não se pode também desejar; por isso, o mau pensamento em si contêm toda a
malícia do ato. Assim como as más obras nos separam de Deus, também os
maus pensamentos nos afastam d'Ele e nos privam de Sua graça. "Pensamentos
perversos nos separam de Deus" (Sab 1, 3). Como as más obras estão patentes
aos olhos de Deus, também Sua vista alcança todos os nossos maus pensamen-

92
tos para condená-los e puni-los, pois "um Deus de ciência é o Senhor, e diante
d'Ele estão patentes todos os pensamentos" (I Rs 2, 3).

2) Logo, nem todos os maus pensamentos são pecados, e nem todos os


que são pecados trazem em si o mesmo cunho de malícia. Devemos considerar
três coisas quando se trata de um pecado de pensamento, a saber: a sugestão, a
deliberação e o consentimento. Alguns esclarecimentos a esse respeito:

a) Sob a palavra sugestão entende-se o primeiro pensamento que nos in-


cita a praticar o mal que nos vem à mente. Esta instigação ou incitamento ainda
não é pecado; se a vontade a repele imediatamente, é mesmo uma fonte de me-
recimentos. "Para cada tentação a que opuseres resistência, se te deverá uma
coroa", diz Santo Antão. Até os Santos foram perseguidos por tais pensamentos.
São Bento revolveu-se sobre os espinhos para vencer uma tentação impura, e
São Pedro de Alcântara lançou-se em poço de água gelada. São Paulo nos in-
forma que também ele foi tentado contra a pureza: "E para que a grandeza das
revelações não me ensoberbesse, foi-me dado um espinho em minha carne, um
anjo de satanás para me esbofetear" (2 Cor 12, 7). O Apóstolo suplicou várias
vezes ao Senhor que o livrasse desse inimigo: "Por essa causa roguei ao Senhor
três vezes que o afastasse de mim". O Senhor não quis, porém, dispensá-lo do
combate, e respondeu-lhe: "Basta-te a minha graça". E por que não queria o Se-
nhor livrá-lo? Para que adquirisse maiores méritos por sua resistência à tenta-
ção: "Porque a virtude se aperfeiçoa na fraqueza". São Francisco de Sales diz
que quando um ladrão procura arrombar uma porta, é porque não está ainda
dentro da casa; assim também, quando o demônio tenta uma alma, é porque se
acha ela ainda na graça de Deus.
Santa Catarina de Sena foi uma vez horrivelmente atormentada pelo de-
mônio, durante três dias, com fortes tentações impuras. Apareceu-lhe então o
Senhor para consolá-la, e ela perguntou-lhe: - Mas onde estivestes, Senhor meu,
durante estes três dias? Jesus respondeu-lhe: Dentro do teu coração, dando-te
força para resistires à tentação. E o Senhor deu-lhe a conhecer que o seu cora-
ção estava, depois da tentação, mais puro que antes.

b) À sugestão segue-se a deleitação. Quando nos damos ao trabalho de


repelir imediatamente a tentação, sentimos nela uma certa complacência ou
prazer, que nos vai arrastando ao consentimento. Mesmo então, se a vontade
não dá seu assentimento, não há pecado mortal; quando muito, poderá haver
pecado venial. Se, porém, não recorrermos então a Deus e não nos esforçar-
mos por resistir à tentação, facilmente nos sentiremos arrastados ao consenti-
mento e perdidos, segundo as palavras de Santo Anselmo (De similit., c. 40):

93
"Se não procuramos impedir a deleitação, ela se transformará em consentimen-
to e matará a alma".
Uma senhora, que tinha fama de santa, teve, um dia, um mau pensamen-
to, que não repeliu imediatamente, e pecou por pensamento. Por vergonha
deixou de confessar esse pensamento criminoso e morreu, pouco depois, em
estado de pecado. Porque morreu com fama de santidade, mandou o bispo que
fosse sepultada em sua própria capela. No dia seguinte, porém, apareceu-lhe
ela, toda circundada de fogo, e confessou-lhe, infelizmente já tarde demais, que
estava condenada por ter consentido num mau pensamento.

c) Toda a malícia do mau pensamento está, porém, no consentimento.


Havendo pleno consentimento, perde-se a graça de Deus e chama-se sobre si a
condenação eterna, quer se tenha o desejo de cometer um pecado determina-
do, quer se pense ou reflita com prazer no pecado como se o estivesse come-
tendo. Esta última espécie de pecado chama-se uma deleitação deliberada ou
morosa, e deve-se distinguir bem da primeira, isto é, do pecado de desejo.

3) Se fores, pois, molestada por tais tentações, alma cristã, não deves
perder a coragem, antes, animosamente combater, empregando os meios que te
vou indicar, e não sucumbirás:
a) O primeiro é humilhar-se continuamente diante de Deus. O Senhor
castiga muitas vezes os espíritos soberbos, permitindo que caiam em qualquer
pecado impuro. Sê, pois, humilde, e não confies em tuas próprias forças. Davi
confessa que caiu no pecado por não ter se humilhado e ter confiado demais
em si mesmo: "Antes de me haver humilhado, eu pequei" (Sl 118, 67). Deve-
mos temer sempre a nossa própria fraqueza e colocar em Deus toda a nossa
confiança, esperando firmemente que nos preserve desse vício.

b) O segundo meio é recorrer imediatamente a Deus, sem entrar em diá-


logo com a tentação. Logo que se apresentar ao nosso espírito um pensamento
impuro, devemos elevar a Deus imediatamente o nosso pensamento ou dirigi-lo
a qualquer objeto indiferente. A coisa melhor será invocar imediatamente os
Santíssimos Nomes de Jesus e Maria, e não cessar de repeti-los até desaparecer
a tentação. Se ela for muito forte, será bom repetir muitas vezes o seguinte pro-
pósito: Ó meu Deus, prefiro morrer a Vos ofender. Peça-se socorro, dizendo:
Ó meu Jesus, socorrei-me. Maria, assisti-me. Os Nomes de Jesus, Maria e José
possuem uma força especial para afugentar as tentações do demônio.

c) O terceiro meio é a recepção assídua dos Santos Sacramentos da Con-


fissão e da Comunhão. É de suma importância revelar quanto antes ao confes-

94
sor as tentações impuras. "Uma tentação revelada já está meio vencida", diz São
Filipe Néri. E se alguém teve a infelicidade de consentir em uma tentação, não
se demore nenhum instante em se confessar disso. São Filipe Néri livrou um
rapaz desse vício, induzindo-o a confessar-se logo depois de cada queda.
A Santa Comunhão, está fora de dúvida, confere uma grande força na re-
sistência às tentações desonestas. O Sangue de Jesus Cristo, que recebemos na
Sagrada Comunhão, é chamado pelos Santos de 'Vinho gerador de Virgens'
(Zac 9, 17). O vinho natural é um perigo para a castidade; este Vinho Celestial
é o seu conservador.

d) O quarto meio é a devoção à Imaculada Mãe de Deus, que é chamada


a Virgem das Virgens. Quantos jovens não se conservaram puros e castos como
Anjos, devido à devoção à Santíssima Virgem!

e) O quinto meio é a fuga da ociosidade. O Espírito Santo diz (Ecli 33,


21): "A ociosidade ensina muita coisa má", isto é, ensina a cometer muitos pe-
cados. E o profeta Ezequiel (Ez 16, 49), assevera que foi a ociosidade a causa
das abominações e ruína final dos habitantes de Sodoma. Conforme São Ber-
nardo, a ociosidade motivou a queda de Salomão. Por isso São Jerônimo exorta
a Rústico (Ep. ad Rust., 2) que esteja sempre ocupado, para que o demônio não
o preocupe com suas tentações. "Quem trabalha é tentado por um demônio só;
quem vive ocioso, é atacado por uma multidão deles", diz São Boaventura.

f) O sexto meio consiste no emprego de todas as precauções exigidas pe-


la prudência, tais como a modéstia dos olhos, a vigilância sobre as inclinações
do coração, a fugida das ocasiões perigosas, etc.

§ III. DA MODÉSTIA DOS OLHOS

Quase todas as paixões que se revoltam contra nosso espírito têm sua
origem na liberdade desenfreada dos olhos, pois os olhares livres são os que
despertam em nós, de ordinário, as inclinações desregradas. "Fiz um contrato
com meus olhos de não cogitar sequer em uma virgem", diz Jó (Job 31, 1). Mas,
por que diz ele de não pensar sequer em uma virgem? Não parece que deveria
dizer: Fiz um contrato com meus olhos de não olhar sequer? Não, ele tem toda
a razão de falar assim, porque o pensamento está intimamente ligado ao olhar,
não se podendo separar um do outro, e, para não ter maus pensamentos, pro-
pôs-se esse santo homem nunca olhar para uma virgem.

95
Santo Agostinho diz: "Do olhar nasce o pensamento, e do pensamento a
concupiscência". Se Eva não tivesse olhado para o fruto proibido, não teria pe-
cado; ela, porém, achou gosto em contemplá-lo, parecendo-lhe bom e belo;
apanhou-o então, e fez-se culpada da desobediência.
Aqui vemos como o demônio nos tenta primeiramente a olhar, depois a
desejar e, finalmente, a consentir. Por isso nos assegura São Jerônimo que o
demônio só necessita de nosso começo: dá-se por satisfeito se lhe abrimos a
metade da porta, pois ele saberá conquistar a outra metade. Um olhar voluntá-
rio, lançado a uma pessoa do outro sexo, acende uma faísca infernal que preci-
pita a alma na perdição. "As primeiras setas que ferem as almas castas, diz São
Bernardo (De mod. ben. viv., serm. 23), e não raro as matam, entram pelos
olhos". Por causa dos olhos caiu Davi, esse homem segundo o coração de
Deus. Por causa dos olhos caiu Salomão, esse instrumento do Espírito Santo.
Por causa dos olhos, quantas almas não se perderam eternamente?
Vigie, pois, cada um sobre seus olhos, se não quiser chorar uma vez com
Jeremias: "Meus olhos me roubaram a vida" (Jer 3, 51); as afeições criminosas
que penetraram em meu coração por causa dos meus olhares, lhe deram a
morte. São Gregório diz (Mor. 1, 21, c. 2): "Se não reprimires os olhos, tornar-
se-ão ganchos do inferno, que a força nos arrastarão e nos obrigarão, por assim
dizer, a pecar contra a nossa vontade". "Quem contempla objeto perigoso,
acrescenta o Santo, começa a querer o que antes não queria". É também o que
diz a Sagrada Escritura (Jdt 16, 11), quando diz que a bela Judite escravizou a
alma de Holofernes, apenas este a contemplou.
Sêneca diz que a cegueira é mui útil para a conservação da inocência. Se-
guindo esta máxima, um filósofo pagão arrancou-se os olhos para guardar a cas-
tidade, como nos refere Tertuliano. Isso, porém, não é lícito a nós, cristãos; se
queremos conservar a castidade, devemos, contudo, fazer-nos cegos por virtu-
de, abstendo-nos de olhar o que possa despertar em nós os maus pensamentos.
"Não contemples a beleza alheia; disso origina-se a concupiscência, que queima
como o fogo" (Ecli 9, 8). À vista seguem-se as imaginações pecaminosas, que
acendem o fogo impuro.
São Francisco de Sales dizia: "Quem não quiser que o inimigo penetre na
fortaleza, deve conservar as portas fechadas". Por essa razão foram os Santos tão
cautelosos em seus olhares. Por temor de enxergarem inesperadamente qual-
quer objeto perigoso, conservavam os olhos quase sempre baixos, e se absti-
nham de olhar coisas inteiramente inocentes. São Bernardo, depois de um ano
inteiro no noviciado, não sabia ainda se o teto de sua cela era plano ou aboba-
dado. Na igreja do convento havia três janelas e ele não o sabia, porque conser-
vara os olhos baixos. Evitavam os Santos, com cautela maior ainda, pôr os olhos
em pessoa de outro sexo. São Hugo, bispo, nunca olhava para o rosto das mu-

96
lheres com quem tinha de conversar. Santa Clara nunca olhava para a face de
um homem. Aconteceu uma vez que, levantando os olhos para a Hóstia Sagra-
da, durante a Elevação, viu o rosto do sacerdote, com o que ficou profunda-
mente aflita.
Julgue-se agora quão grande é a imprudência e temeridade dos que, não
possuindo a virtude dum desses Santos, ousam passear suas vistas em todas as
pessoas, não excetuando as de outro sexo, e querendo ainda ficar livre de tenta-
ções e do perigo de pecar. São Gregório diz (Dial. 1.2, c. 2) que as tentações
que levaram São Bento a revolver-se sobre espinhos, provieram de um olhar
imprudente sobre uma senhora. São Jerônimo, achando-se na gruta de Belém,
onde continuamente orava e macerava seu corpo com as mais atrozes penitên-
cias, foi por longo tempo atormentado pela lembrança das damas que vira tem-
pos antes em Roma. Como, pois, poderemos ficar preservados de tentações,
quando nos expomos ao perigo, olhando e até fitando complacentemente pes-
soas de outro sexo?
O que nos prejudica não é tanto o olhar casual como o premeditado, o
mirar. Razão porque Santo Agostinho diz (Reg. ad Serv. Dei, n. 6): "Se vossos
olhos casualmente caírem sobre uma pessoa, cuja vista vos pode ser prejudicial,
guardai-vos, ao menos, de fitá-la". E São Gregório diz: "Não é lícito contemplar
ou extasiar-se com a vista daquilo que não é lícito desejar, pois, ainda que ex-
pulsemos os maus pensamentos que costumam seguir o olhar voluntário, dei-
xam sempre uma mancha na alma". Tendo-se perguntado ao irmão Rogério,
franciscano, dotado de uma pureza angélica, por que se mostrava tão reservado
em seus olhares, quando tratava com mulheres, respondeu: "Se o homem foge
à ocasião, Deus o protege; se se expõe a ela, Nosso Senhor o abandona e facil-
mente cairá no pecado".
Suposto mesmo que a liberdade que se concede aos olhos não produzis-
se outros males, impediria sempre o recolhimento da alma durante a oração;
pois tudo o que vimos e nos impressionou, apresenta-se aos olhos de nossa al-
ma e nos causa uma imensidade de distrações. Quem já tem recolhimento de
espírito durante a oração, tome muito cuidado para não se ver privado dessa
graça dando liberdade a seus olhos.
Está fora de dúvida que um cristão que vive sem recolhimento de espírito
não pode praticar as virtudes cristãs da humildade, da paciência, da mortifica-
ção, como deveria. Guardemo-nos, por isso, de olhares curiosos, e só olhemos
para objetos que elevam para Deus o nosso espírito. "Olhos baixos elevam o
coração para o Céu", dizia São Bernardo. São Gregório Nazianzeno (Ep. ad
Diocl.) escreve: "Onde habita Cristo com Seu amor, reina aí a modéstia". Com
isso não quero, porém, dizer que nunca se deva levantar os olhos ou considerar
coisa alguma; pelo contrário, é até bom, às vezes, olhar coisas que elevam nosso

97
coração para Deus, como santas imagens, prados floridos, etc, já que a beleza
dessa criatura nos atrai à contemplação do Criador.
Deve-se notar também que a modéstia dos olhos é necessária não só para
nosso próprio bem, como para a edificação do próximo. Só Deus vê o nosso
coração; os homens vêem apenas nossas obras externas e, ou se edificam, ou se
escandalizam com elas. "Pelo rosto se conhece o homem", diz a Escritura (Ecli
19, 26), isto é, pelo exterior se depreende o que é o homem interiormente.
Todo cristão, por isso, deve ser o que era São João Batista, conforme as pala-
vras do Salvador (Jo 5, 35): "Uma lâmpada que arde e ilumina". Interiormente
deve arder em amor divino; exteriormente, alumiar, pela modéstia, a todos os
que o vêem. Também a nós se podem aplicar as palavras que São Paulo dirigiu
a seus discípulos (I Cor 4, 9): "Somos o espetáculo dos anjos e dos homens". "A
vossa modéstia seja conhecida de todos os homens" (Filip 4, 5).
Pessoas devotas são observadas pelos anjos e pelos homens, e, por isso,
sua modéstia deve ser notória a todos, do contrário, deverão dar rigorosas con-
tas a Deus no dia do Juízo. Observando a modéstia, edificamos sumamente os
outros e os estimulamos à prática da virtude.
É celebre o que se conta de São Francisco de Assis: Uma vez deixou ele
o convento junto a uma companheiro, dizendo que ia pregar; tendo dado uma
volta pela cidade com os olhos baixos, entrou novamente no convento. 'Mas
quando farás o sermão?', perguntou-lhe o companheiro. 'Já o fiz, respondeu-lhe
o Santo, consistiu todo no resguardo dos olhos, do que demos exemplo ao po-
vo'.
Santo Ambrósio diz que a modéstia das pessoas virtuosas é uma exorta-
ção mui poderosa ao coração dos mundanos. "Quão belo não seria se bastasse
te apresentares em público para fazeres bem aos outros!" (In ps. 118, s. 10). De
São Bernardino de Sena se conta que, mesmo antes de entrar para o convento,
bastava só a sua presença para pôr fim às conversas livres de seus companhei-
ros; mal o avistavam, diziam uns para os outros: Silêncio, Bernardino vem vin-
do; e então calavam-se ou começavam a falar de outras coisas. Santo Efrém,
segundo o testemunho de São Gregório de Nissa, era tão modesto, que já a sua
vista estimulava à devoção, e não se podia vê-lo sem se sentir levado a se tornar
melhor. Mais admirável ainda é o que nos refere Suvio, do santo sacerdote e
mártir Luciano: só por sua modéstia moveu muitos pagãos a abraçarem a santa
Fé. O imperador Maximiano, que fôra disso informado, temendo sentir a sua
influência e ser obrigado a converter-se, citou-o à sua presença, mas não quis
vê-lo, e sujeitou-o ao interrogatório ocultando-o a suas vistas por uma cortina
estendida entre os dois.
Nosso ideal mais perfeito de modéstia foi, porém, o nosso Divino Salva-
dor mesmo, pois, como nota um célebre autor, os Evangelistas dizem, várias

98
vezes, que o Redentor levantou os olhos em certas ocasiões, dando a entender,
com isso, que tinha ordinariamente os olhos baixos. Por isso exalta o Apóstolo
a modéstia de seu Divino Mestre, escrevendo a seus discípulos: "Rogo-vos pela
mansidão e modéstia de Cristo" (II Cor 10, 1).
Concluo com as palavras de São Basílio a seus monges: "Se quisermos
que nossa alma tenha suas vistas sempre postas no Céu, filhos queridos, con-
servemos nossos olhos sempre voltados para a terra". De manhã, ao despertar,
devemos já pedir, com o Profeta: "Afastai meus olhos, Senhor, para que não
vejam a vaidade" (Sl 118, 37).

§ IV. DA GUARDA DO CORAÇÃO

A modéstia dos olhos pouco nos servirá se não vigiarmos sobre o nosso
coração. "Aplica-te com todo o cuidado possível à guarda do teu coração, diz o
Sábio (Prov 4, 27), porque é dele que procede a vida". É aqui o lugar apropria-
do para se dizer algumas palavras sobre as amizades e, primeiramente, sobre as
santas, depois sobre as puramente naturais e, afinal, sobre as perigosas.

1) Descrevendo São Paulo a corrupção moral dos gentios, enumerava en-


tre seus vícios a falta de sentimento e de susceptibilidade para a amizade. A
amizade, segundo São Tomás, é mesmo uma virtude. A perfeição não proíbe
se entretenham amizades, diz São Francisco de Sales; exige somente que sejam
santas e edificantes, a saber, só devem ser mantidas aquelas uniões espirituais
por meio das quais duas, três ou mais pessoas, comunicam entre si seus exercí-
cios de devoção, seus desejos piedosos e sentimentos nobres, tornando-se co-
mo que um só coração e uma só alma para a glória de Deus e o bem espiritual
próprio e alheio. Com toda a razão podem tais almas exclamar: "Vede quão
bom e suave é habitarem os irmãos em união" (Sl 132, 1). São Francisco diz
mais que, em tal caso, o suave bálsamo da caridade destila de coração em cora-
ção por meio dessas mútuas comunicações, e bem pode-se dizer que Deus lan-
ça Sua benção sobre tais amizades, por toda a eternidade (Fil., III, c. 19).
Tais amizades são recomendadas pela Escritura mesma, em termos elo-
qüentes: "Nada se pode comparar com o valor de um amigo fiel, e o valor do
ouro e da prata não iguala a bondade de sua fidelidade" (Ecli 6, 16). "Um amigo
fiel é um remédio para a vida e a mortalidade, e os que temem o Senhor en-
contram um tal" (Idem).
Mas como podeis aconselhar as amizades particulares, dirá alguém,
quando elas são tão rigorosamente condenadas por todos os ascetas? Respon-
do: As amizades particulares são proibidas unicamente nos claustros e com to-
da a razão, pois é imperiosamente necessário que todos os religiosos se amem

99
mutuamente com amor fraterno, para que haja uma vida comum claustral. Ora,
num claustro, as amizades particulares podem facilmente ocasionar perturba-
ções dessa mútua caridade, dando ocasião a invejas, suspeitas e outras misérias
humanas. São Basílio não hesitou dizer que as amizades particulares em um
convento são uma sementeira perpétua de invejas, de desconfianças e inimiza-
des. O mesmo acontece nas famílias em que o pai ou a mãe tem mais carinhos
para um filho que para os outros. Os filhos de Jacó odiavam seu irmão José,
porque seu pai lhe dedicava um amor especial.
Não há, além disso, nenhum motivo de se alimentar tais amizades num
estado religioso, pois, num convento, onde reinam a disciplina e a ordem, todos
os membros tendem ao mesmo fim, à perfeição, e não é necessário travar ami-
zades particulares para animar-se mutuamente ao serviço de Deus e ao trabalho
do aperfeiçoamento próprio.
Os que, vivendo no mundo, desejam dedicar-se à prática da virtude ver-
dadeira e sólida, precisam, pelo contrário, de se unir aos outros por uma ami-
zade santa e edificante, para poderem, por meio dela, se animar, se auxiliar e se
estimular ao bem.
Há no mundo poucas pessoas que tendem à perfeição e muitas que não
possuem o espírito de Deus e, por isso, é preciso que os bons, quanto possível,
evitem os que podem impedir seu adiantamento espiritual e travem amizade
com os que os podem auxiliar na prática do bem.

2) Quanto às amizades puramente naturais, deve-se dizer que elas têm


seu fundamento na nossa natureza, que nos compele a amar nossos pais, nossos
benfeitores e todos aqueles em quem vemos belas qualidades e com quem
simpatizamos. Esta espécie de amizade é o laço da família e da sociedade, mas
facilmente degenera em amizades falsas; por exemplo, se os pais, por um cari-
nho demasiado, toleram as faltas de seus filhos, ou se um amigo ofende a Deus
para agradar a seu amigo, etc. As amizades naturais só são agradáveis a Deus se
as santificarmos por meio da boa intenção; por exemplo, amando a nossos pais
e amigos por amor de Deus.

3) Por amizades perigosas entendem-se, em particular, as sensuais, isto é,


aquelas que se baseiam sobre uma complacência sensual, sobre a fruição co-
mum de prazeres dos sentidos, sobre certas qualidades fúteis e vãs de espírito e
coração. Essas amizades são já por si perigosas, mesmo que, no começo, nada
tenham de inconveniente, e devemos guardar nosso coração desembaraçado
delas.

100
a) "Quem não evita relações perigosas, cai facilmente no abismo", diz
Santo Agostinho (Serm. 293). O triste exemplo de Salomão bastaria para nos
encher de terror.
Depois de ter sido amado tanto por Deus, servindo ao Espírito Santo de
mão para escrever, travou relações com mulheres pagãs, já na sua velhice, e
caiu tão profundamente que chegou a sacrificar aos deuses. Isso, porém, não
nos deve estranhar, pois, será para admirar que alguém se queime, permane-
cendo no meio das chamas? - pergunta São Cipriano (De sing. cler.).
Mas em nossas conversas, graças a Deus, não ocorre nada de mal, dirá
alguém. Respondo: Todas as amizades que têm sua origem em afeições mera-
mente materiais são, pelo menos, um grande impedimento à perfeição, ainda
que não dessem ocasião a outras coisas. Elas, no mínimo, fazem-nos perder o
espírito de oração e recolhimento interior; a alma que está presa por uma afei-
ção natural poderá achar-se corporalmente na igreja, mas seu espírito estará se
entretendo com o objeto de seu amor; perderá o amor aos Santos Sacramentos;
não será mais sincera para com seu confessor, temendo que ele a obrigue a
romper com essa cadeia e, envergonhando-se de lhe descobrir sua afeição, não
lhe dirá a causa de sua tibieza, e assim se agrava, de dia para dia, seu estado las-
timoso. Ao ouvir que fala mal da pessoa amada, se enfurece, defende-a caloro-
samente; descuida-se da obediência, pois quando o confessor a exorta a renun-
ciar a tal amizade, procura mil desculpas para não ter de obedecer.
Não é só grande a perda espiritual que se sofre com essas amizades base-
adas sobre certas qualidades externas duma pessoa, mas, principalmente se for
de outro sexo, é também enorme o perigo que se corre de se se perder eterna-
mente. No começo tais amizades parecem indiferentes, mas tornam-se pouco a
pouco pecaminosas e, enfim, arrastam a alma ao pecado mortal. "São como o
fogo e a palha, e o demônio não cessa de assoprar até irromper o incêndio", diz
São Jerônimo.
Pessoas de diferentes sexos abrasam-se por causa da muita familiaridade,
com a mesma facilidade com que a palha atingida pelo fogo, e, em certo senti-
do, até com mais facilidade, porque o demônio emprega tudo quanto é apto
para atiçar o fogo. Santa Teresa viu-se um dia transportada ao inferno, onde
Deus lhe mostrou o lugar que lhe preparara, se não rompesse com um apego
puramente natural a um seu parente.

b) Se sentires em teu coração, alma cristã, uma tal afeição para com al-
guém, não há outro remédio para te libertares dela, senão cortá-la resolutamen-
te de uma vez para sempre, pois, se quiseres renunciá-la pouco a pouco, crê-
me, nunca chegarás a desfazer-te dela. Essas cadeias são dificílimas de romper,
e só o conseguirá quem as quebrar violentamente, duma só vez. E não venhas

101
com a desculpa de que, até agora, nada ocorreu de inconveniente, pois deves
saber que o demônio não começa com o pior, massó pouco a pouco leva a al-
ma imprudente às bordas do precipício e, então, com um leve empurrão, pre-
cipita-as no abismo.
É uma máxima aceita por todos os mestres da vida espiritual de que, nes-
te ponto, não há outro remédio senão fugir e afastar-se da ocasião. São Filipe
Néri costumava dizer que, nesse combate, só os covardes saem vencedores, isto
é, os que fogem da ocasião. Podemos resistir aos outros vícios ficando na ocasi-
ão, diz São Tomás (De mod. conf., c. 14), fazendo violência contra nós mes-
mos; mas o vício contrário à pureza, porém, só o poderemos vencer fugindo da
ocasião e renunciando às afeições perigosas.
Se sentires, porém, teu coração livre e desembaraçado de tais afeições,
toma todo o cuidado possível para não te emaranhares em laço algum, como já
se tem dado a muitos em razão de sua negligência. Eis o conselho que te dá São
Jerônimo (Ep. Ad Eust.): "Se, no trato com alguém, notares que alguma afeição
desregrada se quer apoderar de teu coração, apressa-te a sufocá-la antes que se
torne um gigante. Enquanto o leão é ainda pequeno, pode ser facilmente truci-
dado; uma vez crescido, tornar-se-á mui difícil e humanamente impossível".
Coisa verdadeiramente lamentável e vergonhosa seria se permitisses que
fizessem, em tua presença, gracejos indecentes. Não julgues que não pecas ca-
lando-te e simplesmente ouvindo tais gracejos; se não evitares o mais depressa
possível a companhia de um homem tão insolente, já cooperaste com o seu pe-
cado e te fizeste réu dele. Se receberes de alguém uma carta com palavras amo-
rosas, rasga-a imediatamente ou lança-a ao fogo e não lhe dês resposta. Se, por
motivo grave, tiveres de responder, faze-o então em poucas e sérias palavras, e
não dês a entender que notaste as tais palavras e muito menos que achaste nelas
qualquer prazer.

c) Não repliques também que não há perigo, porque a pessoa de que se


trata é piedosa. São Tomás de Aquino diz (De mod. conf., c. 14): "Quanto mais
santas são as pessoas pelas quais sentimos afeição particular, tanto mais deve-
mos nos acautelar, porque o alto apreço que fazemos de sua virtude mais nos
estimula ainda a amá-las". O padre Sertório Caputo, da Companhia de Jesus,
diz: "O demônio, a princípio, nos inspira amor à virtude daquela pessoa, depois
o amor à própria pessoa e, finalmente, nos lança na perdição". O Doutor Angé-
lico faz notar que o demônio sabe perfeitamente esconder um tal perigo: no
começo não dispara seta alguma que pareça envenenada, mas só tais que exci-
tem a afeição, ocasionando leves feridas do coração; em seguida, quando o
amor já está aceso, essas pessoas já não se tratam mais como anjos, mas como
homens de carne e sangue: trocam repetidos olhares e palavras amorosas, dese-

102
jam estar muitas vezes a sós, juntas e, por fim, a piedade espiritual degenera em
amor carnal.

d) São Boaventura indica cinco sinais dos quais se pode deduzir se a afei-
ção que a alguém nos prende é impura. Primeiro: se se entretêm conversas inú-
teis; e inúteis são todas as que levam muito tempo. Segundo: se ocorrem olha-
res e louvores mútuos. Terceiro: se se desculpam as faltas reciprocamente [evi-
tando correções para não desagradar]. Quarto: se aparecem pequenos ciúmes.
Quinto: se a separação causa certa inquietação. Eu ajunto ainda: Se se sente
grande prazer e gosto nas maneiras ou gentileza natural da pessoa amada, se se
deseja que a afeição seja correspondida, e se se não gosta de que outros obser-
vem, ouçam ou falem disso.

e) Mas, mesmo as pessoas que pretendem contrair matrimônio, estarão


obrigadas a sufocar a inclinação ou simpatia recíproca, suposto mesmo que seja
honesta? Me perguntará alguém. Se esses futuros esposos estiverem animados
de tais sentimentos, que estejam prontos a empregar todos os cuidados para
tornar remota a ocasião próxima do pecado, e resolvidos a nunca ofender a
Deus por causa de tal afeição, não precisarão romper com ela. A experiência,
porém, ensina que os mais nobres sentimentos degeneram facilmente em pai-
xão.
Por esse motivo os teólogos exigem muita cautela com essas pessoas. Sa-
bendo o quanto o coração humano é inclinado ao pecado e quão fraco quando
dominado por uma paixão, só permitem tais relacionamentos entre os jovens
quando estão em idade e têm vontade séria de se casar; além disso, que não
sejam travadas sem o consentimento dos pais, que não se prolonguem por mui-
to tempo e só se namorem quando estiver próximo o casamento; também lhes
interditam a conversa a sós, longe das vistas dos pais, grande familiaridade, e
tudo o que possa manchar a pureza da alma, seja por pensamentos, olhares,
palavras ou gestos.
Do filho de Tobias podemos aprender como os jovens devem se prepa-
rar para o casamento. Na cidade de Ragés, na Média, vivia uma piedosa donze-
la, de nome Sara, filha de Raguel. Estava profundamente aflita porque sete ra-
pazes, que a haviam sucessivamente desposado, haviam sido mortos pelo de-
mônio da impureza, Asmodeu, na primeira noite depois das núpcias. Ora, o
anjo Rafael, que acompanhara o jovem Tobias em sua viagem a Ragés, aconse-
lhou-o a pedir Sara em casamento. Ele, porém, a par do ocorrido com os ou-
tros homens, temia expor-se ao mesmo perigo. O Anjo, porém, tranquilizou-o,
dizendo: "Ouve-me... o demônio só tem poder sobre aqueles que abraçam o
estado conjugal excluindo a Deus de seus pensamentos, para satisfazerem uni-

103
camente a sua concupiscência, como o cavalo e a mula, que não têm entendi-
mento. Tu, porém, quando receberes a Sara, entra com ela no teu quarto por
três dias e três noites, guardando continência, e não te entregues a outra coisa
que à oração, e então a receberás em matrimônio no temor do Senhor, levado
mais pelo desejo de ter filhos que pela concupiscência, para que sejas abençoa-
do e teus filhos sirvam e glorifiquem a Deus; então nada terás a temer do de-
mônio". O jovem Tobias seguiu esse conselho, e seu casamento foi muito aben-
çoado por Deus.
Notemos igualmente as quatro exortações dadas a Sara por seus pais, ao
se despedirem dela: Primeiro, honra a teu sogro; segundo, ama a teu marido;
terceiro, cuida em governar bem tua casa; quarto, porta-te em tudo irrepreensi-
velmente. Estes avisos devem servir de norma a todos os jovens que pretendem
contrair matrimônio.

f) O que dissemos até aqui se refere ao trato com pessoas de diferente


sexo. O amor desregrado, todavia, pode existir também existir entre pessoas do
mesmo sexo, principalmente se são ainda moços e existe entre eles uma famili-
aridade por demais íntima. A este respeito, São Basílio diz o seguinte (Serm. de
abd. rev.): "Vós que sois ainda jovens, evitai a companhia de vossos iguais, pois,
por meio dessas amizades, o demônio já arrastou a muitos para o inferno". "Al-
guns começaram com uma afeição aparentemente santa, continua ele, mas
pouco a pouco precipitou-os o demônio num lodaçal de vícios os mais abomi-
náveis". Santa Ângela de Foligno se exprime de modo semelhante (Vit., c. 64):
"Ainda que seja o amor a fonte de todo o bem, não deixa de ser igualmente a
fonte de todo o mal. Não falo do amor impuro, que deve ser evitado em todo o
caso, mas da inclinação, em si inocente, que facilmente pode degenerar em
amor desordenado. O trato mui assíduo com outro, com protestos de afeição,
tem por consequência tornar nocivo o amor, visto que ele prende estreitamente
um coração ao outro, obscurecendo a afeição crescente cada vez mais a razão.
Em pouco tempo só quererá um o que o outro quer, e então não terá mais co-
ragem de resistir ao outro quando for convidado ao mal, e, assim, se perderão
ambos".
Por isso, os que se dedicam à educação da mocidade estão gravemente
obrigados a ter os olhos abertos nesse ponto, e não precisam ter escrúpulos,
suspeitando mal com algum motivo. Se notarem qualquer apego ou familiari-
dade entre dois jovens, intervenham imediatamente e conservem-nos rigorosa-
mente separados um do outro.

g) Aqui na terra cada um de nós anda por caminhos escabrosos e em tre-


vas, e se, além disso, ainda um anjo mau, isto é, um mau companheiro, que é

104
pior que um demônio, nos persegue e impele à perdição, como poderemos
escapar ilesos? Já Platão dizia: "Tomarás os mesmos modos daqueles com
quem convives". Segundo São João Crisóstomo, para se certificar dos hábitos de
alguém, basta saber com quem ele anda, já que os amigos ou são ou fazem-se
semelhantes uns aos outros. E isso por duas causas: primeiro, porque um se
esforça por imitar o outro para lhe ser agradável; segundo, porque o homem,
como nota Sêneca, é inclinado a fazer o que vê os outros fazerem. Dos israelitas
lemos: "Eles se mesclaram com os gentios e aprenderam suas obras" (Sl 105,
35). Devemos, portanto, não só fugir do comércio com os impuros, diz o Sábio,
mas também nos conservarmos longe de seus caminhos: "Meu filho, não andes
com eles e não ponhas o pé em seus caminhos" (Prov 1, 15). Devemos evitar
todo o trato com eles, suas conversas ou presentes, com os quais procuram nos
enredar. "Meu filho, se os pecadores te atraírem com seus afagos, não condes-
cendas com eles" (Prov 1, 10). "Cairá, talvez, uma ave, no laço armado na terra,
sem a isca?" (Am 3, 5). O demônio serve-se dos maus amigos como de iscas,
segundo Jeremias, para prender as almas em suas redes de pecado. "Meus ini-
migos, sem motivo, prenderam-me como se prende uma ave" (Jer 3, 52). Ele
diz 'sem motivo' porque, pergunto-se a um tal sedutor por que aliciou sua pobre
vítima ao pecado, responderá: não havia motivo; eu só queria que ela fizesse
como eu. É exatamente essa a astúcia do demônio, diz Santo Efrém: "Captura-
da uma alma em sua rede, serve-se dela como de uma armadilha para prender
a outra" (De rect. viv. rat., c. 22).
Fujamos, pois, a toda familiaridade com tais escorpiões infernais, como
se foge da peste. Digo: fujamos à familiaridade, isto é, não travemos amizade
com homens viciosos, evitando tomar parte em sua mesa, banquetes ou outros
convívios com eles. É impossível evitar todo o comércio com eles, porque então
teríamos de sair deste mundo, segundo o Apóstolo (I Cor 5, 10); contudo, é
bem possível evitar um trato mais familiar com eles, seguindo o conselho do
mesmo Apóstolo: "Eu vos escrevi que não tenhais comunicação com eles... com
um tal não deveis nem sequer cear". Disse ainda: Fujamos de tais escorpiões,
pois o profeta Ezequiel designa assim os sedutores: "Pervertedores estão contigo
e habitas com escorpiões" (Ez 2, 6).
Não ousarias, alma cristã, habitar com escorpiões, e certamente te afasta-
rias com toda a pressa de sua proximidade. Pois assim deves evitar os amigos
que dão escândalo e envenenam a tua alma com maus exemplos e conversas
perversas. Quanto mais estreitamente estão ligados a nós, tanto mais pernicio-
sos se tornam. "Os inimigos do homem são os seus domésticos" (Mat 10, 36).
Na Sagrada Escritura se diz: "Quem se compadecerá de um encantador mordi-
do pela serpente e de todos os que se aproximam de animais ferozes? Assim
também, quem se compadecerá daquele que se torna companheiro de um ho-

105
mem iníquo?" (Ecli 12, 13). Se um tal homem, por motivo do perigo a que se
expõe, cai no pecado e se precipita na condenação eterna, ninguém, nem Deus
nem os homens, terá compaixão dele, pois já fôra advertido do perigo.

§ V. DA VIRGINDADE

São Cipriano (De disc. et hab. virg.) denomina a multidão de virgens que
se consagram ao amor de seu Divino Esposo, de "a mais nobre porção da Igreja
de Cristo". Vários outros Santos Padres, como Santo Efrém, Santo Ambrósio,
Santo Agostinho, São Jerônimo, São Crisóstomo, escreveram livros inteiros em
louvor da virgindade.
Não é minha intenção expor aqui todos os méritos e vantagens que ad-
quirem as pessoas que consagraram a Deus sua virgindade; disso tratarei exten-
samente no capítulo IV da III parte, que trata do voto de castidade [que repro-
duzimos logo abaixo]. Aqui farei seguir, simplesmente, uma instrução para os
que levam uma vida virginal sem terem emitido o voto de castidade.
As almas virgens são extraordinariamente belas aos olhos de Deus: "Se-
rão como os Anjos de Deus no Céu" (Mat 22, 30). Barônio conta que na morte
de uma virgem, chamada Geórgia, uma multidão de pombos adejavam ao re-
dor da casa e, quando seu cadáver foi transportado à igreja, pousaram no teto,
exatamente em cima do lugar onde se achava o caixão, e daí não se retiraram
até ser sepultada a piedosa virgem (An. 480). Essas pombas certamente eram
Anjos, que queriam prestar as últimas honras àquele corpo virginal.
As almas virginais, que renunciaram ao casamento para se dedicarem ex-
clusivamente ao amor de Jesus Cristo, tornam-se esposas do Filho de Deus.
Nos Santos Evangelhos, Jesus Cristo é chamado Pai, Mestre, Pastor das almas;
referindo-se às virgens, porém, dá-Lhe o nome de Esposo: "Elas saíram a rece-
ber o Esposo e a Esposa" (Mat 25, 1). Por isso, tinha razão Santa Inês, respon-
dendo, segundo Santo Ambrósio, aos que lhe ofereciam a mão do filho do pre-
feito de Roma: "Ofereceis-me um esposo? Já encontrei um muito melhor" (De
virg., 1. 1). Semelhante resposta deu Santa Domitila, sobrinha do imperador
Domiciano, aos que queriam persuadi-la a casar-se com Aureliano: "Dizei-me: a
quem deveria escolher por esposo uma jovem pedida em casamento por um
monarca e por um camponês? Para casar-me com Aureliano, teria de renunciar
ao Rei do Céu. Ora, isso seria uma loucura inominável, que nunca praticarei".
E, firme nessa resolução, deixou-se queimar viva, para poder permanecer fiel a
Jesus Cristo, a Quem consagrara sua virgindade.
Quem poderá imaginar a glória que Deus reserva a Suas castas esposas lá
no Céu? Os teólogos são de opinião que no Céu existe uma glória especial re-
servada às virgens, uma coroa ou alegria particular, de que estão privados os

106
outros Santos. Mas, dir-me-á uma ou outra jovem: 'Ora, casando-me também
poderei santificar-me'. Não receberás a resposta da minha boca, mas da de São
Paulo, que te dirá também a diferença que existe entre as virgens e as casadas:
"A mulher virgem pensa nas coisas que são do Senhor, para que seja santa no
corpo e no espírito. Mas, a que é casada, pensa nas coisas que são do mundo,
em como agradar ao marido. Em verdade, digo isso para vosso proveito... para
vos exortar ao que vos convém e vos facilita a orar ao Senhor sem embaraço" (I
Cor 7, 34).
Deve-se, pois, notar que as casadas, sem dúvida alguma, podem ser san-
tas segundo o espírito, ao passo que as virgens, que amam a Deus, o são de
corpo e espírito. Tome-se também em consideração estas palavras: "O que faci-
lita servir a Deus sem impedimento". Quantos impedimentos não encontram as
casadas na sua tendência à santidade! E esses obstáculos são tanto maiores,
quanto mais elevada a sua condição [social].
Para nos fazermos santos temos de empregar os meios e, antes de tudo,
nos consagrar à oração mental, receber amiúde os Santos Sacramentos, e pen-
sar sem interrupção em Deus. Ora, quando uma senhora casada achará tempo
para cuidar naquilo que é do Senhor? Ela se ocupará com as coisas deste mun-
do, diz São Paulo, cuidará em agradar a seu marido, olhará pelas necessidades
de sua família, pelo seu sustento e vestes, vigiará a educação de seus filhos,
atenderá aos parentes e amigos, pensará continuamente nos seus afazeres; seu
coração ficará assim dividido entre seus filhos, seu marido e Deus. Como en-
contrar tempo para se entregar a longas orações mentais, para receber muitas
vezes a Comunhão, se nem lhe resta tempo para cuidar de todas as obrigações
de sua casa e estado? O marido quer ser atendido, os filhos gritam e choram,
querendo mil coisas diversas. Como meditar entre tantos cuidados e perturba-
ções? Muitas mães de família nem mesmo aos domingos podem ir à igreja. É
verdade, ela pode conservar a sua boa vontade, mas sempre lhe será custoso
cuidar, como convém, do que é do Senhor. Não há dúvida de que pode adqui-
rir grandes merecimentos em razão de tais provações, entregando-se à Vontade
de Deus que, em tais condições, não que mais do que um sacrifício perene de
resignação e paciência; mas, no meio de tantas distrações e tribulações, é quase
impossível, é mesmo heroísmo, praticar a virtude da paciência e conformidade,
sem o exercício da oração e a recepção dos Sacramentos... Mas, prouvera a
Deus que as senhoras casadas nada mais tivessem a deplorar que a falta de
tempo necessário para seus exercícios de piedade.
A má conduta do marido, os desgostos causados pelos filhos, os negócios
da casa, as molestas atenções que se devem à sogra e aos cunhados, as suspeitas,
as inquietações de consciência quanto à vida conjugal e educação dos filhos,
tudo isso origina um mar de tribulações, no qual passam sua vida entre suspiros

107
e lágrimas. E felizes se conseguirem salvar sua alma e alcançarem de Deus a
graça de não deixarem o inferno desta vida para se precipitarem no inferno
eterno! Esta é a bela sorte das jovens que se consagram ao mundo...
Mas, entre tantas mulheres casadas, não haverá uma só que se santifique?
Sim, existem também Santas casadas. Porém, quais são estas? As que se santifi-
cam pelo martírio, que sofrem tudo por amor de Deus, com uma paciência que
nada abala. Mas, quantas se elevarão a tal perfeição? Ah! Mui poucas. E se en-
contrares uma tal, verás que deplora amargamente ter escolhido o partido do
mundo, tendo podido, com tanta facilidade, consagrar-se a Jesus Cristo.
Verdadeiramente felizes são aquelas virgens que se consagram por inteiro
e exclusivamente ao seu Divino Salvador. Estas estão livres dos perigos em que
se acham as casadas. Seu coração está desembaraçado do apego aos filhos e
marido, aos bens transitórios, ao luxo vão ou a outras coisas do mundo.
E, quando as mulheres casadas se vêem obrigadas a empregar muitos
cuidados e grandes somas com seu traje, para aparecer ao mundo à altura de
sua posição e agradar a seu marido, a virgem que se consagrou a Jesus Cristo se
contenta com um vestido simples e desataviado, pois, do contrário, daria escân-
dalo. Todos os seus pensamentos e cuidados tendem a agradar a Jesus, a quem
dedicou seu corpo, sua alma, seu amor todo. Assim, possui ela também mais
liberdade de espírito para pensar em Deus e mais tempo para se entregar à ora-
ção e receber os Sacramentos.
Se não te sentes chamada, alma cristã, ao estado conjugal, nem ao religio-
so, mas desejas fazer-te santa no mundo, como verdadeira esposa de Jesus Cris-
to, toma a peito os seguintes conselhos: Para a santificação, não é suficiente que
uma virgem traga ilibada a sua pureza e use o nome de esposa de Jesus Cristo; é
preciso também praticar as virtudes de uma esposa de Jesus. No Evangelho é o
reino dos Céus comparado a umas virgens. Mas que virgens? Às virgens pru-
dentes e não às loucas. Aquelas foram introduzidas na sala das núpcias; a estas
foi a porta fechada e ouviram do Esposo: Não deixais de ser virgens, mas eu
não vos reconheço por esposas minhas. As verdadeiras esposas de Jesus se-
guem o Esposo para onde quer que Ele vá (Apoc 14, 4). que quer dizer seguir o
Esposo? Santo Agostinho explica que é prender-se a Ele (De s. virg., c. 7). De-
pois de Lhe teres sacrificado teu corpo, deves ainda consagrar-Lhe todo o teu
coração, de tal forma que só te ocupes em amá-lO. Para isso, deves empregar
os meios para pertencer exclusivamente a Ele.
O primeiro é a oração mental, a que te deves dedicar com todo o zelo.
Não julgues que, para isso, é necessário se recolher a um convento ou passar
todo o dia na igreja. Não há dúvida que em uma casa de família há barulho e
perturbações de pessoas que entram e saem; mas quem tem boa vontade en-
contra sempre jeito e tempo para fazer suas orações; por exemplo, de manhã,

108
antes de se levantarem as pessoas da casa, ou de noite, depois de já se terem
recolhido. Também não se requer que se esteja sempre de joelhos; podem-se
recitar as orações durante o trabalho ou caminhando; basta elevar
o pensamento a Deus, pensar na Paixão de Cristo ou meditar sobre
qualquer outro assunto devoto.
O segundo meio é a recepção assídua dos santos sacramentos da Peni-
tência e Eucaristia. (...) Quanto à Comunhão, não é muita coisa se for recebida
só por obediência; deve-se ter desejo dela, e pedi-la. Esse Divino Pão quer ser
desejado e que se tenha fome d’Ele. A Comunhão é que faz com que as espo-
sas de Jesus permaneçam fiéis a seu Divino Esposo, já que a Ela devem em es-
pecial a conservação de sua pureza. Este Divino Sacramento conserva na alma
toda espécie de virtudes, sendo, porém, seu efeito principal, conservar ilibado o
lírio da virgindade, dando-Lhe o profeta, por isso, o nome de "nutrimento dos
escolhidos e vinho que gera virgens" (Zac 9, 17).
O terceiro meio é o recolhimento e a vigilância. O Divino Esposo com-
para Sua esposa com um lírio entre os espinhos (Cânt 2, 2). Uma donzela que
quer viver na sociedade, entre divertimentos e distrações mundanas, não pode-
rá permanecer fiel a Jesus Cristo. Deve, pelo contrário, estar sempre circundada
dos espinhos da abstinência e mortificações, e guardar, em especial no trato
com homens, a maior reserva, e rigorosa modéstia dos olhos e palavras e,
mesmo, se necessário, mostrar-se austera e descortês.
Os espinhos são o que protegem os lírios, isto é, as virgens; sem eles,
perder-se-ão em pouco tempo. O Senhor compara a beleza de Sua esposa com
a da pomba (Cânt 1, 9). Por quê? Porque a pomba, por instinto natural, evita a
companhia dos outros pássaros. Assim, uma virgem é bela aos olhos de Jesus,
se leva uma vida retirada e se se esconde, quanto possível, aos olhos do mundo.
São Jerônimo diz (Ep. ad Eust.) que o Esposo das almas é cioso. Desgosta-se
muito, por isso, de uma virgem que, depois de sehaver consagrado ao Seu
amor, gosta de mostrar-se e procura agradar aos homens.
Pessoas verdadeiramente virtuosas preferem desfigurar-se a si mesmas a
tornar-se objeto de amor criminoso. Se, por desgraça, acontecer tornar-se uma
virgem vítima de uma violência qualquer, sem culpa sua, não deve inquietar-se
com isso, já que sua pureza não fica alterada. Foi o que Santa Lúcia respondeu
ao tirano que a ameaçava de entregá-la ao prostíbulo: "Se eu for desonrada con-
tra minha vontade, receberei uma coroa dupla". Com razão se diz: Não o sen-
timento, mas o consentimento fere a alma. Além disso, podemos ficar conven-
cidos que uma virgem modesta e reservada saberá também fazer-se respeitar.
O quarto meio é a mortificação dos sentidos. Uma virgem que quer con-
serva-se pura, diz São Basílio, deve ser pura na língua, falando sempre com de-
coro e, se for necessário tratar com homens, só dizer o indispensável; pura nos

109
ouvidos, evitando ouvir conversas mundanas; pura nos olhos, conservando-os
fechados ou, ao menos, baixos, quando na companhia de homens; pura no ta-
to, usando do máximo cuidado quanto aos outros e quanto a si mesma; pura
principalmente no espírito, esforçando-se por resistir aos maus pensamentos,
recorrendo a Jesus e Maria. Para conseguir isso, é preciso que ela mortifique
seu corpo com jejuns e outras penitências. Jesus Cristo é um 'Esposo de Sangue'
(Ex 4, 26), que desposou nossa alma na ara da Cruz e, por amor dela, derra-
mou até a última gota de Sangue. Por esse motivo, Suas esposas suportam an-
gústias, doenças, dores, maus tratos e injúrias, não só com paciência, mas até
com alegria. Assim deve-se entender o texto da Escritura, que diz: "As Virgens
seguem o Cordeiro para onde quer que Ele vá" (Apoc 14, 4). Elas seguem jubi-
losas e cantando a Jesus, seu Divino Esposo, mesmo no meio dos opróbrios e
penas, a exemplo de milhares de virgens que foram ao encontro da morte e das
torturas, cheias de alegria.
Finalmente, deves recomendar-te instantemente a Maria, a Rainha das
Virgens, se quiseres perseverar no teu estado de virgindade perpétua. Ela é que
prepara e conclui a união das almas com Seu Divino Filho; Ela que alcança pa-
ra essas almas escolhidas a graça da perseverança, pois, sem a Sua assistência,
todas tornar-se-iam infiéis.
Vós, que ledes estas linhas, - dirijo-me àquelas que se sentem chamadas
pelo Divino Esposo a renunciar ao Matrimônio - vós, que quereis pertencer a
Jesus Cristo, não vos obrigueis desde logo por um voto, nem façais, logo no
começo, o voto de castidade perpétua; fazei esse voto quando Deus vo-lo inspi-
rar e o confessor o permitir. Aconselho-vos, porém, que agradeçais a Jesus Cris-
to, vos ter chamado a Seu especial amor, e vos ofereçais ao Senhor como coisa
que Lhe é consagrada e própria para todo o sempre. E, por isso, dizei-Lhe as-
sim: Ó meu Jesus, meu Deus e Salvador, que por mim morrestes, perdoai-me
se também eu ouso chamar-vos meu Esposo. Ouso porque vejo que Vos agrada
chamar-me a essa honra. Essa graça é tão grande, que não Vo-la posso agrade-
cer suficientemente. Eu merecia estar agora ardendo no inferno, porém, em vez
de me castigar, escolheis-me para esposa Vossa. Pois bem, meu Divino Salva-
dor, eu renuncio ao mundo, eu renuncio a tudo por amor de Vós e a Vós me
entrego inteira e irrevogavelmente. De hoje em diante sereis meu único bem,
meu único amor. Vejo que quereis possuir meu coração inteiro: ei-lo, entrego-o
sem restrição. Aceitai meu sacrifício e não me repulseis como eu mereceria.
Esquecei-Vos de todas as ofensas que Vos tenho feito até hoje: detesto-as de
todo o coração. Ah! Tivesse eu morrido antes de Vos haver ofendido! Perdoai-
me em Vosso amor, e concedei-me a graça de Vos permanecer fiel e nunca
mais Vos abandonar. Vós, ó meu Esposo, Vos entregastes todo a mim; eis-me
aqui, eu também quero entregar-me toda a Vós. Ó Maria, minha Rainha e mi-

110
nha Mãe, prendei meu coração ao Coração de Jesus Cristo; ligai-me tão forte-
mente a Ele, que nunca mais possa desprender-me de Vosso Divino Filho.

§ VI. DO VOTO DE CASTIDADE

I. Uma alma que consagra a Deus a sua virgindade torna-se uma esposa
de Jesus Cristo, e por isso o Apóstolo não hesita em escrever (II Cor 11, 2): "Eu
vos desposei com um Esposo, com Cristo, para vos apresentar a Ele como vir-
gem pura". Jesus Cristo mesmo se dá como Esposo das virgens, na parábola das
dez virgens: "Saíram ao encontro do Esposo... e entraram com Ele para as núp-
cias" (Mat 25, 10). O Divino Salvador deixa-se chamar pelos outros fiéis de
Mestre, Pastor e Pai; quer, porém, ser chamado de Esposo pelas almas virgens.
Esses desponsais com o Senhor, se realizam por meio da fé: "Eu me desposarei
contigo pela fé" (Os 2, 20). A virtude da virgindade é um fruto especialíssimo
dos merecimentos de Jesus Cristo, e por isso se diz, no Apocalipse (14, 4), que
as virgens formam o cortejo do Cordeiro. A Santíssima Virgem revelou a uma
alma devota que uma esposa de Jesus Cristo deve, acima de todas as virtudes,
amar a pureza, porque ela a torna de modo especial semelhante a seu Divino
Esposo. São Bernardo diz que todas as almas justas são esposas do Senhor,
"mas de um modo particular vale isso das almas virgens", como nota Santo An-
tônio de Pádua. Por isso São Fulgêncio chama a Jesus Cristo o Esposo de todas
as virgens consagradas a Deus.
Uma moça que quer permanecer no mundo e casar-se, se é prudente, se
informa com todo o cuidado a respeito dos que solicitam a sua mão, para co-
nhecer o mais digno e o mais capaz de torná-la feliz aqui na terra. A pessoa reli-
giosa, por sua vez, desposa-se, pelos votos, com Nosso Senhor Jesus Cristo.
Procuremos a esposa dos Cânticos, que sabe perfeitamente avaliar as qualida-
des desse Esposo Divino, e perguntemos-lhe: 'Quem é o vosso amado, ó santa
esposa? Quem é aquele que possui todo o vosso coração e vos tornou a mais
feliz das mulheres?' Ela responde: 'Meu Amado é branco e vermelho: é branco
por Sua pureza, e vermelho pela chama do amor em que se abrasa por Sua es-
posa; em uma palavra, Ele é tão belo, tão perfeito em todas as virtudes, que não
há nem pode haver um outro esposo mais nobre ou mais amoroso que Ele'.
"Nem quem O iguale em Sua grandeza, nem em Sua beleza, nem em Sua gene-
rosidade", diz Santo Euquério. Por isso escreve Santo Inácio de Antioquia:
"Aquelas bem-aventuradas virgens, que se consagraram a Jesus Cristo, podem
estar certas de que não encontrarão, nem no céu nem na terra, um esposo tão
belo, tão nobre, tão rico, tão amável como Aquele que lhes foi dado, Jesus Cris-
to".

111
Santa Clara de Montefalco dizia que prezava tanto sua virgindade, que
antes quereria sofrer durante toda a sua vida as penas do inferno, do que perder
esse valioso tesouro. Com toda a razão, pois, muitas virgens virtuosas renuncia-
ram a casamentos principescos para permanecerem esposas de Jesus Cristo.
Santa Joana, infanta de Portugal, renunciou à mão de Luís XI, rei da França; a
Beata Inês de Praga, à do imperador Frederico II; Isabel, filha do rei da Hun-
gria e herdeira do reino, à de Henrique, arquiduque da Áustria, e muitas outras
procederam do mesmo modo.
Uma virgem que se consagra ao Senhor, diz Teodoreto, está livre de to-
do o cuidado inútil. Não tem outra coisa a fazer senão entreter-se contínua e
familiarmente com Deus. Isso indica o Apóstolo quando diz que a virgem "é
santa no corpo e na alma" (I Cor 7, 34); santa no corpo pela castidade, santa no
espírito por seu comércio íntimo com Deus. "Se ela não tivesse outra recom-
pensa a esperar, diz Santo Anselmo, só por estar livre dos cuidados seculares e
não ter outra obrigação, já deveria ser tida por sumamente feliz". Do que se vê
que as virgens não só receberão uma imensa glória no Céu, mas já serão re-
compensadas antecipadamente aqui na terra, com uma paz inalterável.
As virgens que se consagram ao amor de Jesus Cristo, ofertando-Lhe o lí-
rio da pureza do coração, tornam-se tão agradáveis a Deus como os Santos An-
jos, - certamente um efeito sublime da castidade virginal. Todas as virgens que
buscam a perfeição são esposas queridas de Jesus Cristo, porque Lhe consagra-
ram seu corpo e sua alma, e nada mais buscam nesta vida que agradar-Lhe. São
João foi o discípulo amado de Jesus, porque guardou a virgindade. Justamente
por esse motivo amava-o Jesus mais que aos outros discípulos, como a Igreja o
insinua quando diz: "Foi escolhido como virgem pelo Senhor, e mais amado
que todos os outros".
As virgens são chamadas, na Sagrada Escritura, as primícias de Deus:
"São virgens; esses seguem o Cordeiro aonde quer que Ele vá. Esses foram
comprados dentre os homens, para serem as primícias para Deus e para o
Cordeiro" (Apoc 14, 4). Mas por que são chamados primícias de Deus? O Car-
deal Hugo responde: "Como os primeiros frutos são mais agradáveis que os ou-
tros, assim também as virgens consagradas a Deus agradam mais ao Coração
deste e constituem o objeto de seu especial amor".
Diz-se ainda, na Sagrada Escritura, que o Esposo Divino "se apascenta
entre os lírios" (Cânt 2, 16). Esses lírios representam as virgens que conservam
sua pureza por amor de Deus. Um expositor nota o seguinte nessa passagem
dos Cânticos: "Enquanto o demônio procura a imundície da impureza, Jesus
Cristo se apascenta entre os lírios da castidade".
O que, porém, deve aumentar consideravelmente a nossos olhos o valor
da virgindade, é o louvor extraordinário que lhe tece o Espírito Santo, dizendo:

112
"Tudo o que se aprecia não é comparável a uma alma continente" (Ecli 26, 20).
Isso mesmo nos deu a entender a Santíssima Virgem, quando disse ao Arcanjo
que Lhe anunciava a divina maternidade: "Como se dará isso, se não conheço
varão?" (Lc 1, 14). Maria, com essas palavras, mostrou que preferiria renunciar
à dignidade de Mãe de Deus, a perder o tesouro de Sua virgindade. Segundo
São Cipriano, a pureza virginal é a rainha de todas as virtudes e o complemento
de todos os bens. Santo Efrém escreve que as virgens que guardam a sua pureza
por amor de Jesus Cristo, serão favorecidas por Ele em todos os pontos. São
Bernardo acrescenta que a virgindade habilita a alma, de um modo todo espe-
cial, a ver o Divino Esposo nesta vida pela fé, e na outra pela luz da glória.
Imensa é a glória que Jesus Cristo prepara no Céu às Suas esposas que
na terra Lhe consagraram sua virgindade. Nosso Senhor mostrou um dia à Sua
grande serva Lucrécia Orsini os sublimes tronos que ocuparão aqueles que ser-
viram a Jesus Cristo em pureza virginal. Ao que exclamou ela: "Oh! Quão agra-
dáveis não são a Jesus e a Maria as virgens!" Os teólogos afirmam que as virgens
receberão no Céu uma auréola especial, sendo ornadas com uma luzente coroa
de honra e glória, pois se diz na Sagrada Escritura, a respeito das virgens: "Nin-
guém podia cantar esse cântico, senão aqueles cento e quarenta e quatro mil
que foram comprados na terra". Explicando essa passagem, diz Santo Agostinho
que a glória que Jesus Cristo concede às Virgens não confere aos outros San-
tos.

II. Grande é a satisfação de Jesus Cristo quando alguém se associa ao


número de Suas esposas. Isso declaram aquelas palavras dos Cânticos: "Vinde,
ó filhas de Sião, e vede o rei Salomão com o diadema com o qual o coroou sua
mãe no dia de suas núpcias, no dia da alegria de seu coração" (Cânt 3, 11). Isso,
porém, vale só daquelas almas que se consagraram sem restrição ao amor do
Esposo Divino. Desposando Jesus uma tal alma, quer que todo o Céu se alegre
com Ele e entoe hinos de regozijo: "Alegremo-nos e exultemos e demos-Lhe
glória, porque são chegadas as bodas do Cordeiro e Sua esposa está ornada"
(Apoc 19, 7). Os ornatos com que Jesus quer ver ataviadas Suas esposas são as
virtudes, particularmente o amor e a pureza, que são apresentadas nos Cânticos
como coroas de prata e de ouro: "Nós te faremos umas cadeias de ouro listra-
das de prata" (Cant 1, 10). São estas as vestes pomposas e as joias com que o
Senhor atavia Suas esposas, e das quais fala Santa Inês: "Ele circundou minha
direita e meu pescoço com um colar de pedras preciosas, revestiu-me com um
hábito bordado a ouro e ornado com artísticos relevos e deslumbrantes ador-
nos".
Os seculares buscam coisas terrenas, mas as esposas de Jesus Cristo nada
mais querem senão Deus; por isso delas se pode afirmar ao pé da letra: "Esta é

113
a geração dos que buscam a Deus" (Sl 23, 6). "Ó esposas do Redentor, exclama
São Tomás de Villanova, não deveis buscar qual de vós sobrepuja as outras por
seu nascimento, seus talentos ou fortuna; examinai, antes, quem é mais agradá-
vel ao Esposo Divino, quem vive unida mais intimamente a Ele, quem é mais
humilde, pobre e obediente". Ouçamos também o que diz o Espírito Santo:
"Filho, quando entrares ao serviço de Deus... prepara tua alma para a tentação"
(Ecli 2, 1), para sofreres com humildade e paciência, pois "o ouro e a prata se
provam no fogo, e os homens que Deus quer receber, na fornalha da humilha-
ção" (Id. v. 5). "Ninguém pode servir a dois senhores" (Mat 6, 24), a Deus e ao
mundo. quem, portanto, quiser consagrar-se a Deus deve renunciar ao mundo,
e quem quiser tornar-se esposa de Jesus Cristo deverá exclamar incessantemen-
te: "Deus só é todo o meu tesouro e meu único bem".
São José de Calazans diz que, se não se der a Jesus todo o coração, não
se Lhe deu nada. Isso é inteiramente verdade, porque nosso coração já é em si
muito pequeno para amar dignamente a um Deus que merece um amor infini-
to; e esse pequeno coração deveria ainda ser dividido entre Deus e as criaturas?
Como poderás, pois, tu, alma cristã, te incomodares com o mundo, de-
pois de te consagrares a Deus? Esquece de tudo o mais e procura guardar o teu
coração inteiro para teu Divino Esposo, que escolheste para Lhe dedicares todo
o teu amor. Eu disse: teu coração inteiro, porque Jesus Cristo quer que Sua es-
posa seja "um jardim fechado e uma fonte selada" (Cânt 4, 12); um jardim fe-
chado, pois não deve receber a ninguém mais senão a seu Divino Esposo; uma
fonte selada, porque esse Divino Esposo é zeloso e não permite que encontre
entrada no coração de sua esposa outro amor que o amor por Ele. Por isso diz-
Lhe: "Quero que me coloques como um selo sobre teu coração e sobre teu
braço" (Cant 8, 6), para que a ninguém mais ames senão a Mim, e para que to-
dos os teus atos sejam feitos com a única intenção de Me agradares. O Amado
é colocado como um selo sobre o coração e o braço, diz São Gregório, quando
a alma mostra por sua vontade (isto é, o coração) e por suas ações (isto é, o bra-
ço), quanto ama a seu celeste Esposo.
Quando o amor divino reina numa alma, expulsa toda a afeição que não
se refere a Deus, pois "o amor é forte como a morte" (Id. it.). Como nada há
que possa resistir à veemência da morte quando é chegada a sua hora, assim
também não há nenhum impedimento e nenhuma dificuldade que não seja su-
perada pelo amor divino, quando ele se apodera de um coração. "Se um ho-
mem der todas as riquezas de sua casa, ele as desprezará como se nada tivesse
dado" (Id., v. 7). Um coração que ama a Deus,despreza tudo o que lhe oferece
e pode oferecer o mundo; numa palavra, ele despreza tudo o que não é Deus.
São Bernardo diz que Deus, como nosso Senhor, exige de nós temor; como
Pai, respeito; como Esposo, porém, unicamente amor.

114
A Venerável Francisca Farnese não conhecia meio mais eficaz para esti-
mular a si e às suas companheiras a tender à perfeição, do que a recordação de
que eram esposas de Jesus Cristo. Está fora de dúvida, dizia ela, que cada uma
de vós foi escolhida por Deus para se tornar santa, pois que vos concedeu a
grande honra de vos fazer Suas esposas. E, de fato, é essa uma graça inapreciá-
vel, que exige uma fiel cooperação. Santo Agostinho escreveu a uma virgem
consagrada a Deus: "Tens um Esposo que é mais belo que tudo o que existe no
Céu e na terra, e que te deu um penhor seguro de Seu amor escolhendo-te para
Sua esposa. Podes concluir disso quão obrigada estás a pagar o Seu amor". Ó
esposa de Jesus Cristo, não te ocupes mais contigo e com o mundo; não per-
tences mais ao mundo, nem a ti mesma, mas a Deus; e cuida unicamente em
viver para esse Esposo que escolheste.
Escolheste a Deus por Esposo, mas primeiramente te escolheu o Senhor
para Sua esposa. Quantas almas não deixou Ele no mundo, não lhes conce-
dendo os favores que a ti fez? O Salvador preferiu-te a todas essas almas, não
por seres mais digna, mas por te amar mais que às outras. Por isso te diz o Se-
nhor, pela boca do Profeta (Ez 16, 8), que o tempo que te resta de vida é "um
tempo para amar". Deves ligar-te a Jesus, teu Esposo, com toda a tua confiança
e, com todo o teu amor, prender-te a Ele, que te amou desde a eternidade, que
te criou por Sua bondade, e te chamou a Seu santo amor por meio de tantas
graças especiais. Por isso, se o mundo solicitar o teu amor, ó esposa de Jesus
Cristo, diz-lhe com Santa Inês: "Aparta-te de mim, pábulo da morte. Desejas o
meu amor, mas eu não posso amar a mais ninguém do que a meu Deus, que
me amou primeiro". "Porque és a esposa de um Deus, diz São Jerônimo, reves-
te-te de um santo orgulho". Os seculares se orgulham de sua união com pessoas
nobres e ricas; tu, porém, podes te gloriar de uma sorte muito melhor, porque
te tornaste esposa de um Rei Celeste. Dize, pois, cheia de alegria e santo orgu-
lho: "Achei a quem meu coração ama; prendê-lo-ei com meu amor e não O
largarei mais" (Cant 3, 4).
De fato, é uma imensa felicidade para uma virgem quando ela pode glo-
riar-se e dizer: "Aquele a quem os Anjos do Céu desejam servir, é meu Esposo.
Meu Criador escolheu-me para Sua esposa, e, como Ele é o Rei e o Senhor do
mundo, cingiu-me igualmente com uma coroa de rainha".
Deves saber, entretanto, ó esposa do Senhor que lês esses louvores, que
não possuis irrevogavelmente essa coroa enquanto permaneceres aqui na terra;
poderás perdê-la novamente por tua culpa; para que ninguém ta roube, segura-a
fortemente (Apoc 3, 11). Renuncia às criaturas, une-te cada vez mais intima-
mente a Jesus Cristo pelo amor e pela oração, e suplica-Lhe sem cessar que não
permita que te tornes outra vez infiel. Deves dizer-Lhe: Ó Jesus, meu divino
Esposo, não permitais que me separe de Vós.

115
E quando as criaturas quiserem apoderar-se de teu e daí expulsar Jesus
Cristo, dize desassombradamente com o Apóstolo, confiada na assistência divi-
na: "Quem me separará do amor de Jesus Cristo? Nem a morte, nem a vida,
nem criatura alguma será capaz de nos separar do amor de Deus" (Rom 8, 35).31

31
Texto extraído de “Escola da Perfeição Cristã”, compilação de textos do Santo Doutor Afonso Maria de
Ligório pelo padre Saint-Omer, CSSR, traduzido pelo pe. José Lopes, CSSR, quarta edição, Editora Vozez,
Petrópoles, 1955, págs. 186/204 e 338-343

116
A Virgem Maria Santíssima, modelo castíssimo
5 de pureza

Nunca os autores sacros foram tão inspirados quando falaram de Maria


Santíssima, de modo especial quando dissertaram sobre a sua castidade. Dentre
estes destaca-se o grande apóstolo marial Santo Afonso Maria de Ligório:
“Depois da queda de Adão, a virtude da castidade é a mais difícil de se
praticar, por causa da rebelião dos sentidos contra a razão. Entre todas as bata-
lhas que tem de levar o homem, disse Santo Agostinho, as mais sangrentas são
as batalhas da castidade, porque o combate é de todos os dias e raras são as vi-
tórias. Porém seja sempre bendito e louvado o Senhor que nos deixou em Ma-
ria um acabado modelo desta virtude.
“Com razão Maria é chamada Virgem das virgens, diz Santo Alberto
Magno, porque foi a primeira que, sem conselho e sem exemplo de ninguém,

117
fez a Deus oferecimento de sua virgindade, dando a todos o exemplo de virgi-
nal pureza, como o havia profetizado David: “Ao rei é conduzida entre broca-
dos, suas companheiras, virgens depois dela, trazidas são a ti. Com gozo e rego-
zijos são levadas, penetram na câmara do rei” (Salmo 44, 15-16). Fez, pois,
profissão de virgindade sem conselho e sem exemplo, e assim, o pergunta São
Bernardo: Quem te ensinou a agradar a Deus com a virgindade e a viver na ter-
ra vida angélica? Foi o mesmo Jesus Cristo, responde Sofronio, que escolheu
por Mãe a esta puríssima Virgem, para apresentar a todo o mundo o exemplo
da castidade. Por isto Santo Ambrósio chama Maria de Porta-Estandarte da
virgindade.
“Por causa desta pureza, chamou à Virgem o Espírito Santo formosa
como a pomba (Cant 7, 9). Maria é a puríssima pombinha, diz Aponio. Por sua
pureza se a chamou também lírio: Como lírio entre os espinhos, assim é minha
amada entre as donzelas (Cant, 2, 2). A respeito do que adverte Dionísio Cartu-
siano que foi chamada lírio entre os espinhos porque todas as demais virgens
foram espinhos para si ou para os outros, ao passo que a Santíssima Virgem
não o foi para si nem para os demais. Só em deixar-se ver infundia a todos pen-
samentos e afetos puros; e o confirma São Tomás com estas palavras: A for-
mosura da Santíssima Virgem convidada a quantos a olhassem à prática da cas-
tidade. Assegura São Jerônimo que ele tem por certo que São José permane-
ceu sempre virgem devido à companhia de Maria, pois apostrofando ao herege
Helvídio, que negava a virgindade de Maria, argumenta assim: Tu dizes que
Maria não permaneceu sempre virgem, e eu sustento ainda mais, que o mesmo
São José permaneceu virgem devido a Maria. Diz um autor que a Santíssima
Virgem foi tão amante desta virtude que em troca de conservá-la houvera esta-
do prestes a renunciar até á dignidade de Mãe de Deus. Isto se baseia na res-
posta que Maria deu ao Arcanjo: “Como será isso, pois não conheço varão?”, e
nas palavras com que terminou: “Faça-se em mim segundo tua palavra”, signifi-
cando com isso que prestava seu consentimento apoiada nas palavras do anjo,
que a havia assegurado que seria mãe por obra tão só do Espírito Santo.
“O que guarda a castidade, diz Santo Ambrósio, é um anjo, e o que a
perde é um demônio. Os castos se transformam em anjos, como diz o Senhor:
“Serão como anjos de Deus” (Mt 22, 30), ao passo que os desonestos, a seme-
lhança dos demônios, fazem-se abomináveis aos olhos de Deus. São Remígio
dizia que a maior parte dos adultos se condena pelo vício da impureza.
“Rara é a vitória sobre este vício, como no início nos lembrou Santo
Agostinho; mas por que serão raras tais vitórias? Porque não se empregam os
meios para vencer; os mestres espirituais assinalam três: jejum, fuga das ocasi-
ões e oração. Por jejum se entende a mortificação, especialmente dos olhos e
da gula. Se bem que Maria Santíssima estava cheia da graça divina, contudo

118
mortificou os olhos, até o ponto de tê-los sempre baixos, sem fixá-los jamais em
pessoa alguma, como sustentam Santo Epifânio e São João Damasceno, os
quais acrescentam que desde menina Ela era tão modesta que causava admira-
ção a quantos a viam. Por isto nota São Lucas que quando foi visitar Santa Isa-
bel se dirigiu pressurosa (Lc 1, 39), para ser menos vista das gentes. – E quanto
à comida, assegura Filiberto que um ermitão chamado Félix soube por revela-
ção que a menina Maria mamava no peito somente uma vez ao dia, e São Gre-
gório Touronense atesta que a vida da Virgem foi um jejum perpétuo. São Bo-
aventura afirma que jamais Maria Santíssima haveria alcançado de Deus tão
grande acúmulo de graças se não tivesse sido moderadíssima no comer, porque
a graça e a gula não se compadecem. Finalmente, foi Maria tão mortificada em
tudo, que dela se disse: “Minhas mãos gotejaram mirra” (Cant 5, 5).
“O segundo meio é a fuga das ocasiões: “O que aborrece os compromis-
sos vive tranqüilo” (Prov 11, 15)32 Por isso disse São Filipe Néri: Na luta conta
os sentidos vencem os covardes, quer dizer, os que fogem das ocasiões. Maria
fugia, enquanto podia, da vista dos homens, que por isso notou São Lucas que
na visita a Santa Isabel Maria se dirigiu pressurosa à montanha. E adverte um
autor que a Virgem se despediu de Isabel antes de seu parto, conforme se de-
duz do relato evangélico: “Permaneceu Maria com ela cerca de três meses e
voltou para sua casa. A Isabel se lhe cumpriu o tempo de seu parto e deu a luz
a um filho”. Por que não esperou Maria ao parto de sua prima? Para fugir das
visitas e conversações que com o motivo do parto se haviam de ter naquela ca-
sa.
“O terceiro meio é a oração. O Sábio disse: “Mais entendendo que de
outro modo não a alcançará, se não é Deus que me a dava... acudi ao Senhor e
lhe roguei” (Sab 8, 21)33. A Santíssima Virgem revelou a Santa Isabel, monja
beneditina, que não alcançou virtude alguma sem trabalho e muita oração. Diz
o Damasceno que Maria é pura e amante das almas puras, pelo que não pode
tolerar os desonestos. Porém bastará recorrer a Ela para ver-se livre deste vício
com somente nomear confiadamente seu nome. O Bem-Aventurado Padre
João de Ávila assegurava que muitos tentados contra a castidade venceram só
pelo afeto que professavam á Virgem Imaculada.
‘Oh Maria, puríssima pomba, quando se hão condenado por este vício!
Senhora, livrai-me dele; fazei que nas tentações recorra sempre a Vós e vos in-
voque, dizendo: “Maria, Maria, ajuda-me.Amém”.34
Imagem viva da virgindade

32
Numa versão em português: quem evita os laços, vive tranquilo, ou seja, em paz.
33
E como eu sabia que de outra maneira não podia ter continência, se Deus ma não desse...
34
Obras Ascéticas de San Alfonso Maria de Ligorio – As Glórias de Maria – BAC – págs. 914/918

119
“Em seu admirável Tratado das Virgens, o grande Santo Ambrósio traça
o perfil moral d’Aquela que é a Virgem singular:
“Começarei por vos apresentar a imagem viva da virgindade, personifica-
da na Virgem Maria, espelho de pureza e exemplo de virtude, digna de que A
tomeis como regra de vida, porque Ela nos ensina, como mestra divina de bon-
dade, o que haveis de corrigir, o que vos convém evitar e o que deveis pôr em
prática. Pois, (...) se o primeiro e principal estímulo é a virtude do mestre que
leva ao aluno a prestar-lhe fé e a segui-lo, que mestre superará em dignidade a
Mãe de Deus? Quem mais esplendorosa do que Ela, a quem cobre o próprio
esplendor? Que mestre de castidade se Lhe poderá comparar?
“E que direis das demais virtudes que A ornam?
“É virgem no corpo e na alma, pura de desordenados afetos. De coração
humilde, moderada no juízo, grave e prudente no falar, recatada no tato, amiga
do trabalho.
“Inimiga de honras terrenas, mede suas ações de acordo com a razão,
movendo-se unicamente por amor à virtude. (...) Nunca afligiu os humildes,
nem desprezou o débil, nem desamparou o necessitado, nem teve trato com os
homens, a não ser o que era ditado pela misericórdia e tolerava o pudor. Seus
olhos não conheceram o fogo da luxúria, nem seus lábios pronunciaram pala-
vras levianas, nem faltou jamais com a decência em sua conduta. Nunca se viu
nEla movimento indecoroso, nem andar descomposto, nem voz presumida. Ao
contrário, sua compostura refletia a força interior da alma. (...)
“Sua moderação nos alimentos era sobre-humana, e contínua sua dedi-
cação em trabalhos manuais, porque jejuava diariamente, sem comer mais que
o necessário para conservar a vida, e trabalhava incessantemente, sem dar tré-
gua à ociosidade. No curto descanso que concedia a si mesma, enquanto o
corpo repousava, vigiava o espírito, interrompendo inúmeras vezes o sono para
ler ou se dedicar a exercícios piedosos, ou à preparação do que havia de fazer
em seguida.
“Inimiga da rua, não sai senão para visitar o templo, e sempre acompa-
nhada de seus pais ou familiares; não porque sua honestidade exigisse vigilân-
cia, pois no seu recolhimento levava a melhor defesa, mas por maior decoro e
modéstia, a qual resplandecia em seus movimentos e palavras com tal arte, que
conquistava o respeito e admiração de quantos A viam, apartada das vaidades e
entregue inteiramente à virtude. (...)
“Assim no-La apresenta o Evangelho, assim A achou o Anjo, assim A
elegeu o Espírito Santo. Para que investigar mais no arquipélago daquela santi-
dade, que arrebatou o coração de seus pais, foi digna dos elogios dos estranhos
e, sobretudo, foi merecedora de que Deus A escolhesse por Mãe? (...)

120
“Fixai o olhar neste perfeito modelo e viva escola de todas as virtudes,
escutai-o e imitai-o, se desejais dirigir vossos passos pelas vias da glória eterna”.
(Santo Ambrósio, Tratado das Virgens, Editorial Tor, Buenos Aires, pp.
41-44 e 46)35

Maria, agasalho da Castidade


“Um piedoso autor do século passado assim descreve a castidade de
Nossa Senhora: “A Virgem Maria conservou durante toda sua vida uma purís-
sima castidade. (...) Nunca teve Ela o mais leve pensamento, ainda que breve e
fugaz, nem imaginação, nem desejo, nem pendor, nem primeiríssimo movi-
mento na alma que fosse ou pudesse chegar a ser contrário à formosa virtude.
“Manteve Ela, sempre, todos os seus pensamentos, afetos e desejos fixos
e absortos em Deus. (...) De onde nasceu em Maria aquela serena compostura,
aquela suave modéstia, aquela casta gentileza em seu semblante e em toda sua
pessoa, que arrebata o coração só de olhá-La; (...) aquele atraente candor que
admiramos em suas imagens, e que basta, amiúde, para operar entre os infiéis e
entre os mais endurecidos pecadores, milagrosas conversões; que basta para
pôr em fuga o demônio, para rejeitar todo afeto e desejo, toda imaginação e
pensamento menos honesto.
“Fixai os olhos numa imagem do Crucificado e vos inspirará compunção.
Fixai-os numa imagem de Maria, e percebereis brotar em vosso coração senti-
mentos e afetos de castidade. Nunca pôde nada contra Maria o hálito pestilen-
cial do demônio, cuja orgulhosa e asquerosa cabeça Ela esmagou”. 36

Castidade vitoriosa
“Com belas palavras, o Pe. Thiébaud apresenta-nos a castidade de Nossa
Senhora como fonte dos grandes triunfos do cristianismo:
“É sob o patrocínio da Virgem que a castidade invadiu de súbito todo o
universo, e que esta virtude não apenas povoou os santuários e os desertos de
uma nova raça, mas também se espalhou pelo mundo, produzindo, com ines-
gotável e juvenil fecundidade, gerações castas. Poucos anos depois do exemplo
de Maria, Roma, segundo expressão de Santo Ambrósio e de Tertuliano, con-
tava já em seu seio todo um povo de virgens – “Plebem pudoris”. (...)
“A Virgem Maria foi a primeira que se consagrou a Deus por um voto de
castidade perpétuo.
“Esse corajoso exemplo produziu, e continua a produzir todos os dias, na
Igreja, Anjos de virtude que se lançam com confiança nesse caminho novo, e
que realizam, palmilhando-o, o prodígio das paixões extintas, das inteligências

35
Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado – João S. Clá Dias – págs. 190/191
36
Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado – João S. Clá Dias – pág. 164.

121
esclarecidas, das fraquezas vencidas e das vontades divinamente inabaláveis. É
à virtude da castidade da qual a Virgem Maria é o primeiro modelo, que o cris-
tianismo deve seus mais belos triunfos e suas mais esplêndidas vitórias” 37

Castidade contra-revolucionária e misericordiosa


“À luz dos princípios de “Revolução e Contra-Revolução”, o Prof. Plínio
Corrêa de Oliveira traça-nos este elogio dAquela que é o Agasalho da castidade:
“A sensualidade é, juntamente com o orgulho, uma das molas propulso-
ras da Revolução. Em sentido oposto, Nossa Senhora, Rainha e Arquétipo dos
contra-revolucionários, praticou as virtudes da humildade e da castidade em
grau inimaginável.
“O que dizer da pureza d'Aquela que foi imaculada desde o primeiro ins-
tante de seu ser? D'Ela brota para toda a Humanidade, como de uma fonte
inexaurível, a virtude da castidade. E porque incomparavelmente pura, Ela é,
mais do que ninguém, a protetora dos fracos, o socorro dos que se debatem nas
tentações da carne. Engano seria pensar que, por ser Ela castíssima, Nossa Se-
nhora tem invencível horror aos impuros. Ela tem, sem dúvida, aversão ao pe-
cado de impureza, mas se compadece daquele que o comete, e deseja a emen-
da e a salvação deste infeliz.
“Ela está pronta a se inclinar sobre o mais miserável dos homens, e lhe
dizer: “Meu filho, em que pântano caíste?! Entretanto, continuo sendo tua
Mãe, e por isso me curvo até ti, por mais baixo que tenhas caído. Até aos ex-
tremos de tua fraqueza chega minha misericórdia, disposta a te salvar”. 38

Virgem sem perder a fecundidade


São Tomás de Villanueva:
“Ó Virgem, quantas virgens esclarecidas renunciam à flor de sua virgin-
dade por amor à descendência, embora sabendo que não hão de engendrar
senão um triste mortal! E Vós, sabendo que haveis de dar à luz a Deus, ainda
vacilais e exclamais: “Como há de ser isso, ó Anjo de Deus?”
“Não temais, Maria: esta concepção não Vos arrebatará a virgindade, mas
a consagrará; não Vos diminuirá o pudor, mas o sublimará com a descendên-
cia, já que haveis de conceber por obra do Espírito, e não com o concurso de
varão; virgem dareis à luz e virgem permanecereis depois. Sereis virgem, po-
rém fecunda. Mãe sereis, mas incorrupta; conservando a honra da virgindade
com os gozos da maternidade”. 39
Padre Rolland:

37
Op. cit. pág. 166
38
op. cit. pág. 166
39
Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado – João S. Clá Dias – Arrpress, São Paulo – pág. 157

122
“Um dos mais gloriosos privilégios da Santíssima Virgem, ou antes o
mais glorioso após o de sua maternidade divina, é a sua inalterável e perpétua
virgindade. (...)
“Pode-se afirma, sem receio de equívoco, que esse privilégio de Maria é,
verdadeiramente, um dos mais esplêndidos milagres operados pela destra do
Onipotente. É ele tão grande, que Deus o quis representar pelas figuras da An-
tiga Lei. Por certo, admiro a sarça incandescente que ardia sem se consumir;
admiro o velo de Gedeão, ora seco quando tudo ao seu redor estava coberto de
umidade, ora banhado de rocio, quando toda a terra se achava desolada pela
aridez; admiro os três mancebos dentro da fornalha, sem ressentirem a menor
ofensa das chamas: estes são grandes milagres. Contudo, o milagre de [ser] Ma-
ria sempre virgem e ao mesmo tempo Mãe de Deus, é incomparavelmente
mais maravilhoso, tanto mais superior aos primeiros, quanto a realidade excede
à figura!
“Esse prodígio é tão sublime que Deus (...) o anunciou por seus Viden-
tes, em solenes termos, como sendo uma nova criação, uma obra absolutamen-
te extraordinária. “Eis, diz Isaías a Acaz, um sinal extraordinário que surpreen-
derá o céu e a terra: uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e o seu nome
será Emanuel, isto é, Deus conosco”.
“Sim, a perpétua virgindade da Santíssima Virgem é uma maravilha entre
as maravilhas.
“O Senhor fez em Mim grandes coisas”, dizia Nossa senhora a sua prima
Isabel. Essas grandes coisas são: primeiro e, antes de tudo, sua maternidade
divina mas, logo em seguida, é sua perpétua virgindade.” 40
Padre Félix Cepeda, CFM:
“Grande é a glória de uma mulher que chega a ser mãe; mais pura é a
glória das que permanecem virgens. Essas duas glórias são incompatíveis:
Quem aceita uma, necessariamente se despoja da outra. Vede as árvores na
primavera como se cobrem de flores brancas ou encarnadas. Chega o outono, e
nos regalam frutos delicados. Porém, em vão buscareis as flores, pois estavam
murchas e caíram. Não é possível que [as árvores] ostentem, ao mesmo tempo,
flores e frutos.
“Não assim com Maria: é virgem e mãe juntamente, o que convém so-
mente a Ela. Por isso a Igreja canta com o poeta Sedulio: “Não se viu nada
semelhante, nem antes nem depois”. E São Dionísio Areopagita, em seu livro
“Dos Nomes Divinos”: “Esta é uma coisa nova, a mais nova de todas”. 41
São Bernardo:

40
idem, pág. 157
41
idem, pág. 158

123
“Ditosa em tudo Maria, a quem não faltou a humildade, nem a virginda-
de. Singular virgindade a sua, que não foi prejudicada, mas honrada pela fecun-
didade; não menos ilustre humildade, que não diminuiu, mas engrandeceu sua
fecunda virgindade; e inteiramente incomparável fecundidade, que a virgindade
e a humildade, juntas, acompanham. Qual dessas coisas não é admirável? Qual
não é incomparável? Qual não é singular?
“Maravilha será se, ponderando-as, não duvides qual julgarás mais mere-
cedora de tua admiração; quer dizer, se será mais estupenda a fecundidade
numa virgem ou a integridade numa mãe; sua dignidade pelo fruto de seu cas-
tíssimo seio, ou sua humildade com tão imensa grandeza. Sem dúvida, a cada
uma dessas coisas se devem preferir todas juntas, e é incomparavelmente maior
excelência e maior ventura havê-las tidas todas, do que precisamente algumas.
”E por que se espantar de que Deus, a quem lemos e vemos admirável
em seus Santos, se tenha mostrado mais maravilhoso em sua Mãe?
“Venerai, pois, vós que vos achais em estado de matrimônio, a integrida-
de e pureza do corpo num corpo mortal; admirai também vós, virgens sagra-
das, a fecundidade de uma virgem; imitai, homens todos, a humildade da Mãe
de Deus; honrai, Santos Anjos, a Mãe de vosso Rei, vós que adorais o Filho de
nossa Virgem, nosso e vosso Rei, reparador de nossa linhagem e restaurador de
vossa cidade”. 42
São José de Anchieta, em suas poesias, tece comentários sobre a Virgin-
dade de Nossa Senhora de grande valor teológico:
“Ouviste, enfim, piedosa, o celeste recado
que a ti, ó virgem, deu o mensageiro alado
Virgem, de nossa gente és a glória, és a palma!
Virgem, és salvação, vida, descanso d’alma!
Ouviste, e o coração em doçuras te salta,
E um fogo sacrossanto o espírito te exalta.
Dano algum serpeará nos umbrais da pureza,
e o Redentor virá de tua carne ilesa.
Teu ventre avultará num divino tecido:
Não sentirá porém o peso recebido.
Ansiavas, e te é dada uma e outra beldade:
Luz da maternidade, honra da virgindade!
Virgem, não teças mais dúvidas que tiveras:
Já não te resta mais ocasião de esperas.
Tudo seguro vês: no portal de teu seio
43
Não range gonzo algum, não há um só meneio”.
42
idem, pág. 158
43
“Poema da Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus – tomo 1 – Ed. Loyola – pág. 215/217

124
O cedro é o símbolo da inalterável pureza de Maria
“Além da elegante folha da palmeira, encontramos outro gracioso símbo-
lo da Santíssima Virgem nesta passagem do Eclesiástico (XXIV, 17): “Elevei-me
como o cedro do Líbano”.
“O cedro domina todas as árvores da floresta, ele se alça a extraordiná-
rias alturas; sua madeira é de uma essência incorruptível. Ele representa a santi-
dade incomparável de Maria, que excede em perfeição a dos Anjos e dos San-
tos; e [simboliza] também sua inteira isenção de todo pecado e sua inalterável
pureza (...).
“Pureza completa de corpo, de alma, de pensamento, de afetos, de olha-
res, de palavra e de ações.
“Pureza constante, que nunca padeceu sombra ou eclipse, mas que sem-
pre brilhou de renovado fulgor: em sua Imaculada Conceição, em sua nativida-
de, em sua estadia no templo, durante o santo casamento com São José, até ao
último instante passado sobre a Terra.
“Pureza supereminente, (...) de uma sublimidade incomparável. Ela está
tanto acima das meras criaturas humanas, das Ágatas, das Cecílias, das Filome-
nas, tanto acima do mais santo dos Anjos, quanto o céu está acima da terra!” 44

Fundadora da virgindade, rara e única


“Nossa Senhora é a Virgem Singular, isto é, virgem como ninguém o foi,
nem o será jamais. Ela é a Santa Virgem das virgens, Aquela cuja virgindade é
tão excelsa que, perto dela, torna-se pálida a intacta virgindade das outras vir-
gens. Nossa Senhora é a Virgem suprema, inesgotavelmente perfeita, inimagi-
navelmente graciosa!”
“Compartilha este sentimento o Pe. Jourdain, que escreve: “Maria é
chamada Virgem das virgens, porque sua virgindade não é semelhante à co-
mum. A sua é rara, única, ilustre e desconhecida em todos os séculos, em todo
o universo. É rara, pois Maria é, ao mesmo tempo, Mãe e Virgem; Ela teve um
Filho que não possui um pai segundo a natureza, é o Espírito Santo, o Esposo
Celeste, que n’Ela opera. (...)
“A virgindade de Maria é única. Longe de ser estéril, só ela é fecunda; só
ela ignora os males e as enfermidades da natureza. Somente Maria porta a co-
roa da virgindade realçada pelo fulgor de uma rica maternidade: (...) Mãe de
Deus e perpetuamente Virgem, sem exemplo, sem igual.
“Assim, a Igreja A chama em seus hinos: Virgo singularis, Virgem singu-
lar, Virgem única. Ela o é, verdadeiramente, pois a natureza e mesmo a graça

44
Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado – João S. Clá Dias p. 178

125
jamais produziram tal; nunca o mundo viu outra semelhante; e jamais inteli-
gência humana e angélica conceberam nada de mais belo. Ela é realmente sin-
gular, pois entre todos os Santos é a mais santa, entre todas as virgens puras, é a
mais pura.
“Ela é o prodígio do Céu, o espelho da virtude, a alegria do Paraíso e da
Terra”. 45
Este privilégio da Santíssima Virgem é também maravilhosamente con-
templado nas poesias de São José de Anchieta:
“Mas vês enorme risco ao pudor virginal,
que é o teu grande amor, teu máximo ideal.
Decidida a cumprir a divina vontade,
Hesitas a temer por tua virgindade.
Como sucederá em ti tal maravilha,
Perguntas toda ansiosa em teu rubor de filha:
“De que modo, santo anjo, há de obrar-se teu dito
E com que traça enfim se alcançará tal fito?
“Meu seio há de avultar com tal fruto em mim feito
e algum filho afinal há de nutrir meu peito?
“Pois eu sempre fugi a contato malsão,
virgem permaneci, sem conhecer varão.
“Intacto meu pudor, sem partilha de leito,
em virgindade ilesa haure o candor perfeito.
“Cresceu comigo, a mais, desde a idade mais terna,
o veemente amor da integridade eterna.
“Dentro d’alma fixei não manchar a pureza
nem quebrantar jamais o voto de inteireza.
“Mas se do Deus imenso eu a mãe devo ser,
e me manda o Senhor sob condição qualquer
“alegro-me em subir para tão alto estado,
e me sujeitarei ao divinal mandado.
“mas sinto se, por mãe, devo ser despojada
dessa formosa flor da virgindade amada”

Não encontrando exemplo entre os feitos da história


Continua São José de Anchieta:
“É com tais termos, é com tal modo que troca
Tal imenso silêncio a tua humilde boca?
Com a conceição de Deus, à maior glória vais,
E inda duvidas tu, buscas ainda mais?
45
idem, ib. pp. 189 e 192

126
Chama-te o Verbo eterno a nutrir-se em teus seios:
Cuidados de pudor serão os teus receios?
Tanto amor de pureza e honra de integridade,
E tão preciosa te é a santa virgindade?
Por que preocupas tu o puríssimo peito?
Por que perguntas mais como isso será feito?
Que importará à mãe, se o feitor do orbe todo
Se quer fazer seu filho, seja qual for o modo?
Mas engano-me, louco! O saber do carnal
Nada sabe, afogado em teu oceano astral.
Tanto excede tua graça os humanos costumes
Quanto o sol refulgente ofusca os outros lumes.
Não te deram o exemplo os pais nossos primeiros,
Para que tu, audaz, corresses tais carreiros.
Jamais outra mulher preveniu tuas vias
E a estrada te mostrou que tu palmilharias.
Única, sem exemplo, as alturas descerras,
E desprezas o pó de nossas baixas terras.
Num dilúvio de mal nosso mundo já tomba
Sem pouso oferecer para teus pés, ó pomba!
Não encontrando exemplo entre os feitos da história
Dos avós, que te fosse a digna trajetória.
Deixas veloz o chão, transpões o éter profundo,
Para o que o céu te dê o que te nega o mundo.
Mas sorvendo a pureza em os céus refulgentes,
Mal podem saciar-te angelicais torrentes.
Sobes mais alto pois a beber no caudal
Donde contínuo flui Deus, nosso bem total.
Com sua mão bondosa, ele apanha-te e aninha
Em sua arca e te dá tesouros de rainha.
Achaste o preço aqui de tua nívea candura:
Daqui a origem vem de tua vida pura.
Aqui matas a sede em copiosos bicais
Do vinho que germina os corpos virginais.
O Deus que te previu para seres a guia
De vida e salvação, mestra da casta via.
Quis que do filho seu fosses mãe não inglória,
Mas maravilha só, de luz, beleza e glória 46

46
“Poema da Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus – tomo 1 – Ed. Loyola – pág. 197/201

127
Pioneira da virgindade consagrada
Prossegue Anchieta:
“Ele foi o primeiro a ensinar-te a pureza:
com tal mestre tens vida, espírito e carne ilesa,
a fim de ao mundo encher fecunda virgindade,
e ser honra do céu casta fecundidade.
Primeira, em sendo oculta, és magnífica guia
Primeira a ir ao céu por desusada via.
Primeira entre espinhais a abrir largo caminho,
A palmilhar locais, cheios de horror maninho.
Primeira que por senda escabrosa se atreve
Dura rocha a calcar com alvos pés de neve.
Primeira a dominar, por escarpas estranhas,
Os brancos alcantis intactos das montanhas.
Pões no alto, qual bandeira, o pudor, que se eleve
Mais fulgente que o sol, mais cândido que a neve.
A senda, áspera há pouco, é suave demanda;
Aquela que foi dura é por teus passos branda.
Já turmas virginais seguir-te-ão as pegadas,
E à bandeira da luz hão de correr ousadas.
Muito homem e mulher atarão com um voto,
Seguindo teu exemplo, o coração devoto.
Ó tu, mestra e raiz da pureza guardada,
Da honestidade mãe, da virgindade estrada,
Noiva, glória da terra e fulgor das alturas,
Modelo de virtude, ápice d’almas puras,
Agradece-te o céu, pois na argila que a veste
A terra, por teus pés, chega ao candor celeste.
Agradece-te a terra: embebendo-a em costumes
Do céu, se faz capaz dos teus celestes cumes” 47

Perfeita virgindade que traz como prêmio a maternidade divina


“Sobre essa admirável prerrogativa mariana, ouçamos o comentário do
Pe. Henry Bolo:
“Em Maria, veremos nascer, sustentar-se e se desenvolver a mais perfeita,
a mais ideal virgindade. Antes de tudo, um primeiro dom de Deus que supri-
me, na Imaculada Conceição, todo movimento de concupiscência, toda ten-
dência corrompida. Depois, a colaboração da vontade de Maria que, esco-
lhendo o templo por asilo, e o serviço exclusivo de Deus por função, demons-
47
Poema da Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus – Pe. José de Anchieta – Ed. Loyola – pág. 201

128
tra-nos a celestial conduta de seu coração e de seu espírito, e nos assegura de
que, nEla, a alma não contradiz a integridade da carne, que Ela é tão incompa-
ravelmente pura na intimidade da consciência quanto na inalterável calma de
seus sentidos, proclamados “bem-aventurados” pela Igreja (Off. Virg. Sep. Do-
lor.)
“Enfim, o coroamento, o complemento de sua virgindade, manifestou-se
no seu diálogo com o Anjo, quando Ela se perturba com o pensamento de se
tornar mãe, e externa o motivo pelo qual não pode nem deseja sê-lo (Lc 1, 34).
“Mas então que fará Deus? Como se comportará Ele em relação a uma
criatura que apresenta aos seus olhos o espetáculo de uma pureza mais intensa
que a angélica, posto que esta imaculada pureza floresce na carne, e tira sua su-
blimidade da própria fragilidade do vaso que a contém? Que fará Ele por essa
maravilhosa criatura, da qual Bossuet pôde dizer que nada, entre os espíritos
angélicos, é comparável à simples pureza de seu corpo? (...) Que fará Ele,
portanto?
“Para o supremo grau de pureza, Ele também se dará num grau supre-
mo. Criará, entre Ele e sua inigualável e pudica escrava, o mais estreito vínculo,
o liame único e incomparável. E se Lhe é necessário encarnar-se, se Lhe impor-
ta pedir a uma criatura a carne e o sangue de que será feita sua vestimenta mor-
tal, em outros termos, se Ele deve ter nesta Terra uma mãe, esta será a Virgem
singular, a Virgem das virgens, a Santa Virgem.
“E de qualquer lado que se considere, esta associação da virgindade e da
maternidade divina em Maria se impõe pela própria natureza das coisas. Cum-
pre que a Virgem perfeita se torne mãe de Deus, porque sua união com Ele
deve ser a mais íntima possível. A mãe de Deus deve ser perfeita, para ser dig-
na de uma tão grande honra.
“Assim, o grande milagre está menos, talvez, na associação desses dois es-
tados: a virgindade perfeita e a maternidade divina – que não são compatíveis
senão na aparência e aos olhos de nossa profunda ignorância – do que na cria-
ção de uma virgindade tão perfeita quanto a de Maria, e de uma maternidade
tão sublime quanto a maternidade divina.
“Mas, a partir do momento, ó Maria, em que “o Senhor é convosco” pa-
ra Vos fazer tão pura, é menos espantoso, embora mais admirável, que “o Se-
nhor esteja convosco” como Filho, e que Vós estejais com Ele, como Mãe. É
vossa incorruptibilidade que permitiu à sua graça de estabelecer, entre Ele e
Vós, esta inenarrável união”. 48

48
Pequeno Oficio da Imaculada Conceição Comentado – João S. Clá Dias - págs. 272 e 274

129
A pureza de Nossa Senhora sobrepujou a dos Santos Anjos
“Que é toda a beleza deste mundo visível comparada com a do invisível?
Que é toda a formosura dos corpos diante da dos espíritos angélicos, senão
uma estrela comparada com o sol?” 49
“Tal é a excelsitude dos Anjos, que o próprio São Bernardo confessa sua
incapacidade de exaltar a “admirável dignidade” daqueles: “Que dirá um sim-
ples mortal a homens mortais, de coisas que nem ele consegue expressar, nem
estes entender? Na verdade, se a boca fala da abundância do coração, é preciso
igualmente que cale a língua quando há escassez de pensamentos...”
“Entretanto, São Francisco de Sales nos apresenta Maria muito acima
dos Anjos, por ser Ela puríssima: “A virgindade e a absoluta castidade são vir-
tudes angélicas; a pureza de Nossa Senhora sobrepujou infinitamente à dos
Anjos, com três grandes excelências sobre a dos próprios Querubins e Serafins.
• Por sua fecundidade
“A virgindade de Nossa Senhora teve a excelência e o privilégio, acima
da de todos os Anjos, de ser fecunda. A dos Anjos é estéril e não ter fecundi-
dade; a de nossa gloriosíssima Virgem, pelo contrário, foi muito fecunda, não
somente por haver produzido o doce fruto da vida, Nosso Senhor e Mestre,
mas também por ter engendrado a outras virgens, que, à sua imitação, consagra-
ram sua castidade.
“Porém, a virgindade destra divina Mãe tem, ademais, a virtude de resta-
belecer a virgindade manchada ou perdida em algum momento da vida. A Sa-
grada Escritura atesta que durante seu tempo mortal, Nossa Senhora chamou a
si grande quantidade de virgens e que várias A acompanharam por toda a parte:
Santa Marta, Santa Marcelina, as piedosas Marias e tantas outras. Mas particu-
larmente, por sua mediação e exemplo, Maria Madalena, que era como que o
receptáculo da própria imundície, alistou-se sob o estandarte da pureza da San-
tíssima Virgem, convertendo-se num frasco de cristal resplandecente e diáfano,
capaz de receber e guardar os mais preciosos licores e as mais salutares águas.
“A virgindade de nossa divina Mestra não é, pois, estéril, como a dos An-
jos; é tão fecunda, que desde o instante em que se consagrou a Deus, até agora,
deu sempre novos frutos. E não só Ela mesma frutifica, ma faz com que a vir-
gindade, por si mesma, engendre outras virgindades. (...)
•Por ter sido consagrada a Deus
“A virgindade de Nossa Senhora excedeu à dos Anjos; estes são puros e
castos por natureza, e não se costuma louvar uma pessoa o que tem por heran-
ça, pois não sendo produto de um esforço, não merece homenagens. Não se
exalta o sol porque é luminoso, já que não pode deixar de sê-lo. Os Anjos não
devem ser enaltecidos por sua castidade, pois não podem ser de outra maneira.
49
Frei Luís de Granada – “Guia de Pecadores" - Editorial Simancas Ediciones

130
Porém, nossa sacratíssima Mãe tem uma virgindade digna de ser exaltada, posto
que foi escolhida entre todas e consagrada a Deus. E se é certo que esteve des-
posada com um homem, isto não foi em detrimento de sua virgindade, pois seu
marido permaneceu puro e havia, como a Santíssima Virgem, feito voto de sê-
lo sempre. (...)
•Por ter sido provada
“A virgindade de Nossa Senhora superou à dos Anjos, porque foi com-
batida e posta à prova, o que não pode ocorrer com os espíritos celestiais, que
não podem de modo algum perder sua pureza, nem têm oportunidade de que
seja perturbada nem provada. Nosso glorioso padre Santo Agostinho disse, fa-
lando dos Anjos: “Não vos é difícil ser puros, ó espíritos bem-aventurados, pois
não sois tentados nem podeis sê-lo!”
“Talvez pareça estranho o que digo, de que a pureza de Nossa Senhora
foi combatida e posta à prova; porém assim o é. Nem pretendo afirmar que
esta prova se assemelhe às nossas, pois sendo Ela toda pura e a própria pureza,
não podia receber os ataques que recebemos, e que atormentam aos que leva-
mos a tentação em nós mesmos. Estas não se atreveriam a aproximar-se dos
inexpugnáveis muros da integridade de Maria. Elas são tão importunas, que São
Paulo pediu por três vezes a Nosso Senhor que lhas afastasse, ou que moderas-
se seu furor até ao ponto em que pudesse resistir a elas, sem ofensa nem queda.
“Seja como for, a Santíssima Virgem sofreu uma prova quando viu o An-
jo em forma humana. Podemos deduzi-lo do fato de que Ela se perturbou à
vista de São Gabriel, que, percebendo isso, disse-Lhe: “Não temas, Maria”,
querendo significar: “Embora me vejas em forma de homem, não o sou, nem
venho a falar-te como homem”. Isto Lhe disse, ao ver que o pudor virginal de
Nossa Senhora começava a se inquietar.
“O pudor – escreve um santo personagem – é como o sacristão da casti-
dade”. Assim como o sacristão de uma igreja toma o cuidado de fechar bem as
portas, temeroso de que entrem ladrões a despojar os altares, e olha sempre
por toda a parte para observar se algo falta, assim o pudor das virgens está cons-
tantemente alerta, para impedir que alguém possa atentar contra sua castidade
ou pôr em perigo sua virgindade, das quais são extremamente zelosas. E quan-
do percebe a mais leve sombra do mal, comove-se e se perturba, como o fez a
augusta Virgem Maria, (...) a Virgem por excelência, acima de todos os demais,
tanto anjos como homens.

Os Anjos admiram a virgindade de Maria


“Também segundo São Boaventura, Nossa Senhora excede em pureza
aos Anjos, “por isso eles mesmos exclamam, admirados, no Cântico dos Cânti-
cos: “Quem é esta, que sobe do deserto? – ou seja, através da hierarquia arqui-

131
angélica, que foi abandonada pelos anjos apóstatas -, “como uma coluna forma-
da de perfumes”, porquanto Ela é purificadora; “de mirra”, porque isenta de
toda impureza; “e de incenso”, porque limpa de toda iniqüidade”.
“São Tomás de Villanueva proclama:
“O que é maravilhoso na Virgem, e engrandece sobremaneira à sabedo-
ria do Altíssimo, é que uma filha de Adão, semelhante pela natureza ás outras
mulheres, não só se assemelhe, mas sobrepuje aos espíritos angélicos em pure-
za, formosura, graça e valor. (...) Maravilha estupenda e admirável obra do Ex-
celso: uma donzela, filha de Adão, é mais pura, mais bela e mais sublime que
os próprios Anjos!”

Pureza que mereceu a Redenção do mundo


“Assim – conclui São João Eudes – podemos compreender a relevante
pureza desta inigualável Virgem, em cuja comparação qualquer outra pureza é
como se não existisse. (...) Conservou-se Maria numa pureza e santidade tão
eminentes que mereceu, disse Santo Anselmo, a reparação do mundo. Eis aqui
as palavras deste santo Padre: “A puríssima santidade e a santíssima pureza do
puríssimo coração de Maria superam incomparavelmente a todas as purezas e
santidades de todas as criaturas. Mereceu, por esta admirável pureza de seu co-
ração virginal, ser a digníssima reparadora do mundo que se encontrava imerso
no mais profundo abismo de perdição”. 50

50
Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado – João Clá S. Dias – págs. 280/283

132
6 SÃO JOSÉ E A CASTIDADE

O MAIS SANTO DOS SANTOS

“Sem dúvida, São José é o maior santo da História, dotado com uma vo-
cação mais alta do que a dos Apóstolos e a de São João Batista, como apontam
autores abalizados. Esta afirmação se apóia no fato de o ministério de São José
estar intimamente unido à pessoa e missão redentora de Nosso Senhor Jesus
Cristo, participando de modo misterioso, conforme será tratado em momento
oportuno, do plano hipostático. Tal proximidade com Deus feito Homem

133
permitiu-lhe beneficiar-se como ninguém, depois de Nossa Senhora, dos efei-
tos da Encarnação, tendo sido santificado de forma superabundante por esse
Menino Divino que o chamaria de pai, embora São José não tenha concorrido
para sua geração natural” 51
São José, escolhido para ser o esposo da Santíssima Virgem Maria, e
Mãe de Deus, tinha uma virtude essencial para o desempenho de tão alta e su-
blime missão: a Castidade ou virgindade perpétua. Segundo os santos e teólo-
gos mais notáveis, permaneceu virgem e casto até os últimos de seus dias. Santo
Afonso Maria de Ligório o confirma numa famosa obra.
:
São José permaneceu virgem por causa da companhia de Maria
“Assegura São Jerônimo que ele tem por certo que São José permaneceu
sempre virgem devido à companhia de Maria, pois apostrofando ao herege
Helvídio, que negava a virgindade de Maria, argumenta assim: Tu dizes que
Maria não permaneceu sempre virgem, e eu sustento ainda mais, que o mesmo
São José permaneceu virgem devido a Maria. Diz um autor que a Santíssima
Virgem foi tão amante desta virtude que em troca de conservá-la houvera esta-
do prestes a renunciar até á dignidade de Mãe de Deus. Isto se baseia na res-
posta que Maria deu ao Arcanjo: “Como será isso, pois não conheço varão?”, e
nas palavras com que terminou: “Faça-se em mim segundo tua palavra”, signifi-
cando com isso que prestava seu consentimento apoiada nas palavras do anjo,
que a havia assegurado que seria mãe por obra tão só do Espírito Santo”. 52
A citação de Santo Afonso se refere a uma carta de São Jerônimo dirigi-
da a Helvídio, um herege que era contra a virgindade de Nossa Senhora e cau-
sou grande disputa dentro da Igreja daqueles tempos.

A força de São José está ligada á sua Virgindade


Monsenhor João Scognamíglio Clá Dias assim se refere á santidade de
São José
“Caro leitor, nesta obra o Autor deseja apresentar-lhe o genuíno perfil do
grande Patriarca da Igreja, a fim de fomentar, com toda a ênfase, a autêntica
devoção em relação à sua extraordinária figura. São José foi um herói insuperá-
vel, um verdadeiro Cruzado da Luz; em síntese, o homem de confiança da San-
tíssima Trindade. Sua força está profundamente ligada à sua virgindade, pois a
pureza íntegra é a única capaz de originar no coração humano as energias ne-
cessárias para enfrentar as dificuldades com ânimo resoluto e total certeza da
vitória” 53

51
“SÃO JOSÉ: QUEM O CONHECE?...” Mons. João S. Clá Dias – págs. 25/27
52
Obras Ascéticas de San Alfonso Maria de Ligorio – As Glórias de Maria – BAC – págs. 914/918
53
“SÃO JOSÉ: QUEM O CONHECE?...” Mons. João S. Clá Dias – pág. 25)

134
São José e o refúgio da Castidade, a Gruta onde nasceu Jesus?
Na mesma obra de Monsenhor João S. Clá Dias, encontramos o seguinte
e tão sublime relato sobre a virtude da castidade em São José:
“Durante a adolescência, o convívio com os primos, em sua maioria mais
velhos que ele, desvendou ao olhar imaculado de São José a feiura de um pe-
cado para o qual jamais experimentou a menor inclinação da vontade ou da
sensibilidade: a impureza.
Naquele tempo a imoralidade grassava entre os judeus de modo vela-
do,mas não menos diabólico. Em determinado momento, por inveja em rela-
ção a José, aqueles meninos decidiram perdê-lo e, instigados pelo demônio,
procuravam tratar de temas indecentes diante dele.
São José era de uma pureza incomparável. Não há nos Céus Anjo que se
assemelhe a ele. Por isso, logo que notava as primeiras insinuações retirava-se
do ambiente. Mas, insistentes e insidiosos, os primos começaram a segui-lo.
Como já conheciam a colina que costumava frequentar, não era mais conveni-
ente isolar-se ali, pelo risco de lhe armarem alguma ocasião de pecado.
Foi então que encontrou outro lugar, próximo a Belém, onde podia con-
templar o céu, permanecer a sós com Deus e evitar qualquer ataque contra a
pureza. Aquele passou a ser, para São José, orefúgio da castidade. Era um pe-
quno conjunto de grutas, mais ou menos espaçosas, nas quais desafogava seu
coração com Deus e implorava-Lhe que pusesse fim à lamentável situação, não
só de seus primos, colmo de boa parte do povo eleito. Ele suplicava ao Divino
Vingador que fizesse cessar as ofensas contra sua suprema majestade.
Por que tardava tanto o Messias que deveria restaurar todas as coisas?
Vinha-lhe então à mente um trecho do profeta Malaquias: “Ele é como o fogo
do fundidor, como a lixívia dos lavadeiros” (3,2 ). E ansiava pelo advento
d’Aquele que destruiria o reino do pecado e renovaria a face da terra.
Anos mais tarde, quando a Sagrada Família subisse a Belém para recen-
seamento de César Augusto e São José percebesse que não poderia levar Maria
para uma hospedagem qualquer, o primeiro local que se lembraria diante do
iminente nascimento de Jesus seria o “refúgio da castidade”. Era o abrigo ade-
quado, onde o Filho de Deus viria ao mundo com a discrição e o recato neces-
sários. Era também o único lugar digno de hospedar o Casal virgem em cujo
seio nasceria, por obra do Espírito Santo, o Virgem por excelência, pois ali ja-
mais se cometera pecado algum.” 54

54
“SÃO JOSÉ: QUEM O CONHECE?...” Mons. João S. Clá Dias -– págs. 62/65

135
São José e a Virgem Santíssima, pureza semelhante
“O Pe. Suárez afirma que para exercer o elevadíssimo ofício que lhe foi
confiado pela Providência, São José precisava de suma pureza e santidade. E
esta “se prova porque já antes de contrair matrimônio com a Virgem era um
varão justo e perfeito, como consta tanto pelas palavras de São Mateus – ‘José,
seu esposo, como era justo’ (Mt 1, 9) – quanto pelos Santos e histórias que an-
tes citamos; pois uns e outros referem que, pela elevadíssima opinião de santi-
dade de que São José gozava, foi tido por idôneo para que lhe fosse confiada a
guarda e virgindade de Maria, e isto não sem especial inspiração do Espírito
Santo; e, por último, consta o mesmo por que, até aqueles esponsais, conservou
íntegra sua virgindade e castidade, que logo consagrou a Deus, unidas à castida-
de e virgindade de sua Esposa. E não se pode duvidar que depois de desposar a
Virgem Santíssima cresceu de um modo maravilhoso em virtude e santidade,
vivendo, como vivia na terra, a vida do Céu” (SUÁREZ, SJ, Francisco, Misté-
rios de La vida de Cristo, Disp. VIII, sec.2, n. 1, In; Obras, Madrid, BAC,
1948, t. III. P. 272).
Também o Pe. Isolano assevera que “a vida de São José foi virginal em
voto, palavras e obras. Com efeito, ele fez o voto de virgindade, como já se dis-
se, guardando-o com a maior pureza de palavra e obra. Suas conversas assíduas
eram com a Virgem Santíssima, cuja pureza alcançou o limite mais sublime. [...]
A Santíssima Virgem e São José parecem ter também uma pureza semelhante,
pois seus corpos estavam limpos, iluminados pela virgindade; suas almas eram
santas; seus costumes estavam igualados pela mútua caridade; seus desejos e
suas obras eram por Cristo e com Cristo; sua dignidade, ser Mãe de Cristo e pai
putativo, respectivamente, [...] José, sol que deslumbra por sua branquíssima
pureza, que mereceu chamar-se pai do Filho de Deus e ser esposo de sua Mãe,
a Virgem Santíssima, e que ofuscou com a claridade de sua alma o brilho dos
demais Santos, chegando quase a igualar à intacta pureza de sua Esposa”
(ISOLANO, op. cit. PI,c.16, p. 429; P.III, c.11, p. 562-563) 55

São José, conservado casto no matrimônio virginal com Maria56


No matrimônio, São José conservou sua íntegra castidade, conforme es-
creveu o Papa São João Paulo II:
“20. Na Liturgia, Maria é celebrada como tendo estado «unida a José,
homem justo, por um vínculo de amor esponsal e virginal». (31) Trata-se, de fato ,
de dois amores que , conjuntamente, representam o mistério da Igreja, virgem e

55
“SÃO JOSÉ: QUEM O CONHECE?...” Mons. João S. Clá Dias – pág 63, nota n. 12)
56
Exortação Apostólica “Redemptoris Custos”, de João Paulo II sobre a figura e a missão
de São José a vida de Cristo e da Igreja – 15 de agosto de 1989

136
esposa, a qual tem no matrimônio de Maria e José o seu símbolo. «A virginda-
de e o celibato por amor do Reino de Deus não só não se contrapõem à digni-
dade do matrimônio, mas pressupõem-na e confirmam-na. O matrimônio e a
virgindade são os dois modos de exprimir e de viver o único Mistério da Alian-
ça de Deus com o seu povo», (32) que é comunhão de amor entre Deus e os ho-
mens.
Mediante o sacrifício total de si próprio, José exprime o seu amor gene-
roso para com a Mãe de Deus, fazendo-lhe «dom esponsal de si». Muito embo-
ra decidido a afastar-se, para não ser obstáculo ao plano de Deus que nela esta-
va a realizar-se, por ordem expressa do anjo ele manteve-a consigo e respeitou a
sua condição de pertencer exclusivamente a Deus.
Por outro lado, foi do matrimônio com Maria que advieram para José a
sua dignidade singular e os seus direitos em relação a Jesus. «é certo que a dig-
nidade da Mãe de Deus assenta tão alto, que nada pode haver de mais sublime;
mas, por isso mesmo que entre a Santíssima Virgem a José foi estreitado o vín-
culo conjugal, não há dúvida de que ele se aproximou como ninguém dessa al-
tíssima dignidade, em virtude da qual a Mãe de Deus ocupa lugar eminente, a
grande distância de todas as criaturas. Uma vez que o casamento é a comunida-
de e a amizade máxima a que, por sua natureza, anda ligada a comunhão de
bens, segue-se que, se Deus quis dar José como esposo à Virgem, deu-o não
apenas como companheiro na vida, testemunha da sua virgindade e garante da
sua honestidade, mas também para que ele participasse, mediante o pacto con-
jugal, na sua excelsa grandeza. (33)”
NOTAS:

(32) Exort. Apost. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), n. 16:


AAS 74 (1982), p. 98.
(33) Leão XIII, Carta Enc. Quamquam pluries (15 de Agosto de 1889):
l.c., pp. 177-178.

Comenta o padre Reginald Garrigou-Lagrange: “Leão XIII na encíclica


“Quanquam pluries”, de agosto de 1899, escrita para proclamar o patrocínio de
São José sobre a Igreja universal. Ele diz: “Certamente a dignidade da Mãe de
Deus é tão alta que nada pôde ser criado acima dela. No entanto, como José foi
unido à bem-aventurada Virgem pelo laço conjugal, não se pode duvidar que
ele se tenha aproximado, mais do que ninguém, dessa dignidade super-
eminente pela qual a Mãe de Deus ultrapassa tanto todas as naturezas criadas.
A união conjugal é, com efeito, a maior de todas; em razão de sua pró-
pria natureza, ela acompanha-se da comunicação recíproca dos bens dos dois
esposos.

137
Se, pois, Deus deu à Virgem José como esposo, certamente não somente
o deu como apoio na vida, como testemunho de sua virgindade, guarda de sua
honra, mas o fez também participar, pelo laço conjugal, da eminente dignidade
que ela recebeu.”57

A mais firme resolução de sua vida: manter-se casto


Encontramos na obra de Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, sobre
São José, a narração de um belo episódio sobre sua castidade:
“Outro personagem que o arrebatava era Urias, um dos mais valorosos
generais de Davi (cf; II Sm 11, 7-13).Impressionava-o, sobretudo, seu gesto de
fidelidade quando, durante uma guerra, foi chamado a Jerusalém pelo rei, que
pretendia disfarçar o horrível pecado de adultério cometido com sua esposa
Betsabeia. Nessa ocasião Urias não quis repousar em sua própria casa, mas
dormiu na porta do palácio real, com os outros servos. Ao ser-lhe interrogado o
motivo desse procedimento, ele respondeu: “A Arca se aloja debaixo de uma
tenda, assim como Israel e Judá. Joab, meu chefe, e seus suboficiais acampam
ao relento, e teria eu ainda a coragem de entrar em minha casa para comer, be-
ber e dormir com minha mulher? Pela tua vida, não farei tal coisa (II Sm 11,
11). Ou seja, tão extrema era a dedicação deste corajoso oficial que, a fim de
não perder a disposição para a luta e o sacrifício, guardou castidade perfeita du-
rante sua permanência em Jerusalém.

57
Pe. Reginald Garrigou-Lagrange O.P http://www.permanencia.org.br/revista/teologia/jose.htm

138
“Infelizmente o Rei Davi, como paga a tanta fidelidade, cometeu outro
crime: mandou colocá-lo no posto mais arriscado do combate, expondo-o a
morte certa (cf. Sm, 11, 14-17). Urias não teve sua recompensa nesta vida, mas,
com toda a segurança, o Divino Juiz concedeu àquele indomável soldado o
prêmio da glória.
“São José pensava na beleza da atitude de Urias e desejava imitá-la, mas
não apenas uma vez, pois sua alma era guiada por parâmetros do Céu, onde
todos vivem “como os Anjos de Deus” (Mt 22, 30 e ninguém se casa. Bem en-
tendia que o Messias seria um Rei incomparavelmente mais sublime que o
próprio Davi, e julgava ser vontade do Altíssimo pôr ao seu serviço homens que
mantivessem perpétua castidade, livres de laços familiares e consagrados a Ele
por inteiro e em todas as circunstâncias.
“Por esse motivo São José percebeu ser desígnio divino que se conser-
vasse virgem, como único meio de cooperar na salvação da humanidade. E para
isso era necessário alhear-se dos meios sociais da época, especialmente cor-
rompidos pela impureza. Corte tão radical não custou muito ao Santo Patriarca,
tanto ele admirava a pureza em sua mais integra manifestação. Dessa forma, aos
vinte e um anos São José era um silencioso artesão dedicado ao trabalho e ao
recolhimento, à espera de ver despontar o dia da libertação, a vinda do Messi-
as” 58

São José, modelo de pureza e castidade matrimonial

A Igreja nos apresenta São José como perfeito modelo de pureza e casti-
dade, eis porque sempre foi casto e virgem e manteve intacta tal virtude após o
matrimônio com a Santíssima Virgem Maria. Teve a insigne vocação de ser pai
custódio do Senhor e de protetor da virgindade de Sua Mãe Santíssima, assu-
mindo assim a dupla condição de Pai e Esposo Virgem. A esse respeito, escre-
veu São Tomás: “José quis despedir a Maria não para unir-se a outra mulher
nem por suspeitar nela alguma falta, senão por reverência, cheio de um santo
temor de viver ao lado de uma tão grande santidade. E, casado com Maria, pelo
testemunho de José se comprovou o nascimento virginal de Cristo” (Suma Teo-
lógica 3, q. 29, a. 1).

A revelação da virgindade e parto de Nossa Senhora a São José


A respeito do episódio em que São José tomou conhecimento da con-
cepção virginal de Maria, Frei Luís de Granada, OP, teceu os seguintes comen-
tários:

58
“SÃO JOSÉ: QUEM O CONHECE?...” Mons. João S. Clá Dias – págs. 69/71)

139
“Depois da sagrada concepção do Filho de Deus nas entranhas virginais
de nossa Senhora, diz São Mateus evangelista que José, percebida a gravidez da
sacratíssima Virgem, não conhecendo seu mistério, sendo um homem justo e
não querendo difamá-la, quis ir embora secretamente e deixá-la (Mt 1,19).
Aqui, primeiramente, se apresenta considerar a santidade deste glorioso
patriarca, que devemos medir e valorizar pelo serviço para que Deus o esco-
lheu, que foi o de ser esposo da sagrada Virgem, como também senhor e tido
como pai de seu Filho. Duas grandíssimas dignidades! Em conformidade com
essas, lhe foi dada a graça e a santidade. Em razão da graça, é de se crer que lhe
foi dada uma pureza e castidade angélica, para que assim trata-se a Virgem com
aquela pureza e reverência que merecia ser tratada aquela Senhora. Compara-
das a ela, as mesmas estrelas do céu não eram limpas.
Diz, pois, o santo evangelista, que por ser justo, não quis José difamar a
Virgem, mas tomar sobre si a pena e se afastar, deixando-a. Esta é uma das pro-
vas e argumentos da verdadeira justiça, que, para ser verdadeira, tem de ser
acompanhada de misericórdia, como a de Deus. Porque a mesma lei de Deus
lhe punha o punhal na mão. Mas como isto era em favor do ofendido, ele re-
nuncia em Deus o direito que lhe cabe, e como o quer achar para com os seus
mais misericordioso que rigoroso, assim procura que o ache seu próximo, tal
qual ele queria achar Deus.
Por este motivo também é muito de se notar e imitar até onde deve che-
gar um homem antes de que abra a boca sobre a fama alheia. Porque, podendo
o santo homem usar neste caso o direito que parecia ter de sua parte, quis antes
perder terra e casa do que abria a boca contra a fama de uma pessoa que, como
lhe parecia, era culpada.
Que dirão aqui os linguarudos e maldizentes, que sem ter nada com isto
e mesmo sem saber com certeza os fatos abrem a boca contra as famas alheias e
deixam manchada e destruída a fama dos outros, que alguns estimam mais do
que à própria vida?
Ó línguas de escorpiões e basiliscos! Que olhando empeçonham os ares
e matam os que os olham! Mas vós, envenenando os ouvidos de quem vos ouve
matais os presentes e os ausentes, que, quando chegam a saber dessas infâmias,
muitas vezes perdem, perdendo a paciência, as almas!
Mas quem poderá explicar o que se passava no coração da sacratíssima
Virgem por este tempo? Porque não ignorava a prudentíssima Virgem o que ia
pelo coração do esposo, pois não ignorava a ocasião que para tanto havia. Ela o
olhava com aqueles olhos e aquele amor e reverência que merecia ser olhado
um esposo tão santo, dado pela mão de Deus.

140
Qual seria, então, a compaixão, a pena e o sofrimento que a santa Vir-
gem padeceria durante todo este tempo, vendo, diante de seus olhos, nos olhos
e no rosto do esposo a seta que ele trazia fincada no coração?
Pois, se é tão própria nos bons a virtude da misericórdia e compaixão,
quanto mais nesta rainha da misericórdia, qual seria a compaixão que teria da-
quele a quem tanto amava e via tão sofrido e com tanto motivo para isso?
E não deixemos de considerar também, nessa mesma ocasião, a mansi-
dão, a paciência e a discrição da Virgem, e a obediência e conformidade com a
divina vontade, nesta provação e em todas as outras que lhe pudessem vir. Nela
oferecia a Deus seu coração e sal cruz com grande humildade e obediência,
apresentando a Ele sua inocência e a ferida do esposo sofredor, suplicando re-
médio par ale, mas oferecendo-se, outra vez, como escrava não só para recebê-
lo em suas entranhas, mas também para padecer por esta obediência tudo
quanto fosse sua vontade.
Nem é digna de menor consideração a confiança que ela teria neste tran-
se tão duro, fiando-se naquela infinita Bondade. Esperando que Ele olharia par
a sua inocência e dos eu esposo, provendo a ambos do competente remédio.
Pois se a santa Suzana, estando já condenada a morrer apedrejada pelo que não
merecia, tinha seu coração, diante das pedras, cheio de confiança, esperando
remédio do defensor da inocência, quanto maior confiança teria a Virgem, que
tantas maiores prendas tinha da divina misericórdia?
Desta confiança vinha à sua alma uma paz tão grande e uma tranqüilida-
de e serenidade de consciência que o mar não está tão quieto quando dormem
todos os ventos, nem tão sereno o céu, quando o vento frio afastou todas as nu-
vens, quanto estava aquela alma bendita em meio a tão grande tempestade.
Porque se a paz é fruto da justiça e esta é filha legítima da confiança, que tão
grande paz teria quem tinha na justiça uma tão grande confiança?” 59

A VI R G I NDADE P UR Í S SI MA DE SÃO JO SÉ À LUZ DA


CA STI DA DE DE JO SÉ (AUTOR: PE. CARLOS JAVIER
WERNER BENJUMEA), 60
A virtude da castidade refulgiu em José com uma luz especia-
líssima, digna de prefigurar a virgindade puríssima e viril de São
José, esposo de Maria e custódio de Nosso Senhor Jesus Cristo.

59
Fonte: https://www.caminhandocomele.com.br/fray-luis-de-granada-a-revelacao-a-sao-jose-da-
virgindade-de-maria/
60
Extraído de : http://www.arautos.org/secoes/artigos/doutrina/sao-jose/a-virgindade-
purissima-de-sao-jose-a-luz-da-castidade-de-jose-185154

141
Dentre as virtudes mais eminentes de José, filho de Jacó, desponta a pu-
reza. Desde sua juventude, ele prezava os costumes honestos e, como narram as
Escrituras, aborrecia os temas licenciosos tratados por seus irmãos: “José, ainda
jovem, com a idade de dezessete anos, apascentava o rebanho com seus irmãos,
os filhos de Bala e os filhos de Zelfa, mulheres de seu pai; e ele contou ao seu
pai as más conversas dos irmãos” (Gen 37, 2).
Em meio a verdadeiras peripécias, depois de ter sido vendido como es-
cravo pelos irmãos, José foi levado ao Egito, onde Putifar, chefe da guarda do
Faraó, comprou-o. Morando na casa de seu senhor, José conquistou sua confi-
ança pela retidão de seus costumes, pela sabedoria com que administrava os
bens e pela bênção de Deus que pairava sobre ele, favorecendo-o em tudo. Po-
rém, uma nuvem negra e suja iria toldar os horizontes de José.
Seu rosto destacava-se pela beleza, o que suscitou na mulher de seu amo
sentimentos ignóbeis: “E aconteceu, depois de tudo isto, que a mulher de seu
senhor lançou seus olhos em José e disse-lhe: Dorme comigo” (Gen 39, 7). A
recusa do casto José denota uma retidão e um temor de Deus heróicos: “Meu
senhor, disse-lhe ele, não me pede conta alguma do que se faz na casa, e confi-
ou-me todos os seus bens. Não há maior do que eu nesta casa; ele nada me in-
terdisse, exceto tu, que és sua mulher. Como poderia eu cometer um tão gran-
de crime e pecar contra Deus?” (Gen 39, 8-9).
Diante de tanta pureza, o coração da infiel, obscurecido pela virulência
das paixões, não aceitou os motivos apresentados por José, mas continuou a
tentá-lo ainda por muitos dias. Em determinada ocasião, a mulher indigna, aço-
dada por suas péssimas intenções, agiu de forma violenta: “Tendo ele entrado
na casa para fazer seus serviços, e não se encontrando ali ninguém da casa, ela
segurou-o pelo manto, dizendo: Dorme comigo! Mas José, largando-lhe o man-
to nas mãos, fugiu”. (Gen 39, 11-12) Vendo frustradas suas ciladas, passou ela a
conceber-lhe ódio e vingança, espalhando sórdida calúnia: “Vendo a mulher
que ele lhe tinha deixado o manto nas mãos e fugido, chamou a gente de sua
casa e disse-lhes: Vede: trouxeram-nos este hebreu para a casa a fim de que ele
abuse de nós. Este homem veio-me procurar para dormir comigo, mas eu gri-
tei. E vendo que eu me punha a gritar, deixou seu manto ao meu lado e fugiu”
(Gen 39, 13-15).
A sorte de José foi terrível. Putifar deu crédito às mentiras maldosas e o
colocou na prisão: à fidelidade na hora da tentação seguiu-se a úmida escuridão
da cela. Como se verá, até lá a mão de Deus não o abandonaria, mostrando-lhe
seu favor em meio ao infortúnio. Finalmente, terminará ele elevado ao cargo de
maior confiança do rei do Egito.
***

142
A virtude da castidade refulgiu em José com uma luz especialíssima, dig-
na de prefigurar a virgindade puríssima e viril de São José, esposo de Maria e
custódio de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Durante algum tempo e entre vários autores grassou o erro inoculado pe-
los apócrifos de Tiago e Pedro, que atribuem a São José a paternidade direta
dos “irmãos” do Senhor, citados nos Evangelhos. Porém, a Tradição da Igreja
foi proclamando com voz sempre mais alta e universal, a virgindade de São Jo-
sé. O primeiro paladino dela foi São Jerônimo, quem enfrentou o herege Hel-
vídi, mostrando-lhe que o verdadeiro parentesco de Cristo com tais “irmãos”
consiste em certa consanguinidade de segundo ou terceiro grau, como aliás, é
hoje moeda corrente entre os exegetas.
Seguem seus passos Santo Agostinho, Teodoreto, São Beda e São Ru-
perto, dentre outros. Porém São Pedro Damião afirma com a força e a rutilân-
cia de um toque de clarim: “é fé da Igreja que aquele que fez as vezes de pai foi
virgem também”(1). São Tomás se fará eco dessa verdadeira tradição(2) e apor-
tará uma sublime razão teológica: “Se o Senhor [no alto da Cruz] quis enco-
mendar ao [discípulo] virgem o cuidado da Virgem, sua Mãe, como teria [ela]
convivido com seu esposo, se ele não tivesse sido sempre virgem?”(3)
Portanto, podemos crer, em sintonia com a Igreja, esposa imaculada e
santa do Cordeiro divino, que São José, honrado pelos homens com o título de
pai de Jesus Cristo, foi virgem durante toda sua vida, de uma pureza exímia e
única na Igreja.
Se consideramos a natural inclinação do homem ao casamento e à pre-
servação da espécie, se lembramos os esforços dos grandes santos para manter
sua castidade, e se constatamos quantos homens se deixam arrastar pela vee-
mência das paixões, ao contemplar São José nos admira o altíssimo grau de sua
pureza, sua virgindade íntegra, sua caridade e contemplação ardentíssimas, que
lhe permitiram conviver com sua jovem esposa sem experimentar a mínima
sugestão carnal, todo feito para extasiar-se com sua virtude consumada, sua san-
tidade ímpar e sua divina beleza.
Daí a terrível provação experimentada por ele ao constatar a maternidade
de Maria. Quiçá Ela mesma lhe tivesse revelado o anúncio do Anjo, embora,
sobre este particular, se dividam as opiniões dos teólogos e especialistas. O fato
seguro é que diante dos sinais evidentes da gravidez, ele, em sua profunda hu-
mildade, se considera indigno de participar de um mistério tão alto, e decide
retirar-se em segredo.
Com efeito, pureza e humildade são indissociáveis. É impossível manter
a continência do corpo se na alma reina a vaidade e a presunção. Assim, encon-
tramos mais uma faceta da alma de São José: a tranquilidade da despretensão.
Ele decide retirar-se, mas não sem antes descansar. Naquela difícil situação,

143
com a dilacerante separação em vista – que significaria não poder mais contem-
plar o luminosíssimo olhar de Maria! – o varão justo decide repousar. Nossa
Senhora percebe sua provação e reza por ele. E eis que um Anjo lhe aparece
em sonhos: “José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua
esposa, porque Ela concebeu pela ação do Espírito Santo”.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias assim comenta esse episódio: “dife-
rentemente do que ele pensava, estava, sim, à altura de sua celestial esposa, tor-
nando-se um dos primeiros a conhecer o mistério sagrado da Encarnação do
Verbo”(4). Qual não terá sido a intensa e temperante alegria de São José ao
acordar depois de tal revelação? Poder não só presenciar, mas tomar parte ati-
va, impondo o nome ao próprio Filho de Deus. Belo prêmio de sua virgindade
puríssima!, como bem o descreve Santo Agostinho: “Quando Lucas refere que
Cristo nasceu da Virgem Maria e não do contato com José, por que o chama
Pai, senão pelo fato de ser, como entendemos retamente, esposo de Maria, não
pela união carnal, mas pelo pacto conjugal? Por isso é certamente pai de Cristo
muito mais íntimo, pelo fato de Ele ter-lhe nascido de sua esposa, que se o ti-
vesse adotado”(5) .
Fazer as vezes de pai do Homem-Deus na Terra e ser esposo da Rainha
dos Anjos… não poderia haver maior dignidade! Estar ao lado da nascente de
toda a pureza e conviver com a medianeira dos benefícios trazidos ao mundo
com a Redenção: é impossível imaginar um dom mais alto, um benefício mais
nobre e dignificante!
Com efeito, não poderia ter sido de outro modo. A grandeza da vocação
de São José, assim chamado à maior intimidade com Jesus e Maria, exigia dele
uma tal perfeição na virtude, que não se pode conceber nele o mínimo deslize
em matéria de virtude. É por isso que o mesmo Mons. João Clá Dias levanta
uma audaz, belíssima e acertada hipótese: a sua preservação da mancha e das
inclinações más, frutos do pecado de Adão e Eva: “Ao considerarmos, admira-
dos, a figura de São José e a elevação inimaginável de sua vocação — a ponto de
ser impossível cogitar outra mais alta —, vemos que ele está tão acima da nossa
condição que o julgamos na mesma proporção de Maria. Cabe, pois, perguntar:
acaso foi ele concebido sem pecado original? Até hoje o Magistério da Igreja
não afirmou o contrário de maneira definitiva, razão pela qual podem ser feitas
considerações teológicas favoráveis a tal hipótese”(6).
Encontramos, pois, dois varões castos elevados pela sua pureza aos mais
altos patamares da dignidade. José do Egito termina por ser o homem mais in-
fluente do enorme império dos faraós; São José recebe em tutela os tesouros
mais apreciados de Deus Pai: seu Filho encarnado e Maria Santíssima!
Seja São José o protetor vitorioso daqueles que lutam para manter seus
corações livres da sórdida escravidão da impureza, seja ele o auxílio e interces-

144
sor dos que caem e querem reerguer-se, tenha ele piedade e desperte as consci-
ências dos que se abandonam aos braços suaves e cruéis dos mentirosos delei-
tes de uma vida licenciosa.
Uma coisa é segura: futuramente a figura de São José será considerada,
sempre mais, como o cavaleiro glorioso da virgindade, modelo fulgurante da
castidade masculina, amparo eficaz de todos os que amam a inocência e comba-
tem a impureza.
Na próxima meditação, consideraremos a virtude da confiança em São
José, sempre a partir da figura de seu precursor: José do Egito.
_______________________________________
1.“Ecclesiae fides est, ut virgo fuerit et is qui simulatus est pater”. São Pedro
Damião. Epistola VI ad Nicolaum. In PL 145, 384.
2.São Tomás não só afirma a virgindade perpétua de São José, mas rejei-
ta como sendo doutrina que a Igreja não sustenta e falsa, a que lhe atribui filhos
de outro matrimônio anterior ao contraído com Maria Santíssima. Cf Comm.
in Io., c. 2, l. 2, 1; Ad Gal., c. 1, l. 5.
3.“Si Dominus Matrem Virginem noluit nisi virgini commendare custo-
diendam, quomodo sustinuisset sponsus eius, virginem non fuisse, et sic persis-
tisse”. São Tomás de Aquino. Ad Gal., c. 1, l. 5.
4. Scognamiglio Clá Dias, João. O inédito sobre os Evangelhos. Vol. VII,
p. 41
5. Santo Agostinho. De consenso Evangelistarum, 1. 2, n. 3. In PL 34,
1072. Tradução nossa.
6. Scognamiglio Clá Dias, João. O inédito sobre os Evangelhos. Vol. VII,
p. 54.

145
São José nos ensina a preservar a Pureza
A vidente italiana, Serva de Deus Maria Cecília Baij (século XVII), teve
visões e revelações sobre a vida privada de São José, onde destacamos como
preservou na pureza e castidade.
“José era quieto e muito comportado e assim muito alegrava seus pais,
em especial sua mãe que o criava com grande satisfação, com muita alegria e
com todos os cuidados possíveis. O menino, contrariamente a todos os outros
da mesma idade, não era grande apreciador de carícias e agrados normalmente
dispensados ás crianças. Quando ocorriam esses fatos, virava seu rosto, como
que em ato de desdém, parecendo querer mostrar – naquela sua tão tenra ida-
de – que os puros devem vigiar sua pureza sua inocência. Apenas para os seus
genitores permitia tais demonstrações de amor e carinho. Seus pais, entretanto,
se preocupavam quando notavam suas esquivas em relação às demonstrações
de afeto das outras pessoas”. 61
“José já tinha sete anos e mantinha sua candura sua inocência... ... Deus
lhe concedera também o amor pela pureza, que o anjo lhe recomendou em
seus sonhos dizendo ser ela uma das mais consideradas por Deus. E o Santo
decidiu-se por conservá-la por toda sua vida. Para tanto, suplicava a Deus que
lhe concedesse a graça de agir dessa forma e também propunha afastar-se de
situações perigosas e tentadoras nesse sentido. De fato, durante toda sua vida
controlou suas emoções rigorosamente, especialmente no que se referia ao seu
olhar, mantendo seus olhos elevados para o céu ou fixados no chão. A pureza
de sua alma era sobejamente conhecida por todos, e também a de seu corpo.
...Entretanto, não deixavam de exercer sobre a característica vigilância dos pais
e ele sempre se mostrava extremamente obediente em todos os sentidos”. 62
“Certa noite, entretanto, enquanto José dormia, o anjo lhe disse que
Deus estava devesas satisfeito com seu propósito de manter-se virgem por toa
sua vida e que Ele lhe permitia muitos favorecimentos e Seu particular apoio.
Ele lhe mostrou então um cinto, de beleza e valor inestimáveis, e disse: “O Se-
nhor te manda este cinto como sinal da alegria que tem a respeito de teu pro-
pósito e como graça te concede para que sempre conserve tua pureza. E me
ordenou para que com ele te cingisse”. Após essas palavras, o anjo se aproxi-
mou e colocou aquele cinto em José, orientando-o para que agradecesse a Deus
pela dádiva recebida e pela graça que lhe concedia. Ao acordar, José se levan-
tou rapidamente, ajoelhou-se e agradeceu a dádiva recebida que lhe fora entre-
gue, através da qual ele jamais seria molestado nesse aspecto específico. E, em-
bora o demônio o tentasse em várias ocasiões, Deus nunca permitiu que ele
sucumbisse àquelas tentações, fazendo com que ele mantivesse sua admirável
61
Vida de São José, de Maria Cecília Baij, - Acrópole, Edtora e Distribuidora Ltda, (1984) - pág. 14.
62
Op. Cit. Pág. 23/24

146
pureza e o tornando assim digno de conviver com a Rainha das Virgens e de
protegê-La”. 63
“O Santo se manteve dentro desse sistema de vida até seus quinze anos,
conservando sempre sua candura e sua inocência, sem causar qualquer desgos-
to a Deus não somente quanto a culpas graves, mas até quanto ás mais leves. ...
Por isso, muito se preocupava com as ocorrências ligeiras, cuidando com o
maior rigor de seus sentidos e sentimentos, em especial de seu olhar, jamais
fitando diretamente nos olhos a pessoa alguma – em particular do sexo oposto
– pois era de seu conhecimento que Davi, entre muitos outros, tinha sido casti-
gado por sua curiosidade quanto a coisas e acontecimentos dos quais é necessá-
rio fugir. E quanto mais José reprimia seus sentimentos, mantendo assim intacta
sua fidelidade a Deus, tanto mais Ele o agraciava e tanto mais ele O amava, ob-
jeto único de seu amor e de suas preces. Em determinadas ocasiões, quando
sentia algum desejo de olhar para algo que o agradava – mas que poderia de-
pois causar-lhe alguma sensação de culpa – elevava rapidamente seus olhos para
o alto e se deliciava contemplando as belezas criadas por Deus e era assim to-
mado por grande sentimento de alegria”.64

63
Op. Cit. Pág. 25
64
Op.. cit. Pág. 34

147
7 Exemplos bíblicos e dos santos sobre a castidade

Textos bíblicos sobre a impureza


Em várias passagens, a Sagrada Escritura faz referência ao pecado contra
a castidade, de modo particular prevenindo os homens sobre os perigos da ma-
lícia feminina.
"Vós, pois ensinareis aos filhos de Israel, que se guardem da impureza,
para não morrerem nas suas imundícies, tendo violado o meu tabernáculo, que
está no meio deles". (Levítico 15, 31).
"Não terás acesso à mulher, que padece o seu mênstruo, e não descobri-
rás as suas imundícies. Não terás cópula com a mulher do teu próximo, nem te
deixarás manchar com esta vergonhosa e ilegítima união. Não darás nenhum de
teus filhos para ser consagrado ao ídolo de Moloc, nem mancharás o nome do
teu Deus. Eu sou o Senhor. Não usarás de macho como se fosse fêmea, porque
isto é uma abominação. Não te ajuntarás com besta alguma, nem te mancharás
com ela. A mulher não se prostituirá deste modo a algum animal, porque isto é
um crime da última fealdade". (Levítico 18, 19-23)
"Se algum abusar da mulher do outro, e cometer adultério com a mulher
de seu próximo, sejam ambos punidos de morte, o adúltero e a adúltera". (Leví-
tico 20, 10).
"Aquele que dormir com macho, abusando dele como se fosse fêmea,
morram ambos de morte, como quem cometeu um crime execrável: o seu san-
gue recaia sobre eles'. (Levítico 20, 13).
"Mas se tu te apartaste de teu marido, e te manchaste, e te deitaste com
outro homem: cairão sobre ti estas maldições: o Senhor te faça um objeto de
maldição, e um exemplo para todo o seu povo; Ele faça que apodreça a tua co-
xa, e que o teu ventre inchado arrebente. Estas águas de maldição entrem no
teu ventre, e inchando-te o útero, apodreça a coxa". (Números 5, 20-22).

148
A) Exemplos bíblicos de pureza e castidade
1. José do Egito

(Acima; José perante o Faraó,)

Um dos doze Patriarcas, filho de Jacob, era José. Foi vendido pelos ir-
mãos como escravo, indo parar na casa de Putifar, eunuco do Faraó e general
do exército egípcio. Para os puros a formosura e gentileza devem servir de ma-
ravilhamento e encanto, mas para os impuros pode ser um atrativo para o ultra-
je da castidade. Como José era “de rosto formoso e aspecto gentil”, a mulher de
seu senhor se viu, pois, tentada a pecar com ele.
"Passado muito tempo, lançou sua ama os olhos sobre ele, e disse-lhe:
Dorme comigo. Mas José tendo horror de cometer uma tão abominável ação
lhe disse: Tu vês que meu amo me tem confiado tudo; que ele nem ainda sabe

149
o que tem em sua casa; que nela não há nada que não esteja em meu poder; e
que ele tendo entregado tudo nas minhas mãos, só reservou para si a ti, que és
sua mulher. Como logo poderei eu cometer um tão grande crime, e pecar con-
tra o meu Deus? Continuou a mulher muitos dias a solicitar José com palavras
semelhantes, e ele a resistir ao seu infame desejo. Ora sucedeu um dia, que
tendo José entrado em casa, e estando fazendo certa coisa, sem ninguém se
achar ali presente, sua ama lhe pegou pela capa, e lhe disse: Dorme comigo.
Então José largando-lhe a capa nas mãos, fugiu, e saiu para fora" (Gên 39, 7-12).
Por haver recusado pecar, o Patriarca José foi caluniado injustamente e
condenado à prisão. Mesmo sabendo que poderia sofrer tal pena, no entanto
ele se recusou obstinadamente aos apetites carnais da mulher de Putifar. Deus
o premiou por sua fidelidade, concedendo-lhe o dom de profetizar e desvendar
os sonhos do Faraó, com o que não só conseguiu libertar-se, mas conquistar o
cargo de confiança do rei, tornando-se o seu superintendente:
“Tu governarás a minha casa, e ao mando de tua voz obedecerá todo o
povo; eu não terei sobre ti outra precedência alem do trono. O Faraó disse
mais a José: Eis que te dou autoridade sobre toda a terra do Egito. Tirou o anel
da sua mão e colocou-o na mão dele; vestiu-lhe um vestido de linho fino e pôs-
lhe ao pescoço um colar de ouro. E fê-lo subir para o seu segundo coche, cla-
mando o pregoeiro que todos ajoelhassem diante dele, e soubessem que era o
superintendente de toda a terra do Egito”. (Gên 41, 40-43).

2. História de Susana

Havia também um homem que habitava em Babilônia, e o seu nome era


Joaquim. Este casou, pois com uma mulher chamada Susana, filha de Helcias,
formosíssima e temente a Deus: porque seus pais, como eram justos, instruíram
a sua filha segundo a lei de Moisés.
Ora, Joaquim era muito rico e tinha uma horta ajardinada junto a sua ca-
sa: e os judeus concorriam a ele, porque era o mais respeitável de todos.
Naquele ano, porém tinham sido constituídos juízos dois velhos dentre o
povo, dos quais falou o Senhor quando disse: que a iniqüidade saiu de Babilô-
nia por uns velhos que eram juízes, os quais pareciam governar o povo. Estes
freqüentavam a casa de Joaquim, e a eles vinham todos os que tinham negócios
para julgar. E ao meio-dia, quando o povo se tinha ido, entrava Susana, e passe-
ava no pomar de seu marido.
E estes velhos a viam entrar, e passear todos os dias: e conceberam uma
ardente paixão por ela: e assim perverteram o seu sentido, e voltaram os seus
olhos para não verem o céu, nem se lembraram dos justos juízos. Eles, pois es-
tavam ambos feridos do amor de Susana, e, todavia não declaravam um ao ou-

150
tro o motivo da sua dor; porque se envergonhavam de descobrir um ao outro o
seu libidinoso apetite, tendo cada um tenção de corromper Susana. Assim eles
observavam todos os dias com grande cuidado o tempo em que a poderiam
ver. Um dia, pois disse um ao outro: Vamos para casa, porque são horas de
jantar. E tendo saído, se separaram um do outro. Mas tornando logo a vir, se
encontraram de novo no mesmo lugar: e depois de se terem perguntado de par-
te a causa, confessaram ambos a sa paixão, e então de comum acordo, ajusta-
ram tempo, em que a pudessem achar só.
Aconteceu, pois que aguardando eles uma ocasião oportuna, entrou ela
enfim como tinha de costume, acompanhada somente de duas donzelas, e quis
lavar-se no pomar: porque fazia calma: e não estava então ali ninguém, senão os
dois velhos, que estavam escondidos e a estavam contemplando. Disse, pois
Susana às donzelas: Trazei-me cá os óleos, e as pomadas, e fechai as portas do
jardim, para me lavar. E fizeram as donzelas o que ela lhes tinha mandado: e
fecharam as portas do jardim, e saíram pela porta travessa para trazerem o que
lhes tinha mandado: elas não sabiam que os velhos estavam dentro escondidos.
E tanto que as donzelas saíram, levantaram-se os dois velhos, e correram
a ela, e lhe disseram: Eis aí estão fechadas as portas do jardim, e ninguém nos
vê, e nós ardemos em paixão por ti: rende-te, pois ao nosso desejo, e entrega-te
a nós: porque se tu não quiseres, daremos testemunho contra ti, dizendo que
estava contigo um mancebo, e que por isso despediste as donzelas.
Ao ouvir isto, deu Susana um grande gemido, e disse: De todas as partes
me vejo cercada de angústias: porque se eu fizer o que vós desejais, incorro na
morte: e se não fizer não escaparei de vossas mãos. Porém melhor me é a mim
cair entre as vossas mãos sem cometer o mal, do que pecar na presença do Se-
nhor.
E imediatamente deu Susana um grande grito; e os velhos também grita-
ram contra ela. E um deles correu à porta do jardim e a abriu. Os criados da
casa tendo, pois ouvido gritar no jardim, correrem lá pela outra travessa com
ímpeto para verem o que era. E depois que lhos disseram os velhos, ficaram os
criados sumamente envergonhados, porque nunca tal coisa nunca se tinha dito
de Susana. E amanheceu o dia seguinte.
E tendo vindo o povo à casa de Joaquim, seu marido, vieram também os
dois velhos, cheios de iníquo pensamento que tinham formado contra Susana,
para lhe fazerem perder a vida. E eles disseram diante do povo: Mandai buscar
a Susana, filha de Helcias, mulher de Joaquim. E logo a mandaram buscar. E
ela veio acompanhada de seus pais e de seus filhos e de todos os seus parentes.
Ora Susana era por extremo delicada, e de uma formosura extraordinária. En-
tão aqueles iníquos lhe mandara descobrir o rosto (porque o tinha coberto com

151
um véu) para se fartarem ao menos assim com a vista da sua beleza. À vista,
pois deste caso choravam os seus, e todos os que a conheciam.
Então aqueles dois velhos levantando-se no meio do povo, puseram as
suas mãos sobre a cabeça de Susana. A qual chorando levantou os olhos ao
céu: porque o seu coração tinha uma firme confiança no Senhor. E os velhos
disseram: Quando nós passeávamos sós no jardim, entrou esta mulher com du-
as donzelas: e fechou a porta do jardim, e despediu de si as donzelas. E um
mancebo, que estava escondido veio-lhe ao encontro, e pecou com ela. Ora
nós, que estávamos escondidos a um canto do jardim, vendo esta maldade, cor-
remos a eles, e os vimos estar ambos neste ato. E nós não pudemos na verdade
apanhar o mancebo, porque era mais forte do que nós e tendo aberto a porta se
salvou correndo: mas tendo nós apanhado a esta, lhe perguntamos que mance-
bo era aquele, e ela não no-lo quis dizer. Deste sucesso somos testemunhas.
Todo o ajuntamento lhes deu crédito, como a velhos e a juízes do povo,
e eles a condenaram á morte. Então exclamou Susana muito de rijo e disse:
Deus eterno, que penetras as coisas escondidas, que conheces todas as coisas
ainda antes que elas sejam feitas. Tu sabes que eles deram contra mim um fal-
so testemunho: e eis aqui morro, sendo que eu não fiz nada do que eles inven-
taram maliciosamente contra mim.
E escutou o Senhor a sua oração. E quando a conduziam á morte, susci-
tou o Senhor o santo espírito de um moço ainda menino, cujo nome era Dani-
el: e gritou em alta voz dizendo: Eu estou inocente do sangue desta mulher. E
tendo-se voltado para ele todo o povo, lhe disse: Que quer dizer essa palavra
que tu acabas de proferir? Daniel, pondo-se em pé no meio deles, disse: É pos-
sível, filhos de Israel, que sejais vós tão fátuos que sem forma de juízo, e sem
mais informação da verdade, condenastes a uma filha de Israel? Tornai a julgá-
la de novo, porque eles disseram um falso testemunho contra ela.
Voltou, pois o povo apressadamente, e os velhos disseram a Daniel:
Vem, e assenta-te no meio de nós, e instrui-nos: porque Deus te deu a honra da
velhice. Daniel disse aos do povo: Separai-vos longe um do outro, e eu os julga-
rei.
Tendo sido, pois separados um do outro, chamou Daniel um deles, e lhe
disse: Homem inveterado no mal, os pecados que tu cometias noutro tempo,
caíram agora sobre ti, sobre ti que pronunciavas juízos injustos, que oprimias os
inocentes, e que absolvias os culpados, apesar de dizer o Senhor: Tu não farás
morrer o inocente e o justo. Agora, pois, se tu apanhaste esta mulher, dize de-
baixo de que árvore os viste tu falar um com o outro. Ele respondeu: Debaixo
de um lentisco. E Daniel lhe disse: Justamente é que a tua mentira vai a recair
sobre a tua cabeça: porque eis aí o anjo de Deus, que tendo recebido dele o
poder de executar a sentença contra ti proferida, te partirá pelo meio.

152
E feito retirar este, mandou que viesse o outro: e lhe disse: Raça de Ca-
naã, e não de Judá, a formosura te seduziu, e a concupiscência te perverteu o
coração. Assim é que tu fazias às filhas de Israel, e elas por medo falavam con-
vosco: mas a filha de Judá não sofreu a vossa iniqüidade. Dize-me, pois agora,
debaixo de que árvore os apanhaste tu, quando se estavam falando. Respondeu
ele: Debaixo de um carvalho. E Daniel lhe disse: Justamente é também que a
tua mentira vai a recair sobre a tua cabeça: porque o anjo do Senhor está espe-
rando com a espada na mão, para te cortar pelo meio, e para vos matar a am-
bos.
Logo todo o povo gritou em altas vozes e bendisseram a Deus, que salva
aos que esperam nele. E eles se levantaram contra os dois velhos (porque Da-
niel os tinha convencido por sua própria boca de terem dado um testemunho
falso) e lhes fizeram sofrer o mesmo mal que os dois tinham querido fazer a seu
próximo, para cumprirem a lei de Moisés: assim eles o mataram e o sangue
inocente foi salvo naquele dia.
Então Helcias e sua mulher louvaram a Deus por Susana, sua filha, com
Joaquim, seu marido, e com todos os parentes, por se não ter nela achado coisa
que ofendesse a honestidade.
E Daniel desde este dia, e pelo decurso do tempo, se fez grande diante
do povo.
(Dan XIII)

153
3. Judite encontra na castidade forças para seu feito heróico

Viúva de Manassés da tribo de Rubem, Judite é a personagem principal


do Livro que leva seu nome. Levava vida virtuosa e exemplar em Betúlia,
quando a cidade foi cercada pelo exército de Holofernes, general persa a servi-
ço do rei da Assíria, Nabucodonosor. Em sua campanha, o general já havia sub-
jugado várias cidades e espalhava o terror por onde passava. Ozias, o chefe da
cidade de Betúlia, prometeu também render-se se dentro de cinco dias Deus
não mandasse socorro. Judite, muito ardorosa, censurou sua gente pela falta de
espírito guerreiro e resolveu, ela mesma, tentar salvar a cidade. Chamando al-
guns anciãos, disse ela: “Que palavra é esta, em que conveio Ozias, de entregar
a cidade aos assírios, se dentro de cinco dias vos não viesse socorro? Não são
estas palavras que conciliem sua misericórdia, mas antes são palavras de excitar
a ira, e de acender furor. Vós prescrevestes o termo à misericórdia do Senhor,
e ao vosso arbítrio lhe assinastes o dia. Mas porque o Senhor é paciente, arre-
pendamo-nos disto mesmo, derramando lágrimas imploremos a sua misericór-
dia...”
Após tão inflamado discurso, Judite poderia ser recriminada pelos an-
ciãos, pois era mulher. Mas devido à sua vida virtuosa, todos a ouviram com
atenção e lhe deram razão. Em seguida, ela lhes explica o seu plano, dizendo
que ia até o acampamento inimigo, acompanhada apenas de sua criada. Embo-
ra não dissesse o que pretendia fazer, de tal forma falava inspirada por Deus
que os anciãos aprovaram seu plano. Talvez percebendo que a valorosa viúva

154
pretendia executar um plano muito audacioso, o ancião principal, Ozias, ape-
nas lhe disse: Vai em paz, e o Senhor seja contigo.
Mas Judite não resolveu de imediato executar seu plano. Antes de tudo
foi rezar. Entrou no seu oratório, e vestindo-se cilício e pondo cinza sobra a sua
cabeça, prostrou-se diante de Deus e rezou.
Terminada a oração, chamou a sua criada para lhe ajudar a preparar-se
para executar seus desígnios. Tirou de si o cilício e despiu-se das roupas da viu-
vez, lavando-se e ungindo-se com preciosos perfumes, trançou os cabelos no
alto da cabeça, vestiu-se com os melhores vestidos de gala, calçou as melhores
sandálias que possuía, colocou em seu corpo jóias e anéis os mais preciosos. O
Senhor lhe acrescentou a gentileza: porque todo este adorno não procedia de
mau desejo, mas de virtude. Ficou com tal formosura que passou a ser vista por
todos com incomparável beleza.
Assim, toda embelezada e formosa, parecendo uma rainha, Judite se di-
rigiu ao acampamento inimigo. Perante os guardas disse que pretendia ir à pre-
sença de Holofernes, pois queria fugir da presença dos hebreus e do saque que
haveria na cidade e revelar alguns segredos ao general. Considerando a presen-
ça daquela formidável criatura, sua gentileza, seu trato afável e meigo, os solda-
dos aquiesceram e levaram-na à presença do comandante.
Vendo-a, o general ficou tão encantado que logo a convidou para um
banquete, supondo talvez que Judite fosse uma mulher vulgar e estivesse ali
apenas para desfrutar os prazeres da carne. Aproveitando a ocasião, a virtuosa
viúva procurou embriagar o general dando-lhe bastante vinho, coisa que era
comum entre aqueles homens. Deixaram Judite a sós com o bêbado em sua
tenda, o que foi fatal para ele, pois logo adormeceu embriagado. Pegou ela seu
alfanje e, cortando por duas vezes seu pescoço, tirou do corpo a cabeça de Ho-
lofernes. Entregou a referida cabeça à sua criada, mandando que pusesse num
saco, e levou-a para Betúlia.
Quando os assírios descobriram que seu invicto general jazia morto sem
a cabeça, fugiram apavorados. Da mesma forma, quando os judeus viram a
tremenda coragem de Judite, levando-lhes a cabeça do terrível general de Na-
bucodonosor, criaram ânimo e deram combate ao inimigo, causando-lhes tre-
mendas baixas.
Conforme afirma Santo Ambrósio "a pureza é a que comunica à alma o
heroísmo". Foi assim que a própria Sagrada Escritura elogiando o feito de Judi-
te confirmou esta realidade: "Porque procedeste varonilmente e o teu coração
foi cheio de força; porque amaste a castidade, e, depois do teu marido, não co-
nheceste outro homem; por isso não só a mão do Senhor te fortaleceu, mas
também serás bendita eternamente". (Jud 15, 11).

155
4. Esposa de Davi é guardada e devolvida intocada

Um outro episódio mostra outro aspecto da questão: trata-se da repri-


menda que a mulher de David, Micol, fez-lhe, aparentemente com boas inten-
ções, mas podendo revelar fraqueza ou respeito humano, talvez espírito vaidoso
por ver o seu esposo e rei dançar com o povo e se expor a cenas humilhantes,
sendo por isso castigada com a esterilidade. Assim narra o fato a Sagrada Escri-
tura:
“Retirou-se também Davi à sua casa, para a abençoar; e Micol, filha de
Saul, tendo saído ao encontro de Davi, disse: Que bela figura fez hoje o rei de
Israel, despindo-se diante das escravas e de seus vassalos, e desnudando-se co-
mo faria um chocarreiro. Davi disse a Micol: Diante do Senhor, que me esco-
lheu preferindo-me a teu pai e a toda a sua família, e que me mandou que fosse
eu o condutor do povo do Senhor em Israel, não só dançarei, mas também me
farei mais vil do que me tenho feito, serei humilde os meus olhos, e com isto
aparecerei com mais glória diante das escravas, de que falaste. Por esta razão
Micol, filha de Saul, não teve filhos até ao dia da sua morte” (II Sam 6, 20-23).
O texto não dá a entender a causa de Micol não ter tido filhos, se por ter
ficado estéril, haver perseverado na castidade ou porque Davi a rejeitou. Em
todo o caso, de uma forma ou de outra, naqueles tempos o fato de não ter fi-
lhos era motivo de opróbrio para a mulher e o fato era sempre uma pena seve-
ra. E parece que a reprimenda que ela deu ao rei não era tão má assim, pois o
censurava por se expor perante as escravas, dançando na frente delas. De outro
lado, esta esposa de Davi foi preservada na castidade pelo varão Falti, ao qual
Saul havia entregue a filha quando Davi foi para a guerra mas a devolveu intac-
ta. Comenta Caetano que a Sagrada Escritura mudou o nome de Falti para Fal-
tiel quando este devolveu a mulher de Davi sem tocá-la, pois a partícula “el”
em hebraico quer dizer Deus, era como se Falti tivesse adquirido com isto um
dom divino. (II Sam 3, 14-16), passando a ser chamada “Falti-el’, ou, “Falti de
Deus”..

156
5. Tobias e a castidade matrimonial

Eram dois os Tobias: pai e filho. Enquanto Tobias pai rezava para que
Deus o tirasse desta vida porque não suportava mais ver os juízos de Deus so-
bre seu povo, entregue ao saque, ao cativeiro e à morte, e mesmo assim impeni-
tente, em outra localidade uma mulher sofria por causa da influência de um
poderoso demônio, chamado Asmodeu: por sete vezes a dita mulher, chamada
Sara, havia se preparado para o casamento, e o referido demônio matara seus
sete noivos. Rezando a Deus, assim se lamentava “Tu sabes, Senhor, que eu
nunca desejei nenhum homem e que conservei a minha alma pura de toda
concupiscência. Nunca acompanhei com gente licenciosa, nem tive comércio
com os que se portam com leviandade. Consenti em tomar marido no teu te-

157
mor e não por paixão. E, ou eu fui indigna deles, ou talvez eles não foram dig-
nos de mim, porque tu acaso me tens reservado para outro marido”(Tob 3, 16-
19). E continuava Sara sua oração demonstrando inteira conformidade com os
desígnios de Deus, a exemplo de Tobias e Jó.
Tobias, o pai, estava vivendo com seu povo, o qual, por causa dos demô-
nios da idolatria que lhes infestavam, necessitava que uma alma santa se imolas-
se por eles. De outro lado, Sara vivia em meio aos medos, povo distante dos
hebreus, e cheio das piores influências diabólicas, principalmente dos que cau-
savam pecados de luxúria. Dentre os diversos conselhos que o pai deu ao filho,
além da prática da caridade das esmolas e de enterrar os mortos, pediu que evi-
tasse toda fornicação e fugisse da soberba. Pensando que ia morrer, Tobias
recomendou ao filho que se dirigisse à terra de Sara a fim de receber determi-
nado dinheiro, com o qual esperava viver o resto de seus dias.

São Rafael, o Arcanjo que cura nossos males e exorciza demônios


A missão de Tobias filho parecia-lhe muito difícil, alegando que não co-
nhecia as pessoas de quem iria cobrar o dinheiro e nem o caminho para a terra
dos medos. Ao sair de casa encontrou um jovem de belo aspecto, o qual dizia
que conhecia o caminho e que lhe levaria a seu destino. Era o Arcanjo São Ra-
fael.
Desconfiado, Tobias pai fez perguntas ao Arcanjo sobre sua família, sem
saber que o mesmo era um Anjo. São Rafael, a fim de acalmar o ancião, disse
que se chamava Azarias, filho de um grande homem chamado Ananias. Tendo
tomado uma forma corpórea, provavelmente daquele Azarias, o Arcanjo dizia-
se ser o mesmo para que Tobias tivesse confiança nele. E assim, lá se foram os
dois, São Rafael e Tobias filho, em busca da terra de Sara, chamada Ragés, ci-
dade situada na parte oriental da antiga Média. Lá eles iriam encontrar-se com
Gabelo, israelita da tribo da Neftali que devia 10 talentos de prata a Tobias pai.
No meio do caminho, encontram-se os dois viajantes com um monstro,
um enorme peixe que tentava devorar Tobias. O jovem Tobias confiou pron-
tamente nas recomendações de São Rafael e sem titubear pegou o monstro pe-
las guelras e dominou-o. Em seguida, tirou-lhe o coração, o fel e o fígado, que o
Anjo dizia lhes servir de remédio. O que curava eles? : “Se tu puseres um pe-
dacinho do seu coração sobre brasas acesas, o seu fumo afugenta toda a casta
de demônios, tanto do homem quanto da mulher, de sorte que não tornam
mais a chegar a eles. O fel é bom para untar os olhos que têm algumas névoas,
e sararão”. É curioso que São Rafael não fale aqui para que serve o fígado, mas
somente adiante quando explicar sobre o exorcismo que se fará sobre Asmo-
deu.

158
Aqueles sobre os quais o demônio tem poder
Quando São Rafael contou a Tobias qual era o seu destino e que ele de-
veria pedir Sara em casamento, mesmo tendo já morrido seus sete pretendentes
anteriores, este ficou amedrontado e falou que estava temeroso de lhe suceder a
mesma coisa. São Rafael o acalmou dizendo: “Eu te mostrarei quais são aqueles
sobre quem o demônio tem poder. São os que se casam com tais disposições
que lançam a Deus fora de si e do seu espírito e se entregam à sua paixão, co-
mo o cavalo e o jumento, que não têm entendimento”.
Após falar da causa da possessão espiritual, aqueles sobre os quais o de-
mônio tem poder, São Rafael passa a dar conselhos para se conseguir a expul-
são de Satanás: “Mas tu, quando a tiveres recebido, tendo entrado na câmara,
viverás com ela em continência durante três dias, e não cuidarás noutra coisa
que em fazer oração com ela. Nesta mesma noite, queimando o fígado do pei-
xe, será posto em fuga o demônio. Na segunda noite serás admitido na socie-
dade dos santos patriarcas. Na terceira noite conseguirás a bênção, para que de
vós nasça filhos robustos. Passada a terceira noite, tomarás a donzela no temor
do Senhor, levado mais pelo desejo de ter filhos, do que por sensualidade, a
fim de conseguires nos filhos a bênção reservada à descendência de Abraão”
(Tob 6, 18-22).
Todas as bênçãos prometidas em segundo plano virão como conseqüên-
cia de se exorcizar primeiramente os demônios, principalmente o da luxúria.
Primeiro passo, a prática da castidade convivendo com a esposa por três dias
em estado de oração; em segundo lugar, obedecendo à recomendação angélica
de pôr fogo no fígado do peixe, estará ele combatendo o orgulho. Na noite se-
guinte virão as bênçãos: Tobias será admitido numa associação de santos, na
“sociedade dos patriarcas”, instituição divina desde quando Deus criou Adão.
E, na hora em que tomar a moça, a união carnal propriamente dita, deverá fa-
zê-lo com o pensamento único de com ela ter filhos e não por sensualidade,
tendo aí como prêmio a mesma bênção que foi dada a Abraão. Que grandeza!
Tudo isto é prometido porque o santo varão praticou duas virtudes: a castidade
matrimonial e a humildade. Combateu o demônio da sensualidade e do orgu-
lho ao mesmo tempo.

159
6. Conselhos da Sagrada Escritura

"Não dês a mulher poder sobre a tua alma, para que se não levante con-
tra a tua autoridade, e fiques envergonhado.
Não olhes para a mulher volúvel, para que não suceda caíres nos seus la-
ços.
Não freqüentes o trato com a bailarina, nem a ouças, para que não suce-
da pereceres à força dos seus atrativos.
Não detenha os olhos sobre uma donzela, para que a sua beleza não te
seja ocasião de queda.
Nunca entregues a tua alma às prostitutas, para que não te percas a ti e
aos teus bens.
Não deixes errar os olhos pelas ruas da cidade, nem andes vagueando pe-
las suas praças.
Afasta os teus olhos da mulher enfeitada, e não olhes com curiosidade a
formosura alheia.
Por causa da formosura da mulher pereceram muitos, e por ela se acen-
de a concupiscência como o fogo.
Toda a mulher que é prostituta será pisada como esterco no caminho.
Muitos, por terem admirado a formosura da mulher alheia, se tornaram
réprobos; porque a sua conversação queima como fogo.
Não te assentes jamais com a mulher alheia, nem te recostes com ela à
mesa sobre o cotovelo; e não disputes com ela, bebendo vinho, para que não
suceda que o teu coração se converta para ela, e que a tua paixão te faça cair na
perdição" (Eclesiástico, 9, 2-13).

160
B) Vários exemplos dos Santos e pessoas virtuosas
1. Como São Basílio livrou da possessão um rapaz feito escravo do demô-
nio por causa da concupiscência carnal

Heradio, homem venerável, tinha o propósito de consagrar a Deus a sua


única filha: porém o demônio, conhecedor desse projeto, tratou de impedir
que o levasse a cabo, fazendo com que um dos criados do piedoso varão se
enamorasse apaixonadamente pela donzela. Logo que o ardoroso enamorado
caiu na conta de que seu matrimônio com a filha do seu amo era impossível,
ele era servo e ela de condição nobre, mas disposto a sair adiante em seu dese-
jo, foi ver um mago e lhe prometeu dar muitíssimo dinheiro se com suas artes
mágicas conseguisse que o casamento se celebrasse. O feiticeiro disse-lhe:
- Meu poder não chegará a tanto, mas sim o de meu senhor, o diabo. Se
queres ir até ele eu te darei uma carta de recomendação e ele te atenderá; e se
seguires suas recomendações tem por certo que conseguirás o que pretendes.
- Dá-me esta carta - respondeu o jovem. Farei o que tu e ele queirais.

161
O feiticeiro escreveu um bilhete em que dizia ao diabo: "Meu senhor:
movido pelo maior desejo de cumprir diligente e solicitamente o compromisso
que contigo tenho adquirido de apartar de sua religião o maior número possível
de cristãos e de submetê-los a teu domínio para que teu partido cresça e se mul-
tiplique de dia a dia, te envio a este jovem que arde de amor por uma donzela.
Rogo-te que lhe ajude, porque a solução favorável deste caso aumentará meu
prestígio e contribuirá a que venham muitos outros a solicitar meus serviços;
com isto aumentarei também teu partido, pois já sabes que a quantos me pro-
curam trato de pô-los sob tua bandeira". O mago fechou a carta, entregou-a ao
jovem e lhe disse:
- Esta noite, a tal hora, colocar-te-á sobre a tumba de um pagão qualquer,
chamarás ao demônio lançando ao mesmo tempo este bilhete para o alto, e em
seguida acudirá meu senhor e te atenderá.
O jovem fez ponto por ponto quanto o feiticeiro lhe indicou, e tão logo
lançou a carta para o ar, compareceu perante ele Satanás rodeado de infinidade
de espíritos, leu o que o escrito dizia e perguntou ao jovem:
- Crês em mim? Porque se não crês não posso ajudara-te a conseguir o
que desejas.
- Creio, senhor; respondeu ele.
- Renegas a Jesus Cristo?
- Renego.
- Sois pérfidos, cristãos; acudis a mim quando me necessitais, mas logo
que conseguis o que buscais me abandonais e tornais a vosso Cristo, que como
é clemente os recebe e perdoa. Se queres, pois, que te ajude a ir adiante no que
pretendes, é preciso que antes redijas e assines com tua própria mão um docu-
mento em que expressamente faças constar que renegas tua fé em Jesus Cristo,
teu batismo e tua condição de cristão, e que te entregas a mim para sempre, por
toda vida, e que aceitas a condenação eterna no dia do Juízo.
O jovem imediatamente redigiu um escrito em que jurava que renunciava
a Jesus Cristo e se passava às filas do diabo. Cumprido isto, Satanás chamou os
espíritos malignos encarregados de promover a fornicação e lhes mandou que
trabalhassem o ânimo da donzela filha de Heradio e não cessassem até haver
conseguido acender em seu coração um amor apaixonado por aquele jovem.
Recebida esta ordem, os espíritos se foram a cumprir imediatamente a missão
que lhes havia sido confiada por seu chefe. Seu êxito foi fulgurante e rápido. A
donzela começou a sentir-se inflamada de amor pelo servo de seu pai, com tal
violência que dali a pouco se apresentou ante Heradio e, prostrando-se a seus
pés, lhe disse:
- Pai meu, tem compaixão de mim, te suplico. Faz algum tempo que vivo
atormentada por um amor irresistível por teu criado; demonstra-me que és um

162
pai compreensivo e que me queres de verdade, permitindo-me que case com
ele. O amo tão apaixonadamente, que sem ele minha vida é uma insuportável
tortura e carece de sentido, até o ponto que, se não atendes ao que te peço,
morrerei de imediato e tu terás que dar contas a Deus desta morte no dia do
Juízo.
Heradio, entre clamores e gemidos, respondeu:
- Desgraçado de mim! Mas, que aconteceu com minha filha? Quem me
tem roubado o tesouro de meu coração? Quem tem apagado a doce luz de
meus olhos? Eu queria entregar-te ao esposo celestial para que esta entrega con-
tribuísse para minha eterna salvação e tu me sais com a loucura de fomentar em
tua alma apetites lascivos! Minha filha! Deixa que as coisas se façam como as
tinha previsto. Aceita meu plano de consagrar-te ao Senhor. Não me cause em
minha velhice uma dor desta natureza, que acabará comigo e me levará rapi-
damente à tumba.
Sem atender a estas reflexões, a filha interrompeu o pai dizendo:
- Ou me permites satisfazer quanto antes meus desejos, ou dentro de
pouco tempo me verás morta.
Chorando amargamente, aos gritos, como louca, passava a jovem seus di-
as e suas noites. Desolado andava o pai pela casa, o qual, cedendo aos gemidos
dolorosos de sua filha e aos conselhos de seus amigos, com quem consultou o
sério problema que lhe preocupava, permitiu que a donzela se casasse com o
servo e até lhe entregou todos os bens, dizendo-lhe:
- Filha minha desgraçada! Posto que te empenhas nisto, anda e casa-te
com ele!
Casaram-se, pois, a nobre e o escravo. Como este nem entrava na igreja,
nem fazia o sinal da cruz, nem se recomendava a Deus, alguns, que o notaram,
perguntaram à esposa:
- Sabes que teu marido, com quem te empenhaste em casar, nem vai ao
templo nem sequer é cristão?
Ela, ao comprovar que isto era certo, assustada e prostrada em terra co-
meçou a arranhar-se o rosto em sinal de dor, a golpear-se o peito e a dizer:
- Ai, infeliz de mim! Por que nasci? E já que nasci por que não morri ao
sair do ventre de minha mãe?
Depois referiu ao seu esposo o que dele haviam dito. Este lhe assegurou
que tudo aquilo era completamente falso. Mas ela lhe replicou:
- Se queres que te acredite, terás que me acompanhar amanhã à igreja.
Ante esta intimação, o marido, compreendendo que não podia continuar
ocultando sua situação, contou à esposa tudo o que lhe havia ocorrido. Cheia
de dor e profundamente afligida, a recém casada foi ver a São Basílio e lhe re-
feriu tudo que seu marido lhe havia contado e lhe suplicou que os ajudasse, a

163
ela e a seu esposo, a sair da enrascada em que se achavam metidos. São Basílio
chamou ao esposo, ouviu de seus lábios o relato do sucedido e logo lhe pergun-
tou:
- Filho, queres voltar a Deus?
- Sim, senhor, quero, porém não posso, porque tenho renegado de Cris-
to e entregue ao demônio um documento assinado por mim em que faço cons-
tar que me tenho consagrado definitivamente a seu serviço.
O santo tranqüiliza dizendo:
- Não te preocupes; Deus é misericordioso; se te arrependes e regressas a
Ele, te perdoará.
Ato seguido São Basílio traçou o sinal da cruz sobre a fronte do jovem;
logo o recolheu numa cela. Três dias depois foi visitá-lo e lhe perguntou:
- Como te encontras?
O recluso lhe respondeu:
- Muito acovardado. Não posso suportar os gritos que os demônios dão
constantemente em meu redor nem o terror que me causam com suas ameaças;
a cada passo e a cada momento me apresentam o escrito que assinei dizendo-
me: nós não fomos à tua procura; foste tu que vieste a nós.
- Meu filho - replicou o santo. Não temas; tem confiança, e, sobretudo,
crê.
São Basílio, após confortá-lo e entregar-lhe algo de comida que havia le-
vado, traçou-lhe de novo o sinal da cruz sobre a fronte e se foi, deixando-o no-
vamente na solidão de sua reclusão. Porém alguns dias depois voltou a visitá-lo
e lhe perguntou:
- Filho meu! Como estás?
O recluso respondeu:
- Pai! Já não os vejo ao meu redor, porém à distância continuam gritando
e dando-me a entender que se volto para eles me receberão com alegria.
Deixou-lhe o santo outra porção de comida, fez-lhe na fronte o sinal da
cruz, saiu da cela, fechou sua porta por fora, se retirou e continuou rezando por
ele durante quarenta dias, ao fim dos quais fez-lhe a terceira visita.
- Filho meu! Que tal te encontras? - lhe perguntou.
- Bem! Santo de Deus. Hoje tenho visto a luta que em meu favor susten-
tas contra o demônio e como lhe vencias.
O bispo tirou o recluso de sua cela e o levou consigo. Depois reuniu na
catedral o clero, os religiosos e o povo, e quando todos estavam reunidos to-
mou com suas mãos uma das do penitente, e assim se encaminharam até o
templo. Ao chegar à porta principal, ambos foram assaltados por Satanás e uma
legião de diabos. Lúcifer, invisivelmente se apoderou do jovem e começou a
puxá-lo fortemente para separá-lo de São Basílio.

164
- Pai meu! Ajuda-me! - disse aos gritos o penitente.
Satanás puxava-o com tanta força, que num daqueles puxões arrastou
também o bispo, a quem o jovem continuava agarrado. Então São Basílio se
encarou com o demônio e lhe disse:
- Infame! Não te basta com tua própria perdição? Por que pretendes
perder também a este a quem acaba de reconquistar meu Deus?
Vociferando, de modo que muitos de quantos estavam na catedral o ou-
viram, contestou o diabo:
- Te equivocas, Basílio.
Ao ouvir isto, o público que enchia o templo, exclamou em coro:
- Kyrie, eleison! (Senhor tende piedade de nós!)
Basílio disse ao demônio:
- Que Deus te confunda!
O demônio replicou:
- Basílio! Repito que te equivocas; tens de saber que eu não fui à procura
deste, senão que foi ele quem voluntariamente me buscou, renegou de Cristo e
se submeteu. Tenho a prova do que digo neste documento.
Basílio lhe contestou:
- Não cessaremos de rezar até que nos entregue esse escrito.
Imediatamente São Basílio elevou suas mãos até o céu e começou a re-
zar. De repente o papel se escapou das mãos do diabo, descreveu uma parábo-
la no ar, e, à vista de todos, veio a cair nas mãos do santo bispo, que o aparou, o
mostrou ao jovem e lhe perguntou:
- Conheces esta folha de papel?
- Sim, eu mesmo a escrevi - respondeu o interpelado.
Em seguida São Basílio rasgou o papel, introduziu o jovem na igreja, o
reconciliou com Deus, fez-lhe digno novamente de participar nos mistérios sa-
grados, o instruiu convenientemente e o devolveu à sua esposa. 65

65
La Leyenda Dorada" - vol. I - págs. 125/126

165
2. História de Santa Inês, Virgem

Inês, a quem Ambrósio, autor do relato de seu martírio, chama virgem


prudentíssima, não tinha mais que treze anos quando morreu e entrou na vida
verdadeira. Por sua idade, ao morrer, era menina, mas por sua discrição havia
alcançado a maturidade das pessoas bem formadas. Em seu corpo adolescente
morava uma alma amadurecida. Fisicamente foi muito formosa, porém espiri-
tualmente o foi muito mais.
Um dia, ao sair da escola, viu-a o filho do prefeito e repentinamente fi-
cou enamorado por ela. A partir de então o jovem apaixonado a seguiu, conse-
guiu falar-lhe e lhe prometeu muitos favores e inumeráveis riquezas se aceitasse
casar-se com ele. Mas Inês recusou ao galanteador energicamente, dizendo-lhe:
- Afasta-se de mim, indutor ao pecado, manancial de crimes, aborto da
morte. Deixa-me em paz; chegas tarde. Já estou comprometida com outro mui-
to distinto de ti.
Seguidamente expôs ao jovem as cinco qualidades que todo homem de-
veria ter para aspirar à mão de uma mulher sensata e lhe fez saber que aquele a
quem ela havia entregue seu coração as possuía todas em grau elevado. As qua-
lidades que ela enumerou foram estas: nobreza de estirpe; boa presença, rique-
zas abundantes, valentia a toda prova e amor desinteressado e verdadeiro. Ao
terminar sua explicação, disse a seu inoportuno pretendente:

166
- Esse que me quer e de quem estou enamorada, tem nobreza e categoria
incomparavelmente superiores às tuas; sua mãe é Virgem; seu pai jamais teve
trato carnal com sua esposa; os anjos o servem; sua formosura causa admiração
ao sol e à lua; seus bens são seguros; suas riquezas imperecíveis; só com tocar a
um enfermo o cura; meramente com sua presença devolve a vida aos mortos;
seu amor faz castas ás pessoas a quem ama; seu contato santifica e sua conver-
são consolida a virgindade.
Em seguida Inês comparou com palavras tomadas de fontes muito auto-
rizadas as cinco mencionadas qualidades e ao terminar de comentá-las pergun-
tou ao jovem:
- Diga-me: acreditas tu que haja atualmente ou pode haver jamais quem
possa, não já avantajar, mas nem sequer equiparar-se a meu amado, em genero-
sidade, poder, excelência, amor ou em qualquer outro gênero de dotes?
Em seguida descreveu os cinco tipos de favores que seu excepcional es-
poso fazia-lhe constantemente, a ela e a outras muitas esposas que tinha: a todas
as havia comprometido com o anel da fé, as vestia e engalanava com as precio-
síssimas túnicas da virtudes, as marcara com o sangue de sua paixão, uni-as a
Ele com o vínculo de um amor sacrossanto e as enchia de felicidade com a
promessa e garantia dos futuros bens eternos.
- A mim - disse entrando em detalhes - me colocou sua aliança em minha
mão direita, me pôs no colo uma enfiada de pedras preciosas, me vestiu com
um manto tecido com fios de ouro, me tem engalanado com riquíssimos e vali-
osíssimos colares, me tem marcado a fronte com um sinal que me impede amar
a ninguém que não seja Ele, e me tem embelezado o rosto com seu sangue. A
Ele estou já definitivamente unida num abraço de castidade; meu corpo jamais
se separará do seu; me tem mostrado seus incomparáveis tesouros e me tem
assegurado que será inteiramente meu se eu lhe for fiel.
Triste e desolado ficou o apaixonado jovem ao ouvir estes discursos de
Inês: a recusa da donzela produziu-lhe tanta pena que caiu doente; dos freqüen-
tes e fundos suspiros que dava concluíram os médicos que o mal que se havia
apoderado dele e lhe retia na cama era o vulgarmente chamado mal de amores.
Inteirado o prefeito do ocorrido, foi ver Inês e lhe rogou que aceitasse seu fi-
lho; porém ela se manteve firme em sua negativa e lhe fez saber que jamais fal-
taria à palavra dada a seu esposo. No curso da conversa o pai do doente mani-
festou grande interesse em saber o nome da pessoa por quem a donzela estava
tão enamorada e de cujos dotes tais elogios fazia. Quando Inês lhe declarou
que o esposo a que se referia era Jesus Cristo, o prefeito pareceu tranqüilizar-se
e voltou a insistir em suas pretensões, tratando primeiramente com afagos e
promessas e depois com ameaças, de influir no ânimo da formosa jovem para

167
que se casasse com seu filho. Porém Inês não se dobrou, senão que, cortando o
discurso de seu interlocutor, lhe disse:
- Fazes o que queres. É inútil continuar falando. Mete-te bem isto na ca-
beça: nem com afagos nem com ameaças conseguirás que aceite o que preten-
des.
- Bem! - replicou o prefeito - Posto que com tal firmeza asseguras que es-
sa seja tua última palavra sobre esta questão, não tem mais remédio que esco-
lher entre estas duas coisas: juntar-se ao grupo das vestais para oferecer sacrifí-
cios á deusa Vesta, ou assumir o ofício de prostituta numa casa de lenocínio.
Inês respondeu:
- Nem sacrificarei a teus deuses nem me deixarei manchar com as imun-
dícies a que te refere, porque ainda que me leves a onde dizes, hás de saber que
tenho a meu lado constantemente um anjo do Senhor que defenderá a pureza
do meu corpo.
Convém advertir que Inês pertencia a uma família da alta nobreza e que
os nobres gozavam de certos privilégios, entre outros o de que nem sequer o
imperador podia alegar contra eles nenhuma classe de delitos nem ainda na
suposição e que os houvesse cometido, porém sim condená-los por motivos
religiosos e fundamentar a condenação em atos de desacato à religião do Impé-
rio.
O prefeito mandou que despojassem a donzela de todas suas roupas, e
completamente nua a levassem a um bordel; porém Deus milagrosamente fez
crescer os cabelos de Inês de tal maneira, que repentinamente ficou coberta,
como se estivesse vestida com as abundantíssimas mechas que desciam desde
sua cabeça até seus pés e cobriam todo o corpo.
Ao chegar ao lupanar um anjo inundou toda a casa de claridade vivíssima
e cobriu a jovem com um branquíssimo manto; a partir daquele momento, o
que era lugar de pecado ficou convertido em santuário de oração, até o ponto
de que quantos homens passassem os umbrais daquela casa, purificados pela
esplêndida luminosidade que enchia todos os aposentos, saíam dela muito mais
puros do que quando entraram.
Por aqueles dias o filho do prefeito convidou uns amigos a que o acom-
panhassem ao bordel, porque queria que todos eles participassem na afronta a
Inês, dormindo com ela e violando-a. Quando chegaram à porta, o convidador
propôs a seus companheiros que passassem eles ao interior e fizessem seu ofí-
cio, e que quando houvessem concluído passaria ele a assumir seu turno. En-
traram os amigos, porém, ao ver aquele milagre de luz e oração, saíram precipi-
tadamente confusos e arrependidos, e referiram a seu anfitrião o que no interi-
or haviam visto. O filho do prefeito acolheu com desprezo o relato que lhes
fizeram, os insultou chamando-os de desgraçados e covardes, e arrebatado de

168
fúria entrou no lupanar, se dirigiu a onde estava Inês, e tratou de aproximar-se
dela, porém antes que pudesse havê-la tocado, toda a claridade dispersa se con-
centrou num facho luminoso a maneira de um raio que caiu sobre ele; e desse
modo, o que não quis respeitar aquela luz milagrosa, símbolo da honra devida a
Deus, morreu ali mesmo, repentinamente, estrangulado pelo diabo.
Inteirado o prefeito do ocorrido, acudiu rapidamente ao bordel, e com
grandes mostras de dor tratou de averiguar todos os pormenores do infortuna-
do acidente. Inês lhe disse:
- Aquele a quem ele tanto desejava agradar, o matou; seus companheiros,
em troca, impressionados pelo milagre que viram, abandonaram rapidamente
este lugar e saíram ilesos.
O prefeito respondeu:
- Se com tuas orações consegues que meu filho ressuscite, acreditarei efe-
tivamente que tudo foi efeito de um milagre e não de tuas artes mágicas.
Inês rezou, e num instante o defunto ressuscitou e começou a pregar pu-
blicamente sua fé em Jesus Cristo.
Tudo isto provocou a indignação dos sacerdotes dos ídolos, que tenta-
ram amotinar o povo contra Inês, e conseguiram organizar algumas manifesta-
ções tumultuosas formadas por grupos de gente que acudiam à casa do prefeito
e gritavam:
- Elimina essa bruxa! Afasta-a de nós e livra-nos de seus malefícios, por-
que tem poder para influir nas mentes e dominar sobre as vontades das pesso-
as!
O prefeito, que havia sido testemunha do milagre da ressurreição de seu
filho, por uma parte queria livrar a jovem; mas por outra temia incorrer nas iras
do populacho. Como não sabia que partido tomar, afinal optou por desinteres-
sar-se do assunto, delegando a um lugar-tenente seu a solução da causa. Uma
vez tomada esta determinação, caiu em estado de prostração e tristeza por não
haver-se atrevido a salvá-la.
Aspério, que assim se chamava o lugar-tenente do prefeito, mandou que
Inês fosse lançada numa enorme fogueira. Assim se fez; porém as chamas se
afastaram do lugar que ocupava a jovem, se retirando até as proximidades e al-
cançaram os espectadores que gritavam contra a santa, queimando-os e abra-
sando-os. Em vista do fracasso deste procedimento, Aspério ordenou a uns si-
cários que matassem a donzela cravando-lhe uma espada na garganta. Assim foi
como morreu Inês; assim foi também como o esposo branco e rubro se levou
consigo a sua esposa, virgem e mártir. Crê-se comumente que este martírio se
produziu em tempos de Constantino o Grande, que iniciou seu império no ano
309 de nossa era. 66
66
"La Leyenda Dorada" - vol. I - págs. 116/119.

169
3. Santa Anastácia e suas três criadas virgens

Tinha Anastácia a seu serviço três jovens, irmãs entre si, as três muito
bonitas e todas cristãs. A maior se chamava Agapita, Cionia a mediana e Irene a
menor. Das três estava apaixonadamente enamorado o prefeito de Roma; mas
como não conseguia que nenhuma delas correspondesse a suas pretensões
amorosas, irritado, encerrou-as numa habitação destinada a guardar os utensí-
lios de cozinha. Um dia, o prefeito, ardendo de concupiscência e disposto a
saciar seus apetites libidinosos, entrou no quarto em que as mantinha trancadas;
como não podia vencer a resistência que as três jovens opuseram a seus desen-
freados desejos, perdeu o juízo e começou a dar abraços e beijos nas panelas,
marmitas, caldeirões e em outros objetos semelhantes, crendo que estava abra-
çando e beijando as três donzelas; assim desafogou sua paixão e, quando ficou
satisfeito, saiu para a rua todo tisnado, sujo e com as roupas desarrumadas.
Os servos de sua escolta que lhe aguardavam fora, ao ver seu amo com
aquele aspecto, pensaram que se havia convertido em demônio, o perseguiram

170
com varas e chicotes durante largo tempo e, finalmente, fugiram dele e o deixa-
ram só. O prefeito foi ver o imperador, para queixar-se ante ele dos maus tratos
recebidos de seus criados, porém não teve melhor fortuna, porque os guardas e
empregados do palácio, ao vê-lo daquela maneira, pensaram que estava possuí-
do por algum mau espírito furioso e, não só não o deixaram passar senão que o
expulsaram dali a pauladas e jogando-lhe no rosto punhados de terra e massas
de barro.
Como o prefeito ignorava que tinha a cara, a fronte e os olhos tisnados,
não saía de seu assombro ao ver-se tratado daquele modo, nem podia explicar-
se que se mofassem dele aqueles que antes o tratavam com tanto respeito. Nem
sequer havia reparado na sujeita de suas roupas nem em que estas estavam des-
troçadas. Ele pensava que sua túnica e manto resplandeciam de brancura como
as vestes dos nobres. Quando afinal alguém lhe advertiu que estava feito um
espantalho e comprovou o ridículo aspecto de suas roupas e de sua cara, não se
lhe ocorreu outra coisa senão pensar que tinham sido as donzelas quem com
artes mágicas haviam feito nele aquela horrível mudança, e para vingar-se delas
e dar-se ao gosto de vê-las nuas, já que antes não pudera consegui-lo, fez que
elas comparecessem em sua presença e lhes ordenou que tirassem suas roupas.
Como as três se negassem a obedecer, mandou a uns esbirros que fizes-
sem eles pela força o que as três irmãs não queriam fazer voluntariamente. Em
vão tentaram os criados do prefeito despojar de seus vestidos às três jovens: pa-
recia como que os panos se houvessem aderido inesperadamente aos corpos
das castas donzelas. Este fato produziu tal assombro no prefeito que o fez cair
repentinamente adormecido, e tão profundamente, que por mais que seus ser-
vos se esfalfassem e golpeassem não conseguiram despertá-lo.
Algum tempo depois disto as três irmãs morreram martirizadas.67

4. São Paulo Eremita e o jovem que venceu a tentação com heroísmo

São Paulo se retirou a tão afastado lugar fugindo da duríssima persegui-


ção promovida pelo mencionado imperador (Décio) contra os que professavam
a fé cristã, aos quais castigava com toda sorte de tormentos.
Precisamente por aquele tempo foram presos dois jovens que creiam a
Jesus Cristo: a um deles desnudaram-lhe completamente, enlambuzaram seu
corpo com mel, e, quando o sol mais queimava, jogaram-lhe no chão e ali o
deixaram às picadas das moscas e das vespas. Ao outro, para que não pudesse
defender-se, ataram-lhe seus pés e suas mãos com cordões muito grossos, deita-
ram-no numa cama muito confortável situada no ar livre, numa paragem de
temperatura amena e suave e num lugar muito ameno, às margens de uns ria-
67
La Leyenda Dorada" - vol. I - pág. 59

171
chos cujas águas produziam gratíssimos murmúrios aos quais se uniam os can-
tos das aves e o embriagador perfume de inumeráveis arbustos e flores espalha-
dos pela acariciante brisa.
Pouco depois de colocar o citado jovem, cuja alma achava-se repleta de
amor a Deus, em semelhante ambiente de delícias, fizeram chegar até ele uma
belíssima moça, porém sumamente impudica, para que o tentasse e o seduzisse.
Começou a tentadora a fazer seu trabalho; parecia que ia conseguir seu intento,
porque o tentado começou a sentir em seu corpo desordenados apetites, embo-
ra também lutasse contra eles e contra quem despertava em sua alma aqueles
movimentos; mas, de repente, desejando a todo custo livrar-se de sua tentadora
e não podendo fazê-lo de outra maneira, estraçalhou a língua com seus pró-
prios dentes e a cuspiu, lançando-a com força contra o rosto da impudica moça.
Mediante este procedimento conseguiu três coisas: dominar, com a terrí-
vel dor que sentiu em sua boca, o ardor dos apetites de sua carne; afastar de seu
lado a desavergonhada jovem, e merecer de Deus um prêmio notável pela vitó-
ria que acabava de obter.
São Paulo, conhecedor dos tormentos a que foram submetidos estes dois
jovens e outros muitos cristãos, e consciente dos perigos que sobre ele caíam,
fugiu de sua terra e se retirou para o deserto.68

68
"La Leyenda Dorada" - vol. I - pág. 97/98.

172
5. Da vida de Santo André e sua poderosa intercessão

Um ancião escravo da luxúria há mais de setenta anos


Um ancião chamado Nicolau apresentou-se perante Santo André e lhe
disse:
- Senhor, fazem setenta anos que estou entregue à luxúria. Tenho crido
no Evangelho, tenho orado a Deus pedindo-lhe a graça da continência, mas até
agora nada tenho conseguido; meus hábitos inveterados e o aguilhão da concu-
piscência têm feito pouco caso com meus bons propósitos quantas vezes os te-
nho formulado. Certo dia, impulsionado por meu apetite e sem dar-me conta
de que levava comigo uns "evangelhos", fui até um lupanar; quando acabei de
entrar a meretriz me expulsou de sua casa dizendo-me: "Sai daqui imediatamen-
te, velho! Tu és um anjo de Deus; não me toques; não te atrevas a aproximar-te
de mim! Vejo em teu redor coisas maravilhosas!" Ao ouvir falar assim a ramei-
ra fiquei estupefato; mas logo lembrei que levava comigo os "evangelhos". Te
rogo, pois, santo de Deus, que rezes piedosamente por mim e peça ao Senhor
que me livre deste vício e salve minha alma.
Ouvindo isto, o bem-aventurado André começou a chorar e a rezar; des-
de a hora terça até à nona permaneceu prostrado em oração. Quando terminou

173
suas súplicas elevou-se do chão, mas não quis comer, senão que disse: "Não
provarei bocado até que saiba que o Senhor tem perdoado misericordiosamen-
te a este ancião". Cinco dias seguidos jejuou. Ao cabo destes dias ouviu uma
voz que lhe disse: "André, te foi concedido o que tens pedido para este velho;
porém dize-lhe que para que se salve deverá macerar seu corpo com jejuns tão
rigorosos como os que tu tens feito".
Seis meses seguidos jejuou a pão e água o ancião; ao término do sexto
mês, cheio de boas obras, faleceu. Tão logo morreu o velho, novamente ouviu
André a voz que seis meses antes ouvira; porém desta vez lhe dizia: "Havia per-
dido a Nicolau, graças a tuas orações o recuperei definitivamente/'.

Um bispo é tentado e salvo por Santo André


Conta-se que houve um bispo de vida muito virtuosa e tão devoto de
Santo André que antes de iniciar qualquer obra de alguma entidade encomen-
dava-se a ele rezando esta jaculatória: "Pela honra de Deus e de Santo André,
etc;" Mas o antigo inimigo, invejoso da piedade do referido prelado, adotou a
aparência de uma belíssima dama e se apresentou em seu palácio com o pretex-
to de que desejava confessar-se com ele. O bispo lhe argumentou que procuras-
se o confessor em quem tinha delegadas suas faculdades em relação com o sa-
cramento da penitência. A mulher insistiu em suas pretensões e fez saber ao
bispo que a ninguém mais que ele manifestaria os segredos de sua consciência.
Em vista disto o referido prelado acedeu em ouvir em confissão à suposta peni-
tente.
- Te rogo, senhor - disse a dama, ao iniciar a manifestação de seus peca-
dos ao bispo - que tenhas misericórdia de mim e me escutes com paciên-
cia.Como vês, sou jovem; pertenço a uma família de reis; desde minha infância
tenho vivido num ambiente de delícias. Vim até aqui, só e disfarçada sob este
hábito de peregrina, pela seguinte razão: o poderosíssimo rei, meu pai, preten-
de casar-me com um grande príncipe; tenho procurado fazer-lhe ver que sinto
horror pelo matrimônio, que tenho consagrado perpetuamente minha virgin-
dade a Cristo, que nunca faltarei a meu compromisso e que jamais concordarei
em manter relações carnais com homem algum. A tudo isto meu pai me tem
respondido que se não me caso com o príncipe a quem me tem prometida me
trancará por toda vida num cárcere e me submeterá a horríveis suplícios e tor-
turas. Como sei que ele é capaz de cumprir o que diz e de levar a cabo suas ter-
ríveis ameaças me esforcei como pude para fugir da corte sem que ninguém me
visse, porque prefiro viver desterrada a faltar à palavra empenhada a meu espo-
so Jesus Cristo. Havia eu ouvido falar muito de tuas virtudes; por isso, uma vez
fora de minha casa e de minha terra, decidi vir a ver-te para expor-te meu pro-
blema, solicitar tua proteção e pedir-te ajuda sob as asas de tua piedade. Espero,

174
pois, senhor, que me acolhas benignamente e me proporcione algum rincão de
teu palácio que me sirva de asilo e em que possa entregar-me ao silencioso ofí-
cio da contemplação, manter-me afastada dos ruídos e agitações do mundo, e
salvar minha alma dos perigos da vida deste século.
O bispo, admirado ante a nobreza daquela senhora de tão elevada estir-
pe, tão jovem, tão bela, tão fervorosa e tão espiritual e tão eloqüente em suas
palavras , com voz doce e bondosa atenção lhe disse:
- Filha minha, não temas. Tranqüiliza-te. Aquele que por cujo amor fos-
tes capaz de renunciar a ti, a tua família, a teus bens e grandezas, premiará teu
sacrifício, te concederá o máximo de sua graça nesta vida e depois a plenitude
da bem-aventurança eterna. Eu, seu humilde servidor, ponho à tua disposição
minha pessoa, minha casa e quanto sou e tenho. Escolhe as habitações de meu
palácio que mais te agradem, acomoda-te nelas e permanece nesta cidade todo
o tempo que queiras. Aqui estarás segura. Hoje desejo que te sentes à minha
mesa.
- Pai, - respondeu a dama - não posso aceitar este oferecimento teu. Eu
te pedia meramente um rincão onde possa viver isolada e oculta, mas não uma
hospitalidade semelhante à que me ofereceu. Compreende meus temores a tan-
ta generosidade. Se aceitasse ao que me propões e me sentasse à tua mesa, e o
povo se inteirasse de que aqui, sob teu teto, reside uma mulher, poderia sofrer
detrimento a boa fama de que gozas.
- Desfaça teus temores, filha - replicou-lhe o bispo. Nesta casa não esta-
remos somente tu e eu. Aqui vive muita gente; não haverá, pois, perigo de que
surjam murmurações.
Chegada a hora da comida passaram ao refeitório. O bispo e a dama se
sentaram frente a frente, ocupando cada qual uma das cabeceiras da mesa; nos
assentos das bandas de um e de outro lado acomodaram-se os outros comen-
sais. O prelado, desejoso de atender a sua convidada, olhava-a com freqüência a
fim de que nada lhe faltasse. Cada vez cravava os olhos com mais insistência em
seu semblante, considerando detidamente a perfeição e beleza de suas feições,
e quanto mais a contemplava, mais enlanguescia seu espírito, porque, enquanto
mantinha sua vista cravada no rosto dela, o antigo inimigo da espécie humana
mais profundamente enterrava seus venenosos dardos no coração do prelado,
mostrando-lhe a refulgente formosura da dama. O bispo, à borda já do naufrá-
gio, começou interiormente a traçar um plano para conseguir estar com ela tão
pronto quando se apresentasse alguma oportunidade adequada. Nisto, um pe-
regrino chamou à porta do palácio com fortes batidas e dizendo com altas vozes
que lhe abrissem, e como não acudiam a abri-lhe insistiu em seus golpes cada
vez mais estrondosos e em seus gritos, também cada vez mais altos. Enfim o
bispo perguntou à sua convidada:

175
- Te parece bem, senhora, que abramos a esse importuno?
- Melhor seria - respondeu ela - que antes de lhe abrir a porta perguntás-
semos alguma questão complicada para ver se sabe solucioná-la. Se responde
satisfatoriamente a ela demonstrará ser pessoa discreta e digna de que se lhe
abra; se não sabe responder entenderemos que se trata de algum ignorante e
não se lhe permitirá que venha a estas horas molestar um bispo.
A todos os comensais pareceu boa a sugestão da dama. Seguidamente o
prelado convidou a seus amigos que propusessem a pergunta que deveriam fa-
zer ao forasteiro que continuava chamando à porta, e como todos, um após ou-
tro, se escusassem alegando falta de idéias, o bispo, dirigindo-se à senhora, lhe
disse:
- Quem, entre os presentes, em melhores condições do que vós, senhora,
que a todos nos superais em eloqüência, discrição e sabedoria, para propor a
questão que devemos apresentar ao inesperado visitante? Sugeri a que vos pa-
reça.
A dama aceitou e propôs esta:
- Pergunte-se-lhe que é o mais maravilhoso que Deus fez numa coisa pe-
quena.
Um criado do bispo, de dentro e sem abrir a porta, formulou a pergunta
ao peregrino e voltou com esta resposta:
"A variedade e excelência dos rostos: entre tantos homens como têm
existido desde o princípio do mundo e existirão até o último dia, não houve e
nem haverá dois cujos rostos sejam completamente iguais; e, sem embargo, em
algo tão reduzido como a face de uma pessoa, o Senhor colocou todos os sen-
tidos do corpo humano".
Os comensais, unanimemente, reconheceram que a resposta era interes-
sante, verdadeira e satisfatória. Porém a mulher disse:
- Proponhamos-lhe uma segunda questão mais complicada que nos per-
mita julgar melhor sobre sua prudência e conhecimentos. Ver se sabe dizer-nos
onde está por cima do firmamento a terra?
Eis aqui o que respondeu o peregrino:
"No céu empíreo, porque nele se acha atualmente o corpo de Cristo, que
é da mesma natureza que o nosso, e, portanto formado do barro da terra. Co-
mo o corpo do Senhor de terra foi feito, terra é; e como se encontra no mais
alto dos céus, ou seja, muito por cima do firmamento, segue-se que aí precisa-
mente, no céu empíreo, é onde a terra está por cima do firmamento".
Os convidados amigos do bispo deram por muito boa a resposta e louva-
ram a sabedoria do forasteiro. A dama, sem embargo, propôs:
- Apresentemos-lhe um terceiro e último problema mais difícil que os an-
teriores; se conseguir resolvê-lo aceitaremos definitivamente que se trata de um

176
sujeito autenticamente discreto e sábio e que merece ser recebido. Pergunte-se-
lhe que distância mede entre a terra e o céu.
O peregrino respondeu ao portador da pergunta:
"Volta à sala e diz a quem te mandou que me fizesse esta pergunta, que a
resposta a conhece ele muito bem, posto que a sabe por experiência; ou deveria
sabê-la, já que teve ocasião de medi-la quando foi expulso da glória e caiu pre-
cipitado no fundo do abismo. Eu, ao contrário, não passei por isso. De passa-
gem, diz a teu senhor o bispo que a pessoa que sugeriu que me formulasse esta
e as outras questões não é o que parece, senão que é um demônio disfarçado
de mulher".
O mensageiro, assustado, regressou ao refeitório e repetiu diante de to-
dos quanto o peregrino acabava de dizer-lhe; mas, antes que terminasse de
transmitir o recado, que os ouvintes escutaram estupefatos, a suposta dama re-
pentinamente desapareceu. Então foi quando o bispo compreendeu a subver-
são que pouco antes havia sentido em sua alma e os maus pensamentos e dese-
jos que a haviam assaltado; se arrependeu deles sinceramente, pediu insisten-
temente perdão a Deus e enviou novamente seu criado à porta, esta vez para
que dissesse ao peregrino o que se passara; porém o peregrino já não estava ali
e, por mais que o procurassem pelas ruas da cidade, não puderam achá-lo. O
prelado convocou o povo, referiu publicamente quanto havia ocorrido e rogou
a todos que com jejuns e orações suplicassem ao Senhor que se dignasse co-
municar a alguém quem havia sido realmente o misterioso forasteiro que bateu
à sua porta e lhe livrado de um gravíssimo perigo. Aquela mesma noite, o bispo
conheceu por revelação que o forasteiro havia sido Santo André.69

69
"La Leyenda Dorada" - vol. I - págs. 30/36.

177
6. São Francisco de Assis, o sultão e a mulher de má vida

São Francisco, movido pelo zelo da fé de Cristo e pelo desejo do martí-


rio, atravessou uma vez o mar com doze de seus companheiros santíssimos,
para dirigir-se ao sultão de Babilônia (na atual Turquia).
E chegou a uma região de sarracenos, onde guardavam os caminhos cer-
tos homens muito cruéis, que a nenhum cristão que ali passasse deixavam esca-
par com vida. Como prouve a Deus, não foram mortos, mas presos, maltrata-
dos, amarrados e assim conduzidos diante do sultão.
Estando diante deste, São Francisco, iluminado pelo Espírito Santo, pre-
gou a fé católica com tal devoção que, para prová-la, queria entrar no fogo. Pelo
que o sultão começou a ter grandíssima devoção por ele, tanto pela constância
de sua fé, como pelo desprezo do mundo que nele via; pois, embora paupérri-
mo, nenhum presente queria dele receber; e também devido àquele fervor e
pelo desejo tão manifesto do martírio.
E daí em diante o sultão o ouvia com boa vontade, e pediu-lhe que fre-
qüentemente voltasse a sua presença, concedendo livremente a ele e a seus
companheiros a faculdade de pregar onde quisessem. E deu-lhes uma senha
com a qual não podiam ser molestados por ninguém.
Com esta licença, São Francisco mandou seus companheiros, dois a dois,
por diversas terras de sarracenos, a pregar a Fé de Cristo; e ele mesmo, junta-

178
mente com um companheiro, escolheu um caminho. E chegando a uma casa,
entrou para descansar.
Havia ali uma mulher formosa de corpo, mas suja de alma, e a desgraça-
da convidou São Francisco para pecar.
- Aceito, disse-lhe o Santo; vamos ao leito. E ela o conduziu para o quar-
to. Mas São Francisco lhe disse:
- Vem comigo. E conduziu-a a uma enorme fogueira que se fazia naquela
casa; e, despindo-se, com fervor de espírito lançou-se ao lado do fogo sobre o
solo abrasado. E a convidou para que se despisse, e se lançasse também naque-
la cama macia e formosa.
E estando assim São Francisco por muito tempo, com semblante alegre e
sem se queimar, nem mesmo se chamuscar, aquela mulher, assombrada por
aquele milagre e compungida em seu coração, não somente se arrependeu do
pecado e da má intenção, mas até se converteu perfeitamente à Fé de Cristo, e
chegou a tanta santidade que por meio dela muitas almas se salvaram naquelas
terras. 70

7. Como São Bernardino de Sena venceu uma tentação contra a pureza

Havia em Sena, uma mulher que julgavam, bem como seu marido, pie-
dosamente dedicada aos frades menores; mas, não se sabe porque diabólica
depravação, fora secretamente invadida de uma paixão criminosa por Bernar-
dino. Um dia, em que o jovem noviço mendigava, como era costume, de porta

70
"San Francisco de Asis" - Escritos, Biografias, Documentos de la época - B.A.C. - cap. XXIV - págs. 842/843.

179
em porta, a mulher que o espreitava, convida-o a entrar em casa para receber o
pão destinado ao convento. Sem desconfiança, Bernardino segue-a. Apenas
dentro de casa, ela fecha a porta, se oferece-lhe e declara que, se a repelir, gri-
tará e acusá-lo-á de ter querido violentá-la. O frade, diante de iminência do pe-
rigo, chama pelo auxílio de Deus, no silêncio de seu coração. Ocorre-lhe então
a inspiração de responder à mulher que, para realizar seu intento, ela deve, an-
tes de tudo, despir-se. E, enquanto ela começa desnudar-se, ele agarra silencio-
samente as disciplinas que costumava trazer consigo e a flagela tão rudemente
que põe a tentação em fuga. Mais tarde, só a lembrança desta correção bastava
para preservar a mulher de qualquer mau pensamento e ela continuou, assim
como seu marido, muito dedicada ao santo e à Ordem. 71

... E de como as vencia em sua meninice


É tal sua pureza que, pela menor palavra ofuscante, o rubor invadia-lhe a
face, como, diz um contemporâneo, se lhe tivessem dado uma bofetada. Nem
por isso, devem julgá-lo um menino tímido e acanhado, sem defesa contra o
mal. Uma vez, em que brincava com alguns condiscípulos, um homem de certa
categoria se lhe aproximou e lhe fez propostas desonestas, o que não era raro
naquela época; o menino, indignado, respondeu com um soco; o seu tamanho
só lhe permitiu atingir o queixo, mas o golpe foi tão fortemente aplicado, que se
ouviu quase à extremidade da praça; o homem afastou-se, envergonhado diante
de todos os assistentes. "Anos depois, conta um biógrafo, vi, na mesma praça,
durante um sermão de Bernardino, esta mesma pessoa, o coração cheio de ar-
rependimento, derramar lágrimas tão abundantes como se fora açoitado". Outra
vez, perseguido por um estranho que o convidava para atos da mesma natureza,
Bernardino, depois de combinar com seus companheiros, o atraiu para fora da
cidade e aí, todos, injuriando-o, jogaram-lhe pedras de que tinham enchido os
bolsos; apedrejaram-no, diz a velha crônica, com não menos ardor que os ju-
deus a Santo Estêvão. 72

71
"São Bernardino de Sena" - Paulo Thureau-Dangin - Ed. Vozes, 1937 - pág. 28
72
Op. cit. pp. l7/18.

180
8. Pelas mulheres o Inimigo combate os santos

Quando certa vez o abade Arsênio morava em Canopo chegou de Roma,


para vê-lo, uma virgem de linhagem senatorial, muito rica e temente a Deus.
Acolheu-a o arcebispo Teófilo, ao qual ela pediu que convencesse o ancião de
a recolher. Teófilo indo ter com o abade, rogou-o nestes termos: "Tal jovem de
família senatorial veio de Roma para ver-te". O ancião, porém, não consentiu
em recebê-la. Quando isto lhe foi anunciado, ela mandou arrear os cavalos di-
zendo: "Confio em Deus que hei de o ver. Pois não foi para ver um homem
que vim, já que também em nossa cidade há muitos homens; mas foi para ver
um profeta que vim". E, quando chegou às proximidades da cela do ancião, es-
te, por disposição de Deus, passava alguns momentos de lazer fora da cela.
Vendo-o, ela caiu-lhe aos pés. Este levantou-a com indignação, e fitou-a dizen-
do: "Se queres ver o meu semblante, ei-lo; olha". Ela, porém, tomada de confu-
são, não fixou o rosto do ancião. Disse então Arsênio: "Não ouviste falar das
minhas obras? Para estas é que é preciso olhar. Como ousaste fazer tão longa
viagem por mar? Não sabes que és mulher? Para parte nenhuma e em tempo
nenhum deves sair. Ou será que vieste para que, voltando a Roma, possas dizer
às outras mulheres: "Vi Arsênio"; e façam do mar a via de mulheres que ve-
nham ter comigo?" Ela respondeu: "Se aprouver ao Senhor, não permitirei que
ninguém venha aqui; mas reza por mim, e recorda-te sempre de mim". Em
resposta ele disse: "Peço a Deus que apague de meu coração a recordação de
ti". Tendo ouvido isto, ela se foi perturbada; e, quando chegou à cidade, incidiu

181
em febre, dada a sua tristeza. Foi então referido ao bem-aventurado Teófilo
arcebispo que ela estava doente. Indo ter com ela, este perguntou-lhe o que ti-
nha. Ela explicou: "Oxalá não tivesse vindo aqui; pois disse ao ancião: "Lembra-
te de mim", e ele respondeu-me: "Rogo a Deus para que de meu coração se
apague a recordação de ti". Eis que agora morro desta tristeza!" Disse-lhe o ar-
cebispo: "Não sabes que és mulher, e que pelas mulheres o inimigo combate os
santos? Por isto é que o ancião falou de tal forma. Pela tua alma, porém, ele
rezará sempre." Assim se tranqüilizou o espírito da virgem, a qual com alegria
voltou para a sua pátria.73

9. Ser virgem, mesmo que isto cause fealdade corporal

O mesmo São Gregório e no mesmo livro ("Diálogo") conta este outro


caso: Gala, uma das mais recatadas donzelas de Roma, filha do patrício e côn-
sul Símaco, se casou; mas no mesmo ano morreu o marido e ficou viúva.
Por sua idade e pela alta posição social que tinha parece que deveria ha-
ver contraído novas núpcias; porém não o fez assim, senão que renunciou a elas
e às satisfações carnais, que, ainda no princípio proporcionem algumas alegrias,
acabam acarretando maiores dissabores. A jovem viúva optou por consagrar-se
a Deus sabedora de que, se bem que nos começos da vida que havia decidido
empreender ia achar dificuldades, se lograsse superá-las, por esse caminho che-
garia mais facilmente a desfrutar algum dia dos gozos eternos.
Como era mulher de temperamento apaixonado e veemente, e por causa
de sua viuvez começou a sentir-se mal de saúde; os médicos lhe disseram que
deveria voltar a casar-se e tornar às relações conjugais, porque se não desafogas-
se os ardores da concupiscência, e continuasse resistindo às exigências de sua
natureza, lhe nasceria barba; e acertaram, porque assim, com efeito, sucedeu
não muito depois. Porém Gala, mais interessada em conservar a formosura da
alma que a do corpo, esta deformidade externa não lhe produziu pena alguma;
ela estava completamente segura de que seu celestial esposo não deixaria de
amá-la por esta fealdade de seu rosto.
Disposta, pois, a servir fielmente a Deus praticando a oração e a esmola,
o único que fez quando lhe sobreveio o mencionado contratempo foi ingressar
num mosteiro que havia perto da igreja de São Pedro, e nele viveu, disse São
Gregório, santamente "até nossos dias". Não muito depois de seu ingresso so-
breveio-lhe um câncer que começou a corroer-lhe um dos peitos. Era esta reli-
giosa muito amante da luz, da espiritual e da material; a escuridão lhe resultava
ingrata; por isso, ainda em pleno dia, tinha em sua cela duas velas constante-

73
"Apoftegmas, a Sabedoria dos Monges Antigos" - Ed. Lumen Christi - págs. 27/28.

182
mente acesas. Em certa ocasião, estando na cama, viu São Pedro em frente de
seu leito, em meio às duas velas, e, ao vê-lo, cheia de alegria e animada pela de-
voção que lhe professava, sem duvidá-lo um momento, disse ao santo com
grande confiança:
- Oh, meu senhor! Que significa tua presença aqui? Queres dar-me a en-
tender que meus pecados me têm sido perdoados?
São Pedro, sorrindo, com um movimento de sua cabeça respondeu afir-
mativamente e de palavra lhe esclareceu:
- Sim; teus pecados estão perdoados. Vem comigo. 74

74
"La Leyenda Dorada" - vol. I - págs. 355/356

183
10. Como um santo segue o conselho evangélico para conservar a pureza

No livro intitulado "Os Milagres da Santíssima Virgem", se lê o seguinte:


"Um dia, estando o Papa São Leão celebrando missa na igreja de Santa
Maria Maior, durante a comunhão dos fiéis aproximou-se para comungar uma
nobre senhora, a qual, ao receber a sagrada forma, beijou a mão do pontífice,
quem, ao sentir sobre seus dedos o contato dos lábios daquela mulher, expe-
rimentou subitamente uma tentação carnal. Acabada a missa, o santo servo de
Deus julgou-se a si mesmo com duríssima severidade e, em castigo por haver
sentido aquela sensação agradável sobre seus dedos, naquele mesmo dia secre-
tamente se amputou a mão que havia servido de ocasião para que sentisse aque-
la súbita complacência e a jogou longe de si. Por causa disto deixou de celebrar
a missa.
O povo, que ignorava o ocorrido, ao notar que o Papa já não celebrava
publicamente a missa como sempre o havia feito, por meio de perguntas a uns
e a outros tratou de averiguar as causas daquela mudança nos costumes do pon-
tífice. Quando São Leão soube da estranheza que seu retraimento estava pro-
duzindo entre os fiéis encomendou aquele assunto à Bem-Aventurada Virgem
Maria e aceitou previamente o que Ela com sua maternal providência se dignas-
se dispor.
Pouco depois a Virgem Maria apareceu ao santo Papa levando em suas
santíssimas mãos aquela que ele se havia amputado, a colocou novamente em
seu lugar, a adaptou perfeitamente ao pulso, e a deixou completamente curada
e lhe recomendou que seguisse celebrando publicamente o Santo Sacrifício em

184
honra de seu Divino Filho. Posteriormente, o próprio Papa em um de seus
sermões referiu ao povo o que lhe havia ocorrido e lhes mostrou sua mão re-
cuperada e totalmente sã". 75

11. Um gesto discutível ou façanha heróica de Orígenes?

Um dos grandes escritores do começo do Cristianismo, Orígenes, proce-


deu também fazer uma amputação, censurável para alguns, louvável para outros
que observam o rigor com que aqueles homens consideravam a fidelidade aos
princípios da Fé. Quem conta o caso é um contemporâneo de Orígenes, Eusé-
bio de Cesaréia, em sua famosa obra “História Eclesiástica”:
“Entretanto, dedicado Orígenes em Alexandria à instrução dos catecú-
menos, levou a cabo uma façanha que poderia parecer coisa de um sentimento
menos perfeito e de certa audácia juvenil; porém que encerra uma prova in-
comparável de Fé e de continência. Porque havendo tomado demasiado sensí-
vel e juvenilmente as palavras: “Eunucos há que se castraram a si mesmos por
amor do reino dos céus” (Mt XIX, 12), já para cumprir as palavras de Nosso
Senhor, já para tirar aos infiéis toda ocasião de rumor obsceno e de calúnia,
porque sendo jovem não só ensinava os preceitos da fé aos varões senão tam-
bém às mulheres, decidiu executar na prática o dito do Salvador. Havia previsto
que o assunto passasse desapercebido a muitos de seus familiares. Porém, por
muito que quis, não pôde ocultar tal façanha. E assim, havendo logo conhecido
o assunto Demétrio, como bispo daquela igreja, admirou assombrosamente a
audácia do jovem” 76
Segundo nota do Tradutor da obra referida acima77, aquele ato de Oríge-
nes constitui hoje irregularidade punida pelo Direito Canônico (Cânon 985-5),
sendo que desde o Concilio de Nicéia já era uma ação condenável: “Se alguma
pessoa sã se mutila a si mesma, esta deve cessar [a ordenação], e de agora em
diante ninguém assim seja ordenado” (Cânon 1). No tempo de Orígenes, po-
rém, podia ser considerado ato heróico, não tendo, inclusive, impedido que o
mesmo recebesse as ordens diaconais de dois bispos.

75
"La Leyenda Dorada" - vol. I - pág. 345.
76
História Eclesiástica – Eusébio de Cesária – Editorial Nova, Buenos Aires – págs. 289/290.
77
Luís M. de Cádiz, teólogo e bacharel em direito canônico da Universidade Pontifícia Gregoriana.

185
12. Outro exemplo de São Gregório

Mais outro exemplo escreve no terceiro dos mesmos "Diálogos" São Gre-
gório, de um religioso bispo, ainda que não tão recatado, o qual também referi-
rei aqui para castigo e escarmento dos que não o são. Do qual exemplo disse
que foram tantas as testemunhas, quase quantos eram os moradores da cidade
onde o caso aconteceu.
Disse ele, pois, que numa cidade da Itália havia um bispo chamado An-
dréas, o qual, havendo sempre vivido uma vida muito religiosa e cheia de virtu-
des, tinha em sua casa a companhia de uma mulher também religiosa, por estar
muito certo e satisfeito de sua virtude e castidade. Da qual ocasião, aproveitan-
do-se o inimigo achou entrada para tentar seu coração, a assim começou a im-
primir a figura dela nos olhos de sua alma, e incitar-lhe a ter feios pensamentos.
Aconteceu, pois, que neste tempo um judeu, caminhando de Campanha
para Roma, e achando-se à noite perto da cidade deste bispo e não tendo lugar
onde dormir, veio parar num templo antigo que existia por ali, de um ídolo,
onde se acostou. E temendo a má vizinhança da casa do ídolo, ainda que ele
não acreditasse na cruz, todavia pelo costume que tinha de ver persignar-se aos
cristãos na ocasião dos perigos, fez ele também sobre si o sinal da cruz. Mas
como ele não pudesse dormir de medo daquele lugar, viu à meia noite uma
grande quadrilha de demônios entrar ali, e entre eles um principal, o qual, as-
sentado numa cadeira no meio do templo, começou a perguntar àqueles mal-
vados espíritos quanto mal haviam feito cada um no mundo.

186
E como cada um lhe respondesse o que havia feito, saiu um deles no
meio e disse que havia solicitado a alma do bispo Andréas com a figura de uma
mulher religiosa que tinha em sua casa. E como aquele malvado presidente ou-
visse isto com grande atenção, e o tivesse, portanto maior ganância quanto mais
religiosa era a pessoa, o espírito mal que havia dado conta disto acrescentou
que no dia anterior, à hora de vésperas, havia tentado tão fortemente seu cora-
ção, que, chegando-se à religiosa com semblante alegre, lhe havia dado uma
palmadinha nas costas. Então aquele mesmo antigo inimigo do gênero humano
começou a exortar a este tentador a que desse cabo ao que havia começado,
para que com isto alcançasse uma coroa singular entre todos seus companhei-
ros.
Estando, pois, o judeu vendo todas estas coisas, e tremendo com grande
pavor do que via, aquele malvado espírito que ali presidia mandou aos outros
que fossem verificar quem era aquele que havia ousado dormir naquele lugar. E
olhando-o eles com grande atenção, gritaram dizendo: "Ai! Ai" vaso vazio, mas
bem selado".
E respondendo eles isto, desapareceu logo toda aquela companhia de
espíritos malignos. E passado isto o judeu se levantou depressa, e vindo com
grande pressa à cidade e achando o bispo na igreja chamou-lhe à parte, e per-
guntou-lhe se era molestado de alguma tentação. E como o bispo de vergonha
não lhe confessasse nada, ele replicou que em tal dia havia posto os olhos com
mau amor numa serva de Deus. E como ele, todavia negasse isto, o judeu
acrescentou: "Porque negas o que te pergunto? Pois ontem à hora de vésperas
chegaste a dar-lhe uma palmada nas costas?" Do qual maravilhado o bispo, e
vendo-se surpreendido naquela culpa, confessou o que antes havia negado. En-
tão o judeu lhe declarou a maneira em que havia sabido .
Entendendo tudo,o bispo se prostrou em terra fazendo oração a Deus, e
logo despediu de sua casa não só aquela boa mulher, mas qualquer outra que
estivesse a seu serviço, e naquele mesmo templo de Apolo fez oratório em
nome de Santo André, e ficou livre de toda aquela tentação. E juntamente com
isto trouxe ao conhecimento de Deus o judeu por cuja visão e admoestação ha-
via sido curado, e instruindo-lhe nos mistérios da Fé, e lavando-o com água do
santo Batismo, o pôs no grêmio da Santa Igreja.
E assim sucedeu que o judeu, procurando a saúde alheia, alcançasse a
sua própria. E Nosso Senhor Deus, pelo meio que encaminhou a boa vida de
um, conservou a boa vida do outro. 78

78
"Guia de Pecadores" - Fray Luís de Granada – Editorial Simancas Ediciones - pág. 142/144..

187
188
13. Santo Ambrósio refuta os opositores da castidade

"Ouvi dizer que com a consagração das virgens se acaba o mundo, de-
cresce o gênero humano e se põe em perigo o matrimônio. Eu pergunto: por-
ventura houve alguém que tenha buscado esposa e não a encontrou por essa
causa? Se alguém julga que pelo voto de virgindade decresce o gênero huma-
no, convença-se de que precisamente onde é menor o número das virgens é
também menor o número dos nascimentos, e onde é mais freqüente a consa-
gração virginal, é também maior a população. Olhai quantas são as virgens que
se consagram cada ano em Alexandria, na África, em todo o Oriente; pois bem,
entre nós o número de nascimentos é menor que o número de virgens naquelas
regiões. A virgindade não é, pois, prejudicial, se refletimos sobre o que ocorre
em todo o orbe da Terra, e muito menos se trazemos à memória que por meio
de uma Virgem veio a salvação, que havia de tornar fecundo o Império Roma-
no.
Mas se alguém ainda persiste em se opor devido a esta causa à pureza,
que esse proíba às esposas viver honestamente, já que serão mais fecundas se se
entregarem à incontinência; que não guardem fidelidade ao marido, se ele se
ausenta, para não impedir o nascimento da possível prole, nem deixar passar
inutilmente a idade mais hábil para ter sucessão.
"Mas (dizem) deste modo se dificulta aos jovens o caminho do matrimô-
nio! E, se eu vos disser que, pelo contrário, assim lhes ficará mais fácil a esco-
lha?

Duas palavras aos que se opõem ao voto de virgindade


"Vou me permitir duas palavras com aqueles que se opõem ao voto de
virgindade. Antes de tudo saibamos quem são. São os já casados ou os soltei-
ros? Se se trata dos que já contraíram matrimônio, não têm porque temer, pois
suas esposas já não podem entrar no coro da virgens; se se trata dos que ainda
são célibes, não devem tomar por injúria o ter posto os olhos em quem estava
decidida a não aceitar proposta alguma de boda.
"Ou talvez são os pais solícitos de colocar suas filhas os que se incomo-
dam em ver consagrarem-se novas virgens? Também estes não têm porque irri-
tar-se pelo fato de que um tão grande número de jovens sigam meus conselhos
sobre a virgindade; quanto menos jovens ficam disponíveis, mais facilmente se-
rão eleitas suas filhas por esposas" 79

79
"De Virginitate", Cap. VII, 36 a 38 - citado na obra de João S. Clá Dias sobre "Vocação e Famílias"

189
14. A pureza de Santa Gema

Transcrevemos abaixo um texto que, por si mesmo, fala da grande pure-


za que praticava Santa Gema Galgani:
"Entre outras práticas santas, que preservam do vício impuro, a senhora
Galgani aconselhava a seus filhos que recitassem todas as noites três Ave-
Marias, com as mãos debaixo dos joelhos, em honra de Maria Imaculada.
A inocente criança praticava este ato numa idade em que não podia ain-
da compreender o alcance de sua significação.
Depois de ter repetido três vezes a saudação angélica nessa atitude hu-
milde e penosa, levantava-se e dizia, juntando as mãozinhas: "Minha mãe do
Céu, nunca permitais que eu perca a santa pureza. Refugio-me sob o vosso
manto virginal. Guardai-me bem, assim agradarei mais a Jesus".
Gema conservou durante toda a vida esta prática recomendada por mui-
tos santos. Poucos dias antes de morrer, quando, esgotada de forças, lhe era
impossível ter-se de pé, surpreenderam-na no quarto a dizer as três Ave-Marias
com as mãos debaixo dos joelhos. Todas as suas mortificações, penitências,

190
macerações da carne, e acima de tudo, a guarda rigorosa dos sentidos, tinham
por fim principal a conservação da angélica inocência.
Considerando que a mais leve condescendência lhe pode alterar o suave
frescor, aborreceu todas as liberdades dos sentidos sem distinção, até cair em
verdadeiros exageros. Nunca se viu ao espelho, nem mesmo para se limpar do
sangue, que muitas vezes lhe corria dos olhos em suas dolorosas contempla-
ções, ou da fronte circundada de picaduras, produzida pela coroa de místicos
espinhos.
Quando mais tarde o seu coração, completamente abrasado do amor di-
vino, submergiu em dores inexprimíveis toda a região peitoral; quando a vio-
lência de suas pulsações misteriosas arqueou três costelas, Gema nem sequer se
atreveu a aproximar a mão do seio ou a pôr nele os olhos, embora não pudesse
explicar, a princípio, fenômenos tão extraordinários. E este mesmo rigor de
modéstia virginal observou quando um místico dardo de fogo, saído do lado de
Jesus, abriu um largo estigma no seu próprio lado.

Evitando familiaridades perigosas


"Logo desde os primeiros anos a casta menina mostrou nesta matéria
uma extraordinária severidade. Seu pai não conseguia abraça-la; e, tendo ape-
nas sete anos, fez pagar caro a um primo o direito a simples tentativa duma
inocente carícia.
O jovem, depois de uma visita à família Galgani, preparava-se para sair.
Estava já sobre o cavalo, quando notou que tinha esquecido não sei que objeto.
Convidada a ir busca-lo, Gema obedeceu, voltando logo com o objeto pedido.
E com tanta graça o apresentou, que o primo, enternecido, se inclinou para fa-
zer uma carícia em sinal de agradecimento. A menina, porém, apenas notou o
gesto familiar, mas a seus olhos quase criminoso, repeliu vivamente a mão e o
braço do jovem, e de tal modo que ele perdeu o equilíbrio e caiu da sela, ma-
goando-se bastante na queda.
Era inútil querer ajudá-la na sua "toillete". Se uma criada ou mesmo qual-
quer pessoa da família se aproximava, por exemplo, para lhe ajustar o chapéu,
ou atar as fitas do sapato, dizia resolutamente: "Deixai, deixai, eu posso muito
bem fazer tudo sozinha".

Recato também no linguajar


Tinha um extremo recato nas alusões, por vezes inevitáveis, ao vício im-
puro. Longe de usar termos vulgares, abstinha-se de certas palavras absoluta-
mente indiferentes e usadas até pelas almas mais piedosas, sobretudo na Tos-
cana, onde há costume de dar às coisas seu nome próprio.

191
Para se exprimir usava perífrases80 muito naturais em sua boca, o que era
muito para admirar, pois ignorava o mal e as diferentes faltas contra a pureza.
Disse-me um dia: "Há certas coisas que não compreendo. Quem sabe já terei
feito alguma coisa proibida? Parece-me que não". E acrescenta: "Não, eu não
quero ofender a Jesus; antes morrer! Antes ser cega durante o resto da minha
vida, que pecar contra a santa modéstia, mesmo venialmente! Antes ser privada
de todos os sentidos do meu pobre corpo, que abusar deles!"

Como fugir das tentações


O demônio, cheio de raiva, tornou-se direta e pessoalmente o tentador
da angélica virgem. O ataque não era fácil. Por que lado assaltar tão inocente
pomba que nem sequer o nome do vício asqueroso conhecia? Como insinuar
grosseiras ilusões a um coração idealmente casto? O espírito do mal depressa
compreendeu que perderia o trabalho, ou que Deus certamente inutilizaria os
seus esforços. Por isso contentou-se com dirigir as suas criminosas tentativas
contra os sentidos. Em primeiro lugar apresentou quadros impuros à imagina-
ção da santa menina, depois apareceu-lhe em atitudes lascivas e fez-lhe ouvir
expressões escandalosamente indecentes. Enfim, pôs em ação todos os artifí-
cios.
Embora Gema não atingisse o sentido de semelhantes palavras e gestos
lúbricos, o instinto do pudor nela tão aperfeiçoado fez-lhe compreender a
abominação de tais atitudes. Acautelou-se contra o inimigo e opôs-lhe uma
enérgica resistência. Satanás redobrou de esforços, apesar de serem evidente-
mente inúteis, para atormentar a casta menina, a quem a vista destas cenas im-
pudicas desolava. Ouçamo-la contar as suas mágoas ao diretor espiritual:
"Que terríveis tentações são estas, meu Padre! Todas as tentações me de-
sagradam, mas as que são contra a santa pureza fazem-me tanto mal!... O que
eu sofro só Jesus o sabe, Ele que me olha, permanecendo escondido, e que se
compraz com as minhas lutas".
Para não ver, tanto quanto lhe era possível, estas representações impuras,
Gema fechava os olhos, e conservava-os fechados até desaparecer o tentador.
Com o crucifixo na mão, chamava em seu auxílio o Anjo da Guarda, os seus
santos protetores e sobretudo a Rainha das virgens" 81

80
Perífrase - Rodeio, circunlóquio, recurso verbal para exprimir por meios verbais através de uma forma indire-
ta aquilo que poderia ser dito por termo próprio, mas às vezes numa linguagem ferida e dura.
81
"Santa Gema Galgani" - Pe. Germano de Santo Estanislau - Liv. Apostolado da Imprensa, Porto, Portugal-
págs. 253/258.

192
15. São Luís Gonzaga, Patrono da juventude e da castidade

A marquesa de Castiglioni, D. Marta, era estéril e pedia constantemente


a Nosso Senhor que lhe desse um filho, e que o mesmo servisse a Deus como
religioso. Fez votos de oferecer o filho a Deus e pouco tempo depois, veio o
mesmo a nascer, o que seria o primeiro de seus três rebentos.
Não fora fácil aquele nascimento. Porfiavam ainda os médicos que não
era possível que o menino sobrevivesse, e o marquês, Dom Ferrante, instava a
que se procurasse salvar a alma da criança. A experimentada parteira, logo que
viu o menino o suficiente para poder receber a água do batismo, antes que nas-
cesse totalmente, batizou-o. Estávamos a 9 de março de 1568.
O marquês, como era soldado, queria que seu filho o fosse também. As-
sim, quando Luís tinha apenas 4 anos mandou fazer uns arcabuzes e outras ar-
mas em tamanho pequeno a fim de que a criança pudesse carregá-las. Além
disso, quando preparava a armada contra Tunis, levou o filho consigo ao local
onde deveriam se reunir a fim de que o garoto criasse interesse pelas coisas mi-
litares. Também, quando haviam paradas militares fazia-o ir à frente das tropas
com as armas pequenas que mandara fazer para que ele as conduzisse.

193
Quando o marquês partiu finalmente para a guerra, enviou de volta seu
filho para Castiglioni. A criança tinha aprendido, pelo trato e conversação com
os soldados, algumas palavras livres e descompostas que eles de ordinária em-
pregam. Chegando em Castiglioni começou a empregar tais palavras com a
maior naturalidade, sem saber ao menos o que elas significavam. Um dia o seu
preceptor o repreendeu por causa disso, e de tal modo que desde aquele mo-
mento nunca mais se ouviu uma palavra descomposta sair de sua boca, e, se
escutava outros dize-las, baixava os olhos de vergonha, ou virava o rosto, mos-
trando seu profundo desagrado.
São Luís sempre considerou aquelas palavras, ditas de forma tão ingênua
e inocente, como os piores pecados que havia praticado em sua vida, e delas
chorou até o último momento de sua morte.
Chegado aos sete anos, que é quando começa a amanhecer a luz da ra-
zão, decidiu dedicar-se inteiramente ao serviço de Deus. De maneira que cha-
mava a este tempo o de sua conversão. E quando ele dava conta de sua consci-
ência a seus diretores espirituais contava como um dos mais assinalados benefí-
cios que tinha recebido de Deus que aos sete anos o tivesse convertido do
mundo à Seu serviço.
São Luís esteve desde a mais remota infância convivendo entre pessoas
da alta nobreza, pois foi nascido na corte de seu pai e passou anos na do grão-
duque de Florença, na do duque de Mântua e na do próprio rei de Espanha.
Tendo sempre que tratar com príncipes e senhores, com todo gênero de pes-
soas de categorias tão elevadas, mas que numa época onde tais convívios eram
cheios de vícios e de maus costumes, no entanto conseguiu conservar sempre
pura e limpa a vestidura branca da inocência batismal.
São Roberto Belarmino, Cardeal, declarou o seguinte sobre São Luís::
provavelmente se pode crer que a Divina Providência, em todos os tempos,
tem alguns santos confirmados em graça enquanto estão vivos. "Eu para mim -
completou - acho que um desses confirmados em graça é nosso irmão Luís
Gonzaga, porque sei quanto se passa na sua alma".
Com a idade de nove anos, seu pai montou para ele uma casa em Flo-
rença, a fim de que continuasse a educação na corte do grão-duque.
Ali, alimentou especial devoção por uma imagem de Nossa Senhora da
Anunciata. Lendo um livro do padre Gaspar Loarte sobre os mistérios do Ro-
sário, sentiu-se abrasado em desejos de fazer algo por Sua Senhora. Veio-lhe o
pensamento de que seria serviço muito aceite que ele, para imita-La quanto fos-
se possível na sua pureza, lhe consagrasse com particular voto sua virgindade.
Com este pensamento, estando um dia em oração diante da imagem da Anun-
ciata, fez em honra da Virgem voto a Nosso Senhor de perpétua castidade, a
qual conservou durante toda a vida, inteira e perfeitamente.

194
Afirmam seus confessores, e em particular o Cardeal São Roberto Be-
larmino, que São Luís em toda sua vida não sentiu nunca o mais mínimo estí-
mulo ao movimento carnal do corpo, nem um pensamento ou representação
lasciva da mente contrária ao propósito do voto que fizera.
Para se medir a altura de tão grande privilégio dado por Deus, basta lem-
brar que o Apóstolo São Paulo pediu por três vezes a Deus que lhe tirasse o
estímulo da carne, que ele chamava agulhão. São Jerônimo por muito tempo
fez rigorosas penitências com mesmo fim e Santo Afonso Ligório reclamava
deste "agulhão" ainda no final da vida com mais de 90 anos.
Ainda que ele não tivesse batalhas nesta matéria, pelo menos de forma
visível aos circunstantes, a estima e o grande amor por esta virtude fazia-o estar
sempre em guarda do coração e sentinela dos sentidos, especialmente dos
olhos. Para se resguardar na posse de virtude tão delicada, São Luís fugia sem-
pre do trato com mulheres. Aborrecia tanto sua vista, que quem o visse assim
proceder pensaria que tinha por elas alguma antipatia natural. Se acontecia al-
guma vez, estando em Castiglioni, que a marquesa sua mãe lhe enviasse algum
recado através de algumas de suas damas, ele saía à porta de seu aposento, sem
deixá-la entrar. Fixos os olhos em terra, respondia ao recado e com isso des-
pedia-se sem olhar na face.
Nem mesmo com a mãe ele gostava de falar a sós. E se alguma vez acon-
tecia que, estando a falar com ela, os presentes saíam, logo ele procurava uma
ocasião para também sair. E se não a encontrava, cobria seu rosto de um desa-
grado e uma vergonha virginal, indício do recato com que andava na guarda
desta sublime virtude.
Quando esteve na corte de Sabóia, encontrou-se uma ocasião com um
nobre já idoso, que não corava de pronunciar indecências em presença do san-
to jovem e de vários outros mancebos. São Luís exclamou indignado: "Pense
nesses cabelos brancos - a gente havia de cuidar que nessa idade findavam se-
melhantes tolices". E retirou-se imediatamente do recinto, deixando o infrator
envergonhado.
Em 1580 esteve São Carlos Borromeu, arcebispo de Milão, visitando a
diocese de Bréscia, e chegou a Castiglioni. Depois do sermão visitou São Luís,
então com 12 anos e quatro meses. Estiveram os dois a sós em práticas espiritu-
ais tão longo tempo, que ficaram espantados todos os que os aguardavam. Con-
solava-se o arcebispo de ver a tenra planta tão forte no meio dos espinhos da
corte, sem arte de jardineiro, mas só com as graças do céu. O menino alegrava-
se em estar com o santo bispo, cuja fama de santidade já era grande, tomando
suas palavras e avisos como vindos do próprio Deus. Fez na ocasião sua primei-
ra comunhão.

195
Certo dia, o santo menino teve o seguinte pensamento, contado depois a
seu diretor espiritual: "Olha Luís, que grande bem o da Religião! Estes padres
estão livres dos laços do mundo, afastados das ocasiões de pecado. O tempo
que os do mundo gastam sem proveito em procurar os bens transitórios e pra-
zeres vãos, eles empregam com grande mérito em procurar os bens do Céu, e
tem a certeza de que seus esforços não ficaram malogrados. Os religiosos são
verdadeiramente os que vivem segundo a razão e não se deixam tiranizar pelas
paixões; não pretendem honrarias vãs, não fazem caso dos bens da terra, cadu-
cos e frágeis, não estão em comparação de uns com os outros, não têm inveja
dos outros, mas estão sempre contentes em servir a Deus. Por que estranhar
que sejam alegres e sem medo, nem sequer da própria morte, do juízo e do in-
ferno, se trazem sempre a consciência limpa, se dia e noite acumulam novos
tesouros, se estão sempre ocupados ou com Deus ou por Deus? O testemunho
da boa consciência dá-lhes aquela paz e tranqüilidade interior, de onde provam
a serenidade que transparece por fora. Aquela esperança bem fundada que eles
têm dos bens do céu, aquele se lembrar a quem eles servem e em cuja corte
estão, a quem não alegrará? E tu, Luís, o que fazes, o que dizes, o que pensas,
por que não tomas um estado tão feliz? Olha as magníficas promessas que
Deus faz a estes. Olha as grandes comodidades para acudir as suas devoções,
sem estorvos"
São Luís estava visitando sempre o convento dos barnabitas, onde se con-
fessava e comungava com freqüência. Anteriormente, o menino já havia toma-
do a decisão de deixar a seu irmão menor, Rodolfo, a posse do marquesado de
Castiglioni, do qual era herdeiro por ser o mais velho. Continuava sua medita-
ção:
"Se deixando o estado a teu irmão Rodolfo, como estás resolvido, queres
ficar no século em sua companhia, forçoso será que vejas muitas coisas que não
sejam de teu gosto. Se ficas calado, eis o escrúpulo de consciência. Se falas,
tornar-te-ás pesado, e não quererão ouvir-te. Mesmo que queiras ser eclesiásti-
co ou sacerdote, não alcançarás teu desejo. Pelo contrário, tendo uma maior
obrigação de dizer com perfeição do que os leigos ficas nos mesmos perigos
que eles, e talvez até maiores. Não ficas livre de respeitos humanos, mas obri-
gado a empregar teu tempo em cumprimento, seja com este senhor, seja com
outro. Se não tens trato com mulheres, nem visitas às parentes, serás apontado;
se cumpres com elas, eis teu propósito que vai por terra. Se queres aceitar dig-
nidades e bispados, ficas mais no mundo do que agora estás. Se não aceitas,
dirão que és pouca coisa e que desonras tua casa, e por mil caminhos te aperta-
rão para te fazer aceitar".
Estava ele levantando as dúvidas, para depois surgir a solução:

196
"Entrando em Religião, de um golpe cortas com todos esses empecilhos.
Ficas livre de todos os respeitos do mundo, e atinges um estado no qual gozes
de quietude, e podes servir a Deus com perfeição". Estas e outras razões se da-
va si próprio, segundo ele contou. Finalmente, depois de se ter encomendado a
Deus com grande afinco, para que o iluminasse, após muitas comunhões ofere-
cidas com este fim, julgando que Deus o chamava para este estado, resolveu-se
a deixar o mundo e entrar numa Ordem religiosa, ordem onde pudesse fazer
votos perenes de castidade e pudesse guardar o de obediência e pobreza evan-
gélica.
Por causa de sua pouca idade, não quis participar seu propósito a nin-
guém. Pouco depois, teve que acompanhar seus pais até à corte real, em Madri,
onde tornou-se companheiro de estudos dos príncipes reais.
Seu confessor escreveu mais tarde sobre o jovem santo: "Conheci na Es-
panha a Luís, e notei nele uma pureza rara de consciência. Tanto que durante
todo aquele tempo, que foi de alguns anos, não só não achei nele pecado mor-
tal, o qual ele aborrecia sumamente e jamais tinha cometido, mas muitas vezes
não achei matéria de absolvição. Adverti também nele uma singular modéstia e
recato nas palavras, não tocando com elas a ninguém, nem de mil léguas, em
coisa mínima que fosse. Não é pouca coisa dizer que um senhor tão jovem, vi-
vendo em tais palácios, não se achasse nele matéria de absolvição, nem sequer
de pecados veniais. Da modéstia e recato que tinha no olhar, ele próprio con-
fessou que apesar de que viajou de Itália a Madri com a imperatriz, e ia cada
dia na casa dela, e tendo mil ocasiões de vê-la de longe e de perto, jamais fitou-a
uma só vez no rosto".
Naquele tempo não se importava de usar roupas velhas e algumas, prin-
cipalmente as interiores, remendadas. Não usava qualquer objeto de ouro ou
jóias, coisa comum entre os fidalgos. Por causa disto, sofria severas repreen-
sões de seu pai, acusando-o de desonrar a família com trajes pouco dignos de
sua posição.
Suas conversas na Corte eram tão graves e religiosas, que sua simples
presença fazia com que as pessoas ficassem compostas e sérias. E como não
escutavam nunca dele palavras nem viam ações que não fossem mais do que
honestas, era comum fazerem comentários dizendo que "o marquezito não era
de carne como os demais", quer dizer, era um anjo.
Após permanecer um ano e meio em Madri, finalmente tomou a resolu-
ção de entrar na Companhia de Jesus. Moveu-o a isto quatro razões: a primeira,
porque nela a observância estava no primeiro rigor e pureza; a segunda, porque
lá faz-se votos de não pretender qualquer cargo eclesiástico; a terceira, por ver
na Companhia tantos meios de estudo e de instrução da juventude; a quarta

197
razão era porque a Companhia se ocupava especialmente em combater os he-
reges e na conversão dos gentios.
Lutou por mais de quatro anos para convencer seu pai a autorizar seu in-
gresso na Companhia de Jesus. E a autorização paterna surgiu exatamente por
causa da fervorosa luta que o jovem vinha travando para preservar sua pureza.
Procurava proteger sua inocência como se faz um baluarte para defender uma
cidade contra a invasão inimiga. E para isto se utilizava de austeras penitências,
que naqueles tempos era recurso comum entre os santos. Inúmeras vezes leva-
va noites em claro fazendo rigorosas penitências, de joelhos no duro chão.
Certo dia, disciplinou-se São Luís com maior violência a fim de mover os
céus que lhe concedesse a graça da autorização paterna para ingressar na Com-
panhia. Alguns criados da casa ouviram os estrépitos dos golpes de sua auto-
disciplina e conseguiram observar o que ocorria por uma fresta da porta. A ce-
na era tocante, os criados não queriam ficar omissos, e por isso correram e fo-
ram contar tudo ao marquês, o qual, comovido, disse:
- Deixa, meu filho, poupa a tua vida. Leva a cabo o teu propósito, em
nome de Deus, e segue em paz.
Era, afinal, a tão esperada autorização para ingressar na Ordem. Vencida
a mais difícil batalha de sua vida, por fim, em Mântua, na presença do Impera-
dor e de muitos nobres, quando tinha 17 anos, leu o notário o instrumento de
renúncia dos seus direitos de primogenitura em favor de seu irmão Rodolfo.
Após assinar, disse ao irmão: "Qual de nós vos parece, meu irmão, que está
mais contente - vós, com os vossos estados, ou eu com a minha pobreza? Ten-
de por certo que é maior a minha alegria que a vossa". Estava assim desimpedi-
do o caminho para que o jovem aspirante pudesse fazer os votos de ingresso na
Ordem que Deus lhe inspirara.
Não completou seis anos na Companhia de Jesus, falecendo mártir da
caridade ao atender os empestados de Roma no ano de 1591, a 21 de junho.
Sua mãe chegou a assistir a cerimônia de beatificação de São Luís, ocorrida já
em julho de 1604. Foi canonizado por Bento XIII em 1724 e pelo mesmo Pa-
pa eleito como o patrono da juventude. 82

82
Dados extraídos de "Vida de San Luís Gonzaga, patrono de la juventud", do pe. Virgílio Cefari, SJ - e de "San-
tos de Cada dia", de José Leite, S.J.9-*.

198
16. Como um Anjo interfere a favor de um jovem que desejava a castidade

Um pobre jovem, que profundamente caíra, começava a entregar-se à


desesperação. "Nunca mais, dizia o infeliz, nunca mais vencerei o mau hábito;
quantas vezes prometi já a Deus e ao meu confessor que me emendaria, e sem-
pre tornei a cair"!
A pusilanimidade associa-se ao desalento; e o mancebo, tão digno de lás-
tima, abandonou a oração, deixou de se confessar. Parecia-se então mais com
um barco desgovernado que, joguete das ondas, vai sendo arrastado sem resis-
tência ao sabor da corrente.
Cheio de tais pensamentos e ainda piores, pois seu desespero fazia-o
pensar até mesmo em suicídio, adormeceu uma noite.
De repente, viu em sonhos um monstro gigantesco. Um Anjo estava ao
seu lado e lhe ordenava que combatesse o monstro.
- "Sus!, exclamava o Anjo, luta com ele!"
Replicou o jovem: "E poderei eu? Não é ele um gigante? E eu sou tão
pequeno! Ele vai me reduzir a pó".
Mas o Anjo insistiu:
- "Coragem! Experimenta! Eu te assisto!"
E o jovem criou coragem e partiu para lutar contra o gigante. Logo, o An-
jo foi em seu auxílio, fazendo com que o monstro caísse por terra derrotado.

199
Banhado em suor, desperta o mancebo de seu sonho, passando a refletir
sobre o mesmo e a lição que lhe dera:
"Não foi isto uma advertência do Alto? Acaso estou sozinho nesta luta?
Então o céu não há de me assistir, se eu lhe pedir socorro, e saia a combater
com ânimo e confiança?"
E desde aquele momento passou a lutar contra a impureza, obtendo vitó-
rias que suas forças meramente naturais jamais conseguiriam. 83

17. São Francisco de Sales foge de uma cilada armada contra sua pureza

Era ainda muito novo São Francisco de Sales quando foi para a universi-
dade estudar. A corrupção dos costumes em sua época era-lhe muito perigosa.
Por isso, vivia ele muito recolhido. Mas, apesar disto, e devido à mansidão de
seu coração e á sua pureza, conquistava a estima e o afeto de todos.
No entanto, houve quem se conjurasse com o fim diabólico de o fazer
cair em tentação e perder a castidade. Arquitetaram, então, leva-lo para uma
casa onde lhes prepararam um cilada, a pretexto de fazer uma visita de cortesia.
83
Transcrito, com adaptações, do livro "'A Pérola das Virtudes" , do pe. Adolfo Doss, S.J. - Liv. Apostolado da
Imprensa - Porto, Porrugal, 1958.

200
Quando os conjurados viram que era chegada a hora, foram aos poucos
deixando o local, um após outro, com o intuito maléfico de deixar São Francis-
co a sós com a ocasião de pecado. Quando o santo percebeu o embuste, não
se deteve em longas reflexões do que deveria fazer, pegou de um tição a arder e
botou a tentadora a correr. Era uma violência necessária, a mesma que praticara
São Tomás de Aquino em idêntica situação.

18. Anjos fortalecem São Estanislau Koska trazendo-lhe a comunhão

Santo Estanislau teve que ir estudar em Viena, residindo então com seu
irmão, Paulo, de péssimos costumes, e um protestante, chamado Bilinski. Era
tal a pureza do jovem Estanislau que despertava ódio de seu irmão, que chegava
a espancá-lo.
Mas o santo não se intimidava. Para manter sua pureza fugia das coisas
do mundo, mortificava os sentidos, praticava como podia os sacramentos da
Igreja e tinha um amor filial á Virgem Maria. Tanto abominava Estanislau qual-
quer manifestação da mais forte do que todas as paixões que um dia, ainda em

201
casa de seus pais, desmaiou porque uns hóspedes proferiram conversas impró-
prias.
Para manter sua alma forte Santo Estanislau precisava comungar com
freqüência. Certo dia caiu doente e ousou pedir a seu irmão que lhe trouxesse
um sacerdote para lhe ministrar a comunhão. Mas nem o irmão quis atender
seu pedido, e muito menos o Sr. Bilinski. Angustiado, o santo pede ajuda dos
céus. Eis, então, que dois anjos vêm até ele para lhe dá a comunhão, cuja cena
foi testemunhada pelo próprio Bilinski: "Uma daquelas noites em que eu vela-
va á sua cabeceira, Estanislau disse-me com voz clara e imperativa: "Ajoelhe-se,
ajoelhe-se; olhe que Santa Bárbara, acompanhada por dois anjos, traz-me a
comunhão". E levantando-se pôs-se de joelhos na cama. Depois disse três ve-
zes: Senhor eu não sou digno... Abriu a boca e estendeu a língua com profun-
díssima humildade".

19. Exemplo de pureza contado por São João Damasceno

O jovem príncipe Josafat, filho do rei Abener, distinguia-se por uma pu-
reza tão grande que Deus o escolheu para a conversão de seu próprio pai. De-
pois de ver frustradas várias tentativas para fazer com que Josafat voltasse ao
culto -dos ídolos, Abener, por conselho de um mau homem instigado pelo in-
ferno, deu em um estratagema verdadeiramente diabólico. Iria se valer da fragi-

202
lidade humana e da inclinação irrefreável dos jovens para os deleites sensuais, e
desta forma conseguir a vitória.
O ímpio pai cercou o jovem no seu palácio, onde colocou junto dele
pessoas impudicas, todas elas com ordens do rei para seduzir Josafat.
São João Damasceno assim conta o desfecho do caso: "O espírito impuro
que o inferno enviou tinha, porém, levado consigo outros diabos piores e man-
dou-lhes que se aproximassem do jovem. Mas aquela alma pura tinha apenas
percebido o assalto do espírito infernal e a perigosa luta de pensamentos, que
sobre ele se desencadeou com grande veemência, quando se afligiu profunda-
mente e desejou, com o mais vivo anelo, ficar livre de tamanha desgraça, guar-
dar pura a sua alma aos olhos de Deus e conservar ilibada, da imundície da lu-
xúria, a veste cândida do seu batismo. E assim, imediatamente ao amor opôs
amor, isto é, ao amor impuro o amor divino.
"Lembrou-se logo da beleza e inefável glória que as almas puras alcançam
pela participação da glória de Jesus Cristo, verdadeiro Cordeiro de Deus, ao
passo que os infelizes que mancharam a veste nupcial, são excluídos desta gló-
ria, e atados de pés e mãos, são lançados nas trevas exteriores.
"Com estes pensamentos e derramando uma torrente de lágrimas bateu
humildemente no peito e agüentou os seus maus pensamentos como um bando
importuno de mosquitos.
"Em seguida, levantou-se, ergueu as mãos ao céu e entre prantos e solu-
ços invocou o socorro e assistência de Deus, dizendo: "Senhor onipotente, Vós
sois todo-poderoso e inclinado à misericórdia; - ó meu Senhor, Vós que sois a
esperança dos desalentados e de todos os que necessitam de socorro, - ah, lem-
brai-vos, eu vo-lo suplico, de mim Vosso inútil servo. Ponde em mim olhos de
benignidade e compaixão, protegei a minha alma contra a espada infernal, sal-
vai a minha alma das garras da fera e não me deixeis cair nas mãos de meus
inimigos. Não se alegrem do meu infortúnio os que por malícia me odeiam;
fazei que não me perca na iniqüidade; e o meu corpo, que eu prometi guardar
puro para Vós, não permitais que seja ultrajado. Pois eu suspiro por Vós, ado-
ro-Vos, ó Pai, Filho e Espírito Santo, por toda a eternidade!"
Quando pronunciou a palavra "amém", sentiu o bafejo de uma consola-
ção celestial e se desvaneceram os maus pensamentos. Perseverou em oração
até altas horas da noite e procurou penitenciar-se com duras disciplinas para
não alimentar sua imaginação com novas tentações. Com isto, expulsou os
maus pensamentos e pôde resistir valorosamente aos assaltos da impiedade.

203
20. Força e tenacidade heróica que vem da castidade

O conde Godofredo de Bouillon comandou a primeira cruzada que to-


mou Jerusalém através de grandes feitos heróicos. Todos os cronistas referem-
se a este conde como protagonista de prodígios de força corporal e valentia.
Quando se batia contra os inimigos era comum o verem descer a espada
sobre cabeças, coletes, arneses, fendendo tudo, cavaleiro e armaduras, com um
só golpe. Tal era sua força e destreza.
Interrogado de onde lhe vinha força tão extraordinária, respondeu: "É o
vigor da castidade; pois nunca manchei estas mãos com a impureza!"
A pureza fazia-o, também, ser humilde. Quando tomou Jerusalém aos
mouros, quiseram coroá-lo como rei, ao que respondeu: "Não posso ser coroa-
do como rei de uma cidade onde o meu Rei, Jesus Cristo, foi coroado de espi-
nhos".

204
21. Perseverança na castidade converte até um bruxo e o faz santo

A virgem Justina (Santa Justina de Pádua, Mártir), natural de Antioquia e


filha de um sacerdote pagão, todos os dias, postada numa janela, ouvia a leitura
do Evangelho que o diácono, São Proclo, fazia. Convertida e batizada, logo os
pais de Justina souberam que tornara-se cristã. Quando dormiam, apareceu-
lhes Jesus Cristo rodeado de anjos e dizendo: "Vinde a mim e lhes darei o reino
dos céus". Logo ao amanhecer, os dois esposos foram pedir o batismo e tam-
bém se tornaram cristãos.
Havia na cidade um tal de Cipriano que praticava a bruxaria desde sua
infância. Quando tinha apenas sete anos de idade seus pais o haviam consagra-
do a Satanás. Por causa disso, e havendo se dedicado com afinco à bruxaria,
detinha grande poder diabólico. Era tão hábil em suas mágicas e bruxedos que
conseguia realizar coisas extraordinárias, como transformar pessoas em animais.
O bruxo Cipriano e um companheiro seu chamado Acladio apaixona-
ram-se perdidamente por Justina. Cipriano recorreu a diversos artifícios de bru-
xaria para ver se a donzela aceitava ter relações torpes com ele, ou ao menos
com seu companheiro Acladio, mas em vão. Acladio, desesperado, resolveu

205
chamar o próprio demônio para ajudar a cumprir seus desígnios. Convenceu o
bruxo Cipriano a pedir ajuda a Satanás. Usando de seus recursos mefistofélicos,
Cipriano conseguiu fazer com que o demônio aparecesse. Perguntado o que
queria, disse que estava apaixonado por uma donzela que praticava a religião
dos galileus e perguntou se o demônio não poderia fazer com que ela concor-
dasse em saciar sua concupiscência.
O demônio respondeu:
- Claro que sim! Se pude expulsar o homem do Paraíso e fazer com que
Caim matasse seu irmão Abel, e que os judeus crucificassem a Jesus Cristo e
que as pessoas andem revoltadas, como não poderei obter que uma simples
donzela caia em teus braços e possas fazer o que quiser com ela? Toma este
ungüento, espalha-o pelo chão da rua em frente à sua casa; logo passarei por ali,
inflamarei o coração da jovem de amor por ti e a inquietarei de tal modo que
ela mesma te buscará e se lançará em teus braços.
A partir do momento em que Cipriano fez o que Satanás ordenara, Justi-
na começou a sentir em seu interior desejos ilícitos. Porém ao sentir a tentação
se recomendou ao Senhor e traçou o sinal da Cruz em todo os sentidos de seu
corpo. O diabo, ao ver que a jovem se persignava fugiu rapidamente dali cheio
de terror e apareceu perante Cipriano, o qual lhe interroga:
- Como? Não vens trazendo contigo Justina?
Ao que o diabo respondeu:
- Tentei trazê-la, porém quando o estava conseguindo ela fez sobre seu
corpo um sinal e eu me fiquei de repente sem força e tremendo de medo.
Cipriano, irritado, despediu aquele demônio e invocou ansiosamente a
ajuda de outro que fosse mais poderoso que o que acabava de despedir. Apre-
sentou-se outro ante ele e lhe disse:
- Já sei do que se trata. Ouvi o encargo que fizeste a meu companheiro e
vi que não foi capaz de realizar sua missão. Porém não te preocupes; eu farei o
que ele não fez e conseguirei que se cumpram seus desejos. Me apresentarei
ante a jovem e desencadearei em seu coração uma paixão tão violenta que ela
se entregará a ti e tu desfrutará dela quanto queiras.
Este segundo diabo aproximou-se de Justina e tratou de acender em seu
corpo o fogo da concupiscência e de despertar em sua alma amores impuros;
porém Justina novamente se encomendou ao Senhor, persignou-se, rechaçou a
tentação, soprou sobre o espírito do mal, e este, da mesma forma que o outro,
fugiu dali confuso e envergonhado; e, como seu companheiro, apresentou-se a
Cipriano, que lhe perguntou:
- Onde está a donzela que prometeste trazer-me?

206
- Reconheço, respondeu o demônio, que fui vencido, e até medo me dá
dizer-te como me venceu: traçou sobre seu corpo um sinal terrível e quando fez
isso me deixou sem forças.,
Cipriano, mofando do segundo diabo, o despediu, e em seguida chamou
ao próprio chefe dos demônios, que logo atendeu a seu chamado. Ao vê-lo,
Cipriano lhe disse:
- Como é que tua gente é tão pusilânime e covarde que se deixa vencer
por uma jovenzinha?
O recém chegado lhe respondeu:
- Deixa este assunto por minha conta. Eu irei pessoalmente resolvê-lo.
Me apresentarei ante ela, a atormentarei com altíssimas febres, provocarei em
seu ânimo uma violentíssima paixão, acenderei em seu corpo um ardente fogo
de irreprimíveis desejos, a farei ver visões lúbricas, conseguirei que se excite
freneticamente e à meia-noite te a trarei até aqui.
Logo em seguida o príncipe dos demônios começou a executar seu pla-
no. Adotou a aparência de uma donzela, apareceu perante Justina e lhe disse:
- Venho ver-te porque quero que me ajudes a viver em perfeita castidade.
Sinto vivíssimos desejos de praticar fidelissimamente esta virtude, porém às ve-
zes me assaltam dúvidas deste teor: em troca do muito que é preciso lutar para
conservar a pureza que recompensa receberemos?
Justina declarou:
- Não são tão grandes estas lutas; eu não vejo que custe tanto conservar a
virgindade; por outro lado, estou segura de que o prêmio que receberemos por
isto será muito valioso.
- A mim me preocupa muito - continuou o demônio - esse mandamento
divino que diz: "Crescei e multiplicai e enchei a terra", e a miúdo penso, minha
boa amiga, que nós, ao apegarmo-nos ao propósito de viver virginalmente, es-
tamos desprezando este preceito, obrando contra a vontade de Deus, desobe-
decendo a Ele e enganando-nos a nós mesmas. Às vezes me assalta o temor de
que quando chegue a hora do Juízo vamos nos encontrar com a terrível surpre-
sa de que, em lugar dos prêmios em que confiamos, receberemos o castigo da
eterna condenação por haver negligenciado um mandamento divino tão claro.
Estas considerações turbaram a paz interior de Justina. A jovem, ator-
mentada pelo demônio, começou a sentir maus pensamentos e torpes desejos
cada vez mais fortes e mais desonestos, até o ponto de que em determinado
momento esteve prestes a abandonar seus propósitos de castidade; porém na-
quele crítico instante caiu em si de que estava sendo tentada pelo espírito ma-
ligno, persignou-se, soprou sobre a visitante e ficou atônita ao ver que a que pa-
recia virtuosa donzela se derretia repentinamente como se fosse de cera, e que

207
ela, livre já de maus pensamentos e de desejos impuros, recobrava plenamente
a paz interior e o sossego de seu corpo e de sua alma.
Mas, em poucos instantes, o mesmo demônio apareceu-lhe novamente,
desta vez em forma de um formosíssimo mancebo que se aproximava de seu
leito, se lançava sobre ela e tentava abraçá-la. Justina recorreu a seu poderoso
remédio, persignou-se novamente e, enquanto o fez, o jovem galhardo, como se
fosse de cera, derreteu-se da mesma forma que a antes fingida amiga. Mesmo
com este segundo fracasso, Satanás ainda não se rendeu. Deus permitiu-o se-
guir tentando a donzela, que o fez desta forma: o espírito maligno desencadeou
uma terrível epidemia na cidade de Antioquia. Justina caiu enferma com altís-
sima febre. A peste propagou-se pela comarca e causou a morte de muitas pes-
soas e de infinidade de animais domésticos. A região ficou quase sem ovelhas e
sem vacas. Os demônios fizeram correr a voz entre a gente de que, se Justina
não se casasse, viriam sobre a cidade e o país outras calamidades maiores. Os
moradores de Antioquia, sobretudo os doentes, começaram a acudir em massa
à porta da casa dos pais de Justina e pedir a eles, aos gritos, que casassem sua
filha o quanto antes e livrassem as pessoas dos grandes males que estavam pa-
decendo.
Justina suportou com firmeza a pressão a que estava submetida, e se ne-
gou a aceitar o que se lhe propunham. Em vista de sua negativa, o povo, suble-
vado e irritado, apinhava-se em frente de sua casa proferindo constantemente
ameaças de morte contra ela.
Sete anos durou a peste. Ao final, um dia Justina rezou fervorosamente
por seus perseguidores e obteve do Senhor a graça de que a epidemia terminas-
se. Porém não terminou a obstinação de Satanás, o qual, irritado ao comprovar
que não avançava nem um só passo no que se havia proposto, elaborou um no-
vo plano: foi até Cipriano e com manifesta jactância lhe assegurou que logo te-
ria ante ele a donzela rendida de amor. Depois disto, tanto para manchar o
bom nome de Justina quanto para enganar ao libidinoso enamorado, assumiu a
aparência da jovem e, disfarçado de modo que parecia ser exatamente ela, apa-
receu na casa de Cipriano e qual sem languidez de paixão arrojou-se em seus
braços e deu-lhe a tender que queria beijá-lo. Cipriano, acreditando que era
efetivamente sua amada quem lhe abraçava tão ternamente, louco de alegria
exclamou:
- Oh, Justina, a mais formosa das mulheres! Bem-vinda sejas a esta casa!
Porém, tão logo Cipriano pronunciou a palavra "Justina", o diabo, incapaz
de resistir à virtude que emanava da mera articulação daquele nome, repenti-
namente perdeu a aparência que havia assumido e desapareceu, deixando em
seu lugar uma espessa nuvem de fumo. Com isto Cipriano caiu na conta de que
havia sido objeto de uma burla enganosa por parte de Satanás; sua alegria se

208
converteu em tristeza e caiu num estado de profunda melancolia; porém a me-
lancolia por sua vez reavivou ainda mais as chamas do amor que sentia por Jus-
tina, e, para ver se podia lograr seus desejos de desfrutar de sua amada, decidiu
vigiar constantemente a casa em que ela vivia; e como era exímio em feitiçaria,
recorrendo a suas artes mágicas conseguiu adotar diferentes aparências, umas
vezes de mulher, outras de ave, e sob estas e outras formas permaneceu perto
da jovem, constantemente, porém a certa distância, porque, tão logo tentava se
aproximar suas artimanhas falhavam e recobrava seu verdadeiro aspecto de Ci-
priano.
Acladio, seu amigo, se uniu a ele nestas tarefas de vigilância permanente;
com tal efeito, mediante artes diabólicas, se converteu em pássaro e andava con-
tinuamente sobrevoando em volta da casa da virtuosa jovem. Em certa ocasião,
o falso pássaro pousou na janela da casa de Justina. No entanto, tão logo ela
olhou para o pássaro, este perdeu sua forma de ave e voltou à de Acladio, o
qual, ao ver-se em seu verdadeiro ser, começou a tremer de medo e de angústia
porque não podia fugir dali voando, nem sem perigo de cair ao solo e morrer.
Justina, ao notar a comprometida situação em que Acladio se encontrava
e temendo que de um momento a outro pudesse cair e estatelar-se contra o pa-
vimento da rua, acudiu em seu socorro: mandou colocar uma escada por fora a
fim de que pudesse descer seguramente. Estando o mesmo a salvo, fez-lhe ver
que largasse semelhantes loucuras e que, se voltasse a cometer alguma imperti-
nência, o denunciaria às autoridades e exigiria que de acordo com as leis fosse
castigado pelo delito de praticar a magia.
Satanás, no final, convenceu-se de que jamais conseguiria o que se pro-
punha e de que quanto tentasse neste sentido estava condenado ao fracasso; por
isso, confuso e envergonhado, se apresentou na casa de Cipriano. Este, logo ao
vê-lo, lhe dirigiu a palavra:
- Olhando o semblante que trazes acredito adivinhar que te dás por ven-
cido. Tu e todos os de tua corja sois uns desgraçados. A que vem tanto alardear
de força se logo resulta que não podeis nada contra uma menina que inclusive
os vence com suma facilidade e os deixa miseravelmente humilhados? De to-
dos os modos quero que me digas uma coisa: de onde tira esta jovem a enorme
fortaleza que demonstra ter?
O demônio lhe respondeu:
- Se me juras que nunca nem por nada te apartarás de mim, responderei
a tua pergunta e te descobrirei de onde provêm sua valentia e as vitórias que
sobre nós tem conseguido.
- Por quem ou por quais coisas queres que eu te jure? - diz Cipriano.
- Por meus poderes. Jura por meus poderes que jamais te separarás de
mim.

209
- Por teus extraordinários poderes prometo com juramento que nunca
me separarei de ti.
Então o diabo, fiando na promessa que seu aliado acabava de fazer, diz:
- Esta jovem, quando me apresentei perante ela, fez o sinal da Cruz, e,
tão logo traçou sobre seu corpo esse sinal, eu fiquei sem forças, como se esti-
vesse acorrentado, e naquele mesmo momento me derreti como se derrete a
cera diante do fogo.
- Significa isso acaso que o Crucificado é mais poderoso que tu?
- Por suposto que sim. Ele é o maior que existe no universo; tão grande e
poderoso que em virtude de seu infinito poder nos mantém aos demônios em
estado de perpétua condenação e lança ao fogo eterno que nós padecemos a
quantos conseguimos enganar com nossas trapaças.
- Do que acabas de dizer se segue que, se eu não quero incorrer nesses
horríveis tormentos, devo fazer-me amigo do Crucificado.
- Não esqueças que há pouco juraste que por meus extraordinários po-
deres jamais te separarás de mim, e não esqueças que uma coisa assim não se
jura em vão.
- Sabes o que te digo? Que me rio desse juramento e me rio de ti, e me
rio de teus poderes, porque esses poderes que tu chamas extraordinários, não
são mais que fumo. Escuta o que segue: renuncio a ti, e renuncio a todos os
diabos, teus companheiros, e em prova disto agora mesmo vou fazer eu tam-
bém sobre meu corpo o sinal da Cruz.
Em seguida, Cipriano persignou-se e, enquanto o fazia, Satanás, confuso
e aterrado, fugiu precipitadamente.
Depois disto Cipriano foi ver o bispo. Este, ao vê-lo entrar, pensou que
vinha seduzir com suas artes mágicas aos cristãos e, antes que o visitante pro-
nunciasse uma só palavra, disse:
- Cipriano, contenta-te em enganar aos infiéis e deixa em paz aos nossos.
Ademais, advirto-te que quanto trates de fazer contra a Igreja de Deus será
completamente inútil, porque o poder de Cristo é invencível.
- Por suposto que o poder de Cristo é invencível; disso tenho provas.
Dizendo isto contou ao bispo tudo o que acabara de lhe ocorrer. Termi-
nada sua narração pediu o batismo. E a partir de sua conversão fez tais progres-
sos nas virtudes e ciências que, anos depois, tornou-se também bispo. Nos pri-
meiros dias de seu episcopado instalou a virgem Justina num mosteiro com vá-
rias outras donzelas, nomeando-a abadessa da comunidade.
São Cipriano abjurou a bruxaria e tornou-se não só um grande animador
dos mártires, mas um deles, pois morreu decapitado em defesa da Fé. 84

84
“La Leyenda Dorada" – Edição española, Alianza Forma - vol. 2 - págs. 611/614

210
22. Os santos às vezes caem, mas depois se levantam

Um exemplo disso tivemos na vida de São Martiniano, um ermitão do


início do Cristianismo. Vivia ele em recolhimento há 25 anos, quando uma
dama desonesta, chamada Zoé, procurou-o para tentar pervertê-lo usando de
artimanhas diabólicas. Ela cobre-se de andrajos e dirige-se de noite à cela do
santo, onde se apresenta como uma infeliz mulher que se perdera no deserto e
corre risco de perecer se lhe for recusada a hospitalidade. O santo comoveu-se
e recebeu-a na sua cela, retirando-se em seguida para a cozinha.
No dia seguinte, logo cedo, Zoé tira os andrajos e veste magníficos vesti-
dos que trouxera consigo, e assim toda enfeitada apresenta-se diante do santo
eremita. Diz-lhe que veio de Cesaréia e que sua intenção era lhe oferecer, atra-
vés de um santo casamento, uma grande fortuna. Em seguida acresentou: “A
proposta que vos faço nada tem que vos possa inquietar. Não é incompatível
com a piedade cristã, pois bem sabeis, como eu, que os santos profetas e pa-
triarcas do Antigo Testamento foram ricos e abraçaram o estado matrimonial”.
Em vez de imitar o exemplo do casto José do Egito, Martiniano cedeu às
fraquezas da tentação, escutando a sedutora e aceitando a proposta. Certo dia,
vários cristãos vieram como de costume àquele eremitério para ouvir seus con-
selhos e receber suas bênçãos. Quando dirigia-se aos visitantes com intuito de

211
os abençoar e despedir, foi tocado por uma graça interior. E quando ficou só,
sentiu amargos remorsos, cora ao constatar que cedera à tentação, volta à cela,
acende grande fogueira e coloca seus pés nas chamas.
A mulher ouve os gemidos do eremita e corre para ver o que estava oco-
rrendo. Depara-se com aquela cena triste: Martiniano estava no chão, banhado
em lágrimas, tendo os pés totalmente queimados pelo fogo. Lamentando-se di-
zia: “Como poderei suportar as chamas do inferno se nem sequer consigo
agüentar este fogo meramente material?” De tal forma a graça inundara o am-
biente que a própria cortesã sentiu-se tocada e arrependida. Teve que sair
daquele lugar e ir se penitenciar num mosteiro feminino.
Quanto ao nosso anacoreta, arrependido, não quis mais ficar ali e, estan-
do levando vida de oração novamente em outro lugar, foi de outra forma visita-
do por uma dama, náufraga de uma embarcação, mas desta vez ele simples-
mente fugiu do lugar após salvá-la, a fim de novamente não cair na tentação da
ocasião próxima de pecado.

23. Martírio incruento para conservar a castidade

O fato deu-se com os padres Anchieta e Manuel da Nóbrega, especial-


mente mais cruel para Anchieta com lances solitários desta luta, pois Manoel da
Nóbrega teve que se ausentar para negociar as pazes com os índios. A este res-
peito, o sofrimento de Anchieta chega até o cume do heroísmo.
Estavam em Iperoig, aldeia dos terríveis tamoios, como reféns exigidos
para a concretização do tratado de paz. O Padre Manoel da Nóbrega teve que
sair com um grupo e ir confabular com outros índios, enquanto José de Anchie-
ta ficou retido na aldeia como garantia.

212
A permanência do Beato Anchieta naquele lugar revestiu-se do caráter
de uma grandiosa luta, a luta entre o bem e o mal, onde uma das virtudes mais
visadas pelas tentações diabólicas era exatamente a pureza. Além de ter que su-
portar os festins antropofágicos, os rituais de curandeirismos indígenas, os as-
sassinatos cruéis de índios recém-nascidos, Anchieta tinha que lutar constante-
mente contra a tentação de impureza.
Segundo alguns observadores superficiais, teria sido mais fácil conseguir
resolver logo as negociações de paz se os embaixadores tivessem cedido em
matéria de castidade. No entanto, mandava os preceitos religisos que em nada
se poderia ceder, sob pena de pecado mortal por uma grave ofensa a Deus. O
padre Anchieta conta que, logo de início, vieram os chefes da aldeia lhes ofere-
cer suas filhas índias para com elas domir, e por cima de tudo ficavam insistin-
do constantemente que as aceitassem, considerando uma ofensa a recusa.
Naquela situação o Beato poderia ter tido pensamentos de condescen-
dências: “Essa recusa, considerada grosseira pelos chefes da tribo, não poderia
atrapalhar as pazes? E Deus não levaria em conta nossa fraqueza, cedendo a
tanta tentação, e nos perdoaria?” Quntos pensamentos desta natureza não de-
vem ter turbado a mente do santo padre.
No entanto, com a atenção posta na fidelidade a Deus, no progresso da
santidade e, sobretudo, confiando que sendo fiel Deus o auxiliava muito mais
do que se pecasse, Anchieta permeneceu incólume, não permitiu que lhe tol-
dasse a mente o menor assentimento ao pecado.
E no entanto, as índias passavam constantemente em sua frente, inteira-
mente despidas, talvez fazendo gestos despudorados e tentadores, talvez a man-
do das matronas feiticeiras ou de seus chefes. Na maioria das vezes esta ten-
tação era feita pelas índias mais jovens e formosas.
E isto durante vários dias, todos os dias, desde o amanhecer ao entarde-
cer. Até mesmo quando o Beato Anchieta celebrava missa, numa pequena pal-
hoça separada dos índios, era repentinamente visitado por aquelas figuras sen-
suais e tentadoras. Voltando seu olhar para os céus, o santo homem rogava in-
sistentemente a proteção da Virgem Maria. E fez uma promessa a Ela: caso
saísse dali intacto, sem cometer ou mesmo permitir no menor pecado contra a
pureza, faria um poema em homenagem à Virgem Maria.
A respeito do episódio, o seu biógrafo Charles Sainte-Foy teceu o segui-
ne comentário: “Compreendendo o perigo em que estava e desconfiando de
suas próprias forças, aumentou as orações, os jejuns, as disciplinas, e conservou
continuamente sobre si um duro cilício que, atormentando-lhe a carne, enfra-
quecia-a e reprimia seu ardor. Convencido de que, para conservar o precioso
tesouro da pureza era preciso redobrar a vigilância, observava com exatidão os

213
menores movimentos da natureza e sufocava em germe todos os que nele pu-
dessem fazer enfraquecer a graça”.
E para mais facilmente fugir das tentações, o Beato Anchieta se refugiava
na praia, e lá mesmo riscava com uma vara os versos do poema que mais tarde
passou para o papel.
A propósito de sua fidelidade à Castidade, disse seu primeiro biógrafo, o
padre Quirício Caxa: “Imerso num fogo babilônico não foi sequer chamuscado
por aquelas chamas...”. Estava ele sob uma proteção especial da Santíssima Vir-
gem. Por isso não pecou.

24. Índia brasileira, mártir da Castidade

O mesmo biógrafo citado acima, Charles Sainte-Foy, juntamente com os


cronistas jesuítas contemporâneos de Anchieta contam vários casos em que ín-
dias convertidas e já praticantes do Cristianismo se tornaram mártires da pure-
za. Certa feita, duas índias estavam fazendo os círios para serem acesos nas mis-
sas da aldeia, quando uma delas guardou uma das velas para si. Perguntada pela
outra com que finalidade, respondeu que era para o Padre Anchieta celebrar
uma missa em sua honra e louvor quando se tornasse mártir e santa. Em segui-
da, a índia ofereceu aquela vela ao Padre Anchieta, que a guardou consigo. Al-
guns dias depois a aldeia foi atacada por índios contrários, os quais levaram
aquela índia como cativa. O cacique tentou violentar a todo custo a pureza
daquela índia, mas a mesma lutou bravamente com todas suas forças, dizendo
corajosamente que era cristã e casada, não podendo portanto pertencer a outro
homem. Cheio de ódio à Fé cristã e à virtude da Castidade, o índio terminou
por matar a índia.
No mesmo dia, encontrando-se o Padre Anchieta ausente, resolveu cele-
brar missa e foi buscar aquela vela que a índia lhe tinha presenteado dias atrás.
Inspirado pelo Espírito Santo, pois não sabia do ocorrido ainda, disse que tinha
intenção de celebrar aquela missa em honra de uma mártir cristã. Quando ou-
tro padre perguntou o nome da mártir, respondeu o Padre Anchieta que era
aquela índia que lhe tinha presentado aquele círio.

25. Outro exemplo de castidade heróica entre os indígenas

O tema pode causar pasmo a certos espíritos superficiais: mas como?


Então gente que se dedicava a uma luxúria desbragada, de repente passa a pra-
ticar a castidade? Sim, é verdade; e isto já de si constitui um estupendo milagre
na ordem da graça. O Padre Anchieta comenta: “Observam-se em muitos, má-
xime nas mulheres, assim livres como escravas, mui manifestos sinais de virtu-

214
des, principalmene em fugir e detestar a luxúria, que sendo comum pernície no
gênero humano, desta parte parece que teve sempre, não somente imperioso
senhorio, mas até tirania muito cruel. E sendo isto verdade, é muito para espan-
tar e digno de grande louvor quantas vitórias e triunfos alcancem dela. Sofrem
as escravas que seus senhores as maltratem com bofetadas, murros e açoites por
não consentir no pecado. Outras desprezam as dádivas que lhe oferecem os
mandebos desonestos. Outras, a quem pela violência lhe querem roubar sua
castidade, defendem-se, não somente repugnando com a vontade, mas até com
clamores, mãos e dentes fazem fugir os que as querem forçar. Uma, acometida
por um e perguntada de quem era escrava, respondeu: “de Deus sou, Deus é
meu Senhor, a Ele lhe convém falar, se queres alguma coisa de mim”. Com
estas palavras se foi vencido e confuso e contava isso a outros com grande ad-
miração” 85

Castidade, virtude detestada pela Revolução


Por ser uma virtude muito detestada pela Revolução e tenazmente muito
combatida em todas as épocas, não poderíamos deixar de relatar um caso im-
pressionante da prática de castidade heróica entre os índios. Quem o relata é o
Padre Antonio Blásquez, em carta escrita da Bahia em 1558. Transcrevemos
abaixo todo o relato, com todo o seu sabor quinhentista:
“E para concluir direi por último o que aconteceu nesta cidade digno de
edificação e, por ser no Brasil, de muita admiração. Foi trazida de casa de seus
pais uma índia brasílica mui pequena e, criando-se em bons costumes em casa
de uma dona honrada, afeiçoou-se tanto à virtude e cousas do Senhor que pro-
pôs em sua alma (ensinada não por homens, senão pelo Espírito Santo) de não
conhecer varão e isto quanto lhe fosse possível. Perseverando ela nestes dese-
jos, cousa muito desacostumada entre as índias desta terra, o Demônio, inimigo
da salvação dos homens, não podendo sofrer fazer tão grande desonra em terra
onde ele é tão honrado, trabalhou que ela tivesse amos que a tirassem de tal
propósito, e creio que assim fora se o Semhor não a prevenira antes com sua
Graça, ornando-a de uma grande fortaleza para que pudesse resistir e vencer ao
Demônio de uns não bons homens, por meio dos quais lhe queria roubar a jóia
da castidade. Estes amos, pois, a acometeram muitas vezes querendo deflorá-la,
aos quais ela resistiu com um ânimo mais que de mulher, rogando-lhes com as
lágrimas nos olhos que tal cousa não quisessem fazer, pondo-lhes diante o mal
que faziam a ela e a si mesmos; finalmente quão grande desonra e desacato
cometiam ao Senhor, verdadeiro amador dos limpos e castos”.

85
“Cartas – Correspondência Ativa e Passiva” - |Pe. Joseph de Anchieta SJ – Ed. Loyola – pág. 160/161

215
Falsos cristãos, levados pelo demônio, os que tentam pagãs recém-convertidas
Pela reação da índia e, principalmente, por tratar-se de serem cristãos os
agressores, seria de se esperar que se contivessem. Mas não foi o que se deu.
Continua o Padre Blásquez:
“O senhores com a tal novidade ficavam como atônitos e pasmados, e
reconhecendo nela a virtude e a graça do Senhor, por algum tempo a deixavam;
mas não durava muito: creio que era parte por sua maldade, parte pela grande
inveja do Demônio, que vendo que era vencido por uma índia brasílica, não
criada em mosteiros nem em recolhimentos, mas nascida de gente boçal e qua-
se selvagem, solicitava-os a que dobrassem sua alma a que consentisse nos seus
torpes desejos, espantando-a algumas vezes com ameaças, outras atraindo-a
com mimos e palavras brandas; mas por fim, como acerca de Deus valem mui-
to pouco ardis dos homens e menos malícia do Demônio, ainda que ponha
todas as suas forças, acontecia-lhes ficarem envergonhados e o Demônio con-
fundido e vencido. Vendo-se, pois, a pobresita perseguida e acossada destes
seus amos, e advertindo que nós outros veneramos a imagem de Cristo Crucifi-
cado, pôs em seu pescoço um Crucifixo para que com isso se amparasse e de-
fendesse dos perversos amadores de seu corpo, dos quais não se podia ser livre,
nem pelos rogos, nem pelas lágrimas que chorasse; para esse efeito lhe dava o
Senhor grande cópia delas”.
Num lance de agressão suprema, o amo da índia tenta uma última vez
vencer-lhe o amor pela virtude da castidade, mas a casta mulher o reprime des-
ta forma:
“Não se acabaram com isto os seus trabalhos, porque, vendo um seu
amo a sua grande constância, não se atreveu a cometer tal abominação dentro
de casa, porque temia que dando ela vozes e gritos, fosse sentido e por conse-
guinte tido em má conta: assim, levou-a para uma roça e estando ali sós, vendo
ela que não tinha ali remédio humano, socorreu-se ao divino, que nunca a nin-
guém soe desamparar,e posta de joelhos dianta do Senhor, os olhos arrasados
de lágrimas, tirou o Crucifixo do pescoço e disse a seu amo: “Senhor, em re-
verência a este teu Deus que adoras, te rogo que não toques em mim, porque
não te aconteça algum mal se o fizeres”. Movido o amo com isto, desistiu da
sua danada intenção e, vendo que não lhe aproveitava par o que ele queria, a
vendeu a outro homem, com quem experimentou as mesmas fadigas e angús-
tias e por isso muitas vezes lhe fugia e andava amontada em casas de homens
honrados, rogando mui continuamente aos Padres que fizessem com que algum
homem casado a comprasse, porque com solteiros já tinha experimentado que
não podia ter vida…”
Finalmente, o Padre conta como conseguiram livrar a pobre desta
aflição:

216
“Sua consolação e alegria é ouvir pregações e confessar-se muitas vezes e
procurar que as outras índias façam o mesmo, e dá-lhes o Senhor tanta graça
em falar dele, que os homens Cristãos se maravilham das cousas que diz. Ven-
do os Padres a sua aflição, determinaram tirar nesta Páscoa alguma esmola, pa-
ra que a forrassem e ela estivesse em casa de um homem honrado, para que
dali servisse aos pobres do hospital e da cidade, trazendo-lhes água e o mais
necessário para o seu serviço; já se tem toda junta a esmola em que ela foi
apreçada. Prazará ao Senhor, que a livrou de tantos trabalhos, dar-lhe sempre
perseverança em seu serviço, pois, sendo antes cativa, tão livremente o servia”86

26. Virtudes da índia Bartira contada por São José de Anchieta

“Um só exemplo contarei ainda, por me não deter em cada coisa particu-
lar, que não será cousa de menor alegria. Faleceu pouco há uma velha, que ha-
via sido manceba de um português quase quarenta anos e havia gerado muitos
filhos. Esta, como nossos irmãos, haverá nove anos, a admoestassem que olhas-
se para si e não quisesse ir-se ao inferno por aquele pecado, logo arrependida e
conhecendo a maldade, em que havia vivido, aborreceu o p ecado e, perseve-
rando em castidade, trabalhava de purgar seus pecados com muitas esmola, que
nos fazia. Agora, ferida de uma longa e incurável enfermidade, foi-se a Pirati-
ninga, onde, feita uma casa por seus filhos e escravos, entendia somente em
coisas relativas à salvação de sua alma. Confessava-se e comungava muitas vezes
e, dando-nos muitas esmolas, aparelhava eternos tabernáculos no céu. Visita-
vam-na muitas vezes os irmãos e confortavam-na como divinas palavras, princi-
palmente quando, já no fim, tendo corruptos os órgãos secretos (esta era uma
enfermidade, que é muito comum nestas mulheres do Brasil, ainda virgens),
exalava de si tão mau cheiro, que os mesmos seus a desamparavam. Mas o Pe.
Afonso Brás e o Ir. Gaspar Lourenço, intérprete, dando maior atenção ao olor,
que daí a pouco sua alma havia de dar, venciam o fedor que aos outros ere into-
lerável, e estavam toda a noite sem dormir, animando-a com divinas palavras,
nas quais ela muito se deleitava, até que expirou com ditoso fim, com é de crer”

Nota: Desde 1551 cuidara, como se vê, Leonardo Nunes de atrair essa alma,
cristã pelo batismo, à observância das leis divinas, no que “logo” foi bem suce-
dido. Não há dúvida, pelas circunstâncias aqui enumeradas, que se trata da
companheira de João Ramalho, mãe de seus numerosos filhos. Mbcy (Mbcy
mesmo!), seu primeiro nome indígena, passou a ser conhecida pelo nome de
Bartira. Isabel Dias, o seu nome cristão. 87
86
Cartas Jesuíticas 2 – Cartas Avulsas – Editora Itatiaia – págs. 216/218
87
“Cartas – Correspondência Ativa e Passiva – Pe. Joseph de Anchieta, SJ – Ed. Loyola, 1984 –
págs. 157/158 – Nota, à página 170

217
27. História de castidade heróica contada por São Jerônimo

Um jovem monge, de nome Malco, viu-se cativo de um bárbaro ismaelita


juntamente com uma mulher cristã e casada. Como o senhor deles desejava que
fossem mais fiel no seu serviço, resolveu casá-los. Por medo da morte aceitaram
o “casamento” imposto pelo agareno, mas fizeram o propósito entre ambos de
levar vida pura e sem pecado. Embora vivessem no campo, onde havia ampla
liberdade para a prática do pecado, no entanto, perseveram fielmente em seus
propósitos, não tendo Malco tocado na mulher em momento algum, fugindo
inclusive de vê-la despida.
Tramaram certo dia a fuga, e após três dias de caminhada depararam-se
com dois homens montados em camelos, certamento a mando de seu senhor

218
para buscá-los de volta. Como vinham para eles em tom ameaçador, fugiram e
se refugiaram numa gruta. O amo deles manda ao outro homem, que era seu
criado, que entre na gruta para prendê-los, mas lá dentro encontrava-se também
uma leoa, a qual avança sobre o criado e mata-o. Vendo que o criado tardava lá
dentro, resolve o amo também ir em busca do casal de fugitivos. Entra bradan-
do e logo a leoa o mata também.
No entanto, o casal de cristãos não é sequer tocado pela leoa. Vendo os
dois, a fera, pelo contrário, deixa a gruta carregando um filhote na boca. Malco
seguiu seu caminho e, mais adiante, os dois foram cada qual para seus destinos
sem haver cometido nenhum pecado contra a castidade. E por terem feito tais
propósitos, Deus os livrou não só da escravidão do agareno, mas também da do
demônio.

28. Antes viver sem os olhos corporais para não perder os da alma

Outro caso de heroísmo na prática da castidade nos é contado pelo Pa-


dre Manuel Bernardes:
“João Valente, grave escritor da Ordem Fontebraldense, refere que indo
certo príncipe visitar um mosteiro de freitas daquela Ordem, viu uma de tão
singular formosura que logo ficou preso do seu amor. E não podendo tirar da
imaginação aquela espécie que, como relâmpago, o deslumbrara, mandou um
terceiro (nunca estes faltam nos palácios) que lhe falasse, perguntando da sua
parte por sua saúde, e oferecendo-se para tudo o que fosse de seu gosto. En-
tendeu logo a religiosa onde se encaminhavam tão magníficas ofertas; pergun-
tou que coisa agradara nela mais ao príncipe. E respondendo-lhe que os olhos,
pediu licença para ir dentro e voltar logo; e sem consulta e nem demora (raro
valor, notável resolução, que se não deve imitar sem muito especial impulso do
Espírito Santo) tirou os olhos com um canivete e, postos numa salva, lhos trou-
xe juntamente com este recado: Levai ao príncipe e dizei-lhe que gozai do que
lhe agradou. Tremeu aquela pessoa à vista de tal ação. O príncipe pasmou e
mal acabava de crer o mesmo que estava vendo. Mas aqueles olhos privados da
luz a deram aos de sua alma: trocado o amor do século no da virtude, deu
grandiosos dons ao mosteiro e lhe edificou enfermaria e convalescença. O pa-
dre Teófilo Rainaudo, onde li o caso, lhe aplica os versos de um poeta francês a
outra donzela escocesa, por nome Triduana, que obrou semelhante lance, e o
amante vendo aqueles olhos, exclamou: “Não sei, varonil donzela / Não sei em
que razão cai – Que os meus olhos façam o crime / E os vossos a pena pa-
guem”.88

88
Obras do Padre Manuel Bernardes – Luz e Calor - vol. II – págs 89/90

219
29. ...E seu corpo vestia-se de castidade

Dom Sebastião foi tornado rei com apenas 3 anos de idade, sendo cog-
nominado “O Desejado” porque ao nascer seu pai já tinha falecido. Assumiu o
trono em 1568, aos 14 anos de idade, tendo morrido heroicamente na batalha
de Alcácer-Quibir, no Marrocos, à frente de seu glorioso exército, no dia 4 de
agosto de 1578.
Era um rei guerreiro, um príncipe revestido do espírito da Cavalaria me-
dieval, mas acima de tudo santo e casto. Assim se expressa um historiador:
“Sua alma cada vez se esmaltava de intenções formosas; e seu corpo ves-
tia-se de castidade. Pudibundo em extremo, apenas permitia ao seu camareiro
que lhe vestisse a roupa de fora. Não deixava que nenhuma dama lhe tocasse,

220
e quando passeava a cavalo pela Rua Nova, ou pelas betesgas da velha e mou-
risca Lisboa, jamais levantava os olhos para as donzelas que chegavam às venta-
nas ou curiosamente espreitavam por detrás das verdes adufas árabes.
Era que seu espírito, vivendo exclusivamente para o catolicismo e para a
guerra, queria servir estas idéias com alma pura e corpo casto.
Uma manhã, na igreja de São Roque, confessado e comungado, reco-
lheu-se todo em si, a cabeça inclinada para o peito, em profunda absorção. De-
pois, ergueu a fronte, pôs firme os olhos num crucifixo alto, e, entre grossas
lágrimas, rogou com a alma inteira:
- Senhor, Vós que a tantos príncipes haveis concedido impérios e mo-
narquias, concedei-me ser vosso capitão!
Eram três as suas orações diárias:
- Que Deus o inflamasse no zelo da Fé que ele queria propagar pelo
mundo.
- Que Deus o tornasse um ardido guerreiro.
- Que Deus o conservasse casto.
Ser Casto!
Para ele, a castidade era uma graça física que o tornava forte, uma forta-
leza que o fazia ledo. A castidade dilatava-lhe a alma, amando a todos – ao rei-
no, à grei. Era uma pureza que, vivendo em si, marcava conceito nobre em to-
dos os seus propósitos, lhe punha frescura no olhar e lhe brunia as faces com
sorrisos brancos. Ser casto era vestir um arnês de candura”.89

89
D. Sebastião, Rei de Portugal – de Antero de Figueiredo – Liv. Bertrand, 1943, Lisboa – pág. 96/97

221
30. Princesa, rainha, “viúva” e virgem até os noventa anos...

A Beata D. Mafalda era a filha preferida de Dom Sancho I, rei de Portu-


gal. A jovem e casta princesa era bela e perfeita como poucas e senhora de
uma esmerada educação. Quando subiu ao trono de Castela o infante Dom
Henrique, irmão mais velho de São Fernando, o tutor do rei, conde Álvaro de
Lara, manobrou junto à corte portuguesa e conseguiu o casamento de D. Ma-
falda com o jovem rei. D. Berengária (mãe de Dom Henrique), uma santa mu-
lher, instou junto às autoridades religiosas contra a legitimidade daquele casa-
mento, haja vista a consangüinidade dos nubentes, e conseguiu da Santa Sé a
anulação do mesmo. Alguns dias depois, o jovem rei morre vítima de um aci-
dente banal (caiu-lhe sobre a cabeça um tijolo), quando contava apenas 14 anos
de idade. Assim, pela lei civil D. Mafalda era rainha, mas pela Lei de Deus po-
deria ainda se considerar como uma infanta, solteira, e, portanto, apta a realizar
novo casamento.
Em vista do ocorrido, D. Mafalda regressou a Portugal virgem e assim
quis se manter pelo resto de sua vida. Ingressou no Mosteiro de Arouca, onde
recebeu o hábito religioso. Morreu aos 90 anos de idade. Os moradores de du-
as localidades passaram então a disputar sobre a posse de seu corpo. Puseram-
no, então, sobre a mula que costumava viajar, a fim de que o próprio animal

222
decidisse onde seria sepultado. Dirigiu-se a mula para a igreja do Mosteiro de
Arouca e, chegando ao altar de São Pedro, aí parou e caiu morta. O sepulcro
da Beata Mafalda foi duas vezes aberto no século XVII, quatro séculos depois,
e seu corpo foi encontrado incorrupto. Em 1793, o Papa Pio VI confirmou-lhe
o culto com sua beatificação.

31. Santa Maria Egipcíaca viveu meio século no deserto purgando sua vida
de pecados da carne

Santa Maria Egipcíaca nasceu pelo ano 343 e faleceu no deserto da Jor-
dânia em 421 ou 422, aos 78 ou 79 anos de idade, após viver cerca de 50 anos
na solidão. Sua vida foi narrada por São Zózimo, a quem ela mesma contou:
"Minha terra natal, santo Pai, é o Egito. Ainda quando meus pais eram
vivos e eu tinha doze anos, renunciei ao amor deles e fui para Alexandria. Es-
tou envergonhada de relembrar como então, eu primeiro perdi minha virgin-
dade e em seguida, incontida e insaciavelmente, entreguei-me à sensualidade.
Falarei disso brevemente, de modo que apenas saibas da minha paixão e lascí-
via. Por cerca de dezessete anos, perdoe-me, vivi desse modo. Eu era como um
fogo de depravação pública. E não era por amor ao ganho - aqui eu falo a pura

223
verdade. Frequentemente, quando eles desejavam pagar-me, eu recusava o di-
nheiro. Agia dessa maneira para fazer com que, tantos homens quantos fosse
possível desejassem possuir-me, fazendo de graça o que me dava prazer. Não
pense que eu fosse rica e essa fosse a razão pela qual eu não pegasse o dinheiro.
Eu vivia de pedir e de tecer, mas tinha um desejo insaciável e uma paixão irre-
primível por deitar-me na lama. Isto era vida para mim. Todo tipo de abuso da
natureza eu considerava ser vida.
Assim eu vivia. Então, num verão eu vi uma grande multidão de líbios e
egípcios correrem em direção ao mar. Perguntei a um deles, 'para onde estão
indo todos esses homens?' Ele respondeu, 'eles estão indo a Jerusalém, para a
Exaltação da Cruz Preciosa e Vivificante, que ocorrerá dentro de alguns dias.'
Eu disse a ele, 'tu me levas junto se eu desejar ir?' 'Ninguém te impedirá de ir se
tens dinheiro para pagar a viagem e a comida.' E eu lhe disse: 'para dizer a ver-
dade, não tenho dinheiro, nem alimento. Mas irei com eles e estarei à bordo. E
eles me alimentarão, queiram ou não. Eu tenho um corpo - eles o tomarão ao
invés de pagar pela viagem.' De repente enchi-me de desejo de ir, Pai, para ter
mais amantes que pudessem satisfazer minha paixão. Eu disse a ti, Pai Zózimo,
que não me forçasses a contar-te sobre minha desgraça. Deus é minha testemu-
nha, estou receosa de corromper-te e até ao ar, com minhas palavras."
"Aquele jovem, ouvindo minhas palavras desavergonhadas, riu e foi-se
embora. Enquanto que eu, jogando fora o tear, corri em direção ao mar na di-
reção que todos pareciam seguir e vendo alguns rapazes de pé na praia, cerca
de dez ou mais, cheios de vigor e prontidão em seus movimentos, decidi que
eles serviam aos meus propósitos; (parecia que alguns esperavam por mais pas-
sageiros enquanto outros tinham ido à terra). Desavergonhadamente, como
sempre, misturei-me à multidão, dizendo, 'levem-me consigo para onde estão
indo; vocês não vão me achar supérflua.' Também acrescentei mais algumas
palavras provocando o riso geral. Vendo minha prontidão para a falta de vergo-
nha, eles prontamente colocaram-me a bordo na embarcação. Aqueles que
eram esperados também vieram e finalmente partimos.
Como posso relatar o que aconteceu depois disso? Que língua pode con-
tar, que ouvidos podem receber tudo o que aconteceu naquela embarcação du-
rante aquela viagem! Dizer que eu frequentemente forçava aqueles pobres mo-
ços, até contra sua própria vontade!? Não há depravação alguma, mencionável
ou não, que eu não lhes tenha ensinado. Estou surpresa, Pai, como o mar su-
portou nossa licenciosidade, como a terra não abriu suas mandíbulas, e como o
inferno não me engoliu viva, enquanto eu prendia em minha teia tantas pessoas.
Mas, acredito que Deus estava buscando meu arrependimento. Pois ele não
deseja a morte do pecador, mas magnanimamente espera seu retorno a Ele.
Finalmente chegamos a Jerusalém. Passei os dias antes do festival na cidade,

224
vivendo o mesmo tipo de vida, talvez até pior. Eu não estava contente com os
jovens que tinha seduzido em alto mar e que me ajudaram a chegar a Jerusa-
lem; também seduzi a muitos outros, tanto da cidade quanto estrangeiros que lá
estavam.
O dia sagrado da Exaltação da Cruz despontou, enquanto eu ainda estava
à caça de jovens. Ao amanhecer, vi que todos corriam para a igreja então, corri
com o resto deles. Quando a hora da sagrada elevação se aproximou eu estava
tentando abrir caminho entre a multidão, que lutava para chegar às escadarias.
Finalmente, com grande dificuldade, consegui ir me espremendo quase até às
portas da igreja, de onde a Vivificante Árvore da Cruz estava sendo mostrada ao
povo. Mas quando eu pisei no limiar da porta, por onde todos entraram, fui
impedida por uma força que não me deixou entrar. Entretanto, completamente
ignorada pela multidão me encontrei sozinha no pórtico da igreja. Pensando
que isto tivesse acontecido devido à minha fraqueza de mulher, comecei nova-
mente a abrir caminho com os cotovelos no meio da multidão. Mas era em vão
meu esforço. Novamente meus pés pisaram no limiar onde outros iam entran-
do na igreja, sem encontrar nenhum obstáculo. Eu somente parecia não ser
aceita na igreja. Era como se um destacamento de soldados estivesse lá de pé,
se opondo à minha entrada. Mais uma vez fui excluída pela mesma força pode-
rosa e novamente fiquei no limiar.
Havendo tentado por três ou quatro vezes, finalmente me senti esgotada
e não tendo mais forças para empurrar e ser empurrada, fui para o lado e per-
maneci num canto do pórtico. E então, com grande dificuldade, começou a
despontar algo em mim e comecei a perceber a razão pela qual eu estava sendo
impedida de ver a Cruz Vivificante. A palavra da salvação gentilmente tocou os
olhos do meu coração e revelou-me que era minha vida impura que fechava a
entrada para mim. Comecei a chorar e lamentar e bater no meu peito e a suspi-
rar das profundezas do meu coração. E assim permaneci chorando, quando vi
acima, um ícone da Santíssima Mãe de Deus. E voltando para ela meus olhos
do corpo e da alma eu disse:
'Ó Senhora, Mãe de Deus, que deste à luz na carne a Deus, a Palavra; eu
sei, ó quão bem eu sei, que não há nenhuma honra ou louvor para vós
quando alguém tão impura e depravada como eu, olha para teu ícone, ó
sempre Virgem, que mantiveste vosso corpo e alma na pureza. Certa-
mente inspiro desprezo e desgosto ante vossa pureza virginal. Mas já ouvi
que Deus, que nasceu de vós, se tornou homem para chamar pecadores
à conversão. Então, ajude-me, pois não tenho outro auxílio. Ordene que
os portais da igreja se abram para mim. Permita-me ver a venerável Ár-
vore na qual Ele que nasceu de vós, sofreu na carne e na qual Ele derra-
mou seu preciosíssimo Sangue pela redenção dos pecadores e para mim,

225
indigna como sou. Seja minha testemunha fiel diante de Teu Filho que
eu nunca mais corromperei meu corpo na impureza da fornicação, mas
tão logo eu veja a Árvore da Cruz, renunciarei ao mundo e às suas tenta-
ções e irei onde quer que me conduzas.'
Assim falei e como se recobrasse nova esperança, com fé firme e sentin-
do alguma confiança na misericórdia da Mãe de Deus, deixei o lugar onde tinha
ficado rezando. E fui novamente, misturada à multidão que fazia seu caminho
dentro do templo. E ninguém parecia impedir-me, ninguém estorvou minha
entrada na igreja. Fiquei possuída de tremor e estava quase à beira do delírio.
Tendo chegado tão próximo das portas, o que eu não conseguira antes, como
se a mesma força que me impedira agora abrisse caminho para mim, eu agora
entrava sem dificuldade e me encontrei no lugar santo. E então vi a Cruz Vivifi-
cante. Vi também os Mistérios de Deus e como o Senhor aceita o arrependi-
mento. Jogando-me ao chão, adorei aquela terra santa e tremendo, beijei-a. En-
tão saí da igreja e fui àquela que prometeu ser minha segurança, ao lugar onde
eu selei meu voto. E dobrando meus joelhos diante da Virgem Mãe de Deus
dirigi a ela estas palavras:
'Ó Amável Senhora, vós mostrastes-me vosso grande amor por todos os
homens. Glória a Deus, que aceita o arrependimento de pecadores atra-
vés de vós. O que mais posso lembrar ou dizer, eu que sou tão pecado-
ra? É hora para mim, ó Senhora, de cumprir meu voto, de acordo com o
vosso testemunho. Agora, conduza-me pela mão pelo caminho do arre-
pendimento!' E ao dizer estas palavras ouvi uma voz do alto:
'Se tu atravessares o Jordão irás encontrar glorioso repouso.'
Ouvindo esta voz e crendo que eram para mim, gritei para a Mãe de
Deus:
“Ó Senhora, Senhora, não me abandones”'
Com estas palavras deixei o pórtico da igreja e parti para minha jornada.
Quando eu ia deixando a igreja um estranho olhou-me e deu-me três moedas,
dizendo:
'Irmã, tome isto.'
Pegando o dinheiro, comprei três pães e levei-os comigo como um pre-
sente abençoado. Perguntei à pessoa que vendeu os pães: 'Qual é o caminho
para o Jordão?' Fui direcionada para o portão da cidade que conduzia àquele
caminho. Correndo atravessei os portões e ainda chorando iniciei minha jorna-
da. Perguntei o caminho àqueles que encontrei e depois de caminhar pelo resto
daquele dia, (penso que eram nove horas quando eu vi a Cruz), finalmente, ao
por do sol, alcancei a igreja de São João Batista, que ficava na margem do Jor-
dão. Depois de rezar no templo, desci o Jordão e lavei o rosto e as mãos nas
águas santas. Participei dos santos e vivificantes Mistérios na Igreja do Precursor

226
e comi a metade de um dos pães. Em seguida, após beber um pouco de água
do Jordão, deitei-me e passei a noite no chão. Pela manhã encontrei um pe-
queno bote e cruzei para o lado oposto. Novamente, rezei à Nossa Senhora
para conduzir-me onde desejasse. Então, encontrei-me nesse deserto e desde
então até o dia de hoje sou estranha a todos, mantendo-me longe das pessoas e
delas fugindo. E vivo aqui, agarrando-me ao meu Deus Que salva a todos que
se voltam para Ele, os de coração fraco e nas tempestades."
São Zózimo perguntou-lhe:
"Quantos anos se passaram desde que começaste a viver neste deserto?"
Ela replicou:
"Quarenta e sete anos se passaram, creio, desde que deixei a cidade san-
ta."
São Zózimo inquiriu:
"Mas qual alimento encontraste?"
A mulher disse:
"Eu tinha dois pães mais a metade quando cruzei o Jordão. Logo eles fi-
caram duros como pedra. Comendo aos pouquinhos eles acabaram em alguns
poucos anos."
São Zózimo continuou:
"Como se explica que tenhas vivido por tão longos anos, assim, sem fica-
res doente, sem sofrer de algum modo uma mudança tão completa?"
Ela respondeu:
"Tu me lembras, Zózimo, do que eu não ouso falar. Pois quando me
lembro dos perigos que superei, todos os pensamentos violentos que me con-
fundiram, novamente tenho receio de que eles venham a me dominar."
São Zózimo falou:
"Não escondas nada de mim; fala-me sem ocultar coisa alguma."
E ela respondeu-lhe:
"Creia-me, Pai, por dezessete anos vivi nesse deserto lutando contra feras
selvagens - desejos loucos e paixões. Quando ia me alimentar eu costumava la-
mentar a carne e o peixe que eu tinha em abundância no Egito. Lamentava
também não ter vinho que eu apreciava tanto, pois eu bebia muito vinho quan-
do vivia no mundo, enquanto aqui eu nada tinha, nem mesmo água. Queimava-
me até sucumbir de sede. Um desejo atroz de canções libertinas também me
perturbavam e me confundiam grandemente, levando-me quase a cantar can-
ções satânicas, que eu tinha aprendido antes. Mas quando esses desejos me vi-
nham, eu batia no peito e me recordava do voto que tinha feito antes de vir pa-
ra o deserto. Em meus pensamentos voltava-me para o ícone da Mãe de Deus
que me tinha recebido e a quem clamava na oração. Implorava-lhe para dar
caça a esses pensamentos, diante dos quais minha alma estava sucumbindo. E

227
depois de chorar por longo tempo e batendo no peito, eu costumava ver uma
luz que parecia brilhar sobre mim de algum lugar. E depois da violenta tempes-
tade finalmente vinha a paz.
E como posso dizer-lhe sobre os pensamentos que me instavam à forni-
cação, como posso expressá-los a ti, Pai? Um fogo inflamava meu miserável
coração que parecia queimar-me completamente e me despertava uma sede de
abraços. Tão logo esse desejo me surgia, eu jogava-me ao solo e molhava-o de
lágrimas, como se visse diante de mim minha testemunha, que tinha me apare-
cido em minha desobediência e que parecia ameaçar punição para o castigo. E
eu não me erguia do chão (algumas vezes ficava lá prostrada por um dia e uma
noite), até que a calma e a doce luz descesse e me iluminasse e pusesse em fuga
os pensamentos que me possuíram. Mas sempre eu voltava os olhos de minha
mente para minha protetora, pedindo-lhe para estender seu auxílio a uma que
estava afundando rápido nas dunas do deserto. E sempre a tive como meu so-
corro e aquela que aceitava meu arrependimento. E assim vivi por dezessete
anos, entre constantes perigos. E desde então a Mãe de Deus me auxilia em
tudo e me conduz como se pela mão fosse."
São Zózimo perguntou:
"Como pode ser que não tenhas necessitado de alimento e roupas?"
Ela respondeu:
"Quando terminaram os pães que trouxe, de que já falei, por dezessete
anos me alimentei de ervas e tudo que pudesse ser encontrado no deserto. As
roupas que eu trazia quando atravessei o Jordão se tornaram rotas e gastas. So-
fri grandemente o frio e também o calor extremo. Às vezes o sol me queimava
completamente e em outras eu estremecia enregelada e frequentemente caia ao
chão onde permanecia inerte, sem respirar. Eu lutava contra muitas aflições e
com terríveis tentações. Mas desde então e até agora, o poder de Deus numero-
sas vezes guardou minha alma pecadora e meu pobre corpo. Mas quando pen-
so nos perigos dos quais Nosso Senhor me livrou, tenho alimento imperecível
de esperança e salvação. Sou alimentada e vestida pela toda poderosa Palavra
de Deus, o Senhor de todos. Pois não é somente de pão que se vive. E aqueles
que se despojaram dos trapos do pecado não encontram refúgio, escondendo-
se nos vãos das rochas (Job 24; Heb 11:38)."
Ouvindo-a citar as Escrituras, de Moisés a Job, São Zózimo perguntou-
lhe:
"E então tens lido os Salmos e outros livros?"
Ela sorriu a isto e disse ao ancião:
"Creia-me, desde que atravessei o Jordão não vi um rosto humano, exce-
to o teu hoje. Não vi uma fera ou uma criatura viva desde que vim ao deserto.
Nunca aprendi nos livros. Também nunca ouvi alguém que cantasse ou lesse

228
deles. Mas a palavra de Deus que é viva e ativa, por si mesmo, ensina a um
homem o saber. E assim chega ao fim minha estória. Mas como te pedi no iní-
cio, e também agora, imploro pelo amor da Palavra encarnada de Deus, reze ao
Senhor por mim que sou tão grande pecadora."
Assim terminando, ela se inclinou diante dele. Com lágrimas ele excla-
mou:
"Bendito é Deus Que cria o grande grande e o maravilhoso, o magnífico
e o glorioso sem fim. Bendito é Deus que me mostrou como Ele recompensa
aqueles que O temem. Verdadeiramente, Ó Deus, Vós não abandonais aqueles
que vos buscam!"
E a mulher, não permitindo ao ancião curvar-se diante dela, disse:
"Eu te peço, santo Pai, pelo amor de Jesus Cristo, nosso Deus e Salvador,
não contes a ninguém o que ouviste, até que Deus me tire desse mundo. E ago-
ra vá em paz e novamente me verás no próximo ano e eu a ti , se Deus nos pre-
servar em Sua grande misericórdia. Mas, pelo amor de Deus, faças como te pe-
ço. No próximo ano, durante a Quaresma, não atravesses o Jordão, como é
costume no mosteiro."
São Zózimo ficou surpreso ao ver que ela conhecia as regras do Mosteiro
e só pôde dizer:
"Glória a Deus que concede grandes dons àqueles que O amam."
Ela continuou:
"Permaneça, Pai, no mosteiro. E mesmo que desejes partir, não o conse-
guirás. E ao por do sol do dia santo da Última Ceia, coloque um pouco do vivi-
ficante Corpo e Sangue de Cristo dentro de um cálice sagrado, digno de conter
tais Mistérios e traga-os para mim. E espere por mim na margem do Jordão, nas
vizinhanças das partes habitadas da terra, de modo que eu possa vir e participar
dos Dons vivificantes. Pois, desde a vez que comunguei no templo do Precur-
sor, antes de atravessar o Jordão até este dia, não mais me aproximei dos Sa-
grados Mistérios. E tenho sede deles com irreprimível amor e desejo. E assim,
peço e imploro a ti que me concedas essa graça, traga-me os Mistérios vivifican-
tes nessa mesma hora, quando Nosso Senhor fez com que seus discípulos par-
ticipassem de sua Divina Ceia. Diga ao Abade João do mosteiro onde vives:
'Cuida de si e de teus irmãos, pois há muito o que se corrigir'. Apenas não digas
isto agora, mas quando Deus te conduzir. Ora por mim!"
Com estas palavras ela desapareceu nas profundezas do deserto. E São
Zózimo, caindo de joelhos e curvando-se em direção ao chão onde ela havia
estado, deu glória e graças a Deus. E depois de vagar através do deserto, ele vol-
tou ao mosteiro no dia em que todos os irmãos retornavam.
Durante todo o ano ele manteve silêncio, não ousando contar a ninguém
o que tinha visto. Mas rezava a Deus para conceder-lhe outra chance de ver o

229
querido e ascético rosto. E quando finalmente chegou o primeiro domingo do
Grande Jejum, todos partiram para o deserto com as orações costumeiras e os
cantos dos salmos. Apenas São Zózimo ficou retido, doente - estava em febre.
E ele se lembrou do que a santa lhe dissera: "e mesmo se desejares partir, não
conseguirás."
Muitos dias se passaram e finalmente, recuperando-se de sua doença ele
permaneceu no mosteiro. E quando aconteceu que os monges retornaram e o
dia da Última Ceia despontou, ele fez como fora ordenado. E colocando um
pouco do puríssimo Corpo e Sangue dentro de um pequeno cálice e colocando
alguns figos, tâmaras e lentilhas mergulhadas em água dentro de um cestinho,
partiu para o deserto e alcançou as margens do Jordão e se sentou esperando
pela santa. Ele aguardou um bom tempo e depois começou a duvidar. Então,
levantando os olhos para o céu começou a rezar:
"Concede-me ó Senhor, ver aquela que me concedeste uma vez contem-
plar. Não me deixes partir em vão por causa do peso de meus pecados."
E então, outro pensamento lhe ocorreu:
"E se ela vier? Não há nenhum barco; como ela irá atravessar o Jordão
para vir a mim, que sou tão indigno?"
Ainda assim pensava, quando viu a santa mulher aparecer e parar do ou-
tro lado do rio. São Zózimo se levantou, alegrando-se, dando glória e agrade-
cendo a Deus. E novamente veio a ele o pensamento de que ela não poderia
atravessar o Jordão. Então ele viu-a fazer o sinal da Cruz sobre as águas do rio
Jordão (e a noite era de lua, como ele relatou mais tarde) e então ela pisou nas
águas e começou a caminhar sobre a superfície, em direção a ele. E quando ele
desejou se prostrar ela gritou para ele, ainda caminhando sobre a água:
"O que estás fazendo, Pai, tu és um sacerdote e estás levando os divinos
Dons!"
Ele obedeceu-lhe e ao chegar à praia ela disse ao ancião:
"Pai, abençoa-me, abençoa-me!"
Ele respondeu tremendo, pois um estado de confusão tomara conta dele
ao presenciar o milagre:
"Verdadeiramente Deus não mentiu ao prometer que quando estivésse-
mos puros seríamos como Ele. Glória a Vós, Cristo nosso Deus, Que me mos-
traste através dessa vossa serva, quão distante eu estou da perfeição."
Aqui a mulher pediu-lhe para rezar o Credo e o Pai Nosso. Ele iniciou,
ela terminou oração e de acordo com o costume daquela época, deu-lhe o beijo
da paz nos lábios. Tendo participado dos Santos Mistérios, ela elevou suas
mãos para o céu e suspirou com lágrimas em seus olhos, exclamando:
"Agora, deixai vossa serva ir em paz, Ó Senhor, de acordo com Vossa pa-
lavra, pois meus olhos viram a Vossa salvação."

230
Depois ela disse ao ancião:
"Perdoa-me, Pai, por pedir-lhe, mas conceda-me outro favor. Vá agora
para o mosteiro e que a graça de Deus te guarde. E no próximo ano, venha no-
vamente ao mesmo lugar onde primeiro encontrei-te. Venha, por amor de
Deus, pois tu me verás novamente, pois tal é a vontade de Deus."
Ele disse a ela:
"A partir desse dia eu gostaria de seguir-te e sempre ver teu rosto santo.
Mas por ora realize o único desejo desse velho homem e tome um pouco do
alimento que eu te trouxe."
E ele mostrou-lhe a cesta, sendo que ela apenas tocou com a ponta dos
dedos as lentilhas e pegando alguns grãos disse que o Espírito Santo guarda a
substância da alma impoluta. Então acrescentou:
"Reza, pelo amor de Deus, por mim e lembre-se de uma miserável peca-
dora."
Tocando os pés da santa e pedindo suas orações pela Igreja, pelo reino e
por si próprio, ele deixou-a partir com lágrimas, enquanto ele se ia suspirando e
muito sentido, pois ele não podia esperar vencer o invencível. Enquanto isso ela
novamente fez o sinal da Cruz sobre o Jordão, pisou nas águas e atravessou-o
como antes. E o ancião voltou, cheio de alegria e terror, acusando-se a si mes-
mo de não ter perguntado à santa o seu nome. Mas decidiu fazê-lo no próximo
ano.
E quando outro ano se passou, ele foi novamente para o deserto. Alcan-
çou o mesmo lugar mas não pôde ver ninguém. Então, levantando os olhos ao
céu como antes, rezou:
"Mostra-me, Ó Senhor, vosso puro tesouro, que escondeste no deserto.
Mostra-me, eu vos peço, o anjo na carne, de quem o mundo não é digno."
Então, no lado oposto do rio, sua face voltada para o sol nascente, ele viu
a santa, morta no chão. Suas mãos estavam cruzadas de acordo com o costume
e sua face voltada para o Leste. Correndo, ele chorava sobre os pés da santa e
beijava-os, não ousando tocar mais nada.
Por um longo tempo ele chorou. Depois recitando os salmos apropria-
dos, disse as orações fúnebres e pensou consigo : "Devo enterrar o corpo de
uma santa? Ou isto seria contrário aos seus desejos?" E então ele viu palavras
traçadas no chão, perto da cabeça dela:
"Pai Zózimo, enterra neste local o corpo da humilde Maria. Volte ao pó
o que é pó e reza ao Senhor por mim, que parti no mês de Fermoutin do Egito,
chamado Abril pelos Romanos, no primeiro dia, na mesma noite da Paixão de
Nosso Senhor, depois de participar dos Divinos Mistérios."
Lendo isto o ancião ficou feliz de conhecer o nome da santa. Ele com-
preendeu também que, tão logo ela participou dos Divinos Mistérios na mar-

231
gem do Jordão foi transportada ao lugar onde faleceu. A distância que São
Zózimo levou vinte dias para cobrir, Maria evidentemente atravessou em uma
hora e finalmente entregou sua alma a Deus.
Então Zózimo pensou: "Está na hora de fazer o que ela pediu. Mas como
vou cavar uma sepultura sem nada nas mãos?"
E então ele viu nas proximidades um pequeno pedaço de madeira deixa-
do por algum viajante do deserto. Pegando-o começou a cavar o chão. Mas a
terra era dura e seca e não correspondia aos esforços do velho. Ele ficou cansa-
do e molhado de suor. Suspirava das profundezas de sua alma e levantando os
olhos viu um grande leão, próximo ao corpo da santa, a lamber-lhe os pés. À
vista do leão ele tremeu de medo, especialmente quando se lembrou das pala-
vras de Maria de que ela nunca havia visto feras selvagens no deserto. Mas, pro-
tegendo-se com o sinal da Cruz, ele pensou que o poder daquela que ali jazia, o
protegeria e o guardaria incólume. Enquanto isso, o leão se aproximou dele,
mostrando afeição em cada movimento.
São Zózimo disse ao leão:
"O Grande Deus ordenou que o corpo dela seja enterrado. Mas eu sou
velho e não tenho forças para cavar a sepultura (pois não tenho pá e demoraria
muito para ir conseguir uma), então, poderias realizar o trabalho com suas gar-
ras? Então, poderemos entregar à terra o templo mortal da santa."
Enquanto ainda falava, o leão começou a cavar com suas patas dianteiras
um buraco suficientemente fundo para enterrar o corpo.
Novamente o ancião lavou os pés da santa com suas lágrimas e pedindo-
lhe que rezasse por todos, cobriu o corpo com terra na presença do leão. Foi
como tinha sido, nu e descoberto de tudo, com apenas o manto esfarrapado
que Zózimo lhe dera e com o qual Maria se voltara para tentar cobrir parte do
seu corpo. Então ambos partiram. O leão desapareceu nas profundezas do de-
serto, como um carneirinho, enquanto Zózimo retornou ao mosteiro glorifi-
cando e bendizendo a Cristo Nosso Senhor. E ao alcançar o mosteiro contou a
todos os irmãos sobre tudo, diante do que todos se maravilharam ao ouvir os
milagres de Deus. E com respeito e amor eles guardaram a memória da santa.90

- Traduzido do inglês por Jandira Soares Pimental - de texto encontrado na internet - The Life o four Holy
90

Mother Mary of Egypt (Vida de nossa Santa Mãe Maria do Egito), tradução de Jandira Soares Pimental -
http://www.ocf.org/OrthodoxPage/reading/st.mary.html

232
Exemplos de castigos contra a impureza
8
Após verificarmos os exemplos da resistência de personagens bíblicos,
de santos e de outros cristãos, que se esmeraram não somente contra as tenta-
ções de impureza, mas na prática exímia e heróica de tão excelsa virtude da
Castidade, veremos agora alguns casos de castigos que visaram claramente punir
os pecados contra aquela angélica virtude.
Antes de tudo, convém que se leia o texto em que Santa Catarina de Se-
na expõe com crueza a situação do clero no que diz respeito aos pecados de
luxúria (especialmente no seu tempo, início da Renascença) o que teria motiva-
do o terrível castigo de Udo (que viveu séculos antes), conforme relato de Santo
Afonso de Ligório transcrito em seguida.

(casamento místico entre Santa Catarina e o Menino Jesus)

233
Nos maus ministros reina o pecado da luxúria
Eis o texto de Santa Catarina:
"Tenho te mostrado, queridíssima filha minha, uma pequena parte da vi-
da dos que vivem em religião, em que miséria se acham na ordem, vestido com
roupas de ovelhas sendo lobos.
Agora volto aos clérigos e ministros da Santa Igreja, lamentando-me con-
tigo de seus pecados, ademais dos que te tenho narrado, e das três colunas dos
vícios de que te falei em outra ocasião, queixando-me contigo deles, ou seja, da
imundície da inchada soberba, pois por ela vendiam a graça do Espírito Santo.
Cada um destes três pecados dependem um do outro. O fundamento
das três colunas é o amor a si mesmos. Enquanto elas se mantêm em pé, são
suficientes para manter a alma fixa e obstinada em qualquer outro vício. Por
isso te disse que todos os vícios têm sua origem no amor-próprio, pois do amor
a si mesmos nasce o principal de todos, que é a soberba. O soberbo se acha
privado da dileção da caridade, e da soberba procedem a imundície e a avareza.
Agora te digo, filha queridíssima: olha com quanta imundície têm man-
chado seu corpo e seu espírito. Ainda te quero dizer algo mais para que conhe-
ças melhor a fonte de minha misericórdia e tenhas compaixão dos miseráveis a
quem se faz referências. Têm alguns tão convertidos em demônios, que não só
não guardam reverência ao sacramento nem estimam a excelência do estado
em que os tenho posto por minha bondade, senão que, como totalmente des-
memoriados por causa do amor que têm a uma determinada criatura, ao não
poder lograr o que desejam, se darão aos encantamentos demoníacos91. Com o
sacramento que os tenho dado farão bruxarias para satisfazer seus miseráveis
desejos e pensamentos desonestos e os porão em prática. A minhas ovelhas,
cujas almas devem guardar e alimentar, as atormentam por estes e outros mei-
os, que omitirei para não fazer-te sofrer. Como tens visto, as fazem andar des-
garradas e fora de si, chegando a querer fazer o que não desejaram por meio de
bruxarias que aquele demônio da carne lhes tem feito, e, pela resistência que se
fazem a si mesmas, seus corpos sofrem grandíssimos trabalhos. Quem tem cau-
sado estes e outros miseráveis males que tu sabes e que não é preciso saber que
te conte? Sua vida desonesta e miserável.
Oh caríssima filha! A carne, que está sobre os coros dos anjos pela união
da natureza divina com vossa natureza humana, a entregam a tanta miséria! Oh
homem abominável e desgraçado; não homem senão besta! Tua carne, ungida
e consagrada a Mim, a entregas tu às meretrizes e até a algo pior. Tua carne e a
de todo o gênero humano, a que Adão havia chagado com seu pecado, foi li-
vrada da chaga no madeiro da cruz pelo chagado corpo de meu Filho unigênito.
Oh miserável! Ele te tem dado honra, e tu procuras vergonha? Te hás curado
91
Seriam as "missas negras", onde se ultrajam a Hóstia consagrada?

234
pelas chagas de seu corpo, e ainda mais, te tem feito ministro, e tu o feres com
lascivos e desonestos pecados! O bom Pastor tem banhado as ovelhas em seu
sangue, e tu as manchas para que não estejam limpas e fazes o possível para in-
troduzi-las no lodo? Deves ser exemplo de honestidade e o és da desonestida-
de?
Tens inclinado todos os membros de teu corpo para que obrem misera-
velmente e a fazer o contrário do que por ti tem feito minha Verdade. Eu per-
miti que Lhe fossem vendados os olhos para iluminar-te, e tu, com os teus las-
civos, lanças flechas envenenadas à tua alma e ao coração daquelas a quem
olhas com tanta malícia. Permiti que Lhe dessem fel e vinagre, e tu, como besta
indômita, te comprazes nos alimentos delicados, fazendo de teu ventre um
deus. Em tua língua desonesta há palavras impuras e vãs. Com ela estás obriga-
do a corrigir ao próximo, a proclamar minha palavra, a recitar o Ofício com o
coração e a boca, e não ouço mais que pestilência, jurando e perjurando como
se fosses um bufarinheiro, e muitas vezes blasfemando. Permiti que Lhe fossem
atadas as mãos para livrar-te das ataduras do pecado a ti e todo o gênero huma-
no. Tuas mãos estão ungidas e consagradas para administrar o santíssimo sa-
cramento, e tu as usa torpemente em miseráveis toques. Tudo o que se faz com
tuas mãos está corrompido e dirigido ao demônio. Oh miserável! Te coloquei
em tão grande dignidade para que me sirvas unicamente a Mim e a toda criatu-
ra racional.
Eu quis que Lhe fossem traspassados os pés e aberto o costado, fazendo
de seu corpo escada, para que visses o segredo do coração. O coloquei como
adega aberta onde podias ver e gozar do inefável amor que vos tenho quando
achais e vês minha natureza divina unida à vossa, que é humana. Aqui vês o
sangue que vós administrais, que é dado como banho limpar vossas maldades.
Tens feito de teu coração templo do demônio. Teu afeto, simbolizado nos pés,
não tem nada a oferecer senão corrupção e vitupério. Os pés de teu afeto não
levam a alma a outro lugar que aos lugares do demônio. De modo que todo teu
corpo fere ao de meu Filho, porque fazes o contrário do que Ele tem feito e do
que todas as criaturas estais obrigados a fazer.
Os membros de teu corpo têm recebido seu castigo, porque as três po-
tências se acham unidas nele em nome do demônio, quando deveriam estar
reunidas em Meu nome.
Tua memória deveria estar cheia dos benefícios que de mim tens recebi-
do, e o está de desonestidades. Com a luz da fé deverias por os olhos de teu
entendimento em Cristo crucificado, de quem te tenho feito ministro, e tu os
tem posto nas delícias, posição social e riquezas do mundo, com mísera vaida-
de. Teu afeto deveria amar-Me sem intermediário algum, e tu o hás posto mise-
ravelmente em amar as criaturas e em teu corpo, e até amas a teus animais mais

235
que a Mim. Que é que me o demonstra? A impaciência que tens comigo se te
tiro o que tu amas, o desagrado que encontras no próximo quando te parece
receber algum prejuízo temporal dele. Quando o odeias e maldizes, te aparta
de meu amor e do seu. Desventurado de ti se, feito ministro do fogo de minha
caridade, tu, por teus próprios e desonestos prazeres, perdes essa caridade pelo
pequeno dano que recebes de teu próximo!
Oh filha queridíssima! Esta é uma das três miseráveis colunas de que fa-
92
lei".

Abaixo, seguem vários casos de castigos contra a luxúria, iniciando com o


relato de Santo Afonso Maria de Ligório:

92
"Obras de Santa Catalina de Siena" - BAC - págs. 299/301.

236
1. A história do bispo Udo

“Trazem este caso os seguintes autores em suas obras: Trithemio,


Nauclero, Bautista, Fulgosio, Canesio no seu Marial, Alosa no Céu Estrelado,
João Maior no Espelho de Exemplos, Aringo no "Mortes peccatorum pessi-
mae", e outros muitos, e sucedeu pelos anos do Senhor de 985, imperando
Otão III, na forma que agora diremos.

Caso admirável e horrendíssimo acerca da castidade


Na cidade de Magdeburgo, que é Metropolitana no Ducado da Saxônia,
cursava as escolas um estudante por nome Udo, de tão curta capacidade para as
letras, a que suposto aplicava da sua parte o trabalho e diligência, não tirava da-
qui mais fruto que mofa e zombaria dos condiscípulos, enfado dos mestres e
aflição do próprio espírito. Um dia que esta o perturbou mais, entrou na Sé
daquela cidade, que é dedicada a Deus em honra do ínclito capitão São Maurí-
cio Mártir, e de toda a sua Legião Tebana, e ali prostrado em oração fervente,
rogou à Virgem Senhora Nossa, e ao mesmo São Maurício, lhe alcançassem de
Deus luz no entendimento para os estudos. Adormeceu, e ali em sonhos lhe
apareceu a mesma Senhora e lhe disse: Ouvi tua oração, e não só te concedo
meu bendito filho o talento das letras, senão que por elas subirás a ser bispo
desta igreja por morte do que agora governa. Se acudires fielmente às obriga-
ções deste ofício, será grande o teu prêmio; porém se fores negligente, será
grande o teu castigo.
Desapareceu a visão; acordou Udo, e desde aquela hora não achou difi-
culdade em coisa alguma que estudasse. Foi o dia seguinte à escola, e começou
a dar tão boa conta de si, que seus condiscípulos admirados diziam: Não é este
Udo, de quem há pouco ríamos? Como tão brevemente se fez tão excelente
filósofo? Na mesma admiração está o mestre, ponderando a capacidade rara
com que compreendia as matérias, a agudeza com que penetrava as dificulda-
des, a destreza, a facilidade com que as soltava, e a retentiva com que tudo o
que lia e ouvia lhe ficava como gravado na memória. Finalmente, ganhou nome
tão famoso em poucos anos, que vagando aquele arcebispado foi eleito nele por
comum aplauso do povo.

Udo usa do cargo para saciar o apetite da luxúria


Colocado, pois na cadeira arcebispal, procedeu louvavelmente aos prin-
cípios. Porém como os ofícios grandes costumam os procedimentos da pessoa
que não está fundada em sólidas virtudes, foi pouco a pouco esquecendo-se de
suas obrigações, e entregando-se a vícios de tal sorte, que mais parecia lobo que
entrava no aprisco a degolar o rebanho de Cristo do que pastor para o apascen-

237
tar e defender. Deu-se particularmente ao vício da sensualidade, tão sem freio
do temor de Deus e do escândalo do povo, que não havia mulher casada nem
donzela segura de sua insaciável torpeza. E como era rico e poderoso, e com
muitos dependentes da sua mão, ninguém se atrevia a impedi-lo nem a repre-
endê-lo. Fez com isto mais profundo o seu pecado: e desmandou-se a solicitar
religiosas; e tirou de um mosteiro a abadessa, com a qual publicamente vivia
amancebado. Quem esperava tal desatino de um homem letrado, tal desenvol-
tura de um prelado eclesiástico, tal ingratidão de um sujeito tão obrigado à Vir-
gem? Porém o vício da carne cega muito a luz do espírito: também Salomão era
sábio; também como devedor do benefício da sabedoria devia honrar e servir a
Deus que lha concedera.
Quis o Senhor piedosíssimo justificar mais a sua causa, antes que descar-
regasse o golpe: e assim lhe fez três como admoestações canônicas. Estando
Udo uma noite com aquela concubina à ilharga, ouviu uma voz que dizia: Cessa
de tudo, quia lusisti satis Udo; cessa teu poder Udo, porque tens julgado muito.
Fez o miserável pouco caso disto: e ficou jazendo no seu pecado. Na noite se-
guinte teve na mesma forma o mesmo aviso, e também o desprezou; porque o
demônio que estava muito encastelado na sua alma com posse pacífica, logo lhe
divertiu o pensamento; e com fazer-lhe repetir o pecado, se iam obscurecendo
mais as suas trevas interiores. Começou a temer e a ansiar-se; porém breve-
mente se tornou a aquietar na falsa paz de sua cauterizada consciência. Conver-
teu, pois Deus a sua justiça em Juízo: e dirigiu este na forma seguinte:
Um cônego daquela Sé, varão de muita oração e virtudes (que sem aque-
la mal poderia ter estas) ficou na igreja uma noite depois de Matinas, encomen-
dando a Deus Nosso Senhor este negócio; e Lhe pediu com vivas lágrimas e
gemidos que, ou Sua Majestade abrandasse o empedernido coração de Udo, ou
quando ele não se quisesse converter, lhe tirasse a vida e o castigasse para cessa-
rem os escândalos, que cada dia eram maiores. Neste tempo entrou na igreja
um grande pé de vento que apagou todas as lâmpadas. Temeu o cônego e se
lhe arrepiaram os cabelos; mas voltando-se para Deus, e pedindo-Lhe ânimo,
se recobrou e viu este admirável espetáculo.

Preparativos solenes para o julgamento de Udo


Entraram na igreja emparelhados dois mancebos de estremada galhardia,
com tochas acesas nas mãos, de claridade superior à que costuma haver na ter-
ra; e fazendo profunda reverência ao Altar-Mor, se puseram em pé, um a um
lado e outro a outro. Entraram logo outros quatro: dois deles com alcatifas pre-
ciosíssimas, que estenderam no pavimento da capela, e dois com cadeiras de
ouro, que colocaram em cima uma ao lado da outra. Vieram depois doze vene-
ráveis personagens, de tão respeitoso aspecto que cada qual parecia imperador

238
do mundo; porém no meio deles vinha outro Senhor incomparavelmente mais
majestoso, com coroa de ouro na cabeça e cetro na mão: era Cristo Salvador
Nosso e aqueles seus sagrados Apóstolos; os quais dividindo-se a uma e outra
parte Lhe fizeram suma reverência: e o Senhor se assentou em uma das cadei-
ras. Entrou logo a Rainha do Céu, Maria Santíssima, Senhora Nossa, com nu-
merosa comitiva de virgens e mártires, e feita a reverência ao Senhor tomou a
outra cadeira.
O cônego, lá desde o seu cantinho, estava embebido em admirações, mas
desperto, esperando que ação se representaria digna de tão aparatoso teatro.
Quando se vê entra São Maurício, patrão daquele templo com toda a triunfante
legião dos mártires, seus companheiros (que dizem foram 6.666) todos coroa-
dos de luz e ornados de decoro e majestade e, feita a adoração ao Rei, e outra à
Rainha das Alturas, se dispuseram por todo aquele âmbito em bem organizadas
fileiras. Eis que entra outro formosíssimo mancebo de galharda estatura, arma-
do de ponto em branco com espada nua na mão, como pintam a Justiça, e de-
pois de feita a semelhante adoração com os joelhos em terra, se pôs no meio e
levantando a voz lançou este pregão:
"Todos os santos cujas relíquias aqui se conservam, levantai-vos e vinde a
este juízo".

Julgamento na presença da corte celeste: a sentença do Juiz


Imediatamente apareceu ali uma grande multidão de santos, mártires e
virgens, confessores e doutores, que postos também por sua ordem enobrece-
ram mais aquele ilustríssimo conclave.
Saiu então o capitão São Maurício, dando-se por autor daquela causa; e
proclamou dizendo:
- Retíssimo Juiz, tempo é de que vossa soberana Majestade faça justiça.
Mandou então o Senhor que Lhe trouxessem ali a Udo; voaram logo uns
anjos e tirando-o da ilharga da concubina, com quem estava abraçado, o puse-
ram na presença de Cristo, no meio de todo aquele concurso, com tal confusão
do miserável que não é possível explicar-se. E São Maurício começou a por-lhe
os cargos, dizendo:
- Este, Soberano Senhor, é aquele Udo, a quem vossa Mãe Santíssima,
que presente está, fez tão particulares benefícios; a quem por Sua intercessão
destes o talento da sabedoria; a quem encomendastes o cuidado desta igreja; e
ele em vez de apascentar as vossas ovelhas, as tem empestado com o contágio
de seus vícios, gastando neles o patrimônio da mesma igreja. Este é o que teve o
atrevimento de violar as Vossas esposas consagradas e de persistir na sua mal-
dade contra o seu próprio voto, contra o seu ofício, contra as suas leis humanas

239
e divinas, contra os remorsos da sua consciência, e contra um e outro avisos do
Céu que lhe enviou Vossa paciência e piedade.
Ouvia o Supremo Juiz os graves artigos daquele processo; e voltando o
rosto para aqueles santos que Lhe assistiam, disse:
- Como vos parece que nos portemos com este homem?
Aqui, levantando a voz o mancebo da espada nua, disse em nome de to-
dos aqueles assessores:
- Digno é de morte!
E o Senhor pronunciou a sentença nesta forma:
- Execute-se; e pois não soube ser cabeça da Igreja, que lhe encomenda-
ram, cortem-lhe a cabeça!
No mesmo ponto aproximou-se o mancebo e mandou a Udo que lhe in-
clinasse a cabeça para o degolar. Levantada a espada, vai descarregar o golpe
quando um dos quatro anjos acode dizendo:
- Detém-te, que esse homem mau celebrou ontem e comungou em pe-
cado mortal, e por vontade de Deus se conservam ainda em seu corpo as espé-
cies sacramentais: é necessário tirarmos com decência a Hóstia Consagrada.
Em seguida, levantou-se da cadeira a Virgem Santíssima, Senhora Nossa,
e acompanhada de anjos e santos chegou com um cálice de ouro na mão, no
qual outro anjo, dando nas costas de Udo uma pancada, lhe fez lançar fora a
Sagrada forma. E a Senhora purificou com sua mão, colocando o cálice sobre a
pedra de Ara com toda a decência e acompanhamento de anjos e santos. Isto
feito, o valoroso mancebo descarregou o golpe e destroncou aquele miserável
corpo, saltando a cabeça para a outra parte e ficando as lajes daquele lugar
manchadas com seu torpe sangue. Executada a sentença, desapareceu toda
aquela nobre companhia, deixando o templo às escuras como estava antes.

Como os demônios levaram a alma de Udo


Atônito aquele virtuoso sacerdote com a representação de caso tão estu-
pendo, não sabia o que fizesse nem em que se determinasse; e dizia para si:
Que é isto que vi? Sonho meu, ou ilusão do demônio, ou revelação de Deus?
Sonho não o parece, que sempre estive desperto, e fiz disto mesmo atos refle-
xos; mas quero certificar-me se está aqui o corpo do desventurado arcebispo.
Animou-se, pois e foi buscar luz (por ventura a sua casa ou a alguma capela
mais retirada no claustro, onde houvesse lâmpada), acendeu as da igreja, che-
gou ao lugar onde vira o suplício, e, com efeito, viu o corpo destroncado e a
cabeça lançada à outra parte, e as pedras banhadas no sangue fresco; subiu ao
altar e viu nele o cálice de ouro com a Forma consagrada dentro. Não foi logo
sonho (disse então novamente admirado), mas demonstração pública da divina
justiça, pois a ofensa também era pública. E fechadas as portas da igreja foi, an-

240
tes que amanhecesse, notificar aos capitulares e outras pessoas principais do
povo todo o sucedido. Divulgou-se o caso: abriram-se as portas da igreja, entrou
inumerável gente, e todos foram testemunhas daquele tão raro como formidá-
vel espetáculo; e louvaram os juízos de Deus, que sendo umas vezes ocultos e
outras manifestos sempre são retos e justificados por si mesmos.
Até aqui revelara Deus Nosso Senhor a condenação de Udo quanto à
morte temporal: segue-se outro caso em que revelou a outro sacerdote a sua
condenação quanto à morte eterna. Era este capelão do mesmo arcebispo nos
tratos de sua torpeza, e ele o havia mandado fora da cidade a negócios de im-
portância; e se vinha neste mesmo tempo recolhendo, mandadas já adiante as
cargas. Vindo, pois caminhando por um escampado, o carregou um sono tão
pesado que não podendo resistir-lhe desmontou, e atando as rédeas do cavalo
ao braço se lançou a dormir ao pé de uma árvore. Apenas adormecido, viu em
sonhos uma numerosa tropa de demônios fazendo grande ruído, armados to-
dos de diversas amas com lanças, piques e alabardas nas mãos e que faziam alto
naquele campo. Vinha entre eles um que no agigantado da estatura, no disfor-
me do aspecto, e no soberbo das ações mostrava ser o Príncipe das trevas. Le-
vantaram-lhe logo ali um tribunal, em que tomou assento e todos lhe fizeram
reverência. Assomou neste tempo por outra parte outra caterva de demônios,
que vinham dando descompostas risadas e fazendo grande algazarra, porque
traziam alguma rica presa ou despojo com que se mostravam contentes. Era
esta a miserável alma de Udo em figura corporal, para que pudesse ser vista por
semelhantes espécies. Vinha amarrada com cadeias de fogo e sobre todo enca-
recimento feia, triste e desconsolada; e quando já chegava perto do Príncipe
Demonarca, alguns daqueles infernais ministros correram diante, mais ligeiros
que abutres a dar-lhe a nova e diziam: Praça, praça, que vem uma pessoa prin-
cipal; façam lugar que vem um sujeito muito benemérito do nosso reino.
Chegando o miserável Udo, pôs nele Lúcifer os afogueados olhos e lhe
disse mofando:
- Seja vossa senhoria muito bem vindo; que tem sido a sua vinda aqui
muito suspirada em meu palácio e corte; e desejamos todos pagar-lhe tantos e
tão assinalados serviços com que tem aumentado a nossa coroa; olá, vassalos
meus, é motivo que regalemos o novo hóspede, dai-lhe alguma coisa que coma.
Chegaram logo uns demônios com pratos negros e asquerosos, cheios de
sapos, víboras e serpentes vivas; e abrindo-lhe a boca o obrigaram a co-
mer.Entraram outros com grandes vasos de fel de dragões e enxofre derretido,
e o obrigaram e beber, esgotando até as fezes. Disse, então, Lúcifer
- Agora que sua senhoria comeu e bebeu, é bom que goze também da
suavidade de nossos banhos.

241
Dito e feito: afastou um demônio uma grande laje que servia de tampa a
um poço que existia ali perto, do qual rebentaram tantas e tão impetuosas laba-
redas, que pareciam querer escalar o céu, e desafogando-se por aquele campo,
tornaram em cinzas não só as árvores, mas as mesmas pedras, e até uma fonte
que por ali corria a deixaram seca sem gota. Agarraram logo outros daqueles
desventurados e o embocaram pelo poço adentro; onde, havendo estado longo
tempo, o tiraram da cor de um ferro que esteve na fornalha feito brasa viva, e o
tornaram à presença de Lúcifer, que escarnecendo lhe disse:
- Que lhe parece a vossa senhoria dos nossos banhos? Não são suaves e
regalados? Pois isto não é mais que uma prova, ou ensaio, da grande praga que
temos preparado para os assinalados serviços e merecimentos de vossa senho-
ria.
A tudo isto tinha estado em silêncio o desventurado Udo; e vendo-se já
condenado a uma duração interminável de tormentos e que se seus olhos se
ausentara para nunca mais tornar a esperança de remédio, levantou a temerosa
voz e com prolixos e altíssimos gemidos dizia:
- Ai de mim! Ai de mim, desgraçado! Oh, que caros me custaram meus
deleites! Oh, que breves foram, e momentâneos, sendo a pena deles eterna!
Maldito seja o dia em que fui gerado, maldita a hora em que nasci no mundo;
malditos os pais que me deram o ser; malditos todos os que me ajudaram a pe-
car; maldito... (aqui começou a blasfemar de Deus e da Virgem e de todos os
Santos).
E os demônios, ouvindo-o se fecharam em risadas e diziam:
- Oh que bem sabe já o nosso ofício! Que lindamente canta! Necessário
é que fique em nossa casa e cante no nosso coro. Pois levai-o logo - disse Lúci-
fer - e dai-lhe com unhas e dentes.
Se sumiram pela boca do poço, com ruidoso estrondo, que parecia virem
abaixo as abóbadas do firmamento e que os montes se arrancavam de seus as-
sentos.
Todavia o demonarca com outros espíritos malignos, que lhe faziam cor-
te, puseram os olhos espantosos e terríveis, que pareciam carvões acesos, no
clérigo que estava dormindo:
- Aquele que ali está dormindo não é o capelão de Udo e seu alcoviteiro?
Razão é que o acompanhe nas penas, pois lhe ministrou nas culpas. Trazei-o
aqui logo!
Correram a ele os demônios para o agarrar. E neste passo o clérigo com
a força do susto acordou daquele formidável sonho. E como se levantou se es-
trebuchando e espavorido, espantou-se o cavalo que estava atado a seu braço e
quebrou a cana dele. Porém como Deus queria dar-lhe lugar de penitência e
que fosse testemunha do que vira, parou enfim o bruto e se amansou de sorte

242
que o clérigo pôde outra vez montar, ainda que com grande dor e trabalho.
Chegando à cidade viu que em nenhuma coisa se falava mais que na infeliz e
repentina morte de seu amo; e conferindo o que tinha passado no castigo do
corpo com o que vira no da alma, ficou a verdade de uma e outra visão mais
confirmada.

A ira divina manifesta-se até no cadáver


Porém como as obras de Deus em qualquer gênero são perfeitas, faltava
ainda alguma demonstração da ira divina acerca daquele miserável cadáver que
na igreja ficara degolado. Esta foi que não quiseram os da cidade dar-lhe sepul-
tura em sagrado. Lançaram-no em uma lagoa: porém logo saíram dos bosques,
brenhas e bosques, diversas feras que ali tinham seus esconderijos; e entrando
na lagoa tiraram fora o corpo e o levaram arrastando pelos campos, sem ne-
nhum lhe dar dentada, como que abominavam coisa tão maldita. E os pastores
e rústicos que com isto padeciam não pequeno assombro e dano, se viram
obrigados a queimar aquele corpo. Lançaram as cinzas dele no rio Alba; e no
mesmo ponto (coisa maravilhosa) todos os peixes dele fugiram para o mar, e
não apareceu ali pesca alguma pelos dez anos seguintes até que os naturais
aplacaram a ira de Deus com procissões, penitências e ladainhas e então os pei-
xes começaram a voltar para o rio.
Dura a memória deste espantoso caso naquela Província até o presente
dia; e ainda que os saxônios o quisessem negar, as mesmas pedras o publicam,
porque em uma dita da igreja se mostra claramente o sangue daquele justiçado,
cuja nódoa não pôde apagar-se por estar incorporada com a mesma pedra, que
parece embebeu em si. Está coberta com um tapete e quando há nova promo-
ção de arcebispo a descobrem e lhe mostram, dizendo: Que veja bem como
castiga Deus a quem não administra como deve aquela dignidade que lhe en-
comenda.
Até aqui a relação do caso. No qual se ofereciam muitas coisas dignas de
ponderação: o perigo das letras, quando se não acompanham de virtudes; o fá-
cil abuso das riquezas e dignidade para a depravação dos costumes; a gravidade
do escândalo; a dureza do coração humano resistindo às vozes divinas e des-
pencando-se de um pecado em outro mais profundo; a eficácia da oração dos
justos em ordem ao bem público e à honra divina; o desamparo de uma alma
tanto que a Virgem Senhora Nossa fica em silêncio e não advoga por ela; o exe-
crando sacrilégio dos que comungam em pecado mortal e o respeito que se de-
ve ao Augustíssimo Sacramento do Altar; a justificação exatíssima, a vasta pro-
fundeza dos divinos juízos; a honra, a fama dos pecadores trocados subitamente
em infâmia e ignomínia; a ingratidão como é caráter próprio de almas répro-
bas; o ofender a Deus por servir aos ímpios, como é arriscado a fazer-lhes

243
companhia nas penas eternas; as criaturas todas como perseguiriam ao pecador
se Deus lhes desse licença; e outros muitos doutrinais avisos que desta história
se provam manifestamente. Porém como o nosso intento nesta obra não tem
esfera tão ampla, só pretendo agora que tiremos com tempo o desengano que
aquela alma ponderou já tarde demais. Oh, deleites da carne (dizia ela abrindo
na pena os olhos que fechara na culpa) como custais caro! Que brevemente
passastes e como vosso tormento não passará eternamente! Consideremos aten-
tamente como não indo entre o pecador e o inferno mais que o fio de sua vida,
que pode quebrar em qualquer instante, não pode haver loucura mais desati-
nada do que deixar-se o pecador viver no estado em que não quisera morrer; e
por um gosto torpe e momentâneo vender a salvação eterna da sua alma.
E, finalmente, tornando à conclusão do presente capítulo, digo que são
tantas no mundo as desgraças, ruínas, sedições, crueldades e sucessos trágicos
que este só vício da carne tem causado, que apenas há pessoas das que tem
anos de discrição e experiência que não possa referir vários exemplos. Nestes,
pois deve carrear com a consideração quem deseja tirar escarmento e pedir a
Deus lhe conceda seu santo temor de Deus, para conter-se nos limites que assi-
nala Sua Lei”. 93

2. De Deus não se zomba

Este caso é contado pelo Padre Manuel Bernardes em sua famosa obra
“Luz e Calor”:
“O Padre Francisco Patinho, da Companhia de Jesus, foi um famoso
operário evangélico nas Índias Ocidentais. Entrando em certa povoação a exer-
citar este apostólico ministério, em que tanto se interessa na salvação das almas
e glória de Deus, achou que o cura tinha a amiga em casa, e dela muitos filhos,
tão sem pejo e soçobro como se fora casado na face da Igreja. O qual, temen-
do-se que o padre o delatasse ao bispo, procurou impedir-lhe a missão. Porém
ele, vencendo dificuldades, pregou com notável fruto de todos, exceto do mise-
rável cura, que, não obstante as repetidas e fervorosas exortações que em parti-
cular lhe fez o padre, intimando-lhe mui próxima a ira de Deus, nenhum caso
fez de suas palavras e ameaças. Deu-lhe logo uma aguda doença, que o pôs no
último perigo; e devendo abrir os olhos, para se aproveitar deste especial bene-
fício com que Deus misericordiosamente o despertava, pelo contrário os fe-
chou mais com outro horrendo pecado, que foi mandar chamar um índio feiti-
ceiro para que o curasse. Fez este em sua presença os conjuros: acudiu o De-
mônio pronto para o mal; e rindo-se o feiticeiro, perguntou o cura de que se
93
Santo Afonso Maria de Ligório - Obras Ascéticas - BAC - págs. 767/769

244
ria. Rio-me (respondeu ele), porque me diz o meu deus que eu adoro e aqui
está presente, que me cale e nada lhe peça por ti, porque és seus amigo, e há
muito desejava levar-te consigo. Estremecido e aterrorizado o cura de ouvir isto,
fez sobre si o sinal da Cruz, e pela virtude deste fugiu o Demônio. Mandou pois
chamar o Padre Patinho, que se achava dali a quatro léguas. Veio com toda
pressa, e o esforçou quanto pôde à contrição de seus pecados, e da parte de
Deus lhe prometeu saúde, se da sua houvesse emenda. Ofereceu o doente de o
fazer assim com todas as veras. Porém, o mesmo foi recobrar a saúde, que tor-
nar a meter em casa a amiga, e, com ela à cabeceira, sobrevindo um acidente,
morreu de improviso sem Sacramentos.. Porque de Deus não se zomba: “Deus
non irridetur”94

3. O castigo de uma mulher incestuosa

Um jovem cristão foi em certa ocasião a ver Santo André e lhe disse em
segredo:
- Minha mãe, enamorada de meus predicados, repetidas vezes me tem
pedido que me deite com ela, mas como eu tenho negado a aceder às suas pre-
tensões, ela, despeitada, procurou o juiz e me acusou de haver tentado violá-la.
O juiz me chamará para depor; terei que comparecer em juízo; mas para salvar
o bom nome de minha mãe decidi calar-me, não dizer nenhuma palavra do que
realmente tem ocorrido e aceitar que me condenem à morte por uma infâmia
que não cometi. Eu te peço que rogues por mim e que trates de conseguir de
Deus que o juiz não pronuncia contra mim uma sentença tão injusta.
Quando se celebrou o juízo, André assistiu-o ao lado do jovem acusado.
A mãe se ratificou em sua denúncia, repetindo uma e outra vez ante o tribunal
que aquele desnaturado filho seu havia pretendido violá-la. Quantas vezes o juiz
inquiriu ao jovem para que respondesse às acusações que sua mãe contra ele
formulava, outras tantas o bom filho calou. Mas, num dado momento, encarou-
se André com a acusadora e lhe disse:
- Oh, mulher iníqua, a mais cruel das mães! Vítima de tua própria libidi-
nagem pretendes a perdição de teu único filho.
A isto replicou a mãe dirigindo-se ao juiz:
- Senhor, quando meu filho se convenceu de que eu jamais acederia às
suas perversas pretensões se afastou de mim e se associou a este homem.
O juiz acreditou na mãe e, cheio de ira, condenou ao filho a que, metido
em um saco enlambuzado de pez derretido e de betume, fosse lançado no rio,
e ordenou o encarceramento de André até que decidisse que tipo de pena de-
veria impor-lhe.
94
Obras do Padre Manuel Bernandes – vol. II – “Armas da Castidade” – págs. 98/99

245
Naquele mesmo momento André se pôs a rezar. Tão logo iniciou sua
oração ouviu-se um trovão terrível seguido de um terremoto que fez cair ao solo
todos os assustados assistentes; logo em seguida desceu um raio sobre a mulher,
a fulminou e a converteu em pó. À vista disto, todos os presentes rogaram a
André que tivesse compaixão deles e evitasse sua perdição. Orou André, e
imediatamente se refez a calma. Como conseqüência disto, o juiz e os membros
de sua família se converteram ao cristianismo. 95

4. História de Pedro I e Eleonora

Após a primeira Cruzada, quando Jerusalém foi tomada pelos cristãos


em 1099, estabeleceu-se no Oriente uma dinastia católica de reis provinda da
França, muitos dos quais foram reis de Jerusalém. O último reduto desta dinas-
tia ficou estabelecido na ilha de Chipre, para onde se mudaram os reis depostos
de Jerusalém pelos árabes.
Referida dinastia, da família Lusignan, reinou cerca de 300 anos em Chi-
pre. Quando se deperecia o espírito de cruz e a Cavalaria se transformara em
cortesã, reinava na ilha Pedro I. Foi coroado em Santa Sofia de Nicósia no ano
1358, dois anos depois novamente "coroado" (ato simbólico, pois a cidade esta-
va em poder dos mouros) como rei de Jerusalém. Casou-se com a princesa da
Catalunha chamada Eleonora, do reino de Aragão.
Muito católico ainda, o rei decidiu reavivar o espírito das Cruzadas e re-
solveu viajar para a Europa com o objetivo de convencer os príncipes cristãos
da necessidade de novas investidas contra os mouros. A 24 de outubro de 1362
embarca, então, levando consigo seus principais cavaleiros e, em vez da rainha,
levava apenas uma camisola sua como tesouro e lembrança de sua figura.
Os cronistas dizem que o rei "amava a rainha Eleonora de acordo com os
mandamentos divinos". Por isto, ao partir para a Europa, demonstrando já está
possuído do romantismo fátuo da Renascença, ordenou a seu camareiro que
pegasse uma camisola da rainha e a colocasse junto dele quando preparasse sua
cama para dormir à noite. Desse modo ficaria o rei abraçado à camisola da rai-
nha enquanto dormia. Estranha forma de manifestar seu amor "de acordo com
os mandamentos divinos"...
Na Europa, encontrou-se com diversos príncipes e reis, mas havia uma
espécie de obstinação cega contra qualquer projeto de uma Cruzada. A única
cruzada que os atraía era para lutarem entre si em suas guerras de fronteiras e
de questões dinásticas. Em todos os lugares em que passava, Dom Pedro I era
recebido com danças, torneios e banquetes, cada príncipe ou soberano desdo-

95
"La Leyenda Dorada" - vol. I - págs. 31/32

246
brando-se em cortesias. Mas em nada encontrava ele o espírito de cruz, de
amor a Deus. Os prazeres da vida começavam a dominar a vida dos príncipes.
Visitou a França, a Inglaterra, a Itália, a Alemanha, sendo que nesta percorreu a
Bavária, a Saxônia, a Boêmia e a Áustria. Por toda parte era cumulado de pre-
sentes e retribuía sempre da mesma forma.
Apesar de tanta indiferença ao espírito guerreiro e de cruz, o rei ainda
conseguiu arregimentar 115 naus e cerca de 10 mil homens para a sua Cruzada.
Sua primeira investida foi contra a cidade de Alexandria, conquistada com faci-
lidade. Como já não predominava nestes cruzados o espírito de cruz e de amor
a Deus, a cidade foi objeto de pilhagens e de saques desenfreados. Os cronistas
dizem que "no entanto, a inutilidade da tomada da cidade - abandonada imedia-
tamente - já revela a alteração do espírito cavalheiresco, o feito gratuito ao qual
de fato se entregaram Pedro e seus companheiros".

O demônio da luxúria
Pedro I voltaria novamente à Europa, novamente sem a esposa. Ao que
parece o amor platônico do casal continuava vivo, pois o rei estava levando a
mesma camisola consigo. Foi recebido em Roma, Treviso e Florença com as
maiores homenagens. Porém más notícias chegaram aos ouvidos da rainha.
Um cronista assim descreve o que houve:
"Como sabeis, o demônio da luxúria que atormenta o mundo inteiro, se-
duziu o bom rei, fazendo-o cair em pecado com uma dama nobre, chamada
Joana Laleman, viúva do senhor João de Montolif, senhor de Khulu (na região
de Pafo), e ele deixou-a grávida de oito meses". Como o rei fora pela segunda
vez ao Ocidente, lá se demorando muito, a rainha mandou chamar Joana para
sua corte, e esta aceitou o convite. Aqui começa o pior drama da família real.
Assim que a cortesã chega à corte de Eleonora, esta dirige-lhe estas pala-
vras: "Péssima cortesã, roubaste meu marido!" A nobre dama calou-se, sentin-
do-se culpada, e também em respeito pela rainha. Eleonora deu, então, ordem
a suas servas para que a jogassem no chão; em seguida, trouxeram um grande
almofariz de mármore, que elas colocaram sobre seu ventre e com o qual moe-
ram várias coisas e uma medida de sal para fazê-la abortar.
Apesar de tanta violência e lhe haver torturado o dia inteiro, a criança
continuava viva no ventre da mãe. A rainha, vendo inúteis seus esforços, orde-
na que a escondessem numa casa até o dia seguinte. Ao amanhecer, ordenou
que a trouxessem à sua presença novamente. Nova cessão de tortura para pro-
vocar o aborto da criança, novamente sem êxito. Utilizaram de todos os recur-
sos, desde ervas e drogas, coisas ensinadas por feiticeiras e parteiras. Por um
desígnio de Deus, a criança continuava viva dentro do ventre da mãe. Estando

247
sob o completo domínio de Eleonora, a miserável cortesã foi obrigada a ficar
reclusa numa casa até conceber o filho.
Quando a criança nasceu, levaram-na e entregaram-na à rainha, e nunca
se soube o que foi feito dela. Em seguida, movida por um ódio passional, man-
dou que trouxessem Joana à sua presença, e ordenou em seguida que a jogas-
sem numa prisão subterrânea, ainda ensangüentada, onde sofreu tudo tipo de
maus-tratos. No entanto, o capitão do lugar onde estava presa Joana mudou,
sendo substituído por Hugo d'Anathiaume, que era aparentado dela. Em segre-
do, Hugo tratou de arrumar o fosso subterrâneo onde a infeliz fora jogada.
Deu-lhe lençóis para dormir, tratou-a bem, servindo-lhe comida e bebida.
Enquanto estes fatos ocorriam em Chipre, Pedro I ainda permanecia em
seu périplo pela Europa. Apesar de Eleonora dominar a situação, não conse-
guiu evitar que seu esposo tomasse conhecimento do que ocorria. Inconforma-
do, o rei escreveu uma carta à rainha, onde dizia: "Fiquei sabendo das maldades
que fizestes à minha muito querida dama Joana Laleman. Por isso anuncio-te
que, se, com a ajuda de Deus, eu voltar a Chipre, irei te fazer tanto mal que to-
dos estremecerão. Assim, antes que eu volte, faz todo o mal que puderes".
Temerosa, Eleonora mandou soltar a prisioneira, obrigando-a, entretan-
to, a ficar reclusa num convento de Santa Clara.
Mas o rei Pedro I continuava sendo dominado pelo demônio da luxúria.
Ainda na Europa arranjou outra amante, chamada Echive de Shavel Zion, mu-
lher do senhor Grenier, "o Pequeno", e como dama era casada. Neste caso,
Eleonora nada poderia fazer contra ela, pois tinha a proteção do marido. O
demônio da luxúria consegue fazer com que Pedro cometesse agora um pecado
maior, o do adultério duplo.
Um cronista da época comenta que o rei, quando levava em suas viagens
apenas a camisola de sua esposa, já demonstrava estar dominado pela luxúria. E
que após o primeiro pecado, cometido com uma viúva, não era de se estranhar
que cometesse tantos outros com outras cortesãs dissolutas, como este último
com uma mulher casada.

A desgraça se abate sobre a família real


Enquanto o rei se consumia em pecados de luxúria na Europa, a rainha
procurava sobrepujá-lo e cometer pecados piores. Assim, ela também resolveu
amasiar-se a outro homem. Seus parentes comunicaram o fato ao rei através de
uma carta. A partir daí foi que Pedro mandou que seu camareiro retirasse a
camisola de seu quatro, com qual já se acostumara a dormir. Como aquele no-
bre senhor não mais nutria em seu coração sentimentos cristãos de caridade, de
bondade e de amor a Deus, passou-se em sua alma terrível transformação, a
qual impressionou vivamente a seu círculo de amizades. Ficou macambúzio,

248
triste e melancólico, fechado em si mesmo. Tal estado de alma influenciou vi-
vamente seu comportamento e suas decisões.
Determinado apenas a se vingar daquilo que supunha ser uma traição,
sua cólera caiu sobre todos os que imaginava ter culpa de suas misérias morais.
Para aquele que lhe traiu com sua esposa, conseguiu mandar que fosse aprisio-
nado num castelo até morrer de fome. A rainha, sentindo-se incapaz de enfren-
tá-lo, foge de seu furor. Sabia agora que seu antigo amoroso esposo a traía de-
sonrando todas as pequenas e grandes damas.
Mandou construir uma torre e rodeá-la de redutos fortes com fossos.
Sentia a necessidade de se proteger contra a fúria do rei. Os cavaleiros que
eram de seu círculo de amizade, alguns familiares seus, desconfiavam de que o
rei quisesse mandar prendê-la. A partir deste momento começaram a ocorrer
atos de demência de ambas as partes.
Segundo conta o cronista Maharias, "começou a brotar a árvore do ódio.
Os cavaleiros da corte iriam reunir-se e dirigir-se a dois irmãos do rei. Desde o
seu retorno o rei tornou-se tão soberbo que traiu seus juramentos devido ao
ódio que alimentava..." Em vão, um de seus próximos, o almirante João de
Monsori, tentou fazer o rei ponderar e depois acalmar os barões que haviam
ido à igreja de São Jorge dos Potros, que tramavam nada menos que a morte de
Pedro I".
Intrigas, calúnias, injúrias, mortes, traições e guerras seguiram-se até à
completa extinção da dinastia dos Lusignan em Chipre, cedendo lugar à invasão
turca que alguns anos mais tarde retomaram a ilha. Como se vê pelos fatos aci-
ma, se o casal fosse fiel cumpridor dos deveres cristãos e tivessem praticado as
virtudes da caridade, sobretudo da castidade matrimonial, teriam evitado não só
o desmoronamento de sua família e da dinastia, mas até mesmo de todo o seu
povo. Se os turcos vieram a se apossar de Chipre foi por castigo de Deus por
causa desta apostasia.
Pedro I foi assassinado numa cena selvagem, assim lamentada pela escri-
tora francesa Regine Pernoud: "Cena selvagem, por maiores que fossem os er-
ros de Pedro, e sem precedentes, pois em vão se procura o exemplo de um
regicídio nos anais do Ocidente na época feudal". 96

5. Terrível castigo divino faz soldado arrepender-se dos pecados de luxúria

Quem conta o caso é o Padre Manuel Bernardes:


“Na cidade de Cartago em África, nos tempos de Niceta, patrício, houve
um soldado pretoriano, alcaide de certo magistrado maior, o qual estragara
96
Dados extraídos do livro "A Mulher nos Tempos das Cruzadas" - de Régine Pernoud - Papirus Editora - págs.
278/288.

249
muito com pecados sua primeira idade e depois, por ocasião de uma geral pes-
tilência, compungido e temeroso com a mortandade de tantos tão repentina-
mente, se retirou, com sua mulher, a uma quintinha nos arrabaldes. Porém
nem aqui o deixou o demônio prosseguir quietamente seus exercícios de devo-
ção e penitência, antes o fez cair em adultério com a mulher de um rústico seu
vizinho. Não muito depois adoeceu e morreu de males, porque os da pena se
proporcionam com os da culpa: “Per quae peccat quis, per haec et torquetur”
Havia, em distância de uma milha, um mosteiro, cujos religiosos, rogados
pela mulher do soldado, o acompanharam e enterraram na sua igreja à hora de
Terça. Mas, estando depois rezando Noa, ouviram uma lastimosa voz, que pa-
recia sair daquela mesma sepultura e dizia: “Misericórdia, tende de mim mise-
ricórdia”. Certificados mais que daquela parte procedia aquele gemido, aco-
dem logo a revolver a campa; acham vivo o soldado. Uns o elevam da cova, ou-
tros lhe desatam as estrigas, outros lhe perguntam o que lhe sucedera, e todos,
admirados, estavam pendentes da boca do redivivo, esperando novas do outro
mundo. Mas ele, podendo mal formar algumas palavras, entre muitos gemidos,
rogou que o levassem à presença de Talássio97, varão santo que florescia então
naquelas partes.. Levado ali, com efeito, informaram a Talássio do que se tinha
passado, o qual por três dias continuou em dar-lhe as consolações e doutrina
em tal caso oportunas, e no quarto veio a reduzir a que contasse o que lhe su-
cedera. Cuja relação, acompanhada com prantos e interrompida com suspiros,
foi a seguinte:
Irmãos caríssimos: - Quando eu estava em passamento e já quase arran-
cando, vi diante de mim uns feros negros agigantados, cuja vista me era mais
odiosa e insofrível que qualquer outro tormento, e a alma, conturbada e me-
drosa, se encolhia todo o possível dentro de si mesma. Daí a pouco vi dois
mancebos formosíssimos, e logo a minha alma saltou fora do corpo e se lhes
pôs nas mãos e comecei a voar em sua companhia por essas regiões aéreas.
Onde encontramos várias tropas como de malsins98 e cobradores, que cercavam
os caminhos e detinham os passageiros. E havia também muitas como alfânde-
gas ou mesas, cada uma com seu almoxarife, com livro de razão e pediam con-
ta, uns deste vício, outros daquele, cada qual do que lhe tocava, e sem pagarem
não os deixavam passar adiante. Ninguém pode explicar a severidade, aperto e
miudeza com que faziam o seu ofício.

A “alfândega” da luxúria
Cada vez que eu empatava em algumas destas aduanas, via que os meus
dois companheiros, metendo a mão em umas bolsas em que levavam todas as
97
Famoso monge e presbítero grego.
98
Malsim – fiscal da alfândega, cobrador de imposto.

250
minhas obras boas que tinha feito, tiravam com que pagar aos cobradores, que
pesavam tal por tal, palavra proveitosa por palavra ociosa, verdade por mentira,
aplicação na reza por distração e, enfim, virtude por vício, com exação e miu-
deza suma; e feito isto, passávamos livres adiante. Até que chegamos à alfânde-
ga da luxúria, que estava mui acima, e já as minhas bolsas iam vazias. Ali me
agarraram os malsins e me representaram vivissimamente na memória quanto
neste vício tinha delinqüido, que era muito e mui feio, porque da idade de doze
anos comecei a depravar-me. Oh, anos de minha perdição e miséria! Estava eu
desconsoladíssimo e desanimado por ver tanta fealdade, de que não podia ne-
gar ser o autor. A isto acudiram meus companheiros, dizendo que tudo o que
pertencia a este ponto estava perdoado de graça, quando deixara a cidade e me
retirara a melhor vida. Porém da contrária parte retrucaram que, ainda depois
da retirada, cometera adultério duplicado, de casado com casada. Neste passo
os meus companheiros, não achando nas bolsas virtude que pôr contra tão gra-
ve pecado, deixaram-me ali, como penhor ou represália, e se ausentaram.
E logo aqueles etíopes, arrebatando-me furiosamente, me açoitaram e
derribaram em terra, para a qual, abrindo-se, fui levado por umas cavernas me-
donhas, por umas encruzilhadas subterrâneas escuríssimas e apertadíssimas, até
chegarmos ao reino da morte eterna, onde com os condenados moram a triste-
za mortal, a dor inconsolável, o pranto, o rugir dos leões esfaimados e, final-
mente, a total ausência de Deus, irado e irreconciliável. Dizer o que ali se passa,
sem que jamais possa passar, por toda a eternidade, não cabe na língua huma-
na; e por isso, eu antes queria calar-me. Choram os réprobos lágrimas que
queimam e ninguém se condói. Ouve-se o bater de dentes e não há esperança
de remédio. Puxam do íntimo do espírito uns gemidos mui tristes e prolonga-
dos e não aparece o rosto da misericórdia, porque tudo ali é – “Confusa multi-
dão de ais e clamores, / De atormentados e atormentadores”.
Aqui fui arremessado como infame galeote99, condenado, segundo o que
me parecia, ao mesmo remo da miséria última e interminável; aqui a estive car-
pindo até que, à hora em que conheci ser de Noa, vi outra vez os dois anjos, a
quem comecei a rogar com quanta instância pude que me tirassem daquele ca-
labouço, para fazer penitência com que aplacasse a Deus e satisfizesse por meus
pecados. “Debalde rogas (me responderam os anjos), porque nenhum dos que
aqui estão sairá senão no dia da ressurreição universal”. Porém, perseverando
eu, todavia, em pedir tempo de penitência e prometendo de a fazer cumprida-
mente, disse um dos anjos para o outro: Ficas por fiador deste, que fará peni-
tência, se tornar ao mundo? Fico (respondeu ele), e vi que lhe deu a mão, a
qual o outro aceitou. E logo ambos me tiraram fora e trouxeram a terra e me
meteram dentro da sepultura junto ao meu cadáver, dizendo: “Entra de onde
99
Galeote – condenado a remar nas galés, geralmente por toda a vida

251
há pouco te apartaste por divórcio”. E a minha alma via a sua natureza própria
à semelhança de um cristal transparente ou de um diamante bem lavado, e a do
seu corpo, onde havia de entrar, por modo de um montezinho de lodo escuro
e asqueroso sumamente, e se lhe fez mui duro e molesto o preceito de entrar
ali e tornar a ser moradora de tão triste, imunda e estreita casa. O que vendo os
anjos lhe disseram: “No corpo pecaste, no corpo é preciso que faças penitên-
cia”. A minha alma lhes requeria que a deixassem ficar fora; porém eles res-
ponderam: “Desengana-te que ou hás de entrar aqui ou tornar para onde te
trouxemos”. Entrou então, quase violentada. E começou a clamar desde a se-
pultura Misericórdia, que foi a voz que ouvistes.
Acabando o soldado de referir a história, o venerando e piedoso Talássio
lhe rogava que comesse para sustentar a vida que Deus, por especial providên-
cia, quisera conceder-lhe; porém não o pode reduzir a isso, dizendo que lhe era
data toda para penitência. Dali por diante andava de igreja em igreja, peito e
rosto por terra, e de quando em quando, levantando a voz, lançava este horren-
do pregão: “Ai dos pecadores que não fazem penitência! Oh, que tormentos os
esperam! Ai dos pecadores que mancharam seus corpos com deleites torpes!
Oh, que inferno os espera!”
Deste modo perseverou quarenta dias contínuos, com notável fruto dos
que o ouviam e sabiam do sucedido, que não deviam ser tão duros de coração
como aqueles de quem o patriarca Abraão disse ao rico avarento, quando lhe
demandava um pregador saído do outro mundo para convertê-los: lá tem a
Moisés e aos profetas, e, se a estes não dão crédito, também não o darão aos
mortos ressuscitados. Purificado, enfim, aquele espírito com esta saudável qua-
resma de penitência, havendo três dias antes dito quando se havia de partir, no
último deles se desatou do corpo felizmente”.100

6. De que resulta contrição mal-feita em Confissão até na hora da morte

Mais uma vez vamos narrar um fato contado pelo Padre Manuel Bernar-
des:
“Zehentner, no seu livro intitulado “Cabo da Má Esperança” traz o se-
guinte caso, que é lastimosíssimo, ainda que não singular. Em Como, cidade de
Itália, um concubinário, já desconfiado dos médicos e com o pé nas portas da
morte, foi exortado pelo confessor, que era um Sacerdote da Companhia de
Jesus, a que lançasse fora de casa a loba que tantos anos tinha sustentado, pois
se via em termos de entrar em contas com Deus cada momento. Respondeu,
enfadado, que não podia, em tal necessidade, privar-se das assistências de uma
mulher a quem tantas obrigações devia. Ouvindo o padre resolução tão contrá-
100
Obras do Pe. Manuel Bernardes – vol. II – Nova Floresta –Lello & Irmão Editores - págs. 171/176 -

252
ria à salvação daquela alma, mandou a todos os da família que fizessem por ele
fervorosa oração, na qual os acompanhou com lágrimas e gemidos. E logo, com
as mesmas demonstrações de caridade, se chegou à cama do moribundo, e de
joelhos lhe pediu instantemente que naquele terrível ponto, de que pende a
eternidade, ao menos se lembrasse de si, e mandasse expelir a concubina. Ou-
viu ele ao padre, porque primeiro tinha ouvido Deus suas orações. Excluída a
ocasião, confessou-se com dor de seus pecados, e no mesmo dia partiu desta
vida. Na manhã seguinte, quis o dito confessor dizer missa por aquele defunto;
mas ao sair do cubículo com este intento, sentiu um ímpeto que lhe embargava
os passos, e ouviu uma voz que lhe dizia: “Onde vais?” Assustou-se e temeu,
porém foi por diante. Eis que ao entrar na sacristia sentiu segundo impulso, que
o arremessou para trás distância de dois passos.. Nem por isso desistiu do in-
tento (suspeitando, porventura, que o Demônio procurava impedir o sufrágio
daquela alma). Porém, estando já ao pé do altar, quando o acólito começava o
Confíteo, viu para a parte da Epístola junto ao mesmo altar um monstro horrí-
vel, que pregando nele os olhos, severamente lhe disse: “Não ores por mim;
guarda-te de fazer tal”. Porque não? (disse o padre), não és tu o que ontem ouvi
de confissão e mostraste estar contrito de teus pecados? Ai de mim! (respondeu
dando um suspiro tristíssimo); esse sou, e bem me confessei, e já Deus me ti-
nha perdoado. Mas de que valeu? Assim como voltaste as costas, entrou aquela
mulher, e chegando-se perto para servir-me em alguma coisa de seu ofício, fui
tentado e prevaleceu o mau costume antigo, e consenti no mau desejo: e neste
ponto (oh desgraçado de mim!) se me acabou a vida e comecei a eternidade.
Ditas estas palavras desapareceu, e o sacerdote mudou a intenção da missa. E
referia depois o caso, para escarmento de semelhantes pecadores.101

7. Quem não reza e peca pode ser vítima do próprio demônio

Este fato é narrado por Santo Afonso de Ligório:


“Pelos anos de 1604 viviam numa cidade de Flandres dois estudantes
que, em vez de entregar-se ao estudo, se entregavam a crápulas e desonestida-
des. Uma noite, entre outras, foram pecar em casa de uma má mulher. Um de-
les, chamado Ricardo, saiu dali depois de algum tempo e retirou-se para sua
casa, enquanto o outro permanecia dentro. Chegado a sua casa, Ricardo, en-
quanto trocava de roupa para ir descansar, lembrou que naquele dia não havia
rezado certas ave-marias que costumava rezar à Santíssima Virgem. Custava-lhe
rezar, pois o sono o tomava, porém se fez violência e rezou, mesmo sem devo-
ção e meio dormindo. Fechou os olhos e ao primeiro sono ouviu que sacudiam
fortemente a porta, e imediatamente, sem que a houvesse aberto, viu ante ela
101
Obras do Padre Manuel Bernanrdes – Luiz e Calor – vol. II – “Armas da Castidade” – págs. 150/151

253
seu companheiro, porém horrível de ver e desfigurado. “Quem és?” – pergun-
tou. “Pois quê, não me conheces?” – replicou o outro. “Tão mudado te vejo,
que pareces um demônio”. “Pobre de mim! – exclamou o infeliz – Estou con-
denado!”. “Como?”. “Saiba – lhe disse – que, ao sair daquela infame casa, assal-
tou-me um demônio, que me enforcou; meu corpo ficou estendido no meio da
rua e minha alma caiu nos infernos. Saiba também – acrescentou – que tu esta-
vas correndo idêntico castigo, porém a Santíssima Virgem te livrou graças àque-
le insignificante obséquio das ave-marias. Ditoso tu se souberes aproveitar este
aviso que a Mãe de Deus te manda por meu intermédio!”. Dito isto, entreabriu
o condenado a capa e lhe mostrou as chamas e as serpentes que lhe atormenta-
vam e desapareceu”.
Continua Santo Afonso:
“Então o jovem, desfeito em prantos, prostrou-se em terra para dar gra-
ças a sua libertadora, Maria, e enquanto estava pensando em mudar de vida,
ouviu que tocavam as Matinas no convento dos franciscanos e pensou: “Aí me
chama Deus para fazer penitência”, e partiu rapidamente ao convento, para su-
plicar aos padres que o aceitassem; estes, de início se resistiam, conhecedores
de sua vida torta; porém ele, entre um mar de lágrimas, contou todo o ocorri-
do; dirigindo-se os padres à citada rua e encontraram o cadáver do companhei-
ro, enforcado e negro como um carvão, pelo que aceitaram Ricardo, o qual le-
vou vida exemplar e marchou logo para as Índias para pregar o Evangelho; dali
passou ao Japão, onde, finalmente, teve a sorte e a graça de morrer mártir por
Jesus Cristo, sendo queimado vivo”102

8. De São João, o Apóstolo Virgem, a Judas, o traidor

O fato narrado a seguir pode não ter ocorrido, mas é bem ilustrativo co-
mo pode uma alma transformar-se no oposto por falta de orações e vigilância:

“Conta-se que quando o grande pintor italiano, Leonardo da Vinci, quis


pintar o célebre quadro da ceia eucarística, tratou de recolher entre os homens,
pessoas que por este ou aquele motivo servisse para modelo deste ou daquele
Apóstolo.
E assim, andava de rua em rua, de calçada em calçada, procurando os
seus exemplares que eram logo convidados a comparecer ao seu atelier de pin-
tura. Para São João, o Apóstolo virgem, o querido amigo de Cristo, escolheu
Leonardo um jovem cheio de vida e estuante de pureza, em cujo olhar brilha-
vam os raios da virtude e da mansidão... Era um jovem calmo e discreto, ainda
imberbe, feliz de sua educação cristã, sustentada pela graça dos sacramentos
102
Obras Ascéticas de San Alfonso M. de Ligório – BAC – págs. 691/692.

254
que frequentava. Veio descobri-lo o pintor numa igreja, onde o jovem costuma-
va fazer as suas orações. Era o tipo desejado para perpetuar, na tela, o rosto do
Apóstolo que merecera guardar, em sua casa, a própria Mãe do Nazareno.
Pintado mais este personagem na tela que seria a mais célebre de todo o
mundo e que não passava da parede do refeitório do convento, pôs-se Leonar-
do, novamente, a campo, caçando seus modelos.
Prosseguia a sua obra magistral e alguém ainda faltava no seu quadro.
Muitos meses fazia que trabalhava. Era sempre possível encontrar pessoas com
as características de todos os apóstolos. Mas alguns faltava que servisse de mo-
delo para o traidor e pérfido Judas. Ele queria um homem que trouxesse em
suas faces os traços da ruindade e da ganância, que estampasse, no seu rosto, os
sinais da traição, da aventura, da intranquilidade. Ele queria alguém cujo exteri-
or retratasse a ausência da paz do seu interior. E saía, sempre acompanhado de
alguns amigos, por aquelas tabernas e casas de perdição, onde campeavam o
jogo e a miséria. Já muito tempo fazia que iniciara o seu quadro, mas ainda não
pudera concluí-lo por falta de um modelo para Judas.
Até que este modelo apareceu.
Indo, certa vez, a uma taberna de jogo, deparou-se com um rapaz cujos
traços era, exatamente, os desejados para representação do traidor.
Aproximando-se dele, perguntou:
- Você não queria, porventura, servir de modelo para um quadro que es-
tou pintando? Eu lhe pagarei bem.
O jovem estremeceu. Mas, porque, novamente, ele estava sendo convi-
dado para servir de modelo aos pintores? Que tão expressivos traços se dese-
nhavam em seu rosto capazes de atrair a atenção dos pintores?
- Qual é o quadro que o senhor está pintando? – perguntou.
- Pinto o quadro da Santa Ceia. Já está todo pronto, mas falta uma figura.
- Quem é que falta?
- Judas!
- O senhor não é Leonardo da Vinci? Aquele que me contratou para
modelo do Apóstolo João Evangelista?
- Ah! É você? Como está diferente! Que transformação se passou em vo-
cê? Por que está agora tão desfigurado, tão intranquilo, com este aspecto de
perversidade?
O jovem abraçou-se com o pintor e começou a chorar. E ali mesmo, an-
tes que a sua cabeça aparecesse duas vezes no quadro de da Vinci, uma em Jo-
ão Evangelista outra no seu oposto, Judas, aquele rapaz fez sua confissão.
- Eu era católico. Frequentava os sacramentos, a conselho de minha santa
mãe. Tinha boas amizades e era puro. Foi neste tempo que o senhor me co-
nheceu na igreja, levando-me para o seu atelier como modelo do Apóstolo Vir-

255
gem. Depois, mamãe morreu. Fiquei no mundo sem amparo e, sobretudo, sem
os seus conselhos. Más companhias me induziram ao pecado, caí depois de
muita luta, mas fui, finalmente, vencido. Dado o primeiro passo errado, os ou-
tros vieram, como consequência. Atirei-me nos braços do mundo. Aprendi a
jogar e a beber. Hoje, sou um desgraçado. A miséria moral bate em minha por-
ta e eu sou, talvez, o homem mais desgraçado do meu tempo. Sinto, profun-
damente, saudades da minha pureza, da minha posição, da minha confiança em
Deus. Mas o mundo me atrai com tanta força que já não posso resistir aos seus
convites insistentes.
Aceito posar, novamente, em seu quadro, desta vez para servir de mode-
lo ao rosto do traidor Judas, como castigo que eu mesmo me dou, para vergo-
nha minha, para meditação sobre a minha vida. E peço a Deus a graça de arre-
pendimento para que eu volte a gozar de sua graça, na tranquilidade da minha
vida passada...
E foi assim que no decorrer de alguns anos, o mesmo rosto representan-
do a pureza posou para representar a traição e a miséria. Eis aí, caros jovens, o
quanto pode fazer o demônio. Pode transformar almas puras em escravos da
luxúria. Somente a graça de Deus traz a paz para as nossas almas. Ninguém
pode iludir-se porque todos têm o aviso de Deus, através da lâmpada acesa de
nossas consciências”.103

103
“PÁGINAS PARA VOCÊ” – Cônego Eymard L’E. Monteiro – Editora Mensageiro da Fé – 1959 – págs.
139/142

256
--

9 Ocasiões de perigo - o baile

O baile, ou as danças de modo geral, tem sido a preocupação constante


de muitos moralistas antigos e de bons pais de família. Em geral, toda festa de
família, ou entre amigos, tem no baile seu ponto principal. Especialmente no
mundo de hoje é voz corrente que trata-se de uma diversão inocente e sem
quaisquer efeitos danosos para as virtudes cristãs. Até mesmo grupos de católi-
cos, reunidos em torno de sua paróquia, e ás vezes sob o patrocínio do vigário,
pároco ou capelão, fazem seus bailes com muita animação e em completa falta
de prevenção de algum malefício que possa causar às almas, especialmente das
pessoas mais jovens e imaturas.
Em geral, alegam que não há mal nenhum, pois até Davi dançava em
torno da Arca da Aliança. Mas, fazem tal afirmação sem ponderar de que modo
e em que circunstâncias o Rei Profeta dançava. Então é bom notar que as dan-
ças realizadas entre aquele povo eram, em geral, danças guerreiras, onde havia
muito mais a exaltação de feitos gloriosos e guerreiros, e a comemoração de
fatos extraordinários.
Basta que busquemos o exemplo na Sagrada Família, da qual nunca se
ouviu falar de haver participado de nenhum baile. A festa de casamento reali-
zada em Caná, comentada por São João no seu Evangelho, foi feita sem que
houvesse baile ou qualquer tipo de danças. Aliás, poderia até haver algum tipo
de baile comemorativo naqueles tempos, mas do qual poderemos indagar se
continham passos ou ritmos alucinantes e convidativos para a sensualidade ou
para alguma licenciosidade momentânea. Não, certamente que não; se havia
alguma dança, especialmente entre os hebreus, era coisa mais séria do que hoje.
A dança de Salomé, pedindo a cabeça de São João Batista, mostra que
havia isso entre os pagãos, por causa das cerimônias idolátricas cheias de convi-
tes aos vícios e pecados. E alguma coisa de costumes pagãos poderia medrar
entre os hebreus, mas não era proveniente da salutar vida religiosa daquele po-
vo, mas copiada de estrangeiros.
Vejamos o que diz dos bailes Francisco Spirago:
“O baile é particularmente perigoso para os que dançam muito ou livre-
mente, ou que, por ocasião do baile têm incorrido já em pecado mortal.
O baile não é por si mesmo coisa torpe ou proibida, senão meio de dis-
trair-se, concluído o trabalho, e de espairecer a alma com honesta diversão; as-
sim mesmo pode ser útil para fomentar a benevolência entre os homens. Entre
os judeus (ainda que em forma totalmente diversa do baile moderno), se juntou

257
com certas cerimônias do culto divino. Assim o rei David dançou com santo
entusiasmo diante da Arca (2 Reis 6, 14), mas as danças em geral tinham o cará-
ter guerreiro naquele tempo. As donzelas hebréias dançavam em coros, em al-
gumas festividades religiosas (Jud. 21, 21; Ex. 15, 20). Até os anjos no céu for-
mam coros e danças diante do Senhor. Porém não se pode dançar no tempo
proibido (no Advento, na Quaresma, etc.), ou com pessoa inconveniente (como
sucede com freqüência nos bailes públicos), nem tais danças em que se fazem
gestos ou se tomam posições pouco honestas.
Com tudo isto, na atualidade se pode dissuadir resolutamente o baile a
quem quer que seja, porque no mais dos bailes (de parceria), pela mesma posi-
ção dos dançarinos (pegados pela mão e pela cintura), se ferem as regras da
moralidade e da decência. Para muitos se converte o baile numa paixão, des-
perta feias inclinações, afugenta o espírito de devoção e é causa de futuras imo-
ralidades. Ao mesmo tempo o baile é muito contrário à saúde corporal. O res-
pirar um ar adensado pelo pó; a transpiração de muitos que suam; e a respira-
ção agitada; o esfriamento pela bebida inconsiderada em estado de fadiga, a ex-
cessiva tensão do esforço (pois em algumas horas saltando se percorre o espaço
de várias milhas), produzem às vezes a tísica ou enfermidade do coração. E que
desordem se nota no regresso noturno do lugar do baile, na ocasião em que
estão superexcitadas as paixões! Por isto muitos varões apostólicos têm repro-
vado inteiramente o baile e têm falado como São Efrém: Onde há baile, há tris-
teza dos anjos e júbilo dos demônios. E em outro lugar: não é possível saltar e
bailar aqui e gozar depois dos eternos gozos; pois disse o Senhor: Ai de vós, os
que agora ris! Porque chorareis e estareis tristes.
Em certas horas não podem algumas pessoas se recusarem de dançar,
por exemplo, nas bodas, festas de família, etc.; ou quando os pais, esposos,
noivos ou parentes solicitam que se faça. Em certos casos, dança pouco e não
muitas vezes; o baile seja para ti recreação e não agitação, e não te esqueças da
presença de Deus. O que uma vez, por ocasião do baile, tem caído em pecado
mortal, deve evitar, de futuro, todo o possível este perigo; pois do contrário ne-
nhum confessor o poderá absolver (se entende, enquanto tenhas esta intenção).
Se alguma pessoa te convida a dançar pode desculpar-se dizendo-lhe com toda
verdade: "Perdoe-me você. Me faz mal (à saúde)". Aqui há que apelar para as
palavras do Salvador: Se tua mão ou tem pé te escandalizam... (Mt 18, 9); isto é,
mais vale renunciar ao baile, e ser um dia bem-aventurado, que dançar agora e
condenar-te depois”. 104

Que pensar dos bailes?

104
"Catecismo Popular Explanado" - Francisco Spirago - págs. 550/552

258
O texto abaixo é do Dr. Plínio Corrêa de Oliveira:
“Não daríamos por concluída nossa tarefa sem uma observação a respei-
to dos bailes. É de toda a evidência, e até uma banalidade, que dançar não
constitui, em si, um mal, mas que as circunstâncias que podem existir concre-
tamente fazem, em geral, da dança um mal bastante grave.
Fala-se tanto - e com quanta razão! - da doçura de São Francisco de Sales.
O conselho que o Santo Doutor dar a respeito da dança é concludente, e mos-
tra como lhe pareciam perigosas as danças de seu tempo:
"Falo-vos dos bailes, Filotéia, como os médicos falam dos cogumelos; os
melhores de nada valem, dizem eles; e eu vos digo que os melhores bailes não
são bons. Se por qualquer motivo de que não conseguirdes desculpar-vos, vos
for necessário ir ao baile, velai por que vossa dança seja decente. Dançai pouco,
e poucas vezes, pois que do contrário correreis o risco de voas afeiçoar à dan-
ça... e outras recreações que dissipam o espírito de devoção, tornam langorosas
as forças, tornam tíbia a caridade e despertam na alma mil variedades de mal
afetos; eis porque é necessário servir-se delas com grande prudência". De que
maneira dançar? São Francisco de Sales o explica: "com decoro, dignidade e
boa intenção". Que diria o Santo Doutor de certas danças modernas, como a
"conga", em que os pares formam longos cordões pelo salão, segurando-se uns
aos outros, gesticulando e gritando como crianças? Encontraria ele um meio de
se dançar "com decoro" e dignidade a "conga", quando já lhe parecia isto pro-
blemático quanto ás danças suaves, artísticas e delicadas de seu tempo?
Certamente não. Muitas pessoas entendem que, porque São Francisco de
Sales autorizou, em tese, que se fosse a bailes, fazendo-o embora muito a con-
tra-gosto e cheio de apreensão, se deve com a maior liberalidade estender a
quem quer que seja esta autorização. Estas pessoas tomariam o cuidado de
aconselhar aos que dançam que façam uso de certos pensamentos salutares du-
rante a dança? E teriam a coragem de aconselhar os pensamentos que São
Francisco de Sales menciona? Quais são eles? "Pensai, diz o Santo, nas almas
que ardem no inferno por causa das faltas que cometeram nos bailes; pensai
nos santos religiosos que, enquanto vos divertis, cantam os louvores a Deus;
pensai nos homens que no mesmo momento estão sofrendo ou morrendo;
pensai em Nosso Senhor, em Nossa Senhora, nos anjos e santos que vos viram
no baile, e que tiveram grande pena de ver vosso coração distraído com tão
grande tolice e atento a uma tal sensaboria; pensai na morte que se aproxima
zombando de vós, e que vos faz sinal para que entreis na dança macabra onde
os gemidos substituem o violino, e onde fareis vosso trânsito da vida à morte". É
interessante ler, neste sentido, a 3a. parte do capítulo XXXIII da jamais assaz
louvável "Introdução à Vida Devota".

259
Vale para quaisquer espécie de reuniões dançantes esta importante ob-
servação que faz, em uma interessante monografia sobre "Os Católicos e as no-
vas danças", o insigne dominicano Pe. Vuillermet, O.P., de cuja obra extraímos
quase todas as nossas citações sobre danças:
"É raro que as danças freqüentes e regulares se conservem como simples
distração. Elas se tornam, pelo contrário, e é esta a observação de quase todos
os moralistas, uma ocasião de intimidade e de encontros para pessoas que
acham assim um meio fácil e aparentemente insuspeito, de dar à sua paixão um
alimento de que são sempre ávidas. E mesmo quando não existe este desejo
inicial, não é certo que a freqüência dos mesmos encontros faz nascer a paixão,
tanto mais quanto estes encontros são muitos perigosos porque prolongados?
Dança-se hoje durante toda uma festa com a mesma pessoa, o que seria outrora
uma grave incorreção; e, depois de ter desaparecido a primeira cerimônia, e
quando a familiaridade se vai introduzindo entre o jovem e seu par, não é certo
que o pudor se vai debilitando? Não se faz mais a fiscalização dos sentimentos,
e insensivelmente os pensamentos e desejos que outrora teriam revoltado a
consciência se aclimatam na inteligência e no coração. - Considero, pois, que
estas danças freqüentes com a mesma pessoa são extremamente perigosas".
Depois de considerações mais indulgentes quanto a pequenas reuniões
dançantes absolutamente esporádicas e improvisadas na intimidade de uma fa-
mília, que entretanto "conservam numerosos inconvenientes que decorrem da
sua natureza", o autor acrescenta a seguinte conclusão: "teoricamente a dança
não é imoral... e só se pode tornar tal acidentalmente. Mas não posso negar
que, na prática, o acidental seja o mais freqüente. As pessoas que pecam por
ocasião da dança são incomparavelmente mais numerosas do que as que não
pecam. A causa deste fato está, em parte, na diminuição da Fé e no abandono
dos exercícios de piedade, e de outra parte no relaxamento dos costumes que
faz com que hoje em dia se permitam, na dança, tais liberdades que é muito
raro que a virtude não fracasse durante ela". Estas linhas são de 1924. Que diria
o autor das danças de 1942!
Em 1924, a Europa sofria da invasão de certas danças americanas - que
hoje nos parecem tão modernas - e que suscitaram entretanto inúmeras conde-
nações da Hierarquia na França. O Cardeal Dubois, o Arcebispo de Chambéry,
o Bispo de Lille, condenaram sucessivamente as danças novas. O Arcebispo de
Cambrai escreve:
"O tango, o fox-trot e outras danças análogas são diversões imorais em si
mesmas. Elas estão proibidas pela própria consciência, por toda parte e sem-
pre, anteriormente às condenações episcopais e independentemente delas". E
Bento XV, na Encíclica "Sacra prope diem" diz: "estas danças exóticas e bárba-
ras , recentemente importadas nos círculos mundanos, mais chocantes umas

260
que as outras, são o que há de mais próprio para banir todos os vestígios de pu-
dor". Muitas destas danças provinham das mais baixas camadas de indígenas
americanos, e delas disse em sua Carta Pastoral Mons. Charost: "Edulcore-se
quanto se queira este enxerto bárbaro, corrija-se com maior ou menor perícia
seu despudor nativo. Logo que encontre um temperamento próprio, este en-
xerto retomará seu ardor e sua violência natural. Ele é o vírus da carne pagã
penetrando em um organismo social que dezessete séculos de espiritualismo
cristão e de dignidade moral haviam modelado. Ele é mais do que a revolta - de
que nenhum cristão foi isento - ele é, no fundo e por tendência, a anarquia do
instinto.
Das danças modernas, muitas das quais evidentemente adaptadas e im-
portadas dos "bas-fonds" das velhas danças pagãs de negros norte-americanos,
que se poderia dizer?
Quanto aos bailes infantis, porque não reproduzir aqui, como afirmação
do que com tanta eloqüência disseram nossos Bispos, o que escreveu Luís
Veuillot? "Estes bailes infantis são, diz-se, um espetáculo encantador. Sim, para
os olhos."
"Mas que triste cena, quando atendermos aos murmúrios da razão. Me-
ninas de oito anos fazem a aprendizagem da vaidade e da faceirice; elas já são
hábeis na arte do sorriso, da pose, das atitudes, das inflexões musicais da voz.
Os meninos tomam porte e expressões fisionômicas variadas, segundo as indi-
cações maternas: tomam expressão cavalheiresca, pensativa ou importante; ou-
tros se fazem de espertos ou melancólicos, conforme lhes fique melhor. As
mães aí estão radiosas. Mas a cena é feia. Percebe-se que os personagens do
baile em miniatura foram profanados na flor de sua simplicidade graciosa e in-
gênua, desde o berço. A impressão de uma pessoa razoável, testemunhas de
uma destas festas chamadas de inocência, era de que se experimenta um desejo
ardente de chibatear, a torto e a direito, toda a pirralhada" (Luís Veuillot, "L'U-
nivers, 28.12.1858).
Para encerrar, vejamos o que a este propósito fez aquele que a Santa
Igreja aponta como modelo de todos Párocos modernos.
Extraímos nossas citações da magnífica obra de Mons. H. Convert, "Le
Saint Curé D'Ars et le Sacrement de Pénitence", ed. Ammenuel Vitte, 1931,
pgs. 18-21).
"Tanto o interesse geral do rebanho confiado à guarda de M. Vianney
quanto o de certas almas mais particularmente expostas a perder-se exigia o de-
saparecimento de uma tão perniciosa desordem (as danças). Ele refletiu nisto,
e, desde então, se resolveu a aplicar, ao pé da letra, os princípios da Teologia
Moral sobre os pecadores ocasionais e os reincidentes, com uma grande bon-
dade, ms também com uma energia de bronze, que nada faria recuar. Ele recu-

261
sou, com efeito, a absolvição, mesmo no tempo pascal, a todas as pessoas que
haviam dançado, ainda que fosse uma vez, no decurso do ano; e, enquanto ele
"julgava provável que elas tornariam a cair no seu pecado", afastava-as da parti-
cipação nos sacramentos. Elas podiam vir confessar-se, e, de fato, a maior parte
continuava a vir; ele as encorajava, exortava-as a mudar de vida, mas não as ab-
solvia. "Se não vos corrigis, lhes dizia, estais condenados!"
"Este procedimento, como se pode conceber, suscitou muitas recrimina-
ções; comentou-se abertamente, e de todas as maneiras, de que o Sr. Cura "não
era cômodo"; comparou-se o seu método com o de seus confrades mais indul-
gentes; qualificou-se o Cura D'Ars de "escrupuloso, de ingrato" (no idioma da
região, ingrato quer dizer aborrecido, desagradável). Certas pessoas foram con-
fessar-se nas paróquias vizinhas; ele lhes retrucou que elas tinham ido buscar
"um passaporte para o inferno". Entre si, estas pessoas o acusavam, dizendo:
"Ele quer fazer com que nós prometamos coisas que não podemos cumprir; ele
quereria que fôssemos santos, e isto não é muito possível no mundo. Ele quere-
ria que nós jamais puséssemos os pés na dança, e que jamais freqüentássemos
os "cabarets" e os jogos. Se tudo isto fosse necessário, jamais faríamos a Pás-
coa..." Contudo, "não se pode dizer que não mais se voltará a estes divertimen-
tos, pois que não se sabem as ocasiões que se poderão deparar". A esta argu-
mentação interesseira, ele replicou: "O confessor, enganado, por vossa lingua-
gem artificiosa, vos dá a absolvição, e vos diz: "Sede bem comportados! "Por
mim, eu vos digo que fostes calcar aos pés o sangue adorável de Jesus Cristo,
que fostes vender vosso Deus como Judas o vendeu aos seus carrascos".
"Que ganhou o Cura D"Ars com tal método? Muitos jovens de ambos os
sexos ficaram excluídos dos sacramentos durante anos inteiros... É verdade.
Poder-se-á pensar, poder-se-á dizer que foi um mal? De outro modo, eles os
teriam recebido nula, senão sacrílegamente; eles teriam aliado as práticas da
vida cristã e as desordens do coração; a paróquia teria parecido convertida, sem
o estar na realidade; as pompas de Satanás estariam sempre prestigiadas, o
príncipe das trevas teria ficado o verdadeiro senhor da situação. Ora, o Cura
D"Ars queria que, de seu rebanho, Jesus Cristo fosse rei sem contraste. Por Je-
sus Cristo ele se empenhou numa guerra de mais de vinte anos, disputando
palmo a palmo o terreno ao inimigo, sacrificando na batalha seu repouso, e,
mesmo transitoriamente, sua reputação, derramando seu sangue aos borbotões
quase todos os dias, extenuando-se de fadigas e de jejuns. A vitória foi, por fim,
completa, definitiva; a piedade e a virtude puderam florescer à vontade sobre
esta terra purificada e conquistada para seu único Mestre, e ainda hoje continu-
amos a saborear os seus frutos.
"De resto, digamo-lo de passagem, não foi somente frente às danças que
apareceu a firmeza do Cura D'Ars. "O pecador que não se rendia às suas ternas

262
admoestações - assim depôs seu coadjutor - encontrava-o inflexível em manter
as regras e esbarrava numa barreira infrangível".
Acrescenta em nota o mesmo autor: "As danças foram logo abolidas na
paróquia, embora experimentasse reaparecer de longe em longe. A partir de
1832 não se fala mais delas. Mas rapazes e moças quiseram se desenfastiar indo
dançar na vizinhança. Foi então, sobretudo, que o Santo se armou de uma in-
transigente firmeza. 105

105
"Em Defesa da Ação Católica" - Plínio Corrêa de Oliveira – Artpress Papeis e Artes Gráficas Ltda, págs.
255/260.

263
10 Sobre a castidade matrimonial

A castidade matrimonial é hoje muito esquecida nas famílias ou mesmo


quase não se fala dela entre casais cristãos. Muitos se perguntarão se um cônju-
ge ainda guarda a castidade. É o que veremos nos textos abaixo. Comecemos
por um texto de São Francisco de Sales:

1. Da honestidade do leito conjugal

“O leito conjugal deve ser imaculado, como o chama o Apóstolo, isto é,


isento de desonestidades e outras torpezas profanas. Porque o santo matrimô-
nio foi primariamente instituído no Paraíso terreal, onde até então nunca tinha
havido nenhum desconcerto da concupiscência, nem coisa desonesta.
Há alguma semelhança entre os deleites vergonhosos e os do comer:
porque ambos dizem respeito à carne, embora os primeiros, em razão de sua
veemência brutal, se chamem completamente carnais. Explicarei, pois, o que
não posso dizer de uns pelo que direi dos outros.
1. O comer é destinado a conservar as pessoas. Ora como o comer sim-
plesmente, para alimentar e conservar a pessoa, é uma coisa boa, santa e pres-
crita; assim o que se requer no matrimônio para a geração dos filhos, e multi-
plicação das pessoas, é uma coisa boa e muito santa, porque é o fim principal
do casamento.
2. Comer, não para conservar a vida, mas para conservar a recíproca
conversação e condescendência que devemos uns aos outros, é coisa sobrema-
neira justa e honesta: e da mesma sorte a recíproca satisfação dos cônjuges no
santo matrimônio é chamada por São Paulo dívida; mas dívida tão grande que
ele não quer que uma das partes se possa dela isentar sem o livre e voluntário
consentimento da outra; e isso nem mesmo para as práticas da devoção, que é
o que me levou a dizer as palavras que a este respeito deixei no capítulo da San-
ta Comunhão (parte II, cap. XX): quanto menos, pois se poderão eximir por
caprichosas afetações de virtudes, ou pelas rixas e arrufos.
3. Como os que comem pela obrigação do mútuo trato devem comer li-
vremente, e não como por força, e ademais hão de procurar mostrar ter bom
apetite; assim também o débito conjugal deve ser satisfeito fielmente, franca-

264
mente, exatamente como se fosse com esperança de sucessão, ainda que por
alguma circunstância não haja semelhante esperança.
4. Comer não pelas duas primeiras razões, mas simplesmente para con-
tentar o apetite, é coisa tolerável, mas não louvável. Porque o simples prazer do
apetite sensual não pode ser coisa suficiente para tornar uma ação louvável.
Basta, porém para que seja tolerável.
5. Comer, não por simples apetite, mas por excesso e desordem, é coisa
mais ou menos censurável, conforme o grande ou pequeno excesso.
6. Ora, o excesso no comer não consiste somente na grandíssima quanti-
dade, mas também no modo e maneira como se come. É caso, para notar, cara
Filotéia, que o mel, tão próprio e salutar para as abelhas, lhes pode, contudo ser
tão nocivo que às vezes as põe doentes, como quando comem em demasia na
primavera; Porque isto traz-lhes fluxo do ventre, e algumas vezes fá-las morrer
inevitavelmente, como quando estão cobertas de mel no focinho e nas asas.
Na realidade, o comércio conjugal, que é tão santo, tão justo, tão reco-
mendável, tão útil à república, é, contudo em certos casos perigoso para os que
o praticam: porque às vezes faz adoecer as suas almas gravemente com o peca-
do venial, como sucede com os simples excessos, e algumas vezes dá-lhes a
morte pelo pecado mortal, como sucede quando a ordem estabelecida para a
geração dos filhos é violada e pervertida; nesse caso, consoante o desvio dessa
ordem é maior ou menor, os pecados são mais ou menos abomináveis, mas
sempre mortais. Porque, como a geração dos filhos é o primeiro e principal fim
do matrimônio, nunca se pode licitamente aberrar da ordem que ele requer:
embora por qualquer acidente, não possa por então levar-se a efeito; como su-
cede quando a esterilidade ou a gravidez atual estorvam a produção e a geração;
porque nestes casos o comércio corporal não deixa de ser justo e santo, contan-
to que se observem as regras de geração: não podendo jamais qualquer acidente
prejudicar a lei que o fim principal do matrimônio impôs. Na verdade, a infa-
me e execrável ação de Onan, no seu matrimônio, era detestável aos olhos de
Deus, como diz o citado texto sagrado no capítulo trigésimo oitavo do Gênesis;
e embora alguns heréticos do nosso tempo, mil vezes mais censuráveis que os
cínicos (de que fala São Jerônimo sobre a Epístola aos Efésios) tenham querido
dizer que era a perversa intenção deste malvado que desagradava a Deus, toda-
via a Escritura fala de outro modo, e assegura em particular que a mesma coisa
que ele fazia era detestável e abominável aos olhos de Deus.
7. É uma verdadeira prova de um espírito truanesco, vil, abjeto, e infame,
pensar nas iguarias e nos manjares antes do tempo da refeição, e ainda mais,
quando depois dela se saboreia o prazer que se teve, comendo, tomando-o por
assunto de conversas e pensamentos, e refocilando o espírito na lembrança do
prazer que se sentiu ao tragar os bocados, como fazem aqueles que antes do

265
jantar estão com o espírito preocupado no assador, e depois de jantar nos pra-
tos; pessoas dignas de serem moços de cozinha, que fazem, como diz São Pau-
lo, do seu ventre um deus; as pessoas honradas e dignas não pensam na mesa
senão quando se sentam a ela, e depois da refeição lavam as mãos e a boca para
não ficar com o gosto, nem com o cheiro do que comeram. O elefante não pas-
sa de um grande animal, mas é o mais digno que vive sobre a terra, e que tem
mais instinto; eu quero dizer-te aqui um rasgo da sua honestidade: nunca muda
de fêmea e ama ternamente a que escolheu, com a qual não tem coito senão de
três em três anos, e isto por apenas cinco dias, e tão secretamente que nunca é
visto neste ato; é, porém bem visto no sexto dia, no qual, antes de tudo, vai di-
reito a algum rio, onde lava todo o corpo, sem querer de modo algum voltar ao
rebanho antes de se ter purificado. Não são belas e honestas as qualidades deste
animal pelas quais convida os casados a não ficarem presos de afeição às sensu-
alidades e prazeres, que segundo o seu estado tiveram; mas, passadas estas, a
lavar delas o coração e o afeto, e a purificar-se o mais cedo possível, para poder
depois praticar com toda a liberdade de espírito as outras ações mais puras e
elevadas?
Neste aviso consiste a perfeita prática da excelente doutrina que São Pau-
lo ensina aos Coríntios: O tempo é breve, lhes diz, o que resta é que os que têm
mulheres sejam como se não as tivessem. Porque, segundo São Gregório, tem
uma mulher como se não a tivesse aquele que toma as consolações corporais
com ela de tal maneira que por isso não é desviado das solicitudes espirituais.
Ora, o que se disse do marido entende-se reciprocamente da mulher. Os que
usam deste mundo, diz o mesmo Apóstolo, hão de ser como se não usassem;
que todos, pois usem do mundo, cada um conforme o seu estado: mas de tal
sorte que, não lhe ganhando afeição, se fique livre e pronto para servir a Deus,
como se dele não usasse. É o grande mal do homem, diz Santo Agostinho, que-
rer gozar das coisas de que só deve usar, e querer usar daquelas de que só deve
gozar: devemos gozar das coisas espirituais, e das corporais somente usar; e
quando o uso destas se converte em gozo, a nossa alma racional converte-se,
outrossim, em alma brutal e bestial.
Creio ter dito tudo o que queria dizer, e dado a entender, sem dizer, o
que queria não dizer”. 106

2. Santa Juliana, Virgem e Mártir, recusou-se a coabitar com seu esposo pelo
fato do mesmo ser pagão e adorar os ídolos
No mesmo dia de seu casamento com Eulógio, prefeito de Nicomédia,
Juliana comunicou a seu marido que, se não se fizesse cristão, jamais consenti-

106
"Filotéia ou Introdução à Vida Devota" - São Francisco de Sales - págs. 347/352.

266
ria em ter relações conjugais com ele, e como este lhe fizera saber que não ti-
nha o menor propósito de converter-se à religião cristã, abandonou a seu espo-
so e retornou à casa de seus pais. O pai se negou a receber a filha, desautori-
zou o que havia feito, lhe golpeou brutalmente e a conduziu novamente ao do-
micilio de seu marido. Eulógio a recebeu benignamente. Depois, falando com
ela, disse-lhe:
- Minha dulcíssima Juliana, tens me decepcionado. Por que te negas a
cumprir teus deveres matrimoniais?
Juliana lhe respondeu:
- Os cumprirei se te convertes a meu Deus; mas, se não te convertes, não
poderei considerar-te como meu esposo.
- Senhora minha - replicou Eulógio - eu não posso fazer o que me pedes,
compreende-o; se o fizesse, o imperador mandaria que me cortassem a cabeça.
Juliana treplicou com vivacidade:
- De maneira que tu temes a teu rei, que é mortal, e pretendes que eu
não tema ao meu, que é imortal? Faz o que queres, mas tem a completa certe-
za de que jamais conseguirás nada de mim enquanto persistas em tua atitude.
Após este diálogo, Eulógio, na qualidade de prefeito, mandou que gol-
peassem selvagemente a sua esposa; depois ordenou que a prendessem pelos
cabelos. Durante meio dia a manteve suspensa do teto na forma indicada e, ao
longo daquelas horas, os criados, por ordem de seu senhor, várias vezes lança-
ram sobre a cabeça da santa cubos de chumbo derretido. Posteriormente, em
vista de que suportava o tormento como se não recebesse dano algum, Eulógio
mandou que a prendessem com cadeias e a jogassem num calabouço.
Quando estava já recolhida na prisão, apresentou-se ante ela o diabo, dis-
farçado de anjo bom, e lhe disse:
- Juliana, sou um enviado do Senhor. Ele mandou-me que visse ver-te e
me encarregou que te dissesse que deves sacrificar aos ídolos para livrar-te dos
tormentos que padeces e da horrorosa morte que pensam dar-te.
Ao ouvir tão estranha mensagem, Juliana chorou muito e rezou desta
forma: "Senhor, meu Deus! Faz que eu saiba quem é este que acaba de vir a
ver-me; ele assegura que é um enviado teu; porém, disse-me umas coisas tão
raras!" Imediatamente ouviu uma voz que lhe dizia: "Prende-o e obriga-o a que
ele mesmo confesse quem é". Imediatamente Juliana subjugou fortemente o
misterioso emissário e lhe exigiu que se identificasse, e o que pretendeu ao fa-
zer-se passar por anjo do céu; declarou ele que era um demônio enviado por
seu pai para enganá-la. Então Juliana lhe perguntou:
- Dizes que foi teu pai quem te enviou; mas quem é esse pai?
O diabo respondeu:

267
- Belzebu; é ele quem manda em nós e nos envia aos cristãos para que
realizemos perto deles más embaixadas; se não conseguimos fazer-lhes cair em
nossas tentações, em nosso regresso nos castiga cruelmente. Eu tive a desgraça
de que me encarregasse esta missão de confundir-te e, como não o tenho logra-
do, já sei o que me espera quando regressar ao inferno.
Mais coisas disse o demônio naquela ocasião a Juliana, entre outras esta:
que era muito difícil enganar os cristãos que ouviam missa, ou aos que rezavam
ou assistiam aos sermões.
Juliana amarrou as mãos do diabo pelas costas, logo o jogou no chão e
lhe deu uma boa surra com a ponta da cadeia à qual ela mesma havia sido pre-
sa. A cada golpe, o demônio, entre alaridos, gritava:
- Minha senhora Juliana! Tem compaixão de mim!
Nisto, por ordem do prefeito, que queria falar com ela, tiraram a prisio-
neira do cárcere; porém Juliana, sem soltar ao diabo, o levou consigo, arrastan-
do-o como se fosse uma besta. O diabo, caminhando após ela, cheio de vergo-
nha, suplicava:
- Minha senhora Juliana! Não me obrigues a fazer o ridículo desta manei-
ra. Quem, me vendo assim, se fiará doravante em minhas palavras? Dizem que
os cristãos sois clementes; tu, no entanto, não estás tendo clemência alguma
comigo.
Depois de haver passeado com o demônio desta forma, por ruas e pra-
ças, Juliana decidiu desfazer-se dele e o jogou numa latrina.
O prefeito, quando a prisioneira compareceu em sua presença, ordenou
que estendessem sobre uma roda e que a atormentassem, e tanto a torturaram
que lhe quebraram todos os ossos até o extremo de que o tutano dos mesmos
ficou derramado pelo chão. Em determinado momento surgiu naquele lugar
um anjo do Senhor, rompeu a roca e curou repentinamente a santa. Quantos
presenciaram este milagre se converteram ao cristianismo, a exceção do prefei-
to, que permaneceu obstinado em sua infidelidade e mandou decapitar aos
quinhentos homens e cento e trinta mulheres que acabavam de converter-se.
Seguidamente ordenou que metessem Juliana numa tina cheia de chumbo der-
retido; porém, quando a santa foi mergulhada no recipiente aquele espesso e
abrasador líquido transformou-se repentinamente em água transparente e mor-
na, como a de um banho muito agradável.
Ante este novo milagre o prefeito começou a maldizer de seus próprios
deuses e a jogar-lhes na cara que fossem incapazes de castigar uma jovenzinha
da que haviam recebido e estavam recebendo tantos desprezos e desgostos, e,
para terminar de uma vez, mandou que cortassem a cabeça de sua esposa.
Quando levavam Juliana ao lugar designado para sua decapitação, saiu ao
encontro da comitiva um jovem, que na realidade era aquele diabo anterior-

268
mente castigado e humilhado pela prisioneira, e, dirigindo-se aos verdugos en-
carregados da execução, disse-lhes aos gritos:
- Não tenhais compaixão dela! Não a merece, porque não tem feito mais
que desacreditar constantemente de vossos deuses. A mim mesmo, à noite pas-
sada, me açoitou sem piedade! Dai-lhe agora seu merecido!
Nisto Juliana abriu os olhos, o olhou atentamente, e como o diabo notas-
se que havia sido reconhecido por ela,deitou a correr dizendo aos gritos:
- Ai! Desgraçado de mim! Esta mulher é capaz de prender-me outra vez e
de amarrar-me e açoitar-me de novo!
Juliana morreu decapitada; porém poucos dias depois de seu martírio,
indo seu marido o prefeito a bordo de um navio com outros trinta e quatro
homens, se desencadeou uma forte tempestade e o navio foi a pique, e tanto
eles como seus companheiros afundaram no fundo do mar e pereceram afoga-
dos; seus corpos posteriormente subiram à superfície, porém as ondas os lança-
ram a um litoral onde foram devorados por feras e aves de rapina. 107

3. A castidade conjugal exige também pureza na fé


O rei pediu à rainha que fosse falar com sua irmã, pois a mesma se recu-
sava a ter relações conjugais com seu marido.
...Regressou a rainha à corte e perguntou-lhe o rei:
- Como hás tardado tanto em voltar?
Sua esposa lhe respondeu:
- Quando saí de casa acreditava como vós que Migdonia, minha irmã,
havia cometido uma enorme estupidez; porém convenci-me de que tem agido
com grande sabedoria; ela me pôs em contato com o apóstolo e ele me tem
feito conhecer o caminho da verdade e compreender claramente que os verda-
deiros néscios são aqueles que não crêem em Cristo.
Também a rainha se negou ora em diante de ter relações conjugais com
seu esposo, o qual, assombrado até a estupefação, chamou a seu cunhado e lhe
disse:
- Por ajudar-te a recuperar a tua mulher tenho perdido eu a minha, que
se comporta comigo exatamente igual que a tua contigo.
Mandou então que fossem em busca do apóstolo e que atado de pés e
mãos o trouxessem a sua presença. Quando o teve ante si lhe ordenou que sem
perca de tempo recordasse a ambas as mulheres a obrigação que tinham de
manter vida marital com seus respectivos esposos e as exortasse que a cumpris-
sem. São Tomé, entretanto, respondeu ao monarca que enquanto ele e seu cu-
nhado persistissem no erro religioso em que viviam elas fariam muito bem em

107
"La Leyenda Dorada" - vol. I - pp. 174/175.

269
não aceder a suas pretensões e em negar-se às relações conjugais. Para conven-
cer ao soberano de que a resposta que acabava de dar-lhe era razoável, expôs-
lhe três exemplos fundados, segundo ele mesmo declarou, um no próprio rei,
outro numa torre e outro numa fonte.
- Não é verdade, disse-lhe, que tu és rei, não toleras ao teu lado servido-
res imundos? Não exiges uma decente limpeza aos servos e servas que andam
próximos de ti? Pois também Deus, que é mais rei que tu, deseja e exige que
quem lhe sirva se apresente a ele com decoro e honestidade. Podes razoavel-
mente declarar-me culpável por pregar que o rei do céu pede a seus servidores
o mesmo que tu pedes aos teus?
- Construí uma torre muito alta. Crês que agora, porque a ti se te agrada,
vou a derrubá-la?
- Desejava tirar água, cavei nas entranhas da terra e logrei que da profun-
didade do abismo brotasse um manancial. Como se te ocorre pensar que agora,
não mais que por tu o digas, vou obstruir essa fonte? 108

4. A castidade deve continuar na viuvez


O pai de Dom João IV, rei de Portugal, Dom Teodósio, ao enviuvar não
procurou novo casamento. O motivo: pretendia praticar a castidade de um mo-
do mais perfeito: através da renúncia.
Morta a Senhora Duquesa de Bragança D. Ana de Velasco, não tornou o
Duque D. Teodósio a casar, porquanto era tão amigo da castidade, que segun-
do afirmam seus criados antigos, e modernos, e as pessoas Eclesiásticas, que
mais sabiam de sua vida, e costumes, em toda sua vida não conheceu outra mu-
lher, senão aquela com quem foi casado. Tratou de criar seus três filhos na pu-
reza da santa Fé Católica, e bons, e louváveis costumes, dando-lhes por mestre
o Doutor Jerônimo Soares, varão de grande prudência, letras, e virtude, o qual
se desvelou muito para que aqueles Príncipes saíssem consumados em todos os
bons costumes. Também os mandou ensinar em algumas artes mecânicas, se-
gundo a inclinação de cada um, porque para Príncipes tudo isto é necessário,
para sair ao encontro às adversidades, que as mudanças do tempo costumam
trazer consigo. Foi o Duque Dom Teodósio varão de santos e louváveis costu-
mes, e sua vida mais parecia de um perfeito Religioso, que de Duque e Príncipe
secular; todos os dias rezava o ofício divino das sete horas canônicas; a humil-
dade nele era natural, e tanto que se não era em um dia de festa, e de ostenta-
ção, sempre andava vestido de um trajo ordinário, suas palavras eram cheias de
benignidade, seu semblante majestativo, porém mui alegre; mentira nunca ja-
mais se ouviu de sua boca. Gostava muito de tratar com pessoas consumadas

108
"La Leyenda Dorada" - vol. I págs. 50/51

270
em letras, e virtude; grande aborrecedor das vaidades do mundo, inclinado a
ler livros santos e honestos; quando saía por a Quaresma a correr os santos
passos, ia descalço, e vestido todo de luto com opa de rabo, a qual levavam três,
e quatro moças da Câmara; na semana santa desde que se encerrava o Santís-
simo Sacramento, na quinta-feira até o dia de Páscoa, que se cantava a Aleluia,
não saía do côro de sua Capela, nem se deitava em cama, antes ali estava em
oração, acompanhando o Santíssimo Sacramento, o qual até o dia de Páscoa
estava encerrado com grande perfeição; no dia da Quinta-Feira de ceia, depois
da pregação do Mandato, mandava mostrar ao povo o Santo Sudário, que é o
verdadeiro lençol, em que foi amortalhado, e posto no sepulcro o corpo de
nosso Senhor Jesus Cristo. E este é o maior morgado da Casa de Bragança; e
o modo com que se mostrava ao grande número de gentes, que naquele dia se
ajuntam ali de todas a vilas circunvizinhas, era este. Vestia-se o Duque de luto,
e descalços os pés, e seus irmãos, e filhos, e cada um com sua tocha acesa nas
mãos, iam ao oratório secreto da casa, no qual estão muitas santas relíquias, e
por um Sacerdote, o qual ordinariamente era o Padre Jerônimo Dias seu esmo-
ler, varão de grande virtude, mandava abrir um cofre, forrado por fora, e por
dentro de veludo negro matizado com pregaria, e ferramenta de prata, dentro
no qual estava outro cofrezinho mais pequeno, de altura de um palmo, e quatro
de comprido, também forrado de veludo negro, e com pregaria, e ferramenta
de ouro, e dali tirava o Padre o Santo Sudário, não com poucas lágrimas, der-
ramados por os olhos do santo Duque, e com grande veneração, e silêncio, vi-
nham a sair a uma janela, que cai sobre o terreiro da porta dos Nós, a qual esta-
va toda armada de panos de damasco negro, e dali o mostrava o sacerdote ao
povo, e eram tantas as lágrimas, soluços, e gemidos de todo o povo, vendo a
própria figura de Cristo nosso Redentor ali estampada, que eu me não atrevo a
escreve-la com a pena.
"Na quinta-feira da Ceia do Senhor lavava o Duque os pés a doze pobres,
e lhes dava de comer, servindo-os à mesa, e os vestia com vestidos honestos; e
com tanta humildade fazia este ato, que em todos os circunstantes causava de-
voção, e lágrimas, originadas de compunção. No dia da Páscoa da Ressurreição
fazia o Duque uma grandiosa festa, e assoalhava todos os ricos ornamentos
Eclesiásticos, que tinha no tesouro de sua capela, e mandava armar suas mais
bizarras tapeçarias, por os lugares onde havia de passar a procissão do Santíssi-
mo, e não somente todos os seus capelães iam com capas de Asperges de bro-
cado, e tela fina, mas também era lícito, e permitido a todos os Sacerdotes da-
quela Vila, os quais são muitos o entrarem na sacristia da sua capela com suas
sobrepelizes, aonde o Tesoureiro-mor os revestia a todos com capas; acompa-
nhavam esta procissão todos os cavaleiros das quatro Ordens militares, que ser-
viam a Casa de Bragança, assistentes em Vila Viçosa, todos com os mantos, e

271
insígnias militares de Cristo, de Santiago, de São Bento de Avis, e de S. João de
Malta; a música era a melhor que em Portugal havia, porque se prezava o Du-
que de ter em sua Capela os melhores músicos do Reino, e lhes dava grandes
partidos, e se eram Sacerdotes pensões nos benefícios, que vagavam em suas
terras; os estrondos dos atabales, charamelas, e trombetas, as folias, e chacotas
atroavam os ares com suave melodia, e o Duque com seus irmãos, enquanto os
teve, e depois com seus filhos, e com alguns fidalgos da primeira classe, paren-
tes da Casa, levava as varas do pálio, debaixo do qual ia o Santíssimo. Os entre-
tenimentos do Duque eram ir a ver fazer várias curiosidades de vidro, em dois
fornos que ali tinha dos muros de seu paço para dentro, com oficiais estrangei-
ros, mestres na arte deste ministério. Muitas vezes ia à sua tapada, que é a me-
lhor coisa que tem Espanha, por a abundância de diferentes castas de animais,
que nada tem, e se criam, depois de trazidos de longes terras, e outras vezes saía
à caça de porcos monteses, coisa a que era inclinado.

5. A castidade matrimonial; exemplos de santos casais

Ouçamos a voz dos Papas.


Discurso de Pio XII sobre o papel da esposa dentro do lar, pronunciado
a 11 de março de 1942, ressaltando ser ela “o sol da família”:
“A esposa vem a ser como o sol que ilumina a família. Ouvi o que dela
diz a Sagrada Escritura: Mulher formosa deleita o marido, mulher modesta du-
plica seu encanto. O sol brilha no céu do Senhor, a mulher bela, em sua casa
bem regalada.
“Sim, a esposa e mãe é o sol da família. É o sol com sua generosidade e
abnegação, com sua constante prontidão, com sua delicadeza vigilante e previ-
dente em tudo quanto pode alegrar a vida de seu marido e de seus filhos. Ela
difunde em torno de si a luz e o calor; e, se ocorre dizer-se de um matrimônio
que é feliz quando cada um dos cônjuges, ao contrário, se consagra a fazer feliz
não a si mesmo, mas ao outro, este nobre sentimento e intenção, ainda que
obrigue a ambos, é, sem embargo, virtude principal da mulher, que lhe nasce
com as palpitações de mãe e com a maturidade do coração; maturidade que, se
recebe amarguras, não quer dar senão alegrias; se recebe humilhações, não
quer devolver senão dignidade e respeito, semelhante ao sol que, com seus al-
bores, alegra a nebulosa manhã e doura as nuvens com os raios de seu ocaso.
“A esposa é o sol da família com a claridade de seu olhar e com o fogo
de sua palavra; olhar e palavra que penetram docemente na alma, a vencem e
enternecem e se elevam fora do tumulto das paixões, arrastando o homem para
a alegria do bem e da convivência familiar, depois de uma larga jornada de con-

272
tinuado e muitas vezes fatigante trabalho no escritório ou no campo, ou nas exi-
gentes atividades do comércio e da indústria.
“A esposa é o sol da família com sua ingênua natureza, com sua digna
sensibilidade e com sua majestade cristã e honesta, tanto no recolhimento e na
retidão do espírito quanto na sutil harmonia de seu porte e de seu vestir, de seu
adorno e de sua modéstia, reservada a par de afetuosa. Sentimentos delicados,
graciosos gestos do rosto, ingênuos silêncios e sorrisos, um condescendente si-
nal de cabeça, lhe dão a graça de uma flor seleta e sem embarbo singela que
abre sua corola para receber e refletir as cores do sol.
“Oh, se soubésseis quão profundos sentimentos de amor e de gratidão
suscita e imprime no coração do pai de família e dos filhos semelhante imagem
de esposa e de mãe!”
Após o texto abaixo, recomendamos também ler, em apêndice no final
deste trabalho, a Encíclica de João Paulo II Mulieris dignitatem sobre a digni-
dade da mulher.
“O principal e mais natural viveiro onde devem germinar e desabrochar
as flores, que se hão de desenvolver no Seminário, é sem dúvida a família, uma
família em tudo cristã no pensar e no viver. Consta, efetivamente, que a maior
parte dos Bispos e Sacerdotes santos, ‘cujos louvores apregoa a Igreja’ (cf. Eccli.
XLIV, 15), devem os primeiros germes, tanto da sua dignidade como da sua
santidade, já a um pai ilustre pela sua fé e virtude cristã, já a uma mãe singular-
mente piedosa e honesta, já enfim a toda a família, cujos membros reproduziam
inteiramente e perfeitamente o ideal da caridade para com Deus e para com o
próximo”109

A castidade perfeita dos consagrados, estímulo para a prática da castidade pró-


pria ao estado conjugal

Numa alocução aos pais e mães de família, em 3.5.1959, assim falou Jo-
ão XXIII:
“No mundo contemporâneo, o casamento e a família são, infelizmente,
com muita frequência atacados de múltiplas formas; princípios fundamentais da
moral natural nele são impunemente negados ou desprezados; e quantos lares
cristãos, pouco a pouco penetrados por um ambiente de naturalismo ou de
imoralidade latente, vêm a perder de vista a grandeza sobrenatural de sua voca-
ção. Como se torna então importante que neste domínio a doutrina católica –
tão firme, tão clara, tão rica – seja de alguma forma ilustrada e colocada ao al-
cance de todos pelo exemplo de católicos fervorosos que, em sua conduta de

109
“Ad Catholici Sacerdotti”, de Pio XI, Documentos Pontifícios, n. 8, Ed. Vozes, págs. 48/49)

273
esposos, de pais e de mães de família, se esforçam por ser plenamente fiéis ao
ideal traçado pelo próprio Senhor!
(...) Prossegui com confiança e humildade em vosso esforço para tender à
perfeição cristã no âmbito da vossa vida conjugal e familiar. Se é verdade que o
estado de virgindade é, por natureza, superior ao do matrimônio, esta afirma-
ção não se opõe em nada, vós o sabeis, ao convite endereçado a todos os fiéis,
para serem “perfeitos como o Pai celeste é perfeito” (Mt V, 48).
A própria honra que a Igreja presta à virgindade cristã é preciosa para os
esposos; pois a castidade perfeita das almas consagradas, é uma constante lem-
brança do ideal do amor de Deus que deve, também no casamento, animar e
sustentar a prática da castidade própria a este estado”.110

Matrimônio, uma vocação cristã

Paulo VI, na Encíclica Humanae Vitae (1968), escreveu:

“Os esposos cristãos dóceis à voz d’Ele [de Cristo], recordem que sua
vocação cristã iniciada com o batismo, especificou-se e reforçou-se depois com
o sacramento do matrimônio. Por isso, os cônjuges são fortalecidos e como que
consagrados pelo cumprimento fiel dos próprios deveres, pela atuação da pró-
pria vocação até à perfeição e por um testemunho cristão que lhes é próprio
face ao mundo. A eles o Senhor confia a tarefa de tornar visível aos homens a
santidade e a suavidade da lei que une o amor recíproco dos esposos, com sua
cooperação, ao amor de Deus, autor da vida humana”.

A sublime vocação de ser mãe

Abaixo transcrevemos parte do estudo feito pelo Cardeal Ângelo Herre-


ra, então Bispo de Málaga, “Verbum Vitae – La Palavra de Cristo”, publicado
na obra do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira “Nobreza e Elites Tradicionais Aná-
logas” (Editora Civilização), constante de vários esquemas de homilias sobre a
aristocracia:

Aristocracia na família
“A. Por certa analogia pode-se dizer que o poder aristocrático dentro do
lar está reservado à mulher.
a) A autoridade corresponde ao marido.
b) Mas a mulher dentro da família é um elemento de moderação e de
conselho.
110
Discursos, Mensagens e Colóquios do Santo Padre João XXIII, tip. Poliglota vaticana, vol. I, págs. 296-297.

274
c) É um elemento de relação entre pai e filhos.
1. Por ela se tornam muitas vezes eficazes, junto aos filhos, as ordens do
pai.
2. Através dela chegam ao pai as necessidades e os desejos dos filhos.
B. São Tomás diz que o pai governa os filhos com o governo “despóti-
co”, no sentido clássico da palavra, e a mulher com o governo “político”.
a) Porque a mulher é conselheira e participa do governo do pai.
b) A mulher, por outro lado, tem como que a representação da caridade
dentro da família. É como que a personificação da misericórdia no lar.
c) É a que deve estar mais atenta às necessidades dos filhos e criados e
mais pronta a mover o pai a remedia-los.
C. No Evangelho aparece muito claro o contraste entre a falta de miseri-
córdia, de caridade, de espírito aristocrático dos apóstolos na cena que comen-
tamos111 e a inefável missão aristocrática que desempenhou Maria Santíssima
nas Bodas de Caná.
a) Atenta às necessidades dos demais, Maria aproxima-se de quem pode
remedia-las para as expor.
b) E depois se aproxima do povo, representado pelos criados, para mos-
trar-lhes que devem ser obedientes” (op. cit. pág. 246)

O papel da mãe na família


Feliz o homem a quem Deus deu uma santa mãe!, essa expressão apare-
ce nos lábios de vários educadores católicos. Quantas mães imprimiram pro-
fundamente na alma dos filhos o respeito, o culto, a adoração de Deus; desse
Deus de quem elas próprias eram, pela pureza da sua vida, uma imagem viva! A
mulher cristã, como mãe, santifica o filho; como filha, edifica o pai; como irmã,
ajuda o irmão; como esposa, santifica o marido, exercendo assim um papel
eminentemente aristocrático no lar.
A aspiração da santidade deve ser sempre a maior entre as mães. “Quero
fazer do meu filho um santo”, dizia a mãe de Santo Atanásio. “Mil vezes obri-
gado, meu Deus, por me terdes dado uma santa mãe”, exclamava, quando da
morte de Santa Emélia, o seu filho São Basílio Magno. “Oh meu Deus!, devo
tudo à minha mãe!” , dizia Santo Agostinho.
Como reconhecimento por tê-lo marcado tão profundamente pela dou-
trina de Cristo, São Gregório Magno mandou pintar a mãe Sílvia ao seu lado,
vestida de branco e com a mitra dos doutores, estendendo dois dedos da mão
direita, como para abençoar e tendo na mão esquerda o livro dos Santos Evan-
gelhos sob os olhos do filho.

111
O presente esquema é um dos vinte que desenvolvem o Evangelho da multiplicação dos pães (Jo 6, 1-15)

275
Quem nos deu São Bernardo e o tornou tão puro, tão forte, tão abrasado
no amor de Deus? A sua mãe, Aleth, embora saibamos que tudo nos santos
depende muito mais das graças divinas. Mas as mães são como os Santos Anjos
que ajudam abrir as janelas da alma para que as graças nela penetrem.
O próprio Napoleão teve de reconhecer: “O futuro de uma criança é
obra da sua mãe”. Quando se é alguém, é muito difícil que isso não se deva,
além das graças de Deus, à mãe. “Oh meu pai e minha mãe!, que vivestes tão
modestamente – disse Pasteur – é a vós que tudo devo! Oh minha valorosa
mãe, comunicaste-me o vosso entusiasmo. Se sempre associei a grandeza da
ciência à grandeza da pátria, é porque estava cheio dos sentimentos que me
inspirastes”. A alguém que o felicitava por ter desde a infância o amor à vida de
piedade, o Santo Cura d’Ars disse: “Depois de Deus, isso deve-se à minha
mãe”.
Quase todos os santos receberam das mães as bases da sua santidade.
Pode-se dizer igualmente que os grandes homens foram formados pelas
mães. O Bispo Cartulfo, numa carta dirigida a Carlos Magno, faz-lhe recordar a
sua mãe Berta e diz: “Oh Rei!, se Deus Todo-Poderoso vos elevou em honra e
glória acima dos vossos contemporâneos e de todos os vossos predecessores,
ficastes a devê-lo sobretudo às virtudes da vossa mãe!”
Duas mães piedosas e santas tiveram papel importante na formação de
dois grandes reis santos, São Luís, rei de França, e São Fernando, rei de Castela
e de Leão. Dizem os cronistas que D. Branca, mãe de São Luís, foi tudo para
ele e o Reino. A mãe de São Fernando chorava de emoção ao descobrir que
tinha um filho santo, fato que não se dava pelo fato do mesmo ser rei.
A mãe é no lar aquela chama resplandecente de que fala o Evangelho, a
irradiar sobre todos a luz da fé e o fogo da caridade divina. Compete-lhe ali-
mentar na família o pensamento da soberania de Deus, nosso primeiro princí-
pio e nosso último fim, o amor e reconhecimento que devemos ter pela sua
infinita bondade, o temor da sua justiça, o espírito de religião que nos une a ele,
a pureza dos costumes, a honestidade dos atos e a sinceridade das palavras, o
devotamento e ajuda mútua, o trabalho e a temperança.
Uma escritora católica baiana, que viveu grande parte de sua vida no sé-
culo XIX, escreveu: "O amor maternal, desde que vem de Deus, é um elemen-
to de ordem e não de desordem. Deus pôs no coração das mães esse sentimen-
to incomparável para fazê-las cumprir sua difícil tarefa de maneira mais suave, e
como que para mais obrigá-las a sacrificar pelo verdadeiro bem de seus filhos
até mesmo esse afeto, quando necessário seja. Se a mãe não amasse os frutos
de suas entranhas não suportaria resignada e forte os trabalhos que eles custam,
e é preciso que ela os ame mais do que a si mesma para sofrer a dor de castigá-
los quando o merecem. Mas a maior parte das mulheres deixam-se inebriar

276
demasiado pela ternura, cegam-se e não enxergam defeitos para correção, ou
esmorecem e não têm ânimo de aplicá-la. Pobres criaturas, essas. Os defeitos
avigoram-se, crescem com o crescer da criança, e lá vem o dia em que a mãe os
vê e treme, quer arrancá-los e não pode. As raízes entraram profundas, a crian-
ça torna-se adulta e à sociedade pertence agora fazer o que a mãe não fez: casti-
gar. Mas que diferença de castigo! E, se acaso é falta ou crime que se furta aos
códigos, faltas e crimes não se furtam nunca à justiça indefectível de Deus. E se
ainda por ventura não chegam os defeitos a tais extremos e a sociedade não os
pune com os rigores da lei, não deixa de puni-los contudo; pune-os com o des-
prezo, com o ridículo, de mil maneiras.112

6. Maternidade e virgindade, dois ornamentos da mulher


O ilustre teólogo, Fr. Victorino Rodríguez y Rodríguez, comentando a
Carta Apostólica Mulieris dignitatem, de João Paulo II, estabelece este paralelo
entre a maternidade e a virgindade:
“A maternidade e as virtudes da mulher esposa e mãe têm sido muito va-
lorizadas tanto no Antigo Testamento (Prov. XXXI, 10-31) como no Novo e a
História da Igreja. Pense-se, por exemplo, na vida de Santa Mônica, narrada
por seu filho Santo Agostinho, nas “Confissões”. João Paulo II assinala com
admirável realismo antropológico que “embora o fato de serem pais pertence
aos dois, é uma realidade mais profunda na mulher, especialmente no período
pré-natal. Nenhum programa de igualdade de direitos do homem e da mulher é
válido se não tem em conta isto, de um modo essencial.” “A maternidade, sob
o aspecto pessoal-ético expressa uma criatividade muito importante da mulher,
da qual depende de maneira decisiva a mesma humanidade da nova criatura”
(Mulieris dignitatem, n. 18). (...)
“A dignidade da virgindade é plenamente valorizada e promovida no
Novo Testamento. “O ideal evangélico da virgindade – diz João Paulo II –
constitui uma clara novidade em relação à tradição do Antigo Testamento”
(Mulieris dignitatem, n. 20). Trata-se de uma especial opção pelo Reino dos
Céus, que é a graça especial de Deus (Mt. XIX, 11). “Tendo como base o
Evangelho, desenvolveu-se e se aprofundou o sentido da virgindade como vo-
cação também da mulher, com o que se reafirma sua dignidade à semelhança
da Virgem de Nazaré” (Mulieris dignitatem, n. 20). É a correspondência à doa-
ção total de Cristo, dando-se totalmente a Ele; mais que um “não”, contém um
profundo “sim” de amor total e indivisível.
“Na virgindade consagrada, a renúncia à maternidade biológica está am-
plamente compensada pela maternidade espiritual, refletida, em muitas institui-

112
Amélia Rodrigues, in "Mestra e Mãe", publicação dos Salesianos, de Salvador (BA).

277
ções, na assistência benéfica e educativa. Muitas mulheres mereceram a honra
dos altares por esse caminho”. 113

7. Exemplos de mães que cumpriram seu papel na formação moral familiar em


busca da santidade

Santa Mônica, a mãe do grande Santo Agostinho, teve importante papel


na conversão do mesmo. Conta santo Afonso de Ligório: "Santo Agostinho nos
ensina que sua mãe, Santa Mônica, vivia em paz com seu marido, apesar de ele
ser de um caráter difícil e irascível. Suas vizinhas, em cujas casas reinava fre-
qüentemente a discórdia, lhe perguntaram um dia como ela fazia para conser-
var a paz de que gozava. A Santa lhes respondeu: "Os desagrados que sentis de
parte de vossos maridos, estai persuadidas de que não são tanto causados pelos
defeitos deles, mas pelos vossos: replicando-lhes, vós amargurareis o humor
deles, e caireis assim continuamente na confusão. Quando vejo meu marido de
mau humor, não digo nada, suporto-o pacientemente, e rezo a Deus por ele;
deste modo, vivo em paz. Fazei assim, e vivereis também vós em paz".
Mais recentemente, São João Batista Vianey, o Cura d'Ars, quando era
felicitado por causa de seu prematuro gosto pela piedade, dizia: "Depois de
113
Fr. Victorino Rodríguez y Rodríguez, O.P., “Estudios de Antropologia Teológica, Speiro, Madrid, 1991, pp.
59-60.

278
Deus, isto é obra de minha mãe. Como era prudente! A virtude passa facilmen-
te do coração das mães para o coração dos filhos... Jamais um filho que tem a
felicidade de ter uma boa mãe deveria olhá-la ou pensar nela sem chorar". A
mãe dele, enquanto se ocupava dos afazeres do lar, instruía seu pequeno filho
por meio de palavras simples, com frases infantis. Foi assim que ela lhe ensi-
nou, com o Pater e a Ave Maria, as noções elementares sobre Deus e sobre a
alma. Quando iam à Missa, ela ficava ajoelhada no banquinho da família e ex-
plicava ao filho os diversos movimentos do Padre. O menino rapidamente to-
mou gosto pelas cerimônias santas.

"Mamma Margherita", cujo nome era Margherita Occhiena foi outra mãe
que formou de forma extraordinária seu filho, São João Bosco. Margherita Oc-
chiena nasceu em Capriglio, (Asti, norte da Itália), a 1 de abril de 1788. Casada
com Francesco Bosco, mudou-se depois para I Becchi. Depois da morte de seu
marido, aos 29 anos, teve que tomar conta da família sozinha numa época mui-
to atribulada.
Mulher forte, de idéias claras, de fé rija, muito decidida, seguia um estilo
de vida simples e preocupou-se principalmente em dá uma educação católica a
seus filhos. Teve que mandar estudar fora ao menor dos filhos, João Bosco,
com o objetivo de oferecer-lhe melhores oportunidades e também de trazer
mais paz no lar, pois os mais velhos o tratavam muito mal.

279
Quando São João Bosco foi ordenado sacerdote, em 1848, Margherita
resolveu acompanhá-lo, contando ela então com seus 58 anos de idade, e o se-
guiu em sua missão entre os meninos pobres e abandonados de Turim. Duran-
te 10 anos mãe e filho uniram suas vidas com o início da Congregação Salesia-
na. Foi ela de capital importância para São João Bosco absorver os princípios
que praticou, especialmente o “Sistema Preventivo” aplicado por ele aos seus
pupilos.
É tida como co-fundadora da Família Salesiana, capaz de formar tantos
santos, como São Domingos Sávio, Miguel Ruas e outros. Era analfabeta, mas
vivia cheia daquela sabedoria que vem do alto e que só a posse de Deus o con-
cede aos justos e santos como ela. Para ela Deus era o primeiro em tudo, con-
sumindo sua vida no serviço divino, na pobreza, na oração e no martírio.
Vejam o conselho que ela dá ao filho logo após sua ordenação sacerdo-
tal: "João, agora és Padre! Agora dirás Missa todos os dias. Lembra-te bem dis-
so: começar a dizer missa é começar a sofrer. Não o perceberás logo; mas um
dia, mais tarde, verás que tua mãe tinha razão. Todas as manhãs, tenho certeza,
hás de rezar por mim. Não te peço outra coisa. De hoje em diante pensa so-
mente na salvação das almas e não te preocupes absolutamente comigo". Este
conselho apenas reflete toda uma educação de décadas que a mãe dera àquele
filho, quando incutiu-lhe o espírito de oração e de sacrifícios, de tal forma que
o fez tornar-se santo.
Não restam dúvidas de que "Mamma Margherita" era santa e dotada do
dom de discernimento dos espíritos. Tinha agudíssima percepção dos perigos
que ameaçavam o filho e sempre lhe prevenia, principalmente na época em que
ele sofreu vários atentados e foi avisado por ela.
Desde a infância de Dom Bosco, Mamma Margherita procurou incutir-
lhe um verdadeiro horror pela impureza, grande amor á pobreza, entranhado
enlevo pelas coisas da Igreja Católica e piedosa devoção à Nossa Senhora. O
filho via que sua mãe era uma pessoa de grande temperança, sem febricitações,
maus humores ou atitudes extravagantes. Formava seus filhos contando-lhes
histórias de guerreiros, príncipes, castelos e princesas. A História Sagrada era
contada para eles de forma cativante. Dom Bosco dizia que era uma boa nar-
radora de histórias para crianças.
Naquela época havia uma falsa idéia de que a Primeira Comunhão só
deveria ser dada quando a pessoa ficasse adulta. Ao contrário, Mamma Mar-
gherita preparou Dom Bosco desde cedo para receber Cristo Sacramentado.
Aos onze anos de idade, compareceu ele perante o Sacerdote para ser interro-
gado se estava preparado para receber a Sagra Hóstia. O padre ficou surpreso
quando soube que a humilde camponesa havia preparado o próprio filho. E no
dia da Comunhão, ela não o deixou falar com ninguém antes da Missa, fazen-

280
do-o ver que aquele era um dia especial e muito solene para sua alma. Depois,
ajudou-o na Ação de Graças e deu-lhes estes conselhos: comungar sempre, di-
zer tudo na confissão, jamais cometer sacrilégio comungando indignamente e
fugir das más companhias como se foge da peste.
Apesar de ser uma pobre camponesa, sabia se manter sempre bem com-
posta no trajar, asseada e com a roupa alinhada. Mantinha uma conversação tão
agradável que atraía pessoas de alta projeção social, como o Marquês de Palla-
vicini e alguns hierarcas famosos, os quais se deliciavam ouvindo-a conversar. A
todos recebia com cândida naturalidade. Seu amor à pobreza era tão grande
que fez a seguinte advertência quando soube que o filho queria ser sacerdote:
"Se resolver seguir a carreira de padre secular e, por desgraça, tornar-se rico,
não lhe farei uma só visita, nunca porei os pés na sua casa".
No leito de morte, Mamma Margherita afirmou a São João Bosco: "Se
você soubesse como o amei. Mas na eternidade ainda será melhor. Fiz tudo o
que pude. Se algumas vezes pareci severa, foi para o bem. Diga às crianças que
trabalhei por elas como uma mãe". Alguns anos após sua morte, ela apareceu
em sonhos ao filho e disse que estava no céu, tendo passado antes pelo purga-
tório. Depois, concluiu: "Eu o espero, porque você e eu não podemos estar se-
parados".
A 31 de janeiro de 1940, afirmou o Papa Pio XII, referindo-se a ambos:
"A mãe que ele teve explica, em grande parte, o pai que foi para os outros".
Mamma Margherita havia falecido no ano de 1856. Através de decreto publica-
do pela Congregação para a Causa dos Santos o Papa Bento XVI a declarou
Venerável no dia 23 de outubrode 2006. A notícia ocorre a poucos dias de se
festejar o sesquicentenário (150 anos) de sua morte, a 26 de novembro de
2006. Os salesianos afirmam que a Congregação Salesiana nasceu no regaço de
Mamá Margherita, que lhes legou sua presença maternal e feminina no Sistema
Preventivo da escola de Dom Bosco. Morreu aos 68 anos, em Turim, no dia 26
de novembro de 1856.
Santa Clotilde, esposa de Clóvis, rei dos francos (séc. V e VI), era muito
obediente e submissa a seu marido; e assim conseguiu ganhá-lo para Cristo.
Costumava ela dizer: "Deixei minha própria vontade esquecida na casa de meus
pais. Aqui não tenho outra que a de meu marido". Por isso Clóvis disse mais de
uma vez: "Eu venci cem batalhas, mas fui vencido por Clotilde".
Santa Hedviges (séc. XIII), era de sangue real (Condessa, filha do Conde
Bertoldo, duque de Caríntia, margrave de Meran e conde do Tirol) e foi torna-
da mais ilustre ainda pela inocência e pureza de sua vida. Normalmente se tem
idéia de que toda santa ou santo provém de uma Ordem religiosa. No entanto,
existem muitos santos leigos, às vezes até casados e pais de família. Ou, melhor
dizendo, santas casadas e mães de família. Santa Hedviges tinha apenas 12 anos

281
quando seus pais a casaram com Henrique, duque da Polônia. Foi santo este
casamento; dele nasceram seis filhos que ela educou no temor de Deus.
Aos vinte anos, de comum acordo com seu esposo, tomou a resolução
de viver em completa continência, e ambos fizeram votos neste sentido perante
a autoridade eclesiástica local. Com permissão de seu esposo, Santa Hedviges
dedicava os dias de festa, bem como a Quaresma, a exercícios de mortificações.
Um de seus lemas era: "Quanto mais ilustre for pela origem, tanto mais a pes-
soa se deve distinguir pela virtude, e quanto mais alta a posição social, tanto
maior obrigação se tem de edificar o próximo pelo bom exemplo". Este lema
ela fazia cumprir em ações, era parte de sua vida, e foi exemplo vivo ao esposo
e filhos.

Santa Isabel de Portugal foi outra santa de sangue real, rainha de Portu-
gal, uma perfeita mãe de família. Demonstrou-o pelo terno afeto e submissão
de que deu provas a seu indigno esposo, que a perseguiu tenazmente, para o
qual conseguiu com suas orações a graça de uma santa morte. Maior desvelo ela
manifestou pelos filhos que lhe foram rebeldes, aos quais ela sempre dedicou
esmerado cuidado em ministrar uma educação cristã.
É considerada a mais querida e popular rainha de Portugal. Com doze
anos apenas, veio para Portugal, tendo se casado em Trancoso com Dom Di-
nis. Trazia consigo a fama de excepcionais virtudes que a natureza acrescentara
aos dotes físicos de uma beleza pouco vulgar, calma e equilibrada. Tão maravi-
lhado ficou o rei-poeta que logo lhe fez tantas doações de senhorios e terras

282
como nenhuma outra rainha portuguesa até então possuíra . Uma antiga “Rela-
ção” descreve do seguinte modo a benemerência desta mulher sem par: man-
dava Santa Isabel vestir os esfarrapados que avistava, visitava os enfermos ulce-
rosos, punha sem repugnância as mãos sobre as cabeças dos doentes e fazia-os
tratar pelos seus médicos e enfermeiros. Distribuía nos dias solenes do ano
numerosos socorros pelos domicílios, às pessoas necessitadas e a muitos mos-
teiros, tanto no reino como no estrangeiro.
Procurava com ardor dissolver as discórdias que haviam entre as casas
nobres. Tentava por todos os modos proteger donzelas e viúvas para que a mi-
séria não as lançasse na perdição. Os seus costumes eram em tudo modestos ,
humildes e castos .
Porem esta mulher que toda a vida tentou distribuir e dar amor, não foi
correspondida inteiramente por seu esposo. Quantas vezes esquecida pelo ma-
rido, Santa Isabel procurou manter sempre uma serenidade exemplar e tratou
freqüentemente de apaziguar os ódios e lutas que as intrigas palacianas acendi-
am nos filhos, especialmene o futuro rei Afonso IV. O próprio milagre das ro-
sas aconteceu numa época em que Dom Dinis decidira pôr cobro àquilo que
dizia ser um esbanjamento do tesouro público por sua mulher.
Dom Dinis foi avisado por um homem do Paço que no dia seguinte,
contrariando as ordens reais, sairia Isabel com ouro e prata para distribuir aos
pobres. Exaltado, Dom Dinis resolveu imediatamente que no outro dia iria
surpreender a rainha quando ela fosse sair com o seu carregamento de esmolas.
Na manhã seguinte, uma gélida manhã de janeiro, estava já D.Isabel com as aias
no jardim trazendo a ponta do manto recolhida e cheia de moedas quando lhe
surgiu el-rei fingindo-se encontrado. Empalideceu a Rainha conhecendo como
conhecia os acessos do marido, receosa do que diria se descobrisse o dinheiro
que trazia.
Saudaram-se, contudo, cortêsmente, e Dom Dinis perguntou:
- Aonde vais senhora, tão cêdo?
- Armar os altares de Santa Cruz, meu senhor!
- E que levais no regaço, minha rainha?
Houve um instante de hesitação antes que a rainha lhe respondesse:
- São rosas, senhor!
- Rosas, senhora rainha.- gritou irado Dom Dinis - rosas em janeiro ?!
Quereis, sem duvida, enganar-me!!
Digna e muito lentamente, largando a ponta do manto, respondeu Santa
Isabel:
- Senhor, não mente uma rainha de Portugal.
E todos viram cair-lhe do manto, do local onde sabiam só haver moedas,
uma chuva belíssima de rosas brancas de impar beleza.

283
Santa Isabel da Hungria, nascida em 1207, aos quatro anos foi prometida
em casamento ao duque Luís IV, da Turíngia, com quem casou-se aos 14 anos
de idade. Constituíam os dois um casal muito unido, tendo Isabel influído mui-
to no espírito de seu esposo para a prática da caridade cristã. Seu esposo mor-
reu numa Cruzada, a caminho da Terra Santa, pouco depois de haver nascido
sua última filha. A santa entregou-se, então, à prática desinteressada da carida-
de, o que motivou o ódio de seus familiares. Embora sofrendo perseguições,
conseguiu realizar seu grande desejo, que foi a construção de um hospital em
honra de São Francisco. Dedicou o resto de sua vida aos pobres, falecendo aos
24 anos de idade como terciária da Ordem franciscana.
Santa Margarida, rainha da Escócia, foi outra maravilhosa mãe e esposa
cristã que nos legou um grande exemplo de vida. Quando nasceu, em torno do
ano 1046, sua família vivia no exílio, provavelmente na Hungria. Seu tio-avô,
Santo Eduardo, subiu ao trono na Inglaterra, permitindo-lhes voltar para a pá-
tria. Novo exílio ocorreu quando subiu ao trono Guilherme da Normandia,
desta vez para a Escócia. Foram ali bem recebidos pelo rei, Malcome III, que
pediu a mão de Margarida em casamento. Nasceram-lhe oito filhos: os prínci-
pes Eduardo, Etelredo, Edmundo, Edgardo, Alexandre e Davi, e as princesas
Edite e Maria. Dois de seus filhos, Edite (que chegou a ser rainha-consorte da
Inglaterra) e Davi, eram venerados como santos pelo povo inglês.
O rei Malcome III era de costumes um tanto rudes, mas não tinha más
inclinações: venerava tanto os livros de que sua esposa se servia mais para suas
orações que os beijava e acariciava. O rei gostava de ouvir os conselhos da rai-
nha na administração dos problemas de seu reino, seguindo-os sempre. Mesmo
assim, ela precisou discutir com o rei durante três dias para convencê-lo a ad-
mitir os costumês da Santa Igreja na Escócia e reprimrir certos desvios, como o
descuido das obrigações sacramentais, a celebração da Santa Missa acompa-
nhada de ritos pagãos ou profanos e o costume de realizar casamentos entre
parentes.
Santa Margarida conseguiu também introduzir a pompa, solenidade e e
grandeza na corte escocesa: mandou vir do estrangeiro os vestuários mais varia-
dos e ricos, instruindo também o rei para que andasse sempre acompanhado
de guardas de honra vestidos digna e pomposamente. A rainha também era
assídua e incansável na oração e caridade: à noite costumava levantar-se para
rezar e nas matinas rezava as orações da Santíssima Trindade, da Santa Cruz e
de Nossa Senhora, o ofício dos defuntos, o saltério inteiro (ainda não havia o
costume de se rezar o rosário) e as laudes. Geralmente pela manhã, lavava os
pés de seis pobres e servia nove órfãos, indo descansar um pouco, mas, logo
depois, ajudada pelo próprio rei servia refeições a 300 pobres. Assistia diaria-
mente a cinco ou seis missas. Trabalhou também incansavelmente para a liber-

284
tação de vários prisioneiros ingleses detidos na Escócia e mandou construir
hospedarias para os viajantes. Falaceu no dia 16 de novembro de 1093, sendo
um exemplo de santidade para seu esposo, seus filhos e seu povo.
Santa Brígida, de descendência nobre, foi casada com o príncipe de Níri-
ce, chamado Ulf. Ela o levou, pelos exemplos e pela persuasão de suas pala-
vras, a imitar a piedade de sua vida. Pôs todo o coração em educar seus filhos,
todo o seu zelo em socorrer os pobres e os doentes, aos quais tinha costume de
oscular os pés em sinal de humildade e como provas de amor a Deus.
Santa Francisca Romana (séc. XV) foi outra que recebeu o Sacramento
do matrimônio. Casada desde os doze anos de idade, conviveu com seu espo-
so, o aristocrata Lourenço de Ponziani, durante mais de 40 anos. Em toda a sua
vida praticara tais obras de alta perfeição que a tornaram objeto de complacên-
cia do Céu, ao mesmo tempo que as doces qualidades de seu coração lhe asse-
guravam a ternura e a admiração de seu esposo e de seus filhos, que foram três.

Beata Anna Maria Taigi, nasceu na cidade de Siena, a 29 de maio de


1769, e faleceu em Roma, a 09 de junho de 1837. Contava apenas cinco anos
de idade quando foi tomada por um êxtase, os quais duraram quase toda sua
vida. Recebeu primorosa educação religiosa e doméstica. Aos vinte anos casou-

285
se com Domenico Taigi, um criado da nobre família dos Chigi, com quem
conviveu durante quarenta e oito anos, e do qual teve sete filhos. Sentindo forte
atração para a vida religiosa, mas sendo casada, foi admitida na Ordem Terceira
das Trinitárias. Durante muitos anos a Santa foi privilegiada com êxtases e vi-
sões sobrenaturais. Admite-se que seus sofrimentos místicos a fez vítima expia-
tória, e toda a sua santificação deu-se no convívio de seu lar.
Sofreu muito por causa das rabugices de seu marido, o qual sempre en-
trava em casa irritado. Vivia se amaldiçoando por achar que tinha sido engana-
do pela esposa, mas a Santa fugia do confronto e o tratava com amabilidade.
Era serena, afetuosa, ordenado nas suas coisas e sempre alegre. Educou bem os
filhos. Todos os sete, sem exceção, declararam depois que tinham tido uma
infância feliz ao lado dela.
Declarou Domenico, seu esposo:
“Quando chegava em minha casa encontrava-a cheia de gente desconhe-
cida que vinha consultar minha mulher. Porém ela tão pronto me via, deixava
quem quer que fosse, seja monsenhor ou alguma grande senhora, e vinha aten-
der-me, a servir-me a comida, e a ajudar-me com esse imenso carinho de espo-
sa que sempre teve para comigo. Para mim para meus filhos, Ana Maria era a
felicidade da família. Ela mantinha a paz no lugar, apesar de que éramos bastan-
tes e de muito diferentes temperamentos. A nora era muito mandona e autori-
tária e a fazia sofrer bastante, porém jamais Ana Maria demonstrava ira ou mal
gênio. Fazia as observações e correções que tinha que fazer, porém com a mais
estrita amabilidade. Às vezes eu chegava à casa cansado e de mal humor e esta-
lava em arrebatações de ira, porém ela sabia tratar-me de tal maneira bem que
eu tinha que acalmar-me em poucos instantes. Cada manhã nos reunia a todos
em casa para uma pequena oração, e cada noite nos voltava a reunir para a lei-
tura de um livro espiritual. Aos meninos os levava sempre à Santa Missa aos
domingos e se esmerava muito em que recebessem a melhor educação possível’

... e também de ser esposa


“Quantas famílias chegaram assim, pelas mulheres, ao mais alto grau de
consideração e prosperidade, e também quantas famílias decaídas foram reer-
guidas por elas!
No século XVI, Luís de Gonzaga estava prestes a entrar em falência. A
sua mulher, Henriqueta de Clèves, assume o governo da Casa e restabelece a
ordem. Outra mulher, Joana de Schomberg, irmã do segundo dos marechais
deste nome, verificando a ruína das finanças do marido, disse: “Verei eu mes-
ma e examinarei com cuidado todos os nossos negócios, de acordo com a ca-
pacidade que Deus me der. Antes de começar, procurarei elevar o meu cora-
ção ao Espírito Santo, para Lhe pedir o dom do conselho e da força, a fim agir

286
em tudo com prudência e firmeza”. Santa Joana de Chantal foi posta pelo seu
casamento numa casa “com negócios muito enredados”. Começou a reparar o
mal na própria manhã seguinte à das núpcias. “Habituou-se a acordar muito
cedo, e já tinha colocado ordem na casa e enviado os empregados para o traba-
lho, quando o seu marido se levantava...”
Em todos os meios sociais encontramos exemplos semelhantes.
“Nas famílias operárias – diz Augustin Cochin – a figura dominante é a
da mulher, a da mãe; tudo depende da sua virtude e acaba por ser modelado
por ela. Ao marido compete o trabalho e as rendas da casa; à mulher, os cuida-
dos e a direção interior; o marido ganha, a mulher poupa; o marido alimenta os
filhos, a mulher educa-os; o marido é o chefe da família, e mulher é o seu elo
de união; o marido é a honra do lar, a mulher, a sua bênção”
A feliz influência da mulher cristã estende-se muito além do lar.
“Deus suscitou entre nós – escreveu o visconde de Maumigny – numero-
sas gerações de mulheres piedosas, às quais devemos o nosso caráter nacional,
como Roma deve o seu aos grandes Papas. Ele deu-nos as Clotildes, e as Batil-
des, as Radegundas e as Brancas, as Isabeis e as Joanas e, nestes últimos sécu-
los, piedosas rainhas dignas delas. As pastoras rivalizam com as princesas. Uma
legião de santas mulheres de todas as classes e condições – das donzelas de
Vaudouleurs e de Nanterre, a Germaine de Pibrac e a Benoîte du Laus – di-
fundem em toda a parte a doce influência de Maria, seu modelo.
“Assim, enquanto a salvação da Itália vem, antes de tudo, dos seus gran-
des Pontífices, para nós veio sobretudo do apostolado das mulheres. No século
XVIII, reis e magistrados, sábios e até Pontífices repousavam numa despreocu-
pada apatia; mas as mulheres permaneciam heroicamente fiéis. E quando os
homens diziam: Não conheço este Homem, o seu reino não é deste mundo, as
mulheres seguiam a Cristo e ao seu Vigário sem desfalecer até ao Calvário.
Devemos às nossas mães e irmãs o fundo de honra e devotamento cava-
lheiresco que é a vida da França. Devemos-lhes a fé católica. Discípulas da Rai-
nha dos Apóstolos e dos Mártires, as mulheres transmitiram aos filhos o que
lhes ia no coração.
“Em França, as mulheres são a alma de todas as boas obras; do Óbulo de
São Pedro até a Propagação da Fé; e foi o entusiasmo das mães e das irmãs que
conduziu a Roma os defensores da Santa Sé. Conheço mais de um jovem que
estaria entre os zuavos, se tivesse seguido o conselho da sua mãe, mas não co-
nheço um só cuja mãe que o tivesse impedido. O pai poderia fraquejar, mas a
mãe nunca: nem antes, nem durante, nem depois. Um filho mutilado era o seu
orgulho e quando, diante do cadáver do mártir, Deus lhe dizia no fundo do co-
ração: O teu filho está comigo, a gratidão sufocava a sua dor. Mais que o sangue
do filho, ela amava a glória dele

287
“Maria, o modelo das mães, tinha-lhes ensinado como se pode chegar a
sacrificar um filho único por Deus e pela Igreja. Ao ouvir a narração dessas
imolações sublimes, Pio IX comentava: Não, a França que produziu tais santas
não há de perecer!
“A primeira vez que a heróica viuva do grande zuavo Pimodan viu o Pa-
pa, não lhe disse: Santo Padre, devolvei-me o marido!, mas antes: Oh! Dizei-me
que ele está no Céu! E quando Pio IX respondeu: Já não rezo por ele, ela não
perguntou mais nada, pois entendeu que era viúva de um mártir, e isso bastava.
“As mulheres são a alma de tudo o que moveu a França e o mundo. Em
Castelfidardo, os zuavos combatiam sob o olhar das suas mães, presentes no
seu pensamento e sob os muros do santuário onde a Rainha dos Mártires gerou
o Rei dos Mártires. Ao avançar contra o inimigo, repetiam todos esta frase de
um deles: A minha alma a Deus, o meu coração à minha mãe, o meu corpo a
Loreto. À mãe deles e a Maria, que a todos inspirava, reverte a glória da bata-
lha. Como outrora os cavaleiros, como mais tarde os vandeanos, foi ao colo das
mães que eles aprenderam a dar a vida por Deus, pela Igreja e pela Pátria”.
Num dos seus interessantes estudos, Faivière mostra como a civilização
moderna se liga nas suas origens à antigüidade greco-latina: “Se por um lado o
Evangelho as diferencia, também as une, por causa da afinidade existente entre
elas. Essa afinidade vem do fato de que a Grécia e Roma, contrariamente ao
que acontecia no Oriente, não tinham excluído a mulher da vida social, de mo-
do que o gênio feminino tomara parte no desenvolvimento da sua civilização.
Por isso mesmo, esta tornou-se mais apta do que as civilizações orientais para
receber a influência do Evangelho”.
Os germanos, ao estabelecer-se no império romano, trouxeram consigo o
respeito supersticioso que tinham pela mulher. A Igreja purificou este senti-
mento, levou os homens a estimar a pureza dos costumes – abrindo assim so-
bre o mundo os tesouros do coração e da inteligência da mulher – multiplicou
os recursos e o campo de ação do progresso.
“É da mulher – diz Favière – que as nações cristãs alcançaram o dom da
piedade, é delas que receberam a faculdade das emoções comunicativas que
sacodem as multidões, a capacidade de despertar súbita e irresistivelmente os
povos, colocando-os acima de si mesmos, dos seus interesses mercantis e do
seu repouso, para os lançar na via das aventuras sublimes que são as grandes
etapas da humanidade.
“A mulher associou-se à obra do progresso, não somente pelo coração;
ela elevou a civilização cristã acima de tudo o que mundo tinha visto até então,
não só pelo seu entusiasmo e impulso, mas também pela sua inteligência. A
inteligência rápida e instintiva da mulher sobre o mundo moral supera a inteli-
gência masculina... Ela cultiva na família o senso do bem, dando-lhe o enten-

288
dimento das verdades primeiras, ensinando-as pelos seus atos e juízos, pelas
manifestações da sua estima, ou pela sua repreensão”.
Há poucos homens entre nós, nestes dois últimos séculos, que, mesmo
sem querer, não se tenham deixado envolver pela Revolução. As mulheres, pe-
lo contrário, têm o instinto da verdade como o da caridade. Qualquer apostasia,
qualquer traição, qualquer fraqueza de espírito ou de coração encontra nelas
juízes inflexíveis. Elas amam a Igreja e a Pátria, a Cristo e sua Mãe. Amam-nos
mais que a si mesmas, mais que as riquezas, mais que os próprios filhos. E este
amor é para elas uma ciência. Elas são, entre nós, o grande apoio da sociedade
e da Igreja. A Revolução sabe bem disso. Ela conhece o número de irmãos, de
filhos e de maridos preservados, afastados das sociedades secretas por simples
operárias, por simples camponesas. Sem cessar, o revolucionário é encurralado
por essa guerra feminina. Daí as suas queixas, as suas conspirações para perver-
ter o coração da mulher” .

9. "Vade-Mecum" da esposa e mãe católica

Um exemplo bem marcante da educação religiosa que recebiam as jo-


vens no decorrer do século XIX, principalmente aquelas de elevada posição,
tivemos na Imperatriz Leopoldina. Não se trata de uma educação dada no Bra-
sil, mas na culta e católica Áustria. No entanto, espelha a realidade de uma épo-
ca, que se refletiria futuramente também entre nós. A arquiduquesa Leopoldina
casou-se com Dom Pedro I e veio morar no Brasil, transformando-se na saudo-
sa e querida Imperatriz. Após o seu falecimento foi encontrado entre seus per-
tences um livrinho de percalina vermelha com bordas de ouro, onde se lê os
propósitos que ela, ainda noiva, fizera para sua futura vida de casada. O livrinho
foi escrito em francês, contendo ainda a seguinte nota em alemão:
"Do dia 13 de maio, meu dia de casamento, em diante proponho-me:
1o. Reprimir a minha veemência, ser boa para com o meu pessoal a fim
de acostumar-me à brandura e condescendência.
2o. Quero evitar todo pensamento menos casto, pois deste dia em diante
pertenço ao meu marido.
3o. Quero esforçar-me com zelo por trabalhar no meu aperfeiçoamento.
4o. Quero aplicar todos os esforços para falar sempre a verdade".
O livro contém na capa as armas das Casas imperiais Habsburgo e Bra-
gança (famílias reais de D. Leopoldina e D. Pedro I), e uma pintura expressan-
do o Evangelista São João oferecendo o sacrifício da Santa Ceia a Nossa Se-
nhora.
Eis a versão integral do texto:

289
"Minhas resoluções - Viena 1817
Lembrai-vos! - Que tendes um deus a glorificar, Jesus a imitar e vossa
alma a salvar (S. Mateus, XXII, 37-40).

Para todos os dias


1. Procurarei ter sempre uma hora determinada para me levantar e para
me deitar, evitando o excesso de sensualidade durante o repouso.
2. Desde o despertar o meu primeiro pensamento será a lembrança da
presença de Deus; minhas primeiras palavras serão: Ó Santíssima e adorável
Trindade! Eu vos dou meu coração e minha alma, eu Vos adoro com todos os
coros dos Anjos. Ó Jesus! Meu Salvador! Tende piedade de mim! Minha pri-
meira ação será o sinal da cruz, que farei então desta maneira: em nome do Pai,
que me criou à Sua Imagem, e do Filho, que me remiu com seu sangue precio-
so, e do Espírito Santo, que me tem santificado.
3. Para começar o dia com um ato de mortificação me levantarei pron-
tamente e convencida de estar inteiramente diante de Deus, vestir-me-ei com
toda a modéstia possível. Se estiver fraca de saúde que eu não possa me levan-
tar rápido, ocupar-me-ei dos santos exercícios de um cristão, que deve começar
seu dia santamente.
4. Tomando água benta, que terei sempre em meu quarto, por-me-ei de
joelhos perante meu crucifixo, e penetrada da presença de Deus rezarei com
fervor minha oração matinal.
5. Farei todas as manhãs uma meditação sobre uma leitura espiritual.
6. Assistirei à Missa com modéstia e piedade exemplares, comungando
sempre, nem que seja espiritualmente.
7. Após meus exercícios de piedade empregarei o resto do tempo em
observar os deveres de meu estado, e dos cuidados que a ele estão ligados. Na-
da de despesas inúteis que desorganizam a economia; mas da esmola farei tanto
quanto possível; me reservarei daquilo que for frívolo para poder socorrer me-
lhor os infelizes.
8. Farei muitas vezes atos de fé, de esperança e de caridade. Formarei
sempre em meu coração tais sentimentos: Ó meu Deus! Penetrada de Vossa
infinita Majestade eu Vos adoro com os santos Anjos, que rodeiam Vosso tro-
no. Jesus! Meu Salvador! Uno-me a Vós em todas as minhas ações.
9. Aproveitarei todas as ocasiões, que se me apresentarem, para fazer
atos de humildade, e mortificações exteriores e interiores. Me esforçarei do
mesmo modo, no que for possível, para adorar Jesus Cristo em seus Santos ta-
bernáculos, sobretudo em meu oratório, quando o Santo Sacramento estiver
nele encerrado.

290
10. Farei minhas orações da noite como as da manhã, diante de uma
imagem do Crucificado e da Santíssima Virgem, as quais terei sempre no meu
quarto, e aí acrescentarei o exame especial de minha conduta do dia. Mudando
a roupa modestamente na presença de Deus terminarei o dia com estas pala-
vras: "Ó meu Jesus crucificado. Recebei-me em Vossas Santas chagas. Sagrado
Coração de Jesus! Escondei-me no abismo de Vosso amor para passar esta noi-
te sem Vos ofender. Ó Maria, Mãe da Graça e da Misericórdia. Eu me entre-
go com a maior confiança em Vossos Santos braços. Dai-me Vossa santa bên-
ção maternal. Anjo da Guarda, eu Vos recomendo minha alma e meu corpo;
Amáveis Padroeiros e Padroeiras! Bem-aventurados do céu! Rogai por mim,
por meus amigos, por meus inimigos, por meus parentes e benfeitores e por
todos os antepassados. Eu vos recomendo todos aqueles que caírem em agonia
neste noite". Enfim, fazendo com devoção o sinal da cruz dormirei num pen-
samento cristão, após haver tomado água benta, que trarei sempre próxima de
meu leito.

Para todas as semanas


Às sextas e sábados farei pequenas mortificações, como de me privar de
qualquer coisa na refeição, ou de guardar o silêncio durante algum tempo ou de
privar de uma distração; entretanto, sem que ninguém note. Farei tais coisas
para me lembrar particularmente daqueles dias da Santa Paixão de Nosso Se-
nhor, e para me preparar melhor para comemorar os Domingos.

Para todas as Festas


Para lhes santificar evitarei tudo que possa lhes profanar; assistirei ao ofí-
cio divino e ao sermão com toda edificação, dedicando mais tempo à medita-
ção e à leitura espiritual, sobretudo ao cumprir minha devoção. Abster-me-ei
nos dias de festas de todos os prazeres, espetáculos, festins, etc., que possam
profanar estes santos dias ou impedir sua santificação. Não negligenciarei as
obrigações que assumi como membro da Ordem da cruz estrelada114, e observa-
rei no que for possível os estatutos que são prescritos a todos os membros.

Para todos os anos


Terminarei o último dia do ano com uma revisão geral de minha condu-
ta; farei com ardor a preparação para a morte segundo orientação de meu Dire-
tor de consciência, e lerei de novo minhas resoluções para gravá-las mais tempo
no coração e no espírito.

114
A Ordem da Cruz Estrelada, instituto religioso leigo no qual ingressou a arquiduquesa Leopoldina sob inspi-
ração da Condessa Lazansky, camareira-mor da quarta esposa do pai dela, Francisco I.

291
Para todos os tempos
1. Conservarei no meu coração as boas instruções que tenho recebido de
meus parentes e das pessoas encarregadas de minha educação.
2. Terei sempre que for possível um confessor, ao qual obedecerei com
exatidão e que o consultarei sempre nas coisas que concernem a minha salva-
ção.
3. Evitarei todas as leituras que sejam contrárias à minha Santa Religião,
que ferem a delicadeza da consciência e que excitem à sensualidade ou uma
paixão qualquer.
4. Jamais o respeito humano me impedirá de me declarar abertamente
pela Santa Religião Católica; empregarei, ao contrário, todos meus esforços e
todas minhas rendas supérfluas para a propagar, para construir ou decorar as
igrejas, sobretudo para sustentar os Institutos que se consagrem á educação da
juventude ou que faça profissão de assistir os necessitados.
5. Meu coração será eternamente fechado ao espírito perverso do mun-
do; assim, bem longe de mim os gastos inúteis, o luxo nocivo, os adornos inde-
centes e as mundanidades e vestimentas escandalosas. Minha virtude tão neces-
sária será sempre a modéstia para conservar a pureza de meu coração, sem a
qual jamais agradarei a Deus.
6. Não me cansarei de combater minhas paixões, começando pela domi-
nante, e para lhes destruir mais rápido voltarei contra elas todas as armas espiri-
tuais: a vigilância sobre meu coração e sobre meus sentidos, o exame quotidia-
no, a contrição e a penitência depois de cada queda, a leitura, a meditação, a
freqüência usual ao Santíssimo Sacramento, as orações fervorosas, enfim, a in-
vocação dos santos, que se destacaram na virtude oposta ao vício que quero
destruir.
7. Principiarei todas as ações na presença de Deus, unindo-as às de Jesus
Cristo, mesmo aquelas que me sejam agradáveis, como o beber e o comer, o
repouso, as recreações e divertimentos. Vigiarei que a sensualidade e o amor
próprio não me roubem o mérito, mas que seja santificado por coisas sobrena-
turais.
8. Na conversação falarei com muita prudência, para não falar muito, e
para não ficar calada, que possa ferir a verdade, a caridade, e a modéstia; e se
outros começarem conversas contrárias a essas virtudes, que não possa evitar ou
impedir, eu farei ao menos com meu olhar um imperioso respeito, e pelo si-
lêncio o desprazer que tenho nisso.
9. Lembrar-me-ei sobretudo das promessas que fiz no dia de meu casa-
mento perante a Igreja e das obrigações ali contraídas. Guardarei inviolavel-
mente a fidelidade devida a meu marido e evitarei todas as familiaridades com
as pessoas de outro sexo. Deus me guarde de estar jamais a sós com outro ho-

292
mem, por mais sábio que pareça, num local ermo; não terei amigos que não
sejam pessoas virtuosas.
10. Se a Providência me favorecer dando-me filhos, eu lhes protegerei
como uma dádiva preciosa do céu, que Deus cobrará um dia de minhas mãos.
Terei cuidado de lhes dar uma educação muito cristã, e longe de fazer qualquer
frivolidade em suas presenças tratarei de lhes imprimir o respeito que os filhos
devem a seus pais.
11. Nenhuma familiaridade com meus domésticos; mas lhes tratarei com
clemência, e, dando-lhes bom exemplo, exortando-os á virtude, em lhes repri-
mir todas as ocasiões criminosas, tratarei de salvar ou de santificar minha casa.
12. Considerarei sempre a mentira como a obra-prima do diabo, e como
uma peste na sociedade. Eu me guardarei de sentir-me culpável. Se Deus pede
uma conta rigorosa de cada palavra que é proferida, quanto mais das mentiras.
13. Longe de mim todo ar de grandeza e de altivez; mas serei grave e
modesta para todos, honesta, doce, afável, e polida com os grandes e os peque-
nos.
14. Aceitarei todas as penas e aflições da mão de Deus, unindo-as aos so-
frimentos de Jesus Cristo; não comentando isto a não ser a Jesus e a meu con-
fessor.
15. Jamais falarei demasiado em meu proveito, ou daquele que me olha,
e se alguém me elogiar eu lhe reportarei a Deus, bem persuadida que todos os
bens da natureza e da graça que tenho recebido, mesmo aqueles da fortuna, se
me pertencem não vêm senão dEle, e que, no fundo, eu tenho de nascimento o
pecado e as más inclinações.
16. Todos os momentos da vida dados para minha salvação eu lhes em-
pregarei segundo as vias de Deus. Assim, longe de mim os vestidos escandalo-
sos e longos, visitas perniciosas e inúteis. Terei os divertimentos convenientes á
minha idade; nunca terei o gozo das maneiras que me sejam nocivas, mas so-
mente para descansar meu espírito e meu corpo, a fim de lhes deixar mais ca-
pazes de servir a Deus com mais ardor. Todo o resto do tempo será reservado
às ocupações úteis. Minha piedade não será pouco sociável nem sombria, mas
grave e agradável. Eis aí, Jesus Cristo, meu divino Senhor, as resoluções que
Vós me destes a graça de me inspirar. Eu Vos ofereço com meu coração.
Abençoai e concedei-me os socorros necessários para lhes colocar em prática.
Assim seja". 115

115
Texto extraído do livro "A Imperatriz Leopoldina", de Carlos Oberaker – Conselho Federal de Cultura, 1973

293
10. Exemplos de casais santos, beatos ou canoni-
zados

1. Bem-Aventurados Louis e Zelie Martin

Os Santos Louis Joseph Aloísio Estanislau Martin (1823-1892) e Zélie


Martin (1831-1877, foram os pais de Santa Teresinha do Menino Jesus.
Sobre as virtudes do casal, assim se expressou o bispo de Bayeux e Lisi-
eux, Mons. Picaud:
“Quando a insuficiente formação dos filhos patenteia tão frequentemente
a omissão de tantos pais, mesmo batizados, como encanta e é benfazejo discer-
nir , notadamente na correspondência da Sra. Martin, a requintada ternura e a
vigilância assídua de uma mãe idealmente cristã!
Quando as vocações religiosas e sacerdotais tão frequentemente encon-
tram um clima desfavorável e mesmo oposições formais no seio das famílias,
que lembrança eloquente da hierarquia das vocações denotam as nobres aspi-
rações e os santos desejos confiados a Deus pela rendilheira de Alençon e pelo
Patriarca dos Buissonets!
Encontraríamos hoje muitos pais que conduzam, como o fez o Sr.
\Martin, a sua “pequena Rainha” ao Bispo de Bayeux, a fim de apressar sua

294
entrada no convento, ainda que essa diligência devesse apressar ao mesmo
tempo o dilaceramento e a solidão de seu coração paterno?
A esses exemplos de vida conjugal e familiar, vós não deixastes de acres-
centar os de um avida laboriosa e de alta consciência profissional que, anda ho-
je, é bem oportuno evocar para esclarecer o reencaminhar o compromissos de
muitos leitores.
Para dizer tudo numa palavra, é o retrato de dois modelos incomparáveis
– eu ia dizer de dois santos patronos – que vós propondes à admiração e à imi-
tação dos pais cristãos”116
E a vida do casal era a mais exemplar possível. Costumavam rezar juntos,
liam bons livros sobre a vida dos santos, o terço era recitado todos os dias e a
oração ocupava um lugar de preeminência tanto na vida familiar como na de
cada membro da casa. Incentivavam suas filhas a ter devoção e amor à Virgem
Maria. Todos os pobres que batessem à porta da família eram bem recebidos e
acolhidos, recebendo roupa e comida. Nunca lhes negaram nada. O amor ao
Papa e aos sacerdotes sempre foi cultivado na família Martin. Os padres tinham
pousada garantida em sua casa quando passavam por Alençon.

Filhos do casal
Santa Zélia e São Louis tomaram a decisão de ter muitos filhos. Nasce a
primeira filha do casal, Marie Louise. Todos os filhos e filhas receberam o no-
me de “Maria” como sinal de agradecimento à Virgem Maria, que era tão ama-
da e venerada na família Martin. Aliás, no dia do casamento, Louis e Zélia re-
ceberam como presente a imagem de Nossa Senhora das Vitórias, que mais
tarde ficou conhecida, por causa do milagre do sorriso a Santa Teresinha, como
Nossa Senhora do Sorriso.
O grande sonho de Santa Zélia era ter um filho sacerdote. Isso nunca
aconteceu, mas os pais não rejeitaram as filhas que Deus lhes enviara, e termi-
naram por encaminhar todas elas para a vida religiosa, uma das quais já era san-
ta quando convivia em seu lar com o casal.
Foram seus filhos: Marie Louise (1860-1940) – Ir. Maria do Sagrado Co-
ração no Carmelo de Lisieux(1886); Marie Pauline(1861-1951) – Ir. Inês de
Jesus no Carmelo de Lisieux(1882); Marie Leônie(1864-1941) – Ir. Francisca
Teresa na Visitação em Caen(1898); Marie Céline(1869-1959) – Ir. Genoveva
da Sagrada Face no Carmelo de Lisieux(1894); Marie François Therese(1873-
1897) – Santa Teresinha – Carmelo

116
Carta-prefácio do livro “Histoire d’une famille”, do Pe. Stéphane-Joseph Piat, OFM, Office Central de Lisi-
eux, 4ª. Ed, págs. 7/8.

295
Irmãos falecidos antes de Santa Teresinha nascer: Marie Heléne (1864-
1870), Joseph Marie(1866-1867), Jean Baptiste Marie(1867-1868) e Marie Me-
lânie Therese (1870 – falecida aos 3 meses de idade).

Santidade reconhecida por uma filha também santa


A própria Santa Teresinha era constante em elogiar a santidade de seus
pais, especialmente o Sr. Louis Martin, com quem conviveu mais tempo, haja
vista que sua mãe faleceu quando ela ainda era criança. Numa de suas cartas ao
próprio pai (31.7.1888), escreveu ela: “Quando penso em ti, paizinho, penso
naturalmente em Deus, pois me parece impossível que haja alguém mais santo
do que vós na terra. Sim, vós sois, certamente, tão santo como o próprio São
Luís [rei de França], e preciso ainda repetir que eu vos amo, como se vós ainda
não o soubesses. Oh, que orgulhosa estou de ser Rainha!... Espero merecer
sempre esse título. Jesus, rei do Céu, ao tomar-me para Si, não me tirou a meu
santo rei da terra...”
Em outra carta, escrita num retiro (datada de 8.1.1889), ela se refere ao
fato de ser proibido escrever no retiro, cuja exceção foi concedida a ela por al-
guma particularidade toda especial: “... se está proibido escrever, é para não
perturbar o silêncio do retiro; mas, poderá alguém perturbar sua paz se escreve
a um Santo?”
Em sua autobiografia, “História de uma alma”, Santa Teresinha se refere
ao seu pai, por diversas vezes, ora como rei, ora como santo, mas estes qualifi-
cativos não eram apenas reflexos de sua admiração por ele, mas a constatação
de uma realidade que ela presenciara em seu convívio. O fato de afirmá-lo de
público, algo que qualquer outro santo temeria fazê-lo por alguém poder consi-
derar falta de modéstia, revela a sinceridade de alma e a pureza de intenções de
sua declarações a respeito de seus pais.

A opção entre a vida consagrada, conventual, e a vida matrimonial


Segundo depoimento de sua filha, irmã Genoveva da Santa Face e de
Santa Teresa, Zélia Guérin foi batizada com o nome de Marie Azélie (ou Maria
Azélia), mas costumaram chama-la em família de Zélia. Como sua irmã consa-
grou-se a Deus na Visitação, adotando o nome de Irmã Maria Dositéia, entrou
ela também como externa no colégio da Adoração Perpétua de Alençon, man-
tido pelas religiosas dos Sagrados Corações de Picpus. Tinha intenções de levar
vida consagrada como sua irmã, apresentando-se assim às Irmãs de São Vicente
de Paulo da Santa Casa de Alençon. Mas foi dissuadida pela Superiora por cau-
sa de sua precária saúde. Na ocasião, Santa Zélia fez essa prece:

296
“Meu Deus, já que não sou digna de ser vossa esposa como minha irmã,
abraçarei o estado de matrimônio para cumprir vossa santa vontade. Peço-vos
então muitos filhos e que vos sejam todos consagrados”.
Segue o depoimento de sua filha:
“Suplicou a Nossa Senhora que lhe indicasse a maneira de assegurar pe-
cuniariamente seu futuro. E no dia 8 de setembro de 1851, durante uma ocu-
pação absorvente, distinguiu mui claramente uma espécie de voz interior que
lhe dizia: “Ocupa-te com o Ponto de Alençon”. Entrou, pois, numa Escola Pro-
fissional. Mas saiu antes de terminar o curso para evitar a presença assídua do
chefe do estabelecimento”.
Segundo a depoente, Santa Zélia demonstrou habilidade e talento em sua
arte, além de ser possuidora de atraente beleza. Por causa disso, uma senhora
da sociedade local quis levá-la a Paris, talvez com intenção de lhe conseguir al-
gum casamento vantajoso, mas sua recusa foi categórica. Demonstrou não gos-
tar do mundo. Algum tempo depois estaria se casando com o Sr. Louis Martin,
filho de um capitão aposentado. O que os atraiu um pelo outro foi, acima de
tudo, a piedade, a santidade, virtudes que transbordariam dentro do lar.

Vocação para a maternidade


Em várias oportunidades, Zélia Guerin, ou Martin, demonstrou procurar
cumprir aqueles propósitos que manifestara ao escolher a vida matrimonial: a
vocação para a maternidade. Ao saber que uma senhora da região havia dado à
luz a trigêmeos, disse ela: “Oh feliz mãe! Se eu tivesse ao menos dois. Mas, não
terei jamais essa felicidade!” – “Amo loucamente as crianças”.
“Sua correspondência está cheia dessas exclamações de alegria materna.
Escreveu a seu irmão, o Sr. Guérin, no dia 23 de abril de 1865, após o nasci-
mento de sua Helenazinha que deveria morrer em tenra idade:
“Há quinze dias fui ver aquela que está com a ama. Não me lembro de
ter jamais experimentado um sentimento de tal felicidade como no momento
em que a tomei nos braços e ela me sorriu tão graciosamente que acreditava ver
um anjo. Numa palavra, é inexprimível para mim. Acho que nunca se viu nem
se verá jamais uma criança tão encantadora. Minha Helenazinha! Quando en-
fim terei a felicidade de possuí-la inteiramente! Não posso pensar que tenho a
honra de ser mãe de criatura tão deliciosa...”
“Longe de medir fadigas, sua confiança sobrenatural levava-a a confessar
mais tarde à sua cunhada, a Sra. Guérin, de saúde delicada e que esperava um
filho:
“Nosso Senhor não pede nada acima de nossas forças. Vi muitas vezes
meu marido preocupar-se comigo sobre esse ponto. E eu permanecia absolu-
tamente tranquila. Dizia-lhe: “Não receies, Nosso Senhor está conosco”. No

297
entanto, eu estava acabrunhada de trabalhos e preocupações de toda sorte, mas
tinha a firme confiança de ser sustentada pelo Alto.
“O que não a impedia de fazer esta confidência a seus parentes de Lisi-
eux:
“Se tiveres tantos filhos quanto eu, isso exigirá muita abnegação e o dese-
jo de enriquecer o Céu com novos eleitos.
“Após cada nascimento, fazia logo esta prece:
“Senhor, concedei-me a graça de vos ser consagrado este filho e que nada
venha manchar a pureza de sua alma. Prefiro que o leveis imediatamente caso
venha a perder-se para sempre”.
Sua união com Deus e o fervor de suas orações quando esperava um fi-
lho eram tão grandes que se admirava de não ver disposições para a piedade
desde o despertar da inteligência desses pequeninos. Maria, sua filha mais ve-
lha, tinha apenas quatro anos e Paulinazinha contava somente dois quando ela
confiava sua decepção à querida Visitandina. Esta por sua vez escrevia a seu
irmão, no dia 2 de fevereiro de 1864:
“Zélia já se atormenta por não ver sinais de piedade em suas filhas”.
“A criança devia ser batizada logo após o nascimento. Sempre se infor-
mava sobre esse ponto quando se tratava dos filhos de seus parentes.
“Quanto ao batizado de Teresinha foi preciso ser adiado dois dias. Deixo
aqui a palavra a Madre Inês de Jesus. Interrogada, nos Processos, sobre o moti-
vo dessa demora, respondeu:
“Porque se esperava o padrinho. Durante esse intervalo nossa piedosa
mãe estava em contínuos sobressaltos. Pelo temor de sobreviver algum mal à
criança. Imaginava constantemente que a pequena estava em perigo.
“Mamãe teve nove filhos, dos quais quatro morreram ainda pequenos.
De acordo com meu pai, quis dar a todos o nome de “Maria” unido a outro
nome, ao de José para os dois meninos.
“No dia 8 de dezembro de 1860 pedira à Imaculada Conceição um se-
gundo filho e nove meses depois chegara Paulina que se seguiu a Maria, a pri-
mogênita.
“Vivíamos somente para eles. Eram nossa felicidade. Jamais a encontrá-
vamos fora deles. Numa palavra, nada nos custava, o mundo não mais nos pe-
sava. Era para mim a grande compensação, por isso eu desejava ter muitos fi-
lhos a fim de educa-los para o Céu”. (4 de março de 1877)”117.

117
Citações extraídas do livro “A Mãe de Santa Teresa do Menino Jesus”, Carmelo do I. C. de Maria e Santa
Teresinha – Cotia(SP), págs. 11/17.

298
299
2. Carlos de Habsburgo imperador da Áustria e rei da Hungria. O úl-
timo imperador católico, padroeiro dos esposos cristãos e inspirador
da espiritualidade conjugal.

O Imperador Carlos I da Áustria, IV da Hungria e III da Boêmia, nas-


ceu no dia 17 de agosto de 1887 na Áustria e foi batizado com o nome de Karl
Franz Josef Ludwig Hubert Georg Maria von Habsburg-Lothringen (em portu-
guês: Carlos Francisco José Luiz Humberto Maria de Hasburgo-Lorena), foi o
último Imperador da Áustria, Rei da Hungria e Boêmia, entre 1916 e 1918.

300
Casado com Zita de Bourbon-Parma, pai do Arquiduque Otto de Habsburgo-
Lorena, atual Chefe da Casa Imperial da Áustria. O Beato Carlos faleceu na
cidade de Funchal, capital da Ilha da Madeira, em 1922.
Foi considerado o “príncipe perfeito” por causa de seus elevados dotes
pessoais. Chegaram a chama-lo de “Anjo de Viena”, e o circunspecto Teodoro
Roosevelt afirmou ser ele “o mais perfeito homem público da Europa atual”.
Poucas vezes se encontram conjugadas qualidades que habitualmente se
excluem. Ele possuía a maior bravura ao lado da mais insinuante e meiga doçu-
ra; a mais imponente majestade junto à mais cativante afabilidade. Qualidades
que só se conciliam em harmonia com a santidade. Mesmo sendo considerado
o mais perfeito entre os homens do seu tempo, isto não o envaideceu, e sua
humildade o fez aceitar ser vítima expiatória pelos desvarios do seu povo. Ele
assim o compreendeu e praticou no momento solene da Sua morte ao afirmar:
- Senhor! Seja feita a tua divina vontade! Nas tuas mãos entrego a minha
vida a da minha mulher e dos meus filhos. Aceita-a como holocausto pelos
meus povos.
Não encontrando nenhum apoio das autoridades governamentais de ou-
tros países, foi perseguido e exilado.

O exílio
É um dia de primavera de 1922 em Funchal, na ilha da Madeira. Na ca-
tedral de Nossa Senhora do Monte, 30 mil pessoas assistem ao funeral de um
rei de trinta e quatro anos. O homem, que foi imperador em meio aos primei-
ros destroços fumegantes do século XX, morreu pobre e exilado nesta ilha, nos
braços de sua mulher, a imperatriz, em 1º de abril desse ano. A multidão que
se aglomera dentro e fora da igreja e a maior parte dos habitantes da ilha o con-
sidera um santo. Seu nome é Carlos, Carlos I, imperador da Áustria e rei da
Hungria.
O bispo de Funchal dirá a um padre austríaco, algum tempo depois:
"Nenhuma missão concorreu tão eficazmente para reavivar a fé na minha dioce-
se quanto o exemplo dado por seu imperador em sua enfermidade e em sua
morte".
Na noite anterior à sua morte, Carlos sussurrara à mulher: "Toda a mi-
nha aspiração é conhecer sempre, o mais claramente possível e em todas as coi-
sas, a vontade de Deus, e segui-la, e da maneira mais perfeita". Era a aspiração
que o havia acompanhado durante todos os dias de sua vida.
"Em 19 de novembro de 1921, festa de Santa Isabel, aparece no horizon-
te a ilha do exílio [...] Carlos viveria mais cinco meses, e durante sua permanên-
cia o povo se deu conta de que aquele homem tinha algo mais importante que
o próprio título imperial: Carlos teve a oportunidade de se aproximar de muitas

301
pessoas; de iniciar com todos um relacionamento humano, imediato; de conta-
giar a todos com o brilho de sua personalidade, rica em sentimentos e atenções
pelo próximo. Foi assim que a simpatia inicial, cheia de compaixão, que os ha-
bitantes da ilha demonstraram por ele e sua esposa transformou-se bem cedo
num entusiasmo manifesto, que incendiou o espírito de todos.

Cronologia de uma carreira vitoriosa, mas com um final trágico


28 de junho de 1914 - O Herdeiro Presuntivo, Arquiduque Francisco
Ferdinando, é assassinado em Saravejo, Bósnia. O Arquiduque Carlos tem 27
anos quando se torna o novo Herdeiro Presuntivo.
28 de julho de 1914 - A Áustria declara guerra contra a Sérvia. O futuro
Imperador Carlos não pertence ao Conselho Privado da Coroa de Francisco
José I e não tomou parte nesta declaração.
21 de novembro de 1916 - Morre o Imperador Francisco José. Confor-
me as leis da Dinastia dos Habsburgo, com a morte do Imperador Francisco
José, o Herdeiro Presuntivo torna-se automaticamente Imperador da Áustria,
sem necessidade de nenhuma cerimônia. Em seu Manifesto de Ascensão ao
trono, o Imperador Carlos afirma: “Farei tudo o que está em meu poder para
banir os horrores e sacrifícios da guerra o mais breve possível e restituir aos
meus povos a dolorosamente perdida bênção da paz”.
30 de dezembro de 1916 - Solene coroação do Imperador Carlos como
Rei da Hungria, com a Coroa de Santo Estevão; a consagração como soberano
é administrada pelo Primaz da Hungria. A Imperatriz Zita é coroada Rainha.
30 de outubro de 1918 - Uma Assembléia Nacional provisória é criada.
Em Viena, o Parlamento Imperial é dissolvido, mas membros da Áustria ger-
mânica permanecem atrás. O “Manifesto do Povo” do Imperador Carlos, que
criava um Império federal constituído de nações-estado e que fora promulgado
em 16 de outubro de 1918, foi rejeitado pela Assembléia Nacional Checa que
declara, então, sua independência.
11 de novembro de 1918 - Ao Imperador Carlos é apresentado um de-
creto de abdicação que dá poder à Assembléia Nacional provisória. O Impera-
dor recusa-se a abdicar porque Deus lhe deu o trono como uma responsabili-
dade sagrada. É assinado apenas um compromisso em que ele renuncia o en-
volvimento pessoal na formação de um novo governo. Nesta mesma tarde, a
Família Imperial deixa o Palácio de Schönbrunn e estabelece sua residência em
Eckartsau.
12 de novembro de 1918 - A Assembléia Nacional transitória forma a
República da Áustria e separa-se da Áustria-Hungria.
Fevereiro de 1919 - O Tenente Coronel Strutt é destacado pelo Governo
inglês para proteger a Família Imperial.

302
4 de março de 1919 - A Família Imperial é conduzida para o exílio na
Suíça. O Imperador Carlos continua firme na sua recusa em abdicar. Depois de
sua partida, um decreto permanente é promulgado, banindo a Casa Imperial e
confiscando todos os seus bens pessoais.
Páscoa de 1921 - O Imperador Carlos tenta a restauração de seu trono
na Hungria. O Almirante Horthy, Regente do Rei, convence o Imperador Car-
los a retornar para a Suíça.
Outubro de 1921 - Uma segunda tentativa de restauração na Hungria é
empreendida. O Almirante Horthy trai o seu Rei, que estava acompanhado da
Imperatriz Zita, tornando a ambos prisioneiros. Entrega-os à custódia da Enten-
te que decide bani-los para um lugar não revelado.
19 de novembro de 1921 - O Imperador Carlos e a Imperatriz Zita che-
gam ao destino final de seu exílio: Funchal, na Ilha da Madeira.
Janeiro de 1922 - Com muitas restrições, a Imperatriz Zita tem licença
de viajar para a Suíça a fim de estar com o Arquiduque Roberto, que se recupe-
ra de uma cirurgia de apendicite. Na sua viagem de volta, via Portugal, ela tem a
autorização de trazer consigo seus outros filhos.
Meados de fevereiro de 1922 - Por absoluta falta de dinheiro e créditos,
o Imperador muda-se com sua família para uma casa de verão úmida e sem
aquecimento, que lhe é oferecida gratuitamente pelo seu proprietário.
9 de março de 1922 - O Imperador apanha um resfriado durante uma
caminhada para visitar Funchal. Porque não tem dinheiro, nenhum médico é
chamado para examiná-lo até o dia 21 de março. Um pulmão está infectado e,
apesar dos dolorosos tratamentos, a infecção alastra-se para ambos os pulmões.
1º de abril de 1922 - Às 12:23 hs, o Imperador Carlos morre com a ida-
de de 34 anos, depois de ter oferecido a Deus sua vida como sacrifício para o
bem de seus povos. Antes já havia perdoado a todos os seus inimigos, alguns
tidos como provocadores de sua própria morte (como alguns membros das for-
ças secretas, inimigas mortais da Fé Católica). A Imperatriz fica sem dinheiro,
viúva e mãe de sete filhos com idades entre 9 e 1 ano. Uma oitava criança nas-
cerá dois meses depois da morte do Imperador. Inicia-se a partir deste momen-
to o maior martírio da Imperatriz, abandonada, desprezada e destituída de tudo
o que possuía, até o momento de sua morte.

Palavras do Papa São Pio X a respeito do Beato Imperador Carlos da Áustria


“Carlos é um presente do céu por tudo o que a Áustria fez pela Igreja”.
(Durante uma audiência com a Família Ducal de Parma)
“Abençôo o Arquiduque Carlos, que será o futuro Imperador da Áustria
e que ajudará a conduzir suas terras e seus povos a uma grande glória, trazendo-
lhes muitas bênçãos. Mas, isso não será conhecido a não ser depois de sua mor-

303
te”.
(Durante uma audiência com o jovem Arquiduque Carlos da Áustria)

Vida de piedade
Carlos recebeu uma educação exemplar e expressamente católica e até
ao fim da adolescência é acompanhado com a oração de um grupo de pessoas,
uma vez que uma religiosa estigmatizada lhe tinha profetizado grandes sofri-
mentos e ataques contra ele. Daqui teria origem, depois da morte de Carlos, a
«Liga de oração do imperador Carlos para a paz dos povos», que em 1963 se
torna numa comunidade de oração reconhecida pela Igreja.
Bem cedo cresceu em Carlos um grande amor pela Santa Eucaristia e pe-
lo Coração de Jesus. Todas as decisões importantes eram procuradas por ele na
oração.
A 21 de Outubro de 1911 esposou a Princesa Zita de Borbone-Parma,
modelo de esposa cheia de piedade cristã. Nos dez anos de vida matrimonial
feliz e exemplar, o casal recebeu o dom de oito filhos. Sua esposa sempre o
acompanhou, até os momentos cruciais de sua morte.
O dever mais sagrado de um Rei - o empenho pela paz - foi colocado por
Carlos no centro das suas preocupações no decorrer da terrível primeira guerra
mundial, ou mesmo depois. Foi o único entre todos os responsáveis políticos
que apoiou os esforços para a paz de Bento XV.
No que diz respeito à política interna, mesmo nos tempos extremamente
difíceis encetou uma ampla e exemplar legislação social, inspirada no ensina-
mento social cristão.
O seu comportamento tornou possível no final do conflito uma transição
para uma nova ordem sem guerra civil. Mesmo assim, foi banido da sua pátria.
Por desejo do Papa, que temia a implementação do poder comunista na
Europa Central, Carlos procurou restabelecer a sua autoridade de governo na
Hungria. Mas duas tentativas falharam, uma vez que ele queria em todo o caso
evitar que se desencadeasse uma guerra civil.
Carlos suportou o seu sofrimento sem lamentações, perdoando a todos
aqueles que tinham magoado e ofendido e morreu com o olhar dirigido ao San-
tíssimo Sacramento. Como recordou ainda no leito da morte, o lema da sua
vida foi: «Todo o meu empenho é sempre, em todas as coisas, conhecer o mais
claramente possível e seguir a vontade de Deus, e isto da forma perfeita».
A 3 de Outubro de 2004 foi proclamado Beato Carlos de Áustria (jun-
tamente com Anna Catharina de Emmerich), pelo Papa João Paulo II, na Praça
de São Pedro em Roma, na presença do seu filho primogênito Otto de Habs-
burgo, então com 92 anos, e outros familiares.

304
O dia escolhido para a sua memória litúrgica foi 21 de Outubro, pois
nessa data contraiu matrimônio em 1911 com Zita de Bourbon, Princesa de
Parma. Tiveram 8 filhos, tendo nascido a última filha 2 meses depois da morte
do pai. Foi apresentado pelo Papa como padroeiro dos esposos cristãos e inspi-
rador da espiritualidade conjugal, pois no dia do seu casamento Carlos confi-
denciou à sua esposa: ‘Agora devemos conduzir-nos um ao outro para o céu.’
O processo de beatificação da Imperatriz Zita, falecida a 14 de Março de 1989,
está ainda em curso. 118

Um monarca santo, modelo de filho, de esposo e de pai cristão

Falaremos agora de São Fernando III, rei de Castela e de Leão.


A mãe de São Fernando, D. Berenguela, ou Berengária, era filha do rei
de Castela, Alfonso VIII, “El Nobre” (um dos vencedores da batalha de Navas
de Tollosa), e havia desposado Alfonso IX, rei de Leão. Irmã de D. Branca de
Castela, mãe de São Luís IX, rei de França, tal era a pureza de sentimentos, de
bondade, de piedade, enfim, de santidade que ambas herdaram e aprenderam
no seio da Santa Igreja em seu tempo que conseguiram deixar para a Cristan-
dade não só dois filhos reis, mas, acima de tudo, santos.
Uma das mostras de grande humildade e obediência à Igreja foi dada por
D. Berengária quando o Papa exigiu sua separação de Alfonso IX. O casamen-
to havia se realizado a fim de concretizar um grande sonho, que era a união dos
dois reinos de Leão e Castela, mas havia impedimentos legais perante a consci-
ência religiosa por causa do parentesco de ambos. O casal recorreu e ficou
aguardando o resultado de um pleito que havia feito ao Papa, pedindo que o
casamento fosse mantido pela Igreja. Mas a legislação canônica da época medi-
eval era muito rigorosa e o pedido foi negado. Assim, como o rei relutasse em
deixar a mulher e tentasse contemporizar tardando em obedecer, isto foi moti-
vo para que o casal fosse excomungado.
Para a consciência de Berengária aquilo era terrível, pois ela não queria
desobedecer à Santa Igreja. Finalmente, com o consentimento do rei partiu ela
de Leão para a sua terra, Castela, desfazendo assim seu casamento. Logo de-
pois, a Igreja suspendeu a excomunhão, quando o Papa Inocêncio III viu no
gesto dela um sinal de obediência, reconhecendo também como legítimos os
filhos havidos pelo casal, os quais foram-lhes entregues para educá-los. Seu pai
a recebeu de braços abertos, com quem passou a viver a partir de então, dedi-
cando-se à vida de piedade e à educação dos filhos.

- A vida religiosa do último imperador da Áustria – Giovanna Brizi – Editora


118

Lumen Christi

305
Quando Felippe II, alguns séculos depois, ordenou que fossem traslada-
dos os restos mortais de Alfonso VIII, “El Nobre” (avô de São Fernando), para
o mausoléu real que construiu no Escorial, o corpo daquele santo rei estava in-
tacto. Assim, a santidade naqueles tempos parecia ser coisa hereditária...
Seguem alguns dados sobre a vida casta e pura de São Fernando:
“Coroado rei de Castela, sempre fez questão de ser o primeiro súdito de
sua mãe, cujos conselhos observou sempre como se fossem ordens, sem se dar
nunca o caso de tomar determinação alguma que não consultasse D. Berengue-
la e obtivesse sua aprovação.
Pode-se dizer que enquanto viveu a mãe, esteve submetido a sua tutela,
não por frouxidão de caráter, nem porque lhe faltassem dotes de governo – que
bem demonstrou ter excelentes – mas porque o respeito filial que lhe professa-
va não lhe permitia fazer nada sem contar com seu consentimento, parecendo-
lhe que não cumpriria com seus deveres de bom filho desobedecendo-lhe nos
assuntos privados e prescindindo de suas opiniões e advertências nos negócios
públicos.
Aconselhado por sua mãe, casou-se em primeiras núpcias com a Prin-
ceas D. Beatriz da Suábia, de quem teve, como dissemos, sete filhos, cinco va-
rões e duas mulheres. Morta sua primeira mulher, contraiu novas núpcias com
D. Joana, filha do Conde de Ponthieu, da qual teve outros três filhos: D. Fer-
nando, D. Luiz e D. Leonor. Em ambos enlaces foi um modelo para esposos,
como igualmente o foi pais cristãos.
...Em seu venturoso lar, não se conheceram as discussões que costumam
perturbar a paz das famílias reais, com escândalo dos povos e detrimento para o
sossego público, pois os exemplos de santidade que o Rei D. Fernando III du a
sua família, não só lhe conquistaram o r espeito devido à sua autoridade de es-
poso e pai, mas também o amor de suas mulheres e filhos, pois sempre se mos-
trou com eles firme sem acrimônia, e afável sem debilidade.
Teve especial cuidado em educar os filhos no santo temor de Deus e na
simplicidade dos costumes, inspirando especialmente nos varões o horror à
moleza e a afeição pela vida ativa e laboriosa.
Sobretudo ao primogênito, por ser chamado a suceder-lhe no trono,
procurou torna-lo tão apto para as letras como para as armas, e muito jovem
ainda acompanhou o pai em suas empresas guerreiras contra os mouros119, co-
mo todos os demais irmãos varões. Em algumas ocasiões tomou o comando
supremo dos exércitos, portando-se sempre como príncipe valoroso e como
comandante experiente.

119
Cognominado “Afonso El Sábio”, seu sucessor no trono, além de valoroso guerreiro, promoveu grande avan-
ço cultural e intelectual no Reino. Ele mesmo compôs centenas de canções sob o título de “Cantigas de Santa
Maria”, uma obra-prima do cancioneiro medieval.

306
Suas filhas foram educadas na piedade, e uma das duas que teve de seu
primeiro matrimônio, D. Berenguela (mesmo nome da avó), tomou o hábito
em Las Huelgas de Burgos, acumulando a ventura do santo autor de seus dias o
oferecer especialmente a Deus uma princesa de sua linhagem. [...]120

3. Um santo abastado comerciante

“Santo Homobono (+ 1197)... era filho de um abastado comerciante de


Cremona, chamado Tucingo, o qual lhe proporcionou uma esperada educação.
Prosseguiu o negócio do pai, e viveu feliz e fielmente com sua esposa.
Todas as noites rezava as matinas e permanecia em oração até a hora da
primeira Missa, que ouvia diariamente. As esmolas com que favorecia os po-
bres eram tão pródigas que se via necessitado de usar todos os meios que a Fé
proporciona para tranquilizar a esposa, menos generosa que ele.
“E não somente obsequiava os pobres com largueza quando recorriam a
ele, mas também ia pessoalmente visita-los em suas míseras habitações, a fim de
ajuda-los com a esmola material e a espiritual. Sua grande firmeza permitiu-lhe
manter-se em contínua paz consigo mesmo e com os seus semelhantes. Decor-
reu-lhe a existência sempre como se ele se achasse na presença do Senhor; nos
momentos de sossego, seu espírito se unia ao Todo-poderoso. Não se sabe que
idade alcançou. A biografia não especifica a idade em que faleceu, somente fa-
zendo constar o caráter edificante de toda a sua vida”121

120
“San Fernando, Rei de España – Vidas populares”, Editorial Apostolado de la Prensa, Madri, 4ª.ed, págs.
101/105. “A Mãe de Santa Teresa do Menino Jesus”, Carmelo do I. C. de Maria e Santa Teresinha – Cotia(SP
121
“El verdadeiro rostro de los santos”, Ed. Ariel, Barcelona, 1952, pág. 96.

307
11 Os pecados contra a natureza

Que significa a expressão “pecados contra a natureza?” São aqueles pe-


cados que atentam contra o que Deus dispôs na Criação, especialmente na na-
tureza humana para cumprir sua função como ser destinado à glória de Deus.
Assim, Deus dispôs os órgãos humanos cada um com sua função e sua finali-
dade. A boca é destinada a altos fins: falar, sobretudo louvar a Deus, saborear
os alimentos, etc; os olhos foram destinados para a contemplação e admiração
das maravilhas que Deus fez no Universo, etc. Enfim, cada órgão, cada mem-
bro, cada parte do corpo humano foi destinado a um fim elevado, pois o corpo
do homem em seu conjunto é destinado a ser templo de Deus. Não pode, pois,
o homem usar dos membros de seu corpo para outros fins que não sejam aque-
les para os quais foram criados.
Nesta linha de raciocínio, os pecados contra a natureza são aqueles em
que o homem violenta sua própria natureza e investe contra a obra de Deus em
si mesmo. Neste sentido, o pecador pode perder até mesmo o dom natural de
auto-regência, ficando a mercê não somente de seus baixos instintos, mas tam-
bém sob o domínio diabólico, pois as faculdades superiores do homem estando
adormecidas deixarão que outros seres as guiem. É a inversão da ordem natural
criada por Deus que mais deixa o homem sob o poder dos anjos maus.
Quais são os chamados pecados contra a natureza? São, principalmente,
os de sexo, como a inversão sexual, o homossexualismo, a sodomia, etc. Este
pecado é chamado um daqueles “que clamam ao Céu e bradam a Deus por
vingança”. Isso porque, segundo a Doutrina Católica, ele se opõe à propagação
da espécie humana (fim último a que se destina o órgão sexual) e ao próprio
bem social, fazendo com que Deus o castigue ainda nesta vida.
O principal pecado de Onan (Gên 38, 8-10) foi o de impedir a procria-
ção e, por isso, tido como um ato abominável por Deus e punido com a morte.
Neste caso, impedir a procriação é também pecado contra a natureza, pois foi o
primeiro mandamento deixado por Deus ao criar o homem: “crescei-vos e mul-
tiplicai-vos, e povoai toda a terra”. Porém a Igreja, especificamente, não cir-
cunscreve o pecado de impedir a procriação como um daqueles que clamam
aos céus por vingança e sim o de sodomia. Deste modo, é provável que Onan
tenha praticado num só ato dois pecados, duas ofensas a Deus: o impedimento
da procriação (que interrompia a continuidade hereditária que geraria o Messi-
as, pois se tratava da tribo de Judá), que pode ser interpretado também como

308
contrário à natureza, e o outro ato, a sodomia (materializando a rejeição da
procriação talvez num ato sodomítico), que além de ser contrário à natureza
clama a Deus por vingança e o sujeita ao castigo de morte.
De que modo Onan impediu sua esposa de conceber? A Sagrada Escri-
tura não o diz, mas ele deve ter usado um recurso compatível aos atos contrá-
rios à natureza, que naqueles tempos remotos eram mais rudes. Alguns moralis-
tas dizem que ele pode ter usado um recurso para bloquear o sêmen, que a Sa-
grada Escritura talvez não o mencione claramente por não querer ferir os ouvi-
dos pios. Teria ele forçado sua esposa a “mudar o uso natural” como se refere
São Paulo (ver texto abaixo) e praticado a sodomia? Ou teria usado algum re-
curso contraceptivo ensinado por feiticeiros?
O pecado de sodomia, não exclusivamente o de homossexualismo, teria
motivado os conhecidos castigos de Deus, matando não só uma pessoa como
Onan, mas cidades inteiras como Sodoma e Gomorra, ou até mesmo as cida-
des romanas Herculano e Pompéia, destruídas pelo vulcão Vesúvio pois eram
ninhos de abominações de pecados contrários à natureza, como sodomia e
homossexualismo. Se a tanto chegou Deus por causa de um ou outro homem,
o que não dizer hoje de cidades ou até mesmo povos inteiros que praticam im-
pune e atrevidamente tais pecados?

Homossexualismo, pecado contra a natureza


Quando se trata de falar de pecados contra a natureza, por ser algo muito
abrangente, não fica difícil para o moralista católico usar de linguagem recatada.
Porém, quando o assunto é o pecado de homossexualismo todo cuidado é
pouco no uso da linguagem adequada e que não fira os ouvidos castos e piedo-
sos. De tal forma este pecado é infame que corre o risco até de manchar a lin-
guagem quando dele se fala, daí São Paulo haver dito que estes pecados não
devem sequer ser nomeados entre os cristãos (Ef 5, 3).
Assim, vamos tratar do tema com o máximo de cuidado neste aspecto,
mas também tentando dar toda a explicação necessária a um entendimento
mais claro sobre um pecado tão horroroso, hoje em dia tão mal explicitado.
De início, vamos classificar os tipos de pessoas que praticam tais abomi-
nações. Como já foi dito acima, o pecado de homossexualismo é parte inte-
grante dos pecados contra a natureza (e que bradam aos céus e pedem a Deus
por vingança), aí inseridos outros de natureza moral e sexual, como o aborto, o
incesto, a anti-natalidade, etc. Que tipos de pessoas cometem o pecado de ho-
mossexualismo? Veremos que existem três ou quatro tipos, divididos entre
“passivos” e “ativos”.
Aplicamos aqui os qualificativos de “ativo” e passivo” para designar dois
tipos de ação que caracterizam o ato sexual em si. E próprio do homem ser

309
“ativo”, pois além de, geralmente, ser ele quem toma as iniciativas do ato, é ele
também que exerce completo domínio sobre a mulher. De outro lado, é ele a
parte inseminadora, executante do ato, competindo à mulher, passivamente,
acolher em suas entranhas todo o resultado daquela ação. Não cabe ao homem,
por exemplo, sentir o prazer do ato em seu interior, e sim à mulher. O desvir-
tuamento dessa situação (o homem como “ativo” e a mulher como “passiva)
constitui-se num rompimento das disposições naturais postas por Deus nas cria-
turas animais, especialmente nas humanas.
O mais comum dos homossexuais, que é do “tipo” passivo, é do homem
que faz o papel de mulher na relação sexual com outro homem (sendo este o
ativo). O segundo “tipo”, como se viu, seria o que faz papel ativo de homem.
Em seguida, teremos o terceiro “tipo”, que seria o de duas mulheres (ambas
passivas) praticando não ato sexual propriamente dito, mas um relacionamento
atípico onde os atos praticados seriam meramente de carícias e afagos e não de
relação sexual, pois para que esta exista há necessidade de uma ação ativa (co-
mo a do homem). Na instrumentação de tais atos, essas mulheres teriam que
usar de recursos artificiais para sugerir uma “ação sexual” a qual, sendo ambas
mulheres, seria impossível de se concretizar, a não ser através de recursos me-
cânicos e artificiais.
A artificialidade de tais atos fica mais intensa no mundo moderno com
uso de instrumentos, tanto para causar excitação quanto para provocar o gozo
pecaminoso, gerando no final uma grande frustração. De modo especial, o uso
de preservativos na tentativa de se evitar o contágio de doenças, ao contrário do
que dizem, causa maior frustração na obtenção de um gozo completo. Daí a
razão que, numa pesquisa, verificou-se que muitos deles só usam preservativos
nos primeiros momentos de seus atos, terminando por buscar um gozo mais
total sem uso de tais recursos. Isso mostra que os preservativos só fazem au-
mentar a promiscuidade sexual.
Classificaríamos um quarto “tipo”, que talvez não possa se inscrever co-
mo os que praticam o homossexualismo propriamente dito, pois trata-se do ato
que São Paulo chama “inversão sexual” (vide abaixo) praticado por um casal
comum, formado de homem e mulher. Trata-se de um pecado contra a natu-
reza, é verdade, mas como ocorre uma inversão sexual (com relação à mulher)
a gravidade dele se iguala ao do homossexualismo. Muitos casais modernos pra-
ticam tal pecado com certa naturalidade, julgando que por serem casados tudo
se lhes é permitido em seu relacionamento. E até mesmo certos moralistas não
consideram tais atos como pecados, indulgenciando quem os comete. Não é o
que diz o Apóstolo São Paulo, cujo pensamento a respeito reproduzimos abai-
xo, condenando veementemente tal procedimento como um pecado afim ao
do homossexualismo.

310
Como é que um indivíduo chega à prática do homossexualismo? O ca-
minho até chegar a tal pecado é longo e sinuoso às vezes, mas também pode ser
curto, pois às vezes existem pessoas que são iniciadas desde criança em tal vida,
mas outros o fazem até depois de maduros. Antes de tudo, assinalamos que
esse desvio comportamental é de natureza eminentemente moral. Não tem
sentido, portanto, certa literatura sentimental que afirma que os desvios homos-
sexuais são provenientes de saúde psíquica e de sentimentos afetivos malforma-
dos desde a infância. Também não tem sentido afirmar que o homossexualis-
mo é uma “opção sexual”, porquanto, de modo geral, somente um dos que o
praticam usa o sexo. Poder-se-ia dizer que seria uma “opção moral”, pois trata-
se de um comportamento no relacionamento social.
Os casos de doença, ou de pessoas que nascem com sexos malformados
(como os hermafroditas) por causa de desequilíbrios nos hormônios, são tão
poucos, tão irrisórios, que não se deve levar em consideração. São, portanto,
casos esporádicos que devem ser considerados apenas como raríssimas exce-
ções. A imensa maioria dos homossexuais, como aqueles que têm conivência
com eles e lhes aplaudem, assim o são por causa de um processo de decadência
moral que se passou no interior de sua alma, por causa de uma formação moral
feita por amoralismos, insinuações, afetos e carícias insinuantes, etc.
Em primeiro lugar, teremos aquele que foi criado num ambiente amoral,
onde sua própria família pratica atos indecorosos com naturalidade e onde não
há consciência sobre formação moral dos filhos. Nos contatos com outras pes-
soas são incitadas as más inclinações para a prática de atos contra a natureza,
pois os atos naturais lhe causam enjôo e às vezes já está saturado deles.
É comum o caso de homossexuais (mesmo do tipo passivo) que, sendo
de início pessoas normais, chegaram a tal por causa da exacerbação de seu ins-
tinto sexual. De tanto conviver com mulheres na prática dos desvios morais e
de inversões sexuais com elas, resolvem “experimentar’ aquela sensação de pra-
zer que eles vêem os outros sentir. Assim, o homossexualismo lhe surge em
certo momento como um novo sentimento afetivo e na busca de um novo pra-
zer ainda não sentido. (O prazer das entranhas, próprio às mulheres) Em geral,
os homens têm muita propensão para novas experiências ou mesmo para aqui-
lo que é proibido ou fora do normal. Por isso tem sido muito comum nos últi-
mos dias a declaração da condição de homossexual feita por homens casados e
alguns que possuem até filhos.
Esse novo prazer, na realidade, não é tanto um prazer carnal, mas a satis-
fação de ter infringido a lei moral, o gozo de ter ofendido a lei de Deus e a lei
natural, a satisfação em manifestar sua revolta contra a ordem do universo em si
mesmo. Trata-se, acima de tudo, de um pecado de orgulho. Não visa, portanto,
à busca da felicidade como dizem, pois muitos deles já possuem essa tal “felici-

311
dade”, desfrutam de uma vida cheia de conforto e de todos os prazeres que a
vida moderna oferece. Isto pode ser alegado por eles, mas apenas como pre-
texto, pois na realidade trata-se de uma forma de revolta contra Deus, ou até
mesmo um desespero porque sente-se frustrado na prática dos atos que ele jul-
gara “naturais” e que, na realidade, já o movia para onde chegou.
O mesmo orgulho se dá com aqueles que praticam o adultério. Em geral,
os adúlteros procuram aventuras amorosas fora do casamento porque sabem
que estão tomando uma atitude ilícita, estão não só rompendo a fidelidade
prometida ao consorte, mas sobretudo infringindo uma lei divina. Ora, se o
sentimento fosse apenas a busca do prazer porque não procurá-lo junto à sua
esposa? Assim, essa busca do prazer fora do casamento, no adultério, causa
uma outra satisfação: a de ter ferido a Lei de Deus e se insurgido contra a Or-
dem posta por Deus no relacionamento social.
Para comprovar o que afirmamos acima, temos a notícia de que uma
ONG americana resolveu fazer um protesto inusitado: condenam aquelas mu-
lheres homossexuais que realizam operações para se transformar em “homens”
e dar mais satisfação às suas companheiras. Não se trata aqui de protestar por-
que a “operação” é um ato contrário à natureza humana. Não, o protesto é
porque aquelas que foram “operadas” deixariam a condição de homossexual
feminina e passariam a constituir com a outra um “casal” normal. Lutam, por-
tanto, estas ativistas homossexuais para que as lésbicas permaneçam como tais,
pois é esta a condição que escolheram para manifestar o ódio a Deus e á Sua
Criação.
O mesmo caminho que leva ao homossexualismo, também conduz às
drogas, à prostituição, até mesmo aos ciúmes e crimes passionais. Os movimen-
tos libertários dos homossexuais vivem reclamando da violência de que dizem
ser vítimas. Mas, na realidade, a violência é praticada entre eles mesmos, pois a
maioria dos crimes e dos assassinatos de homossexuais ocorre entre eles e é
cometido pelos próprios casais que se desentendem por questões de ciúmes.

A voz da Sagrada Escritura e da Santa Igreja


Encontramos na Sagrada Escritura, tanto no Antigo como no Novo Tes-
tamento, formal execração dos pecados contra a natureza, especialmente os de
sodomia:
“Não usarás de macho como se fosse fêmea, porque isto é uma abomi-
nação. Não te ajuntarás com besta alguma, nem te mancharás com ela. A mu-
lher não se prostituirá deste modo a algum animal, porque isto é um crime da
última fealdade". (Levítico 18, 22-23).

312
"Aquele que dormir com macho, abusando dele como se fosse fêmea,
morram ambos de morte, como quem cometeu um crime execrável: o seu san-
gue recaia sobre eles”. (Levítico 20, 13).
O Apóstolo São Paulo também os execra: “Nem os fornicadores, nem os
adúlteros, nem os efeminados possuirão o Reino de Deus”. (1 Cor 6, 9-10).
Da mesma forma, São Judas: “Assim como Sodoma, Gomorra e as cida-
des circunvizinhas, que fornicaram com elas e se abandonaram ao prazer infa-
me, foram postas por escarmento, sofrendo a pena do fogo eterno, da mesma
maneira também estes contaminam a sua carne, desprezam a dominação (de
Cristo) e blasfemam da majestade” (Epístola de São Judas 7-8).
Santo Agostinho assim se refere a tais pecados em sua obra “Confissões”:
“As devassidões contrárias à natureza, sempre e em toda parte se devem detes-
tar e punir, como o foram os pecados de Sodoma. Ainda que todos os povos os
cometessem, cairiam na mesma culpabilidade de pecado, pela lei de Deus, que
não fez os homens para assim procederem. Efetivamente, viola-se a própria
união que deve existir entre Deus e nós, quando a natureza, e quem Ele é au-
tor, se mancha pelas paixões depravadas”.
O Papa São Pio V aprovou o documento chamado “Cum primum”, em
1º de abril de 1566, onde não só execra mas pune severamente os pecados con-
tra a natureza, onde se lê em alguns trechos:
“Tendo voltado nosso espírito para remover tudo quanto possa ofender
de alguma maneira a Divina Majestade, estabelecemos punir, antes de tudo e
sem indulgência, aquelas coisas que, pela autoridade das Sagradas Escrituras ou
por gravíssimos exemplos, se apresentam como repugnantes a Deus mais do
que quaisquer outras e que o induzem à cólera: ou seja, o relaxamento do culto
divino, a ruinosa simonia, o crime de blasfêmia e o execrável vício libidinoso
contra a natureza...” “..Se alguém cometer aquele nefando crime contra a natu-
reza, por culpa do qual a ira divina desencadeou-se sobre os filhos da iniqüida-
de, será entregue ao braço secular para punição e, se for clérigo, será sujeito a
análoga pena depois de ter sido privado de todos os graus”

Malefícios causados pelo pecado infame


As conseqüências que podem advir socialmente dos pecados contra a na-
tureza, especialmente os de homossexualismo, estão assinalados neste trecho
do Deuteronômio: “Sua vinha vem da vinha de Sodoma e dos subúrbios de
Gomorra; sua uva é uva de fel, e seus cachos amargosíssimos. O seu vinho é fel
de dragões e veneno incurável de áspides. Porventura não estão guardadas estas
coisas junto a mim e seladas nos meus tesouros? A mim pertence a vingança e
eu lhes darei a paga a seu tempo, para que o seu pé resvale; está próximo o dia
da perdição e os seus tempos se apressam a chegar” (Deut 32, 32-35)

313
Em sua obra sobre a Castidade o Padre Manuel Bernardes enumera os
principais malefícios de tal pecado:
“Os danos que traz consigo são muitos e gravíssimos. Dissipa as forças,
embota o engenho, cega o juízo, debilita a vista, afemina o ânimo, encurta a vi-
da. Mas estes danos nenhuma comparação têm com os da alma: porque destrói
a graça e virtudes, afugenta as inspirações de Deus, é causa de muitas nulidades
no Sacramento da Penitência, por falta de verdadeira dor e propósito; pega o
coração às coisas terrenas e transitórias e o torna esquecido das eternas; porque
assim como no vinho há luxúria (como disse São Paulo “Vino in quo est luxu-
ria” (Ef 5, 18), assim na luxúria há vinho; quer dizer, efeitos semelhantes aos
do vinho, quando é muito, que aliena o juízo e desterra os cuidados de impor-
tância, deixando só vontade de rir, folgar, e dormir, e tornar a beber.
“Alem disso, o miserável que serve a este vício, vive mui arriscado a es-
corregar em outros mais abomináveis, porque mora “in suburbanis Gomor-
rhae”, e mete ao Demônio dentro em seu corpo, porque este é coisa sua, pois o
venceu; e nele monta e brinca a seu gosto, melhor do que costuma fazer um
picador sobre um cavalo. E se o mau costume se não atalha com tempo a todo
o custo e diligência, vem a dar uma devassidão tal, que o que é livre alvedrio
parece violenta necessidade. De onde se seguem tentações contra a Fé e contra
a esperança de salvação, tristezas profundíssimas, espírito de blasfêmia, suspei-
tando que Deus não tem vontade sincera de salvar as almas, ou que é injusto
em proibir estas coisas, que poderiam passar como indiferentes. Porque já nes-
tes termos o pecador, vendo que não pode amoldar o seu gosto à lei de Deus,
quer amoldar a lei de Deus ao seu gosto”122
Os malefícios acima se referem à alma do pecador, mas existem outros
que são os de natureza social, que seria o ferir o princípio da propagação da
espécie que Deus colocou em todos os seus seres animais. E isto se daria com a
prática de tais pecados na sociedade, como o que São Paulo chama de “inver-
são sexual”. Assim, a chamada inversão sexual não é só o homossexualismo.
Todo e qualquer pecado que desvie as funções sexuais de seu fim último que é
a propagação da espécie, buscando unicamente o gozo íntimo das pessoas, se
constitui em pecado de inversão sexual. Até mesmo a fruição gozosa através de
outros membros do corpo, usando-os com a função sexual. Neste sentido, é
importante o que diz São Paulo e São João Crisóstomo sobre o assunto.

Dois grandes santos execrando o homossexualismo e a sodomia


Vejamos uma homilia de São João Crisóstomo sobre texto da Epístola
aos Romanos, de São Paulo, condenando os pecados contra a natureza:

122
Obras do Padre Manuel Bernardes – Luz e Calor – vol. II – págs. 124/125

314
O Texto de São Paulo:

“Pelo que Deus os abandonou aos desejos do seu coração, à imundície;


de modo que desonraram os seus corpos em si mesmos; eles que trocaram a
verdade de Deus pela mentira e que adoraram e serviram a criaturas de prefe-
rência ao Criador, que é bendito por todos os séculos, Amém.
“Por isto Deus entregou-os a paixões de ignomínia. Efetivamente, as suas
próprias mulheres mudaram o uso natural em outro uso, que é contra a nature-
za, e, do mesmo modo, também os homens, deixando o uso natural da mulher,
arderam nos seus desejos mutuamente, cometendo homem com homem a tor-
peza e recebendo em si mesmos a paga que era devida ao seu desregramento.
Como não procuraram conhecer a Deus, Deus abandonou-os a um sentimento
depravado, para que fizessem o que não convém, cheios de toda iniqüidade, de
malícia, de fornicação, de avareza, de maldade, cheios de inveja, de homicídios,
de contendas, de engano, de malignidade, mexeriqueiros, detratores, odiados
por Deus, injuriadores, soberbos, altivos, inventores de maldades, desobedien-
tes aos pais, insensatos, sem lealdade, sem afeto, sem lei, sem misericórdia. Os
quais, tendo conhecido a justiça de Deus, não compreenderam que os que fa-
zem tais coisas são dignos de morte; e não somente quem as faz, mas também
quem aprova aqueles que as fazem” (Rom. 1, 24-32).

A homilia de São João Crisóstomo:

“Todas as enfermidades da alma são afrontosas, porém de forma toda


especial o é a loucura sodomítica, pois maior sofrimento e vergonha experi-
menta a alma com os pecados do que o corpo com as enfermidades. Conside-
rai como o Apóstolo reputa aos pecados de sodomia indignos de perdão, da
mesma forma que os dogmas errôneos. E das mulheres diz: “Trocaram o uso
natural”. Porque essas não podem alegar que foi por falta de união conforme à
natureza que recorreram a essa depravação; e nem que, por não poder satisfa-
zer sua inclinação natural que caíram nesses furiosos desejos alheios a seu pró-
prio sexo, porque a troca é própria de quem já possui algo. Afirmação, aliás,
referente também aos dogmas: “Mudaram a verdade de Deus na mentira”.
“E a mesma coisa afirmou também dos varões, dizendo: “Deixando o
uso natural da fêmea”. Igualmente não deixou a estes possibilidade alguma de
defesa, acusando-os não só de que, tendo o seu modo próprio natural de gozar,
o deixaram por outro, mas que, abandonando o que é conforme a natureza re-
correram a outro que era contra esta. Acresce ainda que há mais dificuldade e
menos prazer nessas uniões antinaturais do que nas que são conforme a nature-

315
za. De maneira que os homossexuais não têm sequer o pretexto de procurarem
um maior gosto. Porque o deleite sexual genuíno é conforme a natureza. Mas
quando Deus desampara, tudo se perverte. Portanto, pode-se afirmar dos so-
domitas, são só que seus dogmas eram satânicos , como que diabólica era suas
vidas.
“Falando dos dogmas tomo em consideração o mundo e a razão huma-
na, dizendo que com a inteligência recebida de Deus, podia o homem pelas
coisas visíveis chegar ao conhecimento de seu Criador. E como não quiseram,
se tornaram indignos do perdão. E em lugar do deleite conforma a natureza, do
qual podiam usar livremente e com mais gosto e livrarem-se da torpeza, recusa-
ram-no, afrontando sua própria natureza, razão pela qual não merecem o per-
dão de Deus.
“E o que é ainda mais torpe é que as mulheres desejaram aquelas uniões
que deveria causar-lhes vergonha que se se juntassem com varões.
“Nesse ponto é admirável a discrição e a prudência de Paulo ao ver co-
mo tendo que tratar de escolhos contrários, soube escolher com grandíssimo
acerto e delicadeza. Porque ele quer conseguir ao mesmo tempo duas coisas
que são pouco menos que impossível: falar castamente e comover seus ouvin-
tes.
“E a dificuldade está em que se queres atacar a fundo é preciso dizer a
verdade claramente sem disfarces; e (se) falas castamente não podes impactar os
ouvintes. Mas a prudentíssima e santíssima alma do Apóstolo conseguiu ambas
as coisas, pondo ênfase na acusação, nomeando a “natureza” e usando deste
véu para que fosse casta sua linguagem.
“Depois de haver acometido primeiro as mulheres, empreendeu contra
os homens, afirmando: “Igualmente seus varões [os romanos] deixaram o uso
natural da fêmea”, o que é indício de extremo desvario.
“Corrompidos ambos os sexos, o varão que foi constituído por Deus se-
nhor da mulher, a quem se ordenou que fosse sua companheira, atuaram entre
si como se fossem inimigos mortais.
“Considerai a ênfase com a qual o Apóstolo fala. Porque ele não diz que
se amaram e desejaram mutuamente, mas que “estalaram” como uma chama,
se incendiaram em mútuos desejos. Vedes como todo mal é proveniente da
paixão da concupiscência e da avidez desenfreada? Porque o desejo tempestuo-
so não suporta freio, respeito ou limite algum. Ultrapassando as leis estabeleci-
das por Deus, deseja coisas estranhas e não sabe guardar moderação alguma.
Pois assim como vemos ás vezes que os que se aborreceram no apetite de igua-
rias se lançam para comer pedras e pedregulhos, assim esses depravados se in-
cendiaram em desejos contra a lei.

316
“E se perguntas: Donde provém tão depravados desejos te direi: Foram
desamparados por Deus. E o desamparo de onde veio? De sua perversidade
em abandonar e ofender a Deus, “executando suas torpezas homens com ho-
mens”.
Ao ouvirdes dizer que “se incendiaram”, não acrediteis que a enfermida-
de consiste só em desejos, porque grande parte do mal proveio da ociosidade e
da preguiça, que não faz outra coisa senão atiçar a concupiscência.
“E assim, São Paulo não diz que foram arrastados e surpreendidos, como
em outras circunstâncias, senão que foram “executando”. Puseram por obra seu
pecado e não de qualquer maneira, porém com afinco e ardor. E não disse seu
“desejo”, senão com mais propriedade sua “torpeza”, pois desonraram a natu-
reza e calcaram aos pés suas leis.
“Considerai a confusão e a desordem que a um e outro sexo tal deprava-
ção tem causado. Porque não só colocaram os pés para cima e a cabeça para
baixo, mas se fizeram inimigos mutuamente uns dos outros provocando o in-
cêndio de uma múltipla e variada luta mais injusta e terrível que todas as guerras
civis.
E a razão é que deviam ser uma só coisa o homem e a mulher: “serão
dois numa só carne” (Mt 19, 5), cumprindo assim esse mandamento pela incli-
nação natural de um sexo sobre o outro, que os unia entre si.
“Porém, subtraído por obra do demônio, esse desejo natural e torcido e
pervertido em outro, o maligno afastou e dividiu os dois sexos do mútuo trato,
fazendo com que o que antes era um se transformassem em dois contra a Lei
de Deus. Esta é a primeira guerra.
“Além disso, fez o demônio que estas duas partes se fizessem entre si
mutua guerra porque as mulheres desonraram as mulheres e não apenas os
homens; e os homens por sua parte se levantaram não só entre si, uns contra os
outros, mas também contra o sexo frágil como se estivessem numa tenebrosa
luta.
“Não vedes, portanto, como não é uma só guerra, senão uma dupla, trí-
plice, quádrupla e ainda mais? Porque, além disso, é uma luta contra a própria
natureza. Pois vendo o demônio que a concupiscência natural unia sumamente
os dois sexos, procurou com grande empenho desfazer esse vínculo de tal ma-
neira que não só se extinguisse a linhagem humana por falta de descendência,
como também pela guerra interna e perpétua de uns contra os outros.
“Recebendo em si mesmo o pagamento merecido de sua obcecação e ex-
travio”.
“Vede como o Apóstolo volta a insistir novamente na fonte e origem de
todo o mal: a impiedade de seus dogmas e crenças sobre a divindade. Porque
vendo que os homens ímpios e aferrados às coisas da presente vida não lhe da-

317
riam ouvidos se lhes falasse do inferno e dos suplícios, mas que até pelo contrá-
rio ririam dele, deu-lhes a entender que no próprio pecado e voluptuosidade já
recebiam o castigo. E se não o sentiam, senão até se alegravam, não é de se es-
tranhar, porque os loucos furiosos também se lastimam e se despedaçam en-
quanto riem ao mesmo tempo.
“E enquanto para os demais são objeto de comiseração e pranto, nem
por isso dizemos que lhes falta o suplício senão que precisamente por isso é
maior seu castigo e dano, porque não se dão conta de seu mísero estado.
“Na antiguidade promulgou-se uma lei pela qual um dos legisladores
mandou que nenhum escravo se entregasse a amores de mancebos. Reservando
esta prerrogativa, ou melhor dito, essa torpeza, para os homens livres. Apesar
disso, eles não a reputaram torpeza, senão coisa honesta e honrosa, e tão digna
de apreço que não devia outorgar-se a gente de condição servil mas a homens
livres. E isso deu-se com o sapientíssimo povo ateniense e seu grande legislador
Solon. E conta-se que não foi só ele, mas muitos livros de filósofos estão infec-
cionados dessa enfermidade. Entretanto, nem por isso vamos dizer que fosse
coisa lícita, honesta e legítima, senão que os que aceitaram tal lei são infelizes e
dignos de lástima. Pois as afrontas que admitem prostituem seus corpos, tole-
ram também este desvario. Porque naquelas ações, se não é legítimo o comér-
cio carnal, pelo menos não é contra a natureza. Enquanto que nesses atos, pelo
contrário, não só é ilegítimo como antinatural. E ainda que não houvesse infer-
no, nem os ameaçasse Deus com suplícios, já seria esta abominação o pior dos
suplícios.
““ Mas, apesar disso, não estão esses infelizes muito alegres e contentes?
Tanto pior. Porque se víssemos correr um homem nu e cheio de lodo pelas
ruas, sem corar-se de envergonhado, mas antes se alegrando disso, não lhes da-
ríamos os parabéns, mas ao contrário, lamentaríamos que não se dessem conta
de sua indecência.
“Os homossexuais são piores que os suicidas, porque mais vale a pena
morrer do que viver em tal afronta. Porque o suicida aparta a alma do corpo,
enquanto os homossexuais e lésbicas perdem juntamente o corpo e a alma.
Não há pecado algum que a essa iniqüidade comparar se possa, e se os que so-
frem tais desregramentos tivessem juízo, mil mortes prefeririam a tolerar seme-
lhante infâmia.
“Não há coisa tão irracional e tão grave quanto este pecado. Pois falando
da fornicação disse São Paulo: “Qualquer outro pecado que o homem cometa,
fica fora dele; mas quem fornica peca contra o próprio corpo” (I Cor 6, 18).
Que diremos então desta loucura, que é tanto pior que a fornicação que é im-
possível exprimir? Porque desse modo não digo só que te transformastes numa
mulher, senão que deixastes de ser homem, pois mudastes a natureza sem con-

318
servar a que tinhas. Afrontastes os dois sexos ao mesmo tempo, merecendo que
te enxotem com pedradas. E para que vejas a gravidade deste delito, se viesse
um homem prometendo transformar-te num cão, tu não o enxotaríeis encoleri-
zado?
“Pois tu, de homem te transformastes não num cão, porém num animal
mais vil. Pois o cão pelo menos serve para alguma coisa, mas o invertido não
serve para nada. O que te parece isso?
“Se alguém ameaçasse fazer com que os homens parissem não seríamos
todos tomados de cólera? Pois piores coisas fazem os que se entregam às práti-
cas homossexuais, a tão insigne loucura. Porque não é a mesma coisa fazer-se
de mulher permanecendo homem.
“E se por outra via quereis saber quão grande é esse mal, interrogai por-
que os legisladores castigam aos que se castram e sabereis que não é por outra
razão de que eles mutilam a natureza. E, sem embargo, não é tão grande seu
estrago porque ainda depois de castrados servem para muitas coisas; porém não
há coisa mais inútil que um homossexual, porque não só sua alma como tam-
bém seu corpo é uma tão grande ignomínia, que merece ser expulso do conví-
vio humano. Quantos infernos serão suficientes para eles?
“Mas se ao ouvirdes falar do inferno sorris e te mostra incrédulo, lembra-
te do incêndio que devorou Sodoma, quando vimos já nesta vida uma imagem
do Inferno. Porque como muitos desses infelizes não haveriam de crer nas coi-
sas que depois da ressurreição final irão acontecer, ouvindo falar agora que
aquele fogo é inextinguível, caíram em si. Tão terrível foi o incêndio de Sodo-
ma como sabem os que lá foram ver essa praga enviada por Deus e aquela obra
feita pelos raios. Pondera, pois, quão grave é o pecado que fez aparecer o fogo
do inferno antes do tempo. Porque desprezando muitos aos eternos fogos,
mostrou-lhes Deus de um modo novo a imagem do Inferno. Era tão estupenda
aquela chuva de fogo, porque também o era o pecado contra a natureza que
inundou a terra e a atraiu sobre a concupiscência que havia inundado suas al-
mas. Essa é a razão pela qual aquela chuva de fogo e enxofre era contrária á
chuva usual e comum, a tal ponto que não só não dispôs a terra para receber a
semente e dar fruto, senão que a esterilizou completamente. De forma seme-
lhante ao comércio inútil que aqueles sodomitas faziam em seus corpos.
“Haverá coisa tão infame e execrável como um homem fazer às vezes de
meretriz? Oh furor! Oh estupidez! Como pode se propagar esta concupiscência
que invadiu a natureza humana como um exército em tempo de guerra? E tan-
to mais molesta e grave quanto é melhor a alma que o corpo? Ó vós que sois
mais irracionais que os brutos e mais sem-vergonhas que os cães! Pois nunca
entre esses houve coisa semelhante, pois a natureza reconhece e respeita os de-

319
vidos limites, enquanto vós desconheceis mais vossa linhagem com uma tão
grande afronta.
“De onde nasceram tão grandes males? Da voluptuosidade de que não
reconhecíeis a Deus, pois posto fora o temor de Deus desaparecem todos os
bens.
“Para que isto não suceda, pois, tenhamos sempre diante dos olhos o
temor de Deus.
“Porque não há coisa que arraste o homem a tão grande ruína como o
desprender-se desse seguríssimo apoio, como também nada o guarda e protege
tanto como apoiar-se nessa seguríssima âncora. Porque se a presença de um
homem pode nos impedir de pecar e até mesmo se por respeito a um criado
virtuoso e modesto evitaremos todo despropósito, considera quão grande segu-
rança alcançaremos se trouxermos a Deus sempre diante dos olhos. Nunca se
atreveria o demônio atacar-nos vendo-nos tão precavidos porque trabalharia em
vão. Mas se pelo contrário nos vê andando sem freios, aproveitando-se de nos-
sa distração, tratará imediatamente de apartar-nos do rebanho de Cristo.
“É o que costuma acontecer com os criados remidos e folgados que, não
cumprindo com prontidão as ordens urgentes, para cujo cumprimento lhes en-
viaram seus senhores, mas indiscreta e imprudentemente foram se entretendo
com tudo quanto encontravam pelo caminho gastando tempo inutilmente, isto
mesmo nos sucederá se não atendermos o que for ordenado por Deus.
“Paramos distraidamente para admirar as riquezas, a formosura corporal
e outras coisas que não nos importam como os criados que ficam olhando os
mendigos charlatões que enganam e fascinam o povo com seus artifícios e re-
cebem logo o castigo merecido pelo tempo que perderam.
“Há também muitos que abandonando o caminho reto seguem os maus
exemplos dos outros, praticando com eles torpezas e desonestidades.
“Não façamos também nós assim, pois se nos enviaram para importantís-
simos e urgentes negócios. E se, fazendo caso omisso, gastamos inutilmente o
tempo em ficar olhando bagatelas, receberemos o castigo supremo.
“Porque se desejas empregar bem o tempo, já tens coisas de sobra para
admirar e desejar com toda a alma, coisas louvabilíssimas e digníssimas, não de
risos como aquelas futilidade dos criados, senão de admiração tanto quanto que
o é o admirador de coisas ridículas vem a tornar-se iguais ou piores que esses
que ficam provocando risos no populacho. Para que não te aconteça coisa se-
melhante, finca o pé atrás, imediatamente, a qualquer solicitação”.123

123
Homilia IV in Epistula Pauli ad Romanos, in PG 47, 360ss, apud Fábio Bernabei

320
Pecado que reina entre os maus ministros
Santa Catarina de Sena ouviu de Deus o seguinte comentário sobre os
pecados da espécie cometidos pelos maus ministros da Igreja (século XIV):
“Te faço saber, queridíssima filha, que a vós e a eles exijo tanta limpeza
neste sacramento quanto é possível ao homem nesta vida. Enquanto esteja ao
vosso alcance, e ao deles, deveis procurá-la sem descanso. Deveis considerar
que se fosse possível que uma natureza angélica se purificasse para ministério,
seria necessário que o fizesse de novo. Não é possível, porque um anjo é puro,
pois não pode cair no veneno do pecado. Te indico isto para vejas quanta pure-
za os exijo neste sacramento a vós e especialmente a eles. Porém fazem o con-
trário, porque vão completamente sujos para este ministério; não só com a
imundície e fragilidade a que naturalmente os achais inclinados por vossa débil
natureza. Eles, desgraçados, não só não dominam esta fragilidade, ainda que a
razão o possa fazer quando o quer o livre arbítrio, mas obram ainda pior, por-
que cometem o maldito pecado que é contra natureza. Como cegos e tontos,
ofuscada a luz de seu entendimento, não conhecem a pestilência e miséria em
que se encontram, pois não só me é pestilento a mim, senão que esse pecado
desagrada aos próprios demônios, aos quais esses desgraçados têm feito seus
senhores. Tão abominável me é esse pecado contra a natureza, que somente
por causa dele se destruíram cinco cidades como resultado de meu juízo, ao
não querer minha divina justiça suportá-las mais; tanto que me desagradou esse
abominável pecado. É desagradável aos demônios, não porque lhes desagrade
o mal e se comprazem no bem, mas porque sua natureza foi angélica, e essa
natureza repugna ver cometer tão enorme pecado na realidade. Certo é que
antes lhes tem desferido a seta envenenada pela concupiscência; porem, quan-
do o pecador chega ao ato desse pecado, o demônio se afasta pelas razões ditas.
Se te lembras bem, sabes como antes da mortandade te manifestei o de-
sagradável que me resultava esse pecado e quão corrompido se encontrava o
mundo por ele. Pelo que, elevando-te sobre ti mesma com santo desejo e com
sublimação de espírito, te mostrei o mundo inteiro, e viste em quase toda a gen-
te este miserável pecado e como os demônios fogem dele, como te tenho dito.
E sabes que recebestes tanta pena que te parecia encontra-se quase à morte.
Não encontravas lugar onde refugiar-se, tu e os outros servidores meus, para
que esta lepra não os contagiasse. Não encontrastes quem te pudesse hospedar
entre os pequenos nem com os grandes, com os jovens nem com os velhos,
com os religiosos nem com os clérigos, com os prelados nem com os súditos,
porque seus espíritos se achavam contaminados por esta maldição124. Te mani-
festei-o em geral; não o fiz com os particulares que por exceção não se conta-
minaram, pois entre os maus tenho guardado alguns bons. A santidade destes
124
Trata-se da peste que grassou na Europa no séc. XV, um dos os castigos pelos pecados contra a natureza.

321
detém a minha justiça para que não mande às pedras que se voltem contra eles,
nem à terra que os engula, nem aos animais que os devorem, nem aos demô-
nios que lhes tirem a alma do corpo. Melhor vou encontrando caminhos e mo-
dos para poder fazer misericórdia, isto é, para que se emendem, e como ins-
trumentos tomo a meus servidores, que estão sãos e sofridos, para que interce-
dam por eles.
Alguma vez mostrei a estes, como uma vez fiz contigo e como tu sabes,
estes miseráveis pecados, para que sejam mais solícitos em buscar a salvação e
me ofereçam orações por eles com maior compaixão e dor pelos pecados e
pelas ofensas que me fazem. Se te lembras bem, um bocado desta pestilência te
afetou tanto, que não agüentavas mais, como me dissestes: “Oh Pai Eterno!,
tem misericórdia de mim e de tuas criaturas. Tira-me a alma do corpo, porque
parece que não o sofro mais, ou dai-me refrigério e ensina-me o lugar dos ou-
tros servidores, os teus, onde possamos descansar, para que este lepra não nos
possa danar nem tirar a pureza de nossa alma e de nossos corpos”.
Eu te contestei voltando-me para ti com olhos de piedade, e te disse e
repito: “Filhinha minha: seja vosso repouso dar glória e louvor a meu nome e
incensar-me com a oração contínua por estes pobrezinhos que se acham em
tanta miséria, fazendo-se dignos do juízo divino por seus pecados. O lugar onde
os escondeis seja Cristo crucificado, meu Filho unigênito, habitando e escon-
dendo-os na caverna de meu costado, de onde gozareis, por afeto de amor, na
natureza humana de Cristo, minha natureza divina. Naquele coração aberto
encontrareis minha caridade e a do próximo, pois por honra a mim, o Pai
Eterno, e pela obediência que lhe impus para vossa salvação, sofreu a afrontosa
morte na santíssima cruz. Vendo e experimentando este amor, seguireis seus
ensinamentos alimentados na mesa da cruz, quer dizer, suportando por cari-
dade a vosso próximo com verdadeira paciência: nas penas, tormentos e fadi-
gas, venham de onde venham. Desta maneira combatereis a lepra e fugireis de-
la”.
Este é o remédio dado a ti e aos outros; porém, com tudo isso, não se ti-
rava de tu alma a sensação da pestilência e de trevas dos olhos do entendimen-
to. Minha divina providência, sem embargo, o remediou, dando-te do corpo e
do sangue de meu Filho, Deus e homem inteiro, tal como o recebeis no sacra-
mento do altar.Em sinal de que era verdade, tirou-se o fedor por meio da fra-
grância que recebeste no sacramento, e as trevas desapareceram por meio da
luz que nEle recebeste. De modo admirável, tal como manifesto a minha bon-
dade, ficaste com a fragrância do sangue na boca e no paladar de teu corpo du-
rante muitos dias, tal como sabes.
Vês, portanto, filha minha, o abominável que é esse pecado para toda
criatura. Pensa agora que o é muito mais para aqueles eleitos por mim para que

322
vivam em estado de continência, entre os quais se encontram os separados do
mundo por meio da vida religiosa, como plantas semeadas no corpo místico da
Santa Igreja; entre esses encontram-se os ministros do altar. Nunca podereis
entender quanto me desagrada esse pecado entre eles, além daqueles que rece-
bo dos pecadores do mundo em geral, porque estão postos sobre o candelabro,
são administradores meus, de verdadeiro Sol, para luz da virtude e de santa vi-
da; e, sem embargo, o administram estando eles em trevas.
Tão cheios se encontram delas, que da Sagrada Escritura não vêm e nem
entendem mais que a casca, a letra, devido à inchação de sua soberba. Por se-
rem imundos e lascivos, ainda que tendo luz por si mesmos, de onde a toma-
ram meus eleitos por razão da luz sobrenatural que procede de mim, verdadei-
ra Luz, tal como te disse em outro lugar, a recebem sem tirar-lhe o gosto, por
não estar em ordem o paladar de sua alma. Corrompidos pelo amor-próprio e
a soberba, com o estômago entupido de imundícies, desejando dar satisfação a
seus desordenados desejos, repletos de cobiça e de avareza, cometem sem pu-
dor seus pecados. Caem no pecado da usura muitos miseráveis, mesmo que
esteja proibida por mim”.125

Eis como Santo Agostinho condena a homossexualidade:


“Aquelas ofensas que são contrárias à natureza devem ser detestadas e
punidas em todo o tempo e lugar. Assim aconteceu com os sodomitas, e todas
as nações que as cometerem deveriam ser igualmente culpadas do mesmo cri-
me ante a lei divina, pois Deus não fez os homens de tal modo que possam
abusar um do outro daquele modo. Pois a amizade que deve existir entre Deus
e nós é violada quando a própria natureza da qual Ele é autor é poluída pela
perversão da luxúria”. 126

Alguns maléficos aspectos biológicos e sociais


Em documento divulgado em 03 de junho de 2003, a Congregação para
a Doutrina da Fé, ao condenar o reconhecimento legal das uniões homossexu-
ais, aduziu as seguintes razões para execrar tão abominável pecado:
“Nas uniões homossexuais estão totalmente ausentes os elementos bioló-
gicos e antropológicos do matrimônio e da família, que poderiam dar um fun-
damento racional ao reconhecimento legal dessas uniões. Estas não se encon-
tram em condição de garantir de modo adequado a procriação e a sobrevivên-
cia da espécie humana... “
“Nas uniões homossexuais está totalmente ausente a dimensão conjugal,
que representa a forma humana e ordenada das relações sexuais. Estas, de fato,
125
Obras de Santa Catalina de Siena – BAC – págs. 291/295
126
Confissões, Livro II, Cap. 8, n° 15

323
são humanas quando e enquanto exprimem e promovem a mútua ajuda dos
sexos no matrimônio e se mantêm abertas à transmissão da vida”.
Quanto aos males na ordem social, comenta o documento:
“...A conseqüência imediata e inevitável do reconhecimento legal das
uniões homossexuais seria a redefinição do matrimônio, o qual se converteria
numa instituição que, na sua essência legalmente reconhecida, perderia a refe-
rência essencial aos fatores ligados à heterossexualidade, como são, por exem-
plo, as funções procriadoras e educadoras... “
Conclui o documento que “há, pelo contrário, razões válidas par afirmar
que tais uniões são nocivas a um reto progresso da sociedade humana, sobretu-
do se aumentar a sua efetiva incidência sobre o tecido social”.127

127
“Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais” – Ed.
Paulinas, págs. 11/14

324
APÊNDICES

I - As Bodas de Caná

“Três dias depois, celebravam-se umas bodas em Caná da Galiléia


e encontrava-se lá a mãe de Jesus. Foi convidado também Jesus
com seus discípulos para as bodas. Faltando o vinho, a mãe de Je-
sus disse-lhe: Não têm vinho. Jesus disse-lhe: Mulher, que nos im-
porta a mim e a ti isso? Ainda não chegou a minha hora. Disse sua
mãe aos que serviam: Fazei tudo o que ele vos disser. Ora estavam
ali seis talhas de pedra, preparadas para a purificação judaica128, que
levavam cada uma duas ou três metretas.129 Disse-lhes Jesus: Enchei
as talhas de água. Encheram-nas até os bordos. Então disse-lhes Je-
sus: Tirai agora e levai ao arquitriclínio. Eles levaram. O arquitri-
clínio130, logo que provou a água convertida em vinho, como não
sabia donde viera (este vinho), ainda que o sabiam os serventes,

128
Vê-se que as vasilhas não eram destinadas ao vinho, mas somente para água, evidenciando-se ainda mais o
caráter milagroso da transformação ocorrida em seguida.
129
Medida grega equivalente a cerca de 30 litros. Como São João escreveu seu evangelho em grego, refere-se à
medida mais comum da Grécia, que talvez fosse usada também na Palestina, região que pertenceu ao império
grego por muitos anos.
130
Pelo prefixo “arqui” nota-se que é uma palavra também de origem grega: era o provador de vinho, o que
distingue entre o vinho bom e o ruim.

325
porque tinham tirado a água, o arquitriclínio chamou o esposo, e
disse: Todo o homem põe primeiro o bom vinho, e, quando já (os
convidados) têm bebido bem, então lhes apresenta o inferior; tu,
ao contrário, tiveste o bom vinho guardado até agora. Este primei-
ro milagre, fê-lo Jesus em Caná da Galiléis, e manifestou sua glória,
e seus discípulos creram nele. (Jo 2, 1-11).

Somente São João narra este episódio no Evangelho. Como tinha sido ele o
Apóstolo a quem Nosso Senhor confiou os cuidados da Virgem Santíssima, é pro-
vável que tenha sido Ela mesma que fez o relato para que ele o escrevesse, pois
morou em sua companhia durante muitos anos. Também há a hipótese do pró-
prio São João ter presenciado o milagre, pois lá estavam alguns dos novos discípu-
los de Jesus.
As festas de casamento entre os hebreus eram muito concorridas e as pes-
soas que presenciaram o primeiro milagre de Jesus eram numerosas. Caná era
uma aldeia que distava de Nazaré pouco mais de 6 km, razão porque a Sagrada
Família tinha muitos amigos e parentes na localidade. Era chamada de Caná da
Galiléia para distingui-la de outra Caná, da tribo de Aser, perto de Tiro.
O texto de São João, muito sucinto, não nos dá uma ideia exata de como se
realizavam as festas de casamento entre os hebreus. Nem tampouco o Evangelista
se detém em alguns detalhes que, ou ele considerava desnecessários ou não lhe
vieram à memória no instante em que escrevia. Vejamos uma descrição pormeno-
rizada daquela festa de Caná através dos relatos detalhados das videntes Beata Ana
Catalina de Emmerich, tirado de suas revelações publicadas por Clemens Brenta-
no, e da Serva de Deus italiana Maria Cecília Baij, OSB, extraído de revelações
que o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo fez à vidente.

1. Revelações da Beata Ana Catalina de Emmerich:

X – As bodas de Caná

“Caná está situada ao Ocidente de uma colina; é uma cidade formosa e


limpa, um pouco menor que Cafarnaúm. Há ali uma sinagoga com três sacerdo-
tes. Nas proximidades está a casa com um vestíbulo, enfeitada com folhas e ramos
onde se vai celebrar o casamento. Desta casa até a sinagoga existem folhas, ramos
e frutos pendurados em arcos. Como salão de festa servirá o espaço que há entre
o vestíbulo e a lareira da casa. Esta lareira, que consta de uma parede alta, agora

326
adornada como um altar com flores e presentes para os noivos, tem ademais um
prolongamento por detrás, onde as mulheres celebram as festas de casamento se-
paradas dos homens. Dali se vêm as vigas da casa adornadas com coroas de flores
às quais se pode subir para acender as lâmpadas suspensas.131
Quando Jesus chegou com seus discípulos foi recebido por Maria sua Mãe,
pelos pais da noiva, pelo noivo e pelos demais que o havia precedido, e tratado
com muita reverência, saindo-lhe ao encontro a certa distância da casa. Jesus hos-
pedou-se com alguns de seus mais fiéis, que foram logo seus apóstolos, numa casa
separada que a irmã da mãe do noivo havia posto a sua disposição; era esta mu-
lher uma filha de Sobé, irmã de Sant’Ana. Durante as festas das bodas esteve na-
quela casa como mãe do noivo.
O pai da noiva chamava-se Israel e era da estirpe de Rute de Belém. Era es-
te um dos principais homens do lugar, com um grande comércio e com casas de
hospedagem, para abrigar e dar comida aos viajantes e seus animais, já que ali era
um lugar de passagem frequente de caravanas; e tinha a outros como empregados
sob suas ordens.O bem-estar e as riquezas da cidade estavam quase todas na mãos
de Israel e seus administradores; os demais viviam do trabalho que Israel lhes
proporcionava. A mãe da noiva era um pouco deficiente, capengava de um lado e
necessitava de ajuda para caminhar. A partir da Galiléia haviam-se reunido todos
os parentes de Ana e de Joaquim, em torno de cem pessoas. De Jerusalém vieram
Maria Marcos, João, Marcos, Obed e Verônica. Jesus, por sua parte, trouxe uns
vinte e cinco hóspedes para as bodas.
Quando Jesus ainda era menino de doze anos, estando comendo na casa de
Ana, quando voltou do templo, falou então com este noivo e lhe disse algumas
palavras misteriosas sobre o pão e o vinho, e que Ele um dia estaria presente em
suas bodas; mas sua presença em suas bodas tinha, além do misterioso e significa-
tivo como todas suas obras sobre a terra, um sentido de conveniência social e de
consideração. Várias vezes havia enviado Maria mensageiros a Jesus rogando-lhe
que assistisse a estas bodas. Corria voz entre parentes e amigos da Sagrada Família:
Maria, a mãe de Jesus, é uma viúva desolada e abandonada; Jesus segue cami-
nhando por todas as partes, se ocupa pouco ou nada de sua Mãe e de sua famí-
lia132. Queria, pois, Jesus assistir a essa boda e dar ali o testemunho de seu amor a
respeito. Esta boda, pois, foi considerada por Jesus uma questão que visava sua
Mãe e como coisa própria, e assim Maria esteve ali muitas horas tomando parte
da festa por sua conta. Jesus havia se comprometido a prover o vinho aos convi-
dados e assim se explica a solicitude de Maria quando viu que faltava o vinho.
Jesus havia convidado também Lázaro e Marta para estas bodas, e Marta

131
“Lâmpadas” – provavelmente ela está se referindo aos archotes acesos com betume.
132
Murmúrios e boatos são comuns entre o povo, muitos injustos e até falsos como estes descritos pela vidente,
pois em geral o julgamento popular é baseado apenas nas impressões fugazes do momento.

327
ajudava Maria nos preparativos. Lázaro era o que devia prover aquilo que Jesus
havia se comprometido e isto Maria o sabia. Jesus tinha plena confiança em Láza-
ro. Jesus recebia agradecido tudo o que Lázaro dava e se senti feliz de dar: por isto
Lázaro foi, até o fim, o tesoureiro da comunidade cristã. Aqui era tido como um
hóspede de honra para os noivos, e Lázaro se esmerava por tudo o que pudesse
ser necessário. Lázaro era fino e delicado em seu modo de ser, sério, calado e
muito reservado em todas suas manifestações; não falava muito, e olhava a Jesus
com afeto interior para que nada lhe faltasse. Além do vinho, Jesus havia tomado
por sua conta prover alguns alimentos especiais, as frutas, as aves de várias classes
e as verduras. A tudo isto se havia provido já Verônica e trouxe de Jerusalém um
cesto de admiráveis flores e um artístico trabalho de confeitaria.
Jesus era aqui o principal chefe da festa. Ele mesmo dirigiu os diversos en-
tretenimentos , amenizando-os com úteis ensinamentos. Fez a distribuição da or-
dem na festa e disse que todos deviam alegrar-se segundo o costume e os usos di-
vertindo-se, mas que de tudo deviam tirar proveito e lição. Entre outras coisas dis-
se que duas vezes ao dia deviam abandonar a casa e fazer recreação em lugares
abertos e ao ar fresco. Por isto tenho visto homens e mulheres à parte nestas fes-
tas, indo para um jardim formoso e ali entreter-se em conversação e jogos amenos.
Vi, por exemplo, que os homens se acomodavam no chão, em roda, enquanto no
meio havia toda classe de frutas e, segundo certas regras, atiravam estas frutas para
que caíssem em certos buracos, enquanto outros tentavam evitar. Vi Jesus tomar
parte neste jogo das frutas com uma moderada alegria: dizia com frequência uma
palavra cheia de significado, mesmo sorrindo, coisa que a todos causava admira-
ção; algumas vezes a recebiam em silêncio, outras com comoção e por certas pala-
vras pediam explicação aos mais entendidos. Jesus havia ordenado o modo destes
jogos e determinava os ganhadores, amenizando tudo com referências e advertên-
cias, segundo os casos.
Os mais jovens se entretiam em correr e saltar sobre sebes e ramas tecidos
com frutos. As mulheres se entretiam também à parte com frutos, enquanto a noi-
va ficava sentada com Maria e a tia do noivo. Mais tarde organizou-se uma espécie
de dança: os meninos tocavam instrumentos e cantavam em coro. Todos os dan-
çarinos usavam uma espécie de cachecol nas mãos, com os quais os jovens e as
meninas se tocavam enquanto dançavam, algumas vezes em fileira e outras em
filas mais fechadas. Sem estes cachecóis nunca se tocavam. Para o noivo e a noiva
os cachecóis eram negros; os demais eram amarelos. Primeiro dançaram o noivo e
a noiva, sozinhos, e depois todos unidos. As jovens usavam véus, embora um tanto
levantados; diante do rosto; seus vestidos eram largos por detrás e pela frente os
tinham algo levantados com uma correia. Estas danças não consistiam em saltos e
trancos, como entre nós: era como se fosse um caminhar compassado em linhas
de várias classes, enquanto se moviam ao compasso da música e com as mãos, ca-

328
beça e corpo. Recordava-me os movimentos dos fariseus, quando faziam oração;
tudo era em conjunto decoroso e agradável. Dos futuros apóstolos não dançou
nenhum; pelo contrário, o fizeram Natanael Chased, Obed, Jonatán e outros dis-
cípulos. As que dançavam eram todas jovens e tudo procedeu em ordem e alegria
com um contentamento repousado. Com os discípulos que seriam mais tarde seus
apóstolos Jesus falou à parte bastante vezes nestes dias, quando os demais não es-
tavam presentes, às vezes caminhando pelos arredores com seus discípulos e com
os convidados, enquanto ensinava, e estes futuros apóstolos comunicavam aos
demais seus ensinamentos. Estas saídas e passeios serviam também para que pu-
dessem fazer sem estorvo os preparativos das festas. Outras vezes vinham os discí-
pulos e mesmo Jesus para os afazeres, ordenando isto ou aquilo, porque havia os
que tinham que dispor algumas coisas para o acompanhamento dos noivos. Jesus
desejava que nesta festa solene todos se pudessem conhecer, parentes e amigos, e
que todos os que até agora havia já escolhido estivessem reunidos e se conheces-
sem e tratassem abertamente.
Também na sinagoga, onde estavam reunidos os convidados, falou Jesus do
gozo permitido e da alegria lícita, seu significado, sua medida, sua seriedade, e da
ciência que devia reger estes entretenimentos. Falou do matrimônio, do homem e
da mulher, da continência e da pureza e de todas as virtudes espirituais. Na con-
clusão deste ensinamento adiantaram-se os noivos e Jesus lhes disse palavras de
ensinamento e exortação a cada um em particular.
No terceiro dia da chegada de Jesus teve lugar o casamento, às 9 da manhã.
A noiva foi vestida e adornada pelas jovens: seus vestidos eram como os de Maria
em seu casamento, como também a coroa que lhe puseram, que era mais rica
ainda. Seus cabelos não foram divididos em tranças finas mas em linhas e grupos
mais grossos. Quando se adorno esteve pronto foi mostrado a Maria e ás outras
mulheres que estavam ali. A partir da sinagoga foram chegando as pessoas que
deviam levar os noivos da casa até a sinagoga. No cortejo havia seis meninos e seis
meninas que portavam coroas entretecidas; logo seis jovens e donzelas, mais cres-
cidas, com instrumentos musicais e flautas. Levavam às costas algo parecido com
asas. Além do mais, acompanhavam a noiva doze jovens como pajens, e ao noivo
doze rapazes. Entre estes estava Obed, o filho de Verônica, os sobrinhos de José
de Arimatéia, Natanael Chased e alguns dos discípulos de João; nenhum dos futu-
ros apóstolos. O casamento se realizou pelos sacerdotes diante da sinagoga. Os
anéis que se trocavam os haviam recebido o noivo de Maria como presente de
casamento, e Jesus os havia benzido nas mãos de Maria. Causou-me admiração
uma cerimônia que não vi nas bodas de Maria com José: o sacerdote feriu com
um instrumento cortante o dedo anular esquerdo do noiva e da noiva; deixou go-
tejar duas gotas de sangue do noivo e da noiva num cálice cheio de vinho, bebido
por eles, dando em seguida o vaso aos demais. Depois disto se distribuíram alguns

329
vestuários de tecidos, vestidos e diversos objetos aos pobres.
Quando os recém casados foram acompanhados a sua casa, os recebeu Je-
sus ali mesmo. Antes do banquete vi todos os convidados reunidos novamente no
parque. As jovens e mulheres estavam sentadas sob uma cobertura de ramas e jo-
gavam com frutas; portavam, por sua vez, um instrumento como uma tábua trian-
gular sobre as saias com letras ou sinais nas bordas, e de acordo com a sinalização
se moviam como um ponteiro de relógio sobre a terra com direito a certas classes
ou quantidade de frutas (uma espécie de roleta). Para os homens vi, organizado
pelo próprio Jesus, uma espécie de jogo que me causou admiração. No centro da
casa havia uma mesa redonda com muitas porções de flores, ervas e frutos dispos-
tos pelas laterais, em quantidade igual aos homens que jogavam. Estas frutas e er-
vas Jesus as tinha posto em ordem antecipadamente segundo sua íntima significa-
ção para cada um dos presentes. Sobre a mesa havia um aparelho consistente num
disco com um buraco. Quando o disco era movido por um jogador, e o mesmo
parava no lugar sinalado pelo buraco sobre certa porção de fruta ou erva, esta era
ganha pelo jogador. No meio da mesa havia uma vide cheia de uvas, sobre uma
viga de espigas133 que a rodeava; quanto mais se girava a mesa, mais se levantava a
vide e a viga de trigo. Os futuros apóstolos não participaram dos jogos, nem tam-
pouco Lázaro, e eu recebi a advertência e a explicação: que tem já vocação de
ensinar ou sabe algo mais que os outros, não deve jogar como os demais, mas ob-
servar o curso do jogo e amenizar os movimentos do jogo com úteis explicações, a
fim de transformar o jocoso em algo útil e proveitoso. Porém havia neste jogo al-
go mais que a casualidade dos ganhadores: as frutas ou objetos que tiravam em
sorte correspondia muito bem a suas qualidades boas ou más, e Jesus havia orde-
nado estas frutas segundo esse significado. Cada sorteio estava unido a um ensi-
namento de Jesus e eu via que realmente todos recebiam algum interior significa-
do por estas frutas. O admirável era que enquanto Jesus dizia esta palavra a cada
um, este se sentia melhorado e advertido, seja pelas palavras de Jesus, seja pelo
gosto da fruta que realmente passava com seu significado ao degustador, mas de
tal forma que os demais nada entendiam, e os comentários de Jesus somente se
festejavam como ditos para alegrar o concurso. Cada um sentia um olhar profun-
do de Jesus em seu interior, da mesma maneira que o sentiu Natanael quando es-
tava debaixo da árvore e que o feriu em seu interior sem que os demais se dessem
conta. Lembro-me bem que entre o prêmio ganho por Natanael estava a planta
resedá, e que Jesus disse a Natanael: “Vês agora bem que tive razão em te dizer
que sois um verdadeiro israelita, sem falsidades?” Um prêmio pareceu-me de to-
do admirável e foi o do noivo Natanael, que ganhou a sorte que consistia numa
haste com duas frutas: a uma parecia mais com um figo e a outra com uma maçã
mordida e oca. Era avermelhada, por dentro branca, com listas coloridas; frutas
133
espigas de trigo...

330
iguais tenho visto no paraíso terrestre. Lembro que todos ficaram maravilhados
quando o noivo ganhou esta fruta, e que Jesus falou do matrimônio e da castidade,
que era como uma fruta múltipla. Tudo isto o disse de tal maneira que não feria
as ideia que tinham os judeus do matrimônio, mas que alguns discípulos, entre
eles Santiago o Menor, que era essênio, entenderam mais profundamente. Vi que
os presentes se maravilharam mais desta sorte tocada aos recém casados que das
demais pessoas. Jesus disse algo assim como: “Poderiam esta sorte e estas frutas
produzir ainda maiores bens do que podem representar por si mesmas”. Quando
o noivo recebeu esta fruta para si e sua noiva, e provaram dela, vi que se comove-
ram em seu interior e empalideceram, e logo vi sair uma escura nuvem de seus
interiores, de modo que me pareceram então mais claros e transparentes em
comparação do que eram antes. A mulher, que estava um tanto mais afastada dali
com as outras, também empalideceu e teve uma espécie de desmaio ao provar a
fruta tocada pela sua sorte, e vi sair também dela uma nuvem escura. Essa fruta
dos recém casados tinha relação com a virtude da castidade e continência. Neste
jogo, além das sortes que lhes tocava a cada um, tinham os favorecidos que cum-
prir certas penitências e satisfações. Assim, vi que os recém casados tinham que ir
à sinagoga e trazer dali alguma coisa juntamente com algumas preces. A erva que
sorteou Natanael Chased era uma planta com poderes de vencer às paixões. Em
todos os demais discípulos que ganharam algumas destas frutas ou ervas e prova-
ram delas, vi que se suspenderam suas próprias paixões, se resistiram algum tanto,
e logo cederam em força ou se encontraram com maior fortaleza os agraciados
para resistir a elas.
XI – Reflexões sobre as frutas e as ervas. O banquete das bodas.
Há um mistério sobrenatural em todas as frutas e ervas da natureza; misté-
rio que depois da queda do homem se obscureceu e ficou como um segredo natu-
ral para o homem. Desse mistério e de seus efeitos ficou nas frutas e ervas somen-
te uma ideia hoje em dia da importância, forma, gosto e efeitos naturais destas cri-
aturas. Eu vejo em minhas visões pôr sobre as mesas do céu estas frutas e ervas
segundo o significado e propriedades que tinham antes da queda do homem; mas
não o vejo tão claramente porque está tudo tão pervertido e transtornado em nos-
so ser e entendimento que não podemos entender estas coisas sobrenaturais em
nosso presente modo de viver terreno.
Quando a mulher teve esse desmaio causado pelo gosto da fruta tiraram-lhe
alguns adornos do traje que eram demasiado pesados e também vários dos anéis
que levava nos dedos. Entre outros tiraram-lhe um que tinha no dedo maior em
forma de funil, que estava medido como um dedal. Igualmente tiraram-lhe as pul-
seiras e broches dos braços e dos peitos para aliviá-la. Ficou apenas o anel que lhe
havia sido presenteado por Maria no dedo anular esquerdo e um colar de ouro no
pescoço que tinha forma de um arco estendido. No meio deste adorno havia uma

331
massa quase escura, parecida com o anel de Maria e José, e gravada uma figura
deitada olhando um broto de flor que tinha em sua frente.
Depois destes jogos no jardim seguiu o banquete. O lugar foi uma sala de
luxo cujo interior havia se dividido em três partes, de tal sorte que os convidados
recostados134 nas mesas podiam ver-se uns aos outros. Em cada um destes reparti-
mentos havia uma mesa larga e bem posta. Jesus estava na sala central, na cabecei-
ra da mesa, com os pés virados para a lareira. Nesta mesma mesa estavam Israel, o
pai da noiva, os parentes de Jesus, da noiva e Lázaro. Nas mesas laterais sentaram-
se outros convidados e os discípulos. As mulheres ocuparam um espaço atrás da
lareira, de modo que podiam ouvir todas as palavras de Jesus. O noivo servia às
mesas, mesmo havendo um mestre ou serviçal para tanto que tinha sob suas or-
dens vários serventes. Nas mesas das mulheres servia a noiva, auxiliara por várias
jovens. Quando trouxeram os alimentos, apresentaram ao Senhor um cordeiro
assado: tinha as patas atadas em forma de cruz. Quando o noivo trouxe uma cai-
xinha em que estava o trinchador, disse Jesus ao noivo que se lembrasse daquela
comida que haviam feito em sua infância depois da Páscoa, ocasião em que lhe
contou uma parábola de uma boda e lhe disse que um dia estaria Ele em seu pró-
prio casamento. Isto estava se cumprindo, disse, naquele dia. O noivo se pôs mui-
to sério e pensativo com esta recordação: havia esquecido daquele fato de sua in-
fância e das palavras então ouvidas. Jesus se portou aqui neste banquete, como em
todo o curso das festas, muito complacente e festivo, mas sempre cheio de ensi-
namentos. A toda cerimônia do banquete dava sua explicação espiritual. Falou da
santa alegria e das expansões das festas: disse que um arco não deve estar sempre
estendido e que a terra necessitava sua chuva para não se ressecar. Disse-o em
forma de parábolas. Quando Jesus partiu o cordeiro, disse coisas admiráveis. Fa-
lou, enquanto trinchava, da apartação do cordeiro da manada, de sua eleição, não
para o prazer mas para morrer. Falou do assar-se, do deixar as impurezas por
meio do fogo da purificação e da secção de cada parte do cordeiro; que assim de-
viam os que queriam seguir o Cordeiro desapegar-se dos afetos carnais e dos pa-
rentes. Quando repartiu os pedaços e terminaram de comer, disse: “Para os que
estão apartados e separados dos afetos da carne, o Cordeiro será um laço de união
e um alimento comum. Deve, o que segue o Cordeiro, renunciar a seu campo,
morrer para suas paixões, separar-se dos membros de sua família e converter-se
assim num alimento e uma comida de união por meio do Cordeiro e com seu
Eterno Pai”.
Cada comensal tinha diante de si um prato e Jesus pôs uma fonte fonte de
cor escura com bordas amarelas, que foi passando de um a outro. Vi Jesus tendo
ás vezes uma erva na mão e dando algum ensinamento. Jesus havia tomado a seu
cargo o procurar o segundo prato da cômica com também o vinho e tudo era
134
Era costume naqueles tempos sentar-se á mesa para comer com o corpo um pouco recostado.

332
aprontado por Maria e Marta. Quando, pois, serviu-se o segundo prato, que con-
sistia em aves, pescado e mel, frutas e uma espécie de tortas que Verônica havia
trazido, sobre as mesas laterais, levantou-se Jesus e repartiu estas viandas em pro-
porções pequenas, depois voltou a sentar-se.
Os alimentos foram servidos, mas começou a faltar o vinho. Jesus estava
ocupado em ensinar. Quando viu, pois, a Virgem Maria, encarregada de provi-
denciar esta parte do banquete, que o vinho estava faltando, foi até Jesus e lhe re-
cordou que Ele havia prometido prover o vinho. Jesus, que nesse momento falava
de seu Pai celestial, respondeu a Maria: “Mulher, não te preocupes; não leves cui-
dado e não os dê a Mim; minha hora ainda não chegou”. Estas palavras não en-
cerram dura contestação a sua Mãe Maria. Disse “Mulher” e não Mãe porque
nesse momento, como Messias e Filho de Deus, cumpria uma missão misteriosas
diante dos discípulos e de todos os parentes e estava ali em sua grandeza divina.
Nestes momentos em que Jesus como Verbo encarnado operava, o que é nomea-
do pelo que é, é mais honrado e vem a ser enfaixado em sua obra com ser cha-
mado pelo que é, como uma dignidade e um encargo. Assim, Maria era a mulher
que havia engendrado Aquele que estava ali e ao qual se recorria pelo vinho, e
queria dizer que Ele era Filho de Deus mais que filho de Maria. Quando Jesus
estava na cruz e Maria o chorava, disse Ele: “Mulher, eis aí teu filho”, assinalando
a João. Quando Jesus disse que Ele ia pensar no vinho, Maria fez seu ofício de
mediadora e de intercessora e lhe recorda a falta do vinho. O vinho que Ele que-
ria dar era mais que o vinho em sentido natural: referia-se ao mistério do vinho
que Ele ia converter em seu sangue. Por isso disse: “Minha hora ainda não che-
gou”, primeiro, para dar o vinho que prometi; segundo, mudando a água em vi-
nho, e terceiro, para que mude o vinho em meu sangue. A partir deste momento
Maria nãose manifestou preocupada pela falta do vinho: havia rogado a seu Filho
e por isto disse aos criados: “Fazei tudo o que Ele os mandar”. É o mesmo que
quando a esposa de Cristo, a Igreja, pede: “Senhor, teus filhos não têm vinho”; e
responde Jesus: “Igreja, não te preocupes; não percas a paz; minha hora ainda não
chegou”. Como se a Igreja dissesse a seus sacerdotes: “Fazei tudo o que vos disse,
pois Ele os há de ajudar”. Maria disse, pois, aos servidores que fizessem tudo
quanto lhes ordenasse Jesus.135
Depois de um momento mandou Jesus aos servidores que lhe trouxessem
os recipientes vazios. Eles os trouxeram: eram três para a água e três para o vinho,
e mostraram que estavam vazios, pois os deram volta sobre uma fonte. Jesus lhes
ordenou que enchessem os seis com água; os levaram em seguida a um poço, que
tinham numa espécie de sótão com um pequeno batente de pedra e uma bomba.
Os recipientes eram grandes e pesados, feitos de barro cozido. Estando cheio um

135
Trata-se de uma ordem de Maria Santíssima dada aos servidores, indicando que Ela tinha poder de influên-
cia nas famílias dos noivos.

333
deles precisava de vários homens para carregá-lo. Tinham várias torneiras tapadas
com vedantes. Quando o líquido estava a certa altura abria-se-lhe embaixo para
aproveitar o restante. Para esvaziá-los não eram levantados, mas inclinados e pos-
tos sobre um pedestal. Maria expôs seu pedido em voz baixa. A resposta de Jesus
foi em voz alta, como também a ordem aos serventes. Quando estes recipientes,
cheios de água, foram levados à presença do mestre-sala136, levantou-se Jesus e diri-
giu-se para ele; abençoou os recipientes e quando voltou a se acomodar em seu
assento, disse: “Servi deles e levai ao mestre-sala um vaso”. Quando o mestre-sala
provou o vinho, dirigiu-se ao noivo e disse: “Costumava-se dar o melhor vinho no
princípio, e quando os convidados estão menos serenos, se lhe dá o inferior; e
agora se dá do melhor vinho”. Não sabia ele que este vinho havia sido providenci-
ado por Jesus, nem que Ele havia tomado sob seu encargo esta segunda parte do
banquete. Isto só o sabiam os membros da Sagrada Família e a família dos casa-
dos. Quando beberam do vinho o noivo e o pai da noiva, ficaram admirados, tan-
to mais que os servidores diziam que eles haviam colocado somente água nas vasi-
lhas. Depois todos beberam do vinho.
Não produziu-se nenhum barulho por causa do prodígio: só se notava uma
silenciosa admiração em toda a companhia. Jesus ensinou muitas coisas a propósi-
to deste prodígio. Disse, entre outras coisas: “O mundo dá a seus seguidores pri-
meiro o vinho forte, a fim de entorpecer e privar do sentido, e terminar logo com
o vinho ruim; porém o reino que meu Pai celestial me dá para fundar, não é as-
sim. Aqui a água que se converte em precioso vinho, ao modo que a tibieza do
espírito tem que mudar-se em generosidade e zelo ardente”. Falou também da
comida que fez quando aos doze anos voltou do templo em companhia de alguns
dos presentes e como então havia falado de pão e vinho, e uma comparação sobre
bodas onde a água da tibieza se mudaria em vinho de entusiasmo e de fervor, e
que isto se acabava de cumprir agora. Em seguida lhes disse que veriam prodígios
ainda maiores. Acrescentou que celebraria algumas páscoas e que na última delas
se converteria o vinho em sangue e o pão em carne, e Ele permaneceria com os
homens até o último dos dias, para consolá-los e animá-los; também lhes disse que
veriam n’Ele coisas que se as dissesse agora não acreditariam. Todas estas coisas
não as disse tão claramente, mas com parábolas veladas, que eu agora não recor-
do, mas o sentido era o que falei. Eles escutaram com admiração e certa estranhe-
za. Vi que todos, ao provar o vinho, ficaram como que mudados em seus senti-
mentos, não pela admiração pelo milagre, mas também por efeito do próprio vi-
nho, como antes havia sucedido com o gosto das frutas: recebiam uma fortaleza
interior e uma mudança saudável dos afetos. Todos os seus discípulos, seus paren-
tes e os presentes estavam convencidos agora de seu poder, de sua dignidade e de
sua missão sobrenatural. Todos acreditaram n’Ele, e esta crença n’Ele se fez geral.
136
O termo usado por São João, no Evangelho, é arquitriclínio, conforme já visto.

334
Sentiram-se melhores e unidos os que haviam provado o vinho milagroso. Por isso
é considerada esta como sua primeira aparição solene em sua comunidade e este
foi o primeiro prodígio e sinal que Ele dava nela e para ela, para fortificá-la na fé, e
por isto se conta este prodígio como o primeiro em sua história, como a institui-
ção da Eucaristia foi a última para os que já acreditavam n’Ele.

XII – Conclusão das bodas de Caná

Ao terminar o banquete de bodas aproximou-se de Jesus a o noivo a sós, e


falou com Ele, cheio de humildade, e declarou como todas as suas paixões haviam
se apaziguado; e não sentia já desejos, e se propunha a viver em continência com
sua esposa, se ela o consentisse; e chegando a esposa, dizendo o mesmo com Je-
sus, os chamou a ambos e lhes falou do matrimônio e da pureza que tanto agrada
a Deus e dos frutos múltiplos da castidade e do espírito. Falou de muitos profetas
e de santos, pessoas que haviam vivido em castidade e haviam oferecido a Deus
Pai sua carne, e que estes adquiriam filhos espirituais, convertendo a homens per-
didos, os quais haviam conduzido para o bem, e que esta descendência é santa e
grande. Tudo isto o explicou com parábolas de semear e de colher. Eles fizeram
então um voto de castidade e de viver como irmãos, pelo período de três anos.
Ajoelharam-se diante do Senhor, que os abençoou.
Na tarde do quarto dia das festas foram conduzidos ambos esposos a sua
casa com uma solene comitiva de convidados. Levavam uma espécie de candela-
bro com diversas luzes formando uma letra; adiante iam meninos levando duas
coroas de flores, uma fechada e outra aberta, e desprendiam delas flores diante da
casa dos esposos. Jesus estava já em casa e os recebeu e os abençoou. Os sacerdo-
tes estavam presentes, mas desde que viram a maravilha nas bodas, mostraram-se
humildes.
No sábado ensinou Jesus na sinagoga de Caná por duas vezes. Falou refe-
rindo-se às festas de bodas, à obediência e aos piedosos sentimentos dos esposos.
Quando saiu da sinagoga se viu rodeado de pessoas que lhe pediam de joelhos
compaixão pelos enfermos. Operou aqui duas curas milagrosas. Um homem ha-
via caído de uma torre, havia morrido, e tinha todos os membros despedaçados.
Jesus se aproximou e ordenou os membros, tocou as feridas e lhe mandou levan-
tar-se e ir pra casa; o qual o fez muito alegre, depois de haver dado graças a seu
Salvador. Este homem tinha mulher e filhos. Foi levado também a um possuído
do demônio que, estando furioso, havia sido amarrado a uma pedra. Jesus o liber-
tou do demônio e de suas ataduras. Curou também vários gotosos e uma mulher
hidrópica, pecadora. Foram sete os que curou. Algumas pessoas não puderam vir
para as festas de bodas e como ouviram dizer que depois do sábado ia retirar-se
dali, já não quiserem deter-se mais. Os sacerdotes, depois que viram o milagre das

335
bodas lhe deixaram obrar, e estas curas se fizeram na presença deles. Os discípu-
los não estavam presentes. 137

2. Revelações da Serva de Deus Maria Cecília Baij, OSB

Maria Cecília Baij ou Cecília Felicidade Baij, seu nome de batismo, nasceu
em Montefiascone, a 4 de janeiro de 1694. Com idade de 17 anos entrou no Mos-
teiro das Cistercienses de Viterbo, chamado “Della Duchessa”, mas só permane-
ceu 10 meses na clausura. Dois anos depois, em 1713, entra no mosteiro de São
Pedro das monjas beneditinas de sua cidade natal, onde ficou enclausurada até o
fim de sua vida. Foi eleita abadessa do mesmo 30 anos depois, cargo que exerceu
várias vezes por quase 20 anos. Faleceu em odor de santidade aos 71 anos de ida-
de, a 6 de janeiro de 1766.
Deixou, além de riquíssimo epistolário com mais de 3 mil cartas, alguns
manuscritos feitos por ordens superiores a fim de registrar suas visões e êxtases.
Destes, destacam-se três: “Vita Interna di Gesu Cristo”, “Vita de San Giusepppe”
e “Vita de San Giovanni Battista”. O texto abaixo, extraímos da “Vita Interna di
Gesu Cristo”, traduzido para o português como “A Vida Íntima de Nosso Senhor
Jesus Cristo”. Talvez o título mais apropriado fosse “A Vida Interior de Nosso
Senhor Jesus Cristo”, pois, na realidade trata-se da manifestação da vida interior;
embora o termo “vida íntima” não tenha de si nada censurável, ele induz a pensar
apenas na vida material. Trata-se de revelações privadas, onde Nosso Senhor nar-
ra à mística italiana o que ocorria em seu interior quando viveu entre os homens.
Nos textos é o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo quem fala à vidente, (a exem-
plo de “O Diálogo” de Santa Catarina de Sena, em que o Pai Eterno é quem fala
com a santa).

“É CONVIDADO COM A MÃE ÀS NÚPCIAS DE CANÁ. Havendo es-


tado com a Mãe por pouco tempo, vivendo do modo que já descrevi, ela foi con-
vidada comigo para as núpcias de Caná. Jamais minha Mãe aceitava semelhante
convite, pois sempre vivia em máximo retiro. Nestas, porém, esteve presente co-
migo, tanto porque os esposos eram seus parentes, como porque meu Pai assim o
ordenou, querendo que eu, antes de dar início à minha pregação, manifestasse ao
mundo de algum modo a minha pessoa, a virtude e o poder que em mim havia,
convertendo a água em vinho perfeitíssimo; e que corroborasse com a minha pre-
sença o Sacramento do matrimônio, como havia consolidado o do batismo pela
ida ao Jordão.
137
Traduzido da obra “Visiones e Revelaciones de la Ven. Ana Catalina Emmerick”, de Clemens Brentano,
Bernardo E. Overberg y Guilhermo Wesener”, tomo IV – La primera pascua de Jerusalém – Editorial Surgite -
págs. 34/44

336
Fui lá, com meus primeiros discípulos, também convidados, e antes de par-
tir orei ao Pai. Pedi-lhe que infundisse a graça em todos os que se encontrassem
nas núpcias, principalmente aos esposos, a fim de que aquele Sacramento fosse
inteiramente santificado, uma vez que eu devia estar presente com a minha queri-
da Mãe.
A HORA DA MANIFESTAÇÃO. Disse ao Pai me ordenasse tudo o que
devia fazer para sua maior glória. Manifestou-me a sua vontade, declarando ter
chegado a hora de começar a operar maravilhas e manifestar ao mundo a minha
pessoa, a qual até então estivera oculta a todos. Ordenou-me que convertesse a
água em vinho e com isto principiasse os milagres que em seguida deveria operar.
Este milagre de converter água em vinho, primeiro operado por mim publicamen-
te, significava que havia de converter os corações, os quais, imersos na frieza da
ignorância se converteriam em vinho de perfeita caridade e em amor ao Pai.
Embora soubesse de tudo, alegrei-me muito pela ordem recebida do Pai e
agradeci-lhe tamanha bondade para com meus irmãos, pois tudo o que por meu
intermédio operava era para utilidade deles.
BANQUETE NUPCIAL. Chegada a hora de serem celebradas as núpcias,
encontrei-me com a Mãe. Minha presença, como também a da querida Mãe, cau-
sou a todos reverência, compostura e modéstia, principalmente aos dois esposos,
pelos quais muito rezara a fim de que meu Pai os enchesse de sua graça e bênçãos
celestes.
Todos estavam com a maior modéstia, conhecendo claramente estar ali o
autor do Sacramento, que se celebrou em toda perfeição. No coração de todos
havia alegria, acompanhada da graça divina, que por isso não era profana e des-
medida, mas inteiramente bem ordenada.
Humilhei-me e pus-me no último lugar, embora fosse devido o primeiro,
por conveniência, por condição e por mérito. Quis praticar este ato de humildade,
para deixar exemplo a meus irmãos e para poder ensinar-lhes que ao serem con-
vidados para núpcias, compareçam com humildade e não com soberba e se colo-
quem no último lugar a fim de que lhes seja antes por outro feita a honra de colo-
cá-los em lugar mais digno, se lhes for devido por grau de mérito; ou não tenham
que sofrer vergonha por serem dele retirados. Quis assim ensinar a todos a humil-
dade, virtude por mim tão amada e praticada.
Fui, no entanto, pelos esposos e pelos convidados forçado a ocupar o pri-
meiro lugar. Atendi a suas súplicas e não recusei, porque aquele lugar me cabia.
Voltando-me para o meu Pai, pedi-lhe por meus irmãos os quais me estavam
sempre no Coração. Roguei ao Pai transmitisse-lhes luz para que em semelhantes
ocorrências, isto é, ao celebrar-se o dito Sacramento, deem sempre primeiro lugar
ao amor e ao temor do meu Pai, a fim de que Ele esteja perto dos esposos com a
graça, como estive junto daqueles com a minha presença. O mesmo fez a minha

337
Mãe dileta, humilhando-se à minha imitação, procurando sempre imitar-me per-
feitamente em tudo e reproduzir em si um acabado modelo de todas as virtudes,
por mim praticadas.
A HORA DO MILAGRE. Havendo já chegada a hora na qual o Pai que-
ria que eu manifestasse o meu poder, dispôs que faltasse o vinho. Como a querida
Mãe, toda ela caridade, por luz superior, já sabia ser desejo do Pai que eu operas-
se o milagre, e ainda conhecendo a necessidade dele, apresentou-me a súplica,
não com autoridade, mas com humildade, à semelhança de uma serva. Secundei o
desejo que possuía de ser humilhada, e como a uma serva, respondi: “Senhora,
que tem isso que ver contigo?” (Jo 2,4). Dei ainda esta resposta à querida Mãe,
para que os convidados admirassem-lhe a virtude e fizessem dela o conceito justo,
diante de sua profunda humildade. De fato, ela recebeu a resposta de rosto alegre,
com ânimo sereno e tranquilo, alegrando-se muito com aquela resposta, apta a
humilhá-la. Daí mereceu muito e foi admirada a sua virtude.
Não creias, esposa minha, que dar tal resposta à querida Mãe, a quem dedi-
cava todo respeito, qual Filho, fosse em mim um ato imperfeito, porque sendo eu
verdadeiro Filho de Deus, devia obedecer primeiro ao Pai, e fazer o milagre no
momento mesmo em que Ele me havia ordenado. Por isso, respondi então, en-
quanto Filho de Deus, querendo indicar, tanto a ela quanto aos convidados que o
milagre que vissem operado por mim, era por virtude divina, e que o Pai celeste
obrava por meu intermédio. Queria também humilhar-me, notificando não ser
por virtude minha aquilo que eu operava, mas do Pai celeste. Não queria apropri-
ar-me da glória daquele milagre, nem ser louvado pelos convidados, mas ambicio-
nava que todos os louvassem. Muito agradou ao Pai essa humildade e eu lhe ofe-
reci em suplência pelas faltas de meus irmãos.
O MILAGRE. Ordenei, no entanto, que fossem enchidas as talhas de água.
Logo isto foi executado, e mandei trazê-las, suplicando ao Pai dar-me sua virtude.
Embora a tivesse pela divindade, fiz contudo este ato de humildade diante do Pai.
Ordenou o Pai que fizesse o milagre. Mandei àquela água que convertesse
em perfeitíssimo vinho. Isso logo se fez. Não dei esta ordem por palavras, mas foi
um comando de minha vontade, e por isso não foi patente a ninguém o que orde-
nei. Fiz distribuir o vinho aos convidados. Estava ótimo, de modo que aqueles que
não notaram o milagre, disseram que o vinho melhor tinha sido guardado para o
fim da mesa. Evidenciou-se o milagre logo àqueles que haviam carregado as talhas
cheias de água.
O fato causou grande maravilha e espanto em todos os convidados. Por is-
so, não querendo receber o louvor do dito milagre comecei a louvar o Pai celeste,
e todos se uniram a mim para louvá-lo e agradecer-lhe.

338
Agradecendo então ao Pai e vendo como aquela criatura insensível138 havia
tão profundamente obedecido à sua vontade e á minha, fiquei muito confundido
relativamente aos meus irmãos, vendo como eles neste ponto se deixaram superar
pelas criaturas inanimadas tanta resistência ofereceriam à vontade de meu Pai. Pe-
di-lhe fizesse de maneira que todos os meus irmãos se lhe tornassem obedientes, e
que por meio de minha voz fizessem o que eu lhes havia insinuado, da parte dele.
Vendo que para fazê-los agir e obedecer a minha voz, era preciso muito de sua
graça, pedi-lhe a mencionada graça com grande instância, e o Pai ma prometeu
em abundância. Vi, então, que apesar da abundância de sua graça, muitos seriam
duros, sem aceitarem jamais executar quanto o Pai deles quer, e que por mim lhes
seria manifestado. Grande pesar tive por isso, e recebi pouca consolação porque
bem poucos seriam os que cumpririam a vontade do Pai, manifestada por minha
pregação, no tempo em que vivi na terra. Depois, jamais cessei de fazer ouvir a
cada qual as minhas vozes interiores, com inspirações e estímulos ao coração.
Agradeci e louvei ao Pai pela graça supracitada, pedi-lhe abundância cada vez
maior de graça, de maneira que a alma se convença de cumprir quanto Ele quer e
ordena por intermédio de seus ministros, e por meio das luzes e inspirações, além
do que o Pai comunica e eu faço ouvir, com fortes estímulos, à alma fiel. O Pai
nisto me atendeu. Daí é, em verdade, muito obstinado o coração que resiste e
abusa de tanta graça!”
MARIA E JESUS SE DESPEDEM. Tendo obtido tudo isto do Pai, e ter-
minada a refeição, rendi ao Pai as devidas graças e, junto com minha Mãe dileta,
afastei-me dos convidados. Depois, feita breve exortação aos dois esposos, segun-
do as conveniências, parti com a minha querida Mãe de volta a Nazaré. Ficaram
todos muito admirados das virtudes que em mim e na querida Mãe haviam obser-
vado, e por isso se afeiçoaram a nós, especialmente os dois esposos porque, desde
então, a graça tomou posse de seus corações.
Pedi ao Pai que, assim como eu não recusara estar presente àquelas núpcias
para santificá-las com a minha presença, também Ele, sendo convidado a ir habitar
na alma, por meio da graça, não recuse ir, principalmente se a alma o convida fi-
elmente para fruir de sua presença e ser consolada por Ele. Por isso pedi-lhe pre-
veni-la com as divinas luzes, a fim de que a alma o convide, chame e deseje com
ardor, e especialmente o faça quando deve executar obra de grande alcance, a fim
de ser assistida e consolada pela divina presença, e confortada pela graça opere
tudo com perfeição. Tudo me prometeu o Pai e executou-o fielmente. Mas, a al-
ma não dá ouvidos aos impulsos divinos, nem atende às luzes que o divino Pai lhe
distribui e por isto fica despojada de tamanho bem.
Antes de começar nossa caminhada, pedi ao Pai enchesse novamente aque-
la casa de bênçãos celestes. Fê-lo com grande amor, e de novo louvei-o, e agrade-
138
Nosso Senhor está se referindo à água, uma criatura insensível porque não tem vida...

339
ci-lhe quanto havia operado por meu intermédio.
PORQUE NÃO OPEROU O PRIMEIRO MILAGRE NA PÁTRIA. Não
te cause maravilha, esposa minha, ouvir ter sido realizado o primeiro milagre pú-
blico fora de minha pátria. Meus compatriotas tornaram-se indignos de que come-
çasse lá a operar meus prodígios, porque seriam os mais duros a receber a minha
pregação e muito a contestariam. Tendo demorado entre eles por tantos anos e
vendo a minha pessoa tão exemplar e perfeita, em vez de seguir meus exemplos,
sempre me perseguiram e murmuravam continuamente a meu respeito, abusando
de todas as graças e luzes que o Pai lhes dava às minhas instâncias. 139

3. (Meditação de Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias)

Jesus com Maria nas Bodas de Caná140


Fazei tudo o que Ele vos disser".(Jo. 2, 5)
No segundo mistério luminoso contemplamos: a realização do primeiro milagre
de Jesus, nas Bodas de Caná. (Jo 2, 1-11)
Preparação:
Vamos fixar nossa atenção ao entrarmos em meditação em Caná da Galiléia. Caná
era uma cidade de maior tamanho e influência que Nazaré. Devemos imaginar
uma casa daqueles tempos, tamanho talvez médio, ali se encontravam os noivos,
os parentes, os convidados e entre estes está Nossa Senhora. Ela tinha ali muitos
conhecidos, pessoas amigas; Maria se encontrava lá quando chegaram Jesus e seus
discípulos; bem se pode imaginar a emoção da Santíssima Virgem ao conhecer os
primeiros seguidores de seu Filho! Certamente Ela os tratou, logo de início, com
um carinho maternal todo feito de amor. Ali começou a se tornar claro sua prote-
ção especial por aqueles que resolvem se entregar a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Oração Inicial:

"Ó Maria Santíssima Virgem Santíssima, que neste episódio do Evangelho, apare-
ceis como suplicante, como medianeira pela primeira vez, nos relatos evangélicos;
vós que intercedestes junto a vosso Divino Filho apesar de não ser ainda a hora,
para pedir um milagre, vos que antecipastes, portanto, a vida pública de Nosso
139
- “A Vida Íntima de Nosso Senhor Jesus Cristo”, revelada à Abadessa Maria Cecília Baij, OSB – Acrópole
Editora e Distribuidora Ltda (1984) – págs. 270/273
140
Fonte: http://www.arautos.org.br/artigo/18768/Jesus-com-Maria-nas-Bodas-de-Cana.html

340
Senhor Jesus Cristo. Vós que tendes a voz, vós sabeis pedir como ninguém sabe,
tendes a súplica infalível, nós vos pedimos, ó Mãe, nesta meditação, que desde já
entregamos em reparação ao vosso Imaculado Coração por tantos pecados, horro-
res e ofensas que se cometem no mundo de hoje contra vosso Imaculado Cora-
ção.

Pedimo-vos, nesta meditação, que estejais a cada passo conduzindo a nossa inteli-
gência, iluminando-a, fortalecendo nossa vontade, inflamando-nos com o desejo
de aceitar inteiramente todas as graças que Nosso Senhor nos dará durante esta
meditação. Cada um de nós aqui presente, pede que Vós nos ensineis a compre-
ender a beleza da vocação,
a beleza de vossa mediação, a beleza da fé e da obediência, para que assim melhor
possamos Vos servir.
Assim seja!"

Ave Maria, cheia de graças,...


I- Nosso Senhor eleva a união conjugal ao estado de sacramento.

" ... celebravam-se bodas em Caná da Galiléia, e achava-se ali a mãe de Jesus.
Também foram convidados Jesus e os seus discípulos". (Jo 2, 1-2)

Bodas, casamento, matrimônio. Ali estava Nossa Senhora. O casamento naquele


tempo era celebrado com grandes festas, no momento em que se realizava. A
preparação começava um ano antes da festa, com o contrato matrimonial pelo
qual o noivo ficava prometido à noiva, e vice-versa. Nessa ocasião já se faziam os
acertos relacionados ao problema da herança de um e de outro.

Chegado o momento do matrimônio, a festa, dependendo das posses da família,


podia durar um dia, em geral começando em terça ou quarta-feira, distante do sá-
bado, nos seus dois limites, mas às vezes durava até uma semana.

Os homens estavam ali para serem servidos; as jovens serviam, mas quem cuidava
da festa propriamente eram as damas de maior idade, que tomavam as providên-
cias, orientavam o desenrolar da festa. Havia um mestre de cerimônia, um mestre
da festa que coordenava os serviços dos serventes. Mas entre essas damas estava
Maria. Maria era conhecida dessas famílias e Ela vai ter ali um grande papel.

Segundo afirmam inúmeros teólogos, exegetas, Nosso Senhor nessa ocasião ele-
vou o casamento, a condição de sacramento.

341
E muito contrariamente ao que se divulga hoje em dia, o casamento é um sacra-
mento, e ademais é uma vocação. Assim como um jovem, uma jovem, podem ser
chamados a uma consagração religiosa, a uma vocação de servir a Deus, consa-
grando-se inteiramente e renunciando ao matrimônio, portanto seguindo uma vo-
cação, um chamado, assim também o casamento é uma vocação. É o que fez Nos-
so Senhor Jesus Cristo neste momento, nesta festa em Caná foi santificar o casa-
mento.
1 - Qual é a finalidade do casamento?
A união conjugal é querida por Deus para determinadas pessoas, assim como a
vocação ao celibato é querida por Deus para outras. Mas assim como alguém que
é chamado a seguir uma vocação religiosa, renuncia a tudo para se entregar àquela
vocação com vistas a santificar-se e com vistas a cumprir uma missão, dentro do
casamento o objetivo não é outro.

O casamento visa a santificação dos cônjuges. O casamento foi elevado a situação


de sacramento, porque Deus quer que, dentro do casamento, esposo santifique a
esposa, e esta santifique o marido.

2- Equívocos:

Erroneamente se divulga hoje em dia, como talvez em outras épocas, mas não sei
se tanto como hoje, que a escolha do futuro cônjuge deve visar antes de tudo à
beleza. Se é ele, ele procura a beleza na futura esposa. Se é ela, ela procura a bele-
za nele.
Ora, em latim se diz 'assueta vilescunt'- o uso frequente acaba envilecendo, torna
vil, torna desprezível - e ademais, como estamos nesta terra de passagem, nós te-
mos a fase da infância, da juventude, e da senectude. Se os dois se casam visando
a beleza, depois de certa idade, a pele enruga, as doenças começam a se fazer sen-
tir etc., etc., etc. E onde fica o elemento da união conjugal? Se a beleza foi embo-
ra, não existe mais ?

Esta é uma das causas de tantos matrimônios destroçados no mundo de hoje.

Uma das causas: casou-se por beleza, em um mês a beleza se foi, porque começou
a encontrar defeitos.

Às vezes há gente que se casa pelo dinheiro. O dinheiro também, como nós temos
sede de infinito, por mais que se tenha, nunca se terá tudo que se quer, porque se

342
quer dinheiro em quantidade infinita, porque o homem, tudo o que quer, quer na
proporção de Deus, ou seja, na proporção infinita, porque foi criado para Deus.

2 - O casamento por puro prazer, não tem as bênçãos de Deus!

E Nosso Senhor nas Bodas de Caná eleva o matrimônio a condição de sacramen-


to. O homem deve santificar a mulher e esta santificar o homem. Essa é a finali-
dade do casamento: a santificação dos cônjuges.

Depois vem em seguida a prole. Mas nem é a prole a razão principalíssima do ca-
samento. Ela é fundamental. Pode ser que o casal não venha a ter filhos. E por
isso o casamento deixou de existir? Não. Mas depois da santificação, o que vem
em seguida é a prole, os filhos. Casar por um puro prazer, torna praticamente in-
válido o casamento, não tem as bênçãos de Deus. E o casamento mais dia, menos
dia se desfará.
II- Oração Final: celibato ou casamento?
"Minha Mãe,eu sou chamado ao celibato ou ao casamento? Se sou chamado ao
celibato, eu devo me convencer de que o instinto que existe em mim e somente
pode ser posto em prática dentro do casamento, em obediência a lei divina e a lei
natural.

"E se for chamado ao casamento, minha Mãe, eu estou certo, ou estou certa de
que devo, dentro do casamento, buscar sobretudo a minha santificação? Eu estou
certo ou certa de que eu, casando-me, deverei colaborar para a santificação daque-
le ou daquela com quem me caso? Eu estou certo de que a felicidade relativa que
eu possa ter no estado matrimonial, depende dessa fidelidade A lei de Deus, e
que, portanto, eu não devo, de forma nenhuma trair a Deus, a meu cônjuge e a
minha própria consciência?

Minha Mãe, neste momento em que medito estes pontos, eu vos peço: dai-me
forças para ouvir de coração aberto a voz de Deus, a voz da graça no meu interior
minha alma"
III - O melhor vinho da História.

Conta-nos o Evangelho que nas bodas de Caná, Nossa Senhora percebendo a si-
tuação aflitiva dos noivos, dirige-se a seu Filho: "Não têm mais vinho". Ele fita-a
com muito carinho e afeto, tratando-A com a suma linguagem de respeito para
aquele tempo: "Mulher, que nos importa a mim e a ti isso? Ainda não chegou a

343
minha hora!". Mas, apesar de tal resposta, Maria diz aos criados: "Fazei tudo o que
Ele vos disser".

Jesus não pode deixar de atender a súplica de sua Mãe: eis que a água transforma-
se num vinho extraordinário, dando origem a comentários: "Mas, então?! Foi dei-
xado para o fim este vinho tão precioso, tão delicioso?".

Hoje em dia a humanidade encontra-se numa situação semelhante à do anfitrião


nas bodas de Caná. Falta o vinho precioso da virtude, do juízo, da sabedoria, de
modo tal que não há um recanto da terra do qual se possa dizer com certeza: "Este
povo vive na graça de Deus".

Precisamente nessa hora de angústia, Nossa Senhora intervém para rogar por nós
ao seu Divino Filho: "Eles não têm graças superabundantes para se converterem e
mudar de vida. Enviai-lhas e transformai-os".(2)
E Nossa Senhora que conquista o vinho novo, mas o que virá é o melhor vinho de
toda a História! Que Ela nos transforme, nos santifique!!
1 - A causa da verdadeira alegria.

A grande maravilha que se nota nas bodas de Caná, além da prestigiosa presença
de Jesus -o centro de todas as atenções da festa - Maria e os discípulos, é o empe-
nho que certamente tinham os noivos de tomarem um rumo real e normal de um
matrimônio honesto, digno, santo. Os noivos se unem com a idéia exata de que
devem trabalhar para santificar o outro; terem, sobretudo os filhos que Deus envi-
ar e educá-los também nas vias da santidade.

Santidade! Esta é a causa da verdadeira alegria. Ser verdadeiramente santo é o que


torna uma pessoa alegre; quem foge da santidade, quem foge da graça de Deus
não pode ter a posse da verdadeira alegria.

Oração Final :

Ó Mãe Santíssima, a Vós entregamos esta meditação e Vos pedimos a graça de


uma consciência clara e uma vontade inteiramente pura e enérgica, no sentido de
sermos inteiramente fiéis, quer nas vias da religião, quer nas do matrimônio, a esta
virtude que transparece em Vosso semblante: castidade!

Dai-nos, ó Mãe, a graça de sermos puros como os Anjos e santos que estão no céu
e isso, quer seja dentro do casamento, quer numa vida religiosa; que entreguemos
o nosso corpo e nossa alma para ser como Vós sois: Casta. Mãe Castíssima, fazei

344
de nós pessoas puras e inocentes, afastadas de todo e qualquer pecado e que se-
jamos tão puros como foram tantos santos e santas.

E assim, tendo vencido todas as lutas e tentações de nossas vidas, por meio de
Vossa graça, encontremos Vosso olhar maternal e sorridente; abraçando-nos na
entrada do céu e dizendo-nos: Vinde meu filho, vinde minha filha, eu vou mostrar
o lugar que lhes preparei por terdes aceitado as graças que a vós foram concedidas
ao longo de suas vidas, na linha da pureza e da castidade. 141

141
Esta meditação é de autoria de Mons. João Scognamiglio Clá Dias, pronunciada na Catedral da Sé de
S.Paulo, 3/set./2005, sem revisão do autor. 'Fátima -O meu Imaculado Coração triunfará' * Mons. João S.Clá
Dias, set.2007, 2ª edição, Copypress, pp 87-88.

345
II - A CRISE NA FAMÍLIA

A família

A família cristã, nascida do pacto conjugal elevado por Nosso Senhor Je-
sus Cristo à dignidade de sacramento, tem como características:
1 – a indissolubilidade do vínculo conjugal e a fidelidade dos esposos en-
tre si;
2 – a autoridade do esposo sobre a esposa, e de ambos sobre os filhos;
3 – a observância da castidade perfeita, tanto das filhas quanto dos filhos,
antes do matrimônio.
No lar cristão bem constituído, tudo conduz a que, se algum dos filhos
receber a vocação para o sacerdócio ou o estado religioso, seja ela tida como
uma alta honra, e acolhida pressurosamente, não só pela pessoa desta maneira
favorecida, mas pelos pais e por todos os que constituem o lar.

A família e a sociedade temporal em crise

De que forma a sociedade contemporânea, vista como um todo, costuma


cooperar – em nossos dias – para que assim sejam as famílias cristãs?
A pergunta faria sorrir ironicamente , se fosse formulada com seriedade.
Pois é evidente que dos mais variados modos, com o maior afinco, essa socie-
dade trabalha a todo momento para a desagregação da família. Ou seja, para
sua descristianização.
A seguirem no mesmo rumo as mentalidades e os costumes reinantes,
em breve a família autenticamente cristã terá passado a constituir exceção rarís-
sima e mal vista, no seio de uma sociedade descristianizada. De uma sociedade
anticristã, portanto.
“Quem não está coMigo está contra Mim”, ensina Nosso Senhor no
Evangelho. 142
Tal vai sucedendo , em suprema instância, pela ação das forças preterna-
turais engajadas na perdição do mundo143, as quais tão bem sabem mover em
142
Mt XII, 30
143
Na alocução “Resistite fortes in fide”, de 19 de junho de 1972, Paulo VI afirma; (as palavras textuais do
Pontífice são as citadas entre aspas no resumo da Alocução apresentado pela Poliglota): Referindo-se à situa-
ção da Igreja de hoje, o Santo Padre afirma ter a sensação de que “por alguma fissura tenha entrado a fumaça
de Satanás no templo de Deus”. Há a dúvida, a incerteza, o complexo dos problemas, a inquietação, a insatis-
fação, o confronto. Não se confia mais na Igreja; confia-se no primeiro profeta profano (estranho à Igreja) que
venha falar, por meio de algum jornal ou movimento social, a fim de correr atrás dele e perguntar-lhe se tem a
fórmula da verdadeira vida. E não nos damos conta de já a possuirmos e sermos mestre dela. Entrou a dúvida

346
sua conspiração os agentes naturais – individuais, sociais e outros. Vão elas dis-
pondo assim de um crescente poder sobre as massas.
Era inevitável que chegasse a esse cúmulo de desgraças o gênero huma-
no? De nenhum modo. Com efeito, outro poderia ter sido o curso das coisas se
todas as pessoas e instituições especialmente prepostas para o combate contra a
corrupção das idéias e dos costumes tivessem tido sempre, face a esse ruinoso
curso das coisas, a conduta militante, ininterrupta e desassombrada, que seu
dever lhes impunha.
A tal respeito, a atitude não só omissa mas até fortemente propulsora, de
tantos dos poderes públicos, nos Estados contemporâneos, tem favorecido lar-
gamente a obra das trevas. De onde decorre que, pelo desdobrar lógico das
consequências, e por merecida punição de Deus, todas as nações – sem excetu-
ar as mais poderosas e prósperas – se encontram à beira de riscos de uma gra-
vidade sem nome, e sob vários aspectos já se pode afirmar que vão rolando
precipício abaixo, rumo à sua desagregação total. É isso de tal maneira notório,
que dispensa provas ou exemplificações.

A família e a Igreja em crise

A responsabilidade por essa situação desastrosa não toca apenas ao Esta-


do.
A Santa Igreja Católica, a única verdadeira Igreja de Deus, se vê envolta
hoje em uma crise cuja gravidade já foi discernida por Paulo VI, bem insuspei-
to, entretanto, de pessimismo ou animadversão para com o mundo moderno,

em nossas consciências, e entrou por janelas que deviam estar abertas à luz. Da ciência, que é feita para nos
oferecer verdades que não afastam de Deus, mas nos fazem procurá-lo ainda mais, e ainda mais intensamente
glorifica-lo, veio pelo contrário a crítica, veio a dúvida. Os cientistas são aqueles que mais pensada e doloro-
samente curvam a fronte. E acabam por revelar: “Não sei, não sabemos, não podemos saber”. A escola torna-
se um local de prática da confusão e de contradições, às vezes absurdas. Celebra-se o progresso para melhor
poder demoli-lo com as mais estranhas e radicais revoluções, para negar tudo aquilo que se conquistou, para
voltar a ser primitivos, depois de ter exaltado tanto os progressos do mundo moderno.
Também na Igreja reina este estado de incerteza. Acreditava-se que, depois do Concílio, viria um dia ensola-
rado para História da Igreja. Veio, pelo contrário, um dia cheio de nuvens, de tempestade, de escuridão, de
indagação, de incerteza. Pregamos o ecumenismo, e nos afastamos sempre mais uns dos outros. Procuramos
cavar abismos, em vez de soterrá-los.
Como aconteceu isto? O Papa confia aos presentes um pensamento seu: o de que tenha havido a intervenção
de um poder adverso. O seu nome é diabo, este misteriosos ser a que também alude São Paulo em sua Epísto-
la (que o Pontífice comenta na Alocução).Tantas vezes, por outro lado, retorna no Evangelho, nos próprios
lábios de Cristo, a menção a este inimigo dos homens. “Cremos – observa o Santo Padre – que alguma coisa
de preternatural veio ao mundo justamente paraa perturbar, para sufocar os frutos do Concílio Ecumênico, e
para impedir que a Igreja prorrompesse num hino de alegria por ter readquirido a plenitude da consciência de
si”. (Insegnamenti de Paulo VI, Tipografia Poliglota Vaticana, vol. X, pp. 707 a 709).

347
ao qual fez aberturas que surpreenderam por vezes não poucos dentre os me-
lhores.144
João Paulo II, entretanto tão benévolo – ele também – em relação ao
mundo moderno, expendeu reflexões análogas145; e um Prelado eminente pelo
saber e pelas altas funções que ocupa na Santa Igreja, o Cardeal Joseph Ratzin-
ger, Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, publicou em 1985
seu famoso “Rapporto sulla Fede”, no qual se deve louvar a nobre franqueza
com que descreve sintomas altamente expressivos da crise que lavra como um
incêndio no interior da Santa Igreja.
O valor deste autorizado testemunho cresce ainda de ponto consideran-
do-se que o Purpurado, quer no conjunto de sua obra de intelectual, quer em
sua atuação à testa do ex-Santo Ofício, vem seguindo uma linha que não permi-
te incluí-lo honestamente entre os que as “mass media” qualificam de reacioná-
rios, extremistas da intolerância, etc.
Ora, de onde procede essa dolorosa crise na Igreja? Sem dúvida, e em
larga medida, de agentes do Leviatã comunista que, de fora da Cidade Santa, se
empenham com esforço total em destruí-La. Mas uma pesquisa dos fatores des-
sa crise não seria lúcida nem proba se se limitasse a olhar para além dos muros
d’Ela. Cumpre indagar se também entre os católicos – entre os leigos, bem en-
tendido, mas também nas fileiras augustas da Sagrada Hierarquia – há propul-
sores de tal crise.
A pergunta pode surpreender a alguns... dia a dia menos numerosos.
Não faltará ainda quem brade, alarmado, que ela é escandalosa, revolucionária,
blasfema.
É explicável que a tais reações conduza a crassa ignorância religiosa em
que estão imersos tantos fiéis neste triste ocaso do século XX. Na realidade, se
conhecessem melhor a doutrina e a História da Igreja, a reação deles seria bem

144
Em Alocução aos alunos do Seminário Lombardo, em 7 de dezembro de 1968, disse Paulo VI: “A Igreja
atravessa hoje um momento de inquietude. Alguns praticam a autocrítica, dir-se-ia até a autodemolição. É
como uma perturbação interior, aguda e complexa, que ninguém teria esperado depois do Concílio. Pensava-
se num florescimento, numa expansão serena dos conceitos amadurecidos na grande assembleia conciliar.
Mas posto que ‘bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu’, fixa-se a atenção mais especialmente
sobre o aspecto doloroso. A Igreja é golpeada também pelos que dela fazem parte. (Insegnamenti di Paolo VI,
Tipografia Poliglota Vaticana, vol. VI, p. 118 – as palavras não são textuais do Pontífice e sim do resumo que
delas apresenta a Poliglota Vaticana)
145
Em Alocução de 6 de fevereiro de 1981, aos Religiosos e Sacerdotes participantes do I Congresso nacional
italiano sobre o tema Missões ao povo para os anos 80, João Paulo II assim descreve a desolação hoje reinante
na Igreja: “É necessário admitir realisticamente e com profunda e sentida sensibilidade que os cristãos hoje,
em grande parte, sentem-se pedidos, confusos, perplexos e até desiludidos: foram divulgadas prodigamente
ideias contrastantes com a Verdade revelada e desde sempre ensinada; foram difundidas verdadeiras heresias,
no campo dogmático e moral, criando dúvidas, confusões e rebeliões; alterou-se até a Liturgia; imersos no
‘relativismo’ intelectual moral e por conseguinte no permissivismo, os cristãos são tentados pelo ateísmo,
pelo agnosticismo, pelo iluminismo vagamente moralista, por um cristianismo sociológico, sem dogmas defi-
nidos e sem moral objetiva” (L’Osservatore Romano, 7-2-81).

348
outra. A fim de evitar digressões doutrinárias, destinadas a aplacar tal estranhe-
za, as quais se afastariam por demais do eixo central das presentes considera-
ções, basta lembrar aqui um documento memorável, a instrução do Papa Adri-
ano VI (1522-1523), lida pelo Núncio pontifício Francisco Chieregati aos Prín-
cipes alemães reunidos em dieta, em Nuremberg, em 3 de janeiro de 1523.
Transcreve largos trechos desse documento o historiador austríaco Ludwig Pas-
tor em sua obra célebre “Geschichte der Papste” – História dos Papas. A con-
juntura em que essa instrução foi ditada pelo Pontífice se insere na terrível crise
protestante do século XVI, tão semelhante e ao mesmo tempo tão menos pro-
funda do que a de nossos dias.146
Dessa instrução destacamos os seguintes tópicos:
“Deves (dirige-se o Pontífice ao Núncio Chieregati) dizer também que
reconhecemos livremente haver Deus permitido esta perseguição a sua Igreja,
por causa dos pecados dos homens, e especialmente dos Sacerdotes e Prelados,
pois de certo não se encurtou a mão do Senhor para nos salvar; mas são nossos
pecados que nos afastam d’Ele, de modo que não nos ouve as súplicas.
“A Sagrada Escritura anuncia claramente que os pecados do povo têm
origem nos pecados dos sacerdotes, e por isto, como observa (São João) Crisós-
tomo, nosso Divino Salvador, quando quis purificar a enferma Jerusalém, diri-
giu-se em primeiro lugar ao Templo, para repreender antes de tudo os pecados
dos sacerdotes; e nisso imitou o bom médico, que cura a doença em sua raiz.
“Bem sabemos que, mesmo nesta Santa Sé, há já alguns anos vêm ocor-
rendo, muitas coisas dignas de repreensão; abusou-se das coisas eclesiásticas,
quebrantaram-se os preceitos, chegou-se a tudo perverter. Assim, não é de es-
pantar que a enfermidade se tenha propagado da cabeça aos membros, desde o
Papa até aos Prelados.
“Nós todos, Prelados e Eclesiásticos, nos afastamos do caminho reto, e já
há muito não há um que pratique o bem. Por isso devemos todos glorificar a
Deus e nos humilharmos em sua presença; que cada um de nós considere por
que caiu, e se julgue a si mesmo, ao invés de esperar a justiça de Deus no dia
de sua ira.

146
A corrupção era grande em Roma. Adriano VI não só apontava os males da Igreja, mas desejava uma re-
forma profunda que sanasse esses males, tendo-a começado por cima com decidida resolução.
Onde lhe foi possível, se opôs à acumulação de benefícios, proibiu toda a espécie de simonia, e velou solici-
tamente pela eleição de pessoas dignas para os cargos eclesiásticos, conseguindo as mais exatas informações
sobre a idade, os costumes e a instrução dos candidatos, lutando com inexorável vigor contra os defeitos mo-
rais.
Com a radical reforma da Cúria Romana, empreendida por Adriano VI, não queria somente este nobre Papa
pôr fim ao estado de coisas que lhe causava tão viva repugnância; mas esperava também, por este meio, tirar
aos Estados alemães o pretexto para a sua apostasia de Roma, (Cfr. LUDOVICO PASTOR, História dos Pa-
pas, tomo IV, vol. IX).

349
“Por isto (igualmente) deves tu prometer em nosso nome que estamos
resolvidos a empregar toda a diligência a fim de que, em primeiro lugar, seja
reformada a Cúria Romana, da qual talvez se tenham originado todos esses da-
nos; e acontecerá que, assim como a enfermidade por aqui começou, também
por aqui comece a saúde.
“Nós nos consideramos tanto mais obrigados a levar isto a bom termo,
quanto todo o mundo deseja semelhante reforma.
“Porém não procuramos nossa dignidade pontifícia (o Papado que Adri-
ano VI exerce), e de mais bom grado teríamos terminado na solidão da vida
privada nossos dias; de bom grado teríamos recusado a tiara, e só o temor de
Deus, a legitimidade da eleição e o perigo de um cisma nos determinaram a
aceitar o supremo múnus pastoral. Em consequência, queremos exercê-lo não
por ambição de mando, nem para enriquecer nossos parentes, mas para restitu-
ir à Santa Igreja, Esposa de Deus, sua antiga formosura, prestar auxílio aos
oprimidos, elevar os varões sábios e virtuosos, e, genericamente, fazer tudo o
que compete a um bom pastor e verdadeiro sucessor de São Pedro.
“Não obstante, que ninguém se surpreenda, se não corrigimos todos os
abusos de um só golpe; pois as doenças estão profundamente enraizadas e são
múltiplas; pelo que é preciso proceder passo a passo, e opor primeiramente os
oportunos remédios aos danos mais graves e perigosos, para não perturbar ain-
da mais a fundo por meio de uma precipitada reforma de todas as coisas. Com
razão diz Aristóteles que toda mudança repentina é muito perigosa para uma
sociedade”.147
Quantos ensinamentos profundos há a deduzir dessas nobres e sábias
considerações! Ninguém as pode tachar de irreverentes para com a Santa Igreja,
de escandalosas, revolucionárias, blasfemas, como de bom grado o fariam cer-
tos católicos de vistas estreitas.
E quantos exemplos concretos haveria que citar em cada país da Cristan-
dade contemporânea, em confirmação desses ensinamentos de Adriano VI!
Para não alongar demais essa triste lista, bastaria mencionar a desconcer-
tante indolência – para dizer só isto - de tantos Prelados católicos diante da
exibição do filme blasfemo de Jean-Luc Godard, “Je vous salue Marie”. Indo-
lência esta em que se assinalou de modo especial o Episcopado francês.148

147
LUDOVICO PASTOR,”História de los Papas”, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 1952, Tomo IV, vol.
IX, pp. 107 a 109 / Imprima-se: El Vicario General José Palmarola, por mandato de Su Señoria, Lic. Salvador
Carreras, Pbro., Scrio, Canc. – OS NEGRITOS não constam no original.
148
Mons. Gaillot, Arcebispo de Evreux, concedeu entrevista a “L’Evénement du Jeudi” nos seguintes termos:
-“Suponho que o Sr. Não tenha ainda visto o filme “Je vous salue Marie”, de Jean-Luc Godadar.
- “Não, mas tenho desejo de vê-lo!”
- “A censura incide sobre esse filme porque nele se apresenta a Virgem nua. A interdição lhe parece legítima?

350
A família, fator da crise do mundo contemporâneo

Contudo a responsabilidade pela crise da Igreja e do mundo não toca


apenas ao Clero, mas à família. Responsabilidade por omissão, e também por
ação.
Com efeito, incontáveis são hoje as famílias cujos membros professam e
até praticam a religião católica mas que, tendo sem embargo horror a toda for-
ma de sofrimento não só físico mas também moral, não querem abster-se dos
prazeres corruptos deste século. Muitos membros delas se recusam normal-
mente a travar no seu íntimo a dura batalha contra os apetites desregrados, açu-
lados de mil formas pelo estilo de vida contemporâneo. E, ademais, desejam
com veemência cercar-se o mais possível de simpatia e consideração nos meios
sociais a que respectivamente pertencem. O que só conseguirão se aceitarem
largamente, e praticarem, as normas “morais” do neo-paganismo.
Daí decorre que, não havendo paz possível entre os filhos da luz e os das
trevas, nem entre os filhos da Virgem e os da serpente149, eles não tardam em

- “Eu tenho pouco desejo de que ele seja interditado. Dada a qualidade do cinema de Godard, parece-me inte-
ressante que ele tente exprimir o “Mistério” na sua arte. Eu não vi o filme, mas a priori não gostaria que ele
fosse interditado nem que se fizesse uma gritaria escandalosa em torno dele”.
Cfr. Ainda o artigo “Escândalo na França: filme blasfemo elogiado até pelos que o deveriam imputnar”, pu-
blicado em “Catolicismo”, de maio de 1985.
149
Vejam-se, a esse respeito, as seguintes frases de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Se o mundo vos aborrece,
sabei que, primeiro do que a vós, Me aborreceu a Mim. Se vós fosseis do mundo, o mundo amaria o que era
seu; mas, porque vós não sois do mundo, antes Eu vos escolhi do meio do mundo, por isso o mundo vos abor-
rece. Lembrai-vos daquela palavra que Eu vos disse: Não é o servo maior do que o seu senhor. Se eles me
perseguiram a Mim, também vos hão de perseguir a vós; se eles guardaram a minha palavra, também hão de
guardar a vossa” (Jo XV, 18-20).
“Eu disse-vos estas coisas para que vos não escandalizeis. Lançar-vos-ão fora das sinagogas; e virá tempo em
que todo o que vos matar, julgar prestar serviço a Deus’ (Jo XVI, 1-2).
Veja-se, ainda, este trecho do célebre “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, de São Luís
Maria Grignion de Montfort. Nele o grande apóstolo marial comenta as palavras do Gênesis: “Inimicitias
ponam inter te et mulierem, et semen tuum et semen illius; ipsa conteret caput tuum, et tu insidiaberis calcâ-
neo eius” (Porei inimizades entre ti e a mulher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela te pisará a
cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar” (Gn III, 15).
“Uma única inimizade Deus promoveu e estabeleceu, inimizade irreconciliável, que não só há de durar, mas
aumentar até ao fim: a inimizade entre Maria, sua digna Mãe, e o demônio; entre os filhos e servos da Santís-
sima Virgem e os filhos e sequazes de Lúcifer; de modo que Maria é a mais terrível inimiga que Deus armou
contra o demônio. (...)
“Deus não pôs somente inimizade, mas inimizades, e não somente entre Maria e o demônio, mas também
entre a posteridade da Santíssima Virgem e a posteridade do demônio. Quer dizer, Deus estabeleceu inimiza-
des, antipatias e ódios secretos entre os verdadeiros filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e escra-
vos do demônio. Não há entre eles a menor sombra de amor, nem correspondência íntima existe entre uns e
outros. Os filhos de Belial, os escravos de Satã, os amigos do mundo (pois é a mesma coisa) sempre persegui-
ram até hoje e perseguirão no futuro aqueles que pertencem à Santíssima Virgem, como outrora Caim perse-
guiu seu irmão Abel, e Esaú, seu irmão Jacob, figurando os réprobos e os predestinados. Mas a humilde Maria
será sempre vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final que ela chegará ao ponto
de esmagar-lhe a cabeça, sede do orgulho”. (São Luís Maria Grignion de Montfort, Tratado da Verdadeira
Devoção à Santíssima Virgem, Vozes, Petrópolis, 7ª ed. pp. 54 a 57 / Imprimatur: por comissão especial do

351
notar no convívio social que serão incompreendidos, marginalizados e até calu-
niados, se se mantiverem fiéis à moral ensinada pela Igreja.
Em consequência, cederão à onda avassaladora da impiedade e da cor-
rupção, pelo menos na medida em que seja indispensável para não perderem a
benquerença geral.
Tal é a triste situação das pessoas e das famílias que, deixando-se arrastar
pela pressão da sociedade neo-pagã contemporânea, capitulam e dobram os
joelhos perante Belial. Árdua, e não raras vezes heroica, é a resistência que de-
ve ser desenvolvida contra essa pressão pelas pessoas ou famílias que, recusan-
do-se a dobrar vilmente os joelhos ante o ídolo, se mantém fiéis à lei de Deus.
Tivemos ocasião de o expor em outra obra, intitulada “Guerreiros da
Virgem – a réplica da autenticidade: A TFP sem segredos”:
“Cet animal est très méchant; quand on l’attaque il se défend” (Este ani-
mal é muito mau: quando atacado, ele se defende) – diz uma canção popular
correntemente citada pelos franceses (La Menagère, 1868). Essa a estranha po-
sição de certos críticos da TFP, que acham très méchant que sócios e coopera-
dores se afastem, por defesa da própria dignidade, dos ambientes em que são
vilipendiados de modo desconcertante. Tanto mais desconcertante quando vi-
vemos numa sociedade cada vez mais permissiva, na qual até o direito de cida-
dania para a homossexualidade encontra apaixonados propugnadores.
Ambientes que chegam a esse extremo não são raros, mas, felizmente,
não constituem a regra geral. Sem embargo, ainda há outros fatores que tornam
explicável que deles se afastem – em media maior ou menor, segundo as cir-
cunstâncias – sócios e cooperadores da TFP. E não só estes, como frequente-
mente os correspondentes da Sociedade esparsos pelo Brasil, em geral pais e
mães de família que, por imperativo de consciência inegavelmente respeitável,
intencionam firmemente manter-se na prática dos princípios da Moral tradicio-
nal da Igreja.
“Desta prática se afastou gradualmente , no decurso dos últimos vinte ou
trinta anos, um impressionante número de ambientes sociais, nos quais os te-
mas das conversas, as liberdades de trato entre os sexos, a televisão ligada de
modo incessante, e difundindo tantas e tantas vezes cenas imorais, não podem
deixar de entrar em dissonância profunda com a consciência de católicos não
progressistas.
“Tais ambientes, em lugar de se adaptarem, na medida do necessário, às
convicções e à sensibilidade moral dos católicos não progressistas, mantém em

Exmo. E Revmo. Sr. Dom Manuel Pedro da Cunha Cintra, Bispo de Petrópolis, Frei Desidério Kalverkamp,
OFM, Petrópolis, 16-1-61).

352
presença destes exatamente o mesmo “tônus” em vigor se estes estivessem au-
sentes.
“Isto equivale a lhes dizer: “Vocês são uns atrasados, de idéias estreitas e
modo de ser antipático. Para vocês, só há cidadania entre nós se consentirem
em calcar aos pés os princípios morais que professam”.
“’Acolhidos’ assim, que podem fazer os católicos não aggionartti pelo
progressismo?
“- Romper com a própria consciência? – Sofreriam merecidamente o
desprezo mudo daqueles mesmos ante quem capitulassem.
“ – Protestar? – Desencadeariam com isto a indignação irada dos domi-
nadores do ambiente, de onde se seguiriam discussões e rupturas. E, parado-
xalmente, a fama de intolerantes ainda recairia sobre aqueles que o despotismo
do espírito moderno não havia tolerado.
“ – Retirar-se? – Os arautos desse mesmo espírito os acusariam de ‘es-
quisitos’.
“Resultado dessa situação é que, em certo número de vezes, o melhor
para o católico não aggionarto consista mesmo em manter-se à distância.
“Tudo quanto acaba de ser dito aqui, poucos têm a coragem de o afirmar
em letra de forma, com tanta franqueza e tantos pormenores.
“Mas, de uma vez por todas, era preciso que fosse dito. E dito fica.”
(PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, op. cit. Ed. Vera Cruz, S. Paulo,
1985,pp. 105 a 107). 150

150
Texto extraído da obra “A TFP: UMA VOCAÇÃO, TFP E FAMÍ LIAS, TFP E FAMÍLIAS NA CRISE
ESPIRITUAL E TEMPORAL DO SÉCULO XX” – de João S. Clá Dias - Artpress – Papéis e Artes Gráficas
Ltda, S. Paulo, fevereiro de 1986, vol. I, págs. XI/XXI do Prefácio, de autoria de Plínio Corrêa de Oliveira

353
III – Plínio Corrêa de oliveira e a Pureza
SEM PUREZA, A ORDEM POLÍTICA OU SOCIAL, INEVITAVELMENTE,
CAI EM RUÍNA
Neste dia de festa de Santa Maria Goretti, é triste a considerar a indiferença
de tantos católicos que aceitaram a degradação moral gradual de costumes, como
a introdução do biquíni e maiô topless. Viajando a uma velocidade inferior ou su-
perior, eles acabam marchando no mesmo caminho da Revolução.
Santa Maria Goretti representa a adesão de uma forma muito radical com a dou-
trina tradicional da Igreja sobre a pureza. Seu exemplo nos diz que a Igreja Católi-
ca deveria morrer ao invés de perder sua pureza. A Igreja Católica ensina sempre
a mesma e continua a ser o mesmo. O Sagrado Sangue de Nosso Senhor na Eu-
caristia deve ser chamado hoje, como sempre foi, o vinho que gera virgens.
Assim como Santa Maria Goretti não era capaz de resistir ao seu agressor, sem
uma graça sobrenatural especial, por isso não são capazes de resistir a onda uni-
versal de impureza no mundo contemporâneo, sem uma graça especial. Para
atingir uma ajuda tão indispensável, é preciso ter fé, ser piedoso, orar e fazer peni-
tência e reparação.
Há um ponto paralelo que eu ainda gostaria de salientar. Entre as soluções
sociais frequentemente mencionados para a sociedade de hoje, o papel de pureza
foi quase esquecido. No entanto ela desempenha um papel preponderante. Na
verdade, não pode haver uma verdadeira ordem social sem a família devidamente
ordenado, e uma boa ordem familiar não pode existir a menos que seus membros
praticam a castidade de acordo com seus estados de vida.
Ou seja, não é tanto a castidade perfeita de pessoas solteiras ou a castidade ma-
trimonial de casados. Estes dois santos formas de virtude deve ser praticada e
defendida. Sem pureza, as ordens sociais e políticas, inevitavelmente, cair em ruí-
na. Não há luta séria contra os inimigos da civilização católica e não luta pela sua
restauração, se a virtude da pureza não é uma pedra fundamental.
Devemos perguntar se Santa. Maria Goretti pode ser a nossa patrona na defesa
da pureza e para nos ajudar a preservar a pureza. E se, por alguma circunstância
infeliz, nos desviar deste caminho, temos de pedir-lhe para nos inspirar com uma
contrição verdadeira e arrependimento, como fez com o seu próprio assassino.
Ser puro, nós seremos as pedras vivas para a construção do Reino de Maria
anunciado em Fátima.
(PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, Conferência “Santo do Dia”, de 06 de ju-
lho de 1965

354
IV - Orações para alcançar, manter e recuperar a
castidade
1. Ao Menino Jesus

Dulcíssimo Menino Jesus, Cordeiro Imaculado, cheio de bondade, mise-


ricórdia e amor! Para nos restituirdes a santa inocência, baixardes do céu à ter-
ra, sofrestes pobreza e perseguição. Eu vos agradeço, ó Menino amorosíssimo,
e Vos amo de todo o meu coração. E por vosso amor proponho hoje firme-
mente guardar com todo desvelo a santa pureza do coração. Ó meu Jesus,
abençoai meu corpo, para que seja sempre um templo do Espírito Santo, e mi-
nha alma, para que seja sempre um santuário de inocência e pureza. Fazei que
eu evite com cuidado todo o pecado mortal como uma peste contagiosa. Ó Je-
sus inocentíssimo e todo imaculado, pelo vosso amor e pela vossa inocência,
concedei-me a virtude da santa pureza, para que eu, depois de minha morte,
tenha a felicidade de Vos ver no céu. Amém.

2. À Sagrada Família

Ó Jesus, Filho de Deus vivo, esplendor da eterna luz, que desde a eterni-
dade fostes gerado puríssimo no seio do eterno Pai, e que no tempo quisestes
nascer duma Virgem puríssima e imaculada; eu, fragílima criatura vossa, de
todo o coração Vos peço que me conservais puro na alma e no corpo; e que
façais florescer plenamente na Vossa Santa Igreja a pureza, para maior glória
vossa e para a salvação das almas por Vós remidas.
Puríssima e Imaculada Sempre Virgem Maria, Filha do eterno Pai, Mãe
do eterno Filho, Esposa do Espírito Santo, augusto e vivo templo da Trindade
sacrossanta, lírio de pureza e espelho sem mancha, dignai-Vos, ó minha querida
Mãe, obter-me de Vosso Filho, meu bom Jesus, a pureza da alma e do corpo;
e intercedei junto a Ele, a fim de que esta formosa virtude cada vez mais brilhe
em todas as classes dos fiéis.
Esposo castíssimo de Maria Imaculada, glorioso São José, que mereces-
tes de Deus a singular honra de ser pai adotivo da mesma inocência, Jesus Cris-
to, e Custódio intimorato da Virgem das virgens, instantemente Vos peço me
alcanceis o amor de Jesus, meu Deus e Salvador, e a proteção especial de Ma-

355
ria, minha Mãe Santíssima, e fazei, São José, protetor de todas as almas castas,
que vossa predileta virtude, a santa pureza, seja por mim e por todos os homens
mais dignamente amada.
São Bernardino, amantíssimo servo de Jesus, Maria e José, e modelo da
modéstia cristã, apresentai as minhas súplicas à Sagrada Família. Amém.151

3. Oração para pedir a virtude da pureza

Ó Santíssima Mãe de Deus e minha, fortaleza dos fracos e refúgio dos


pecadores, é chegado o momento em que terei de passar por circunstâncias
onde o demônio mais especialmente me tenta.
Tenho horror á impureza porque sei quanto ela é oposta ao vosso espíri-
to e contrária à escravidão a Vós, na qual tanto desejo ser perfeito.
Ajudai-me – eu Vo-lo peço, por intercessão de São Luís de Gonzaga,
modelo admirável de pureza – a não Vos ofender nesta ocasião, para que eu
possa, desde já, Vos oferecer minha resistência à tentação: resistência esta, que
desejo opor ao inimigo infernal, agora e sempre. Eu Vos imploro que todos os
dias de minha vida sejam transcorridos na prática exímia da virtude angélica da
pureza. Assim seja.152.

4. Oração para pedir ajuda nas tentações contra a pureza

Minha Senhora e minha Mãe, vede-me a vossos pés tentado pelo pecado
que mais imediatamente contrasta com vossa excelsa pureza.
Vós, que amastes tanto a virgindade, que por amor a ela chegastes a ale-
gá-la ao celeste arcanjo que Vos anunciava a honra inefável da maternidade di-
vin;
Vós, cuja virgindade foi tão amada por Deus, que o Espírito Santo prati-
cou o milagre indizivelmente sublime de a preservar;
Vós, cuja virgindade é o perfume sacral que tem inspirado todas as almas
castas ao longo dos séculos e as inspirará até o fim dos tempos.
Tende maternal compaixão deste filho e escravo que se debate nas sedu-
ções horrendas da impureza.
Dai-lhe uma repulsa enérgica contra a tentação.

151
"ADOREMUS - Manual de Orações e Exercícios Piedosos" - Editora Mensageiro da Fé -
Salbador(BA), 1959)
152
Preces por Opportunitate Dincendae – Edições Loyola – pág. 382

356
Afastai dele o demônio e as más ocasiões. E enchei sua alma de um in-
tenso e intransigente amor à pureza, enchei-a do perfume supremamente puro
de vossa castidade.
Imaculado e Sapiencial Coração de Maria, compadecei-Vos de mim e
por mim rogai.153

5. Consagração da pureza à Santíssima Virgem

(de Santo Antonio Maria Claret)

Ó Virgem Mãe de Deus, eu me entrego por vosso filho e, para honra e


glória de vossa pureza, vos ofereço minha alma e corpo, potências e sentidos, e
vos suplico a graça de não cometer jamais nenhum pecado. Amém.
Minha Mãe, eis aqui o vosso filho (repete-se 3 vezes). Em Vós, minha
Mãe dulcíssima, depositei toda a minha confiança. Jamais ficarei confundido.
Amém154.

6. Invocação à Nossa Senhora para nos preservar na pureza

.
(de Santo Afonso Maria de Ligório)

“Per tuam immaculatam Conceptionem, o Maria, redde purum corpus


meum et sanctam animam meam” – Por vossa pura e imaculada Conceição, oh
Maria, fazei puro o meu corpo e santa a minha alma”.155

(No cinqüentenário da proclamação do Dogma da Imaculada Conceição,


em 1904, o Papa São Pio X promulgou um breve concedendo 300 dias de in-
dulgências a quem rezar cada manhã e cada noite, ao levantar-se e ao deitar-se,
três Ave-Marias com o rosto prostrado em terra ou ao menos de joelhos, segui-
das da jaculatória acima).

153
op. cit. págs. 383/384
154
Caminho Reto e Seguro para se chegar ao Céu – de Santo Antonio Maria Claret – Editora Ave Maria, 1960
155
Obras Ascéticas de San Alfonso M. de Ligório – BAC – pág. 932

357
CITAÇÕES E FRASES SOBRE A CASTIDADE

•O rosto de um homem casto tem não sei quê de radioso (Honoré de


Balzac - romancista francês -1799-1850 - fundador do "realismo").
•O luzeiro do teu corpo são os teus olhos. Se os teus olhos forem puros,
todo o teu corpo será luminoso. Se, porém, os teus olhos forem maus, todo o
teu corpo será tenebroso. Vê, pois, que a luz que está em ti não seja trevas. (Lc
11, 34-36).
•Suprimam o casamento, a noção de fidelidade conjugal, a ordem, a de-
cência, a castidade em seus aspectos representativos... então tudo se dispersa, se
degrada, se aniqüila, torna-se totalmente amorfo (Pierre Klossowski - escritor
existencialista e desenhista revolucionário francês).
• “O quam pulchra est casta generatio cum claritate! immortalis est enim
memoria illius; quoniam et apud Deum nota est, et apud homines”. - Oh, quão
formosa é a geração casta com seu brilho! A sua memória é imortal e é louvada
diante de Deus e diante dos homens (Sab 4, 1).
•Quando ela está presente, imitam-na; quando se retira, desejam-na; e,
coroada para sempre, triunfa, pois saiu vitoriosa na liça de combates intemera-
tos. (Sab 4, 2)
•A castidade inteira não é só a repulsa da impureza; é a ordenação do
espírito rumo ao que é maravilhoso (Plínio Corrêa de Oliveira).
•Purifica o teu amor: desvia em direção ao jardim a água que corria para
a cloaca (Santo Agostinho).
• “Omnis ponderatio non est digna continentis animae” – Todo o preço
é nada em comparação com uma alma casta. (Eclo. 26, 20).
• “Beati mundo corde; quoniam ipsi Deum videbunt” – Bem-
aventurados os que possuem o coração puro, pois eles verão a Deus. (Mt 5, 8).
•Quando a alma está pura, o corpo resplandece. (William Hunter).
• “Pepigi foedus cum oculis meis, ne cogitarem quidam de virgine” – Fiz
um pacto com meus olhos de nem sequer pensar numa virgem. (Jó 31, 1).
• “Ut scivi quoniam aliter non possem esse continens, nisi Deus det, adii
Dominum, et deprecatus sum illum” – Sabendo não poder ser puro sem ajuda
de Deus, para ele me voltei, e lho roguei. (Sab 8, 21).
•...Uma palavra doce como um favo de mel, perfumada como um lírio e
que, entretanto, detona hoje em dia como uma bomba. Essa palavra é: pureza.
E ela vem seguida de perto por duas co-irmãs, não menos doce nem menos
suave, mas com um poder de detonação ainda maior. Essas são: virgindade e
honra. (Plínio Corrêa de Oliveira – FSP 6.6.87).

358
•As almas puras formarão círculos em torno de Nosso Senhor. Quanto
mais puro se tiver sido na terra, tanto mais perto de Deus se estará no céu. (Cu-
ra D’Ars).
•A castidade é uma virtude angélica, pois por ela se faz o homem seme-
lhante aos anjos. (São Crisóstomo).
•Só em ver uma pessoa reconhece-se se ela é pura. Há nos seus olhos
um ar de candura e de modéstia que leva a Deus. (Cura D’Ars).
•As almas castas formam um família de anjos, que Cristo tem estabeleci-
do na terra, para ter anjos que o louvem não só no céu mas também no solo
(São Jerônimo).
•A pureza do coração e a interior formosura e liberdade do anjo, faz
eruditos e mestres, ilustrados, filósofos e teólogos, e em todas matérias instruí-
dos (Santo Agostinho).
•A pureza é a que comunica à alma o heroísmo. (Santo Ambrósio).
•A castidade traz consigo uma indescritível graça e suavidade, e propor-
ciona um prazer mais doce que todos os prazeres da carne. (São Isidoro).
•As almas virginais são como secretárias de Deus, pois Ele lhes descobre
Seus segredos. (São Teotônio Vilela).
•Entre todos os combates do cristão, o mais duro é o da castidade. (San-
to Agostinho).
•Não se pode ser continente se Deus não o concede. A castidade se pa-
rece com a neve: a uma e a outra vêm só de cima. (Pe. Francisco Spirago).
•Quem não verá, à luz dos princípios católicos, que a castidade perfeita
e a virgindade, bem longe de prejudicarem o desenvolvimento normal do ho-
mem e da mulher, os elevam pelo contrário à mais alta nobreza moral? (Pio
XII).
•A virgindade não possui a firmeza de virtude se não deriva do voto de a
preservar ilibada perpetuamente. (Santo Agostinho).
•A castidade é o lírio entre as virtudes e já nesta vida nos torna seme-
lhante aos anjos. Nada há mais belo que a pureza e a pureza dos homens é a
castidade. (S. Francisco de Sales).
•A palavra de Deus é casta e torna castos os que a amam. (S. Francisco
de Sales).
•“Virginité du coeur, hélas! Sitôt ravie!” – Virgindade do coração,ai! Tão
depressa roubada (Théphile Gautier, (escritor francês, séc XIX) Élégies, I).
•Olhos e pensamentos castos vigoram a saúde, e prolongam a vida.
(Marquês de Maricá).
• “Domi mansit casta vixit lanam fecit” – Ficou em casa, viveu casta, fiou
a lã. (inscrição comum em túmulos na Idade Média).

359
•Virtude sublime é a continência, magnífica é a pureza, acima de todo o
louvor a virgindade. (Santo Atanásio).
•A castidade dignifica o corpo, aprimora os bons costumes, santifica as
gerações. A pureza não precisa de nenhum outro adorno - é ela o seu próprio
adorno. É ela que nos torna agradáveis ao Senhor, que nos prende a Jesus com
os mais estreitos laços; ela preserva os nossos membros dos assaltos desordena-
dos da concupiscência desenfreada, e traz aos nossos corpos tranqüilidade e
paz. Ela é feliz e dá felicidade. (São Cipriano).
•Conheço a dificuldade deste assunto, conheço a violência destas lutas,
conheço a importância desta guerra. É necessário ter um espírito corajoso e for-
te, um espírito que deteste tudo quanto é vil. É mister andar sobre carvões em
brasa, sem se queimar; passar entre espadas nuas, sem se ferir. Porquanto a for-
ça da sensualidade é tão violenta, como a do fogo ou a do ferro. Assim, pois, se
a alma não se encontra armada para poder suportar dores, dentro em breve
perecerá. Por conseguinte, necessitamos sentidos de aço, olhos sempre vigilan-
tes, a mais perseverante tenacidade, muralhas., trincheiras e ferrolhos a toda
prova, sentinelas vigorosas sempre alertas, e sobretudo uma celeste disposição
de espírito. Porque, enfim, se o Senhor não vela pela cidade, é debalde que as
sentinelas vigiam" (São João Crisóstomo).
•Sendo a continência perpétua, e sobretudo a virgindade, um grande
bem nos santos de Deus, deve-se evitar com maior cuidado que se corrompa
com a soberba... Este bem, quanto maior o vejo, mais temo que a soberba o
roube. Este bem virginal ninguém o conserva senão o próprio Deus que o deu:
e "Deus é caridade" (I João 4, 8). Portanto, a guardiã da virgindade é a carida-
de; e a morada desta guardiã é a humildade. (Santo Agostinho).
•Não digais que tendes almas puras se tendes olhos impuros, porque os
olhos impuros são mensageiros de um coração impuro. (Santo Agostinho).
•Não honramos a virgindade por si mesma, mas por estar consagrada a
Deus... Nem nós louvamos nas virgens o serem virgens, mas o estarem consa-
gradas a Deus com piedosa continência. (Santo Agostinho).
•Os que dedicaram seus corpos à continência não se atrevam a morar
com mulheres, porque enquanto o calor vive no corpo, ninguém presuma de
todo tem apagado o fogo do coração. (São Gregório).
•No estado virginal a castidade exige uma muito grande simplicidade de
alma e uma consciência muito delicada, para afastar toda sorte de pensamentos
curiosos e elevar-se acima de todos os prazeres sensuais, por um desprezo abso-
luto e completo de tudo o que homem tem de comum com os animais e que
mais convém aos brutos que a ele. (São Francisco de Sales).
• “Expers contagionis integritas” - (Castidade é) plenitude isenta de con-
tágio (Santo Ambrósio)

360
• “Castitas enim fructus suavitatis est, et pulchritudo inviolata sanctorum;
castitas servitus mentis est, et sanitas corporis” - A castidade é fruto da suavida-
de e formosura incontaminada dos santos; é agradável servidão da mente e saú-
de do corpo” (Santo Isidoro)
• “Castitas est animae victoria, et corporis praeda; ubertas gloriarum, et
sterilitas criminum; pronuba sanctitatis, et repudium turpitudinis; sinceritatis
indicum, et abolitio scandalorum” - A Castidade é uma batalha em que a alma
é vencedora e o corpo o prisioneiro; traz consigo fertilidade de glórias e esteri-
lidade de pecados; é madrinha da santidade e repúdio da torpeza; indício de
sinceridade e destruição de escândalos. (Orígenes)
• “Oh ditosa castidade, mãe do verdadeiro amor e princípio da vida an-
gelical. Tu és a que purifica o coração e com alegre semblante comunicas e di-
fundes tua suavidade. Tu és uma maravilhosa virtude, que transformas os ho-
mens em Anjos, e a matéria terrena e corruptível em celestial e incorruptível.
Tu és quieto e seguro porto onde se acha a verdadeira paz, e o rochedo imóvel
que não abalam as tempestades; és a espiritual carroça que sublimas até os Céus
em corpo e alma a quem vai dentro; sagrada nuvem que levantas ao alto aquele
que a ti se acolhe. Tu desterras as tristezas do ânimo e o consolas; reprime a
rebelião das paixões e as ordenas; sossega as perturbações furiosas e introduzes
na alma seneridade suave; e como fragrante rosa formosíssima plantada no jar-
dim da alma, a esta, e juntamente ao corpo, ilustras e enobreces, e toda aquela
morada enches de suavíssima fragância. (Santo Efrém).
• “Angelicum gloriam acquirere maius est, quam hebere; esse Angelum
felicitatis est, virginem esse virtutis. Virginitas enim hoc obtinet viribus, quod
habet Angelus ex natura”. – Nos Anjos a pureza é mais feliz e nos homens é
mais admirável. Enquanto aos Anjos a pureza foi dada por sua natureza, aos
homens o foi por favor da graça como prêmio de gloriosas batalhas contra a
carne. (São João Crisóstomo)
• “Habet et pudicitia servata martyrium suum” – A Castidade bem guar-
dada é também certo gênero de martírio. (São Jerônimo).
• “Inter omnia Christianorum certamina sola dura sunt praelia Castitatis,
ubi quotidiana pugna, et rara victoria” – Entre todos os combates do Cristão só
os da Castidade são duros e fortes, onde a peleja é cotidiana e a rara a vitória.
(Santo Agostinho).
• “Haec dicit Dominus Eunuchis: dabo eis in domo mea, et in muris
meis locum, et nomen melius a filiis et filiabus; nomem sempiternum dabo eis,
quod non peribit” – Eis o que diz o Senhor aos Castos:... darei um lugar na mi-
nha casa, e das muralhas a dentro, e darei um nome ainda melhor do que o que
dariam os filhos e as filhas: um nome sempiterno que não perecerá jamais. (Is
56, 4-5)

361
• “Arduum est iter Castitatis, sed maiora sunt praemia” – Árdua é a Cas-
tidade, mas muito grande é o prêmio. (São Jerônimo).

CITAÇÕES E FRASES SOBRE A IMPUREZA

• “Omnis immunditia nec nominetur in vobis, sicut decet sanctos” –


Nem sequer se nomeie entre vós a impureza, como convém a santos. (Ef 5, 3).
• “Luxuria adeo turpis est, ut de ea quisque erubescat” – A luxúria é o
mais torpe dos vícios, e faz corar quem quer que seja. (S. Bernardo).
• “Sus lota in volutabro luti” – A porca lavada voltou a revolver-se na la-
ma. (2 Pedr 2, 22).
• “Scio voluptatem rem infamem esse” - Eu sei que a volúpia é uma coi-
sa infame. (Cícero).
• “Major sum, et ad majora genitus, quam ut mancipium sim mei corpo-
ris” – Eu sou demasiado grande e nasci para coisas elevadas demais, para que
me torne escravo de meu corpo. (Sêneca).
• “Neque fornicarii, neque adulteri, neque molles regnum Dei posside-
bunt” – Nem os fornicadores, nem os adúlteros, nem os efeminados possuirão
o Reino de Deus. (1 Cor 6, 9-10).
• “Non enim vocavit nos Deus in immunditiam, sed in sanctificationem”
– Deus não nos chamou para a imundície, mas para a santidade. (1 Tes 4, 7).
•Pecado algum rejubila tanto o demônio quanto o da impureza. (S. To-
más de Aquino).
•Não há no mundo peste mais perniciosa do que a da volúpia. Nela têm
origem as traições da pátria, as agitações dos Estados, as guerras das Nações...
Não há vício nem excesso, por maior que seja, a que a libidinagem não estimu-
le. (Arquitas de Taranto, séc. IV a.C.)
• “Animalis homo non percipit ea quae sunt spiritus Dei” – O homem
carnal não percebe as coisas que são do espírito de Deus. (1 Cor 2, 14).
• “Foris canes, et impudici” - Fora os cães..., os impudicos... (Apoc. 22,
15).
• “Qui delicate a pucritia nutrit sevum suum postea sentiet cum contu-
macem” – Quem desde a puerícia trata o próprio corpo com excessiva condes-
cendência e delicadeza, tê-lo-á rebelde, e acabará como escravo dele. (Prov 24,
21).
•Há almas que estão tão mortas, tão apodrecidas, que marasmam na sua
infecção sem o perceber e não podem mais desvencilhar-se dela. Tudo as leva
ao mal, tudo lhes lembra o mal, mesmo as coisas mais santas; elas têm sempre
essas abominações diante dos olhos: semelhantes ao animal imundo que se ha-
bitua à porcaria, que se agrada nela, que se rola nela, que nela dorme, que ron-

362
ca na sujice... essas pessoas são um objeto de horror aos olhos de Deus e dos
santos anjos. (Cura D’Ars).
•A soberba é o pecado dos anjos, a avareza o dos homens, a luxúria o
dos brutos irracionais. (São Bernardo).
•A desonestidade ama a solidão e quer ser achada em segredo; porém se
parece ao fogo escondido, que, mesmo que procure ocultar-se, se descobre pe-
la fumaça e pelo cheiro. (São Vicente Ferrer).
•A desonestidade produz uma sede ardente (inquietude de consciência)
e faz que o homem se perca. (Cornélio a Lápide).
•A luxúria rói a flor da juventude e antecipa uma velhice decrépita. (Pe.
Francisco Spirago).
•Fugi, irmãos, do pecado da fornicação, porque todo outro pecado que
fizer o homem, é fora do seu corpo; mas o que cai em fornicação, peca contra
seu próprio corpo, profanando-o e sujando-o com o pecado carnal. (São Pau-
lo).
•O homem, constituído em honra, não a entendeu; e se fez semelhante
ás bestas irracionais (Salmos 48, 21).

363
BIBLIOGRAFIA DE OBRAS E TEXTOS CONSULTADOS

- "A Imperatriz Leopoldina", de Carlos Oberaker – Conselho Federal de Cultu-


ra, 1973.
- “A Mãe de Santa Teresinha do Menino Jesus” - Carmelo do I. C. de Maria e
Santa Teresinha – Cotia(SP)
- "A Mulher nos Tempos das Cruzadas" - de Régine Pernoud - Papirus Editora.
- "'A Pérola das Virtudes" - pe. Adolfo Doss, S.J. - Liv. Apostolado da Imprensa,
Porto, Portugal, 1958.
- “A TFP: UMA VOCAÇÃO, TFP E FAMÍ LIAS, TFP E FAMÍLIAS NA
CRISE ESPIRITUAL E TEMPORAL DO SÉCULO XX” – de João S. Clá
Dias - Artpress – Papéis e Artes Gráficas Ltda, S. Paulo.
- “A Vida Íntima de Nosso Senhor Jesus Cristo”, revelada à Abadessa Maria
Cecília Baij, OSB – Acrópole Editora e Distribuidora Ltda (1984)
- A vida religiosa do último imperador da Áustria – Giovanna Brizi – Editora
Lumen Christi
- “Ad Catholici Sacerdotti”, de Pio XI, Documentos Pontifícios, n. 8, Ed. Vo-
zes.
- “ADOREMUS” - Manual de Orações e Exercícios Piedosos" - Editora Men-
sageiro da Fé - Salbador(BA), 1959.
- “Apoftegmas, a Sabedoria dos Monges Antigos" - Ed. Lumen Christi
- “Caminho Reto e Seguro para se chegar ao Céu” – de Santo Antonio Maria
Claret – Editora Ave Maria, 1960.
- “Cartas – Correspondência Ativa e Passiva” - Pe. Joseph de Anchieta SJ – Ed.
Loyola.
- “Cartas Jesuíticas 2 – Cartas Avulsas” – Editora Itatiaia.
- “Catecismo Popular Explanado" - Rdo. Francisco Spirago, - Gustavo Gili,
editor – Barcelona, Espanha.
- “Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre
pessoas homossexuais” – Ed. Paulinas.
- “D. Sebastião, Rei de Portugal” – Antero de Figueiredo – Liv. Bertrand, 1943,
Lisboa.
- Discursos, Mensagens e Colóquios do Santo Padre João XXIII, tip. Poliglota
vaticana.
- “El verdadeiro rostro de los santos”, Ed. Ariel, Barcelona, 1952.
- “Em Defesa da Ação Católica" - Plínio Corrêa de Oliveira - Artpress Papeis e
Artes Gráficas Ltda
- “Espírito do Cura D'Ars" - Abbé A. Monnin - Editora Vozes – 1949.
- Encíclica “Sacra Virginitas" – Pio XII - Ed. Vozes, 1960.

364
- “Escola da Perfeição Cristã”, compilação de textos do Santo Doutor Afon-
so Maria de Ligório pelo padre Saint-Omer, CSSR, traduzido pelo pe. José
Lopes, CSSR, quarta edição, Editora Vozes, Petrópoles, 1955.
- “Estudios de Antropologia Teológica”, Fr. Victorino Rodríguez y Rodríguez,
O.P, Speiro, Madrid.
- Exortação Apostólica “Redemptoris Custos”, de João Paulo II sobre a figura e
a missão de São José a vida de Cristo e da Igreja – 15 de agosto de 1989.
-“Filotéia ou Introdução à Vida Devota” - São Francisco de Sales - Ed. Vozes.
-"Guia de Pecadores" - Fray Luís de Granada – Editorial Simancas Ediciones.
-“Histoire d’une famille”, do Pe. Stéphane-Joseph Piat, OFM, Office Central de
Lisieux, 4ª. Ed.
-“História Eclesiástica” – Eusébio de Cesária – Editorial Nova, Buenos Aires.
- Homilia IV in Epistula Pauli ad Romanos, in PG 47, 360ss, apud Fábio Ber-
nabei.
-“Imitação de Cristo" - livro I - cap. 13 - Vozes, 1987.
-“La Leyenda Dorada” – Jacques de Voragine – Editora Alinza Forma – versão
castelhana da “La Legende Doreé”.
-“Madre Francisca de Jesus” - de Reginaldo Garrigou-Lagrange, Tip. Benediti-
na Santa Maria.
-"Mestra e Mãe", de Amélia Rodrigues, publicação dos Salesianos de Salvador
(BA).
-“Obras Ascéticas de San Alfonso Maria de Ligorio” – As Glórias de Maria –
BAC.
-“Obras de Santa Catalina de Siena" - BAC, Madri, Espanha.
-“Obras do Padre Manuel Bernardes – “Luz e Calor” - Lello & Irmãos Edito-
res, Porto, Portugal.
-“Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado” – João S. Clá Dias -
Arrpress, São Paulo.
-“Poema da Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus” – Pe. Anchieta -
tomo 1 – Ed. Loyola.
- Preces por Opportunitate Dincendae – Edições Loyola.
-“San Fernando, Rei de España – Vidas populares”, Editorial Apostolado de la
Prensa, Madri, 4ª.ed.
-"San Francisco de Asis" - Escritos, Biografias, Documentos de la época - B.A.C.
-“San Luís Maria Grignion de Montfort" - B.A.C.
-“Santa Gema Galgani" - Pe. Germano de Santo Estanislau - Liv. Apostolado da
Imprensa, Porto, Portugal.
-“São Bernardino de Sena” - Paulo Thureau-Dangin - Ed. Vozes, 1937.
- São João Bosco – Obras Fundamentais – BAC.

365
- SÃO JOSÉ: QUEM O CONHECE?...” Mons. João S. Clá Dias – Arautos do
Evangelho e Instituto Lumen Sapientiae – São Paulo, 2017
-“Tesouro de Exemplos”, do padre Francisco Alves, C.SS.R., - Editora Vozes,
1958.
-“Tratado do Amor a Deus" - São Francisco de Sales - Liv. Apostolado da Im-
prensa - Porto – Portugal.
- “Vida de San Luís Gonzaga, patrono de la juventud", do pe. Virgílio Cefari, SJ,
Universidad Autonoma de Nuevo Leon – Espanha.
- “Vida de São José” - Abadessa Maria Cecília Baij, OSB – Acrópole Editora e
Distribuidora Ltda
“Visiones e Revelaciones de la Ven. Ana Catalina Emmerick”, de Clemens
Brentano, Bernardo E. Overberg y Guilhermo Wesener”, tomo IV – La pri-
mera pascua de Jerusalém – Editorial Surgite.

Internet
1
Fonte: https://www.caminhandocomele.com.br/fray-luis-de-granada-a-revelacao-a-sao-jose-da-virgindade-
de-maria/
1
Extraído de : http://www.arautos.org/secoes/artigos/doutrina/sao-jose/a-virgindade-
purissima-de-sao-jose-a-luz-da-castidade-de-jose-185154
1
Fonte: http://www.arautos.org.br/artigo/18768/Jesus-com-Maria-nas-Bodas-de-Cana.html

- The Life o four Holy Mother Mary of Egypt (Vida de nossa Santa Mãe Ma-
ria do Egito), tradução de Jandira Soares Pimental -
http://www.ocf.org/OrthodoxPage/reading/st.mary.html

366
ÍNDICE

Título – conteúdo - pág.

1. Um imaginado diálogo sobre a luta interior de uma


alma contra as tentações de impureza..................... 3
2. Alguns princípios doutrinhários sobre a virtude da
castidade................................................................. 28
3. Conselhos para conservar-se puro........................... 72
4. Tratado da Castidade.............................................. 90
5. A Virgem Maria Santíssima, modelo castíssimo de
Pureza ................................................................... 117
6. São José e a Castidade............................................ 132
7. Exemplos bíblicos e de santos sobre a Castidade.... 148
8. Exemplos de castigos contra a impureza................. 233
9. Ocasiões de perigo – o baile .................................... 257
10. Sobre a castidade matrimonial................................ 264
11. Os pecados contra a natureza................................. 308
APÊNDIDES
I – Bodas de Caná ................................................. 325
II – Crise na família ............................................... 346
III – Plínio Corrêa de Oliveira e a Pureza.............. 354
IV – Orações.......................................................... 355
Bibliografia ............................................................ 364

367
A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE
Autor: Juraci Josino Cavalcante.
Texto destinado a circulação privada sem qualquer ônus para o leitor. Interessados em sua
divulgação entrar em contato pelo email juracuca@gmail.com

368

Você também pode gostar