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COLEÇÃO SA�ESIANA SIRIE ASCITICA N.

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Lemoyne, S. D. B.

O PERFIL MORAL
DE DOM BOSCO
Da "Vida de Dom Bosco"

(Trad. de GLOB)

1952
Livraria Soleslono Edltôra
Largo Coração de Jesus, 154
São Paulo
CAPíTULO I

Um primeiro olhar

O retrato, aspecto e atitudes - Modos de conversar


Fôrça muscular notável - Continuas achaques -
Inteligência e preparo - Memória prodigiosa - Calma
- Fortaleza nas contrariedades - Simplicidade, cora·
gem e prudência - "Ser wlerante" - Exemplaridade
com todos - Amabüidade com os de casa - " Cada
minuto vale um tesouro" .:_ Se eu chegasse aos oitenta
ou oitenta e cinco! - Tudo por Deus - O trabalho
na Pia Sociedade Salesiana - Caridade materna.

Em 1886 chegava a Valdocco um escultor trazendo


um busto de D. Bosco modelado sob fotografias obtidas.
Queria pôr a venda o seu trabalho e como não conhecia
pessoalmente o Servo de Deus, pediu-lhe o favor de
posar alguns minutos deante dele. O Santo, já de saúde
precaria, anuiu aos pedidos insistentes e subindo a um
palcozinho adrede preparado, exclamou : - Eis que subo
ao palco do suplício ! - O artista começou logo a retocar
o seu trabalho e D. Bosco voltando-se para o secretário
exclamou : "Vej am ! Vejam como me emplastram ! " Mas
dai a poucos minutos adormeceu e repousou tranquilo
durante três quartos de hora até que, despertando, foi
logo receber em audiência muitas pessoas que o espe­
ravam.
Chegados a êste ponto, também nós, com licença de
quantos viveram com D. Bosco nos últimos dez anos,
quereríamos pedir-lhe que por um momento se detivesse
perante nós para que pudessemos retratar-lhe a figura.
O vê-lo e contemplá-lo de perto, o exame do seu caráter,
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4 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

o conhecimento completo de sua fisionomia moral, não


será infrutuoso e far-nos-á saborear e compreender me­
lhor os últimos dez anos de sua vida.
A primeira vista, Dom Basco parecia um bom padre,
como outro qualquer e nada mais.
De estatura proporcionada, membros bem feitos e
dellcados, rosto oval e sempre sorridente, fronte espaçosa,
olhos vivos e penetrantíssimos, nariz e queixo bem mode­
lados, tinha D. Basco um aspéto mui simpático e encan­
tador. Quem quer que dele se aproximasse, experimen­
tava amor e respeito ao vêr-lhe a espressão tão bela,
amável e tão angélica a ponto de não parecer deste mundo.
Seu olhar e sorriso, punham à tona o encanto da santi­
dade que lhe impregnava a alma. Centenas de vêzes, os
jovenzinhos em seu redor exclamavam: "Parece Nosso
Senhor!".
Seu porte era sempre decoroso e perfeito. Quando
sentado, não encostava no espaldar da cadeira ou pol­
t.rona e nunca foi visto procurando uma posição mais
comoda, a não ser que a isso o obrigassem incômodos
de saúde. Quando não estava escrevendo, a posição ha­
bitual era de mãos cruzadas sôbre o peito. Cheio de
dignidade era também o seu porte, quando de pé ou
caminhando.
De poucas palavras, falava devagar e com suave gra­
vidade dando pêso a cada palavra que Jamais era inútU
e ao contrário sempre lnstruia e edificava. Frequentes
vêzes dizia algo de ameno e arguto mas, sempre com
parcimonla e graça, sempre com alguma reflexão moral.
O Marquês de Villeneuve Trans, ao vêr D. Bosco num
salão, rodeado pela fina flor da nobreza, aproximou-se
do Pe. Albera e disse: - D. Bosco prêche toujours! D.
Bosco prega sempre!
Paciente nas humilhações, nas calúnias e persegui­
ções, sabia se manter calmo e sempre cedia quando não
fosse obrigado a se defender. Quanto mais ásperas e
insolentes eram as expressões dos adversários, tanto mais

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UM PRIMEIRO OLHAR 5

suaves e mansas eram as palavras de D. Bosco. "Recor­


do-me, narra D. Cagll ero, que tendo vindo um fulano
falar-lhe com modo raivoso e palavras inconvenientes,
vencido pelas suas respostas e modos corteses, acalmou-se
e pediu-lhe desculpas na presença de nós jovens que os
escutavamos". Quando percebia não poder persuadir o
seu opositor, calava-se por completo.
Fidelíssimo em conservar um segredo, sabia também
calar tudo que, manifestado, pudesse causar um mal ou
impedir um bem; eis porque em tôdas as camadas do
clero e do 1iaicatQ, nas Congregações Romanas e nos mi­
nistérios civis, teve sempre amigos e protetores. Possuia
em grau elevadiss1mo o condão de ganhar os corações.
Munira-o Deus de singular fôrça corporal, Inteligên­
cia de escol e memória prodigiosa.
Frequentava o curso de retórica, quando certo dia,
quatro dos seus companheiros, saltam-lhe sucessivamente
às costas. rue os deixa pular e quando já todos os quatro
lhe estavam amontoados nas costas, pega nas mãos do que
estava por sôbre todos e apertando-as de maneira a pren­
der aos demais, leva-os todos até o pátio na presença dos
professores estupefactos e tranquilo os trás d e novo à
sala de aula.
Encontrando-se em Turim com dois cães furiosos que
aterrorizavam os transeuntes, agarrou um p elo toutiço e
pelo peito conservando-o muito tempo no ar enquanto
o canzarrão se debatia e ladrava inutilmente.
Em J883.. achando-se num jantar em casa de ilustre
família em Paris, foram servidas nózes e êle, sem inter­
romper a conversa, quebrava-as com dois dedos e as la
passando aos comensais maravilhados.
Tinha 69 anos quando enfermo e na cama, o doutor
desejou conhecer a condição de sua. fôrça e lhe disse:
- D. Bosco, aperte-me o pulso com quanta fôrça
puder.
- Doutor, o senhor não conhece mlnha fôrça.
- Não, lnsistlu o médico, não receie machucar-me.

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6 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

�le apertou então a mão do médico que resistiu até


às lagrimas e finalmente gritou pois o aperto quase fizera·
o sangue esguichar-lhe das pontas dos dedos. Quis en­
tretanto medir-lhe a fôrça e lhe apresentou um dina­
mómetro.
- Experimente o senhor, disse-lhe D. Bosco.
O médico apertou o instrumento e com tôda a fôrça
de que dispunha, o fez subir a 45 graus.
- Agora, disse D. Bosco, queira dá-lo ao padre que
me assiste. - O Pe. Berto o apertou e chegou só a 43
graus.
- E' a sua vez ! disse o doutor.
D. Bosco obedeceu e o ponteiro marcou o máximo,
60 graus.
Depois que se tornou sacerdote, quase nunca D. Bosco
manifestou a fôrça de que era dotado e quando o fez, foi
por necessidade ou para agradar aos amigos no recreio
e nunca para se defender. Essa fôrça, êle a consumiu
tôda inteira nos sofrimentos e nas labutas.
Já desde o início do seu apostolado, acontecia-lhe
por vêzes cuspir sangue. Em 1846, suas pernas incharam
e esta inchação crescente chegou a faze-lo sofrer muito
sete anos mais tarde, pois se estendeu pelos pés, aumen­
tando anualmente, a ponto de faze-lo andar com dificul­
dade nos seus últimos anos e obrigando-o a usar meias de
elastico. A esta dolorosa inchação, êle chamava alegre­
mente de "sua cruz cotidiana". Simultâneamente, ainda
antes de 1850, começou a sentir uma ardência nos olhos,
causada pelas longas vigilias e pela contínua leitura e
escrita; êste ardor cresceu de ano em ano e chegou ao
ponto de inutilizar-lhe o olho direito.
Era muitas vêzes assaltado também por fortes dores
de cabeça, a ponto de lhe parecer que o crâneo se lhe
tivesse dilatado como manifestou ao Pe. Rua e foi averi­
guado pelo Pe. Berta. Também dores angustiosas nos
dentes faziam-no sofrer por semanas a fio, insônias
obstinadas impediam-lhe o repouso. Ajunte-se a isto

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UM PRIMEIRO OLHAR 7

tudo uma forte palpitação que lhe tornava difícil o res­


pirar e que até parece ter-lhe causado o afastamento de
uma das costelas.
Nos últimos quinze anos, j untaram-se novos males
a6s antigos. Com muita frequência era assaltado por
febre acompanhada de erupções cutâneas. Por uma carne
esponjosa que surgira em lugar delicado sofria muito
quando sentado ou repousando na cama; no entanto não
se queixou com ninguém e continuou a usar uma cadeira
de páu bem rustica. Finalmente nos últimos cinco anos
o enfraquecimento da espinha dorsal obrigou-o a se
curvar sob o pêso das suas cruzes.
Vigorosa como o corpo era-lhe também a inteligên­
cia. A sua mente penetrante e versátil, te-lo-ia feito
triunfar em qualquer ramo de ciências ou de artes em
que se quisesse especializar. Conhecia bem o grego e o
latim, lia hebráico, falava francês e sabia fazer-se com­
preender em outras línguas como o alemão ; tratava de
teologia, filosofia, direito, história, geografia e de tôda a
ciência sacra e profana com tal competência que parecia
maravilhosa até aos mais versados.
Tinha também uma extraordinária memória. Ler
um livro e rete-lo era-lhe a mesma coisa ; e leu muitíssi­
mas obras sôbre assuntos científicos, históricos e literá­
rios, principalmente quando estudante e sacerdote novel.
Seus filhos tiveram nele um grande auxílio para econo­
mizar o tempo quando deviam fazer pregações, prepa­
rar-se para exames ou escrever livros; bastava recorrer
a D. Bosco e êle sempre indicava obras a consultar e
autores os mais uteis em · cada argumento.
Como clerigo, lera os livros da antiguidade j udaica
de José Flavio e podia repetir qualquer fato, período ou
capítulo, quer ao amigo Comollo, quer ao Pe. Cinzano.
Em 1867, o Pe. Rua afirmava : "E' maravilhoso como
D. Bosco, no meio de negócios importantíssimos que o
rodeiam, recorde no entanto e recite trechos belíssimos
de autores classicos, gregos, latinos e italianos; princi-

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8 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

palmente sabe e recita inteiros cantos de Dante, para


d escanso e alegria dos que o cercam".
Em 1870, escrevendo A Ortãzinha dos Apeninos, man­
dou procurar um volume de Bercastel e com maravilhosa
fidelidade explicou a forma exterior do livro e indicou
mais ou menos a p agina onde se encontrava a narra­
tiva da solitária dos Pireneus ; procurou-se o livro, e logo
se encontrou o que D. Bosco des·ejava; é 1para notar que
desde o seu tempo de seminarista, nunca mais compulsara
uma linha do Bercastel.
Mas o que mais causava admiração nos que dele se
aproximavam, era a calma imperturbável. Dizia-nos D.
Cagliero: "Tendo vivido sempre ao seu lado durante
tantos anos, observei sempre em D. Bosco uma rara im­
perturbabilidade e grandeza de espí:rito no iniciar entre
mil oposições as suas muitas emprêsas pela glória de
Deus e salvação das almas. Jamais perdeu a calma, a
doçura e serenidade de espírito e de coração, por graves
que fossem as calunias, por esmagadoras que fossem as
ingratidões, por absorventes que se apresentassem os
negócios, por mais que se repetissem os assaltos contra a
sua pessoa e a sua Pia Sociedade. Dizia sempre: "Nada
nos perturbe. Est Deus in Israel".
- "Quando o víamos mais alegre que de costume,
diz-nos o Pe. Júlio Barberis, costumavamos dizer : Por
certo aconteceu-lhe um contratempo bem grave".
- "Era para nós maravilha e conforto, diz o douto
Pe. Francisco Cerruti, vê-lo tranquilo e sorridente no
meio dos maiores desgostos, das humilhações mais amar­
gas e das fadig·as mais esfalfantes; víamo-lo sereno e
constante nos momentos em que Deus o submetia a provas
inesperadas ou que a caridade pública parecia abandoná­
lo. Era um milagre não sucumbir a tantos contrastes e
não o posso explicar sem a intervenção da Divina Pro­
vidência".
Nunca diminuiu o ritmo de suas emprêsas. Em todos
os instantes de sua vida, teria dado a existência em pról

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UM PRIMEIRO OLHAR 9

de sua missão e ia sempre calmo sem arrancos 'brutais,


sem precipitadas deliberações e sem perder a serenidade
em face de qualquer oposição.
Costumava dizer :
"Quando encontro uma dificuldade, mesmo das mais
graves, faço como o indivíduo que em plena estrad a en­
contra uma pedra e lhe obstruir a passagem. Se não
posso afastá-la, passo por cima dela ou dou a volta
por um caminho mais longo. Ou então, deixando por
algum tempo a obra iniciada, ponho-me logo a fazer
outra coisa para não desperdiçar um tempo precioso.
Não perco porém de vista o primeiro trabalho ; com o
tempo tudo se conserta, os homens se transformam e as
dificuldades se evaporam".
Muitas vêzes esteve em contato com altos persona­
gens políticos, mesmo sectários, mas não soube nunca o
que fosse o respeito humano em sustentar os direitos de
Deus e da Igrej a. Detestava a mentira, a duplicidade e
Lodo o artifício : o seu proceder e o seu modo de falar
eram sempre sinceros e costumava repetir o "est, est" e o
"non, non" do Evang·elho com a admiração de quantos
dele se aproximavam. Evitava opor-se publicamente ao
Govêrno com atos hostis mas atribuía francamente as
desordens que se sucediam com prejuízo da Igreja, às
seitas e funcionários que abusavam do próprio ofício ;
assim fazia porque, enquanto abominava o êrro, amava
os que erravam, procurando corrigi-los e assim, até os
inimigos admiravam-lhe o caráter adamantino e a since­
ridade de alma.
Tinha uma coragem mais única do que rara no se
apresentar a qualquer autoridade por elevada que fosse.
Não se intimidava e nada o desanimava. Franco nas
respostas, raciocinava, suplicava, censurava e ameaçava
até, quando o j ulg·ava necessário, mas sempre calmo, fir­
me, às vêzes sério, mas sempre carinhoso, nunca ofensivo,
quase sempre sorridente. A sua voz não mudava de tom.
Com estas maneiras, unidas ao conhecimento e à

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10 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

prática de todos os meios j ustos, retos e legais para defen­


der os próprios direitos, e unidas ao empenho em evitar
que se intensificassem certas incompreensões, achava
meio de tirar vantagens das mesmas dificuldades que se
levantavám contra suas instituições. Muitas vêzes
ouviam-se pessoas estranhas, que não o conheciam de
perto, dizer :- E mesmo singular ; êste homem adivinha
'

tudo o que vai acontecer. - Outros diziam : - Como D.


Bosco é esperto ! Daria um excelente ministro de estado !
- Ou ainda : - :mstes santos são mesmo espertos !
Compreendeu que devia aproveitar das novas aspira­
ções só o que tinham de bom e moderar com paciência o
muito que tinham de mal. Percebeu que a corrente revo­
lucionária ia se tornar tão ruinosa que esfacelaria qual­
quer obstáculo e j ulgou logo humanamente impossível e
até contraproducente, a resistência direta. Porisso co­
meçou a sondar com cautela as ideias modernas pro­
curando salvar a tantos quantos possível e afastando das
mesmas aqueles que por excessiva credulidade se aven­
turavam a abraçá-las ; levantou barreiras onde a inun­
dação de êrros podia ser impedida e apontou recursos
imensos aos que o desejavam seguir na obra de salva­
mento e restauração da sociedade.
"O mundo está todo põsto na maldade, sempre o foi e
quanto mais envelhece mais se corrompe. E' preciso
pegar os homens e as coisas, não como deviam ser, mas
como são de fato e fazê-los inclinar-se e servir ao que
é bom na medida do possível. Fazem-me rir os que dizem
querer destruir a Igreja. Na verdade fazem os seus planos
conseguem os seus intentos e quando j ulgam ter alcan­
çado o seu ideal, eis que o Senhor lhes envia a morte e
desmantela num instante os seus projetos desiludindo-os
por completo. O homem é mortal e porisso é inutil a
sua luta contra Deus que é eterno. As perseguições dos
maus, não são mais do que borrascas e temporais que
passam e morrem com êles'
- Você sabe, perguntava um dia ao Pe. Berto, o que

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UM PRIMEIRO OLHAR 11

é mais difícil neste mundo? - E depois d e ouvir várias


respostas, acrescentou :
- E' ser benevolente. E D. Bosco o é. Eu escuto
com atenção a todos, peso tudo com calma, procuro fazer
�ma id�ia j usta das várias coisas e assim me é possível
separar o bem do mal e agir com tino.
A sua benevolência no entanto era unida a uma
constante perspicácia. Um dia num j antar com pessoas
de vários partidos à sobremesa houve numerosas sauda­
ções. Um fez um brinde a Vitor Manuel li, outro a
Cavour, outro à liberdade, outro a Garibaldi. Voltaram-se
depois todos para D. Bosco e lhe pediram um brinde. O
santo levantou-se prontamente e brindou: "a Vitor Ema­
nuel, a Cavour e a Garibaldi, debaixo da bandeira do
Papa, para que salvem a alma" t Todos o aplaudiram pela
esperteza.
Delicadíssimo, sabia tratar a todos, grandes e peque­
nos, com o maior respeito, seguindo o conselho de S.
Paulo : "Cui honor, honor". Dai honra a quem a merece.
A tôda a autoridade, eclesiastica e civil, prestava e man­
dava que se prestasse o maior acatamento e o devido res­
peito; j amais deixou de usar as devidas considerações
para com os seus visitantes. Os gentis-homens que o
observavam atentamente, maravilhavam-se de sua fina
cortesia e perguntavam frequentemente : Onde foi D.
Bosco aprender tanta urbanidade? E' um perfeito cava­
lheiro. - O Pe. Albera ouviu inumeras vêzes esta per­
gunta na França e era uma das razões, secundária mas
real, do desejo que todos tinham de obsequiar e hospedar
a D. Bosco.
A sua apresentação a pessoas ilustres, era o mais das
vêzes um ato de humildade. Se indagavam sõbre o seu
nascimento e posição social, não se envergonhava de dizer
que nascera pobre e fora ajudado nos estudos por pessoas
caridosas; gostosamente timbrava em repetir que era um
simples sacerdote, sem nenhum título ou dignidade hono­
rífica ; não se laureara em teologia, não tinha diploma

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12 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

de professor e nem sequer tinha a patente de mestre


das primeiras letras : - Sou o pobre D. Bosco e meu
único título é o de "Chefe dos Molequinhos" . - No entanto
apressava-se em honrar os outros com os títulos que pos­
,
suíam procuran,do como S. Francisco de Sales exagerar
nessas provas de respeito e jamais ser avaro em em­
pregá-las.
Tratando com a mesma delicadeza as pessoas pobres,
nunca entrava nas suas casas de cabeça coberta. Com
os alunos e com os Salesianos era de encantadora ama­
bilidade, sem afetação : - Gostaria de te confiar esta
coisa ; que achas? - Faça-me o favor de realizar isto. -
Permite que o avise de uma coisa ? - Pode você ajudar­
me neste trabalho?
Prodigalizava êsses modos afetuosamente paternos
para com aqueles que necessitavam de animação. A
alguns dos irmãos leigos costumava dar, brincando, a
investidura de uns retalhos de terrenos que sua família
possuía em Murialdo, quase todos incultos e arenosos.
Assim é que no Oratório havia o conde dos Becchi, hu­
milde logarejo em que nascera, o marquês de Valcappone,
o barão de Bacaiau e o comendador do Pico dos Pinheiros.
Costumava tratá-los assim não só em casa mas também
fora do Oratório, em viajens ou em férias.
Um dia chegou à estação de Porta Nova acompanhado
por José Rossi que lhe levava a maleta ; iam viajar mas
como de costume chegaram no momento em que o trem
ia partir; inumeras pessoas nas janelas dos carros indi­
cavam que os lugares estavam todos ocupados. Não po­
dendo achar um banco, D. Bosco volta-se brincando para
o companheiro e lhe fala. em voz alta :
- Oh ! Senhor Conde ! Que honra para mim V. Excia.
carregar-me a maleta !
- Que ideia, D. Bosco; sinto-me bem feliz pela honra
de lhe prestar tão pequeno serviço.
Alguns viajantes, ao ouvir as palavras "Senhor Con-

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UM PRIMEIRO OLHAR 13

de" e "D. Bosco" se entreolham admirados e um deles


exclama :
- D. Bosco ! Sr. Conde ! Subam aqui. Arranjaremos
logo dois lugares.
· - Mas não queremos incomodá-los.
- Nãt> ! E' uma honra para nós. Arrumaremos tudo.
Podem subir.
A j ocosidade e a delicadeza de maneiras eram-lhe
ornamento perene.
"Um dia, escreve Madre Catarina Daghero, Superiora.
Geral das Filhas de Maria Auxiliadora, acompanhei uma
Irmã que sofria escrupulos e era um tormento para si e
para o próximo. Fomos ter com D. Bosco. o santo a
escutou atentamente depois perguntou-me : - Ouça : a se­
nhora já leu o livro do Bertoldino? (1) - Não, senhor, não
o conheço. - Está bem ! Procure este livro e quando a
Irmã estiver pensativa obrigue-a a lêr algumas páginas
pois precisa apenas distração e santa alegria . . . De fato.
a palavra persuasiva de D. Bosco, unida aos esforços que
a Irmã fez para lhe ser obediente, conseguiu o efeito
suspirado".
Com os salesianos era de uma abertura de coração,
simplicidade e sinceridade admiráveis; seu fim era ga­
nhar-lhes o coração e encaminhá-los para Deus. Com
frequência era obrigado a aceitar convites para j antar.
Contou-nos uma vez :
"O j antar foi de luxo ; no fim trouxeram um sorvete
finíssimo e percebi que os convidados diziam baixinho :
- "Vai vêr que D. Bosco vai se servir de pouco ou de
nada só para se mortificar". - Ouví estas frases e sem
hesitar enchi o meu prato com sorvete. - Vejam só !
exclamavam os hóspedes. - Faz isto para que o j ulgue­
mos guloso". - Assim é o mundo. Se estimam a uma
pessoa, tudo que ela fizer será bem interpretado. Se

(1) E' um livro de aventuras extravagantes e engraçadlssimas N.O.R.

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14 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

pelo contrário aborrecem a alguém tudo será visto com


máus olhos. Pobre mundo. Vejam porém como é impor­
tante que um sacerdote conserve uma fama boa".
Era finalmente de uma atividade e resistência mara­
vilhosa s. Foi assim que poude ser considerado como um
dos maiores sa ntos e dos mais trabalhadores.
Pouco depois da partida dos primeiros missionários,
o padre Júlio Barberis lhe augurava longa vida com muita
saúde para que pudesse levar a bom termo seus grandes
empreendimentos. D. Bosco acrescentou :
- Também eu de vez em quando penso que se Deus
me concedesse chegar até os 80 e 85 anos, com a saúde
corporal e clareza de espírito de que disponho hoje, pa­
rec e-me que se poderiam fazer muitas coisas na Itália e
fora dela. Deus porém disponha como lhe conviér. En­
quanto me deixar no mundo estarei aqui de boa mente.
Trabalho depressa e o mais possível pois vejo que o tempo
vôa e, por mais que se viva, não se faz nem a metade
do que se quereria fazer. Faço meus planos e procuro
executá-los, aperfeiçoando muitas coisas na medida do
possível e esperando que sôe a hora da partida. Quando
o sino com seu "dan, dan, dan", me indicar que é a hora.
obedecerei. Enquanto eu não escuto o sinal, não posso
parar ; depois, os que vierem após minha morte comple­
tarão o que eu não pude fazer.
Seu trabalho era todo para Deus.
Tendo reunido muitos diretores para os Exercícios
Espirituais, perguntava-lhes:
- O que vocês acham. que mais se deve inculcar aos
Salesianos?
Depois de ouvir as mais diversas respostas, acres­
centou :
- Vejo que nós trabalhamos muito : devemos lembrar
que no trabalho, nossos olhos devem estar voltados para
Deus. Que o demonio não nos roube o.smerecimentos de
nenhum dos nossos esforços.

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UM PRIMEIRO OLHAR 15

o Pe. Cagllero acrescenta :


- Quando nos via esmagados pelo cansaço, dizia-nos :
·Coragem ! Trabalhemos ! Trabalhemos sempre para ter­
mos no céu um eterno descanso. Quando acontecer que
ulh salesiano deixe de viver, trabalhando pelas almas, de­
veis dizet que nossa Congregação obteve um grande
triunfo e sobre ela descerão copiosas as bençãos celestes.
- Mas seus filhos trabalham demais - dizia-lhe um
benfeitor.
- Estamos no mundo para trabalhar.
- Está bem, mas a corda muito esticada arrebenta.
Precisariam descansar de quando em quando.
- Fa-lo-ão no céu.
- Mas no entanto, o excessivo trabalho fá-los per-
der a saúde.
- Não é uma perda, é um ganho.
- Mas não vê que muitos assim abreviam a vida?
- Terão o prêmio mais depressa. Feliz de quem mor-
re por tão santa causa !
Na vigília de Assunção em 1876 começou-se a discu­
tir sobre o argumento : se era verdade que o trabalho
encurtava a vida e fazia morrer os salesianos.
- Todo o salesiano que morresse sob o peso do tra­
balho, atrairia para o seu lugar cem outros membros
para a nossa Congregação. É verdade ! Alegro-me e me
ufano por ver que entre nós se trabalha muito; mas não
me parece verídico que o excessivo trabalho tenha mata­
do aos nossos Irmãos . . . Se tal fosse verdade, que mo­
tivo de glória para a nossa Congregação. Tão grandes
sacrifícios receberiam um prêmio no céu e as bênçãos
para os salesianos que ainda lutam. A nossa Pia Socie­
dade estará sempre florescente enquanto nós trabalhar­
mos muito e os Salesianos forem temperantes. Eis o que
destrói os Institutos Religiosos : a abundância de alimen­
to e de bebidas bem como o egoísmo ou o espírito de re­
forma e a murmuração .

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16 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Mas não se pense que Dom Bosco exorbitasse ou que


não usasse especiais cuidados para quem deles preci­
sasse: - Um homem sozinho vale por um ! dizia ele. -
Ninguém deve se esforçar para valer por dois, do contrá­
rio se ,desgasta depressa e se reduz à inatividade j usta­
mente quando. mais poderia ser útil.
Quando alguém adoecia, Dom Bosco, posto que ocu­
padíssimo, corria logo ao seu leito, informava-se sobre a
doença, indagava se as prescrições médicas eram fiel­
mente seguidas e repetia sempre que aos doentes nada
se deixe faltar. Economize-se em tudo mas providencie­
se tudo que for necessário para os enfermos. - D. Bosco
era assim : Esquecia-se de si próprio para pensar nos
seus filhos.
CAPíTULO li

Consigo mesmo

O motivo da aç ão social dos Santos - Espírito de


penitência em D. Bosco - Frugalidade e sobriedade
cotidianas - Esque ce-lhe o jantar - Dorme pouco e
dormita caminhando - Numa sapataria - Mortifica­
ções de todos os dias - Penitências extraordin árias -
Varios testemunhos - Em casa dos benfeitores -
Somente consigo - Frutos maravilhosos de tal vigi­
lância e mortificação - Candor virginal - Delicadís­
simas atenções - Como falava sôbre a pureza - Pare­
cia Jesus no meio dos meninos - Eficácia das suas
e xhortações.

Para que um homem exerça uma grande influência


moral sobre os próprios semelhantes, é preciso que ele
adquira antes um domínio absoluto sobre si mesmo de
modo a poder ditar ordens a qualquer instante para a
própria alma, encaminhando-a para o bem sem descanso ;
isto é o fruto de uma contínua mortificação. Eis o por­
que da imensa influência que Dom Bosco sempre excerceu
em torno di si mesmo; tomara por modêlo a vida morti­
ficada do Divino Salvador e sua máxima preferida era :
"Quem padece com Jesus Cristo aqui na terra será um dia
coroado de glória lá no céu."
Todavia este espírito de penitência era engenhosa­
mente ocultado o que lhe aumentava de muito o mereci­
mento. Os estranhos não o percebiam e aqueles que par­
ticipavam de sua vida só formavam um j uizo seguro a
este respeito após longas e repetidas observações. Dizia
o Teólogo Savio Ascanio, primeiro clérigo do Oratório:
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18 O PERFIL MORAL D E DO M BOSCO

"Nunca o ví praticar penitências extraordinárias, no


entanto parecia-me extraordinário no seu modo de agir
como sacerdote exemplar. Praticou a mortificação corpo­
ral com tanta assiduidade e minúcia, com tanta facilida­
de e com um prazer tão grande, que a sua vida se pode
comparar à d Ôs monges mais austeros e à dos mais rí­
gidos penitentes."
Frugalíssima era a sua alimentação. Preferia alimen­
tos comuns e em quantidade tão diminuta que era de
admirar como pudesse resistir a tantas fadigas. Pela ma­
nhã, durante muitos anos não tomava senão uma chícara
de café e chicórea que não apetecia a ninguém; misturava
umas gotas de leite quando a isso o obrigava alguma
indisposição, poucas vezes engulia então um pedacinho
de pão que nem lhe bastaria para quebrar o j ejum.
Ao melo dia, quando era retido na sala de audiências
e chegava ao refeitório muito tarde, os alunos o rodeavam
a ponto de impedir-lhe a respiração e ele ensurdecido
pela algazarra de seus filhos comia alguma coisa no meio
de uma confusão e num ambiente horrível para os sen­
tidos mas caríssimo a Dom Bosco cujo único desejo era
a salvação das almas.
Normalmente abstinha-se da carne e até parecia ter­
lhe uma grande aversão. Evitava comer carne sempre que
lhe fosse possível dela se abster fazendo notar que tinha
os dentes gastos e não podia mastigar bem. Para não se
tornar diferente dos demais, servia-se de quando em vez
de um pedacinho que se lhe oferecesse e quando lhe per­
guntavam qual pedaço preferia, respondia sempre : -

o menor ! - Nos últhnos anos servia-se de carne com


mais frequência, para obedecer às prescrições médicas.
No j antar comia ainda menos que no almôço e de­
pois da morte da mãe apesar de j antar as vêzes muito
tarde, retido por outras ocupações, não permitia que nin­
guém ficasse na cozinha para cuidar do frugal prato de
que la se servir ; contentava-se então com um pouco de
sopa cozida jà três ou quatro horas atrás. "Além disso,

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CONSIGO li/IESIIIIO 19

dizia-nos José Buzzetti, um dos atentos observadores de


então, se na cozinha não havia mais nada e chegava um
visitante, Dom Bosco se privava do aUmento para dá-lo
ao seu hóspede e fazia-o com tanto jeito que êste nem
·
o perceb�a".
Acostumara-se a mortificar o gôsto a rponto de quase
perder o paladar. Pregava um retiro numa paróquia cam­
pestre e uma noite ficou confessando até tarde e quan­
do entrou na casa paroquial já todos dormiam. Foi à
cozinha para vêr se lhe tinham preparado e guardado
um prato; achou n.o forno um pratinho e pegando uma
colher comeu tranquilamente o que tinha encontrado mas
no dia seguinte a creada do pároco não achou mais o
amido que guardara para engomar a roupa. O pároco
soube com maravilha, dos lábios de Dom Bosco, que este
comera a goma sem estranhar.
Conta-nos o P. Revigllo que um dia entrara no Ora­
tório e foi achar Dom Bosco no refeitório sozinho comen­
do após várias horas de árduo trabalho. Tinha deante
de si uma tigela com feijão mal cozido e toda a sua re­
feição limitava-se a isso. Esse bom ex-aluno, já então
pároco em Turim, comoveu-se ante tão grande sobrie­
.
dade.
T�mbém no beber era modêlo de temperança. Em
cada refeição tomava apenas um copo de vinho e punha
tanta água que bem se podia dizer: um copo de água
com vinho. Até depois de 1853 a adega era fornecida pelo
município que mandava ao Oratório, quase semanalmen­
te, uma mistura não muito agradável de amostras de vi­
nho e fundos de barrís que sobravam no mercado; e
Dom Bosco sempre os usava. Muitas vezes até se esquecia
de beber e seus vizinhos deviam encher-lhe o copo; se o
vinho era muito forte misturava logo muita água "para
tomá-lo melhor" dizia êle "porquanto renunciei ao mun­
do e ao demônio mas não às pompas" (isto é, em italia­
no, "alle pompe", que significa -também "torneiras") .

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O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Fora das refeições nada aceitava quando em casa ;


fora de casa aceitava um bocadinho de vinho com água
por mera delicadeza. Não quis nunca ter consigo vinhos
ou licores; se lhe mandavam de presente, mandava-os
para a di::.1Jensa ou para a enfermaria ou os enviava a
outros benfeitores.
Era mortificadíssimo também no repouso.
No estio, cansado pelas noites insones e exgotado pe ­
las fadigas, às vêzes cochilava à mesa sentado na pobre
cadeira, inclinando a cabeça sobre o peito por breve
tempo. Mas nunca foi à cama, nem nos últimos anos, a
não ser para o repouso noturno. Ordinariamente, a hora
mais pesada do dia era aquela em que devia sair pelas
ruas de Turim para fazer compras ou pedir auxílio. Ator­
mentado pela sonolência, às vezes chamava algum me­
nino que conhecesse as ruas e, segurando-o pelo braço,
lhe dizia: Conduze-me a êste ou àquele lugar mas presta
atenção pois o sono pode me vencer e eu tropeçaria pelas
ruas. Assim dizendo, dormitava como se o movimento e
êsse estado de torpor lhe pudessem reparar as fôrças.
Uma ocasião, tendo saído sem companheiro achou-se
perto da Igreja de Nossa Senhora da Consolação não
sabendo onde estava nem para onde iria. Um sapateiro ao
vê-lo titubeante aproximou-se dele e lhe perguntou se
estava doente :
- Não. Estou com sono.
- Está bem. Venha comigo, dormirá um pouco e de-
pois reiniciará o caminho.
Dom Bosco aceitou ; entrou na sapataria e sentando­
se dormiu sobre um tamborete duas horas e meia. ()uan­
do despertou queixou-se com o sapateiro por não o ter
despertado : - Oh ! Ao vê-lo, bom padre, tão profunda­
mente adormecido encostado à parede, eu o contemplava
com devoção e pensava consigo mesmo quão dura ter-lhe­
-á sido a labuta que tanto o esfalfou. - Não foi esta a
única vez em que Dom Bosco descansou numa sapataria
com edificação do proprietário.

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CONSIGO MESMO 21

A noite, era sempre o último a i r descansar e não


repousava senão quando o cansaço o obrigava e muitas
vezes adormecia vestido.
"Dom Bosco, declara o P. Rua, confiou-me uma vez
que até a idade de 50 anos não dormira mais de cinco
horas por noite e semanalmente passava uma noite in­
teira sem dormir. Eu disso fui testemunha pois até o
ano de 1886 sempre a sua lâmpada se apagava depois da
meia-noite. De 1866 a 1871 começou a dar ao próprio cor­
po seis horas de descanso conservando no entanto uma
noite sem dormir de sete em sete dias. Ordinariamente
na estação mais suave levantava-se às 3 e deitava-se às
11 e 30. Disso é testemunha o seu secretário, o P. Joa­
quim Berto que dormia no quarto ao lado do seu. Em
1872, depois da célebre doença que teve em Varazze teve
que se resignar a dormir sete horas
por noite e renunciar
à noite insone durante a semana. Isso não o impedia,
contudo, de voltar de quando em vez ao velho costume".
- "Muitas vezes, afirma João Bisio encarregado da
limpeza do seu quarto, de 1864 a 1871, muitas vezes achei
o seu leito intato e queixando-me com ele, respondia-me
que pelo acúmulo de trabalho não pudera deitar-se".
Frequentemente era atacado de insonia e então nas
poucas horas que ficava na cama, rezava e meditava so­
bre os seus · planos e meios de executá-los. Seu modo de
agir era igual durante a noite e durante o dia. Quem lhe
dormia ao lado ouvindo-o gritar e receando que estivesse
doente, muitas vezes entrou de repente no quarto de Dom
Bosco, nas pontas dos pés, e o achou sempre deitado com
as mãos cruzadas sobre o peito, a cabeça um pouco le­
vantada e tão composto que parecia um desses santos
conservados nos altares dentro de urnas de cristal para
a veneração dos fieis.
Era admirável o domínio que tinha sobre as suas pai­
xões e o modo com que regulava os afetos de simpatia e
de sensibilidade bem como os de cólera e aversão; sujei-

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22 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

tava-os sempre à reta razão e aos princípios da fé, para.


maior glória de Deus!
Freava o natural desejo de vêr e saber coisas em si
honestíssimas, que no entanto o desviassem de sua mis­
são. Nus suas longas e frequentes viagens não se deixava
dominar pela' curiosidade de visitar monumentos, palá­
cios, pinacotecas ou museus. Numa cidade da França con­
vidado pelo P. Albera para examinar um edifício público
que era uma jóia de arquitetura, respondeu: Bem sabes
que não vim à França para vêr monumentos ou obras
de arte.
Não lia nem fazia ler jornais a não ser quando davam
notícias de algum fato glorioso ou triste para a Igreja.
Católica, ou que interessavam diretamente a sua obra.
As vezes porém pedia a outrem uma relação das princi­
pais notícias do dia, especialmente nos momentos de
maior confusão política, para dar aos outros uma orien­
tação no julgamento de fatos públicos e para não estar
completamente alheio nas conversações em que devia to­
mar parte, mas era claro que nunca o fazia por simples
curiosidade.
Privava-se de toda a especie de divertimentos e não·
particapava de festas meramente recreativas, de paradas
militares, de iluminações, recepções de príncipes, etc. se
bem que muitas vezes fosse convidado para as mes.mas.
Permitia os fogos de artifício para diversão dos seus me­
ninos mas, se ele estava no pátio, não olhava e, se no.
quarto, não saia ao terraço para assistir a êles. Desculpa­
va-se dizendo que as pupilas não aguentavam a luz de­
masiado viva, que iria prejudicá-las. Muitas vezes assis­
tia às representações dramáticas do Oratório mas o fazia
para divertir e alegrar os jovenzinhos animando-os ao
estudo e para mostrar que a piedade não é inimiga de
diversões honestas; outras vêzes ali estava para acompa­
nhar a p·essoas importantes; via-se que não estava no·
teatro para se divertir pois seu olhar tranquilo, rara­
mente fixava-se na cena ou nos atores.

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CONSIGO MESMO 23

Nunca cheirava flôres. Se lhas ofereciam, aoeitava-as


com agrado e as mandava para o altar da Virgem. Não
tomava rapé posto que lhe fosse isso necessário pela dôr
nos olhos e na cabeça, em consequência do sangue que
afluía para essa parte do corpo resultante das assíduas e
graves ocupações. Tendo o médico lhe aconselhado o uso
do rapé, conservava um pouquinho numa caixa diminuta
na qual dificilmente entravam dois dedos; ou se esquecia
da caixa ou a usava raramente ou mais frequentemente
a aproximava do nariz para provocar o espirro. Nas con­
versas e viagens servia-se no entanto do rapé afim de
crear amigos e muito raramente oferecia-o aos seus jo­
venzinhos dizendo-lhes: Toma! Isto expulsa todos os
máus pensamentos. Era tão pequeno o consumo de rapé,
que o teólogo Pechenino que lhe fornecia o tabaco, en­
chia-lhe a tabaqueira uma vez por ano. Se alguém lho
oferecia, êle, para gracejar introduzia na tabaqueira o
dedo mínimo e aspirava o polegar.
"Experimentava imensa alegria no sofrimento, afir­
ma o P. Bonetti. E tal alegria lhe transparecia no rosto;
jamais deixava de empreender uma obra santa nem de­
sistia de um trabalho por mais árido e desgostoso que
fosse, deixando perceber que sentia maior tristeza em
abandoná-lo do que em ultimá-lo".
"Eu e todos meus companheiros, afirma Monsenhor
Cagliero, estamos persuadidos de que o nosso querido
pai, pôsto que ocultasse ciosamente as suas mortificações,
abstinência e privações, a ponto de a sua virtude nos
parecer ordinária e comum a qualquer sacerdote exem­
plar a ninguém assustando e pelo contrário, infundindo
nos outros coragem e a esperança de imitá-lo, todavia
se considerarmos em conjunto a sua precária saúde, os
incômodos escondidos, o desapego dos bens dêste mundo,
a duríssima pobreza especialmente nos vinte e cinco pri­
meiros anos do Oratório, a insuficiência de alimento, a
ausência de derivativos, divertimentos e comodidades e
sobretudo, as contínuas fadigas de mente e de corpo, po-

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24 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

demos afirmar com verdade que Dom Bosco levou uma


vida tão penitente e mortificada como a dos que atingi­
ram a mais alta perfeição e santidade. Estas mortifica­
ções eram-lhe tão fáceis e naturais que nos persuadem
ter o Servo de Deus possuído a virtude da temperança em
gráu heróico".
Estamos persuadidos de que Dom Bosco praticava,
ao menos de quando em vez, penitências extraordinárias.
Começamos a pensar assim desde que ele nos disse que,
para obter do Senhor alguma graça especialíssima e ne­
cessária, tinha recorrido a meios proporcionados com os
quais obtivera o que desejava. Não quis no entanto dizer­
nos, por mais que lhe perguntássemos, quais os meios a
que se referia. Não se deve silenciar que êle, sempre com­
posto em todos os menores atos, levantasse de quando
em vez os ombros como se tivesse nos flancos algum ob­
jeto que lhe causasse dor ou incômodo. Carlos Gastini ao
arrumar a cama de Dom Bosco achou certa manhã al­
guns pedacinhos de ferro embaixo do lençol; Dom Bosco
os esquecera na pressa de ir para a igreja. O jovem CarloS
não pensou mais nisso e colocou os ferrinhos sobre a
mesa mas no dia seguinte não os achou mais e nem mais
apareceram nos vários meses em que Gastini lhe arru­
mava o quarto. Dom Bosco não tocou no assunto e só
muitos anos depois é que o rapaz matutou na finalidade
que poderia ter os pedacinhos de ferro. "Outra vez diz
D. Cagliero, foram achados na sua cama varios pauzinhos
c pedrinhas". Isso prova que Dom Bosco costumava ator­
mentar durante a noite o corpo tão maltratado, tor­
nando-lhe penoso o pouco sono que lhe concedia. Descon­
fiando de que alguém pudesse ficar ao par deste segredo,
quase sempre êle mesmo arrumava a cama e espanava
os poucos móveis do seu quarto. José Brosio surpreen­
deu-o um dia nessa ocupação e Dom Bosco fez-lhe um
sermãozinho sobre a ordem e limpeza do próprio quarto,
mas Brosio observou curioso que só nessas ocasiões é que
Dom Bosco fechava a porta a chave.

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CONSIGO MESMO 25

Além disso maior era a austeridade que usava para


consigo quando ia passar alguns dias com os seus mais
insígnes benfeitores. A largueza dos aposentos e o afas­
ta.mento entre o seu quarto e os da família em que se
hospedava, permitiam-lhe maior segurança contra inves­
tigações indiscretas. Por vezes aceitava o convite de uma
nobre e veneranda senhora e ia tranquilo e jovial passar
alguns dias na sua casa de campo. Ora, uma pessoa da
família, a altas horas da noite, em 1879, atravessando
uma sala contígua ao quarto de Dom Bosco ouviu um
rumor surdo, monôtono e prolongado como de golpes
repetidos. Ficou supeitoso mas a ninguém disse nada fi­
cando no entanto de vigia; convenceu-se então que este
fato se repetia sempre que Dom Bosco aí se hospedava
e que a imitação de São Vicente de Paulo obtivesse assim
graças assinaladas. Tendo alguns anos depois, confiado
o seu segrêdo a outros senhores que costumavam hospe­
dar a Dom Bosco, soube que estes haviam também obser­
vado a mesma coisa e todos estavam persuadidos de que
Dom Bosco se disciplinasse; prudentes e corteses, ne­
nhum lhe revelou a p·rópria descoberta. O Santo sempre
conservou ciosamente ocultas estas penitências, quer por
humildade, quer por não ser êste o exemplo que preten­
dia deixar aos seus filhos. Não costumava recomendar
tais práticas e com os seus penitentes era sempre bon­
doso e compassivo.
Tendo uma pessoa de debil constituição pedido no
confessionário a permiss�o de copiar em si os sofrimentos
de Jesus mediante a penitência corporal, e insistindo no
seu cap,richo, Dom Bosco lhe respondeu: Oh! Veja! Meios
não faltam: o calor, o frio, as doenças, os aborrecimen­
tos, as pessoas. . Há muitos meios para nos penitenciar­
mos.
Esta vigilância contínua sobre si mesmo, produzia
frutos admiráveis. As palavras, o modo de agir, todas as
suas ações, respiravam candor virginal; todos ficavam
edificados e arrebatados por mais empedernidos que fos-

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26 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

sem. O ar sereno que lhe brilhava no rosto tinha uma


especial atrativa para ganhar os corações. Jamais uma
palavra menos própria, um gesto, um movimento de sa­
bor mundano ! Quem o conheceu nos momentos mais ín­
timos de sua vida o que mais notou foi o empenho contí­
nuo pela prática dos mais meticulosos resguardos para
51. conservação da pureza. Nunca pronunciou um chiste

grosseiro ou uma frase ambigua e quando o fazia ina­


dvertidamente, logo enrubescia. Os seus escritos são tam­
bém um modêlo da delicadeza que usava neste assunto
fulgurando como um fiel e cristalino reflexo de sua can­
didez angelical. "Algumas vêzes, acrescenta Dom Rua,
aconteceu-m� e a vários companheiros vermo-nos em­
baraçados para contar em aula alguns fatos da Sagra­
da Escritura, mas bastava que consultássemos a História
Sagrada escrita por Dom Bosco e logo aprendíamos tal
delicadeza no expôr o fato, que afastava logo qualquer
perigo de inconveniência. Pode-se afirmar também a seu
respeito o que se disse do Divino Redentor : atacado por
seus inimigos de mil modos ninguém ousou atacar-lhe
a castidade".
Ao tratar com homens permitia-lhes que lhe beijas­
sem a mão e aconselhava-nos a que o imitássemos por­
que os sacerdotes são pessoas revestidas de um carater
e de uma autoridade divinas e suas mãos são consagra­
das. Às pessoas do outro sexo permitia por vezes tal ato
de delicadeza mas sem lhes reter a mão e o mais das
vezes delicadamente evitava que lhes beij assem as mãos
sacerdotais. Na rua não saudava por primeiro uma se­
nhora, por maior benfeitora que fosse e nem fazia-lhes
visitas a não ser para a glória de Deus .ou por necessida­
de premente. Muitas vezes, convidado por algwna senho­
ra a aproveitar um lugar na própria carruagem, agrade­
cendo cortêsmente declinava êste favor e se o aceitava
era só quando acompanhado. ·
Era cioso do seu recato. Em Castelnuovo precisando
fazer a barba, entrou numa barbearia e eis que se apre-

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�ONSIGO MESMO 27

senta uma senhora convidando-o delicadamente a se sen­


tar pois logo seria atendido. Ao vêr que a senhora lhe
punha a toalha sobre o peito, Dom Bosco pensou : Até
aqui não tem muita importância ! pois esperava que vies­
se o barbeiro, mas, ao vê-la preparar a navalha e trazer
o recipiente do sabão como quem ia pôr-se ao trabalho,

levantou-se, pegou o chapéu e saiu dizendo : Nunca dei­


xarei que uma senhora me pegue pelo nariz. Oh ! Não !
Até hoje, a não ser minha mãe, nenhuma senhora tocou­
-me na face.
Nas pregações, nas alocuções, nas conversas, nas
conferências, não deixava de instilar também nos outros
o amor à mais bela das virtudes. Quando falava sôbre o
inestimável tesouro que ela representa, ou pintava a be­
leza de uma alma casta e as alegrias que goza no céu
ou os prêmios que o Senhor lhe preparou na terra e no
céu, a sua palavra produzia um efeito encantador nos que
a ouviam a ponto de dizerem todos : "Só quem é puro
e casto como os anjos saberá falar desse modo".
Dava sempre :preferência a falar da castidade em vez
de falar do vício contrário. Fazia apenas aceno a êste com
os termos mais reservados e prudentes e sabia incutir o
máximo horror deste vício não apenas com a palavra mas
com um conjunto de graça divina, de persuasão e de afe­
to que transbordava de seu coração. Evitava até pironun­
ciar os nomes desse pecado contra a bela virtude; dava
às suas tentações o nome de más; uma queda era por
ele chamada uma desgraça. Até mesmo o nome castida­
de não lhe parecia bastante satisfatório pelo que o subs­
tituía com o de pureza que apresentava um sentido mais
extenso e que, segundo êle, impré ssionava menos a fan-
·

tasia.
O P. Albera recorda como Dom Bosco era delicado no
interrogar os penitentes a respeito das faltas contra a
castidade e como recomendava aos confessores não ir
além nas perguntas logo que percebia estar assegurada
a integridade da confissão. Nisto era incomparável.

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28 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Era tão grande o desejo que tinha de que todo o Cle­


ro fulgurasse pela prática desta virtude, que costumava
Ordens.
desaconselhar e não permitir aos que não fossem firmes
na prática desta virtude, o serem admitidos às Sagradas
Dizemos ainda que no exortar os clérigos a tomar
afetuoso cuidado com os jovens, contava-lhes o exemplo
do Divino Salvador mas receando que algum abusasse da
comparação, não o citava por inteiro em público ou não.
deixava de comentar os trechos que narram como Jesus
Cristo estreitava ao peito os jovenzinhos porque, dizia Dom
Bosco, o que Deus fazia eles não podiam imitar sem pe­
rigo. D·om Bosco dava uma ideia fidelíssima do Divino
Mestre no meio dos seus jovens. A virtude da pureza era­
lhe um manto que o cobria da cabeça aos pés, eis porque
todos se aproximavam dele e nele depunham confiança
ilimitada, sabendo como Dom Bosco era inocente e puro.
"Sempre no meio dos meninos, afirma o Cônego Bal­
lesio, rodeado por eles e puxado de um lado para outro,
nos recreios e nos jogos, manifestava uma desenvoltura
recatadíssima; não só as suas palavras, mas até a sua
presença e muito mais o seu olhar e o seu sorriso, ins­
piravam amor a esta virtude que aos nossos olhos era
o mais belo ornamento do Servo de Deus e no-lo fazia
tão venerando e amável. Muitas vezes, quando não jo­
gava, conservava um grande número de meninos seguros
pelos dedos discorrendo sobre coisas úteis e morais. Sem­
pre muito reservado, de quando em quando curvava a
própria cabeça para dar a algum deles uma palavrinha
ao ouvido sem que os outros o escutassem. . . Mas sem­
pre não só os alunos como os sacerdotes, de boa vontade
lhe beijavam a mão, com um mbcto de estima e profunda
reverência como se· beijassem uma relíquia".
Acrescentamos que jamais foi visto usar para com os
meninos dessas carícias por vezes permitidas. Para pre­
miar um aluno ou lhe mostrar benevolência, limitava-se
a colocar a mão sobre a cabeça ou no ombro do mesmo

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CONSIGO MESMO 29

ou roçar de leve a face do menino com os dedos. "E nes­


tas carícias que usava para conosco, escreveu o teólogo
Reviglio, havia um não sei quê de puro, de recatado, de
paterno que parecia nos infundir o perfume de sua cas­
tidjl.de pelo que nos sentíamos atraídos e mais dispostos
a praticar. tão bela virtude."
Dom Bosco soube infundir em todas as quadras da
vida um amor profundo pela pureza; aos seus alunos
impregnava-os de virgindade e assim por díspares que
fossem as suas condições e origens, estavam tão embebi­
dos dessa virtude e a tinham em tão alta estima que
reçumava-lhes a pureza pelos olhos fazendo-os •efletir
o semblante divino.

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CAPíTULO III

Com o próximo

Sua caridade para com os outros - Como provia


às necessidades de cada um - Predüeção pelos filhos
mais distantes - N ão pode mais rezar pelos missioná­
rios, tal a comoção que sente - Carta testamento -
Seu afeto pelos jovens do Oratório - Pelos dos o utros
colégios - Carta aos al unos de Lanzo - Sua caridade
para cada um - Era assim com todos - Como cuidava
dos pobrezinhos que afluíam ao Oratório - Sua cari­
dade n ão tem limites - Reconhecimento para com os
benfeitores - Presentes, favores espirituais e delica­
dezas - Oh! o coração de D. Bosco - Encontro com
um companheiro de Chieri que muitas vêzes lhe dera
de comer - Carta aos benfeitores.

Se para consigo próprio era tão mortificado e tem­


perante, era todo olhos e coração para provêr às neces­
sidades alheias. Tinha um coração grande como o de
Salomão: latitudinem cordis, quasi arenam quce est in
littore maris! Os primeiros a proclamarem tal coisa, eram
·OS seus filhos prediletos, aqueles que, tendo abraçado o
seu ideal, se achavam sempre ao seu lado. Somente se
pudéssemos referir os testemunhos de todos que o con­
sideraram como o própil'io pai, poderíamos ter uma idéia
do seu coração.
"Experimentei - depõe o salesiano José Rossi -
muitíssimas vêzes, a caridade de Dom Bosco. Os meus
pais insistiam para que fosse a casa ajudá-los e assisti­
los. Dom Bosco ao saber disso, falou-me: - Se têm ne­
cessidade de alguma coisa, aqui está uma nota de cem
liras. Escreva-lhes que venham ambos para o Oratório;
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32 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

se o seu pai puder ainda fazer alguma coisa, fa-lo-á; se


não o puder, andará com seu bordão por onde quiser e
não sairá do lado de você; quanto à sua mãe, poderá
ocupar-se de algum trabalhinho na rouparia; se não pu­
der fazer. nada, ficará rezando na igreja. Foi este espí­
rito de caridade· que o levou a abrir em 1886 uma casa
para as mães dos salesianos, necessitadas de assistência.
Esta casa foi fundada em Mathi Turinês e confiada às
Filhas de Maria Auxiliadora".
Quando eu estava como professor no Oratório, ao
mesmo tempo que frequentava a Universidade - narra­
va-nos o Cônego Anfossi - voltava ao meio dia e muitas
vezes não podia tomar a sopa de fubá que era quase o
único prato. Dom Bosco, não menos cansado do que eu,
se me via relutando contra a repugnância que sentia para
aquele prato, êle, que só tomava um pouco da sopa co­
mum, dava ordens para que me trouxessem um caldo ou
qualquer coisa mais saborosa.
- "Recordo-me, diz Pedro Enria, que um clérigo meu
colega precisou ir a casa i)Or ordem médica. Foi se des­
pedir de Dom Bosco que lhe perguntou:
- Tens dinheiro para a viajem? - Sim; o padre
prefeito me deu.
- Mas quanto tempo você vai ficar lá?
- O médico me disse que passasse dois meses mas
acho que não serão suficientes.
- Os teus pais não são ricos e não quero que te­
nham privações por tua causa. Toma estas 250 liras e
logo que se acabarem, escreve-me, que te mandarei mais.
Faze tudo que o médico mandou. Poupa-te bem e não te
canses. Saúda por mim os teus pais; todas as manhãs
rezo por ti na Santa Missa."
- "E' extraordinário, prossegue o Pe. João Garino,
como no meio de tantas ocupações cuidasse tanto dos
clérigos e da saúde deles. Todos os mêses ou ao menos
de dois em dois mêses indagava daqueles cujos país não
os podiam ajudar, se precisavam de batina, calçado ou

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COM O PRÓXIMO 33

coisas de uso pessoal. Para outros clérigos e alunos,


arranjava benfeitores que lhes pagavam uma parte da
pen�ão mesmo no Seminário. Estando eu nos primeiros
anps, como clérigo no Oratório, me arranjou uma senhora
rica que wovidenciasse tudo de que eu viesse a precisar.
E de fato a boa senhora cuidou carinhosamente de mim
e mandava ao Oratório, em tempos fixos, quantias des­
tinadas às minhas despesas. De tempos em tempos D.
Bosco me chamava para perguntar se eu de nada pre­
cisava pois nada podia faltar-me. Eu então relembrava
as palavras que D. Bosco me dissera em 1858 quando tive
c infortunio de perder meu pai: Lembra-te, Garino, que

terás sempre um pai em D. Bosco".


E assim o era com todos conforme a índole, as ne­
cessidades e as circunstancias de cada um.
"Em 1866, conta o Pe. Joaquim Berto, então clérigo
- acompanhava D. Bosco do seu quarto até o teatro,
quando ao passar pela escadinha .do estudo êle me disse:
- Veja, Berto, você tem �xcessivo temor de D. Bosco;
pensa que eu seja excessivamente rigoroso e exigente; não
ousa falar-me livremente, está sempre receioso de desa­
gradar-me; deixa de parte o receio. Você sabe que D. Bosco
lhe quer bem; porisso, se você faz pequenas travessuras,
D. Bosco nem dá importância e se você faz grandes tra­
tantagens, D. Bosco lhe perdoa".
A alguém que vacilava nos bons propósitos pensando
em abandonar a Pia Sociedade, escrevia: Estarás sempre
inquieto e até infeliz e�quanto não puseres em prática a
obediência e não te abandonares inteiramente à direção de
teus superiores. Até agora o demonio te atormentou cruel­
mente e conseguiu de ti o contrário do que devias fazer.
Pela tua carta e pelas conversas que já tivemos não há
motivo nenhum para te dispensar dos votos. E caso os
houvesse, eu teria de escrever para a Santa Sé a quem
está reservada a dispensa dos mesmos. Mas, "coram Do­
mino", eu te aconselharia a meditares no "abneget seme­
tipsum" e a te lembrares que "vir obediens loquetur

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34 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

victoriam". Acredita na minha experiência. O demônio


gostaria de nos enganar; conseguiu alguma coisa contigo
mas quanto a mim errou redondamente. Tem plena
confiança em mim, como eu sempre tive em ti; prova-o
·
não com palavras mas com os fatos, mostra uma vontade
eficaz, uma obecÜencia humilde, pronta, ilimitada. Eis as
cousas que farão a tua felicidade espiritual e temporal
trazendo-me verdadeira consolação. Deus te abençoe e
te conceda o precioso dom da perseverança no bem ·

Nutria na verdade um amor especial pelos seus filhos


distantes. Sofria ao pensar que alguns padeciam sauda­
des obrigados pelo dever que os conservava longe do
Oratório.
O Pe. Albera nos afirma que a muitos deu ordens de
ir a Turim conversar com êle de dois em dois mêses e
D. Bosco nesses casos lhes paga-va generosamente a via­
jem. Sempre que lhe foi possível, isto é, até 1884, anual­
mente escrevia de próprio punho uma carta a cada um
dos missionários sacerdotes, �érigos e leigos que tinham
partido para a América. Com quanto carinho o fazia.
A D. Cagliero escrevia regularmente duas vêzes por mês
P no dia 16 de fevereiro de 1876, três mêses após a par­
tida, dizia-lhe afetuosamente:
"Ontem houve teatrinho e se representou a famosa
"Disputa entre um advogado e um ministro protestante";
foi uma representação brilhante. Mino cantou o Filho do
exilado com real êxito mas o pensamento de que o autor
da música estava tão distante, me comoveu profundamen­
te, foi assim que, durante todo o tempo do canto e da
representação, não deixei de pensar nos meus caros Sa­
lesianos da América".
l!:ste afeto paterno foi crescendo tanto que desde 1884
preparava uma terníssima carta para os seus filhos lerem
após sua morte; em 1886 falava-se a respeito da sensibi­
lidade do coração e D. Bosco deveu confessar que na
Santa Missa não podia mais recomendar os Missionários

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COM O PRÓXIMO 35

pois a comoção o sufocava. "Então, dizia brincando, sou


obr igado a pensar em "bonecos" para me distrair".
Eis a carta que êle nos deixou :

Meus .caros e amados filhos em J. C.,

Antes de partir para a minha eternidade devo


cumprir alguns lleveres para convosco e assim satisfazer
o grande desejo do meu coração.
Antes de' mais nada vos agradeço com o mais vivo
afeto do coração pela ol;lediência que me prestastes e por
todo o trabalho que tivestes para sustentardes e propa­
gardes a nossa Congregação.
Eu vos deixo aqui na terra, mas apenas por pouco
tempo. Espero da infinita Misericórdia de Deus que um
dia nos possamos encontrar todos na feliz eternidade.
Recomendo-vos que não choreis a minha morte. E'
uma dívida que todos havemos de pagar, mas depois será
copiosamente recompensado todo o trabalho sofrido por
amor de nosso Mestre, o nosso Bom Jesus.
Em vez do pranto fazei firmes e eficazes resoluções
de permanecerdes firmes na vocação até a morte. Ficai
atentos e cuidai afim de que o amor do mundo, a afeição
aos parentes, tampouco o desejo de uma vida mais cômoda
vos não levem ao grande despropósito de profanardes os
santos votos e assim transgredirdes a profi3são religiosa,
com que nos consagramos ao Senhor. Nenhum de nós
tome de novo o que demos a Deus.
Se me amastes no passado, continuai a amar-me no
futuro com a exata observância das nossas Constituições.
Morreu o vosso primeiro Réitor. Mas o nosso verda­
deiro Superior, Jesus Cristo, não morrerá. Será êle sem­
pre o nosso Mestre, nosso Guia, nosso Modêlo. Não vos
esqueçais, porém, de que a seu tempo 1!:le mesmo será o
nosso Juiz e Remunerador da nossa fidelidade em seu
serviço.

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36 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

O vosso Reitor já não vive, mas será eleito outro que


cuidará de vós e da vossa eterna salvação. Ouvi-o,
amai-o, obedecei-lhe, rezai por êle, como fizestes para
comigo.
Adeps, queridos filhos, adeus. No céu eu vos espero.
Lá falaremos de Deus, de Maria, Mãe e sustentadora da
nossa Congregação; lá bendiremos por todo o sempre
esta nossa Congregação, cujas regras por nós observa­
das contribuíram poderosa e eficazmente para a nossa
salvação.
Sit nomen Domini benedictum ex hoc nunc et usque
in sooculum. In te, Domine, speravi, non conjundar in
reternum.
SAc. JoÃo Bosco

O mesmo carinho usava para com os seus orfãozinhos.


Quando, ao voltar de qualquer viajem, apresentav,a-se aos
alunos do Oratório, não deixava de exclamar: - Final­
mente posso vos dirigir uma palavra! Vêde quanto tempo
passei sem poder vos dar a "Boa noite"! Mas se não
vim pessoalmente há mais tempo, meu coração estava
sempre convosco. Todos os dias na Santa Missa rezei
por vós e pedi a Nosso Senhor que vos ajudasse. À noite,
no silêncio do meu quarto o meu pensamento se voltava,
irresistível ao vosso meio; eu vos via, vos falava, alegrava­
me com vossa presença e vos desejava de longe uma noite
tranquila; nunca pude me deitar sem antes rezar por
VÓS • • • "

Aos alunos dos outros colégios enquanto poude não


deixou de escrever várias vêzes por ano. No dia 3 de
Janeiro de 1867 escrevia "aos seus caros amigos, Diretor,
Mestres, alunos e a todos do Colégio de Lanzo. - Deixai
que eu vos diga e ·ninguém se ofenda: sois todos uns
ladrões ; sim, disse e repito, tirastes tudo que eu tinha.
Quando estive aí me encantastes com vossa amável ternura
e me impressionastes com a vossa piedade ; restava-me

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COM O PRÓXIMO 37

ainda o coração mas também o roubastes por completo.


A vossa carta assinada por duzentas mã!)s amigas e carís­
simas apoderou-se de meu coração não lhe deixando mais
do que um vivíssimo desejo de amar-vos em Nosso Senhor,
'
de beneficiar-vos, de salvar a alma de cada um de vós.
Esta provâ de gentil atenção me convida a fazer-vos, o
mais breve possível, uma visita que espero não seja adia­
da . . . No dia 15 deste mês, dia consagrado a S. Mauricio,
celebrarei a Santa Missa segundo vossa intenção ·e vós
nesse dia far-me-eis a caridade de oferecer a Sta. Comu­
nhão para que eu possa chegar convosco ao Paraíso . . . "
Também tinha delicadezas maternais para cada aluno
em particular. Antônio Sala, mais tarde sacerdote e ecôno­
mo geral da Pia Sociedade, conta-nos que um dia D. Bosco
mandou-lhe dizer que o esperava no refeitório. Admirado
obedeceu e lhe perguntou o que desejava. - "Quero tomar
café em sua companhia ! " e . lhe apresentou uma xícara
com muito carinho; em seguida pouco a pouco, anunciou­
lhe a morte do pai. O pobrezinho desatou em pranto
mas o Pe. Alasonatti que lhe estava ao lado sussurrou­
lhe ao ouvido: "Morreu-te um pai mas ficou um outro ! "
D . Bosco acrescentou que se a família não pudesse pagar
a módica pensão, Antônio ficaria gratuitamente no Ora­
tório até terminar os estudos. Sala foi à casa por alguns
dias e de lá escreveu:"Acredite, D. Bosco, as lágrimas
que eu derramo pela perda de meu pai transformam-se
em lágrimas de consolação quando penso no senhor".
Era assim para com todos. Um dia vê em Turim um
ajudante de pedreiro cair e se machucar. Socorre-o pron­
tamente, leva-o para uma farmácia ali perto e quando o
vê melhor pergunta-lhe onde moram os seus pais; ao
saber que não moravam em Turim, leva-o para· o Oratório
c quando o vê completamente curado, vivo e inteligente,
encaminha-o para os . estudos e o petiz torna-se mais
tarde Professor de Literatura e Régio Inspetor Escolar.
Outra vez foi visitado por um democrático fogoso que,
achando-se em graves aperturas financeiras, pede-lhe um

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38 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

pequeno auxílio de ao menos três francos para comprar


uma camisa assegurando-lhe que restituiria logo o di­
nheiro. D. Bosco apalpou a bolsinha e achando-a vasia
avistou �ôbre a cama uma bela camisa limpinha e pas­
sada; tomou-a ft disse : "Eis ! Aurum et argentum non
est mihi, quod autem habeo, hoc tibi do". - o pobre
homem olhou-o com f'spanto e lhe perguntou: "Mas . .
e o senhor?" - "Não se preocupe ! A Providência que
hoje vem em seu auxílio, amanhã virá no meu ! " o homem
ficou comovidíssimo e entre lágrimas lançou-se-lhe aos
pés dizendo: - "Quanto bem pode um padre fazer ! "
Prova do seu bom coração, foi também o cuidado
que sempre usou para com tantos pobz:es.
Enquanto a Casa Real e os Ministérios estiveram em
Turim, muitos infelizes que 'Precisavam apresentar súpli­
cas às primeiras Autoridades e não sabiam escrever, re­
corriam a D. Bosco. O santo os escutava pacientemente
e fazia tudo de que era capaz. Por cinco ou seis anos,
em pessoa fazia gratuitamente êste trabalho e muitas
vêzes logo após o jantar. Mais tarde, quando lhe foi
possível ter uma portaria dispôs que a certas horas aí
se achasse alguém para atender a êsses pobrezinhos e
pôr em prática o de que precisavam. Isso durou até 1870.
Sua caridade não conhecia limites. "Em Abril de
1863, escreve o Pe. Ruffino, são sem número as despesas
de D. Bosco: novas construções no Oratório, a nova
igreja a se iniciar, o colégio que se está construindo em
Mirabello, além de tôdas as despesas ordinárias. Não
obstante isso, D. Bosco ainda acha meios para ajudar
outras obras pias. No bairro de S. Salvário pessoas gene­
rosas estão construindo uma igreja paroquial. Trata-se
de concorrer para a salvação de almas, de provêr à ali­
mentação espiritual de tantas pessoas que na populosa
Turim correm grave risco de se perder. Basta êste argu­
mento para que D. Bosco mande ao pároco, Teólogo
Arpino, tudo que pode obter, isto é, duzentas liras além

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COM O PRÓXIMO

de muitos bilhetes que comprara na rifa em beneficio


desse novo templo".
Também a Mr. Chiesa, bispo de Pinerolo, D. Bosco.
mandava em 1886 duzentas liras para a restauração da
cat edral e . o piedoso pastor agradecia dizendo que a
oferta. de D. Bosco era-lhe de mais valor do que qualquer
outra das mais ricas famílias.
Uma senhora, conta-nos o Pe. Albera, perguntou a
D. Bosco qual o emprêgo que devia dar a uma vultuosa
quantia que tinha disponível. - "Faça o altar-mór da tal
igreja que se está construindo aqui em Turim". - E assim
se fez.
Posto que tôdas as virtudes tenham seu atrativo e
falem com eloquência ao nosso coração, nenhuma nos é
mais cara do que a gratidão. Esta flor gentil que adorna
a alma que a cultiva e comove até as lágrimas quem lhe
sente o perfume, esta flor sempre vicejou no coração.
de D. Bosco.
"Vêde como é grande a bondade de Deus ! Não tinha­
mos com que comprar o pão e veio êste senhor ou esta
senhora em nosso auxílio!" Mil vêzes nós o ouviámos.
repetir que o pouco bem que fazia erá devido à caridade
das almas boas. "Vivemos da caridade dos nossos ben­
feitores".
· Rezava e fazia seus alunos rezarem diariamente pelos.
benfeitores, recomendava que comungassem por intenção
deles e no caso de doença ou de morte celebrava e man­
dava celebrar Missas por êles. Em Alassio quando saía
da sacristia pala o Altar chamou o Pe. Cerruti e lhe
disse : - Sabes? vou celebrar de modo especial por inten­
ção do piedoso Pe. Vallega que nos fez tantas esmolas em
anos passados.
Não deixava nunca de mostrar o valor que dava aos
benefícios recebidos. Mesmo que a oferta fosse de poucos
centésimos, acusava o recebimento com um cartão de vi­
sita; se a esmola chegava a uma lira e meia ou duas diras.
escrevia uma carta bem quente de agradecimentos.

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40 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Jamais deixava passar ocasião para mostrar aos


mais beneméritos a recordação da sua caridade. Em
tôdas as circunstâncias faustosas, tais como onomásticos,
matrimqnio, honras recebidas, fortunas adquiridas, man­
dava-lhes cum:grimentos; não se esquecia de enviar-lhes
condolências quando a morte ou um infortúnio vinha
pesar sôbre a família de algum deles. No princípio do
ano levava um mês escrevendo cartas autógrafas de
felicitações. As vêzes ofertava como homenagem alguma
das suas obras.
Aos que moravam perto fazia por vêzes humildes
presentes. Recebendo coisas r!j.ras ou saborosas, em vez
de usá-las em casa, _ distribuía aos benfeitores que as
pudessem receber com mais presteza. Frutas, legumes,
lebres, galinhas, aves de valor, bolos e vinhos saborosos
tudo que sabia ser apreciado, mandava para os benfei­
tores. Não esquecia os chefes de estação e outros fun­
cionários que de qualquer modo tivessem favorecido a
sua obra ou colaborado nas rifas que fazia. Estas deli­
cadezas multiplicavam a simpatia e mais tarde êle reco­
mendava aos Diretores dos seus colégios que procurassem
trocar reciprocamente as raridades mais apreciadas com
o fim de presentear os benfeitores.
Obteve do Rei e do Papa especiais títulos honoríficos
para muitos dos seus cooperadores. Ouvimos o Conde­
Cibrario comprazer-se por ter ajudado a D. Bosco na
obtenção dessas honrarias para os benfeitores; êsse gen­
tilhomem narrava-nos que quando um estranjeiro cubiça­
va um títUlo honorífico, logo o Conde Cibrario o acon­
selhava a favorecer as obras de D. Bosco.
Era admirável a solicitude que usava para obter aos
cooperadores e às suas famílias favores espirituais de
indulgências, bênçãos dos Sumos Pontífices e graças se­
melhantes; frequentemente mandava-lhes santinhos com
seu autógrafo: "Deus abençoe os benfeitores das Obras
Salesianas''c

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COM O PRÓXIMO 41

Do mesmo modo prestava-lhes qualquer serviço por


mais pesado que lhe fosse. Pediam-lhe um sacerdote que
fosse celebrar num lugar distante com estradas precárias
e a uma hora incomoda? - Não hesitava e se algu ém
lhe õbservasse que isso era um empenho superior às fôrças
de D. Boscó, êste respondia : - "E' um nosso benfeitor.
Façamc.s também um sacrifício para favorecê-lo". Assim
foi que muitas vêzes empreendeu longas viajens para
atender à insistência dos que socorriam os seus alunos.
Até um simples desej o dos benfeitores era para D.
Bosco uma ordem. Uma :senhora desejava uns passari­
nhos para satisfazer seus filhinhos e D. Bosco lhe mandou
uma ninhada ainda implume. A família ficou tão como­
vida com o presente inesperado, que de j oelhos em redor
da mesa sôbre a qual fora posto o ninho, rezaram todos
por D. Bosco. Tratou a senhora dos passarinhos até sa­
berem voar e soltou-os depois mandando uma esmola
para o Oratório.
Oh ! O coração de D. Bosco! Comovia-se com os
menores serviços! Um menino que lhe ensinasse o cami­
nho, um creado que lhe acendesse a luz, um outro que
lhe trouxesse um copo dágua, ou coisa menor ainda, tudo
era motivo de gratidão da parte do santo. Muitas vêzes,
após uma conferencia um pouco longa ou uma visita mais
demorada, ouvíamo-lo dizer : "Eu lhes agradeço a pa­
ciência com que me aturaram e ouviram".
Um dia um seu sacerdote estando em viajem dirigira­
se com um grupo de jovens à casa de um bom paroco
que os hospedou com farto jantar.
- Que lhe deste em paga da hospitalidade? - per­
guntou àquele padre que lhe contava a amabilidade do
pároco.
- Eu? O que lhe podia dar?
....,... Ora.
Aquele padre tem poucas economias; você
devia fechar num envoltório uma nota de cem liras e
dá-lo às ocultas pedindo-lhe que celebrasse uma Missa

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42 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

por você e pelos meninos. Sirva isto de lição pois nestes


casos não podemos ser de mãos fechadas. Saberei suprir
ao descuido.
Popre como era, era generoso como um rei.
Nos anos em que fazia o ginásio na cidade de Chieri,
muitas vêzes devia sofrer fome pela falta de dinheiro mas
os seus companheiros que tanto o estimavam logo o per­
cebiam; entre outos, José Blanchard várias vêzes presen­
teou-o com fruta e pão.
"Pois vejam, narrava José Blanchard já velhinho, D.
Bosco não se esqueceu de mim nem se envergonhou de
publicar o pouco que eu fizera por êle quando jovem e
destituído de meios pecuniários. Perdera-o de vista e se
o tivesse encontrado, talvez não ousaria saudá-lo, nem
aproximar-me dele, pois certamente não me reconheceria.
Como eu me enganava ! Um dia carregava eu uma gar­
rafa de vinho numa das mãos e um prato de comida na
outra, quando o encontrei em Chieri à porta da casa
Bertinetti onde se hospedara; estava rodeado de sacer­
dotes que tinham vindo saudá-lo. Logo que me viu, veio
ao meu encontro : - Oh! Blanchard, como vai?
- Bem, bem, senhor cavalheiro - respondi.
- Eh ! �orque me chama cavalheiro? Porque não
me trata como antes? Eu sou o pobre D. Bosco sem
títulos e nada mais.
- Desculpe-me! Eu pensei que . . . - e aturdido
procurava afastar-me por estar mal vestido e com o
j_antar nas mãos.
Não ousava tratar familiarmente a D.
Bosco que me parecia personagem tão importante.
- Você não quer bem aos padres?
- Oh ! Sim que lhes quero bem, mas com estas rou-
pas não tenho coragem de ficar aqui.
Então D. Bosco acrescentou : - Meu caro, recordo­
me de que quando eu era estudante, muitas vêzes me
saciaste a fome e assim foste nos planos da Providência

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COM O PRÓXIMO 43

um dos primeiros benfeitores do pobre D. Bosco. E depois


de ter contado a todos o que eu fizera, acrescentou: -
Faço questão de que você saiba como sempre recordo os
benefícios que recebo. - E apertando-me a mão, disse:
tódas as v�zes que fores a Turim, vem jantar comigo".
Daí a dez anos, em 1886, Blanchard veio finalmente
a Turim e ao Oratório por ter sabido que D. Bosco não
passava bem. Quando ia entrando, o porteiro o deteve e
perguntou-lhe o que desejava: - Vêr D. Bosco.
- Hoje não se pode. - Oh ! li:le está ou não em
casa? - Está, mas um tanto adoentado. - Não tem im­
portância! li:le me há de receber pois me disse mil vêzes
que viesse vê-lo. - Pode ser, mas hoje não é possível; a
ordem é para todos. - Sim! Para todos com exceção
de mim pois sou amigo de infância. Oh! Não me dê
êsse desgosto. Se êle não vai bem de saúde, é mais um
motivo para que eu o veja.
A uma insistência tão ingênua, o porteiro não soube
resistir. Telefonou para o quarto de D. Bosco e avisou
que um forasteiro desejava estar com o enfermo. A res­
posta foi que podia entrar. Ao chegar na ante-sala nova
dificuldade esperava o bom velhinho; o secretário de D.
Bosco queria encaminhá-lo a D. Rua mas eis que a porta
se abre a D. Bosco aparece arrastando-se para tirá-lo do
embaraço pois reconhecera a voz do amigo. Tomando-o
pela mão, fê-lo entrar e sentar-se ao seu lado indagando
sôbre a saúde e a família. Disse-lhe depois com o maior
1econhecimento:
- Já faz tantos anos que nos conhecemos. Estou
velho e adoentado mas não esqueço o que fizeste por mim
anos atrás. Rezarei por ti e peço não esqueceres o teu
pobre D. Bosco.
Depois de meia hora, vendo-o cansado, Blanchard se
retirou; mas D. Bosco quis que o acompanhassem ao re­
feitório para jantar e não podendo naquele dia descer
mandou que Blanchard ocupasse o seu lugar no meio dos

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44 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Superiores. Durante a refeição o velhinho contou tuc},o


que lhe sucedera para poder chegar até D. Bosco e a
gratidão que êste lhe demonstrára.
Oh! . A gratidão era viva e profunda no coração de
D. Bosco para com todos os seus benfeitores ! Escreveu­
lhes em 1884 uma carta comoventíssima enviada a todos
após sua morte.
CAPíTULO IV

Com Deus

Uma declaração do Cardeal Alimonda - União


habitual com Deus - Sempre o pensamento da fé -
Como rezava - D urante a Santa Missa - Importância
que dava ao S. Sacrifício - Apóstolo da com unh ão
/requente e cotidiana - Devoção para com SS. Sa­
cramento - Pelo esplendor do c ulto divino - Quanto
amava a Mãe de Deus - Fundamentava a prática das
virtudes teologais na devoção a Jesus Sacramentado e
à Virgem SS. - Amor e filial devoç ão para com o
Papa - Heróica espúança - Frutos do seu amor para
com Deus.

Maravilhei-me também eu não poucas vêzes, escreve


o Cardeal Alimonda, ao consider�r o caráter moral de
D. Bosco, sempre tranquilo, sempre igual, quer nas ale­
grias, quer nas penas, sempre imperturbável. Mas se é
natural que eu ficasse atônito ao contemplar a perfeição
a que êle tinha chegado, não me admirei mais disso
quando percebi a fonte onde ia beber tanta perfeição:
atirava-se :p.os braços de Deus.
Sua união com Deus era habitual mesmo em meio
às mais díspares ocupações materiais. Em casa e fora,
nas viajens a pé ou de carro, nos bondes e nos trens, fa­
lando com os seus íntimos ou com estranhos, estava sem­
pre impregnado do amor de Deus e do desejo de aumen­
tar-lhe a glória. "Dir-se-ia, escreve o Pe. Albera, que a
vida de D. Bosco era uma oração contínua, wna união
com Deus jamais interrompida. Prova disso era a im­
perturbável igualdade de espírito que lhe reçumava do
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46 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

semblante sempre sorridente. Em qualquer momento que


.a êle recorriamos para ouvir-lhe conselhos, parecia inter­
romper suas conversas com Deus para nos atender e
parecia-nos que Deus lhe inspirava os conselhos e a ani­
mação que nos incutia".
De bôa mente falava de Deus, apregoava-lhe a bon­
dade para com os homens e a onipotência na creação,
comparando-a com a nossa fraqueza. Algumas noites ao
passar pelo corredor que o levava ao quarto de dormir,
fitava os céus profundos e exclamava: - Sinto-me tão
pequeno que sou obrigado a ir para o quarto não podendo
suportar tão grande magnificência. Nós mesmos o ouvi­
mos externar muitas vêzes êstes pensamentos ; nêsses
momentos a potência do seu amor para com Deus mani­
festava-se até na expressão do rosto e no tremor dos
lábios.
"Nas conferências e nas boas-noites, afirma o teólogo
Luiz Piscetta, eu o ouvia falar de Deus com tal acento que
bem deixava entrever partirem suas palavras de um co­
ração todo abrazado no amor de Deus. Referia sempre
os benefícios recebidos das pessoas caridosas atribuindo­
os à bondade de Deus. Ao receber uma esmola, dizia:
Como Deus é bom! - Ao falar das descobertas científicas
fazia notar que desde a origem do mundo os princípios e
as fôrças agora encontrados já existiam para nossa uti­
lidade. Como Deus é bom! Escondeu . tanto tesouros no
seio da terra para que o homem os descobrisse no tempo
oportuno".
Não deixava passar ocasião sem insinuar êstes pen­
samentos de fé mesmo nas pessoas com quem tratava
por poucos momentos. Em Marselha, colheu um dia na
casa de uma insigne benfeitora, uma flor chamada
"pensamento" e voltando-se para a dona da casa lhe
disse: "Dou-lhe um pensamento, o pensamento da eter­
nidade. Lembre-se que não deve perdê-lo de vista. Tudo
que fizermos e dissermos, devemos orientar para esta fi­
nalidade. Tudo passa neste mundo, só a eternidade não

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COM DEUS 47

passa nunca. Procuremos que a nossa eternidade seja


feliz e cheia de consolações".
Era êste o manancial do zelo com que procurou pro­
pagar a fé entre os meninos, os adultos e os infieis ; esta
era a origem do ardor com que combatia os herejes, a
,
fonte da sup. terna devoção para com o Santíssimo, com
a Virgem Maria, o Anjo da Guarda e os Santos ; eis o
motivo de sua alta veneração para com a Igreja e o
Sumo Pontificado, para com o Papa, os Bispos e todos os
Superiores Eclesiásticos e, acima de tudo os sacerdotes.
Quando rezava, não tinha nada de afetado. De
joelhos, imóvel, ereto, as mãos juntas sôbre o genufle­
xório ou de encontro ao peito, a cabeça ligeiramente
inclinada, o olhar fixo, o rosto sorridente, nada o distraia
quando assim rezava. Nada tinha de singular e quém lhe
estivesse perto não podia deixar de rezar também, vendo­
lhe refletidos no rosto os esplendores da fé e do amor
para com Deus. Os secretários viram-no sempre começar
os próprios trabalhos com a mais intensa elevação da
mente até Deus ; sempre que poude e as fôrças lhe per­
mitiram, recitou com os alunos as orações da noite ajoe­
lhando-se em terra sob os pórticos.O Pe. Ascanio Savio
estava persuadido de que D. Bosco passava muitas horas
da noite e às vêzes noites inteiras rezando e notou que
quando rezava as orações em comum, pronunciava com
um gosto especialíssimo as palavras : "Padre nosso que
estais nos céus" e que a sua voz se distinguia entre tôdas
por uma especie de vibração harmoniosa, por uma tona­
lidade indefinível que comovia quem o escutava e dava
a perceber que a oração jorrava de um coração infla­
mado pela caridade e de uma alma que possuía o grande
dom da sabedoria. Mesmo as curtas orações que se costu­
mam fazer antes e depois das refeições, eram recitadas
por êle com grande recolhimento. Surpreendiam-no re­
zando sempre que ficava sózinho para descansar. "Algu­
mas vêzes - confessava D. Bosco - não posso fazer
regularmente a leitura espiritual e então, antes de me

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48 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

deitar, com os joelhos no chão, releio ou recordo devagar


a,lguns versículos da Imitaçã,o de Cristo.
Profunda edificação causava aos fiéis quando cele­
brava o S. Sacrifício.composto, recolhido, devoto, exato,
pronunciava durante a Santa Missa, com suma clareza,
·
aquelas oraçõe� e partes litúrgicas que devem ser profe­
ridas em voz alta, para que fossem compreendidas por
todos que assistiam à Missa. Não gastava nem mais
de meia hora nem menos de vinte minutos segundo as
normas de Bento XIV. Não deixava de celebrar a não
ser por necessidade gravíssima. Devendo iniciar uma
viajem muito cedo, celebrava a Missa arites de sair, abre­
viando assim o repouso ou a rezava quando chegava no
destino, se bem que fosse a hora muito adiantada. Quando
celebrava, derramava por vêzes abundantes lágrimas e
outras vêzes era interrompido por extases ou fervores
extraordinários. Aconteceu também ficar em extase após
a Elevação parecendo contemplar a Jesus visivelmente.
Quando consagrava, frequentemente o seu rosto mudava
de côr e transfigurava-se parecendo um santo. No en­
tanto, sem sombra de afetação, sempre calmo e natural
nos menores movimentos, nada transparecia nele de
extraordinário, principalmente nas igrejas publicas.
"Não era de admirar, diz o Pe. Albera, se os fiéis se
aglomeravam em redor do altar em que D. Bosco cele­
hrava, só para contemplá-lo; muita vez, mesmo sem
saber quem era aquele sacerdote, os que o viam celebrar
retiravam-se dizendo: - :l!:sse padre deve ser um Santo ! "
Tinha uma grande fé n o S . Sacrifício. Deu como
regra aos salesianos e como conselho aos outros a assis­
tência diária da S. Missa repetindo as palavras de S.
Agostinho : é impossível que morra mal, quem assiste
devota e frequentemente à S. Missa. Recomendava aos
que mandassem celebrar Missas, assistissem a elas e delas
participassem mediante a Santa Comunhão. Dizia também
que Nosso Senhor ouve de modo especial as orações bem
feitas no tempo de elevação da sagrada Hóstia.

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COM D EUS 49

Apóstolo da comunhão frequente e cotidiana, costu­


mava recomendar a todos que se comservassem em tal
estado de consciência que pudessem comungar, com li­
cença do confessor, todos os dias; nunca deixava de dar
est.a licença a quem estava com boas disposições.
Quando falava sôbre a comunhão sacrílega, usava um
tom que gelava o sangue dos que o ouviam incutindo-lhes
horror de tão monstruoso pecado. Censuraram-no por
facilitar a S. Comunhão aos seus alunos ; nada o fazia
mudar de modo de agir e com poucas palavras fechava
a bôca dos seus adversários.
Quando um lhe dizia: - Se o próprio S. Luiz não
comungava senão uma vez por semana, quem poderá ter
disposições que lhe permitam a comunhão diaria? �
Quando se encontrar, respondia D. Bosco, um indivíduo
perfeito e fervoroso como S. Luiz, a êste poderá lhe
bastar a comunhão sem anal pois levaria três dias para
se preparar e três outros para agradecer.
A outro que lhe mostrava a opinião de S. Fran­
cisco de Sales que não louva nem censura a comunhão
diária, respondia:- E o senhor porque a censura então?

Afirmava que os meninos devem ser aceitos ao Ban­


quete Divino logo que chegam ao uso da razão.
Transbordava de amor para com o S. S. Sacramento ;
saudava tôdas as igrejas que encontrava no seu caminho,
por numerosas que fossem. Recomendava aos sacerdotes
que rezassem o breviário deante do S. S. Sacramento e
repetia aos meninos: - Quereis que N. Senhor vos dê
muitas graças? Visitai-o muito. Quereis que vos dê pou­
cas? Visitai-o raramente. Quereis que o demônio vos
assalte muitas vêzes? Visitai poucas vêzes a Jesus.
Quereis que fuja de vós? Visitai Jesus com frequência.
Quereis vencer o demônio ? Sêde assíduos nas visitas a
Jesus. Quereis ser derrotados ? Deixai de fazer visitas
a Jesus. Meus caros, a visita ao S. S. Sacramento é um
meio essencial para vencer o demônio. Ide com frequên­
cia visitar a Jesus e o demônio nada poderá contra vós.

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50 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Atesta o Pe. Albera te-lo ouvido repetir muitas vêzes


que é impossível que um menino que espontaneamente
passa alguns minutos deante do S. S. Sacramento, tenha
depois conduta censurável.
O esplendor do culto divino era um suspiro da sua
alma. Tão pobre' que era, no entanto erguia e planejava
igrejas de arrebatadora magnificência e exigia a máxima
limpeza em tôdas as partes das suas igrejas, também na
sacristia.
Afligia-o o pensamento de que Jesus fosse pouco hon­
rado em muitas partes da terra e convidava pessoas
caridosas e devotas a provêr com paramentos e vasos sa­
grados as igrejas pobres e as capelas das missões distan­
tes concorrendo para sua construção e conservação.
Era sumamente cuidadoso da atitude devota dos seus
alunos. Insistia que fizessem com exatidão o sinal da
cruz e a genuflexão.
Não podia suportar que faltassem
com a reverência devida ao lugar sagrado e aos Santos
Mistérios e recomendava a todos que refletissem bem
qual é o Hospede dos Santos Tabernáculos. Quantas
vêzes chorava e fazia chorar ao lembrar o excesso do
amor de Jesus para com os homens. Se assim amava a
Jesus, não podia deixar de amar a N. Senhora. Quem
poderia medir-lhe o amor à Virgem? Parecia não viver
senão para ela: recomendava a todos que fossem devotos
da Mãe Celestial; fazia-o nas pregações, nas confissões,
nas conversas familiares e sempre com uma ternura que
lhe transparecia no rosto. Nutria um afeto especial aos
santuários que lhe eram consagrados e tinha sempre me­
dalhas e santinhos da Virgem que distribuia em grande
quantidade aos adultos e aos meninos recomendando­
-lhes que as conservassem devotamente ao peito e invo­
cassem todos os dias a proteção de Nossa Senhora.

Não deixava passar uma festa de N. Senhora sem


anunciá-lae nas novenas das festas principais assim
como durante todo o mês de maio, tôdas as tardes falava

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COM DEUS 51

aos alunos d e uma virtude o u d e u m titulo d e Maria o u


lhes narrava u m favor obtido por sua intercessão ou um a
flôr para ser praticada e m sua honra.
. Com santo ttansporte cantava e fazia cantar seus
louvores . . Quando entoava a lôa: Somos filhos de
Maria, D. Bosco se transfigurava; como se lhe não bas­
tasse a voz, levantava as mãos em sinal de alegria e
com santa simplicidade marcava o compasso. Monsenhor
Anfossi comenta: "Quantas loas cantei em sua compa­
nhia ! O entusiasmo para com a Virgem era tão grande
que uma tarde, voltando do Oratório do Anjo da Guarda
no bairro de Vanchiglia, rodeado por um grupo numero­
sissimo de meninos, entoou o canto: "Mil vêzes bendita,
dulcíssima Virgem" e todos nós o cantamos em voz alta
atravessando a praça Manuel Felisberto".

Contínuas eram as graças estrepitosas que por inter­


cessão de Maria obtinha para si, para seus alunos e
para as pessoas que por meio dele se recomendavam à
Virgem ; D. Bosco atribuindo tudo à bondade da Mãe de
Deus, vivia repetindo : Como é bôa Nossa Senhora !
O Pe. Albera afirma: "Nunca se me apagará da
mente a impressão que D. Bosco me causava quando
dava a bênção de Maria Auxiliadora aos doentes. Ao
pronunciar a Ave Maria e as palavras da bênção dir-se-ia
transfigurado; os olhos se lhe enchiam de lágrimas e a
voz tremia-lhe nos lábios. Para mim tudo era sinal de
que "virtus de illo exibat"; porisso não me admiravam
os efeitos milagrosos que seguiam essa bênção pois ela
consolava os aflitos e restituía a saúde aos doentes.

E' notório como atribuía à Bemaventurada Virgem o


êxito de suas emprêsas e nas pregações e conferências
repetia que tudo que o pobre D. Bosco pudera fazer e
continuava a fazer, tudo se devia atribuir à bondade de
Maria; e a Virgem, invocada por êle com o suavíssimo
nome de Mãe, correspondia ao seu carinho e ao dos seus
filhos assumindo, digamos assim, a direção material e

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52 O :pERFIL MORAL DE DOM BOSCO

moral do Oratório. Ela provia às necessidades tôdas e


as novenas que se celebravam em sua honra eram fatais
aos alunos obstinados no mal. D. Bosco ao anunciar
alguma novena, dizia : "Façamo-la bem pois Nossa Se­
nhora quer limpar esta sua casa e varrerá para longe
quem fôr indigno dela". Quase sempre descobria-se du­
rante a novena um menino máu que na maioria das vêzes
saia espontâneamente do Oratório.
Na devoção a Jesus Sacramentado e a Maria S. S., D.
Bosco basea va o exercício das virtudes teologais e bem
desejava que todos os cristãos dela fizessem o fundamento
da piedade e da oração. "Ficai atentos ao que vos direi;
àizia aos seus alunos no último dia de 1863 - imaginai
vêr um grande globo suspenso por dois polos a duas co­
lunas. Sôbre uma das colunas lê-se: "Regina mundi" e
sôbre a outra: "Panis vitae". Sôbre êste globo caminham
muitos homens em tôdas as direções mas os que estão
perto das colunas recebem uma luz vivíssima ao passo
que os que estão longe delas, isto é, no meio do globo, se
acham em densas trévas. O globo representa o mundo.
As duas colunas são Maria S. S. e a Divina Eucaristia.
São na verdade os dois sustentáculos do mundo pois se
não fossem Maria Santíssima e o Santíssimo Sacramen­
to, nesta hora o mundo já estaria em ruinas. Os homens
que desejarem caminhar na luz, ou seja, no caminho do
céu, é preciso que se aproximem destas duas fontes de
luz . . . os que delas se afastam, caminham nas trevas e
na sombra". Esta foi a pregação que repetia a vida tôda
tornando-a mais eficaz pela narração de sonhos ou visões
celestes.
Juntamente com a devoção a Jesus Sacramentado e
a Maria Santíssima, nutria um amor ardentíssimo para
com a Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo e
para com o Papa chefe da cristandade. Nada mais sus­
pirava do que a exaltação da Igreja e para isso trabalhou
a vida inteira pregando e escrevendo; em conferências

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COM DEUS 53

públicas e particulares procurou orientar para a Santa


Igrej a a estima e o amor de todos.
Monsenhor Manacorda dizia : "Nos pensamentos e nas
pal.ftvras, nos afetos e na ação, D. Bosco era o tipo do
homem hlJ,milde. Tudo nele era humildade mas esta
se revestia de amor j ubiloso apenas lhe soava aos ouvi­
dos a santa palavra : Romano Pontífice ! . . . abrazava-se,
entusiasmava-se, arrebatava-se. Ninguem j amais escutou­
-lhe uma palavra que não estivesse impregnada de obe­
diência perfeita e de docilidade singela e infantil . . . "
Sua vida está repleta de demonstrações de quão
ilimitada devoção e sumo afeto nutria para com o Vi­
gário de Cristo ; todavia não estará fora de lugar pôr
em evidência algum episódio particular.
Em 1853 estabelecia que os clérigos estudantes de
filosofia tivessem às quintas feitas uma aula sôbre o Novo
Testamento. Ao iniciar a aula inaugural, os alunos esta­
vam com o livro aberto na 1 .a página, isto é, no início do
Evangelho de S. Ma teus: "Liber generationis Iesu Christi,
filii David". Parecia lógico que a aula se iniciasse nesse
ponto, mas D. Bosco depois de ter rezado o "Actiones"
mandou abrir o livro no capítulo dezesseis, versículo
dezoito : "Et ego dico tibi, quia tu es Petrus, et super
bane petram aedificabo Ecclesiam meam et portae inferi
non praevalebunt adversus eam. Et tibi dabo claves regni
crelorum et quodcumque ligaveris super terram, erit le­
gatum et in crelis ; et quodcumque solveris super terram,
erit solutum et in crelis". - E descrevendo com poucas
palavras a autoridade do Sumo Pontífice, marcou para
primeira lição o estudo dos dez versículos.
"Muitíssimas vêzes, conta o Pe. Albera, principalmen­
te no ano 1859 a 1860, D. Bosco punha centenas de alu­
nos em fila de um e colocando-se à frente dizia : Vinde
atrás de mim e cada um ponha o rpé nas pegadas do que
lhe está adeante. Batia palmas cadênciadamente e assim
o faziam todos ; virava-se para a direita, para a esquerda,
às vêzes seguia reto, ora uma linha oblíqua, as vêzes um

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54 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

angulo agudo, outras um círculo. Num determinado


ponto gritava : Alto ! Os meninos que o tinham seguido
nas voltas complicadas ficavam parados dispostos em
grupos . exquisitos inexplicáveis para um observador
estranho. Mas outros alunos que conheciam a intenção
de D. Bosco, corriam para a varanda e de lá podiam lêr
com clareza as palavras : Viva Pio IX. Não sendo pruden­
te gritar tal viva naquele triste ano, D. Bosco o escrevia
com as cabeças dos seus filhos.
Convidado para um j antar na casa de um bispo muito
piedoso, presentes os cônegos da catedral eis que surgem
elogios às doutrinas de Antônio Rosmini. Os comensais
aprovam com monossílabos ou acenos de cabeça o que o
bispo vai dizendo mas um salesiano presente rebate as
palavras do pastor com delicadeza tal que o bispo deve
ceder terreno. Para truncar a disputa, é dada a palavra
8. D. Bosco que se conservara calado.

- Ora, Excelência sem querer penetrar nas razões


intrínsecas de uma ou de outra parte, se V. Excia. me
permitir far-lhe-ei uma só observação : Um bispo qual­
quer ficaria contente ao saber que os clérigos do seu se­
minário têm uma opinião diversa da que êle sustenta?
Ora, parece-me que todo o clero do mundo possa ser
comparado a um vasto seminário com relação ao Papa.
E o Sumo Pontífice ficaria satisfeito se o seu clero ou
uma parte dele apadrinhasse princípios que S. Santidade
não admite? Além disso parece-me que ao Papa não só
como Papa mas até como doutor particular se dava muito
respeito e porisso seja conveniente uniformizar-nos ao
seu modo de pensar. Assim fazem os bons filhos para
com seu pai.
Para D. Bosco, a história da Igreja devia ser essen­
cialmente a história dos Papas. "Não é o Papa o Chefe,
o Príncipe, o Supremo Pastor da Igrej a? Na história
de um reino, de uma nação, de um império, a primeira
figUra que se faz ressaltar continuamente não é talvez a
do rei? Não será pois necessário que se saiba dever-se

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COM D EUS 55

tudo aos Papas, honra, glória e obediência como ao cen­


tro da unidade, sem o qual a Igrej a não é mais Igreja?
E' pois um grande êrro escrever sôbre a Igrej a e deixar
pa�sar grandes períodos sem uma referência ao Papa ! "
A fé tem como inseparável companheira a esperança
e D. Bosco, confiando nos meritos de Jesus Cristo mas sem
presunção, não tinha dúvidas sôbre a própria salvação
eterna. "Nos trinta e cinco anos que vivi ao seu lado,
afirma D. Cagliero, não divisei nele j amais um ato de
desconfiança, não escutei nunca uma expressão de temor
ou de dúvida, não o vi j amais agitado por alguma in­
quietação a respeito da bondade e misericórdia de Deus
para com ele. Nunca o vi perturbado por angústias de
consciência. Falava do céu com tanta vivacidade, gôsto e
"
delícia do coração, a ponto de encantar quem o escutava
e era coisa certa que para Dom Bosco a esperança dos

bens celestes afastava dele o temor de morrer. Falava


do céu como um filho fala da casa do próprio pai ; o
desejo de entrar um dia na posse de Deus o entusiasmava
mais ainda do que a recompensa prometida e animava­
se com as palavras de S. Paulo : Somos filhos de Deus,
e se filhos, também herdeiros : herdeiros de Deus e co­

herdeiros de Cristo."
O teólogo Sávio Ascânio, dizia-nos : "Se alguém tives­
se perguntado a Dom Bosco de chofre :
- Dom Bosco, para onde vai? - êle responderia :
para o céu.
Procurava insinuar nos outros e aumentar essa con­
fiança e repetia sempre : Quanto prazer teremos todos
juntos lá no céu ! Sêde bons e não temais ! Então? Achais
que Deus tenha creado o céu para deixá-lo vazio? Lem­
brai-vos porém que o céu custa sacrifícios. Sim ! Sim !
Salvar-nos-emos mediante a graça divina e o seu auxilio ;
ambos não faltam a quem tem boa vontade. S. Paulo diz :
"Deus quer salvar a todos os homens". Babeis entender o
latim : "Deus omnes homines vult salvos fieri? Vult" : Deus

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56 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

quer. Deus não mente e não brinca ! "Omnes" : Todos !


Quer dizer que da parte de Deus nada faltará ; que nada
falte de nossa parte. - Ai de quem faltar ao encontro
aprazaqo. Isto acontecerá a quem não fôr fiel aos deve­
res cristãos".
O Pe. Rua atestava : "Quando D. Bosco ouvia
alguem se lamentar de alguma tribulação fadiga ou
trabalho, logo o encorajava : Lembra-te de que sofres
por um bom patrão que é Deus. Trabalha e sofre
por amor de Jesus que tanto sofreu e trabalhou por ti.
Um pedaço de paraíso conserta tudo. - Se lhe anuncia­
vam, uma dificuldade a ser superada, ou uma hostilidade
que lhe houvessem feito, dizia : - No céu não teremos
nada disso. - Se lhe falavam de (érias dizia : - As nossas
ferias serão no céu. - Voltando cansado da cidade onde
fora pedir auxilios aos benfeitores, o secretário o convi­
dava a descansar um pouco antes de ir para a mesa de
trabalho ou para o confessionário e D. Bosco respondia :
- Descansarei no Paraíso. - Após uma longa disputa
êle concluía : - No Paraíso não haverá discussões. Todos
pensaremos da mesma forma. - Assegurava-nos ter pe­
dido e conseguido que lhe reservasse o Senhor várias
centenas de milhares de lugares para os seus filhos no
céu e assim com muita frequência elevava o pensamento
dos seus filhos para o céu dando-lhes a maior certeza
de que chegariam até l á".
Deus, só Deus e sempre Deus era o seu pensamento,
a sua esperança e a sua vida. "Parecia, afirma Mons.
Anfossi, que o seu espírito estivesse sempre mergulhado
na contemplação de Deus. Várias vêzes aconteceu-me
encontrá-lo quando descia do quarto para ir à igrej a de
manhã; respondia ao cumprimento com um sorriso , dei­
xava que lhe beij assemos a mão, sem proferir uma. pa­
lavra, tal era o seu recolhimento na preparação para a
Missa.

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COM DEUS 57

Os frutos admiráveis que nêle produziam sua cons­


tante união com Deus eram : o zelo incansável em pro­
mover-lhe o conhecimento, o culto e a glória ; o ódio im­
plaçável que votava ao pecado a ponto que de boa mente
se teria saçrificado cem vêzes por dia, se tal fosse preciso
para impedir um só pecado; a caridade heróica que usou
cotidianamente não só para com seus filhos mas para
com todos os homens. Trataremos disso nos capítulos
seguintes.

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CAPíTULO V

"Da mihi animas! . . . "

D uas sentenças - "A salvação da alma ! " é a


palavra que dirige a todos - Uma correção - Um
discurso memorável - Deixe o demonio de atraiçoar
almas � �u cessarei de trabalhar por elas - Uma
recomendação - Sempre pronto para dizer uma boa
palavra - Seu interêsse pelas almas dos sacerdotes -
Seu zelo pelas vocações - Como proveu de sacerdotes
a arquidiocese turinêsa e as outras dioceses piemonteses.

Duas eram as sentenças que D. Bosco tinha no seu


quarto ; uma eram as palavras tantas vêzes repetidas por
S. Francisco de Sales : "Dai-me almas e tornai o resto
para vós" ; a outra eram as palavras de Jesus : "Uma só
coisa é necessária : salvar a alma".
A salvação da alma, eis a grande palavra que cos­
tumava dizer a todos : j ovens e velhos, pobres e ricos,
poderosos e até aos sacerdotes.
Quando recebia no Oratório um aluno novato, depois
de lhe ter cativado a confiança com .perguntas j oviais,
assumia um aspeto meio sério e meio risonho, próprio
dele e abaixando a voz como quem vai contar um segrêdo,
dizia : - Bem, meu caro, agora falemos do que mais
nos importa. Quero que sejamos amigos, sabes? Queres
ser meu amigo? Quero ajudar-te a salvar tua alma.
F. como vai tua alma? Eras bom em casa? Aqui serás
melhor, não é ? . . . Compreendes o que quero de ti?
Quero que vamos para o céu j untos !
O menino sorria, aprovava com a cabeça e respondia
com algum monossílabo ou abaixava os olhos e corava
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60 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

de acôrdo com as perguntas de D. Bosco que não eram


insistentes nem esperavam resposta. O santo sacerdote,
no entanto, com um olhar penetrante, lia-lhe no sem­
blante o caráter, a inteligência e o coração.
E assim os tratava não só nas saudações da primeira
acolhida, mâs durante todo o tempo em que os recém­
chegados não se tivessem capacitado do ambiente para
o qual Deus os mandara. Encontrando a êste ou aquêle
no pátio, depois de uma inocente brincadeira, D. Bosco
dizia : - Quero que sejas meu grande amigo ; e sabes
o que significa ser amigo de D. Bosco?
- Quer dizer que devo ser obediente.
- E' muito vaga essa resposta. Ser meu amigo quer
dizer que me deves ajudar ·. . .
- No que?
- Numa só coisa : salvar tua alma ! O resto não
importa.
Assim como esta era a primeira palavra que D. Bosco
dizia a um menino quando entrava no Oratório, era
também a que lhe repetia no momento da despedida : "e
foram quase 15 . 000, diz D. Cagliero, que D. Bosco rece­
beu, manteve e educou no Oratório e a um número muito
maior êle instruiu e deu catecismo nos Oratórios Festivos
desta cidade e todos gozaram do benefício das suas bên­
ção paternas e sacerdotais. "Pois bem, encontrando-os
mesmo depois de muitos anos, com tôda a franqueza lhes
repetia as mesmas palavras :
- Tu que eras tão piedoso, ainda o és hoj e? . . . Fi­
zeste a Páscoa? . . . Já faz tempo que não te confessas?
Costumava dizer :
Duas coisas eu receio : o pecado que dá a morte à
alma; e a morte corporal que surpreende quem não está
na graça de Deus.
Impelido por êsse temor, várias vêzes despia-se de sua
habitual doçura para se revestir do mais ardente zêlo.

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DA Mffil ANIMAS ! 61

"Devemos na verdade ser gratos para com a miseri­


córdia divina - conversava numa roda íntima em 1861.
- Vocês conhecem o aluno Delma? . . . Faz pouco tempo
chegou ao Oratório. Eu estava prevenido a respeito de
sua vida passada. Servira no quartel e se celebrizara por
suas aventuras romanescas. Chegando ao Oratório, girava
de wn ladÔ para outro preparando alguma das suas fa­
çanhas, mas por toda a parte sentia-se vigiado. Finalmen­
te veio ao meu quarto.
- Como você se chama? - Delma. - Como se cha­
ma? - Delma. - Qual o seu nome? - Delma. - E eu
quem sou? - Dom Bosco. - Quem sou eu? - Dom Bosco.
- Sabe você como me chamo? - Dom Bosco.
- Sabe porque faço você repetir três vêzes estas pa-
lavras? Porque são três as palavras que Nosso Senhor te
diz : Deixa o pecado; arruma tua consciência e entrega-te
a Deus enquanto é tempo. Adeus.
Delma saiu todo confuso, foi dormir e no dia se­
guinte só pensou nas palavras que eu lhe dissera. A noi­
te vejo-o voltar para o me u quarto, completamente fora
de si ; pensei que tivesse discutido com alguém, mas êle
chorando me disse : Dom Bosco, estou nas suas mãos;
ajude-me a salvar minha alma."
o único desejo de Dom Bosco era a salvação das al­
mas e por isso fazia uma guerra sem quartel ao pecado,
sem que o respeito humano lho impedisse. Algumas pou­
cas vêzes, tendo exgotado todos os meios de correção, se
certos alunos pareciam incorrigíveis, soube Dom Bosco usar
de linguagem que ficou célebre como a do dia 16 de se­
tembro de 1867.
Com tôda a calma subiu ao pulpitozinho, após, as
orações da noite, deante da imponente assembléia de pa­
dres, clérigos, estudantes, aprendizes e familiares. Come­
çou a narrar tudo que o Divino Salvador tinha feito e
sofrido pela salvação das almas e as ameaças contra os
que escandalizavam as creanças ; falou do que ele, Dom

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62 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Bosco, tinha feito e fazia para cumprir a missão que a


Divina Misericórdia lhe confiara e recordava os cansa­
ços e sofrimentos, as humilhações, vigílias e privações que
suportara pela salvação eterna dos seus alunos; passou
depois. a dizer como no Oratório havia também lobos, la­
drões, assassinos, demônios que alí vinham arrancar-lhe
as almas que lhe tinham sido confiadas; e acrescentava:

- Que fiz eu de ofensivo ou prejudicial a esses tais


para que me tratem desse modo? Não os considerei sem­
pre como filhos? Não lhes dei tudo que me era possível?
Não os admiti às confidências de minha amizade? Lá
fora que poderiam êles receber de instrução, alimento,
educação? Que esperanças podiam nutrir de um futuro
risonho, caso não tivéssem sido recebidos no Oratório?
E depois de ter resumido os benefícios que tinham
recebido, prosseguiu:

- Esses tais pensam que não sejam conhecidos mas


eu sei quem são e podia publicar-lhes os nomes ! Talvez
não convenha que eu lhes diga os nomes; seria por de­
mais vergonhoso para êles, pois apontá-los-ia a dedo e
seriam a desonra dos seus companheiros. Mas se não
digo os seus nomes, poderiam pensar que Dom Bosco não
esteja perfeitamente informado de tudo, ou não os co­
nheça e deles tenha uma vaga desconfiança e se ponha a
adivinhar. Oh ! Isto não ! Se eu quisesse poderia dizer: -
ÉS tu, ó A . . . (e disse o nome e sobrenome) , um lobo que
anda no meio dos companheiros para afastá-los dos su­
periores ridicularizando-lhes os avisos. És tu, ó B . . . um
ladrão que com tuas conversas empanas a inocência de
tantas almas. . . ÉS tu ó C . . . um assassino que com cer­
tos bilhetes, com certos livros e certas ciladas arrancas
de sob o manto da Virgem, tantos filhos seus. És tu, ó
D . . . um demônio que estrag� teus companheiros e com
tuas zombarias os afastas dos Santos Sacramentos . . . "
E assim por deante. Foram seis os nomeados. A sua
voz era calma, martelando as sílabas. Todas as vêze s que

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DA MIHI ANIMAS ! 63

pronunciava um nome, ouvia-se um grito sufocado, ou


um soluço ou um ai ! do culpado que ressoava no silêncio
de chumbo dos ouvintes apavorados. Parecia o j uizo uni­
versal !
Quan �o acabou de falar, todos foram para o dormi­
tório quase sem respirar. Ficaram só aqueles seis que
soluçavam encostando o rosto à parede ou às colunas.
Dom Bosco ficou de pé no meio do pórtico. Os padres e
clérigos num grupo a certa distância, viram então uma
cena comovente. Aqueles seis infelizes o rodearam e cho­
rando beij avam-lhe as mãos ou se agarravam à batina.
Dom Bosco os fitava enquanto uma lágrima lhe sulcava a
face. Ninguém falava. Afinal, tendo dito a cada um uma
palavra de conforto, Dom Bosco subiu para o quarto. No
dia seguinte alguns partiram, outros foram transferidos
para a secção dos aprendizes e dentre êles, dois foram
readmitidos aos estudos depois de um tempo de prova.
Os que ficaram no Oratório mudaram de procedimento,
emulando os melhores e tornando-se ótimos cristãos.
Não há nada para admirar, repetiremos com o Padre
Bonetti, pois Dom Bosco chegou a dizer : Se eu empre­
gasse tanta solicitude para salvar minha alma, quanto
emprego para salvar o próximo, estaria seguro de ir para
o céu !
Outra vez, mostrando o desejo que tinha de ganhar
o coração dos seus alunos, acrescentou : Eu daria tudo
para ganhar o coração dos meus meninos e poder assim
fazer deles um presente para Nosso Senhor !
Diziam-lhe vários : Dom Bosco, não receba tantos me­
ninos; as bolsas dos seus benfeitores j á estão exgota­
das . . . Mas Dom Bosco respondia sorrindo : Façam com
que o demônio deixe de atraiçoar tantos meninos e atrair
para o inferno tantas almas, e eu deixarei de me sacri­
ficar por eles. Mas enquanto o demônio continuar a en­
ganar as almas com meios sempre novos, não deixarei
de empregar todos os recursos para as salvar !

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64 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

E não só aos alunos, mas também aos Salesianos


repetia sempre a grande palavra. No dia 6 de Janeiro de
1884 respondendo com uma circular às cartas de boas­
festas que recebera, dizia :
" . . . É stou muito contente convosco, com a generosi­
dade com que ãceitais qualquer trabalho, sujeitando-vos
a grandes fadigas para promover a glória de Deus nas
nossas casas e no meio dos meninos que a Providência
nos vai mandando, para que os conduzamos pela vereda
da virtude, da honra e do Céu. De quantos modos e c om
que belas expressões me agradeceis o que tenho feito por
vós; muitos se ofereceram para trabalhar comigo cheios
de coragem e condividir meus cansaços, desprezando a
honra e a glória na terra para conseguir o grande prêmio
que Deus nos reservou no céu; dizeis mais que não desejais
nada além do que eu indicar para o bem de vossas
almas e que tudo que eu disser, há de ser religiosamente
escutado e praticado. Agradaram-me estas preciosas pala­
vras e como pai eu vos respondo simplesmente que vos
agradeço de todo o coração e que "far-me-eis a coisa mais
agradável possível, se me ajudardes a salvar vossas al­
mas". Bem sabeis, filhos diletos, que vos aceitei na con­
gregação e tenho empregado o máximo possível de mi­
nhas solicitudes para o vosso bem, par vos assegurar a
salvação eterna ; porisso, se me ajudardes neste grande
negócio, fazeis tudo que meu coração paterno espera de
vós."
Era de uma argucia admirável para fazer chegar ao
ouvido de qualquer pessoa uma boa palavrinha. Eis uns
exemplos:
- Em 1880 encontrando-se com uma Filha de Maria
Auxiliadora, que o saudara, perguntou-lhe com paterna
doçura : - Como vai? - A irmã respondeu : De saúde
bastante bem mas de alma, nem eu o sei. - A saúde,
disse Dom Bosco, não depende de nós mas está nas mãos
de Deus, ao passo que as coisas do espírito e a alma
dependem de nós, da nossa vontade.

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DA MIHI ANIMAS ! 65

Recebendo recados dava uma boa gorgeta aos porta­


dores dizendo-lhes afavelmente : "Isto é para você." -
O secretário estranhou tal prodigalidade e lhe fez obser­
var que não a compreendia :
· - Olha, disse Dom Bosco, aproveito a ocasião para
dar esmolds a esta pobre gente e dizer-lhe então uma pa­
lavrinha bôa, de que tem tanta necessidade.
Uma vez em Turim, na frente da igreja de São Do­
mingos, um pedreiro escorregou e teria caído, se Dom
Bosco não o sustivesse. O velho agradeceu-lhe : - Se não
fôra V. Revma. eu teria caído. - Pudesse eu suster-lhe a
alma e impedi-la de cair no inferno - eis a resposta de
Dom Bosco. Estas palavras fizeram tão funda impressão
no operário, que num repente se aterrorizou com o esta­
do da própria alma e, movido pela graça quis logo ir se
confessar com Dom Bosco.
Um ínterêsse todo especial nutria para com as almas
dos sacerdotes estando convencido como muitas vêzes o
repetiu, que um padre não vai sózinho, nem para o céu,
nem para o inferno. Eis porque, ao vêr que algum sa­
cerdote não respeitava o caráter sacerdotal, sentia uma
dor profunda que muita vez lhe arrancava lágrimas ; bem
desejára arrancá-lo da vista dos outros para que a nin­
guém escandalizasse com sua conduta menos edificante.
Vários destes sacerdotes lhe foram confiados por bispos
ou vigários capitulares e com a mais ardente caridade e
o mais profundo respeito se empenhou na reabilitação
dos mesmos com exortações, com longas conferências e
até com auxílios pecuniários. O seu zelo foi largamente
recompensado pois a quase todos reintegrou na honra
sacerdotal aos olhos de Deus e aos dos homens. Até
alguns que tinham caído em heresias fizeram edificante
retratação.
Ninguém pode descrever como se interessava pelas
almas sacerdotais. Num dia de verão caminhara muito
entre as montanhas que rodeavam uma cidadezinha onde
se achava; após duas horas de caminho, parou deante

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66 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

da casa do capelão. Fazia oito dias que era atormentado


por contínua e forte dor de dentes, o calor era sufocante
e D. Bosco estava molhado de suór. Parou para descan­
sar d!'lante daquela casa que parecia deserta. Depois de
algum tempo. vê um camponês que subia por uma ladeira
próxima; D. Bosco lhe pergunta como ia o capelão de
saúde.
- Está doente há muito tempo e de doença in-
curável.
- Já lhe administraram os Santos Sacramentos?
- Ainda não.
- Vem algum sacerdote visitá-lo de quando em vez?
- Nunca vi nenhum.
- E quem o assiste?
- O filho do padeiro ; há um mês que o capelão não
quer que entre lá outra pessoa.
D. Bosco ficou pensativo por algum tempo e voltan­
do-se para nós, disse : Esperem-me. Desceu as .escadas
após uma hora e tanto. Nada lhe perguntamos mas bem
se podia perceber que a caridade e o zelo tinham movido
seus passos.
E o que não fez para promover as vocações eclesiás­
ticas? Em 1885 escrevia a D. Luiz Lasagna que depois
foi bispo e pereceu num desastre ferroviário em Juiz
de Fora.
"Faz vários meses que eu desejo escrever-te mas a
minha velha e preguiçosa mão me fez adiar êste prazer.
Agora porém parece-me que o sol já está entrando no
seu ocaso e porisso acho bom deixar-te alguns pensa­
mentos escritos como o testamento de quem muito te
amou e ama. Ouviste a voz do Senhor e te fizeste Mis­
sionário ! Bem o adivinhaste. Maria será sempre tua
guia fiel. Não te faltarão deficuldades por parte do
mundo, mas não desanimes. Maria proteger-te-á. Que­
remos almas, só almas. Procura repetir isto aos nossos

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DA MIHI ANIMAS ! 67

irmãos. O' Senhor dai-nos muito embora cruzes, espi­


nhos e perseguições de tôda a espécie, mas concedei-nos
que salvemos a nossa alma e muitas outras ! " E depois
de várias recomendações : A coisa que mais recomendei
àqoeles a quem pude escrever por êstes dias, é que culti­
vem as vdcações, tanto dos Salesianos como das Filhas
de Maria Auxiliadora. Estuda, faze planos, não olhes
para despesas, contanto que obtenhas algum padre para
a Igreja e especialmente para as missões. Dar padres e
bons padres para a Igreja foi seu ideal de tôda a vida.
Eram infelizes as condições do clero no Piemonte. Ou
não havia seminários ou estavam desertos os poucos que
ai se encontravam. Em 1852, quando Mi,guel Rua rece­
beu a batina, eram dezessete os clérigos do Seminário de
Turim ; no seu primeiro ano de filosofia, apenas dois
frequentavam as aulas do Seminário e no segundo ano,
só tinha o clérigo Rua um único companheiro. Para
cúmulo dos males muitas outras dioceses se viram priva­
das dos seus pastores e outros Bispos não tinham ·meios
para manter e instruir gratuitamente certo número de
alunos.
D. Bosco, na sua admirável prudência tinha previsto
desde o princípio da revolução o vácuo que infalivelmente
far-se-ia no cléro secular, tanto mais que a lei da supres­
são dos conventos dava também um golpe mortal no cléro
religioso. Remediar à falta de vocações parecia uma em­
prêsa humanamente impossível. Mas D. Bosco sentia-se
chamado por Deus para essa grande missão de provêr
de clero as dioceses italianas. Dizia José Buzzetti : "Era
raro que D. Bosco voltasse de suas viajens apostólicas,
sem trazer consigo algum menino órfão ou algum futuro
ministro de Deus. Quantos meninos de valor não trouxe
êle de Cardé, Vigone, Revello, Sanfront, Paesana, Bagnolo,
Cavour, Fenestrelle e centenas de outras localidades.
Mamãe Margarida lhe disse de uma feita : Se você con­
tinúa a aceitar sempre novos alunos nada sobrará para
as suas· necessidades. E D. Bosco sempre tranquilo

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68 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

respondeu sorrindo : - "Sobrar-me-á sempre um lugar


no Cottolengo".
Não lhe bastando as suas excursões, recomendava
sem:pre aos amigos que lhe indicassem meninos de bopt
procedimento. Para êle cada vocação que surgia era
uma festa.
"Lembremo-nos, deixou escrito, que nós damos à
Igreja um grande tesouro quando lhe apresentamos uma
boa vocação; que esta vocação ou êste padre vá para
uma diocese, para as missões ou para uma casa religiosa,
isso pouco se nos dá; é sempre um grande tesouro com
que se enriquece a Igrej a de Jesus Cristo. Não se deixe
nunca de receber um menino que tenha bons sinais de
vocação apenas por falta de meios. Gastai tudo o que
tendes e, se fôr preciso, ide mendigar e se, após isso vos
achardes em estreituras não vos aflijais pois a S. S.
Virgem ajudar-vos-á até com milagres".
Assim é que a diocese de Turim e outras do Piemonte
devem ao trabalho e à caridade de D. Bosco o fato de
terem ainda !POdido conservar os sacerdotes mais necessá­
rios para o sagrado ministério, após o fechamento dos
seminários. Reabrindo-se, os seminários se encheram de
alunos de D. Bosco que apresentando-se aos seus Bispos,
lhes podiam dizer: Viemos dar nossa vida pela salvação
das almas ; é D. Bosco que nos manda.
Em 1865 dentre os 46 clerigos do Seminário Maior de
Turim, 38 tinham feito no Oratório os seus estudos gina­
siais. Em 1873 como verificou o Pe. José Bertello, sôbre
150 seminaristas, 120 tinham sido alunos de Valdocco.
Dez anos depois, em 1883, ouvimos D. Bosco falar: Estou
contente ! Mandei fazer uma diligente estatística e con­
cluiu-se que 2.000 sacerdotes já saíram de nossas casas
e foram trabalhar nas várias dioceses. Demos graças
a Deus e à sua Mãe Santíssima que nos deram os meios
para fazer tal bem.

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DA MIHI ANIMAS ! 69

Os seus cálculos não estavam completos. Outros 500


moços se inscreveram no clero antes de sua morte ; e
muitos outros cuja vocação êle protegera escolhiam o
estado eclesiástico após a morte de D. Bosco. Acrescen­
tem-se a êstes os que passaram das outras casas sale­
sianas para os seminários e os muitos que por seu con­
selho se fizeram religiosos. Nem se esqueça de que a D.
Bosco se deve o merecimento de ter por outros meios
Pode-se dizer que
mbustecido o exército do Catolicismo.
só depois do seu exemplo e por certo pelas suas insistên­
cias e colaboração se abriram e sustentaram os Semi­
nários Menores. E' a D. Bosco que não poucos reitores
de seminários não só da Itália mas até de outras nações e
principalmente da França e da Inglaterra, vindos a Turim
para consulta-lo, aprenderam o modo de cultivar as voca­
ções com a assistência paterna e amorosa, com a piedade
e a frequência à Mesa Eucarística.
Eis de que foi capaz a sêde de almas que ardia no
coração de D. Bosco.

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CAPíTULO VI

Predileção pela juventude

Nosso Senhor me mando u para cuidar da juventude


Amor e correspondên cia - O pas seio dos meninos
da Generala - A scendente sôbre os alunos do Oratório
- Espetáculo comovedor - A vida no Oratório -
Santas indústrias - A palavra ao ouvido - Com o s
mais levianos - Poder do olhar de D . Bosco - Entre
os alunos do Oratório Festivo - Com os filhos de
capitalistas - No s passeios de férias - O utros fato s
- Telepatia singular.

O Padre Ruffino escreveu que um dia Dom Bosco


proferiu estas palavras : Nosso Senhor me mandou para
cuidar da j uventude ; é preciso que eu me poupe nas ou­
tras coisas e me conserve para cuidar dos jovens.
As suas predileções foram na verdade para os joven­
zinhos. "Meus caros, escrevia em 1847 no prefácio do Jo­
vem Instruido, eu vos amo a todos cordialmente e basta
que sejais jovens para que eu vos ame muito e posso
vos afirmar que achareis outros livros escritos por pes­
soas muito mais virtuosas e instruidas do que eu, mas
é difícil que encontreis quem vos ame mais do que eu em
Jesus Cristo e mais do que eu deseje a vossa verdadeira
felicidade ! "
" O amor ardente e sincero que Dom Bosco nutria para
com os jovens, escreve o professor Francisco Maranza­
na, transluzia-lhe no olhar e nas palavras de modo tão
potente que todos o sentiam, ninguém o punha em dúvi­
da e era indizível a misteriosa alegria que todos sentiam
ao se achar deante dele ; o seu afeto mesclado com essa
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72 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

doce e suave autoridade, frutos do seu vivo sentimento


religioso e arraigada virtude, circundavam-lhe a cabeça
como de uma auréola celestial fazendo com que todas as
suas palavras fossem escutadas atentamente ; quando D.
Bosco falava, parecia-nos que era Deus mesmo quem fa­
lasse. E é por este forte ascendente que Dom Bosco exer­
cia sobre nós que poderemos explicar certos aconteci­
mentos inacreditáveis se tal ascendente não existira".
Pouco depois da Páscoa de 1855 tinha pregado o Re­
tiro aos jovens da "Generala", casa de correção fundada
em 1815 nos arredores de Turim. Com sua doçura e ca­
ridade cativara Dom Bosco o afeto dos mesmos máus
conseguindo que se aproximassem todos dos Santos Sa­
cramentos, com uma única exceção. Percebendo a sin­
ceridade dos seus sentimentos e uma simpatia cheia de
gratidão que êles nutriam para com sua amável pessoa,
Dom Bosco se comoveu e quís premiá-los. Convencido
de que para tais j ovens, o mais duro castigo era a pri­
vação de liberdade e de movimento, o primeiro pensamen­
to de Dom Bosco foi o de proporcionar-lhes um passeio.
Foi pois ter com o diretor das prisões de Turim e lhe per­
guntou :
- Venho fazer-lhe uma proposta. Haverá probabili­
dades de ser aceita?
- Faremos o possível, reverendo ; sua influência sô­
bre os nossos presos tem-nos sido de grande auxílio.
- Muito bem ! Permita-me, meu bom amigo, que eu
implore um favor para estes rapazes cujo procedimento
ultimamente vem sendo exemplar; permita-me fazê-los
sair todos num passeio de um dia; iremos a pé até Stu­
pinigi ; podemos sair bem cedo e voltar ao cair da noite ;
este passeio ser-lhes-à útil para a alma e para o corpo.
O diretor espavorido deu um pulo da cadeira : - Mas,
o senhor fala sério?
- Falo com a maior seriedade possível e peço-lhe
que tome em consideração meu pedido.

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. PREDILEÇÃO PELA JUVENTUDE 73

- E não sabe que sou o responsável po r qualquer


fuga?
- Estej a certo de que não haverá fuga nenhuma ;
eu me comprometo a trazê-los todos.
·

Long:t foi a discussão : Dom Bosco insistia mas o Di­


retor se entrincheirava atrás da severidade dos regula­
mentos mas afinal não querendo tomar sobre si tal res­
ponsabilidade, prometeu que falaria ao Ministro.
Dom Bosco foi então visitar o Cavalheiro Carlos Far­
cito de Vinea que era então intendente geral, ou Prefei­
to da Província ao qual competia dar a licença mas este,
tendo escutado o pedido foi inexorável na negativa.
O Diretor das prisões porém manteve a palavra e o
ministro Urbano Ra.ttazzi refletiu um instante sobre a
proposta e depois fez Dom Bosco saber que desejava fa­
lar-lhe. Dom Bosco foi.
Reverendo, desejo anuir à proposta que me fize­
ram em seu nome. Qualquer dêstes dias poderá V.
Revma. realizar o passeio projetado que será muito útil
aos presos quer no lado moral quer no físico; darei as
providências necessárias. Soldados disfarsados acompa­
nha-lo-ão de longe para o caso de ser preciso manterem
a ordem e fazer uso da fôrça se à tarde alguns recal­
citrantes se recusarem a entrar de novo na prisão.
Ao ouvir a palavra "soldados", Dom Bosco sorriu e
respondeu :
� Excelência, sou-lhe muito grato pela sua cortesia
mas não realizarei meu projeto senão com a condição
de V. Excia. me deixar sair absolutamente só com os ra­
pazes e me der sua palavra de honra que não man­
dará soldados no nosso encalço. A coisa toda fica a meu
cargo ; se houver qualquer desordem. V. Excia. pode
mandar-me prender.
- Mas o reverendo não trará de volta nem um
sequer dêstes patifes.
- Confie em mim ! - replicou Dom Bosco.

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74 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Rattazzi fitou longamente Dom Bosco e depois excla­


mou: - Assim seja então !
Dom Bosco corre à Generala para dispôr os 300 prê­
sos a . gozar dignamente do favor concedido. Na tarde
anterior à data fixada, falou-lhes assim :
- "Queridos j ovens, tenho de vos dar uma notícia
faustosa. Como prêmio da amizade que até agora me
mostrastes, como recompensa do bom procedimento que
já faz tempo estais tendo, como prêmio sobretudo do
empenho com que fizestes o vosso retiro, me dirigí ao
Senhor Intendente Geral e depois ao Sr. Ministro e ob­
tive a licença de vos levar em passeio até Stupinigi".
·
Tais palavras foram acolhidas com um grito de mara­
vilha.
Impondo silêncio, após alguns minutos de dilírio, D.
Bosco disse : - Bem vêdes que favor enorme. E' mais úni­
co do que raro e não há lembrança de se ter concedido
uma graça similar.
- Viva o Ministro ! Viva Dom Bosco !
- Sim ! Viva o Ministro ! Mas, escutai bem isto :
Dei minha palavra de honra que desde o primeiro até o
último havieis de proceder de modo a não serem neces­
sárias nem guardas nem soldados perto de nós. Dei mi­
nha palavra que amanhã à tarde tornareis a entrar aqui
sem demora e sem faltar um só. Posso ficar tranquilo?
Posso confiar em vós?
- Sim ! Sim ! Seremos bons ! Seremos bons ! - gri­
taram todos, ao mesmo tempo que lançavam ameaças
contra quem sonhasse violar a promessa.
- Basta ! Basta ! - prosseguiu Dom Bosco. Con­
fio em vocês todos e sei que me querem bem e nenhum
me dará aborrecimentos. Amanhã a cidade de Turim
estará com os olhos fixos em vocês, e se algum proce­
desse mal prej udicaria a mim mas a vocês também, prin­
cipalmente depois das promessas que fizeram agora. To-

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PREDILEÇÃO PELA JUVENTUDE 75

dos em ordem ! Longe as desobediências , discussões e


rixas; vocês o prometem ?
- Sim ! Prometemos.

. No dia seguinte os pobres rapazes tomavam a es­


trada de. Stupinigi pois nessa localidade o Padre Ma­
nuel Amaretti, íntimo amigo de Dom Bosco, os esperava
cordialmente. Alegres e com ordem gozavam j ubilosos
do sol e da liberdade cerrando-se em redor de Dom Bos­
co. Como o estimavam ! Logo que o viram um pouco can­
sado descarregaram as provisões e fízeram-no subir no
j umento que os acompanhava e puxaram o animal pelas
rédeas. Em Stupinigi Dom Bosco celebrou a Santa Missa
deu-lhes um suculento almôço e merenda divertindo-os
de mil maneiras. Nenhum incidente veio perturbar a paz
daquele dia e à tarde voltaram todos para o reforma­
tório.
O Ministro esperava com impaciência a volta do pas­
seio pois muito embora tivesse confiança em Dom Bosco
não se sentia completamente tranquilo. Quando ouviu
do próprio Dom Bosco a narração do passeio, mais que
feliz, exclamou : - Sou-lhe muito grato pelo que V.
Revma. fêz; mas diga-me, Padre, porque é que o Esta­
do não tem sôbre os prêsos o ascendente de V. Revma?
- Excelência, a força que possuímos é uma força
moral. O Estado apenas sabe mandar e punir ao passo
que nós falamos principalmente ao coração da j uventu­
de e a nossa é palavra de Deus.
Rattazzi compreendeu que o Ministro de Deus possui
\Una força misteriosa que não haure no mundo mas em
Deus e concluiu :
"Vós podeis reinar no coração da j u­
ventude e nós não o podemos pois esse domínio vos é
reservado ! "
Era de fato maravilhoso, para não dizer miraculoso,
o ascendente de Dom Bosco no Oratório.
O Cônego Jacinto Ballesio afirma : "A história, em
páginas belas e esplêndidas dirá aos pôsteros como Dom

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76 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Bosco foi durante meio século o apóstolo do bem . O


que não poderá dizer é a sua vida íntima, o seu contí­
nuo, calmo, doce, invencível e heroico sacrifício ; o seu
interesse e a estima para conosco, seus filhos ; a grande
autoridade, o conceito de santo e de douto em que nós
o tínhamos, cemo a um tipo ideal de perfeição. Oh ! A
história dificilmente poderá exprimir e fazer compreen­
der as doçuras suavíssimas que uma sua palavrinha, um
olhar, um gesto seu, infundiam nos nossos corações ! É
preciso ter visto e ter experimentado. A vida dos santos
nos livros mais bem escritos perde o encanto que exer­
ciam sobre os seus contemporâneos e familiares ! O per­
fume das suas palestras e virtudes se evapora no âmbito
dos tempos. Mas nós vimos e sentimos Dom Bosco ! . . . "
Espetáculo comovedor acontecia diariamente desde
os primórdios do Oratório até 1870, quando após o almô­
ço e principalmente após o j antar, não havia hóspedes
de importância na mesa dos Superiores. Os alunos,
saindo do próprio refeitório, se aglomeravam na entra­
da do refeitório dos Superiores esperando que terminas­
sem a ação de graças ; quando ouviam as últimas palavras
dessa oração, precipitavam-se portas a dentro obrigan­
do os clérigos a sair do caminho para não serem arras­
tados pela inundação infantil. Eis que os primeiros
apertam-se em redor de Dom Bosco de tal forma que
apoiam a cabeça nos seus ombros, outros lhe fazem
corôa enquanto as mesas já por precaução livres dos pra­
tos e travessas minutos antes, são tomadas de assalto.
Sôbre a mesa a que Dom Bosco se senta, dispõem-se vá­
rias fiÍ eiras de alunos sentados e de pernas cruzadas,
atrás desses, outras fileiras de meninos de j oelhos e fi­
nalmente uma fileira de alunos em pé. Ao mesmo tempo
outros arrastam os bancos para j unto da parede e sobem
apressados; eis outras filas de olhos vivos fixos em Dom
Bosco ao passo que os mais retardatários contentam-se
em se espremer entre a mesa e os bancos. Parece que jã
ninguém mais possa se aproximar de Dom Bosco, toda-

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PREDILEÇÃO PELA JUVENTUDE 77

via alguns pequerruchos correndo de gatinhas debaixo


da mesa conseguem um lugar ; eis muitas cabecinhas
que aparecem entre Dom Bosco e a mesa. O santo sorrí
amavelmente. Apenas tinha começado a tomar seu parco
alimento, no entanto acolhe-os com festas e ensurdeci­
do pelos cantos e pela algazarra dos seus gritos dirige
sorrisos, olhares, palavrinhas de animação a uns e outros
sem se mostrar nunca impaciente com a insistente im­
portunação dos seus filhos ; assim termina a sua refei­
ção. Se faz menção de falar, num momento cessa a con­
fusão e sua voz é ouvida com o mais profundo respeito ;
ei-lo que narra uma anedota ou apresenta uma pergunta
ou um problema; a reunião dura até que o sino chame
para a aula de canto ou para as orações.
"Carinhoso e expansivo, escreve o Cônego Ballesio,
evitava o formalismo artificial e o regorismo que levanta
barreiras entre quem manda e quem obedece ; sua auto­
ridade se baseava no respeito, na confiança e no amor.
Abríamos-lhe nosso coração com um abandono íntimo,
total e alegre. Todos queriam confessar-se com êle, o qual
consagrava a esta santa mas penosa fadiga 16 a 20 horas
por semana apesar de seus muitos trabalhos e o pêso da
idade. Sistema mais único que raro entre superiores e
dependentes ! Sistema de santos que permite conhece r a
índole dos alunos e sábiamente orientá-la dando asas a

energias recônditas. "


Temor d e Deus, trabalho, estudo incansável e sobre­
tudo como corôa, uma santa alegria ; tal era a vida no
Oratório. J!:ste admirável conjunto encria a existência
dos alunos de uma alegria e de um entusiasmo que lhes
suavizava tudo. Quem não a viu, dificilmente fará idéia
do barulho, da ingênua despreocupação dos j ogos, da ale­
gria nos recreios. O pátio era percorrido palmo a palmo
em corridas desenfreadas. Dom Bosco era a alma de todos
esses divertimentos e os alunos que sabiam como sem­
pre que podia não deixava de participar dos recreios e
conversas, de quando em quando levantavam os olhos

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78 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

para o quarto do bom pai e quando assomava na sacada


levantava-se um grito de alegria e muitos corriam para
o pé da escada afim de recebê-lo e beijar-lhe a mão.
Penso. que poucas pessoas no mundo tenham atraído
tanto a j uventude e tenham sabido valer-se da estima dos
j ovens para educá-los santamente. Dom Bosco no meio dos
seus filhos era a amabilidade em pessoa. Não j ogava sem­
pre mas sempre estava entre os meninos e então nunca
se calava ; como era rica de frases amenas e de alegres
histórias, a sua conversa ! Quanta caridade transparecia
nas palavras que dirigia a êste ou àquele com que se en­
contrava ou que o rodeavam !
- Sempre alegre ! - Como vai? - Quando você vai
começar a fazer milágres? - Tais frases dizia subita­
mente a um petiz que pensativo parecia alheio à conver­
sa ou falava baixinho com o companheiro que lhe estava
ao lado.
As vêzes dava um aviso para um menino e voltando­
se para outros perguntava: "Você compreendeu?
Acontecia que um aluno se aproximasse para beijar­
lhe a mão e êle, apertando a mão do menino o prendia
ao mesmo tempo que lhe dizia : Vá brincar bastante. -
E continuava a falar aos que o rodeavam até que depois
de algum tempo se dirigia de novo ao prisioneiro. Você
ainda está aqui? Porque não vai brincar? - Mas o se­
nhor está me segurando. D. Bosco sorria, continuava a
conversar e depois soltava o menino, dizendo-lhe : Vá !
Vá brincar. O menino sorria cheio de satisfação.
Tôdas estas indústrias acabavam geralmente com
uma palavrinha em segrêdo que os meninos chamavam :
a palavra ao ouvido. E que era tal palavra?
Era como um éco da palavra de Deus: "Viva, eficaz
e mais penetrante do que uma espada de dois gumes que
penetra até a divisão da alma do esprito . . . e distingue
ainda os pensamentos e as intenções do coração". De
fato, com grande zêlo e prudência, dirigindo tudo com

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PREDILEÇÃO PELA JUVENTUDE 79

seus consêlhos, informando-se de tudo, conhecendo todos


os internos e externos ,distinguindo-os pelo nome e pelo
caráter, sabia D. Bosco com irresistível carinho dizer uma
palavrinha sempre adequada às necessidades de cada um.
Mas o que dava a maior eficácia a esta palavra era que
muitas vêzes se referia a coisas secretas e muitas vêzes
a acontecimentos futuros que se realizavam plenamente.
Os alunos davam a esta palavra uma importância suma
e por isso podemos adivinhar mas não conhecer em tôda
a extensão os admiráveis efeitos de aumento de virtude
e progresso espiritual que ela trazia.
Quando passava a mão na cabeça de um menino e
curvando-se-lhe ao ouvido lhe dizia um segrêdo de modo
que ninguém o pudesse escutar a não ser o interessado,
era digno de observação o aspéto que assumia o rosto do
menino em questão. Um desmanchava-se num sorriso,
outro ficava sério, outro enrubecia até a raiz dos cabe­
los, outro começava a chorar ; êste se retirava pensativo
a passear solitário, aquêle gritava um "obrigado" e corria
para o brinquedo; outros iam à Igrej a fazer uma vis ita
a Jesus Sacramentado, outros porém não tinham fôrças
para se afastar de D. Bosco como que dominados por
uma idéia grandiosa, e outros diziam também um segrêdo
ao ouvido de D. Bosco ou lhe faziam uma pergunta.
Um menino do segundo ginasial, desenvolvido mas de
modos reservados aproximou-se uma vez de D. Bosco com
muitos outros companheiros, no pórtico do Oratório.
Parecia um pouco inquieto e desejoso de falar. D. Bosco
observou-o e lhe disse : - Queres dizer-me alguma coisa,
não é? - Sim, senhor. Adivinhou ! - O que é? - Não
quero que os outros o escutem - puxou D. Bosco para
um lado e lhe sussurrou ao ouvido :
- Quero lhe dar um presente que lhe dará prazer.
- Qual é ?
- Ei-lo, disse o menino pondo-se nas pontas dos pés
estendendo os braços e tomando um ar de seriedade.

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80 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Quero presenteá-lo com minha pessoa para que de hoj e


em diante disponha de mim e não me deixe afastar-me
do senhor.
- Na verdade, respondeu o Santo, não poderia você
fazêr-me um presente mais agradável do que êste. Eu o
aceito mas não para mim mas para que te ofereças e
consagres todo a Deus.
A palavra que dizia não durava senão poucos segun­
dos. Era como uma flexa de fogo que penetrava no
coração e não podia mais ser arrancada: - Poderias
fazer um favor a Nossa Senhora? Estuda melhor a lição.
- Jesus espera a você na Igrej a para uma visita. -
Tira o costume de agarrar os companheiros. - Você fez
bôa confissão ? - Porque não comungas com mais fre­
quência? - Ah ! Esses companheiros ! - Coragem !
Invoca Maria e ela te ajudará. - Se pudesses vêr o
estado de tua alma ! - Continua assim ! Nossa Senhora
está contente contigo. - Lembra-te bem : Deus te vê !
- A morte sim, o pecado não ! - Seja bom e juntos
entraremos no céu. - Procura fazer uma boa confissão
e terás uma grande alegria. - Aj uda-me a salvar tua
alma ! - Sempre alegre ! Um dia estarem�s j untos com
Nosso Senhor ! - E assim cem outras frases que variavam
de acôrdo com a necessidade. Um observador esperto
percebia às vêzes o efeito imediato : alguns aproximavam­
se dos Sacramentos, outros ficavam mais recolhidos na
oração, outros mais diligentes nos próprios deveres, outros
deixavam de ser ciumentos, geniosos, mal educados ou
aborrecidos para os companheiros. Houve alguns que
chegaram a tal fervor que D. Bosco precisou contê-los .
A todos fazia chegar sua palavra, até aos mais rebel­
des. As vêzes, percebendo um indivíduo cheio de ardor
na discussão de um argumento, chamava-o a si e lhe
dizia : - Quero que façamos uma bela coisa". - E
abaixando-se, dizia-lhe ao ouvido : Vamos fazer uma
bela limpeza para que você se possa tornar amigo de
Deus e ser protegido por Maria Santíssima.

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PREDILEÇÃO PELA JUVENTUDE 81

Quando u m outro corria desesperado todo absorvido


no jôgo, êle o fazia parar, e :
- Como vai? - lhe perguntava - Muito bem ! -
Ta,mbém quanto à alma? A esta interrogação o menino
o olhava confuso, abaixava os olhos meneava a cabeça e
dizia :
- Sim . . . mas . . . - Se morresses esta noite, amanhã
ou hoj e estarias contente ?
- Não muito. - Então quando te vais confessar?
- Amanhã cedo ou . . . agora mesmo.
Algum procurava evitá-lo por não ter coragem de
suportar-lhe o olhar; mas D. Bosco seguia-lhe os passos
e quando o menino menos o esperava eis que duas mãos
tapavam-lhe os olhos e seguravam-lhe a cabeça para que
não se voltasse. O menino estava longe de supôr quem
estava a brincar dessa fórma e tentava adivinhar o nome
até perder a paciência e às vêzes fazer alguma grosseria.
Quando as duas mãos o soltavam o menino exclamava
atônito : O' D. Bosco ! e trêmulo e enrubecido abaixava
os olhos e ficava imóvel. D. Bosco lhe perguntava : Por­
que foge de mim?
- Eu ? Não ! - Então seremos amigos? Escute uma
palavra ! - e lhe falava ao ouvido.
Concedera-lhe Nosso Senhor o dom da palavra com
tal intensidade, que tudo em D. Bosco servia de lingua­
gem : seu olhar, entoação de voz, e movimentos. Com o
olhar é que sobretudo punha em prática ao mesmo tempo
as potências da sua mente e do seu coração. Com seu
olhar comedido , calmo e sereno, se apoderava do pensa­
mento alheio com uma atração irresistível. Um gesto ou um
sorriso acompanhado por um olhar valia por uma per­
gunta, uma resposta, um convite, uma repreensão.
Por vezes seguia com o olhar no pátio ou nos pórticos,
um menino, ao mesmo tempo que tranquilamente con­
versava com os outros. Afinal o olhar do menino se en­
contrava com o de D. Bosco e o aluno lendo no olhar

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82 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

puríssimo de D. Bosco um desej o de lhe falar, corria a


perguntar-lhe o que desejava. E D. Bosco lho dizia ao
ouvido.
NãO era raro que, no meio de muitos alunos, fixasse
um ou dois e protegendo os olhos com a mão como quem
está contra a luz e quer vêr melhor, parecia penetrar-lhes
no intimo do coração. Os alunos objeto do seu olhar
ficavam confusos tartamudeavam ou se calavam e perce­
biam que D. Bosco lhes conhecia algum. . segrêdo. Então
um simples gésto da cabeça era suficiente ; não era pre­
ciso outro convite bastava apenas marcar a hora da
confissão.
Acontecia também que quando confessava na sacris­
tia passava na sua frente um menino sem nenhuma
intenção de se confessar ; mas, se D. Bosco o fitava,
não mais podia afastar-se; parava indeciso, dava ainda
um passo para a porta mas voltava atrás, aproximava-se
de D. Bosco, caia de j oelhos e esperava a sua vez para a
confissão.
Fora atraído por uma fôrça suavíssima, esvaíra-se­
lhe qualquer repugnância e seu coração experimentara
uma confiança filial. Muitos atestam ter experimentado
esta benéfica influência.
Oh ! como era grande o poder do olhar de D. Bosco !
Tarda hora da noite, um menino não podia dormir ! Vi­
rava-se de um lado para outro, suspirava e gemia a todo
momento. O seu vizinho lhe perguntou : Que é isso,
amigo? O que tem? - Nenhuma resposta. - O que é
que você tem? - Eu? Oh ! D. Bosco me olhou . . . - Que
grande novidade. Que mal há nisso? - Olhou-me de
certo modo . . . Eu bem conheço os olhares de D. Bosco.
- Você talvez se enganou. Tenha paciência e durma!
- No dia seguinte foi perguntar a D. Bosco se tinha
fitado o menino de um modo especial.
- Pergunta-lhe o que lhe diz a consciência! - E a
resposta da consciência foi que o pobrezinho foi-se con­
fessar e ficou sossegado.

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PREDILEÇÃO PELA JUVENTUDE 83

Certa vez, trazendo ainda na medula dos ossos a


leviandade das féi:-ias, os meninos não fizeram pronta­
mente silêncio após as orações da noite. D. Bosco, subindo
ao pulpitozinho, após esperar uns momentos exclamou
com tôda a calma: Mas . . . vocês sabem que eu não estou
satisfeito . com isso? - e mandou-os para o dormitório
sem deixar que lhe tomassem a bênção. Era êste o castigo
mais forte e temido pois o mais sentido ; daquele dia em
diante a campainha outrora tão pouco respeitada no meio
do vozerio, tornou-se completamente inutil pois todos tre­
miam à idéia de que tal castigo se repetisse.

Igual era a atração que exercia sôbre qualquer aluno.


Já falamos do afeto que lhe consagravam os externos
nos primeiros tempos do Oratório, quando empregava
tôda a sua vida no cuidar deles. Se D. Bosco ia pregar
fóra de Turim, eram sempre muitos os que indagavam
o dia e a hora de sua volta e saiam-lhe então ao encon­
tro ; apenas avistavam ao longe os cavalos da diligência,
erguiam um viva formidável e rodeavam a carruagem
com grande aborrecimento do postilhão que por vêzes
precisava dar uns cascudos para que os mais afoitos não
impedissem a livre passagem dos outros passageiros
·
na
porfia de beijar a mão de D. Bosco.

Na tarde de Finados de 1853 quando voltava do cemi­


tério com os internos, todos os engraxates, vendedores de
fósforos e limpa-chaminés espalhados na praça Manuel
Felisberto soltaram um grito de alegria ao vêr D. Bosco
e correram-lhe ao encontro com grande júbilo. Tal foi o
barulho e tal a confusão que muita gente corre u para a
praça inclusive os soldados j ulgando tratar-se de uma
revolução. E D. Bosco . . no meio dos molequinhos, sorria­
lhes e conversava paternalmente com êles.

Onde quer que encontrasse meninos, tratava-os D.


Bosco com a mesma afabilidade que usava para com os
alunos do Oratório. Quando ia visitar famílias ricas, os
primeiros que vinham saudá-lo eram sempre os meninos

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84 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

pois saiam-lhe ao encontro e êle os encoraj ava a se


tornarem cada vez melhores para agradar a Deus e dar
alegria aos próprios pais; dava-lhes algum pequeno
mimo e frequentemente brincava com êles como um
companheiro. Quando em foi a Barcelona, mais
1886
de 40 meninos das mais ricas famílias ficaram tão cati­
vos com a bondade de D. Bosco, que espontaneamente
lhe ofereceram todo o dinheiro que tr aziam consigo, no
meio da alegria sincera dos seus pais.
Nos longos passeios de outono os meninos das loca­
lidades por onde passava Dom Bosco com sua comitiva,
atraídos pela bondade do santo, rodeavam-no como as
creanças ao Divino Mestre. Muitos seguiam a comitiva
por um dia inteiro partecipando do j antar, dos diverti­
mentos e das práticas de piedade, voltando bem tarde
para casa. Outros não sabiam mais separar-se de Dom
Bosco e passavam a noite com a creançada do Oratório.
Mais de um continuou a viajem de etapa em etapa arru­
mando-se como era possível nas pobres casas em que
Dom Bosco se hospedava. Alguns continuaram a viajem
até o fim e chegando a Turim não queriam mais voltar
para suas casas.
Em 1877, hospedando-se num colégio de religiosos em
Marselha, ouviu dos superiores a dolorosa afirmação de
que não podiam colher dentre os seus alunos nenhuma
vocação para o estado eclesiástico. Dom Bosco apresentou­
-se aos j ovens e logo se viu um espetáculo maravilhoso :
todos o rodearam com entusiasmo porfiando em ouvir
suas doces palavras. Num momento o seu rosto alegre e
suas maneiras gentís ganharam o coração dos bons alu­
nos. Resultou o que se podia esperar : todos pediram para
se confessar com Dom Bosco. Uma das secções teve licen­
ça de fazê-lo e logo correu a voz que ele indicava aos pe­
nitentes até os pecados mais ocultos. Todos queriam fazer
a confissão geral e o entusiasmo chegou a tal ponto que
os superiores não acharam conveniente estender tal li­
cença aos demais alunos. Bastou no entanto essa pequena

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PREDILEÇÃO PELA JUVENTUDE 85

prova de bondade e santidade de Dom Bosco, para que em


muitos se despertasse o desejo de ser padres e salesianos.
Muitos queriam segui-lo a Turim e quando no Oratório
já de volta, Dom Bosco recebeu um pacote de cartas em
que lhe repetiam o desejo de vir para o Oratório e se
fazerem salesianos prontos a qualquer sacrifício afim de
conseguir este ideal. É de notar que esses meninos eram
das famílias mais ricas da França ! Houve até um aluno
que fugiu do colégio e chegando ao Oratório não mais quis
voltar para Marselha.
Na segunda-feira santa de 1882 descia o santo pela
primeira vez na cidadezinha de Camogli e ao chegar à
praça vizinha ao porto, uma centena de meninos que
brincavam na praia, ao vêr Dom Bosco, deixaram os seus
brinquedos correndo-lhe ao encontro e rodearam-no bei­
j ando-lhe as mãos e fitando-o cheios de carinho. Até sua
entrada na igrej a, ninguém mais poude se aproximar de
Dom Bosco tal era a multidão de creanças que o rodeava.
Em S. Tomás de Vilanova em Paris no ano de 1883,
dia 29 de abril, dois rapazinhos abriram caminho entre o
povo que rodeava a Dom Bosco e tendo chegado ao pé
dele, contemplavam-no sorridentes enquanto lhe segura­
vam cada um uma das mãos. Dom Bosco também os fitou
sorrindo, dirigiu-lhes uma palavrinha carinhosa e sem
se desvencilhar daquelas mãos infantis continuou a es­
cutar os que a ele se achegavam.
Uma telepatia maravilhosa atraia a Dom Bosco as
creanças.
Um petiz muito inteligente que prequentava as esco­
las públicas, sujeitava-se de má vontade à disciplina e
era negligente no cumprimento dos deveres. O pai, em
conversa com alguns amigos sôbre o procedimento do fi­
lho e as dificuldades econômicas que não permitiam p ô­
lo num colégio, veio a saber que um padre tinha iniciado
um colégio em Valdocco onde, em pouco tempo, os alu­
nos faziam verdadeiros progressos, sendo a pensão mui-

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86 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

to módica. O pai logo disse que o menino não se SUJei­


taria à v-ida de internato : mas qual não foi a admiração
ao ouvir deste : - Papai, ponha-me nesse colégio e verá
que eu aí ficarei muito bem. Naquela noite, o petiz teve
um sonho : Pareceu-lhe estar num pátio segurando uns
papéis e via · os meninos aplaudindo um padre que estava
numa varanda ; êle subira a escada e fora beijar a mão
do padre. Daí a algum tempo o menino entrou no Orató­
rio e não pensava mais no son;tlo, sendo-lhe difícil adap­
tar-se à vida que aí levavam. Ainda não tinha visto Dom
Bosco que estava ausente de Turim, quando um dia du­
rante o recreio, um dos mestres lhe dá um maço de pa­
péis para levar a um dos superiores. Ao subir as escadas
ouve aplausos vivos e prolongados e corre para o páteo
afim de participar da alegria geral. Era: Dom Bosco que
voltando da viagem estava na varanda. Eis o sonho com
todas as circunstâncias : o mesmo pátio, a mesma multi­
dão de meninos, a mesma casa, o mesmo padre e ele com
os papéis na mão. Comovido o petiz corre também para
beijar a mão do santo e esse beijo foi um protesto de
perpétua afeição como êle mesmo nos disse anos depois
ao relatar-nos comovido o fato que descrevemos.
Um salesiano nos escreve: Teria eu uns dez anos e
estava havia muitos dias preocupado com o pensamento
do meu futuro ; eis que, em sonho, vi um padre no portão
de um j ardim encantador. Aproximo-me do portão e o
padre me convida amavelmente a entrar : "Sej a bom me
disse ; aqui você vai passar a sua vida." Fez-me tanta im ­
pressão este sonho que por vários dias m e senti mais fer­
voroso, recolhido e assíduo à igreja. Passaram-se vários
anos e sempre tenho na mente a cena pois quando che­
guei ao Oratório identifiquei o padre que me acolheu tão
bondosamente com o que eu vira em sonho. Percebi então
que o j ardim era a nossa Pia Sociedade.
Um pai de família, com precisão de dinheiro, tinha­
se feito protestante para receber o dinheiro com que se
pagavam as apostasias em Turim. O desventurado que-

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PREDILEÇÃO PELA JUVE�DE 87

ria que a espôsa e o filho o imitassem mas estes estavam


firmes no catolicismo. Eram naturais da Savoia. A mãe
chorava sem parar e o menino teve então um sonho. Pa­
receu-lhe estar sendo arrastado para o templo dos pro­
testantes enquanto se debatia i nutilmente, Enquanto lu­
tava com braços e pernas , aparece um sacerdote que o
liberta e o leva consigo ! . . . De manhã contou o sonho à
sua mãe que procurava por todos os meios um colégio
católico para seu filho; aconselhada por amigas, levou
o petiz ao Oratório e sendo tempo de funções religiosas
foram para a Igrej a. Daí a momentos Dom Bosco sái da
sacristia para celebrar. O menino, ao vêr Dom Bosco,
grita repetidas vêzes, quase fora de si :
- C'est lui, maman ! c 'est lui-même ! É ele, mamãe;
êle mesmo". Reconhecera em Dom Bosco o padre do sonho.
Ao terminar a Santa Missa o petiz corre para a sacristia
e se abraça aos j oelhos do santo dizendo-lhe : "Meu pai,
salvai-me". Dom Bosco aceitou e durante muitos anos o
menino esteve no Oratório. Não foram êstes os únicos
casos.

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CAPiTULO VII

O sistema educativo

Qual era o seu sistema educativo ? - Norma fcm­


damental - Vma carta de um antigo colega - Um
aviso - Uma afirmação - Colóquio com Rattazzi -
Experiência em Roma - Uma declaração importan­
tíssima - "O sistema preventivo na educação da
juventude" - A créscimos - O Regulamento das Casas
da Pia Sociedade : Artigos gerais ; para os Superiores ;
para os alunos - Providência sagaz - O caderno da
experiência - Unidade de direção.

Perguntando alguém a Dom Bosco qual o sistema que


seguia para g·uiar os j ovens pelo caminho da virtude, o
santo respondeu : - O sistema preventivo ! A caridade !
Convidado a dar maiores explicações e a sug·erir os
meios apropriados para fazer a caridade triunfar, respon­
deu : - O santà temor de Deus instilado no coração !
"Mas o santo temor de Deus não é mais do que o
princípio da sabedoria - escrevia-lhe o Reitor do Semi­
nário de Montpellier em 1886 - tenha a bondade de me
explicar o seu segrêdo para que eu possa me servir dele
para o bem dos meus seminaristas !
- Querem que eu exponha o meu sistema ! - excla­
mava D. Bosco depois de ter lido esta carta aos principais
membros da sua Pia Sociedade. - No entanto nem eu _ _ _

o sei ! sempre fui adeante como o Senhor me inspirava


e as circunstâncias o exigiam.
E no entanto sempre teve e seguiu um sistema todo
seu ; nós, de acôrdo com as suas humildes declarações
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90 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

procurando refazer a vida de D. Bosco, ver-lhe-emos as


primeiras linhas, o desenvolvimento, a prática, a expo­
sição autentica e os recursos do seu metodo.
A norma fundamental, êle a recebeu do alto. Na
visão" dos nove anos, Aquele que lhe mandou se pusesse
à frente da" multidão de j ovenzinhos que se divertiam,
lhe tinha dito :
"Não com as pancadas mas com a mansidão e com a
car idade deverás ganhar êstes teus amigos".
Tais palavras não se lhe apagaram nunca da mente.
Recordava-as em menino, ao vêr que o seu pároco
não tinha uma palavra sequer de amabilidade para os
meninos ; e recordava-as mais tarde como seminarista ,
ao vêr que os - Superiores se faziam inacessíveis aos cleri­
gos. A tais palavras devia comparar em 1836 as que lhe
escrevia um amigo, visto que zelosamente conservou a
carta por tôda a vida: "Estou, permita-me dizer-lhe,
entre os martírios e os raios pois nossos professores nos
perseguem continuamente. O professor de lógica só sabe
falar de castigo e de fato já aplicou varias punições ; o
de geometri a quer continuamente descarregar raios terrí­
veis. Ambos nos repetem 200 ou 300 vêzes por dia, que
no fim do ano seremos eliminados e assim diariamente
somos repreendidos ora por um, ora por outro e nos repe­
tem sempre que nunca tiveram de ensinar a gente tão
ignorante como nós e não sabem se nós caímos da lua
ou chegamos neste mundo apenas há alguns dias. Disso
podes concluir como nós estejamos continuamente so­
frendo perseguições".
No dia 8 de Dezembro de 1841, os maus tratos infligi­
dos a um pobre menino e o desejo de suavizar a sinistra
impressão que êste recebera, foram, como se sabe, a
causa ocasional da Obra dos Oratórios.
Cinco anos mais tarde, em 1846, estando em Becchi
convalescendo da doença que tivera no Refúgio Barolo,
D. Bosco chamava a atenção do teologo João Borel, sôbre

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O SISTEMA EDUCATIVO 91

u m indivíduo que se prestava para auxiliar o Oratório e


que tratava os meninos com muita energia, "pelo que,
acrescentava, sei de alguns que j á ficaram desgostosos
com isso ; procure, Pe. Borel, que o _azeite seja o condi­
mento de todo o alimento do nosso Oratório".
Em 1847, ao dar as primeiras normas para as reuniões
nos dias santos afirmava que a caridade e as boas ma­
neiras são as fontes de que se derivam os frutos que se
esperam da Obra dos Oratórios.
Em 1854 j á o metodo estava claramente delineado.
Entretendo-se pela vez primeira com o Ministro Urbano
Rattazzi, dizia-lhe que o seu método educativo era o pre­
ventivo e não o repressivo : - No meu metodo se procura
infundir no coração dos alunos um santo temor de Deus,
inspirar-lhes o amor à virtude e o horror ao vício com
o ensino do catecismo e com adequadas instruções morais ;
encaminham-se e se sustentam na estrada do bem com
avisos oportunos e benévolos e especialmente com as prá­
ticas de religião e de piedade Além disso, o aluno é envol­
vido, na medida do possível, por uma amorosa assistência
no recreio, na aula e no trabalho; é encoraj ado com pala­
vras de benevolência e logo que dão mostras de ter esque­
cido os próprios deveres, são-lhes êstes lembrados com
boas maneiras e os faltosos são chamados a um proce­
dimento melhor. Numa palavra : usam-se todos os meios
sugeridos pela carid;tde cristã afim de que façam o bem
e fujam do mal tendo uma consciência iluminada e sus­
tentada pela Religião.
- Na verdade, concordou o Ministro, êste método
parece o mais adaptado para a educação de creaturas ra­
cionais ; mas será de eficácia em todos os casos?
- Sôbre cem, noventa serão de efeito consolador ;
quanto aos outros dez , exerce um influxo tão benéfico
que os torna menos teimosos e nocivos, pelo que é bem
raro que eu deva expulsar um aluno por ser indomável e
incorrigível . . .

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92 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

- Que pena que o Govêrno não estej a em condições


de adotar tal sistema nos seus institutos correcionais ;
nesses estabelecimentos requerem-se centenas de guardas
e os detentos sempre se tornam piores.
- E o que impede o Govêrno de adotar êste sistema?
Introduza-se aí a Religião ; estabeleça-se o .tempo opor­
tuno para o ensino religioso e as práticas de piedade;
quem dirige o instituto dê a estas práticas a devida im­
portância; deixe-se entrar aí com frequência o ministro
de Deus e deixe-se que se entretenha livremente com
êsses desventurados e lhes faça ouvir uma palavra de
amor e de paz ; eis como o sistema preventivo será perfei­
tamente pôsto em prática. Depois de algum tempo, os
guardas não terão nada ou só muito pouco a fazer e o
Govêrno terá a glória e o mérito de ter restituído à fa­
mília e à sociedade tantos membros honrados e úteis. Se
não fôr assim, gastará o dinheiro com o fim de corrigir
ou punir por um tempo mais ou menos longo um grande
número de máus e culpados e quando lhes restituir a li­
berdade deverá continuar a vigiá-los para se precaver
contra êles pois estarão sempre prontos a fazer pior.
Assim continuou D. Bosco a falar e como desde 1841
conhecia a situação dos detentos, não deixou de apontar
ao Ministro a eficácia da Religião como obra regenera­
dora e a utilidade do sistema preventivo, sobretudo nas
escolas públicas e nos estabelecimentos de educação onde
se devem cultivar espíritos que fàcilmente se curvam à
voz da persuassão e do amor pois imunes se acham de
qualquer delito.
Em 1858, encontrando-se D. Bosco em Roma, foi con­
vidado pelo Cardeal Tosti a dar um. passeio na compa­
nhia do eminente purpurado. A conversa caiu sôbre o
sistema mais apto para educar os meninos. D. Bosco
fôra convidado por êste cardeal a dirigir umas palavras
aos alunos do Instituto S. Miguel e aí se persuadira de
que os meninos daquele colégio, longe de ter familiari­
dade com os Superiores, temiam-nos. - Veja, Eminência,

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O SISTEMA EDUCATIVO 93

dizia D. Bosco ; é impossível poder educar com fruto os


meninos se êstes não tiveram confiança nos mestres.
- E como se pode ganhar essa confiança ? - inda­
gou o purpurado.
.
- Procurando que se aproximem de nós, tirando qual­
quer causa do seu afastamento.
- E como aproximá-los?
- Aproximando-nos deles procurando adaptar-se ao
gôsto deles e fazendo-nos semelhante a êles. Quer V.
Em. fazer uma experiência? Qual a praça de Roma onde
poderemos achar um grande número de meninos?
- Na Praça Termini . na do Povo . . .
- Pois bem. Vamos à Praça do Povo.
Dirigiram-se para lá. Ao chegar àquele local, desceu
D. Bosco da carruagem enquanto o Cardeal o observava
atentamente. Havia um grupo de rapazes ; D. Bosco apro­
ximou-se deles mas logo debandaram ; o santo chamou­
-os com boas maneiras e os moleques voltaram após
alguma relutância; presenteou-os então com coisinhas
sem im:portância pediu-lhes notícias sôbre a família d e
cada u m e perguntando-lhes d e que brincavam, convidou­
os a reiniciar o brinquedo, ficou apreciando um pouco
e depois começou a tomar parte nele. Outros meninos que
viam seu companheiros brincar, acorreram de Ionge, dos
quatro cantos da praça e rodearam o bom do padre que a
todos acolhia com uma boa palavra e um presentezinho
perguntava-lhes como passavam, se eram bons, se reza­
vam as orações e se costumavam ir se confessar. Quando
quis despedir-se deles, êstes o acompanharam e só o
deixaram quando D. Bosco subiu na carruagem. O Car­
deal Tosti ficou maravilhado.
Em 1864 temos uma declaração de suma importância .
D. Bosco estava em Mornese, hóspede do Pe. Domingos
Pestarino juntamente com a comitiva infantil que levara
até Genova ; o professor Francisco Bodrato, homem de

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94 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

quarenta anos, admirando a familiaridade respeitosa dos


alunos para com D. Bosco e o domínio que o santo sa­
cerdote exercia sôbre os mesmos, lhe perguntou qual o
segr�do pelo qual se assenhoreara de tantos corações.
- Religião e razão eis as duas molas de todo o meu
--
sistema dê e ducâÇão.' o educador se deve persuadir que
todos ou quase todos êstes queridos alunos, têm uma inte­
ligência natural que os leva a reconhecer o bem que lhes
fazemos pessoalmente e ao mesmo tempo, todos êles têm
um coração sensível, que facilmente dá abrigo à grati­
dão. Quando, com o auxílio de Deus, se conseguiu insti­
lar-lhes no espírito os principais mistérios de nossa Santa
Religião, que impregnada de amor, nos recorda o imenso
afeto que Deus usou para conosco, quando se chegou a
fazer vibrar no coração de cada um a corda do reconhe­
cimento que lhe se deve, em paga dos benefícios que tão
largamente Nosso Senhor nos outorgou, quando final­
mente, com a mola da razão chegamos a persuadí-los de
que a :verdadeir�. gratidão para com Deus se manifesta
mediante a obediência à Sua Vontade e o respeito às suas
determinações, maxime às que se referem aos nossos de­
veres recíprocos, acredite que grande parte do trabalho
educativo já foi conseguida. A religião neste sistema tem
o papel do freio que pôsto à bôca do fogoso corcel o do­
mina e vence ; a razão é a rédea que produz o efeito que
se desej9.. Religião verdadeira, religião sincera que do­
mine as ações da juventude ; razão que retamente aplique
êsses ditames tão santos à regra de tôdas as ações; eis
resumido em duas palavras o meu sistema, cujo segrêdo
o senhor desejava onhecer.
Após breve reflexão, o ·professor retorquia :
- Senhor padre, com a semelhança do sábio doma­
dor de poldros bravíos, falava-me o senhor do freio da
religião e do bom uso da razão para dirigir-lhe os atos;
está muito bem; parece-me no entanto que V. Rvdma.
omitiu um terceiro meio que sempre acompanha a pro-

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O SISTEMA EDUCATIVO 95

fissão d o domador de cavalos, refiro-me a o indispensável


chicote que é um terceiro elemento de bom exito.
- Pois bem, meu caro senhor, permito-me observar­
lhe que no meu sistema, a chibata, que o senhor consi­
dera indispensável, isto é, a ameaça salutar dos castigos
futuros, de modo algum é excluída ; reflita como são
muitos e terríveis os castigos com que a religião ameaça.
os que, não se importando com os preceitos divinos,
ousam desprezá-los; ameaças terríveis e severas que, re­
cordadas com frequência, não deixarão de produzir seu
efeito tanto mais j usto pois que não se refere às ações
externas apenas mas atinge até as ações secretas e os
pensamentos mais ocultos. Para fazer penetrar mais pro­
funda a persuasão desta verdade, acrescentem-se as prá­
ticas sinceras da religião, a frequência dos sacramentos e
a insistência do educador ; é certo que com o auxilio de
Deus se conseguirá assim facilmente tornar bons cristãos
os indivíduos mais arraigados no êrro. Além disso,
quando os meninos chegam a se persuadir de que os que
os estão educando amam sinceramente e bem de cada um
deles, bastará muitas vêzes para eficaz punição dos re­
beldes uma fisionomia mais reservada que manifeste a
tristeza interna por se vêr mal correspondido nas aten­
ções paternas. Acredite também, caro senhor, que êste
sistema é talvez o mais facil e, sem talvez, o mais eficaz
pois com a prática da religião, será sempre o mais aben­
Çoado por Deus. Se o meu bom senhor o deseja, tenho
a ousadia de convidá-lo a passar alguns dias em nossas
casas para assistir ao modo prático de executar tal
sistema.
Tais eram as normas que D. Bosco praticava e
inculcava aos seus auxiliares.
- Como faremos, caro D. Bosco, para ter meninas
que iniciem o nosso Oratório? - perguntavam-lhe as
Filhas de Maria Auxiliadora que em 1876 tinham sido
enviadas de Mornese para Turim.

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96 O PERFn. MORAL DE DOM BOSCO

E D. Bosco sorrindo : - Nossa Senhora vo-las man­


dará ; saí, andai pelas ruas, e ai encontrareis meninas,
chamai-as, perguntai-lhes o nome, dai-lhes uma medalha
de Nossa Mãe Auxiliadora e convidai-as a vir procurar­
vos, trazendo mais companheiras. Vereis ! Vereis ! - A
realidade, eshreve a Irmã Elisa Roncallo, confirmou a sua
palavra ; um passeiozinho pela Avenida Regina Margherita
proporcionou-nos o encontro de três ou quatro meninas
pauperrunas, oferecemos-lhes uma medalhinha, duas
balas e uma laranj a que nos haviam dado de presente.
No primeiro domingo, - coisa inesperada ! - eram
dez ! . no domingo seguinte já eram trinta e o número
continuou a crescer dando-nos com sua correspondência
frutos abençoados.
Mas finalmente D. Bosco escreveu um tratadozinho
a respeito do seu sistema e o publicou pela vez primeira
em 1877, na introdução do Regulamento para as Casas
Salesianas e numa monografia sôbre o Oratório de S .
Pedro e m Nizza Maritima. São poucas páginas mas pre­
ciosíssimas e para elas chamamos vossa atenção :

O sistema preventivo na educação da juventude.

Mais de uma vez houve quem me fizesse o pedido de


exprimir, verbalmente ou por escrito alguns pensamentos
acêrca do chamado Sistema Preventivo que se costuma
usar em nossas C asas. Por falta de tempo, não pude até
agora satisfazer êsses desejos, e, presentemente, querendo
imprimir o Regulamento que tem sido usado tradicional­
mente entre nós julgo oportuno apresentar dêle, uns li­
geiros traços que sem embargo, serão como o índice de
um opúsculo que tenho em preparação e poderei termi­
nar, se para tanto Deus me der vida, e isso unicamente
para auxiliar a difícil arte da educação j uvenil. Direi
portanto em que consiste o Sistema Preventivo, e porque
se lhe deva dar preferência, sua aplicação prática e sua.li
..-antagens.

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O SISTEMA EDUCATIVO 97

Em que consiste o Sistema Preventivo, e porque se lhe


deva dar preferência

- São dois os sistemas até hoje usados na educação


da mocidade : O preventivo e o repressivo. Consiste o
sistema repressivo em fazer com que os súditos conheçam
a lei, vigiar, depois para saber quem são os transgresso­
res e infligir-lhes, quando necessário, o merecido castigo.
Conforme êsse sistema, os aspectos e as palavras do Su­
perior devem sempre ser severas, e possivelmente, amea­
çadoras, evitando êle mesmo tôda a familiaridade com
os dependentes. O Diretor para dar valôr à própria
autoridade, raro deverá achar-se entre os súditos e, regra
geral, só quando se trata de punir ou de ameaçar. E'
facil êsse sistema, menos fatigoso e, serve especialmente
nos quartéis, e em geral entre pessoas adultas e ajui­
zadas, que devem por si mesmas, estar em condições de
saber e lembrar, quanto é conforme às leis e demais
prescrições.
- Diferente, e diria mesmo oposto, é o sistema pre­
ventivo. Consiste êle em tornar manifestas as prescrições
e os regulamentos do Instituto, e então vigiar de modo
que os alunos se tenham sempre sob o olhar vigilante do
Diretor ou dos Assistentes, que como pais amorosos lhes
falem, sirvam-lhes de guia, em tôda a eventualidade,
ãêem conselhos e amorosamente corrijam, o que equivale
a dizer : colocar os alunos na imposibilidade de cometerem

faltas.
- :l!:sse sistema apoia-se todo na razão, na religião
e no carinho ; exclue por isso qualquer castigo violento e
procura manter afastados os mesmos castigos leves. Pa­
rece seja êle preferível pelas razões seguintes:
1) o aluno preventivamente avisado não se avilta
pelas faltas cometidas, com sóe acontecer quando são re­
latadas ao Superior. Nunca se irrita pela correção feita,

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98 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

ou pelo castigo ameaçado, ou mesmo infligido porque há


sempre um aviso amigável e preventivo que o move a
razoar e o mais das vezes, consegue ganhar-lhe o coração
de modo que o aluno conhece a necessidade do castigo e
quase o desej a.
2 ) A · razão mais essencial é a volubilidade j uvenil,
que nwn instante esquece as regras disciplinares e os
castigos que elas ameaçam. Por isso é que, a miúde tor­
na-se um menino culpável e merecedor de wna penQ. em
que nunca refletira, da qual absolutamente não se lem­
brava no momento da falta cometida, e que por certo,
teria evitado, se voz amigável o tivesse advertido.
3) O sistema repressivo pode impedir uma desor­
dem, mas dificilmente conseguirá melhorar os delinquen­
tes; e diz a experiência que os jovens não esquecem os
castigos sofridos, e geralmente conservam rancor, ane­
lando sacudir o jugo e tirar vingança. Parece por vezes
que se não importam, mas quem lhes segue os passos co­
nhece que são terríveis as reminiscências da juventude ;
e esquecem êles facilmente as punições dos pais, muito
dificilmente porém as dos educadores. Fatos há de alguns
que na velhice se vingaram brutalmente de certos casti­
gos que lhes foram infligidos com justiça, nos anos de
sua educação.
O sistema preventivo, pelo contrário, torna amigo o
aluno, o qual vê nos assistentes, um benfeitor que o ad­
verte, que quer fazê-lo bom, livrá-lo dos desgôstos, do
castigo, da desonra.
4) O sistema preventivo deixa o aluno avisado, de
modo que poderá sempre o educador falar-lhe com a lin­
guagem do coração, quer no tempo da educação, quer ao
depois. O educador de posse do coração do seu protegido,
poderá sôbre êle exercer grande domínio, avisá-lo, acon­
selhá-lo, e também corrigí-lo, mesmo quando estiver nos
empregos, nos ofícios clvís e no comércio. Por estas e
muitas outras razõ�s. parece que o sistema preventivo
deva prevalecer ao repressivo.

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O SISTEMA EDUCATIVO 99

11

Aplicação do sistema preventivo

- A prática desse sistema, baseia-se toda nas pala­


vras de êão Paulo : Charitas patiens est . . . omnia suttert
omnia sperat, omnia sustine t (I Cor. XIII, 4, 7 ) . A cari­
dade é benigna e paciente ; tudo sofre, mas espera tudo
e suporta qualquer desconfôrto. Por isso somente o cris­
tão pode aplicar com êxito o sistema preventivo. Razão
e religião são os instrumentos de que deve usar constan­
temente o educador, ensiná-los, praticá-los êle mesmo,
se quiser ser obedecido e obter o seu fim .
- Deve pois o Diretor consagrar-se todo aos pró­
prios educandos, j amais tomar a cargo empenhos que o
afastem do próprio ofício, antes, achar-se sempre com
os alunos todas as vêzes que o não ligue obrigatoriamen­
te outra ocupação, salvo estejam os alunos por outros,
devidamente assistidos.
- Os professores, os mestres de oficina, os assisten­
tes devem ser de moralidade conhecida. Procurem evitar
como a peste toda a sorte de afeições e amizades parti­
culares com os alunos, e lembrem-se de que o descami­
nho de um só pode comprometer um Instituto Educativo.
Faça-se de modo que j amais fiquem sozinhos os alu­
nos. Por quanto possivel precedam-nos os assistentes no
lugar onde se devem reunir ; entretenham-se com êles
até que venham outros assistí-los ; nunca os deixem ocio­
sos.
- Dê-se ampla liberdade, de correr, pular e gritar a
vontade. A ginástica, a música, a declamação, o teatri­
nho, os passeios, são medidas eficacíssimas para obter a
disciplina, servir à moralidade e à saúde. Cuide-se ape­
nas em que as matérias do divertimento, as pessoas que
tomam parte, os discursos que o compõem, não sejam
repreensíveis. Fazei quanto quiserdes, dizia o grande ami-

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100 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

go da j uventude São Felipe Neri, basta-me que não co­


metais pecados.
- A confissão e a comunhão frequentes, a Missa
quqtidiana são as colunas que devem sustentar um edi­
fício educa,tivo, donde se queiram conservar afastadas
a ameaça e o castigo. Não se obriguem nunca os jovens
à frequência dos Santos Sacramentos, mas sõmente é
mistér encorajá-los e dar-lhes comodidade para que eles
tirem proveito. E, por ocasião de exercícios espirituais,
novenas, tríduos, pregações, catecismos, ponha-se em re­
levo a beleza, a grandeza, a santidade da religião que
propõe meios tão fáceis, tão úteis à sociedade civil, à
tranquilidade do coração, à salvação da alma, como são
de fato os Santos Sacramentos. Deste modo ficam os me­
ninos espontaneamente desejosos dessas práticas de pie­
dade, e a elas se achegarão de boa vontade, com prazer
e com fruto. (1)
- Empregue-se a máxima vigilância, para impedir
que no Institutos introduzam companheiros, livros ou pes­
soas que tenham más conversas. A escolha de um bom
porteiro é um tesouro para as casas de educação .
- Todas as noites após as orações ordinárias, e an­
tes que os alunos se recolham para o repouso, o diretor
ou quem por ele dirija algumas palavras afetuosas em

( 1 ) Não há muito visitando um min istro do roinho de l nglcterro,


um instituto de Turim. foi conduzido c espaçoso salão onde estcvom em
estudo cêrcc de 500 clunos. Morovilhcu-c não pouco o visto daquela
multidão de clunos em perfeito silêncio e sem assistentes. Suo admiração
cresceu porém de ponto oo scber que em todo um cno se não tivera c lc­
mentcr umc pclcvrc de disturbio, o menor motivo poro se infligir ou omec­
çor castigos. - Como é possível obter tento silêncio, tonto discipl ino?
pergunte: dizei-mo. E vós, acrescentou dirigindo-se co secretário, escrevei
qucnto o Reverendo disser. - Senhor, respondeu o diretor do Estabeleci­
mento, o meio que usemos nós, ·não se pode usar entre vós outros. -
Por que? - Porque são crconos revelados somente cos católicos. � Quais?
- A Confissão e o Comunhão frequentes e c Missa quotidiano bem ou­
vide. - Realmente tendes rczão, carecemos dêstes meios poderosos pore
c educação de mocidade. Não se podem êles suprir com outros meios? -
Se se não empregarem êstes elementos de Religião será mistér recorrer
às omeoços e co bastão. - Tendes rczão! Tendes rczão! Ou religião ou
bcstão; quero contá-lo nc l ngloterrc.

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O SISTEMA EDUCATIVO 101

público, dando algum aviso ou conselho acerca de cousas


que se devam fazer ou evitar, e procure colher as máxi­
mas dos fatos acontecidos no correr do dia, no Instituto
ou fóra, mas nunca prolongue a sua exortação além de
d óis ou três minutos. É esta a chave da moralidade, do
bom andâmento e do bom êxito da educação.
- Conserve-se afastada como à peste a opinião de
alguns que quereriam diferir a primeira Comunhão para
uma idade muito adiantada, quando o mais das vêzes j á
o demônio tomou posse do coração do menino, com da­
no incalculável para sua inocência. Conforme a disci­
plina da Igreja primitiva soiam dar-se às crianças as
hóstias consagradas que sobravam na comunhão Pascoal.
Serve isto para dar-nos a compreender quanto estima a
Igreja que os meninos sejam admitidos a tempo à Santa
Comunhão.
Quando uma criança sabe distinguir entre ·pão e pão,
e manifesta instrução suficiente, não se faça caso da ida­
de, e deixe-se que venha o Soberano celeste reinar nessa
alma feliz.
- Os catecismos recomendam a Comunhão frequen­
te ; São Felipe Neri aconselhava-a cada oito dias e ainda
mais a miúde. O Concilio Tridentino diz claro que deseja
sumamente que todo o fiel, quando ouve a Santa Missa
faça também a Comunhão. Mas que esta comunhão seja
não só espiritual, mas também sacramental afim de que
se tire maior proveito deste augusto e divino sacrifício
<Concilio Tridentino, Sess. XXII, Cap. VI> .

m
Utilidade do sistema preventivo

- Dirá alguém que este sistema é difícil na práti­


ca. Observo que da parte dos alunos se torna muito mais
fácil, mais satisfatório, mais vantajoso. No que respeita
aos educadores encerra algumas dificuldades, as quais,
porém diminuem, se o educador se entregar, cheio de

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1 02 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

zêlo a sua obra. É o educador um indivíduo consagrado


ao bem dos seus alunos ; deve por isso estar pronto a
afrontar todo o incômodo, tôda a fadiga para conseguir
o s�u fim, que é a educação civil, moral e científica dos
seus alunos.
- Além das vantagens acima . expostas acresce ainda
que :

1) O aluno mostrar-se-á sempre cheio de respeito


para com o educador, e lembrar-se-á, com prazer cada
vez maior, da direção tida, considerando como pais e
irmãos os seus mestres e demais superiores. Aonde fo­
rem, tais alunos serão o mais das vêzes a consolação da
família, úteis cidadãos e bons cristãos.

2) Qualquer que seja o caráter, a índole, o estado


moral do aluno, na época da sua aceitação, os pais po­
dem viver seguros de que seu filho não há de piorar,
e pode-se dar como certo que sempre se obterá algum
melhoramento. Antes, meninos, há que, tendo sido por
muito tempo o flagêlo dos pais, e até recusados pelas
casas correcionais, educados segundo estes princípios, mu­
daram de índole e caráter, deram-se a vida morigerada
e presentemente ocupam honrados cargos na sociedade,
tornando-se deste modo o amparo da família, o decôro
do lugar em que moram.

3) Os alunos que por infelicidade, entrassem num


Instituto com máus hábitos, não podem danificar aos
próprios companheiros. Nem os meninos bons poderão
receber deles prejuizo, porque para tal não há tempo nem
lugar, nem oportunidade, visto que o assistente, que su­
pomos presente, a isto im.ediatamente remediaria.

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O SISTEMA EDUCATIVO 103

IV

Uma palavra sôbre os castigos

- Que regra deveremos observar no infligir casti­


gos? Por · quanto for possível nunca se faça uso dos cas­
tigos; quando contudo a necessidade pede repreensão,
observe-se quanto segue :
1) O educador entre os alunos procure fazer-se
amar se quer que o temam. Neste caso o retirar a bene­
volência é um castigo que excita a emulação, dá coragem
e não pode aviltar.
2) Entre os meninos é castigo o que se dá como cas­
tigo. Diz-nos a experiência que um olhar não amorável
dirigido a alguns, produz maior efeito que não uma bofe­
tada. O louvor, quando foi bem feita uma ação, a censu­
ra em caso de descuido, constituem de per si um grande
prêmio ou um castigo.
3) Salvo raríssimos casos nunca se dêem em pú­
blico as correções e os castigos, mas privadamente, lon­
ge dos companheiros e empregue-se a máxima prudên­
cia e paciência para obter que o aluno compreenda a sua
falta com a razão e com a religião.
4) O bater, como quer se faça, pôr de j oelhos em
posturas dolorosas, o puxar as orelhas ou castigos seme­
lhantes, devem-se absolutamente evitar, porque são proi­
bidos pelas leis civis, irritam demasiado o menino e avil­
tam o educador.
5) Empenhe-se o Diretor e m fazer que o aluno co­
nheça bem as regras, os prêmios e os castigos estabeleci­
dos pelas leis de disciplina afim de que se não possa êle
excusar, dizendo : Não sabia que isto fosse mandado ou
probido.
Se em nossas casas se puzer em prática este sistema,
creio que nos será dado ter grandes vantagens, sem pre­
cisarmos recorrer à vara, ou outros castigos violentos.

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104 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Faz quarenta anos que trato com a j uventude, e me não


recordo de ter usado castigo de espécie alguma, e com
o auxílio de Deus, não só obtive sempre quanto era de
dever, mas ainda o que simplesmente desejava, e isto
daqueles mesmos meninos a respeito dos quais parecia
perdida toda a esperança de bom êxito.

Em setembro de 1880 este tratadozinho apareceu tam­


bém no Boletim Salesiano e no capítulo vinte e um da
História do Oratório, com alguns apêndices. No artigo IV
do parágrafo "sôbre os castigos" se interpuseram as pa­
lavras "dar títulos grosseiros" e depois do artigo s.o do
mesmo parágrafo se acrescentaram os pall'ágrafos se­
guintes :
"VI. Antes de aplicar um castigo qualquer, observe­
-se qual o grau de culpabilidade do aluno e onde basta o
aviso não se dê repreensão e onde esta fôr suficiente não
se vá além.
VII. Nem com palavras, nem com atos se aplique
castigo algum quando o espírito estiver agitado ; nunca
por faltas de simples distração nem com demasiada fre­
quência. "
Er a pois êste o sistema educativo de Do m Bosco. Pa­
la concluir devemos referir o Regulamento por ele dado
às casas da Pia Sociedade. É dividido em duas partes.
Na primeira se fala dos ofícios dos Diretores e de todos
os seus dependentes desde o Prefeito ou ecônomo até o
cozinheiro, o empregado e o porteiro; há também o re­
gulamento para o teatrinho e a enfermaria. Na segunda
·
parte, tendo aludido ao fim das casas da Pia Sociedade
e às normas de aceitação, se fala da obrigação que têm
os j ovens de crescer laboriosos e pios ; do procedimento
na igrej a, na aula, no estudo e na oficina; do procedi­
mento para com os superiores e os companheiros ; da
modestia e da limpeza e finalmente do procedimento no
regime geral da casa e fora da mesma, no passeio e no
teatrinho.

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O SISTEMA EDUCATIVO 105

Ambas as partes são precedidas por estes artigos


gerais :
- Os que se acham em qualquer ofício ou tomam
parte na assistência dos meninos que a Providên­
cia nos confia, têm todos o encargo de dar avisos e
conselhos a qualquer aluno da Casa, tôda vez que
houver razão para fazê-lo, especialmente em se
tratando de impedir a ofensa de Deus.
- Procure cada um fazer-se amar, se quiser - fazer-se
temer. E êste grande fim conseguirá, se com as
palavras e mais ainda com os fatos, der a conhe­
cer que suas solicitudes miram unicamente à van­
tagem espiritual e temporal de seus alunos.
- Na assistência, poucas palavras e muitos fatos;
dê-se aso aos alunos de expressarem livremente
os próprios pensamentos ; estej a-se, porém, atento
em retificar, e também corrigir, as expressões, as
palavras, os atos que não fossem conformes à
educação cristã.
- Costumam os meninos manifestar um destes ca­
racteres diversos : índole bôa, ordinária, dlficll, má.
Incumbe-nos o dever estrito de procurar os meios
que sirvam para conciliar êsses carácteres diver­
sos para fazer bem a todos, sem que uns sejam
de prej uizo aos outros.
- Aos que dotou a natureza de caráter, de índole
bõa, é suficiente a vigilância geral, explicando as
regras disciplinares e recomendando-lhes a obser­
vância.
- Mais numerosa é a categoria daqueles outros de
caráter e índole comum, um tanto volúvel e in­
clinada à indiferença; necessitam êles de breves
mas frequentes recomendações, avisos e conselhos.
E' preciso encorajá-los ao trabalho, também com
pequenos prêmios, e mostrando ter nêles grande
confiança sem descuidar-se, contudo, a vigilância.

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106 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Mas, os esfôrços e solicitudes devem especialmente


convergir para a terceira categoria a saber, a dos
. discípulos difíceis, e mesmo maus. o numero
dêstes pode-se calcular na proporção de um sôbre
quinze. Empenhem -se todos os Superiores em
conhecê-los, informem-se de sua vida passada,
mostrem-se seus amigos, deixem-nos falar muito
mas falem pouco, e constem suas conversas de
pequenos exemplos, máximas, episódios e coisas
semelhantes. Não os percam porém de vista, sem
dar a entender que deles desconfiam.
- Os professores, os assistentes, quando chegam
entre seus alunos, dêem sôbre êles uma vista
d'olhos, e percebendo que esteja algum ausente,
façam-no logo procurar, sob a aparência de querer
falar-lhe ou dar-lhe alguma incumbência.
- Quando fôsse mistér repreendê-los, dar-lhes avisos
ou correções, não o façam nunca em presença dos
companheiros. Podemo-nos não obstante, apro­
veitar dos fatos, dos episódios acontecidos a outros,
para deles tirarmos louvor ou censura, que venha
a cair sôbre os de que falamos.
São êstes os artigos preliminares do nosso Regu­
lamento. A todos, porém, é indispensável a pa­
ciência, a diligência e muita oração, sem o que
seria inútil qualquer Regulamento.

Em seguida vem a primeira parte :


Ao Diretor é confiado "o cuidado de todo o anda­
mento espiritual, escolar e material" do estabelecimento.
O Prefeito que "faz as vêzes do Diretor ausente na
administração e em tudo de que tiver sido encarregado",
"tem a direção geral e material da casa". "Enquanto
vigia para que os alunos sejam pontuais no cumprimento
do dever, de acôrdo com o Conselheiro Escolar e com o
Catequista, com bons modos procure que os professores,
os mestres de oficina e os assistentes se achem no seu

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O SISTEMA EDUCATIVO 107

pôsto quando os alunos chegarem à igrej a, ao estudo, à


aula, à oficina e aos dormitórios e assim se impeçam as
desordens que geralmente acontecem nesses momentos".
Ao mesmo é confiada "em geral a disciplina dos alunos,
a Jimpeza e manutenção da casa"

O Catequista, ou diretor espiritual "vele atentamente


sôbre os defeitos dos alunos para estar em condições de,
no que lhe diz respeito, corrigi-los oportunamente e dar
no fim de cada mês a nota de moralidade a cada um".
O Conselheiro Escolar, ou diretor dos estudos, "receba
dos mestres e assistentes as observações referentes à dis­
ciplina e à moralidade dos alunos para lhes dar as normas
e avisos que j ulgar oportunos. Lembre frequentes vêzes
aos mestres que trabalham pela glória de Deus e que
por isso, enquanto ensinam a ciência temporal, não
esqueçam o que se refere à salvação da alma" .
Aos professores, D. Bosco dá estas importantes nor­
mas pedagógicas :
"O primeiro dever dos professores é achar-se pon­
tualmente nas aulas para impedir as desordens que cos­
tuma haver antes e depois da aula. Percebendo a ausên­
cia de algum alunos, comunique-o logo ao Conselheiro
ou ao Prefeito.
"Estej am bem preparados na materia que vai ser
argumento da aula. Esta preparação aj udará muito para
esclarecer aos alunos as dificuldades dos exercícios e das
lições e servirá eficazmente para suavizar a fadiga do
mesmo professor.
"Nenhuma parcialidade, nenhuma animosidade ; avi­
sem, corrijam se é o caso; mas perdoem facllmente,
evitando, quanto possível, Siplicar punições.
"Os mais ignorantes da classe sejam o objeto das suas
solicitudes; encoragem mas não humilhem nunca.
"Interroguem a todos sem distinção e com frequên­
.
cia e manifestem grande estima e afeição por todos os

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108 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

alunos, especialmente pelos de menor inteligência. Evi­


tem o pernicioso costume de alguns que abandonam a si
próprios os alunos negligentes ou de menos inteligência.
'"Havendo necessidade de castigos, apliquem-nos du­
rante a auia mas nunca afastem o aluno da classe.
Apresentando-se casos graves, maJ?.dem chamar o Conse­
lheiro Escolar ou mandem levar o culpado à sua presença.
E' rigorosamente proibido bater e infligir castigos humi­
lhantes ou prejudiciais à saúde.
"Apresentando-se o caso de aplicar castigos fóra da
aula ou tomar deliberações de maior vulto, refiram e
entreguem tudo ao Conselheiro Escolar ou ao Diretor da
Casa.
"Fóra da aula, o professor não deve ameaçar nem
dar castigos de nenhuma espécie, mas deve se limitar a
avisar e aconselhar os alunos como amigo sincero e com
modos delicados. Recomeni:le constantemente limpeza
nos cadernos, regularidade e perfeição na caligrafia,
asseio nos livros e nas tarefas . . . Vigie sôbre a leitura
de livros maus, recomende nominalmente os autores que
podem ser lidos sem detrimento da fé e dos costumes e
escolha para tarefas os trechos mais adaptados à moci­
dade evitando os que possam prejudicar a religião e a
moral. Estejam porém atentos em não citar, na medida
do possível, livros perniciosos.
"Dos clássicos sagrados e profanos, terá cuidado de
tirar as consequências morais, quando a oportunidade da
matéria dá ocasião mas com poucas palavras e sem exa­
gero. Na ocurrência d e novenas ou solenidades, diga
alguma palavra de animação, mas com a brevidade pos­
sível, e se puder, conte algum belo exemplo.
"Uma vez por semana passe uma lição sôbre um

texto latino de autor cristão".


Os as.sistentes "são encarregados de vigiar sôbre a
disciplina e ordem na classe que lhes fôr confiada e, em
caso de necessidade, também nas outras classes . . .

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O SISTEMA EDUCATIVO 109

Cuidarão nos recreios que cada um estej a no próprio


pátio e impedirão as rixas, as conversas inconvenientes,
as palavras grosseiras e ofensivas, os atos inconvenientes
como pôr as mãos em cima dos· outros" .
N a segunda parte, D. Bosco s e dirige aos jovens com
a linguagem mais sábia e carinhosa. Vamos recolher
alguns trechos.

Da piedade: Lembrai-vos, meninos que fomos crea­


dos para amar e servir a Deus, nosso Creador, e que de
nada nos serviria tôda a ciência e tôdas as riquezas do
mundo sem o temor de Deus. Dêste santo temor depende
todo o nosso bem temporal e eterno.
- Para conservar-se no temor de Deus muito con­
correm a oração, os SS. Sacramentos e a palavra de Deus.
- Entregai-vos desde os vossos verdes anos à prática
da virtude, porque esperar a velhice para então entre­
gar-se a Deus é expor-se ao gravíssimo perigo de perder­
se eternamente. As virtudes que formam o mais belo
ornamento dum jovem cristão são : a modéstia, a humil­
dade, a obediência e a caridade.
Durante o dia contraí o belo costume de fazer algu­
ma visita a Jesus Sacramentado. Seja tal visita de poucos
minutos embora, mas seja cotidiana, se vos fôr possivel.

Do trabalh o : O homem, meus jovens, nasceu para


trabalhar. Adão foi colocado no Paraiso terreste para
cultivá-lo. O Apóstolo S. Paulo diz : "E' indigno de comer
quem não quer trabalhar" : Si quis non vult operart non
manducet.
- Por trabalho se entende o cumprimento dos deve­
res do próprio estado, quer seja o estudo, quer seja uma
arte ou ofício.
- Pelo trabalho podeis vos tornar beneméritos da
Sociedade, da Religião, e fazer bem à vossa alma, espe­
eialmente se oferecerdes a Deus as vossas ocupações
ootidianas.

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1 10 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

- Entre vossas ocupações dai sempre preferência às


que vos forem ordenadas por vossos Superiores, ou pres­
critas pela obediência, decididos a nunca abandonar
nenhuma vossa obrigação, para empreender coisas não
manda d as.
- Se adq uirirdes alguns conhecimentos, dai gloria a
Deus, que é o autor de todo o bem, e não vos orgulheis,
porque o orgulho é um verme que roi e faz perder o
merecimento de tôdas as vossas boas obras.
- Lembrai-vos que a vossa idade é a primavera da
vida. Quem de moço não se habitua ao trabalho, quase
sempre será um madraço até à velhice, desonrando a
pátria e a família, e talvez causando um mal irreparável
à sua alma.
- Quem é obrigado a trabalhar e não trabalha, furta
a Deus e a seus Superiores. Os ociosos, no fim da vida,
�entirão grandíssimo remorso pelo tempo que perderam.

Do estudo : Depois da piedade é da máxima impor­


tância o estudo. Portanto, a primeira ocupação deve
consistir em fazer o trabalho de obrigação e estudar a
lição ; só depois de ter terminado lsto, é que podeis ler
algum bom livro ou fazer qualquer outra coisa.
Do comportamento para com os superiores : O fun­
damento de tôda a virtude em um menino é a obediência
a seus Superiores. A obediência gera e conserva tôdas
as outras virtudes, e se a todos é ela necessaria, em modo
especial o é para a mocidade. Portanto, se quiserdes
adquirir a virtude, começai pela obediência aos vossos
Superiores, suj eitando-vos a êles sem resistência alguma,
como se fôsse a Deus.
- Seja a vossa obediência pronta, respeitosa e alegre
a qualquer ordem, não fazendo observações para vos exi­
mirdes do que êles mandarem. Obedecei mesmo quando
o que se vos ordena não é conforme ao vosso gênio.
- Procedem mal os que nunca se deixam ver pelos
seus Superiores, e se escondem ou se retiram quando êles

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O SISTEMA EDUCATIVO 111

s e aproximam. Recordai o exemplo dos pintainhos.


Aquêles que mais perto estão da galinha, são os que sem­
pre dela recebem alguma migalha. Do mesmo modo, os
meninos que costumam mais se aproximar dos superiores
são · os que sempre recebem algum aviso ou conselho
particular.
·

- Fugi da companhia daqueles que, enquanto os Su­


periores se afadigam por vós, censuram suas disposições :
isto seria sinal da máxima ingratidão.
Do procedimento para com os companheiros: Respei­
tai e amai vossos companheiros como a irmãos, e procurai
edificar-vos mutuamente com bons exemplos.
- Amai-vos todos reciprocamente, como manda
Nosso Senhor, e não deis escândalos. Quem com pala­
vras, conversas e atos de escândalo, não é amigo, é um
assasino da alma.
Do procedimento na aula: Na aula, levantai-vos ao
chegar o Professor ou Mestre ; se tardar a vir, não façais
barulho, mas, sentados, esperai-o em silêncio, repassando
a lição, ou lendo algum bom livro.

- Sendo repreendidos por alguma falta, nunca res­


pondais com arrogância, ainda mesmo se tiverdes carra­
das de razões ; mostrai-vos humilhados, sim, porém ao
mesmo tempo contentes de terdes sido admoestados. Não
imiteis aquêles meninos que se encrespam, atiram o livro
ao chão e encostam a cabeça na carteira, porque todos
êsses atos indicam soberba e má educação.
- Respeitai os Professores, sejam ou não da vossa
classe. Prestai especial reverência aos que foram vossos
Mestres nos anos anteriores. A gratidão a quem vos fez
benefícios é uma das virtudes que mais ornam o cora­
ção de um menino.
- Todos os domingos à noite, haverá uma conferên­
cia para os estudantes, na qual o Conselheiro escolar ou
quem suas vêzes fizer, lerá as notas de cada um com

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112 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

alguma reflexão paternal, que sirva de estímulo aos alu­


nos para progredirem no estudo e na piedade.
- Quem não tiver o temor de Deus, abandone os
estudos porque trabalha inutilmente. A ciência não en­
trará em . espírito máu, nem residirá em corpo escravo
do pecado, diz N. S. (Sap. )
Do procedimento nas oficinas: Os aprendizes tenham
grande atenção e diligência em cumprir os próprios de­
veres e na aprendizagem daquela arte que, a seu tempo,
lhes servirá de ganha pão. Reflita cada um que o ho­
mem nasceu para trabalhar e que somente quem traba­
lha com amor e assiduidade tem paz no coração e acha
leve a fadiga.
Do procedimento em casa e fora de casa: Abstende­
vos de pôr as mãos sôbre os outros e nas recreações não
andeis de mãos ou braços dados, nem tão pouco com os
braços sôbre os ombros dos companheiros , como fazem
às vêzes os garotos da rua.
- Muito se vos recomenda que não estragueis o
menor bocado que seja de sopa, de pão e de outras corpi­
das. Não esqueçamos o exemplo do Salvador, que man­
dou seus Apóstolos recolher as migalhas de pão, para que
se não estragassem. Colligite fragmenta ne pareant.
Quem estragar voluntariamente a comida, será punido
com severidade e muito deve receiar que Nosso Senhor
não o faça morrer à fome.
- Deveis prezar muito o asseio. A ordem e o asseio
exterior indicam limpeza e pureza de alma.
- Sêde caridosos para com todos, compadecei o
próximo pelos seus defeitos, não chameis ninguém por
alcunhas ou apelidos, e nem digais ou façais aos outros
o que não quiséreis que vos dissessem ou fizessem.
- Lembrai-vos, meninos, que todo cristão deve ser
de edificação ao seu próximo ; o bom exemplo é o melhor
dos sermões.

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O SISTEMA EDUCATIVO 113

- Fora de casa sêde cautos no olhar, no conversar,


em tôdas as vossas ações. Nada é mais edificante do
que ver-se um menino correto no seu proceder, mostran­
do assim a todos que êle pertence a uma comunidade de
meninos cristãos e bem educados.
- Se encontrardes pessoas que ocupam cargos pú­
blicos, tirai o chapéu e cedei-lhes o lugar mais cômodo
da rua ; o mesmo haveis de fazer com os religiosos e
com tôdas as pessoas constituídas em dignidade, máxime
se vierem ao Colégio ou nele se acharem.
E eis a conclusão : Posto que todos devem evitar
qualquer pecado, todavia há três males que de modo
especial deveis evitar, por serem mormente funestos à
mocidade. São: 1.0 a blasfêmia e j urar em vão; 2.o a
desonestidade ; 3.0 o furto.
Ficai certos disto, meus caros filhos, um só dêsses
pecados basta para provocar as maldições do c·éu sôbre
o colégio. Pelo contrário, se os evitardes, temos motivos
bem- fundados para esperar as bênçãos celestiais sôbre
vós e sôbre tôda a comunidade.
Quem observar estas regras, seja por Nosso Senhor
abençoado.
Todos os domingos à noite ou em outro dia da se­
mana, o Prefeito, ou quem as suas vêzes fizer, lerá algum
artigo dêste regulamento com uma breve e oportuna
reflexão moral.
Esta é a substância do Regulamento que, no princípio
de cada ano letivo, após um triduo de pregações para
animar os alunos ao cumprimento do dever, D. Bosco
fazia ler na sala do estudo na presença de todo o corpo
dirigente e docente não excluindo o Diretor ; fazia-o para
que todos soubessem como também os Superiores estão
sujeitos ao Regulamento e não agem arbitrariamente.
Ao lado do Regulamento, queria D. Bosco que cada
casa tivesse o interêsse de tomar notas das exigências

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1 14 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

locais com o caderno da experiência em que se deviam


anotar todos os inconvenientes, desordens e êrros à
medida que vão ocorrendo bem como as disposições que
se reconheçam necessárias para impedir tais inconve­
nientes; até para os convites para festas e teatrinhos,
queria que se conservasse a lista das pessôas que fosse
conveniente convidarmos.
Era sua recomendação constante que à direção da
casa estivesse preposto o diretor e que todos os superio­
res cumprissem o próprio dever.
"Ai da casa onde se formam dois centros : são como
dois campos com duas bandeiras que, se não são con­
trárias, estão ao menos separadas.
Assim nenhum superior secundário deixe de cumprir
as obrigações do próprio campo, nem ouse exercitar a
própria autoridade fora do seu campo de trabalho ; as
desordens que se lhe seguem, são sempre graves. Com
isso não vem excluído o auxílio recíproco. - Nunca se
diga: Isto não me pertence. Diga-se porém : :li.:le não
está ou não pode fazer isto, portanto cumpre-me fazê-lo.
Não se fique indiferente com a afirmação de que não
estamos encarregados da vigilância. Digamos ao invés:
Agora o assistente sou eu !
Tão grande era a vigilância de D. Bosco sôbre as
almas puras dos alunos, que D. Bosco mandou colocar
nas paredes do quarto e das oficinas, os seguintes dizeres :
Todo o momento de tempo é um tesouro - O paraiso
não é para os indolentes. o ocio é o pai de todos os vícios.
Deus me vê - O início da sabedoria é o temor de Deus;
e assim por diante.
CAPITULO VIII

Ainda sôbre o Sistema Preventivo

Carateristicas dos Colégios Salesianos: 1.0 A ale­


gria ; a festa do onomastico !l o teatrinho - 2.0 a vigi­
lância de todos os Superiores sôbre os alunos : a lista
dos livros; a leitura nos dormitórias - 3.0 A boa
noite ; nove meios para se sair bem nos estudos ; sen­
tenças morais - 4.0 As Companhias ; a Companhia da
Imaculada - Outras indústrias - A Estréia - Os
bons propósitos - Para a educação da vontade - Uma
citação da máxima importância: como outros educam
e como devemos educar - Recomendações para a prâtica
·

do Sistema Preventivo.

Para incentivar a piedade, a aplicação e a emulação,


além dos meios todos comuns a todo o bom colégio, enri­
queceu D. Bosco as suas casas de outros recursos e
expedientes que as distinguém.
9 primeiro é a alegria promovida com amor e ciosa­
mente consei:vãdà entre os alunos. A prática do aviso :
"dê-se ampla liberdade de pular, correr e gritar" não tem
outros limites além dos imJPostos pela urbanidade e pela
higiene. Lembre-se o que disse o Cônego Vogliotti
quando foi visitar o Seminário Menor de Giaveno que no
seu primeiro ano de fundação fora temporáriamente
confiado a D. Bosco. Ao vêr nos pátios a barra-fixa, o
passo de gigante, as paralelas e outros apetrechos de
ginástica, exclamou : Vê-se bem que D. Bosco passou por
aqui ! - Assim é que ao se entrar num colégio salesiano
durante um recreio é facil perceber-se que se está num
colégio de D. Bosco. O santo não gostava de vêr os
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1 16 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

alunos entretidos em jogos que exigissem demasiada


atenção e proibia que nos pátios houvesse bancos para
se sentar. Eis porqu_e , nos recreios comuns, não per­
mitia o baralho, as damas e o xadrez, dizendo : - O
espírito precisa de descanso ! - Como sábio e educador
convidava os· j ovens aos jogos que exercitavam as fôrças
físicas; unia-se-lhes nos divertimentos e por vêzes os
desafiava na corrida e, com admiração geral, vencia-os
todos.
O fim desta participação não se limitava a fazer que
os alunos, a seu exemplo, dessem preferência aos j ogos
de movimento, mas tendia a ganhar-lhes sempre mais o
coração pois os meninos gostam dos que amam a vida
deles e o grande axioma de D. Bosco era : "fazer-se amar
para se fazer temer" ; e não se j ulgue que os frutos bené­
ficos de tal sistema cessem quando os alunos se afastam
do colégio ! Não ! :í!:les produzem uma estreita identi­
dade de pensamentos e afetos perpetuando-se felizmente.
No sistema de D. Bosco, o colégio reproduz uma vida de
família e os laços familiares são os mais duradouros.
Aos recreios ordinários, acrescentava D. Bosco distra­
ções extraordinárias, tais como, festas frequentes cheias
de alegria e de brilho, longos passeios, aulas e ensaios de
música, ginástica e declamação.
A festa do seu onomástico, que se transportava de
27 de dezembro para 24 de j unho, era um dos mais
eficázes meios de educação. Desde 1847, os internos e
externos já o quiseram comemorar com bréves mas cari­
nhosos discursos e alguns ramalhetes de flores. Em 1849
Carlos Gastini e Felix Reviglio , fizeram um acôrdo se­
creto e pr ivando-se de alimento e guardando zelosamente
umas pequenas gorgetas conseguiram comprar dois co­
rações de prata e na vigília de S. João quando já todos
os alunos dormiam, foram bater à porta de D. Bosco que,
como de costume, ainda estava de pé. Grande foi a
admiração de D. Bosco ao receber o presente e ao ouvir
as palavras de felicitações que aqueles dois filhos lhe diri-

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AINDA SÔBRE O SISTEMA PREVENTIVO 117

giam. No dia seguinte soube-se do fato e não sem um


pouco de invej a estabeleceu-se que no ano seguinte far­
se-ia uma grande festa com um presente oferecido por
todos. Com efeito, em 1850 uma delegação dos mais
antigos subiu ao quarto de D. Bosco e lhe leu uma sauda­
ção apresentando-lhe a dádiva.
Esta festa se renovou por alguns anos com o mesmo
programa sendo que os internos acrescentaram-lhe uma
sessãozinha acadêmica em família ; mas não tardou que
a festa assumisse um aspéto soleníssimo, pelo aparato,
pelos mimos, pela leitura de muitas saudações e pelas
cartas individuais de agradecimento, de promessas, de
pedidos, tôdas elas transbordantes de afeto e conservadas
cuidadosamente por D. Bosco. No dia 24 de j unho de
1855 quis dar uma prova do grande afeto para com seus
filhos : disse-lhes que podiam pedir por escrito ou então
oralmente mas em particular qualquer presente, prome­
tendo-lhes que atenderia a todos na medida do possível.
Era uma nova indústria para os conhecer melhor; e bem
podemos imaginar os pedidos belos e extravagantes de
uns e de outros. E D. Bosco atendeu a todos que fossem
razoaveis tais como livros, roupas, diminuição da pensão,
etc. "Eu, narrava um ex-aluno, tive uma prova da ex­
traordinária bondade do seu coração pois precisav a de
uma batina nova ( era clerigo) e tomando coragem, lha
pedi; e êle de bôa mente mandou comprar o pano e
pagou também o feitio". Domingos Sávio porém, pegou
num pedaço de papel e escreveu só isto : "Peço que salve
minha alma e me faça santo".
Monsenhor João B. Bertagna afirmava : "Difícil seria
enumerar as muitas e santas indústrias que a caridade
de D. Bosco lhe sugeria para ganhar almas a Deus. Fo­
ram tantas e tão sublimes que excedem qualquer elogio".
Por exemplo : todos os domingos, convidava para a
sua mesa os alunos melhores no procedimento, classe por
classe, estudantes e aprendizes e às vêzes os melhores
eleitos por votação individual de todos os companheiros.

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118 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Em sinal de aféto e confiança convidava também


algum para sair em sua companhia e isto o animava a
falar-lhe livremente entretendo-o quase sempre sôbre o
a�sunto da vocação.
Recebia sempre a todos que desej assem lhe falar
sem nunca se queixar da indiscreção com que muitas
vêzes o importunavam. Acolhia a todos com familiari­
dade paterna dando liberdade de fazer perguntas, expôr
humilhações, defender-se mas, exemplar como era no
asseio da própria pessoa, examinava-lhes as roupas, e os
calçados e se não os via em ordem mandava-os ir se lim­
par; no mais, tratava-os como a gente importante, fa­
zendo-os sentar-se no sofá enquanto êle estava sentado
à mesa de trabalho e os escutava com a maior atenção,
ou às vêzes se levantava e passeava com êles de um lado
para outro. Acabada a conversa, acompanhava-os até a
porta, abria-lhes a mesma e saudava-os :
- Sempre amigos !
Varias vêzes por ano, principalmente da Epifania à
Quaresma, proporcionava-lhes algumas representações no
teatrinho considerando-os altamente educativas quando
bem escolhidas. "O teatrinho, escrevia no Regulamento,
pode-se tornar de grande vantagem para os alunos
quando não tenha senão o fim de alegrar, educar e
instruir os meninos, o mais que fôr possível. Para que
se obtenha tal fim, é preciso estabelecer :
"1.0 que a matéria seja adaptada.

2.0 que se exclua tudo o que pode gerar máus hábitos.

A matéria deve ser adaptada aos ouvintes, isto é, ser-


vir de instrução e divertimento para os alunos sem
considerar as pessoas estranhas. Os convidados e ami­
gos que costumam vir, ficarão satisfeitos e contentes se
virem que os alunos gostaram da representação e que
esta era proporcionada às suas mentes.

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AINDA SÔBRE O SISTEMA PREVENTIVO 119

Recorde-se, insistia com frequência, que o fim do


teatrinho é divertir e instruir. Por isso não se devem
admitir aquelas cenas que possam prej udicar o coração
àos meninos e impressionar mal seus delicados sentidos.
D�m-se comédias simples e morais ; cante-se pois o canto
·
diverte e instrue ; declamem-se poesias de bons autores.
Vele-se pela decência das roupas ; cuide-se que os nossos
teatrinhos não se tornem espetáculos públicos. Se con­
vidarmos alguém sejam só os benfeitores e ninguém
mais".
Outra caraterística própria dos colégios salesianos é
a contínua e amorosa vigilância de todos os Superiores
sôbre os alunos. A todos, começando do diretor, D. Bosco
dirigia esta recomendação : "Assisti CtS alunos em qualquer
lugar que se encontrem, colocando-os na impossibilidade
de cometer faltas, especialmente à tarde após o j antar,
para prevenir e impedir a menor de sordem". E D. Bosco
dava o exemplo.
Quando percebia uma rod_inha suspeita onde talvez
se murmurasse ou se falasse de assuntos inconvenientes,
D. Bosco chamava um deles e lhe dizia : "Quero te pedir
um favor : Toma a chave do meu quarto, vai à estante e
traze-me o livro tal"; chamava à outro e o mandava à
portaria "vêr se chegara os hóspede tal " ; a um terceiro
mandava chamar um companheiro, a um quarto pedia
posse vêr se o Prefeito estava na prefeitura, etc. . . Era
engenhosíssimo nessa astúcia e os alunos, felizes por lhe
fazerem um favor, não percebiam a finalidade desses
pedidos.
Outras vêzes dirigia-se aos que o rodeavam e man­
dava-os fazer filas de dois enquanto êle se punha à fren­
te de todos. Muita vez entoava um estribilho em pie­
montês que os meninos repetiam centenas de vêzes ba­
tendo palmas e martelando o pé no chão com tanta
fôrça que até o solp tremia. Dom Bosco ora saía ao ar
livre, ora entrava sob os pórticos, ora virava para a di­
reita, ora para a esquerda, ora subia as escadas, passava

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120 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

por um corredor e descia por outra escada sempre ba­


tendo palmas e cantando em alta voz. Era um divertimen­
to sim, mas um divertimento que fazia o papel de uma
patrulha volante esquadrinhando os cantos.
E esta vigilância se estendia a tudo, a todos e em
todos os momentos. Dava a cada um o respetivo lugar,
no estudo, no dormitório e em toda a parte. Não permi­
tia que os alunos retivessem dinheiro para evitar assim
um sem número de faltas fáceis de se compreender. No
começo do ano, impunha a todos que fizessem uma lista
conscienciosa dos próprios livros e a apresentassem ao
Superior.
- "Esta medida, escrevia no dia 1.0 de novembro de
1884, não será supérflua, já porque se poderá vêr me­
lhor se algum livro fica desconhecido, já porque estas
mesmas listas poderiam, em circunstâncias determina­
das, ser um corpo de delito contra quem maliciosamente
escodesse um mau livro".
"Durante todo o ano, seja mantida tal vigilância,
quer obrigando os alunos a entregar todos os livros no­
vos que viesse a receber, quer observando que por igno­
rância ou maldade os embrulhos destinados aos alunos,
não estejam envolvidos em j ornais de grande perigo pa­
ra as almas ; assim também se devem dar frequentes
buscas no estudo, no dormitório e na aula.
"A diligência usada para êste fim nunca será exces­
siva. O professor e os assistentes observem também o
que se lê na igreja, no recreio, na aula e no estudo. Os
dicionários devem ser eliminados, caso não estejam ex­
purgados, pois para muitos j ovens são o início da mal­
-
dâcfe é das ciladas dos companheiros perversos. Um li­
vro mau é uma peste que contagia a muitos alunos. O
diretor considere-se sumamente feliz quando chega a ti­
rar das mãos de um aluno, qualquer livro mau."
"É bem verdade que os alunos possuidores de tais
livros bem dificilmente obedecem e recorrem a toda a

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AINDA SÕBRE O SISTEMA PREVENTIVO 121

astúcia para os esconder. O diretor deve lutar contra a


avareza, a curiosidade, o medo dos castigos, o respeito
humano e as paixões desenfreadas. Por isso; j ulgo ne­
cessário conquistar o coração dos meninos persuadindo­
os suavemente. Muitas vêzes por ano se deve falar sobre
a má leiturá, do púlpito, nas boas noites, nas aulas e no
pátio mostrando os prejuízos que ela traz persuadindo
os alunos que nada mais desejamos a não ser a salva­

ção da alma de cada um a quem amamos mais do que


qualquer outra coisa, abaixo de Deus. Não se use de rigor
a não ser no caso em que um menino fosse ruina de
outros. Se no decurso do ano, um aluno nos entregasse
um livro máu, não demos importância exterior a tal fa­
to, e ao contrário aceitêmo-lo como um presente muito
precioso ; muito mais porque pode ter sido o confessor
que lhe aconselhou tal coisa e qualquer indagação po­
deria ser imprudente. Sendo descoberto um livro proi­
bido pela Igreja ou imoral, j ogue-se logo no fogo".
"Assim agindo, penso que os máus livros não entra­
l'ão nos nossos colégios, e se entrarem, serão logo des­
truídos."
"Mas, além dos livros máus, é preciso vigiar sobre
certos livros que, embora bons ou indiferentes em si, no
éntanto podem se tornar perigosos por não serem con­
venientes à idade, ao lugar, aos estudos, às inclinações,
às paixões que vão nascendo e à vocação. l!:stes também
devem ser eliminados. Quanto aos livros honestos e ame­
nos, caso os pudéssemos excluir, daí adviria uma grande
vantagem para o aproveitamento nos estudos."
Dom Bosco vigiava atentamente sobre a leitura que
1:e fazia em comum não só no refeitório, no almôço e no
j antar; mas também na igrej a e durante um quarto de
hora no estudo da noite e cinco ou seis minutos no dor­
mitório enquanto os alunos se deitavam. Não se pode
avaliar a utilidade deste meio educativo, se a escolha
dos livros for bem feita : "A respeito da leitura nos dor­
mitórios, escrevia ele na circular citada, quero absoluta-

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122 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

mente afastar quaquer leitura que sirva para divagar,


pois desejo que se adotem livros que produzam um dese­
jo . de se tornar bom naqueles que, enquanto se deitam,
escutam t!l-1 leitura. Será pois muito útil que se usem
para tal leitura livros de argumento sagrado ou ascêtico.
Eu aconselharia as vidas de Comollo, Sávio, Besucco;
livros das Leituras Católicas que tratem de religião, bem
como as vidas de Santos mais atraentes e oportunas -
Estas leituras após a bôa-noite em que os meninos escu­
taram palavras de um coração que só deseja a salvação
eterna de cada um deles, estou certo que farão um bem
maior do que um retiro espiritual."
A terceira característica dos colégios salesianos é a
"bôa-noite", tão recomendad!l por Dom Bosco, seguindo o
exemplo de Mamãe Margarida que dirigiu algumas pa­
lavrinhas ao primeiro órfão aceito por Dom Bosco. Todas
as noites, após as orações, "ele subia no pulpitozinho,
carinhosamente ajudado por todos nós, escreve o Cônego
Jacinto Ballesio, e ao vê-lo aparecer lá em cima com
seu olhar amoroso, paterno e sorridente, e passeá-lo so­
bre nós, ouvia-se naquela grande família um sentimen­
to, uma voz, um doce murmúrio, um longo suspiro de satis­
feita alegria. Depois . um silêncio religioso. Os olhos de
. .

todos estavam fixos em Dom Bosco . . . "


Naquele momento alguns alunos lhe apresentavam
os opjetos achados que eram anunciados e restituídos ao
próprio dono. Depois Dom Bosco começava a falar. O
seu modo proclamava bem alto : "Tudo o que faço, não
são senão meios para vos salvar eternamente e o multo
que suporto de fadigas e aborrecimentos, tudo é por
vossas almas. 6 meus filhos, escutai os ;preceitos do vosso
pai e fazei-o para que vos salveis."
Era de uma variedade admirável ; a sua palavra nun­
ca aborrecia. Tinha recolhido um tesouro inexaurivel
de fatos e sentenças tirando-os da Sagrada Escritura,
da História Eclesiástica, da história profana dos povos
antigos e modernos, das vidas de santos, dos filósofos,

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AINDA SÔBRE O SISTEMA PREVENTIVO 123

dos escritores célebres, das obras do Mestre das Senten­


ças, de João Gerson, dos Bolandistas e de muitos outros
autores ; e tudo expunha admiravelmente da forma mais
adaptada e oportuna. Era sempre de uma oportunidade e
clareza inimitáveis. Num ano ( 1864) em nove noites suge­
riu nove meios para se sairem bem nos estudos, ei-los :
1 .0 O temor de Deus : Initium sapientire timor Do­
mini. - 2.0 Não perder nunca a menor parcela de tem­
po. - 3.0 Estudar bem todos os dias as lições marcadas ;
todos os dias, pois se hoje o deixas de fazer, amanhã te­
rás fadiga dobrada. - 4.o Comer só na hora marcada.
De manhã e na merenda, comei pouco. Quem vai para
a autla ou para o estudo com o estômago muito cheio,
sente logo a cabeça pesada e nada faz. - 5.0 A compa­
nhia dos alunos diligentes; diz o sábio : se queres te tor­
nar sábio, frequenta os sábios. - 6.0 Recr�io inteiro mas
não de forma exagerada; no recreio ninguem fique es­
tudando. - 7.0 vencer as dificuldades que se apresentam
e não passar por cima delas, dizendo : Não compreendo isto !
Não, é preciso que não vades adeante até solucionar a
dificuldade. - 8.0 Ocupar-se unicamente de coisas re­
ferentes ao próprio estudo : Pluribus intentus, minor est
ad singula sensus. - 9.0 O meio principal : Recorrer à
proteção de Maria SS. que é a séde da sabedoria ; re­
petir Sedes sapientic:e, ora pro nobis.
Narrava também acontecimentos particulares ou pú­
blicos, acompanhando-os de uma reflexão adaptada à
necessidade e aproveitamento dos alunos, ou dava ordens
para o dia seguinte ou recomendava uma prática de pie­
dade, ou relembrava um benfeitor falecido e todas as
vêzes terminava com a saudação : "Boa-noite" a que os
alunos retrucavam com um cordeal e fragoroso "Obri­
gado."
Para compreender o que era a boa-noite nos lábios
de Dom Bosco, recordemos a facilidade e a graça que
ele tinha de tirar consequencias morais de qualquer ar­
gumento, como bem o vemos nos seus escritos. Era este

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124 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

também um fruto do :pedido que fizera na sua primeira


Missa.
Na História da Italia, por exemplo, se encontram
muitas e sábias reflexões destinadas a educar os alunos
no amor . à virtude e à piedade e no horror ao pecado.
Eis algumas :
"A soberba é a ruína dos homens. - O ócio e os
máus atos deshonram os homens e os fazem cair no des­
prezo dos bons. - É digno de desprezo quem pelos seus
vícios é causa da própria miséria. - Devemos fugir da
colera e do espírito de vingança porque estas duas pai­
xões muitas vêzes nos induzem a tal abismo que não
podemos voltar atrás senão com grande prejuízo. - Os
maiores homens caem por vêzes em grandes faltas, se
não sabem frear o ímpeto da sua raiva. - Detestai a má
fé, pois o hom em honesto, quando empenha a própria
palavra em coisas j ustas, deve sustentá-la a todo o cus­
to. - Só a religião católica, por ser divina, pode erguer
o homem de forma a vencer os máus hábitos, a luxúria
e a ambição e a praticar a temperança, a honestidade
e a modéstia. - As honras mundanas não dão a verda­
deira felicidade. Somente quando pratica a virtude é que
o homem se pode chamar feliz. - Muitas pessoas pare­
cem felizes e no entanto têm máguas secretas que, à
guisa de espadas penetrantes , atravessam o coração dos
que parecem os mais felizes. - Quão transitória é a
glória do mundo ! Muitas vezes acontece que aqueles que
hoje nos hosanam, amanhã peçam em gritos a nossa
morte. - Os maus sempre são castigados pelo mal que
fazem e tanto mais rigorosamente quanto mais ricos e
poderosos. - Enquanto os máus são objeto da execra­
ção dos pósteros, os bons se conservam em grata recor­
dação entre louvores e bençãos. - O homem virtuoso é
estimado por todos e até pelos próprios inimigos. - Os
homens devem estimar a ciência e a virtude e procurar
ao mesmo tempo ocupar-se nas coisas que possam ser

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AINDA SOBRE O SISTEMA PREVENTIVO 125

úteis ao próximo. - Enquanto é muito perigosa a mis­


tura dos bons com os máus, os bons que estej am firmes
na moralidade podem espalhar bons princípios de vir­
tude nos corações rústicos e desordenados, causando
gra.nde bem à sociedade. - Um trabalho assíduo torna
os homens coraj osos e fortes. - Feliz de quem tem um
amigo e sabe aproveitar seus conselhos. - A verdadeira
amizade não pode durar se não fôr fundada sobre a
virtude. - Ai de quem despreza os conselhos dos sábios."
Tais l;entenças não passam de uma amostra das
muitas que se encontram nas 150 páginas.
Quarta caraterística das casas salesianas são as Com­
panhias, instituídas por êle mesmo com regulamentos
próprios. Eis o que escrevia em 12 de j aneiro de 1876 :
"Em todas as casas, e especialmente no Oratório de
São Francisco de Sales, cada um tenha a maior solici­
tude em promover as pequenas Associações quais sejam,
o pequeno cléro, a companhia do S.S. Sacramento, de

São Luiz, de N. S. Auxiliadora e da Imaculada Concei­


ção. Ninguém receie recomendá-las, favorecê-las, expon­
do a sua origem, o seu fim, as indulgências e outras van­
tagens que delas derivam. Creio que tais associações se
possam chamar : A chave da piedade, o reservatório da
moralidade, o sustento das vocações eclesiásticas e re­
ligiosas."
Na verdade, são um meio educativo dos mais pode­
rosos. Na conferência que fazia aos sócios, Dom Bosco
lhes dava como uma palavra de ordem e toda a grande
massa dos alunos, sem o perceber era arrastada pelo seu
bom exemplo. As suas predileções eram pela Companhia
da Imaculada, composta dos de mais força de carater
e a estes, além do dever do bom exemplo, confiava a
tarefa de assistir os companheiros menos exemplares.
A cada sócio confiava um aluno com a ordem de aproxi­
mar-se dele com frequência, nos passeios e nos jogos
para torná-lo menos prej udicial e dizer-lhe uma boa
palavra.

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126 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

- Cada um, dizia frequentemente, quando for con­


fessar-se procure levar consigo o aluno que lhe fol con­
fiado. Diga-lhe por exemplo : Quereria ir me confessar,
mas , não gosto de ir sozinho ; acompanha-me, por favor."
Na maior :parte das vezes ele irá e assim se porá na
ocasião de falar com o confessor, do qual receberá ao
menos alguns avisos que o aj udarão. - "Dom Bosco
considerava esta companhia, escreve o Padre João Bo­
netti, como a sua guarda de honra e assim como quan­
do a guarda imperial está firme e resistente, o impera­
dor se acha seguro no trono, assim Dom Bosco esperava
desbaratar os inimigos das almas e conservar no colégio
o trono de Nosso Senhor por meio dos sócios desta Com­
panhia.
Durante algum tempo, empregou D. Bosco também
um outro meio que lhe custava grande fadiga e era o
de escrever no fim do. ano para cada um dos j ovens um
bilhete com um aviso, um conselho ou um encoraj amento.
Escreveu também em outras ocasiões para todos os
alunos dos Colégios de Mirabello e de Lanzo, e do Oratório
de Valdocco, quando eram apenas quase mil e os bilhetes
eram tão adaptados à necessidade de cada um, que pare­
ciam inspirados. Crescendo o número dos alunos, limi­
tou-se a dirigir um pensamento para cada categoria dos
seus dependentes. Eis o que escrevia em Dezembro de
1879 :
- "Lembrança de D. Bosco aos Salesianos e seus
alunos : Votos de felicidades para 1880.
1 .0 A todos indistintamente : Dar bom exemplo nas
palavras e ações ; conservar afastados os hábitos, mesmo
indiferentes, em coisas desnecessárias.
2.0 Aos Diretores : A paciência de Jó.
3.0 Aos Superiores : A doçura de S. Francisco de
Sales no tratar os outros .
4.0 Aos alunos : Ocupar bem o tempo : nullum tem­
poria pretium.

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AINDA SÔBRE O SISTEMA PREVENTIVO 127

5.0 Aos Salesianos : Exata observância das suas


regras.
Os Superiores ficam encarregados de anunciar e ex­
plicar até varias vêzes êstes votos augurais. Deus vos
abeRçoe a todos ; agradecimentos especiais aos que me
escreveram · cartas de felicitações".
Como pai amantíssimo, convidava-os a mandar-lhe
os bons propósitos tomados. A maioria aceitava o con­
vite e assim o ato de vontade dicidida, a reflexão atenta
sôbre o que prometiam, o exame do passado e do pre­
sente, incitavam-nos a uma reforma verdadeira. Estas
páginas eram entregues a D. Bosco que as lia em tempo
e lugar oportuno relembrava particularmente os propó­
sitos que cada um tomara, aconselhava-os a mantê-los e
admoestava-os quando faltavam aos mesmos. Quem não
se comove com êste interêsse intimo do bem de cada um?
Quem não vê com a fantasia os alunos de pena em
punho, olhando para o alto antes de escrever tais pro­
pósito? E D. Bosco com o maior cuidado guardava os
mais importantes como lembrança salutar para o futuro.
Quantas vêzes, não se recordando mais das promessas
que tinham feito a Deus e inclinando-se já para o máu
caminho, alguns deles viam D. Bosco apresentar-lhes
aquele bilhete que docemente os censurava pela infideli­
dade. Quantas outras vêzes, alguns que já tinham saldo
do Oratório havia muitos anos e nunca mais pensavam
no tempo feliz que ai tinham passado, no meio dos ne­
gócios, da superficialidade e quiçá de uma vida libertina,
viram chegar pelo corrêio o próprio bilhete, lembrança
querida dos anos da graça divina e estímulo potente a
mudar de vida !
Para D. Bosco, os j ovens eram um depósito sagrado
que Deus lhe confiara : "Deus nos mandou, Deus nos
manda, Deus nos mandará muitos alunos . . . Cuide­
mos deles ! Oh ! Quantos outros meninos nos há de
mandar Deus para o futuro, se soubermos corresponder
solícito às suas graças ! Não poupemos sacrifícios para

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128 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

educá-los e salvá-los ! E todos os seus cuidados eram


para fazer deles, homens de consciência e de vontade.
Os pequenos atos de virtudes que lhes pedia de quando
em quando como nos dias de maio e nas novenas em pre­
paração às festas mais solenes, tudo se dirigia não só
para impre�ná-los do sentimento religioso, mas sobre­
tudo para completa formação do seu caráter.
li:le sustentava que "a natureza tenra e delicada faz
o menino susceptível de receber qualquer diretiva" e "que
os bons hábitos . . . facilmente adquiridos na infância,
fortificados depois por um exercício contínuo e quase
inadvertido, se tornam como uma segunda natureza e são
para o menino uma garantia poderosa e o auxílio mais
seguro para a maturidade". Assim se lê na vida do j ovem
Luiz Fleuri Antonio Colle ( 1 ) .
D. Bosco queria que a alma dos meninos fosse auxi­
liada "em se livrar aos poucos da névoa das impressões
dos sentidos" e mediante "uma sábia mistura de doçura
e de firmeza" fôsse levada " . . . a se tornar senhora de si
própria aprendendo ao mesmo tempo a se conhecer e a
adquirir a capacidade de agir livremente". Ai daqueles
que se esforçam "para desenvolver a faculdade cognosci­
tiva e a sensitiva que um . êrro deplorável, mas infeliz­
mente muito comum, troca com a faculdade de amar" e
descuidam por completo "a faculdade soberana, a única
fonte do amor puro e verdadeiro, de que a sensibilidade
não é mais do que uma imagem enganadora, a faculdade
chamada vontade. Se por vêzes se ocupam desta pobre
vontade, não é para a regular e fortificar com o exercício
fepetido de pequenos atos de virtude, pedidos à afeição
do menino e facilmente obtidos, graças às boas disposi­
ções do seu coração. Não; com o pretexto de domar uma
natureza rebelde, se esforçam ao contrário para submeter

( 1 ) Nos citações abaixo é fócil perceber que o estilo não é de Dom


Bosco. De foto c redação do opúsculo sôbre Luiz F. Colle foi entregue o
outro solesicno, embora reflito o pensamento pedagógico de Dom Bosco.
( N . do T.).

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AINDA SÔBRE O SISTEMA PREVENTIVO 1 29

a vontade com o uso de meios violentos e não conseguem

senão destrui-la ao invés de corrigi-la.

"Com êste êrro fatal perturbam a harmonia que deve


presidir ao desenvolvimento paralelo das potências da
alma e pervertem o espírito delicadíssimo dos que são
confiados •às suas mãos inexperientes. A inteligência e
a sensibilidade, superexcitadas por esta cultura intensiva,
atraem para si tôdas as potências da alma, absorvem­
lhe a vida inteira e chegam logo a adquirir uma vivaci­
dade extrema, unida à mais sublime delicadeza. O menino
é pronto em suas idéias ; sua imaginação é ardente e
móvel, a sua memória é fiel e retrata sem esfôrço e com
escrupulosa exatidão os pormenores mais insignificantes;
a sua sensibilidade é o encanto dos que dele se avizinham.

"Mas tôdas estas brilhantes qualidades escondem


com dificuldade, a mais vergonhosa insuficiencia, a mais
inacreditável fraqueza. O menino (e mais tarde quiçá,
u j ovem) arrastado pela impetuosidade de sua imagina­

ção, não sabe nem pensar, nem agir com ordem ; faltam­
lhe inteiramente o bom senso, o tato, a medida e o espi­
rito prático. Não procureis nele nem ordem, nem método.
Mistura e confunde tudo tanto no que diz como nq que
fala. l!:le vos desnorteia com saltos bruscos e com
estranhas incoerências. Ontem sustentava com entu­
siasmo uma verdade, amanhã, com a mesma invencível
convicção sustentará j ustamente o contrário. A sua
razão, obnubilada pela fraqueza, não lhe permite pensar
seriamente por si mesmo. Recebe dos outros os j uizos e
os faz seus desde que seduzam a sua imaginação ou
agradem a· sua sensibilidade ; a mesma leviandade faz
com que daí a pouco abandone êsses juizos, pois não são
mais do seu agrado visto que outras teorias mais bri­
lhantes fascinaram já êsse espírito voluvel. Agitado
demais para poder examinar com clareza ·a sua alma, só
lhe conhece a superfície, isto é, os sentimentos passa­
geiros . . . .

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130 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

"Em vão podem chover sôbre esta alma as graças mais


preciosas; ela não as retem. A sua consciência é um mar
borrascoso, na efervescência das correntes mais antago­
nicas. Escravo do seu humor, o infeliz vê tudo pelo
pristtla da paixão que o domina naquele instante. Quando
se trata de · decidir se deve ou não fazer uma ação im­
portante, em vez de considerar a ação em si mesma exa­
minando os motivos, as circunstâncias, o fim, êle só apela
para o único oráculo que aceita, isto é, para a sua tola
sensibilidade . . .
" . . . Nada espereis dele; capaz dos surtos mais gene­
rosos, é também vítima das mais inconcebíveis fraquezas.
A violência e a teimosia serão as únicas manifestações
de uma vontade fraca e vereis que na prática faz tudo
pelo avêsso.
"Mas, talvez ao menos as qualidades do coração hão
de compensar êstes defeitos todos ; e a sensibilidade, tão
cultivada nos verdes anos terá tornado êste jovem cora­
ção o mais terno e amoroso de todos? Ai de mim ! Vamos
achar aqui o mesmo vácuo descoberto nas outras potên­
cias. O menino se afeiçoa facilmente mas também está
pronto para esquecer. O seu amor nada tem de estável.
Sem ·que sej a positivamente mau, não tem outra lei a
não ser o seu capricho . . . Impetuosidade e inconstância
eis as linhas dominantes deste caráter. Tínhamos que­
rido fazer dele um homem e não se poude formar senão
um ser inteligente e amoroso, mas fraco e contraditório ;
um animal aperfeiçoado.
"Ninguém ache exagerado êste retrato ! Ah ! Basta
girarmos os olhos em derredor e quantas vêzes vimos e
vemos destas naturezas brilhantes mas incompletas às
quais tal retrato quadra perfeitamente.
"Vamos ao fundo das coisas e reconheceremos que
êste vácuo lastimável é fruto da primeira educação.
"Por tôda a parte se repete com terror que é geral o
enfraquecimento do caráter ! Mas a causa dêste enfra­
quecimento não terá sido em grande parte o esqueci-

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AINDA SÔBRE O SISTEMA PREVENTIVO 131

mento e até mesmo o desprezo dos mais elementares


princípios da educação cristã? Porque tal desprezo ? De
onde vem esta educação falsa e incompleta? E' sem
dúvida fruto da ignorância, mas é também e acima de
tudo, egoísmo e ternura mal entendida. "Procura-se
gozar do menino ao invés de se sacrificar por êle. O que
esta afeição, sincera sim, mas limitada e i.mprevidente
no seu egoísmo inconsciente pede a êste menino tão tema
c cegamente amado, é antes de mais nada um triunfo
do amor prqprio, uma satisfação para a sua sensibili­
dade. Gosta-se de patentear por tôda a parte a preco­
cidade do pequeno prodígio. Bebem-se com sofreguidão
os elogios que lhe são feitos, louva-se o petiz na sua
mesma presença, sem perceber os rápidos progressos da
sua vaidade recém-nascida que logo se transformará em
presunção e em orgulho insuportáveis. Acha-se prazer
nas manifestações afetuosas do menino. Têm-se dezenas
de olhos :para contemplar-lhe os encantos que vão nele
surgindo. Recebem-se e provocam-se as suas carícias
como faríamos a um cachorrinho e o tratamos como a
um animalzinho castigando-o quando êle se rebela re­
cusando-se a ficar quieto. Quer-se apenas que sej a
agradável, proceda bem , sej a instruido e nada mais".
E ao invés, como se deve educar? E' preciso desde
os primeiros anos acostumar o menino "a dar os primei­
ros passos no caminho da santidade, que tem por bases
fundamentais a abnegação e a generosidade. Para
comunicar-lhe êste espírito de sacrifício", é preciso
"cultivar principalmente a razão e a vontade da criança,
sem contudo descurar da outra parte nenhuma das suas
faculdades, nenhuma reserva da sua natureza . . . forti­
ficar-lhe a vontade, com tomá-la dócil e. regulada se­
gundo uma sábia disciplina . . . formar-lhe a consciência
com lições simples e exercícios atraentes . . . desenvolver
nele a paixão do bem, o ódio ao mal, e ensinar-lhe a de­
finição de um e de outro na correspondência ou na falta
de conformidade à Vontade Divina ; de modo que o bem

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132 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

é obedecer a Deus e o mal é desobedecer-Lhe . . . E dêste


modo resumir tôda a prática da direção moral no único
princípio de um Deus que se deve amar sôbre tôdas as
coisas e em tôdas as coisas : e tôdas as coisas de acôrdo
com 1:Íe, nele . e por Êle . .
"

Mas também nisto é preciso fugir de um grande de­


feito. "Muito frequentemente a educação cristã não
corresponde à sua finalidade, inspirando aos meninos um
temor exagerado da presença de Deus. 1:ste Deus de bon­
dade é-lhes pintado como um espantalho, capaz apenas
de dominá-los pelo terror. Mas o coração dos meninos
se afasta facilmente do que os atemoriza e assim o amor
de Deus diminui e, no seu modo de ver, o terror e a
desconfiança tomam o lugar da exuberante confiança e
do abandono alegre e filial . . .
Eis, nas suas linhas genuinas, os cristérios educativos
de D. Bosco. Não nos resta senão apontar as suas vivas
recomendações que tais critérios fossem seguidos.
No dia 29 de j ulho de 1880 dizia a uma falange de
ex-alunos, quase todos sacerdotes : "Para ter bom resul­
tado com os alunos, tende grande empenho em usar de
boas maneiras para com êles ; fazei que vos amem e não
que vos temam ; dai-lhes a entender e persuadí-os que
desejais a salvação da alma de cada um ; corrigi com
paciência e caridade os seus defeitos ; sobretudo não ba­
tais neles ; em resumo : empenhai-vos em que êles ao vos
vêr, corram a rodear-vos e não vos evitem como acontece
em muitas localidades e no mais das vêzes com razão,
pois temem as pancadas. Talvez para alguns vos pa­
reçam inuteis vossas fadigas e disperdiçado o vosso suór.
Pode ser que atualmente assim aconteça mas não será
assim futuramente · pois mesmo os mais indóceis hão de
vos agradecer mais tard� As boas máximas de que opor­
tuna e importunamente os haveis impregnado, as provas
de benevolência que lhe tendes dispensado, tudo ficará
impresso na mente e no coração de todos êles. Virá o
tempo em que a boa semente germinará, florescerá e

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AINDA SÔBRE O SISTEMA PREVENTIVO 133

frutificará". E, após ter narrado o fato de um militar


que em 1847, 1848 e 1849 fora aluno do Oratório e muito
traquinas, vindo visitá-lo após 30 anos acabara por cair
de j oelhos e fazer sua confissão, D. Bosco continuou :
"Antes de me despedir dele, perguntei-lhe a razão que
o levara a se confessar ; sabeis o que me respondeu?
Ei-lo : Ao vêr D. Bosco, lembrei-me das indústrias que êle
empregava para atrair-me ao bem, veio-me a lembrança
das palavrinhas que me dizia ao ouvido, do desejo que
manifestava de que eu me fosse confessar, tudo isso me
veio à memória e me fez cair de j oelhos. D. Bosco con­
tinuou : Vêde, meus amigos ; se um soldado entre os
muitos perigos dê sua profissão, entre as tantas más con­
versas que terá escutado, todavia conserva a lembrança
das verdades religiosas aprendidas na meninice, QQfi!Ue
desanimar e acovardar-nos quando no trato com os j ovens
não fossemos correspondidos logo? Semeemos e espere­
mos como o agricultor que a terra produza e que vamos
colher. Mas, eu vos repito, nunca vos esqueçais da doçura
no trato ; por meio do amor , roubai para Deus o coração
de vossos alunos ; recordai sempre a maxima de S. Fran­
cisco de Sales : Mais moscas se apanham com uma gota
de mel que com um barril de vinagre".
Em 1885, aproximando-se o tempo dos Retiros Espi­
rituais, escrevia a D. Costamagna, Inspetor dos Salesianos
da Argentina :
"Quereria fazer a todos um sermão, ou melhor, uma
conferência sôbre o espírito salesiano que deve animar e
guiar tôdas as nossas ações e palavras. O sistema pre­
ventivo seja nosso apanágio. Nada de castigos penosos,
nada de palavras humilhantes ou de repreensões severas
na presença de outros. Nas aulas sôe a palavra : doçura,
carJdade e paciência. Nem sequer uma palavra mordaz,
uma bofetada forte ou leve. Usem-se os castigos nega­
tivos e sempre de modo a tornar mais amigos do que
antes aquêles a quem avisamos. A doçura no falar, no
agir e no avisar, ganha tudo e todos".

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134: O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Até a morte, esta continuou a ser a sua recomendação.


Para coroar o que até agora dissemos, acrescente­
mos alguns pensamentos extraídos de uma longa carta
que em 1884, estando em Roma, escreveu Dom Bosco aos
salesianos :
- Não . basta que os alunos sej am amados mas é
preciso que êles saibam que os amamos. É preciso que se­
Jam amados também no que lhes agrada participando
nós de suas inclinações infantís, se quisermos que come­
cem a vêr o nosso amor também no que lhes agrada me­
nos tal como na disciplina, e no esforço de se mortifica­
rem, aprendendo a fazer tudo isto com amor.
Ai de nós se no pátio não se brincar ! Daí provêm
a frieza em se aproximarem dos Sacramentos, a negligên­
cia na piedade e nos estudos, o estarem de má · vontade
num lugar onde a Divina Providência lhes concede todos
os bens para o corpo, para a alma e para a inteligência.
Daqui o fato de não se corresponder à própria vocação ;
daqui as ingratidões para com os Superiores, daqui os se­
gr.êdos e as murmurações com todas as suas deploráveis
consequencias.
Descuidando o "menos", se perde o "mais" e este
"mais" são os cansaços. É preciso amar o que agrada aos
alunos e os alunos amarão o que é do agrado dos
Superiores.
Infelizes de nós se os superiores não são mais con­
siderados como pais, irmãos e amigos e por isso são te­
midos e pouco amados. Ai de nós se a frieza dos Regu­
lamento substituísse a caridade. Pobres de nós se em vez
do sistema de prevenir com a vigilância e o amor a to­
das as desordens, se estabelecesse aos poucos os sistema
menos penoso e mais cômodo para quem manda, de de­
cretar leis que se sustentam com os catigos, acenqem
ódios e causam desgostos ! E isto acontece necessaria­
mente, se falta a familiaridade.
Familiaridade com os meninos, especialmente no re­
creio. Sem familiaridade não se mostra afeto e sem êste,

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AINDA SÔBRE O SISTEMA PREVENTIVO 135

não pode haver confiança. Quem quer ser amado é pre­


ciso que prove que ama. Jesus se faz pequeno com os
pequenos e suj eitou-se às nossas enfermidades ! Eis o
mestre da familiaridade ! Quando se vê o professor só
na -cátedra, êle é apenas professor e nada mais ; mas se
vai ao recteio com os meninos, transforma-se em irmão.
Se um padre prega no púlpito, dir-se-á que faz apenas
o seu dever; mas se diz uma palavra no pátio, é a pala­
vra de alguem que nos ama. Quantas conversões não cau­
saram algumas palavras ditas de improviso ao ouvido de
um menino, em pleno jogo ! . . .
Quem sabe que é amado, ama; e quem é amado, tu­
do obtem, especialmente dos meninos. Os corações se lhe
abrem, dão-lhe a vêr as próprias necessidades e revelam
es próprios defeitos. E este amor faz com que os Supe­
riores suportem as fadigas, os aborrecimentos, as ingra­
tidões, os incômodos, as faltas, as negligências dos alu­
nos . . .

A carta terminava com estas palavras textuaís :

"Sabeis o que desej a de vós este pobre velho que


consumiu a vida pelos seus queridos alunos? . . . Preciso
que me consoleis, dando-me a esperança e a promessa
de que fareis tudo o que eu desejo . . ."

"A caridade dos que mandam, a caridade dos que


devem obedecer, faça reinar entre nós o espírito de São
Francisco de Sales. ó meus caros filhos, aproxima-se o
tempo em que terei de me separar de vós e partir para
minha eternidade . .
( Neste ponto, Dom Bosco suspendeu o ditado, seus
olhos se encheram de lágrimas não de tristeza mas de
inefável ternura que lhe transbordava na voz e no olhar.
Depois de alguns instantes, continuou) :

- Por isso eu desejo deixar-vos, meus padres, clérigos,


e caríssimos j ovens, no caminho de Nosso Senhor como
Êle mesmo vos deseja . . . "

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136 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Dom Bosco queria que educadores e educandos per­


corressem j untos a mesma estrada, a estrada da carida­
de ! Eis porque disse que o seu sistema, era o sistema
preventivo, a caridade !

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CAPiTULO IX

Escritor e Conselheiro

Necessidade de levantar um dique contra a má


imprensa - Como preparava suas obras - Sua fina­
lidade - Seu esfôrço para se fazer compreender por
todos - Os revisores dos seus livros - Lê a Mamãe
Margarida a "Hiswria Eclesiástica" - Louvores que
receberam algwnas obras - Como atendia a esta missão
- Onde deveria falar mal, cala; onde podia /alar bem,
não deixava de o fazer - Alguns exercícios de aritmé­
tica - Seu amor pela juventude - Zêlo pela difusão
dos bons livros - O bem que um bom livro faz - As
audiencias : outra ocupação cotidiana - Acolhe com
igual caridade, tôda a classe de pessoas - Nunca
/alta a boa palavra - Quando preciso não faltava a
repreensão - Com uma única exceção, não permitia
que ninguém saisse sem conforto e consolo_

Em j aneiro de 1861, no fim do oitavo ano das Lei­


turas Católicas, publicação periódica pela qual Dom Bos­
co fez um bem imenso em toda a Italia e também no es­
trangeiro, imitado em muitos lugares pelos seus zelosos
fil-hos, o santo escrevia aos assinantes das Leituras :
"Esperamos que as nossas fadigas e os nossos sacri­
fícios não tenham sido inúteis e que ao contrário, te­
nham beneficiado a muitos e evitado algum maL
Ninguem ignora como os inimigos do catolicismo e
da sociedade, se tenham empenhado com todos os meios
a espalhar impressos imorais, anticatólicos e feitos de

proposito para estragar o coração e corromper a inteli­


gência e pela estatística feita, os livros e opúsculos que
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138 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

se publicaram e espalharam nos últimos dez anos só na


Italia, chegam a 30 milhões ! Oh ! Se não tivesse havido
um antídoto nestes tempos em que se tem a febre da
leitura, só Deus sabe que terrível chaga não teria devas ­
'
tado a sociedade, principalmente nas pequenas cidades !
Eis porque não achamos já ter feito o suficiente pois dia
a. dia mais nos convencemos da imperiosa necessidade
de duplicar os esforços e os sacrifícios para impedir que
a imoralidade avance como gigante no nosso melo . . . "
E Dom Bosco manteve a palavra. Pode parecer exa­
gero mas é a realidade ! São quase uma centena as pu­
blicações deste homem, não obstante devesse ele traba­
lhar o dia todo para conseguir pão e teto :para seus fi­
lhos. As continuas e abundantes leituras de obras histó­
ricas e literárias, feitas nos seus anos de estudante, fo­
ram a sua preparação, graças à sua memória prodigio­
sa. Jovem sacerdote, encheu muitos cadernos c.om notas
diiigentemente recolhidas sobre assuntos que se referiam
à defesa da Religião, da Igreja Católica e do Papado.
Mas o desenvolvimento e a revisão de suas obras eram
feitos em retalhos de tempo, ou à noite ou nas suas via­
gens de trem ou de carruagem. Em toda a parte traba­
lhava tranquilo como se estivesse no escritório. Nas es­
tações não deixava de ler e escrever como se estivesse
num gabinete de leitura. Não perdia um minuto de tempo
e assim, quase sem o perceber, logo se achava no fim de
um opúsculo ou de um volume, com sua grande satis­
fação.
Aconteceu que, aproximando-se por vezes o dia em
que devia ser publicado um opúsculo das Leitura Cató­
licas o tipógrafo insistia para receber o manuscrito e
Dom Bosco ainda não redigira uma linha sequer, à noite
sentava-se à mesinha de trabalho, escrevia a noite in­
teira e no dia seguinte ao meio dia entregava ao tipó­
grafo o opúsculo, completo ou quase terminado.
Posto que sentisse em si a graça e o poder desta mis­
são, nunca se arvorou em escritor e não teve j amais ou-

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ESCRITOR E CONSELHEIRO 139

tra finalidade senão a da glória de Deus e da salvação


das almas.
Na sua humildade, ao invés de aspirar à fama de es­
critor apurado empenhou-se ao contrário na acquisição
de estilo bem simples. Desejava que compreendessem as
verdades da religião até os operários mais rudes e as
velhinhas do povo. Para isto, após ter escrito qualquer
coisa, antes de mandar imprimir, queria estar certo de
que o que escrevera podia ser entendido até pelas pes­
soas pouco instruídas. Retocava, corrigia, modificava, re­
fazia páginas inteiras uma e mais vezes até que esti­
vesse certo de que todos o compreendessem. Observem-se
as suas obras, p. ex. : o cristão guiado à virtude e à boa
educação segundo o espírito de São Vicente de Paulo e
se verá como o seu estilo ainda era cheio de arte retó­
rica, efeito da instrução que recebera.
O primeiro revisor dos seus livros foi o porteiro do
Pensionato Eclesiástico ; em seguida fazia-os lêr por ru­
des operários que lhe deviam repetir o que tinham com­
preendido ou então lia-os para a sua mãe.
Antes de publicar a segunda edição da História Ecle­
siástica, que teve tão larga aceitação mesmo nas esco­
las, leu-a da primeira à última linha para Mamãe Mar­
garida, a qual entendeu por exemplo que o imperador
Constantino tinha perseguido os cristãos, pelo que Dom
Bosco retocou esse fato até que sua mãe o tivesse com­
preendido. Lendo-lhe depois um panegírico de São Pedro
em que o grande apóstolo era chamado com o título de
grande clavígero, a mãe o interrompeu para lhe per­
guntar : onde fica essa povoação? Dom Bosco compre­
endeu que a palavra . era muito difícil e a tirou.
- Recordo-me, atesta o Padre Dr. Francisco Cerruti
ao Padre Rua, recordo-me com certa comoção dos belos
anos em que o nosso Pai tão querido, contava-nos com
a sua rara ingenuidade o esforço ardente com que se em­
penhara na idade j uvenil para adquirir uma forma ora­
tória particularmente florida, um período redondo, be-

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140 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

leza nas palavras, etc., e quantos esforços não deveu fa­


zer mais tarde para se livrar do estilo empolado e ad­
quirir ao invés um outro, simples, claro e singêlo."
Este amor à simplicidade foi o que deu aos seus es­
critos uam grande difusão. Não se pode imaginar o en­
tusiasmo eom que várias de suas obras eram lidas e
acolhidas até na Toscana e utilizadas depois como livros
de texto. O professor Pera, Inspetor Escolar naquelas
províncias, vindo visitá-lo no Oratório, dizia-lhe : "Para
fazer que nossos alunos aprendam um italiano bom e
castiço, sirvo-me das suas obras : Domingos Sávio, Mi­
guel Magone e Luiz Comollo ; e nas escolas costumo di­
zer aos alunos : Aqui neste livrinhos de Dom Bosco po­
deis aprender um italiano simples e bom.
Muito maior porém foi o benefício que tais leituras
prestaram às almas e esta era a sua finalidade. Dom
Bosco escrevia com um recolhimento tão grande como se
estivesse mergulhado na oração. Começava sempre invo­
cando o Espírito Santo e acabava com uma ação de gra­
ças, de modo que todo este imenso trabalho que realizou
mostrava com evidência o seu zêlo pelo bem do próximo
e pela glória de Deus. Todas as suas obras - e muitas
outras vindas à luz por sua ordem, impulso ou conselho -
obtiveram copiosos frutos de virtude e de fé. Nem podia
ser diferentemente tal o carinho com que delas cuidava.
Um dia Carlos Tomatis o encontrou com as provas da
sua História Eclesiástica e lhe perguntou como fazia
quando encontrava pontos difíceis para tratar, com o por
exemplo quando devia falar mal de um grande persona­
gem . . .
Respondeu o santo : - Onde posso falar bem, falo ;
onde deveria falar mal, eu calo. - E a verdade ? - Não
escrevo para doutos, mas especialmente para o povo e
par a os meninos. Se com a narração de um fato pouco
edilicante e discutido, eu perturbasse a fé numa alma
simples não seria o mesmo que induzi-la ao erro? Se a
um espírito rústico, eu apresento o defeito de um mem-

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ESCRITOR E CONSELHEIRO 141

bro duma Congregação, não é verdade que desperto dú­


vidas capazes de fazê-lo sentir aversão pela comunidade
toda? Isto não é um erro? Só quem tem sob os olhos
toda a história de dois mil anos pode ver que a culpa
dos- homens até mais eminentes, não ofusca absolutamen­
te a santidade da Igrej a ; e ao contrário, tais faltas são
uma :prova da sua divindade pois ela se mantem sempre
invencível porque o braço de Deus a sustentou e sustenta.
Lembra-te além disso, que as impressões desfavoráveis
que recebemos numa idade tenra por imprudência no
falar de alguém, trazem lastimáveis consequências para
a fé e para os bons costumes.

Não deixava ao contrário de insinuar um bom pen­


samento, sempre que o podia fazer. Como tinha escrú­
pulos de escrever uma carta sem enxertar nela um pen­
i!amento religioso, assim também tôdas as suas obras
tinham algo de instrutivo e edificante. O que há mais
edificante do que o seu almanaque : ll galantuomo? Até
na sua Aritmética e no seu Sistema métrico escritos pa­
ra aj udar aos filhos do povo, não falta uma boa insinua­
ção: "Um filho gasta semanalmente dois francos de ci­
iarros e cinco no bilhar ; quanto teria economizado num
ano em que se abstivesse de tais vícios? - Um senhor
desejando dispôr bem da sua fortuna, faz testamento e
deixa cinco mil liras para a restauração de uma igrej a,
680 francos e 80 centésimos :para a educação d a juven­
tude, e 434 francos e 32 centésimos para �s pobres. Qual
o total que deixou? - Um pai fazendo economias, pou­
pou num ano 825 francos e 90 centésimos; seu filho, pri­
vando-se de certos divertimentos economizou 226 francos
e 32 centésimos; a mãe com muita indústria conseguiu

ganhar 167 francos e 42 centésimos. Quanto a família


economizou ao todo?" E assim por deante.
Teve sempre a finalidade de ser útil ao povo mor­
mente à j uventude.
"Com as Leituras Católicas, escreveu . Dom Bosco nu­
ma carta,. ao mesmo tempo que eu desejava instruir o

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1 42 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

povo, tinha a finalidade de entrar nas casas, fazer co­


nhecer o espírito que impera nos nossos colégios e arras­
tar à virtude os j ovens principalmente com as vidas de
Sávio, Besucco e outras. Com o Jovem Instruído quis
levá-los à Igrej a, ima>regná-los de piedade e enamorá-los
da frequência aos Sacramentos. Com a Coleção dos clás­
sicos latinos e italianos expurgados, com a História da
Itália e com outros livros literários ou históricos, quís
sentar-me ao lado deles nas escolas e preservá-los de
tantos erros e paixões que lhes seriam fatais para esta
e para a outra vida. Desejava ser-lhes companheiro co­
mo outrora nas horas de recréio e por isso idealizei uma
série de livros amenos que espero seja logo publicada.
Finalmente com o Boletim Salesiano, entre as muitas ou­
tras finalidades também tive esta : conservar vivo nos
meninos já de volta às suas famílias, o amor ao . espí­
rito de São Francisco de Sales e às suas máximas, e de
fazer deles instrumentos de salvação para outros j oven­
zinhos."
Oh ! Como promovia a difusão dos bons livros ! Já
vimos como fundou várias sociedades com tal fim ; quis
fosse esse um dos fins primordiais da sua Congregação
e numa carta a todos os salesianos com data de 19 de
Março de 1885, escrevia : Não hesito em chamar "divino"
este meio pois Deus se serviu dele para regeneração dos
homens. Foram os livros por Ele inspirados que levaram
a todo o mundo a doutrina verdadeira. Quis que em to­
das as cidades da Palestina houvesse cópias destes livroa
e que todos os sábados fossem lidos nas assembléias reli­
giosas . . . Prevalecendo o domínio grego, os hebreu leva­
ram as próprias colônias a todos os ângulos da terra e
assim se multiplicaram indefinidamente os livros sagra­
dos ; os Setenta, com a tradução que fizeram enriquece­
ram com tais livros até as bibliotecas dos pagãos, pois os
filósofos, oradores e poetas desse tempo, buscaram na
Bíblia um grande número de verdades. Deus preparava
o mundo para a vinda do Redentor, principalmente me-

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ESCR�R E CONSEL�O 143

diante os livros inspirados. Cabe a nós imitar a obra do


Pai Celestial. Os livros bons, difundidos entre o povo, são
um meio poderoso para manter nas almas o reino do
Salvador. Os pensamentos, os princípios, a moral de um
livro católico, são substancialmente tirados dos livros san­
tos e da tradição apostólica. São eles tanto mais neces­
sários quanto mais a impiedade e a imoralidade se valem
desta arma para fazer estragos no redil de Jesus Cristo,
para arrastar à perdição os incautos e desobedientes. t:
pois necessário opôr arma a arma. Acrescente-se a isto
que se de uma parte o livro não tem a força intrínseca
de que é dotada a palavra viva, de outro lado apresenta
vantagens bem grandes. O bom livro entra até nas casas
em que não pode entrar um padre, é tolerado até ;pelos
máus como uma lembrança ou presente. Não se intimida
ao ser apresentado, não se perturba quando é posto de
parte e, quando lido, ensina a verdade com calma, uma
vez desprezado, não se queixa mas deixa o remorso que
por vêzes desperta o desejo de conhecer a verdade, es­
tando sempre pronto a ensiná-la. Fica por vêzes coberto
de pó numa mesinha ou na estante ; ninguém pensa ne­
le . . . Mas vem a hora da solidão, da tristeza, do sofri­
mento, do enfado ou da necessidade de diversão, ou da
ansia sobre o futuro . . . e este amigo fiel se deape da
poeira, abre as folhas e se renovam as admiráveis con­
versões de Santo Agostinho, do Beato Colombini e de
Santo Inácio. Delicado para com aqueles a quem o res­
peito humano acobarda, entretem-se com eles sem cau­
sar suspeitas a ninguém ; familiar com os bons, está sem­
pre pronto a conversar com eles; acompanha-os por to­
da a parte e a todos os instantes.
Quantas almas foram salvas pelos livros bons, quan­
tas outras preservadas do erro, quantas encorajadas ao
bem. Quem dá um livro bom já adquiriu um mérito in­
comparável perante Deus mesmo que o livro suscitasse
apenas um bom pensamento. No entanto, quão mais in­
tenso é o fruto que produz ! Se numa família o livro não

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144 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

é lido pela pessoa a quem se destina, será lido pelo fi­


lho ou pela filha, pelo amigo ou pelo vizinho. Um livro
numa cidade pequena passa às vêzes por mãos de uma
centena de pessoas. Só Deus sabe o bem que numa cidade,
numa· biblioteca ambulante, numa sociedade operária ou
num hospita! prodúz um bom livro.
Uma ocupação cotidiana também que de per si teria
absorvido a atividade mais tenaz e exgotado a fibra mais
robusta, foi a das audiências. O Padre José Oreglia da
Companhia de Jesus afirmava que se Dom Bosco não ti­
vesse feito outra penitência, esta j á teria bastado para
declará-lo de heróica virtude. E foi uma ocupação da
vida inteira : em casa e na rua, em Turim e alhures.
Aconselhado a se livrar de tão grave peso, respondia :
Não convem ! . . . Não tenho coragem para tal ! . . . Pobre­
zinhos ! Muitos até vêm de longe. Tem suas angústias
para me confiar . . . esperam na ante-câmara tantas ho­
ras . . . fazem-me pena, é preciso contentá-los . . . e de­
pois . . . e depois . . . sempre é algum bem que se lhes faz.
- Todos os dias, ao menos a parte da manhã, passava-a
f'm audiências ! Quantas pessoas de todas as classes so­
ciais se aproximaram assim de Dom Bosco !
"Durante a minha longa permanência no Oratório,
diz Dom Cagliero, ví sempre uma afluência enorme de
pessoas que vinham visitá-lo persuadidas das suas raras
virtudes, das luzes extraordinárias e da sua santidade.
Vinham pedir-lhe o auxílio das suas orações, receber
uma bênção, expor a miséria de j ovens conhecidos, obter
cartas de recomendação, combinar a respeito de boas
obras a serem feitas, excogitar um meio para remediar
a algum mal, trazer-lhe ofertas para a sua obra e não
raro apenas para vê-lo e falar-lhe. E não eram apenas
pessoas do povo : eram magistrados, autoridades de Es­
tado e Ministros ; eram doutos eclesiásticos, Reitores de
Seminários, Bispos, Arcebispos, Cardiais da Itália e do
exterior. Os ,príncipes e os plebeus, os ricos e os pobres,
os amigos e os estranhos, os doutos e os ignorantes, os

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ESCRITOR E CONSELHEIRO 145

bons e os máus, todos procuravam nele um conselheiro,


um consolador, um pai, um amigo. Párocos e simples sa­
cerdotes acorriam a êle para obter normas na direção das
almas ; e mesmo os alunos todos do Pensionato de São
Fràncisco de Assiz, acabado o curso de Moral, costuma­
vam dirigir -se a Dom Bosco para obter a sua bênção ,
antes de ir para os lugares a que se destinavam."
E ele, sempre franco e leal, embora não adulasse nin­
guém nem procurasse os louvores dos homens, acolhia
a todos com igual respeito como se todos fossem pessoas
muito gradas de cuja influência ele necessitasse. Não di­
ferenciava entre um indivíduo que vinha apenas para
obter conselhos e um rico que lhe viesse trazer generosa
oferta ou um pobre que lhe entregasse uns poucos vin­
téns, fruto de seu sacrifício; nas suas palvras fulgia sem­
pre uma grande humildade acompanhada de modos tão
doces e suaves que o tornavam caríssimo aos anjos e aos
homens e se interessava tanto do que lhe era manifes­
tado que parecia não ter então outra preocupação.
"Naquele quarto, escreve o bacharel Carlos Bianchet­
ti, pairava uma paz de paraíso. Não saberia dizer se nós
éramos flores cujas corolas se abrissem para receber o
consolo ou se fechassem para não deixar fugir a brisa
celestial que descia abundante sôbre nossa alma. Sen­
tava-se Dom Bosco a uma bem modesta mesa com peque­
nas gavetas. Pacotes de cartas e papéis estavam amon­
toados deante dele. A tudo isto, Dom Bosco não dava
grande importância. Era de parecer que até as pequeninas
coisas ::: � devem fazer devagar e que por isso não deve
haver distração. Dom Bosco parecia um homem que não
tinha nada ou tinha bem pouco que fazer.
"Tratava a cada um como se naquela manhã não
tivesse outra coisa para ouvir e resolver. Com São Fran­
cisco de Sales tinha por norma que a pressa costuma pôr
a perder todo o trabalho e nunca era o primeiro a acabar
o diálogo ; nunca mostrava desej o de abreviar a audiência ;

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146 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

e até às vêzes, querendo o seu interlocutor se retirar para


não ser importuno, Dom Bosco o convidava delicadamen­
te a ficar mais um pouco. Por vêzes o visitante cortês
observava que havia muitos na ante-câmara esperando
para entrar e Dom Bosco retrucava: Tenham paciência,
sou como o barbeiro que ao vêr o novo freguês que che­
ga, logo lhe diz : Espere, espere ! Acabo logo ! Só um mo­
mentinho ! mas depois faz o seu dever com a maior co­
modidade, como se ninguém o esperasse. E é natural ! -
acrescentava o santo, quem paga, tem o direito de ser bem
servido e seria bonito que o barbeiro para dar cabo logo
de um freguês, o servisse mal. - A simplicidade de Dom
Bosco era inseparável de um grande sentimento do de­
ver e continuava a audiência até que o assunto não esti­
vesse convenientemente exgotado . . ."

Mas nunca deixava de dizer uma boa palavra a quem


quer que o fosse procurar ; até aos eclesiásticos aos quais
dirigia uma observação sôbre o espírito sacerdotal e a
santificação das almas ou a prática da meditação, da
leitura espiritual diária, da visita ao Santíssimo, da as­
sídua confissão e do zêlo nas pregações.
Uma vez veio visitá-lo um negociante riquíssimo, sem
fé, vindo por mera curiosidade e saiu todo confuso ex­
clamando três ou quatro vêzes em seguida : Que homem,
é este ! Perguntando-lhe então alguém o que Dom Bosco
lhe dissera re�ndeu ter ouvido muitas coisas bonitas
que até então desconhecia e que o santo o despedira com
estas palavras : Procuremos que um dia, o senhor com seu
dinheiro e eu com minha pobreza, possamos nos encon­
trar no céu !
- "Fazia muito tempo, escreve uma Filha de Maria
Auxiliadora, que um grande sofrimento me angustiava o
espírito e não podendo encontrar sossego, voltei-me pa­
ra o Pai bondoso cujo espírito era como a estrela que
iluminava a todos que lhe iam pedir conforto e auxílio.
Fui por isso a Lanzo onde Dom Bosco se achava enfêrmo,
com o vivíssimo desejo de lhe falar de lhe abrir intei-

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ESCRITOR E CONSELHEmo 147

ramente o meu coração, persuadida de que só êle me


poderia compreender. Mas qual não foi meu desaponta­
mento quando tendo me apresentado, disseram-me ser
impossível que Dom Bosco me atendesse pois sua saúde
piocara muito.
"Tristíssima, escolhi uma imagem de Nossa Senhora
Auxiliadora que tinha no livro e disse ao secretário. To­
me esta imagem e faça-me a caridade de dizer a Dom
Bosco que ao menos me escreva aqui uma palavra, reze
por mim e me abençoe.
"Ao receber o recado, Dom · Bosco se comoveu e me
restituiu a imagem com as palavras : "Irmã Elisa Ron­
callo, quem padece com Jesus na terra gozará com Ele
a ternamente no céu. Coragem ! Sac. João Bosco. - A
palavra do santo foi um bálsamo para o meu coração e
a pena que até então me afligira desapareceu para sem­
pre do meu espírito."
"Para dar uma idéia do que Dom Bosco sabia dizer
e fazer, escreve João Bisio, recordo-me que acompanhei
até Dom Bosco um judeu de cincoenta anos que me dis­
sera desejar conhecer o santo sacerdote. Não sei o que
se passou entre Dom Bosco e o j udeu, mas apenas posso
dizer que o j udeu me afirmou que se em todas as cidades
houvesse um Dom Bosco, todo o mundo se converteria.
Outra vez ouví dos lábios do meu pároco, ter um rabino
de Alexandria lhe afirmado : Já duas vêzes estive com
Dom Bosco e não quero que tal se dê pela terceira vêz
porque estaria obrigado a ficar com ele ! - Eis como
eram insinuantes e belas as palavras que sabia dirigir
aos que dele se aproximavam. Eis o que explica como os
alunos lhe queriam bem e como era capaz de fazê-los
cada vêz melhores."
A sua paciência em atender a todos e em escutar as
misérias alheia, não tinha limites, mas quando preciso,
não deixava de repreender a quem de direito.
Um dia veio de localidade Iongíngua um religioso que,
receando talvez o incômodo ou as zombarias de alguém,

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148 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

tinha tirado a batina e se apresentou à paisana e assim


ousara apresentar-se a Dom Bosco. O Santo o reconhe­
ceu mas simulou não sabe r quem era o visitante. Este ,
cheio de maravilha, dizia com insistência que Dom Bosco
o conhecia- muito bem. Finalmente o santo respondeu :
- É possí'lel? V. Rvdma. com êsses trajes? Vá ! Vá cuidar
dos seus negócios.
- Mas eu receava os insultos ; nestes tristes tempos
somos tão desrespeitados !
Deixe-me em paz. Há outras pessoas a quem devo
atender. Se quiser que eu o receba, vá se vestir com seu
santo hábito.
Num só caso não se sabia conter : quando se tratava
da ofensa de Deus.
Em 1863, contava êle um fato que lhe sucedera na­
queles dias :
"Veio ao meu quarto um homem que, não podendo
conseguir o que desej ava, pôs-se a blasfemar do modo
mais horripilante. Eu, que até então o tinha tolerado,
não pude mais conter-me. Corri à estufa, peguei as te­
nazes que ali estavam e agarrando o blasfemador pelo
pescoço lhe gritei : - Saia daqui ou receberá uma lição
merecida !
- Desculpe-me : reconheço que fui grosseiro.
- Não há desculpas possíveis; não quero um demô-
nio no meu quarto. Estes não são modos de tratar Nosso
Senhor ! - e, sacudindo-o, joguei-o para fora. - Quan­
do ouço blasfêmias e principalmente quando unem ao
santo nome de Deus um qualificativo vergonhoso, não
sou mais senhor de mim e se não fosse a graça de Deus
que me segura, entregar-me-ia a atos de violência de
que depois teria remorsos."
Fora desse caso, não deixava ninguém sair sem uma
palavra de consolo.
O Padre Rua escreve : - Não poderia enumerar o
sem número de pessoas que me confiaram terem sido ali­
viadas nas suas aflições socorridas nas dificuldades e
embaraços, pela exímia prudência de Dom Bosco.
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CAPiTULO X

No Ministério Sagrado

Seu zelo pela palavra de Deus - Preparação


próxima e remota - Espírito de sacrifício - Argu­
mentos ordinários - Visitas nas lo calidades - Como
corriam a Oltví-lo - Prudência - En canto que exercia
sôbre a multidão - Nunca faltava o pensamento da
salvação da qlma - Caçadores de almas - Seu nome
se tornara sinônimo de confessor - Zelo pela alma dos
co cheiros - Efeitos maravilhosos de sua palavra -
Conversões no momento da morte - Sempre guiado
por Deus.

Ministro de Jesus, Dom Bosco sentia tôda a fôrça da


frase com a qual o Profeta anunciou a missão do Divino
Mestre : "O Espírito do Senhor está sôbre mim, pelo que
me consagrou para dar aos pobres e boa notícia ; man­
dou-me para curar os de coração contrito". Seu desej o
mais ardente era portanto a destruição do pecado e que
Deus fosse conhecido, servido, adorado e amado em tôda
a parte e por todos os homens. Eis a origem do zelo
incansável para espalhar a palavra divina, tendo sempre
como modêlo o Divino Salvador, o qual, sendo a Sabe­
doria feita carne, falava com simplicidade admirável
para se adaptar à inteligência do povo.
Já nos primeiros anos de padre tinha escrito mais
de cem pregações. Tinha preparado as meditações e as
instruções para dezoito dias de missões para o povo,_
vanos cursos para retiros de religiosos, de clerigos, de
irmãs, de meninos ; várias novenas e tríduos para as
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150 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

40 horas e muitos panegíricos e discursos para as prin­


cipais festas do ano.
No principio do seu apostolado não subia ao púlpito,
especialmente nas cidades e lugares mais adiantados ,
sem ter antes escrito o que ia dizer. Era seu axioma,
mil vêzes repetido : "A pregação que produz mais efeito
é a que foi mais preparada e estudada". Multiplicando­
se contudo suas ocupações, que lhe absorviam todo o
tempo, e gostando muitíssim o de anunciar a palavra de
Deus, para cada novo argumento se limitava a escrever
i inhas gerais em pedaços de papel que ainda se conservam
em grande número. Mais tarde, não lhe sendo .possível
preparar nem sequer isso, depois de ter feito uma breve
reflexão sôbre o que ia dizer, ou dizendo outras vêzes uma
Ave-Maria apenas, subia ao púlpito e falava de improviso.
Como era feliz no seu modo se exprimir ! Pôsto que
v agaroso no falar, quase sem gestos, a sua voz argentina
penetrava nos corações e os comovia com os argumentos
mais simples. Quantas vêzes ouvimos após suas prédicas,
em lugares onde o auditório se compunha de pessoas
avêssas à religião vindas à igrej a apenas para ouvir um
orador de pulso ou para criticá-lo, dizia-se : "Falou bem ;
cl.isse coisas boas".
Também nestes casos, o seu modo de falar era per­
feitamente ordenado. Começava com um texto escritu­
rístico, no exordio estabelecia com exatidão a definição
do argumento, ou então, enunciava com clareza o objeto
da festa ou o mistério que se solenizava. Em seguida
desenvolvia a definição, dava uma brevíssima razão teo­
lógica, expunha um fato histórico, ou uma comparação,
ou uma parabola que centralizava a sua prédica, e nunca
deixava de descer à prática com algumas considerações.
Estava sempre admiravelmente preparado para mudar
.o assunto bem no momento em que subia ao púlpito, de
acôrdo com o que as circunstâncias, ou o imprevisto nível
intelectual dos expectadores, o sugeriam.

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NO MINISTÉRIO SAGRADO 151

Para conseguir resultado com êste método, não basta


a ciência no orador sagrado, é preciso que êle antes de
tudo já tenha conquistado um grande ascendente moral
sôbre os ouvintes ; D. Bosco, pregando sempre que tinha
ocasião, fosse qual fosse a classe de pessoas que o escuta­
vam com vivo desejo, era sempre ouvido como se ouve
um santo.
Era contínua a sua pregação. E' difícil enumerar as
localidades piemontesas e outras, que ouviram a sua
voz. No Piemonte não há quase cidade ou povoação
onde êle não tenha pregado. Sempre que podia contar
com a diligência e vigilância dos que o supriam no
Oratório, afastava-se de Turim e em tôda a parte lhe
sucediam mil fatos, qual o mais gracioso, que dificil­
mente mereceriam fé, não fôra o testemunho de pessoas
serias. Lembram ainda de D. Bosco em Alba, Biella,
Ivrea, Novara, Vercelli, Asti, Alexandria, Cuneo, Mon­
doví, Nizza Monferrato, Rivoli, Racconigi, Carmagnola,
Bra, Foglizzo, Petinengo, Fenestrelle e Salicetto.
Preparava-se ,para a pregação, como Nosso Senhor,
isto é, com uma oração fervorosa. Preferia os habitan­
tes do campo. Ao se pôr em viagem, fazia sempre o
sinal da· Cruz, invocava o auxílio de N. Senhor e recitava
alguma oração a Maria Santíssima. Quando estava em
Turim, se confessava regularmente cada oito dias mas
durante as viagens, ajoelhava-se com mais frequência e
humildade aos pés de um sacerdote . . Sem ser escrupu­
loso, não suportava na própria alma, a menor mancha
pelo que tinha especial empenho em agradar a Deus
também nas menores coisas. E suas fadigas eram recom­
pensadas sempre com frutos copiosos.
Tinha também o merecimento de um gTande espírito
de sacrifício. Nunca j amais se queixou quer do quarto,
às vêzes incômodo que lhe davam ou da comida que lhe
serviam. Parecia que não sentisse o rigor do inverno ou
do verão pôsto que a habitação ou a igreja fossem pouco
protegidas. Imensa era a sua mortificação em suportar

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152 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

a prolixidade das audiências, confissões ou funções sa­


gradas. A sua paciência humilde era invencível em
suportar as contrariedades as faltas de respeito e a
rusticidade das pessoas com as quais devia tratar. In ­
difer,ente para com tudo que se referia à sua pessoa,
nada exigia. além do que lhe dessem, nada pretendia,
aceitando qualquer lugar ou tempo que lhe fosse designa­
do; cedia humilde um oficio ou um lugar mais honroso,
até a quem lhe era inferior por dignidade e por anos e
se o demônio obstaculava o seu ministério continuava
calmo e impertérrito com uma perfeita confiança em
Deus.
Do púlpito, com um zelo sem tristezas e nunca vio­
lento i nspirava nos ouvintes uma viva confiança mas,
sem os adular, dizia-lhes a verdade inteira. Durante os
retiros ou as missões não se perdia em discussões inuteis.
A importância da salvação da alma, o fim do homem, a
brevidade da vida, a incerteza da hora da morte, a enor­
midade do pecado e as .funestas consequências que traz
consigo, a impenitência final, o perdão das ofensas, a
restituição do que se adquiriu mal, a falsa vergonha na
confissão, a intemperança, a blasfemia, o bom uso da
pobreza e das aflições, a santificação dos domingos e
das festas, a necessidade e o modo de rezar, de frequen­
tar os Sacramentos, de assistir ao sacrifício da Missa, a
imitação de Jeus Cristo, a devoção a Nossa Senhora, a
facilidade de perseverar, tais eram seus argumentos co­
muns. Os títulos dos sermões nós o tiramos de alguns
dos seus muitos autógrafos que nos foram entregues no
ano 1900 por velhos amigos e colegas de Dom Bosco.
Quando lhe sobrava tempo livre depois de ouvir as
confissões saia pela cidade a obsequiar as autoridades
minicipais, a visitar e consolar os doentes, a pacificar
as famílias separadas pela discórdia, a reconciliar com
boas maneiras os que se consideravam inimigos ; e mos­
trava grande respeito para com os velhos e familiarida­
de com os creados e os pobres. Usando de todos os meios

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NO MINISTÉRIO SAGRADO 153

para atrair o povo aos sermões, ia até aos botequins con­


vidando patrões e empregados a vir à igreja no que era
facilmente atendido.
Multidões imensas corriam a escutá-lo e até os me­
ninos que facilmente se aborrecem com raciocínios sérios
avidamente iam ouvir o catecismo e se afeiçoavam tanto
a ele que não sabiam como se separar de Dom Bosco e
vários foram vistos chorando ao se despedir dele.
Não era menos terna e profunda a gratidão dos adul­
tos no momento em que se despediam de um padr e que
tão afetuosamente lhes restituíra a paz de coração, a
graça de Deus, a esperança do paraíso, a alegria às fa­
mílias e à população, bem como instilara a caridade para
com os pobres e as obras de piedade. Nestas suas j ornadas
apostólicas, Dom �osco espalhou em todo o Piemonte a
recitação dos três "Glórias" após o "Angelus".
Já dissemos que nas suas pregações não gostáva de
disputas mas sabia no entanto apoiar a causa da reli­
gião quanqo as circunstâncias ou um pedido do Superior
Eclesiástico a isso o convidavam. Em Guassolo, perto de
Ivrea, tinham estabelecido resid�ncia algumas pessoas
a quem o povo por motivo do procedimento pouco cris­
tão, designara com o epíteto de protestantes. Não ligan­
do para as leis da Igreja, eram de embaraço para o P.
Tiago Giacometti, pároco da localidade.
De escândalo à boa população, punham-se ainda a
semear graves erros contra as verdades da fé. Já conta­
vam aqui e acolá vários adeptos, quando Monsenhor Mo­
reno lembrou-se de convidar Dom Bosco para aí pregar
uma missão. O santo aceitou : a fama do seu nome o pre­
cedeu e ao aparecer de Dom Bosco os setários desapare­
ceram. Nas pregações da tarde começou Dom Bosco a
expor o catecismo demorando-se de modo especial nos
pontos em que os êrros se tinham infiltrado venenosa­
mente sob a forma de dúvidas e negações. Humilde e
prudente, não usou de ataques não fez alusões humi­
lhantes mas procurou apenas que os ouvintes ficassem

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154 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

convencidos da verdade de modo que ninguem os pudes­


se enganar. Os adversários, surpreendidos por essa man­
sidão no falar, voltaram ao arraial e nada ousaram di­
ze:r ou fazer contra quem os combatia triunfalmente
aplaadido por todos que o escutavam. O modo de falar
de Dom Bosco era tão cheio de unção e persuasão, que
transmitia a fé aos que o rodeavam.
Uma prova do encanto que exercia sobre as multi­
dões, foi o panegírico de São Cândido e de São Severo­
na matriz de Lagnasco, na diocese de Saluzzo perto de
Savigliano. Chegou tarde e com a pressa nem pudera al­
moçar. O povo já esperava o pregador na igrej a tendo­
acabado as vésperas. O pároco já se revestira da sobre­
peliz para subir ao púlpito quando eis que Dom Bosco
entra na sacristia. Sem mais demora apesar de exgotado­
pelo j ej um sobe ao púlpito para pregar. Depois de ter
falado uma hora sobre São Cândido, ao vêr que já pas­
sara o tempo fixado disse ao povo que lhe restava ainda
a segunda parte relativa a São Severo mas que ia aca­
bar para não cansar o auditório. o povo a uma voz pe­
diu-lhe que continuasse; Dom Bosco hesitou mas o pá­
roco P. José Eandi lhe gritou solenemente do altar-mór :
Vox populi, vox Dei. E Dom Bosco continuou por mais
uma hora causando a todos uma satisfação imensa.
Era uma satisfação que deixava sempre nas almas
uma salutar impressão pois, fosse qual fosse o seu au­
ditório, muito embora estivessem presentes Bispos, dou­
tos sacerdotes, nobres, cientístas, a idéia dominante era
a necessidade de salvar a alma.
Mais de uma vez, contra a expetativa geral em fes­
tas soleníssimas ao invés de tecer os elogios do Santo
·
que se festejava, acabando a introdução desenvolvia al­
guns pontos sobre os novíssimos ou sobre algum man­
damento de lei de Deus.
Foi uma vez convidado a pregar num ilustre Mos­
teiro de religiosas por ocasião da festa de uma Santa
Martir, padroeira do Mosteiro. Todos sabiam como Dom

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NO MINISTÉRIO SAGRADO 155

Bosco era instruído na história eclesiástica e por isso


esperavam a apresentação da Santa sob um novo aspeto
·com altas reflexões ascéticas ou místicas. A igrej a estava
repleta de ilustres e nobres pessoas; Dom Bosco come ­
·çotr a falar que visto já havia mais de um século que
.anualmente grandes oradores faziam o panegírico da
Santa festejada repetindo fatos que todos já sabiam,
�le pedia licença à Santa para mudar naquele ano, a
título de variedade, o título da prédica e ele propunha
·o tema : "Salvar a alma por meio das confissões bem
feitas". O auditório ficou maravilhado com o belíssimo
-sermão.
Era incansável ! Estava pregando o retiro ao povo
da paróquia de São Salvador em Ivrea, com quatro pre­
gações diárias, quando foi convidado a fazer duas pre­
gações para os clérigos e aceitou. Caiu doente o padre
que estava pregando o retiro no Colégio Cívico e Dom
Bosco convidado a fazer lá também dois sermões diários
acedeu prontamente. Eram pois oito sermões por dia e
no tempo que lhe restava do dia e grande parte da noi­
te ouvia as confissões de tantos que desej avam confiar­
lhe seus pecados.
Suas pregações tornaram-se menos frequentes quan­
-do em 1860 começou a ser necessária a sua presença no
Oratório em vista do número cada vez maior de internos
pelo que não podia mais ausentar-se. Já em 1865 saia
apenas par tríduos, panegíricos, conferências ; mas nas
suas viagens que então começaram a ser mais frequen­
es, continuou sempre a pregar, já movido pelo zelo ar­
dente de almas, já obrigado a apelar para a caridade
dos seus ouvintes, recomendando-lhes suas obras e assim
fez no resto da vida.
Jesus dissera aos apóstolos : "Vinde após mim e eu
vos farei pescadores de almas." Dom Bosco, compenetra­
do da dignidade e merecimento de tal apostolado, foi
em Turim o que são João Batista de Rossi o foi em Ro­
ma : "Venator animarum", caçador de almas.

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156 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

A sua palavra era um convite ininterrupto para salvar


a alma mercê da confissão. Tratando até com pessoas
influentes, sabia introduzir um bom pensamento que as
convidasse a pôr em ordem os negócios da alma ; assim
era bem difícil que falasse alguns dias em seguida a
alguma comunidade, sem que ensinasse a se confessar
bem ou sem inculcar a frequência deste Sacramento.
Quando após muitos pedidos, anuiu a ser fotografado
entre os seus filhos, só consentiu que o fizessem enquan­
to confessava. Nunca deixou esta parte capital do Sa­
grado Ministério, nem durante as doenças.
Sua biografia mostra como era assíduo em atender
as confissões dos seus j ovens ; além do Oratório, várias
igrejas de Turim foram um campo em que exercitou
seu zêlo indefesso e nas suas pregações sem número, des­
de as primeiras horas do dia até noite avançada, aten­
dia uma multidão imensa de penitentes e isto .por mui­
tos anos, desde 1844 até 1885. Por isso o seu nome soava
para os que o conheceram como sinônimo de confessor.
Indo a Vercelli, a Casale, a Asti ou a cem outros lu­
gares, procurava um lugar na boléia para no momento
oportuno ganhar a alma do cocheiro. No mais das vêzes
este não tardava a dizer alguma blasfêmia e Dom Bosco
com um sorriso lhe dizia :
- O que é que o senhor disse ? Estou certo de que
diz estas palavras sem pensar ; no fundo do coração
o senhor não é mau ; é o que se vê logo no rosto.
- Tem razão, senhor cura, é um hábito adquirido.
Detesto essas palavras mas quando dou fé já as proferi.
Especialmente quando estou com os padres sinto muito
dizer palavras tão feias.
- Esforce-se para se corrigir.
- Sim, sim ! Bem que eu o quero ! - Mas daí a
pouco um cavalo tropicava ou teimava em não andar e
eis nova blasfêmia. Dom Bosco olhava-lhe nos olhos e
o pobre homem ficava envergonhado, estutando atento

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NO MINISTÉRIO SAGRADO 157

tudo que lhe dizia o bom padre sobre a bondade de Deus


e os seus castigos, sobre a necessidade de se emendar e
salvar a alma; e as suas palavras acabavam sempre com
um convite para que se confessasse. Era tão bem orien­
tada a col!versa, que os cocheiros aceitavam sempre tal
convite : muitos se confessavam mesmo na boleia guian­
do os cavalos, outros nas cavalariças, nos hoteis ou nos
arredores enquanto eram trocados os animais.
- Um dia, contava-nos o P. Chiatellino, Dom Bosco
ia a Carignano e conversando com o cocheiro, entre ou­
tras coisas lhe disse : - Creio que o senhor j á fez a Pás­
coa !
- Ainda não ; j á faz muito tempo que não me con­
fesso ; de boa vontade porém eu me confessaria com o
padre com o qual me confessei a última vez.
Esse cocheiro se tinha confessado com Dom Bosco
nas prisães de Turim mas não o reconhecera; também
Dom Bosco não se lembrava dele e continuou :
- E quem é esse padre com que o senhor gostaria
de se confessar :
- Dom Bosco ! Não sei se o senhor conhece . . .
- Conheço-o muito bem ! Eu sou Dom Bosco !
O pobre homem fitou-o alegríssimo e lhe perguntou :
Mas como poderei me confessar agora?
- Deixe-me segurar as rédeas e o senhor se con­
fessa aqui mesmo.
O cocheiro obedeceu e Dom Bosco o confessou en­
quanto o cavalo ia devagarinho.
Dom Bosco mesmo contou como vindo para Turim
numa diligência, ouviu que cada vez que o cocheiro chi­
coteava os cavalos soítava uma blasfêmia ou duas. "Pe­
dí-lhe que me deixasse subir á boleia e sentei-me ao
seu lado. Depois lhe disse :
- Gostaria que o senhor me fizesse um favor . . .

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158 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

- Pois não ! Pois não ! Quer chegar logo a Turim?


Está bem ! - E se pôs a chicotear com fúria os cavalos
entremeando as chicotadas com blasfêmias.

-:- Não é isto que eu quero, retruquei; pouco me im­


porta chega:J; a Turim quinze minutos adeantado ou atra­
sado ; o que eu quero é que o senhor não blasfeme. Pro­
mete-me?
Oh ! Se é só isto, fique tranquilo : não blasfema-
·-

rei mais. Sou homem de palavra !


- E se conseguir isso, que prêmio o senhor quer?
- Nada, é minha obrigação não blasfemar.
Eu insisti e ele pediu a gorgeta de quatro soldos;
prometi-lhe vinte . . . Eis que numa chicotada sai uma
outra blasfêmia. Avisei-o e eh� : - Oh ! Que tolo que
sou! Nem sei onde ponho a cabeça !
- Não se aflija ! Olhe : eu lhe darei vinte soldos
mas cada blasfêmia que o senhor disser, tirarei quatro
soldos dos vinte.
- Está bem. Verá como vou ganhar os vinte !
Daí a pouco, os cavalos diminuíram o passo e o co­
cheiro chicoteando-os soltou uma blasfêmia. - Dezesseis
soldos, disse-lhe eu.
o pobre homem cheio de vergonha ia resmungando :
É verdade ! Estes máus costumes não podem mais ser
arrancados !
Depois de um pequeno trecho, uma chicotada e duas
blasfêmias.
- Oito ! meu amigo. Já estamos nos oito soldos !
- Será possível, gritava encolerizado ; serão tão for-
tes os máus costumes ? Estou envergonhado. Então não
sou senhor de mim mesmo? Este maldito vício me fez
perder doze soldos.
- Meu amigo, não se entristeça por isso mas antes
pelo mal que faz à sua alma.

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NO MINISTÉRIO SAGRADO 159

- Oh ! É verdade. Mas sábado vou me confessar. o


senhor é daqui de Turim?
- Sim ! Sou do Oratório de São Francisco de Sales.
- Está bem. Vou me confessar com o senhor. Co-
mo se ch�ma?
- Dom Bosco.
- Está certo ; ver-nos-emos então ! - No resto da
viagem disse ainda uma blasfêmia p�lo que eu devia lhe
àar só quatro soldos mas fiz aceitar os vinte alegando o
esforço que tinha feito para não blasfemar. Despedimo­
nos. Voltei para casa e o esperei todos os sábados até
que na quarta semana veio ao meu encontro, Não o re­
conheci no meio dos meninos mas quando chegou a sua
vez, me disse : - Não me conhece ? Sou aquele cochei­
ro . . . já me entendeu ; e saiba que me castiguei com j e­
j uns a pão e água sempre que repetisse uma blasfêmia.
Uma outra vez, Dom Bosco disse a um cocheiro : -
Se até a primeira estação, o senhor não pronunciar mais
nenhuma blasfêmia eu lhe pago um litro de vinho. -
Desde então dos lábios do pobre homem não saiu nem
mais uma blasfêmia e Dom Bosco mantendo a palavra,
disse :
- Se por uma recompensa tão pequena o senhor
poude vencer-se durante êste tempo, porque não poderá
deixar completamente este vício pensando no céu que
o espera e no inferno em que se pode cair de um mo­
mento para outro ?
Foi assim que arranjou muitos penitentes que vi­
nham procurá-lo no · Oratório.
"Quantas vêzes, narrava-nos o P. Francisco Dalmaz­
zo, diziam-me e eu mesmo via que homens de rosto car­
rancudo vinham a horas tardias da noite confessar-se
com Dom Bosco cuja fama de santidade os abalára !
Muitas vêzes entravam sem esperança de receber o per­
dão e saiam do escritório de Dom Bosco com o rosto bri­
lhando de alegria e o coração cheio de consolação". Não
se pode na verdade dizer a força que tinham as palavras

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160 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

de Dom Bosco quando ouvia confissões. Os seus conse­


lhos breves, suaves, inflamados, atingiam a alma como
uma lança. Era quase impossível que o penitente não
sent!sse uma comoção profunda.
Eram também maravilhosas e inúmeras as conver­
sões que conseguia no ponto de morte.
Adoecera em Turim um empregado do Govêrno que
estava afastado havia muitos anos dos sacramentos ; ago­
ra estava agonizando; os médicos não lhe garantiam
nem mais um dia de vida. O vigário, ao sabe r que não
queria receber um padre, pediu a Dom Bosco que ten­
tasse salvá-lo. Dom Bosco vai àquela casa e eis que lhe
sai ao encontro um dos filhos do doente, um rapazinho
muito assíduo ao Oratório e a quem o pai nada sabia
negar. O petiz havia proposto ao pai que o deixasse ir
buscar Dom Bosco mas o homem não quis.
- ó Dom Bosco ! Venha ! Venha ! Papai està muito
doente : venha lhe dar a sua benção.
D. Bosco insistia para que o menino fosse anunciar
ao pai de outro modo a sua chegada, mas o petiz não
quis saber de nada e arrastou-o ao quarto do enfermo.
�ste ao vêr entrar D. Bosco, fuzilou-o com olhares de
fogo mas o Santo não se assustou e com grande bondade
pôs-se a ale grá-lo com fatos amenos, recitou depois três
Ave Marias com o men�no, abençoou o doente e começou
a interrogá-lo sôbre os estudos, os cargos que ocupara,
os anos da j uventude e da idade madura. Aos poucos o
enfermo foi se abrindo confidencialmente e o santo lhe
arrancou dos lábios quanto lhe bastava para conhecer o
estado daquela alma e afinal, ao vê-lo cansado, lhe disse :
- Agora se o senhor quiser, eu lhe darei a absolvição.
- A absolvição? ! Mas antes eu preciso me con-
fessar e não quero faze-lo.
- O senhor já se confessou, já escutei tudo . . . Deus
lhe perdoa tudo; é tão bom e misericórdioso com os que
se arrependem de coração.

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NO MINISTÉRIO SAGRADO 161

O enfermo explodiu em soluços exclamando : - Deus


é bom deveras ! e caiu num torpor de fraqueza. D. Bosco
lhe fez algumas perguntas e achando-o pronto a fazer o
que a Igreja exigia, absolveu-o. Finalmente, após pro­
meter-lhe cuidar do filho que ia deixar, mandou avisar
ao pároco que lhe trouxesse o S. Viático. :l!.:ste não se
fez esperar e apenas poude administrar-lhe a Extrema
Unção "sub unica unctione" pois o pobrezinho expirava.
Ainda um fato. Dois ex-alunos do Oratório ainda
j ovens pedreiros foram soterrados pela queda da abó­
bada de uma construção. Um morreu na hora e o outro
foi levado ao hospital Cottolengo onde ficou sofrendo
por uma semana em completa mudez. Subitamente
começou a gritar : D. Bosco ! D. Bosco ! Um capuchinho
que estava naquela enfermaria assegurou que desde o
acidente o rapaz não dissera nem sequer uma palavra.
De fato naquele momento D. Bosco aparecia na porta
do aposento.. Aproximou-se, confessou o rapaz, disse-lhe
palavras que lhe restituíram a paz ao coração e depois
percorreu a enfermaria visitando outros doentes. O
mocinho perdera de novo a loquela e enquanto D. Bosco
depois de dar uma volta na enfermaria aproximou-se
de novo do seu leito, o rapaz morria feliz. Deus con­
duzira o seu Servo no dia na hora oportuna para salvar
a alma do seu filho !
Nos seus passos, D. Bosco era sempre guiado por
Nosso Senhor pois não buscava senão a salvação das
almas e a suplicava com oração ininterrupta põsto que
não tivesse nenhuma dessas exterioridades singulares que
se admiram nos outros Santos. A sua era uma oração
ativa que consistia em estar sempre na presença de Deus.

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CAPíTULO XI

Franqueza apostólica

Padre é sempre padre - Com todos falava como


padre - Num restaurante - Em casa de uma benfei­
tora - Franqueza e simplicidade habituais - A Tomas
Vallauri - A um grande personagem - A um calu­
niador - A um Prelado - Aos ministros Rattazzi e
Vigliani - Solene advertência ao. Conde Cibrario - A
um velho general - A um advogado - Colóquio com
a Rainha Mãe e com os da casa real de Napoles :
"Majestade, não verá mais Napoles; V. M. não mais
voltará ao trono" - "Nosso Senhor o cancelou do livro
dos Reis" - Na inauguração da Estrada de Ferro
Turim-Cirié-Lanzo ; encontro e memorável conversa
com os Ministros Depretis, Nicotera, Zanardelli e vários
deputados: " Creio que no momento da morte, todos
quererão ter um padre à cabeceira". "Serve-te dos
·
inimigos para jazer o bem e terás mérito aos olho s
de Deus ! " .

Um padre é sempre padre, costumava dizer D. Bosco,


e tal se deve manifestar em tôdas as palavras. Ora, ser
padre quer dizer ter continuamente por ideal e obrigação
a salvação das almas que é o grande inter êsse de Deus.
Um sacerdote não deve permitir que alguém se aproxime
ou se afaste dele sem ter ouvido uma palavra que lhe
manifeste o desejo da salvação eterna de sua alma.
E D. Bosco . era assim. Recordemo-nos das palavras
que disse a Bettino Ricasoli : D. Bosco é padre no altar,
padre no confessionário, padre no meio dos seus alunos
e como é padre em Turim assim é padre em Florença,
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164 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

padre na casa do pobre, padre no palácio do Rei e dos


Ministros !
E o foi tôda a vida. Nós o ouvimos falar como padre
não só a homens do povo, mas a literatos, a nobre3 se­
nhores, a seJ].adores, a deputados, a generais de exército,
a ministros de estado, a príncipes e a outros persona­
gens poderosos conhecidos por suas opiniões, escritos e
obras como inimigos da Igrej a ; e pudemos averiguar, com
maravilha nossa, como ninguém se tenha j amais ofen­
dido com a sua liberdade apostólica a qual sempre esteve
unida a uma grande delicadeza, a afirmações de estima
respeitosa, a expresSÕes de sentido afeto e por vêzes, a
oportunas e graciosas pilhérias.
Em 1866 num dia de jejum, D. Bosco entrou no res­
taurante da estação de Bolonha e pediu a comida permi­
tida pela igrej a ; responderam-lhe que não havia e então,
com boas maneiras, o santo se queixou ao dono do restau­
rante. O aviso foi bem recebido pois voltando outra vez
a Bolonha numa sexta-feira foi reconhecido pelo dono
do restaurante que lhe disse : Venha, venha, senhor
abade ; agora temos a comida que V. Rvdma. deseja.
Outra vez, era D. Bosco esperado pela Marquesa Do­
vando sua boa benfeitora que em honra de D. Bosco
convidara a varias pessoas ; duas senhoras esperavam-no
no vestíbulo um tanto decotadas e com mangas curtas.
Apenas as avistou, D. Bosco disse :
- Desculpem-me ; errei a porta; pensava entrar
numa casa e entrei noutra.
- Não, não, D. Bosco ; volte, não se enganou; é aqui
que o esperamos.
- Não pode ser ! Aonde fui convidado, um padre
pode entrar livremente. Tenho pena das senhoras, hoje
se gasta tanta seda e tanto pano para a cauda dos ves­
tidos, que não sobra nada para cobrir os braços.
Percebendo a falta em que tinham caldo, as duas
senhoras coraram e foram envergonhadas buscar uns

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FRANQUEZA APOSTÓLICA 16':>

chales para se cobrir e num instante voltaram pedindo a


D. Bosco que as desculpasse.
- Agora sim ! disse o Santo. Assim está bem. - E
ai ficou para alegria dos comensais enquanto as duas
sephoras não mais despiram suas vestes improvisadas.
A franqueza e a simplicidade eram-lhe dotes
habituais.
O professor Tomaz Vallauri tinha censurado os auto­
res latinos cristãos como destituídos de pureza de língua
e elegância de estilo. D. Bosco ao falar-lhe pela vez
primeira, lhe disse :
- Folgo muito em conhecer um escritor de fama
mundial e que tanto honra a Igreja com suas obras.
- Quer me dar uma chicotada com êste elogio?
- Ora, senhor professor; digo-lhe apenas o que
penso. O senhor sustenta que os autores latinos cristãos
não escreveram com elegância ao passo que S. Jerônimo
e Sulpício Severo se equiparam a Júlio Cesar e Cornelio ;
Latâncio e Minucio Felix nada perdem num confronto
com Aneo Sêneca, nem Prudência comparado com Horácio
- e D. Bosco provou sua afirmação.
Vallauri refletiu um pouco e depois disse : - D. Bosco
tem razão ; diga-me o que devo corrigir e eu lhe obede­
Veja o senhor : é a primeira vez que
cerei cegamente.
submeto o meu modo de vêr ao de outra pessoa. - E
desde então, falando de D. Bosco, Vallauri costumava
dizer : - J!:stes padres é que me agradam ; são sinceros !
Um ilustre personagem que por proposta de D. Bosco
fora elevado a um grau mais elevado com promessa de
futura promoção dai a dois anos, nada conseguiu. Alguem
perguntou a D. Bosco se o fulano chegaria ao lugar
desej ado:
- "De modo algum ; reconheceram-no incapaz e por
isso não tive coragem de interceder por êle".
Em 1883 voltando uma vez de Pistóia para Turim,
aconteceu-lhe, como outras vêzes, encontrar-se com um
viajante que falava mal do santo sacerdote. Dizia que

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166 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

D. Bosco era um avarento, que amontoava dinheiro


enganando os tolos, etc . . .
- Desculpe-me; o senhor conhece D. Bosco ? - per­
guntou-lhe o santo.
- E como não o conheceria? Sou de Turim e já o
vi muit'as vêzes.
- No entanto, não acredito que D. Bosco seja tão rico
como o senhor diz.
- O senhor quer dizer isto para mim? D. Bosco é
um espertalhão ; quer enriquecer a família e já adquiriu
muitas propriedades.
- Não me consta que êsse padre tenha alguma pro-
priedade em Castelnuovo.
- Sim ! Sim ! Seus irmãos já se tornaram ricos.
- Desculpe-me, mas D. Bosco tinha só um irmão.
- Sej a como fôr, o fato é que o irmão de D. Bosco
que antes era um pobretão, agora tem carruagem e
cavalos.
� E eu lhe afirmo que o irmão de D. Bosco já
morreu há uns vinte anos.
- Mas o senhor não pode negar o que eu conheço
muito bem.
--' Não há duvida ; mas se quer satisfazer a curiosi­
dade, vá a Castelnuovo e poderá vêr que D. Bosco tem
apenas dois sobrinhos e êstes cultivam uma pequena roça
e nada mais.
- Então o senhor quer dizer que sou um mentiroso?
- Oh ! Não ! Digo apenas que não é verdade o que
o senhor diz.
E assim continuaram por algum tempo. Os viajantes
se inclinavam a acreditar nas afirmações do padre, quando
em Felizzano subiu ao carro em que estavam discutindo,
o ilustre barão Cova e ao avistar o santo exclamou
sorrindo : - Oh ! D. Bosco ! - E começou a prosear com
êle. Os viajantes arrebentaram em gargalhadas e o calu­
niador todo vexado, apresentou mil desculpas. D. Bosco
disse-lhe : - Quereria dar-lhe um conselho : nunca falar

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FRANQUEZA APOSTÓLICA 167

mal de ninguém . . . ou ao menos olhar quem nos rodeia !


Poderia acontecer que aquele com quem falamos seja a
pessôa cuja fama estamos denegrindo. O melhor é falar
bem de todos e se não o podemos, calar.
Um ilustre e gentil Prelado nos banquetes em seu
palácio para os quais convidava muitos leigos, não costu­
mava benzer a mesa ·e isto causava surpresa a pessoas
piedosas. D. Bosco que nada receava quando se tratava
da maior glória de Deus, estando hospedado no palácio
episcopal em uma destas ocasiões, chegando a hora do
banquete, deixou que os convidados se sentassem e quando
era servido o primeiro prato, chegou por último pedindo
desculpas pelo atraso ; indo para o seu lugar, rezou o
Benedicite em voz baixa mas clara e no final, voltando-se
para o bispo, inclinou a cabeça e concluiu : "Iube, domne
benedicere". Fez-se um grande silêncio na sala e o bispo
sorrindo exclamou : - Esta é que me faltava, senhor D.
Bosco ! - e quando ficou só, lhe disse : - Foi uma boa
lição e dela não me esquecerei.
O ministro Rattazzi, valendo-se da confiança com que
tratava a D. Bosco um dia em que o recebeu em audiên­
cia, perguntou-lhe se por motivo do que fizera contra a
Igrej a como Ministro do Estado, incorrera nas censuras
eclesiásticas.
Passados três dias, D. Bosco veio com a resposta :
- Excelência, estudei a questão e fiz tudo para
pod� r lhe dizer que V. Ex. não incorreu nas censuras.
mas não o consegui.
Esta simplicidade do santo agradou ao ministro que
lhe r espondeu : - Eu estava certo de que D. Bosco me
diria a verdade. Estou contente com sua franqueza e
convido-o a recorrer a mim sempre que precisar de
auxílio.
Na primavera de 1874 enquanto exgotava suas fôrças
em favor da côngrua dos Bispos, saindo de uma audiência
do ministro Vigliani, confiava ao Pe. Berto : "Hoje disse

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168 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

duras verdades ao ministro, entre as quais : E' uma ver­


gonha que na Cidade Santa se trabalhe nos dias santos.
O ministro lhe respondera :
- Ora, alguns o fazem por hábito, outros por ne­
cessidade; mas vou me ocupar disso e já começo por lhe
assegurar que no que toca ao govêrno nada se omitirá
p ara impedir êsse mal. - E D. Bosco : "Se V. Excia. o
quiser poderá impedir tal desrespeito. - O ministro
tomou nota, assegurando-lhe que avisaria a Prefeitura
da cidade. Nesse mesmo ano, D. Bosco conseguiu me­
diante a interferência de alto dignitário do govêrno, que
o circo do Coliseu, outrora banhado com o sangue dos
martires, não fôsse profanado com um baile de carnaval.
Irresistível era a sua palavra quando convidava di­
retamente o seu interlocutor a cuidar da salvação da
própria alma.
Visitando uma vez o Conde Cibrario, ministro de
estado, no hotel em que se hospedara de passagem por
Lanzo, conversou durante algum tempo sozinho com o
ilustre diplomata. Chamou-me depois para apresentar­
me ao ministro. Quando entrei na sala, D. Bosco estava
agradecendo ao nobre senhor tudo o que fizera pelo
Oratório e louvando seus escritos e seu estilo manifesta­
va-lhe o desej o de que o Conde honrasse a Itália com
novas publicações. O ministro disse-lhe sorrindo : -
Sim ! Na verdade tenho um trabalho em mãos mas j á
estou velho, com quase setenta anos. - E como D. Bosco
lhe afirmasse a esperança de vê-lo muitos anos ainda,
cheio de vida; o Conde lhe retrucou : - Sim, esperemos;
no entanto o homem é sempre homem e quer queira, quer
não, não pode viver muito tempo.
- Senhor Conde, disse-lhe então o santo. V. Excia.
sabe como lhe quero bem. Pois bem, se a sua vida não
pode ser muito longa, recorde-se que antes de morrer,
tem umas contas a aj ustar com a Igrej a.
A expressão da voz de D. Bosco e, sobretudo a sua
inesperada conclusão, encheu-nos de espanto. O Conde

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FRANQUEZA APOSTÓLICA 169

ficou sério, abaixou a cabeça, refletiu um instante e


depois tomando da mão de D. Bosco e apertando-a, lhe
disse :
- Tem razão ; já pensei nisso e eu o farei, fa-lo-ei
cer'tamente e o mais breve.
Um dia, j antava D. Bosco no palacete do Conde Cam­
burzano e entre os convidados havia um famoso general
reformado. Os pensamentos de religião nunca tinham
preocupado o velho soldado que era bastante frio em
coisas de piedade. O santo sacerdote, depois de ter con­
versado muito tempo com o Conde, com a Condessa e
com o general já ia se despedindo quando o militar, que
durante o jantar não despregara os olhos de D. Bosco,
vivamente impressionado com o bom padre, aproximou­
se dele e lhe disse : - Diga-me alguma palavra e eu a
guardarei como lembrança da sua visita.
- Oh ! Senhor general, reze por mim, reze para que
o pobre D. Bosco salve a própria alma.
- Eu rezar pelo senhor? Peço-lhe que me dê um
bom conselho.
- Reze por mim ! replicou D. Bosco. Como o senhor
bem viu, todos que me rodeiam pensam que eu seja um
santo. Não compreendem como se enganam. Oh ! Ao
menos o senhor me ajude a salvar minha alma.
E como o general insistisse pela terceira vez pedindo
um conselho, D. Bosco, depois de ter assim preparado o
velho coração, lhe disse : - Meu conselho é êste : o se­
nhor também procure salvar a própria alma.
- Ah ! D. Bosco , exclamou o general. Obrigado
pelas suas palavras. Sim, para o futuro quero rezar e
rezarei pelo senhor também, mas o senhor não me
esqueça. E o velho general comentava depois: Oh ! Só
de D. Bosco podia me vir tal aviso e só êle mo podia dar
com tão gentil delicadeza ! - E não tardou em pôr em
ordem os negócios da alma com uma ombridade e serie­
dade que foram a admiração jubilósa dos seus amigos
todos.

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170 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Em 1884 veio um estranjeiro fazer-lhe uma visita;


grande admirador de D. Bosco, falou longamente sôbre
os trabalhos que vinha fazendo na sua pátria como bom
advogado, ardente defensor da liberdade de ensino e j á
agraciado pelo Sumo Pontífice com o título d e Comeu­
dador; o visiltante lhe disse que· embora não militasse nas
falanges políticas nem porisso deixava de patrocinar pri­
vadamente a causa do bem. D. Bosco o escutou com
interêsse e num dado momento lhe perguntou carinho­
samente : - Senhor, esta Religião que v. S. tão honrosa­
mente defende, o senhor a pratica?
Estas palavras desconsertaram o advogado que, enru­
bescendo perguntou :
- Porque me interroga dêsse modo?
- Porque V. S. me trata com tão gentil confiança,
que parecer-me-ia faltar a um dever se não lhe usasse a
mesma amizade e confiança.
O advogado tentou mudar de assunto mas o santo
insistiu na pergunta tendo prêsa nas suas a mão do seu
interlocutor. O visitante perguntou :
- Porque me segura assim?
- E porque o senhor quer se livrar de mim? Res-
ponda à minha pergunta : Esta Religião que tão ardo­
rosamente defende, V. S. a pratica?
- Ah ! D. Bosco já leu no meu coração, não é ver­
dade? - e derramando lagrimas quentes nas mãos do
santo, exclamou em soluços :
- Sim, devo confesar-lhe, D. Bosco ; eu nunca a
pratiquei ; e até não cria mais na Confissão.
- Pois bem, assegure-me que dora em deante a pra­
ticará ; prometa-me que quando nos encontrarmos de
novo, V. S. me apertará a mão dizendo : "Cumpri minha
promessa ! "
- Sim que lho prometo; Apenas chegar à minha
casa, confesar-me-ei e daqui a poucos dias lhe comu-

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FRANQUEZA APOSTÓLICA 171

nicarei esta boa notícia. Dou-lhe minha palavra de


honra. Ah ! Se todos os padres fossem como o senhor,
todos praticariam a religião.
- Se todos se aproximassem dos padres como o se­
nhor, respondeu amavelmente D. Bosco, ninguém falaria
mal dos padres!
Dignos de especial memória, foram os encontros de
D. Bosco com personagens da côrte e ministros de estado.
Quando em 1867 esteve em Roma, D. Bosco teve com
a rainha Maria Teresa, segunda esposa do ex-rei de
Nápoles Fernando II, uma longa audiência. A rainha
desejava que D. Bosco lhe vaticinasse um futuro mais
glorioso e a volta ao trono, mas não recebeu senão esta
resposta literal :
- Majestade, sinto muito dizer-lhe, mas V. M. não
verá mais Napoles.
Voltando a casa, D. Bosco contava êsse colóquio ao
Pe. Francesia e êste lhe perguntou : - E o senhor teve
coragem de o dizer à pobre senhora?
- Naturalmente ! Perguntam-me a verdade e só
posso dizer a verdade.
As palavras de D. Bosco chegaram aos ouvidos de
Francisco II que teve um vivo desejo de falar com o
Santo e se dirigiu, para isso à Duquesa de Sora, residente
na Vila Ludovisi, deixando a D. Bosco a escolha do lugar
do encontro. O santo escolheu a Vila Ludovisi e ai foi.
Celebrou a Santa Missa falando sôbre a fé durante 10
minutos e após a ação de graças disse que estava à dis­
posição do rei. l!:ste estava acompanhado por ilustres
senhores, tais como de Charette, comandante dos
Zuavos Pontifícios. Retiraram-se ambos para uma sala
e trocaram ideas durante três quartos de hora. Depois de
algum tempo o rei lhe perguntou com tôda a franqueza se
iria 1 eadquirir o trono pois todos profetizavam que den­
tre poucos mêses, estaria de novo no seu palácio.

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172 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

D. Bosco se recusou dizendo-lhe não lhe competir


adivinhar o futuro. Como o rei insistisse, D. Bosco re­
trucou claramente :

- Se quer que lhe seja sincero, dir-lhe-ei que V. M.


'
não voltará ao trono.
- E sôb re o que se funda tal afirmação? Sôbre con-
j eturas ou argumentos certos?
- Sôbre argumentos certos !
- Quais são?
- São para mim argumentos seguros o modo com
que os reis de Nápoles trataram a Igrej a.
- Que quer dizer com isto?
- Quero dizer que a Igreja foi tratada em Napoles
com pouca reverência.
- Como? O Igreja não foi protegida?
- Protegida? Por mais de 60 anos vigoraram as leis
febronianas. Um Bispo não podia crismar sem a licença
do rei, não podia fazer ordenações, reunir sínodos, fazer
visita pastoral, corresponder-se com Roma, sem antes ter
obtido o beneplácito do soberano. E isto será proteger a
Igrej a ?
- Mas veja, D . Bosco, era uma medida geral d e
vigilância, era necessidade política, era o temor d e uma
revolução, era precaução para que não fossem violados
os direitos da corôa, eis o que levava o poder civil a
assim proceder.
- E acredita V. M. que tais medidas se possam apro­
var? E o infame tribunal da regia monarquia e da
legação apostólica na Sicilia, que pretendia há mais de
um século que a Igreja lhe estivesse sujeita naquela
ilha? . . . que espionava e impedia qualquer relação do
clero secular e regular com a Santa Sé? . . . j uizes iniquos
que seguiam seus cap·richos usurpando a autoridade do
Papa e do mesmo soberano? li:stes inutilizavam as dis­
posições e ordens dos Bispos, perseguiam muita vez os
bons religiosos, favorecendo os maus e por sua culpa daí

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FRANQUEZA APOSTÓLICA 173

vieram males horrorosos que escandalizavam os fiéis : deso­


nestidade, prepotência, fraudes, introdução de indignos
nos cargos mais elevados, dispersão dos bens religiosos
para usos profanos e outros vexames que não é preciso
enumerar. Tais j uizes eram apoiados ou, quando menos,
toler ados: Eis a causa do castigo de Deus sôbre a dinas­
tia de v. M.
-- Mas S. M. o rei Fernando, meu augusto pai nos
últimos anos do seu reinado, em boas relações com o
Papa, consentira em tirar muitas das desordens que im­
peravam na Sicilia.
- Sim, é verdade ; mas a causa de tantos males reli­
giosos não foram nem puderam ser tiradas. Quis-se con­
servar alguns dos privilégios dêste funesto tribunal que
deveria ser logo suprimido.
Neste ponto D. Bosco ficou algum tempo recolhido e
pensativo ; o rei depois de alguns instantes, prosseguiu :
- E se eu subisse ao trono de meus pais, não acha
que as coisas melhorariam?
- Majestade, conheço a sincera devoção que nutre
para com a Santa Sé, sei as provas luminosas que disto
V. M. já deu. V. M. é filho de uma santa mas será que
c desejo corresponderá à possibilidade? O mau influxo
de certos conselheiros não procurou por muitos anos con­
servar acesas no coração real de seu digno pai as descon­
fianças contra a Roma Papal? Em certos casos, se Deus
não o ajudar poderia V. M. fazer o que seus antecessores
fizeram.
O rei se mostrou quase ofendido por esta suposição
e perguntou :
- Não sabe que ninguem antes do senhor me falou
com tanta franqueza. No entanto agrada-me que m e
falem claramente o que pensam . . . Agora m e diga: Não
acha o senhor que um acontecimento qualquer me resti­
acha o senhor que um acontecimento qualquer inesperado
me poderia restituir o trono?
- Não haveria senão um acontecimento capaz disso
mas êste não se realizará.
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174 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

- Qual seria?
- Uma anarquia geral em que faltando o soberano
conquistador e sua dinastia, o povo, mais cêdo ou mais
tarde, em vista das suas boas e grandes ações recorra a
quent antes já tinham como Rei. Só neste caso poderia
haver esperd.nça: Mas é uma pura suposição.
No fim do colóquio, o rei pediu a D. Bosco que fosse
visitá-los no seu palácio pois a rainha Sofia queria
conhece-lo. A visita foi fixada para o dia 7 de fevereiro,
sexta-feira. D. Bosco deixou o pobre rei pensativo pois
bem tinha desejado um vaticinio mais favorável.
No dia sete de fevereiro, acompanhado pelo Pe.
Francesia, dirigiu-se ao palácio Farnese e aí foi recebido
com todos os sinais de honra. A ante-câmara estava
repleta de senhores da primeira nobreza napolitana.
D. Bosco celebrou na capela do palácio e o -ajudante foi
o mordomo do palácio ; em seguida o rei o levou à sala
onde o esperavam a rainha e suas damas. A rainha Sofia,
muito j ovem ainda, era de poucas palavras e um pouco
reservada. D. Bosco, convidado a se sentar, falou da sua
igreja de Turim e distribuiu medalhas à rainha e outras
damas. Também ao rei que se retirara por instantes,
quando o viu assomar à porta, D. Bosco o chamou e lhe
ofereceu com amavel simplicidade uma medalha como o
teria feito a um menino; Francisco li recebeu a medalha
com vivo reconhecimento. Começou-se em seguida a falar
da sua santa mãe, Maria Cristina de Savoia, cuja causa
de beatificação estava em muito bom andamento e depois
de alguma conversa o rei disse em tom de gracej o :
- D . Bosco, minha esposa desej a ouvir se o senhor
confirma o que me disse na Vila Ludovisi.
- Sôbre o que?
- Se voltaremos a Nápol!;!s.
- Majestade, não sou profeta .mas se devo dizer-lhe
o que penso, acho que V. M. devia desistir de tal
pensamento.

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FRANQUEZA APOSTÓLICA 175

A esta resposta, a rainha inflamando-se exclamou


com vivacidade :
-
- Como é isso ? Será possível o que diz se tôda a
nobreza está do nosso lado, se há tantos amigos fiéis
conosco e o reino italiano é cordialmente detestado?
.

- Faço votos, respondeu D. Bosco calmamente, que


as esperanças de V. M. se realizem mas meu humilde
parecer é que V. M. não tornará mais ao trono de
Napoles !

A estas palavras a rainha fremiu indignada, levan­


tou-se, saudou friamente D. Bosco e se afastou. O rei
acompanhou-a até o salão de entrada. Todos os criados
estavam enfileirados em ato de respeito. Também se
achava presente Monsenhor Di Cesare, promotor da causa
de beatificação da Veneravel Maria Cristina de Savoia e
seu biógrafo.
Saindo do palácio, D. Bosco foi à estação para tomar
c trem que o levaria a Camaldoli onde o esperavam para
a festa de S. Romualdo. No caminho, o santo narrava
confidencialmente ao Pe. Francesia o diálogo que susten­
tara com o rei e a rainha.
O Pe. Francesia, admiradíssimo, perguntou-lhe :
- Porque o senhor entra nesses :particulares?
- Porque me perguntam.
- Eu deixaria ao menos o conforto da esperança
para os pobres exilados.
- Não sei o que farias se te achasses no meu caso
mas sei que devo responder assim. Em primeiro lugar,
êles não têm filhos; em segundo, Nosso Senhor os can­
celou do livro dos reis!
Ainda um testemunho :
Para a inauguração da estrada Turim-Cirié-Lanzo, o
prefeito de Turim tinha pedido que o colégio salesiano de
Lanzo servisse um refresco às autoridades. D. Bosco
acedeu, muito mais porque a cerimônia ia ser presidida

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176 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

por sua alteza o príncipe Amadeu de Savoia ; o santo fez


questão de ir também a Larizo com a banda de música
do Oratório para, como dizia êle, "livrar o diretor de um
aperto".
� cerimônia foi no dia 6 de Agosto de 1876. O trem
todo embandeirado, chegou à estação de Lanzo às 8 % ,
trazendo o s ministros Depretis, Nicotera e Zanardelli,
representante, do rei, com uma comitiva de 400 pessoas.
O vigário Albert, auxiliado por oito clerigos salesianos
benzeu o trem e pronunciou eloquentes palavras. For­
mou-se depois o cortej o. Ia na frente um esquadrão da
cavalaria, seguido por um piquete de soldados em uni­
forme de gala, em seguida a banda de música do Oratório,
o sindico e os ministros. Depois dêstes, vinha o prefeito
e o sindico de Turim seguidos pelos conselheiros mu­
nicipais de Turim e Lanzo, Senadores, deputados e
jornalistas.
Chegados ao colégio, a música tocou a marcha real.
D. Bosco e o Diretor esperavam à porta. O ministro
Zanardelli voltou-se para o Diretor e lhe perguntou :
- Faça-me o favor : o senhor D. Bosco acaso está
por aqui?
- Eis-me, respondeu o santo ; houve recíprocos
cumprimentos e apertos de mão.
Os alunos de uniforme e em posição de sentido espe­
ravam no pátio, divididos em quatro companhias. Os can­
tores executaram um canto muito aplaudido. Depois de
tomar um cálice de vinho, muitos dos presentes se dirigi­
ram ao ·parque precedidos 1por D. Bosco que na companhia
dos ministros foi ter a uma mesa de pedra na face do
j ardim que dá para a torrente de Stura. Alguns se sen­
taram nos murinhos de pedra, outros na mesa, outros
no chão. D. Bosco estava no meio, e com êle estavam
Zanardelll, Depretis, Nicotera, Hercules, Spantigati,
Ricotti e muitos outros enquanto parte do séquito con­
versava nos pórticos ou passeava nas alamedas do
jardim.

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FRANQUEZA APOSTÓLICA 177

Nicotera voltou-se para D. Bosco : - Pois é, senhor


D. Boscos, V. Revma viaj a demais.
- Naturalmente, sou obrigado a visitar meus colégios
duas ou três vêzes por ano.
- E vai também muitas vêzes a Roma?
- Sim., já fui varias vêzes.
- Sabemos que vai sempre ao Vaticano.
- Porque não iria ? E' o lugar dos padres. Onde
poderia ir estando em Roma?
- Dizem que o senhor tem relações bem intimas
com o Papa.
- Vou visitar o Santo Padre que me recebe sempre
com grande bondade. Tenho relações mais ou menos in­
timas conforme S. Santidade se compraz em me outorgar.
Por outro lado tenho livre entrada com os ministros de
estado. Vejam ! Quando ia ter com os ministros não me
Saindo
faziam esperar na antecâmara; era logo recebido.
do ministério, voltava logo a ter com o Santo Padre e
sem ter que esperar podia tratar com êle de alguns ne­
gócios de modo a arrumar muitas coisas. Posso mesmo
dizer que S. Santidade depositava em mim uma con­
fiança, especial. Também S. E.xcia. Vigliani tinha muita
amizade comigo e dava-me em muitas coisas uma liber­
dade quase completa, muito embora êle soubesse que eu
era mais papalino que o Papa.
- E' verdade, interrompeu o deputado Ferraris ; e
eu posso dar testemunho das palavras que Viglianl disse
ao deixar o ministério : Considerem precioso D. Bosco :
talvez seja o homem que maiores serviços possa prestar
ao país.
- Eu, prosseguia D. Bosco entre a mais viva atenção
dos presentes, eu aceitava encargos de tôda a espécie e
posso afirmar que o Papa me deixava falar sem me inter­
romper mesmo no que lhe causava aborrecimento. Eu
não queria encargos oficiais mas muitas coisas tinham
sido combinadas com Vigliani e por imprudência de
alguns não puderam ser realizadas.

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178 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

- Ai, ai ! - exclamou Nicotera. O Senhor não diz


tudo o que pensa.
- Eu? Porque? .
- Porque é esperto demais.
- · Onde quer que esteja a minha esperteza? O que
tenho no coração, tenho nos lábios. Não há segrêdo
cognoscivel que eu não diga a todos. Tudo o que eu
quero fazer, já o sabe até o último aluno de meus colé­
gios. Se a esperteza consiste nisto, eu sou na verdade
bem esperto. Quanto à Religião, estou com o Papa e me
glorio de o estar.
- E quanto à atual situação política?
- Obedeço às autoridades constituidas.
- No entanto p arece-me que o senhor não nos diga
tudo.
- Desculpem, senhores ; mas pelo modo com que
falo, podem perceber que não estou aqui para adular ;
homem franco e leal torno sempre conhecidos os meus
sentimentos.
Neste ponto, o Senador Ricotti, o historiador, o inter­
rompeu :
- Está tudo muito bem, mas D. Bosco tem duas
manchas perante o Ministério da oposição.
- Quer dizer-me quais são? Assim veria se é pos-
sível corrigir-me.
- A primeira é que faz padres em demasia.
- E a segunda?
-'- Faz professores demais.
- Mas, senhor senador, eu não vejo em que esteja
eu errado assim agindo. Quanto ao primeiro ponto nada
direi em minha defesa. Os que faço padres não são de­
mais e até são poucos em confronto com os que entraram
nos .· gabinetes do país, no exército, nas profissões liberais,
nas artes e ofícios. Não compreendo como V. Excia. possa
afirmar que um padre não tenha razão, procurando ins­
truir a outros que o ajudem no seu ministério. Creio que
dos presentes, desde o primeiro até o último, todos gos-

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FRANQUEZA APOSTÓLICA 179

tariam de infundir nos outros o próprio espírito e pro­


duzir o maior número possivel de homens semelhantes a
si empenhados no. bem público. É pois natural que um
padre deseje outros padres. Que diria de um militar que
não procurasse fazer bons militares? Um médico desej a
formar m uitos outros médicos; assim um advogado . . .
Se eu negligenciasse tal coisa dir-se-ia: que não amo a
minha batina.
- Dom Bosco tem razão, disseram os ministros em
côro.
- Quanto ao segundo ponto, serei eu que formo pro­
fessores em demasia? Quem me obriga a isto? V. Excia.,
senhor ministro, que sustentando no Parlamento as leis
sôbre os títulos dos professores, me dependurou pelos
cabelos. Não procuro outra coisa senão obedecer a uma
lei que me foi imposta. Se nós quisermos um ·colégio em
funcionamento é preciso providenciar patentes, láureas,
etc . . . Se V. Excia. achar um êrro o esfôrço máximo em
procurar obedecer às leis do país, incorrí neste êrro. Es­
tou certo de que todos estão de acordo comigo neste pon­
to. Por outro lado : ai de nós se nos nossos colégios não
houvesse professores diplomados! Os senhores, e acenava
aos ministros, far-me-iam dançar.
- D. Bosco tem razão; êle nos tapa a bôca - repli­
caram os ministros.
Começou então alguma pilhéria.
- Diga- uma coisa, D. Bosco - exclamou o deputado
Hercules - o senhor que lê nos corações, pode nos dizer
qual é o maior pecador, Nicotera ou Zanardelli?
- o que posso dizer? Quanto à aparência elas
muitas vêzes enganam e quanto ao interior eu não os
conheço.
- E o senhor, que opinião tem de nós dois?
- Creio que sej am cavalheiros educados.
- Particularize.
- Estimo a ambos. O senhor Zanardelli é um
advogado de pulso, cuj a fama já encheu a Itália ; é

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180 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

conhecido pelos trabalhos de estatística, tão úteis e


interessantes.
- Não saia do argumento, insistiu Hercules, respon­
da à minha pergunta : "Qual dos dois é maior pecador?
- V. Excia., me põe num aperto. O que quer? Re­
pito que quanto à ciência, ambos são celebres na Itália ;
se olho para os trabalhos que vêm realizando devo con­
cluir que dificilmente algum se lhes assemelhe ; mas se
me perguntam do lado moral, não tenho resposta porque
os não conheço.
Nicotera voltou-se ,para Hercules e lhe disse : - Por­
que te serves de mim para têrmo de comparação? Nada
tenho a vêr com isso. Pergunta antes a D. Bosco se tu
és pecador maior do que os outros.
- Não tenho nenhuma vontade de me converter,
replicou Hercules.
- Nesse caso, você é mais pecador do que eu pois
conhece o mal e o faz. Não lês na Bíblia: Desiderium
peccatorum peribit? Que diz a isto, D. Bosco?
- Que devo dizer se me tiram a palavra da bôca?
Além disso, para conhecer aos senhores não basta que
venham aqui apenas por uma hora mas para fazer o
Retiro Espiritual ; pensar antes na vida passada, na
morte que vem pôr termo à cena dêste mundo, nas vai­
dades das coisas terrenas o na preciosidade das celestes;
nos juizos de Deus, na eternidade ! . . . pensar que na
hora da morte o que nos dará alegria há de ser o bem
que fizemos ao passo que tudo mais servir-nos-á de afli­
ção. Depois de tudo isso, se os senhores fizessem uma
sincera confissão geral então poderia dar meu parecer.
- Diga-nos uma coisa : Acha que nos salvaremos?
perguntam-lhe em tom de brincadeira aqueles
senhores.
- Oh ! Eu bem o espero, pois a graça e a miseri­
córdia de Deus são tão grandes . . .
- Mas nós não queremos nos converter de um mo­
mento para outro.

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FRANQUEZA APOSTÓLICA 181

- Querem dizer que quereriam se converter . . . mas


·
continuando a viver como vivem . . . ou então, desej a-lo-
iam mas não sentem coragem . . .
- Sim, j ustamente isso . . .
:..__ Então, concluiu D. Bosco, eu não teria mais a
lhes dizer âenão repetir o que há pouco foi dito : Desi­
derium . . . etc.
- Sim ! Sim ! Isto te serve, Nicotera. ! - disse um.
- E para você também replicou outro.
Morreu êste assunto e se falou de vários argumentos
que omitiremos por amor à brevidade ; D. Bosco não dei­
xava de dizer de quando em vez, uma verdade um pouco
chocante. Todavia a sua palavra amável, e a simplici­
dade do seu
modo, excluiam qualquer acrimônia ou
ofensa pessoal de modo que todos o rodeavam atentos
gracejando mas sem que se ouvisse uma só palavra com
ressaibos de desprêzo. D. Bosco os dominara por
completo.
Zanardelli naquele dia mostrava algum sofrimento ;
talvez era uma angústia interior que o atormentava ou
sentia algum mal estar.
- V. Excia. não se sente bem, hoj e ? - perguntou-lhe
o santo.
- Não, na verdade.
- Então procure se curar ! Estás palavras de D.
Bosco tiveram sôbre Zanardelli um efeito estranho pois
o olhar de D. Bosco falara então mais do que a língua
pronunciara.
Nicotera colhera uma flôr e a pusera à lapela, con­
servando-a durante o dia inteiro. Os j ornalistas nota­
ram-no e viram nisso uma prova de afeto para com D.
Bosco.
Aos poucos muitos deputados e senadores foram che­
gando ao j ardim e então os mil\istros se dirigiram para
os pórticos seguidos por tôda a comitiva. D. Bosco estava
ladeado por Nicotera e Zanardelli. Depretis vinha atrás ;
não dissera uma palavra.

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182 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Foram até as poltronas e obrigaram D. Bosco a sen­


tar-se no meio. Ao seu lado estavam Nicotera, Hércules,
Ricotti ; Depretis ficou de pé apoiado à poltrona de D.
Bosco. Zanardelli foi buscar uma poltrona a uns 4 me­
tros e a pôs defronte de D. Bosco. Assim completou-se a
roda. Todos· se maravilhavam vendo ser D. Bosco o rei
da festa.
A Comissão dos festejos calculara em vinte minutos
a permanencia dos -ministros no colégio e lá ficaram
hora e meia. Muitas vêzes o sindico lhes dizia : - Se­
nhores, está na hora ! - Ainda um momento ! era a
resposta.
As 1 1 horas se levantaram e convidaram insistente­
mente D. Bosco p ara o almoço mas o santo se excusou,
agradecendo. Tinham-se tornado expansivos, alegres e
quase diríamos, afetuosos. Aquela acolhida cordial os
tinha entusiasmado. Zanardelli manifestou sua mais
viva satisfação. Nicotera ao se despedir, disse aberta­
mente : Tive uma alegria imensa, sim, uma dessas ale­
grias que só se tem uma vez na vida. - A não ser que,
acrescentou Zanardelli, viessemos de novo a um colégio
de D. Bosco.
Ao sair do colégio, Zanardelli, vendo um salesiano
no meio da multidão, pôs-lhe as mãos nos ombros como
para abraçá-lo e lhe disse ao ouvido :
- "Diga a D. Bosco que eu não poderia sentir-me
mais feliz do que me sinto pela acolhida; diga-lhe que
lhe ficarei muito grato. Saúde de minha parte os que­
ridos alunos e diga-lhes que não os esquecerei. Agradeça
aos superiores, alunos, músicos e cantores. Os v-ersos que
recitaram já os decorei em parte e quero decorá-los todos ;
não os esquecerei e tra-los-ei gravados no coração. Diga­
lhe tudo isto e não se esqueça. Farei pelo colégio tudo
que eu puder".
Uniu-se aos demais enquanto os alunos gritaram
um outro viva. Os ministros se voltaram e agradeceram
com mil saudações. Os soldados apresentaram armas.

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FRANQUEZA APOSTÓLICA 183:

D. Bosco acompanhou os ministros até a metade da praça


e depois de muitas saudações voltou ao colégio.
A música do Oratório conservou em viva alegria os
alunos durante o dia inteiro. D. Bosco estava contente.
De p ois do �!moço sentado sob o pórtico, rodeado de cle­
rigos e padres, começou a falar ! - Creio que faz muitos.
anos que êsses senhores não ouviam tanto sermões
quantos ouviram hoje. De uma parte são uns infelizes
que nunca ouvem uma palavr a sincera nem uma ver­
dade que não os enraiveça. Recebi-os cordialmente e
com o coração nas mãos disse-lhes tudo que a ocasião
me permitia; disse-lhe até tôdas as verdades que podia
lhes dizer sem ofendê-los. Talvez nunca tenham feito.
um retiro espiritual mas hoje o fizeram aqui mesmo.
E continuava :
- E' preciso pôr em prática o que temos no Evan­
gelho : Dai a Cesar o que é de Cesar. Nada fizemos
senão obsequiar as autoridades legitimamente constitui­
das. Além disso penso que obtivemos muitas vantagens.
Não serão mais inimigos acerrímos dos padres. Persua­
dir-se-ão, pelo modo com que os tratamos, que os padres
só desejam o bem de todos ; acho que todos na hora da
morte desejarão ter um padre à cabeceira.
Nesta e em muitas outras circunstâncias, D. Bosco.
não fez mais do que seguir os conselhos que Pio IX dera
ao Venerável Ludovico de Casaria e que o Cardeal Ca­
pecelatro nos aponta :
- "O Pe. Ludovico dissera ao Papa em 1860 : Bea­
tíssimo Padre, vem a revolução. Que devo fazer? Fe­
char-me na cela rezando ou lançar-me no fogo traba­
lhando? Os inimigos quereriam servir-se de nós para o
mal; poderemos nós servirmo-nos deles para o bem? -
E o S. Padre, inflamado de zelo, respondeu : "Volta a
Nápoles, ó filho de S. Francisco ; sai da tua cela e lança­
te como disseste em meio ao fogo, trabalhando ; serve­
-te dos teus inimigos para fazer o bem e assim muito.
merecerás aos olhos de Deus".

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CAPITULO XII

Confiança na divina Providência

Contínua era a confio.nça de D. Bosco na Divina


Providência. - Não se aborrecia. com as necessidades
de cada dia - A oração sustentava sua confio.nça -
Socorros extraordinários - A Divina Providência. muitas
vêzes antecipava seus pedidos - Fatos maravühosos -
Auxilios dos humildes - Como constantemente D. Bosco
fazia. o que podia - Modêlo de. pedidos de auxílios -
Súplicas às autoridades - Um meio singular - Apre­
senta as necessidades, mas não insiste - Assim queria
que aprendessem os seus filhos - Prudência e con·
fiança heróicas - dialogo entre D. Bosco e D. Rua.

Quem estuda a vida de D. Bosco logo vê que três


virtudes foram sempre nele extraordináriamente gigan­
tes : a fé que orientava seus minimos pensamentos, pala­
vras e ações ; a caridade em que seu coração ardeu por
Deus e pelas almas; e a confiança ilimitada em Nosso
Senhor, sôbre a qual fundamentou tôda sua obra. Se a
sua caridade é universalmente decantada, não são tidas
no mesmo conceito a sua fé e sobretudo, sua confiança
em Deus, por serem talvez menos conhecidas; no entanto
a fé inspirou-lhe a caridade e a confiança a amparou.
O que lhe infundiu tão grande zelo pelas almas e tão
profunda compaixão para com a miseria de todos? O
que o tornou tão ousado em empreender com uma tran­
quilidade que parecia imprudência aos olhos do mundo,
as obras colossais que acabaram por despertar geral
maravilha? - A glória de Deus e a confiança nele.
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186 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

"Com o auxílio desta amável Providência Divina,


deixou escrito aos Salesianos, pudemos fundar igrejas e
casas, dota-las de móveis e cuidar dos alunos que nelas
se acham". "Mas destas obras, protestava frequente­
mente, D. Bosco não é senão um humilde instrumento, o
artista é Deus. Ora, compete ao artista e não ao instru­
mento, providenciar os meios de realizar e manter suas
obras ; a nós compete . apenas sermos dóceis e maleáveis
r;as suas mãos".

"Oh ! - exclama o cardeal Cagliero - a sua con­


fiança em Deus e na Virgem Maria, era portentosa !
Durante 35 anos que estive ao seu lado, nunca o vi um
só momento aborrecido, desanimado ou inquieto pelas di­
vidas que pesavam sôbre o Oratório nem pelas lutas para
nutrir seus alunos".
Em 1850 como consequência da guerra e mais tarde
por outros fatos lastimáveis, a sua família adotiva muitas
vêzes se achou na penúria. Sabia-se que no dia seguinte
não q avia nem pão e nem um vintem em caixa, mas D.
Bosco dizia trariquilo : Comam, meus filhos ; para amanhã
haverá alguma coisa. De fato, a Divina Providência
nunca o abandonou e embora o número de alunos
crescesse contínuamente e as condições financeiras fos.,.
sem precaríssimas, nunca precisou mandar embora do
Oratório por falta de pão e roupa nem um aluno sequer.
Não se aborrecia com as necessidades de cada dia
nem com o futuro de sua obra mas repetia muitas vêzes
aos seus alunos na bôa-noite : Rezem e os que puderem,
façam uma comunhão por minha intenção ! Garanto­
lhes que também eu estou rezando e até mais que
vocês . . . acho-me em grandes embaraços e preciso de uma
graça que mais tarde lhes contarei . . . - e depois de
alguns dias, contava ter recebido alguma soma vultuosa,
alguma esmola, igual à sua necessidade, exclamando : -
Nossa Senhora hoje, hoje mesmo, concedeu-nos assina­
lado favor ; agradeçamos-lhe de coração e rezemos pois
Nosso Senhor não nos abandonará. A oração foi o con-

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CONFIANÇA NA DIVINA PROVIDÊNCIA 187

fôrto e o auxílio da sua confiança ; quando se via em


dificuldades recomendava aos seus filhos orações par­
ticulares.
Em princípios de 1858 devia pagar uma dívida avul­
tada .e não tinha com quê. O credor já esperara um
pouco, mas queria ser pago no dia 20 de j aneiro sem
falta. No dia 12, nada ainda viera dar esperanças a D.
Bosco. Em tal aperto, o santo se dirigiu aos seus alunos :
- Hoje preciso de uma graça particular ; no tempo
em que eu estiver ausente, preciso que um de vocês
esteja na igreja rezando.
D. Bosco foi à cidade e os alunos obedeceram. Eis
que perto da igrej a das Missões, um senhor desconhecido
lhe pergunta : - D. Bosco, é verdade que precisa di­
nheiro? - Sim. Tenho grande precisão. - "Se é assim,
tome". E lhe apresentou um envoltório no qual havia
varias notas de mil liras. Maravilhado com tal presente,
·o santo hesitava se devia aceitar sem saber se era uma
brincadeira.
- Mas porque motivo me oferece esta quantia?
- Tome, repito-lhe e use-a em favor dos seus alunos.
- Então, muito obrigado. Nossa Senhora lhe pa-
:gará. Se quiser, vou passar duas linhas de recibo.
- Não; não é preciso !
- Ao menos queira dizer-me o seu nome.
- Não, não procure sabe-lo. O doador não quer que
c conheçam ; pede apenas que rezem por êle . . . Pode
fazer o que quiser com o dinheiro e não se preocupe com
·o resto. - Afastou-se então e D. Bosco voltando ao
Oratório mandou logo pagar o seu credor.
No ano seguinte, em 1859, um dia, narra D. Cagliero,
entrou no refeitório na hora do . almoço mas p-reparado
para sair. Cheios de admiração lhe perguntamos : Como,
D. Bosco ; não vai almoçar? - Não, hoje não posso al­
moçar na hora costumeira, e até é preciso (disse voltan­
do-se para o Pe. Alasonati, prefeito, para o Pe. Rua,
para mim e outros clerigos) é preciso que saindo do

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188 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

refeitório depois do almoço, vocês se encarreguem que


desde agora até as três horas esteja sempre um de vocês
e alguns dentre os melhores alunos deante do S. S. Sa­
cramento . . Hoje à noite, se conseguir a graça desej ada,
lhes direi o moti'lo.
Cumprimos as ordens de D. Bosco e rezamos até as
3 horas. A noite D. Bosco voltou tranquilo como saira e
�atisfazendo as nossas perguntas insistentes e impor­
tunas, nos disse :
- Hoje às 3 horas expirava um compromisso muito
sério com o livreiro Paravia, de dez mil liras ; caso não
fosse saldada a conta, tanto êle como o oratório teriam
sofrido grande prejuizo. Também havia outras dividas
urgentes e essas subiam outrossim a dez mil francos.
Saí em busca da Providência, mas sem destino fixo.
Chegando à Igreja de N. Sra. da Consolação, entrei e
pedi à Virgem que não me desamparasse. Sai e andei
de um lado para o outro até às 2 horas e nessa hora
entrei numa ruazinha que ia ter à rua do Arsenal, quando
vejo um indivíduo muito bem vestido, que me disse : -
"Oh ! O Senhor é D. Bosco, se não me engano. - Sim,
às suas ordens. - Vej a ! Estava mesmo à sua procura
e devia ir ao Oratório para isso ; assim, o senhor me
poupa uma caminhada ; eis um envoltório que meu patrão
lhe manda. - Mas que há nêsse envoltório? - Não
saberia dizer.
Abri e achei muitos cheques de grandes somas. -
Quem me manda êstes cheques? - Não devo dize-lo . . .
j á cumpri minha obrigação ; passe bem. Fui então à
casa Paravia e verificando os cheques achei quantia su­
ficiente para pagar as dez mil liras e cobrir muitas outras
dividas urgentes. Oh ! Como é grande, meus filhos, a
Divina Providência ! Como nos quer bem ! Como lhe
devemos ser gratos ! Sêde sempre bons ! Amai muito a
N. Senhor e não o ofendais para que assim não nos falte
o necessário.

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CONFIANÇA NA DIVINA PROVIDÊNCIA 189

Nesse momento, continua D. Cagliero, nós víamos o


seu rosto transfigurado, ouvíamos-lhe na voz algo de mais
afetuoso e suave, não tanto pela alegria e admiração
quanto pela gratidão e amor para com N. Senhor . . .
. Em 1860, na vigília de uma festa, apresentava-se a
D. Bosco pelas 11 da manhã o padeiro dizendo-lhe brusco
que se não fosse pago logo não mandaria o pão nem
para o j antar daquele dia. Em casa não havia mais do
que o pão necessário para o almoço ! Palavras e pro­
messas não o acalmaram. D. Bosco mandou buscar o
chapéu e o sobretudo. Era uma hora e meia e os clérigos
Turchi, Anfossi, Gttrino e outros conversavam no pórti­
co quando D. Bosco passa por eles e lhes diz : Façam-me
um favor : vão à igreja e rezem durante vinte minutos
por minha intenção. Alternem-se dois de cada vêz até a
hora da aula. Hoje estou em grande dificuldade. - Sem
saber o motivo, aqueles filhos carinhosos fizeram quanto
Dom Bosco desejava e quando estavam na aula, viram
D. Bosco já de volta. No dia seguinte, lhes disse :
- Agradeço as orações de vocês. Eu tinha que fazer
importante pagamento ao padeiro Magra fornecedor do
Oratório e que protestava não mandar nada mais se não
fosse pago hoj e mesmo. Não tinha eu dinheiro algum e
não sabia onde achar. Euquanto vocês rezavam, girei pe­
la cidade sem saber aonde ir, quando ouço chamarem-me ;
era um senhor que me disse : "D. Bosco, meu patrão man­
dou-me ter com o senhor; ele está doente e quer lhe fa­
lar." Atendí logo e o lacaio acompanhou-me até um bom
senhor que, já havia muito tempo, estava de cama. Aco­
lheu-me com grande bondade, pediu notícias do Orató­
rio e depois de conversar comigo, entregou-me um envol­
tório com a quantia que eu precisava. E assim pudemos
contentar hoje o padeiro.
Mais ou menos em 1862 D. Bosco devia entregar o
dinheiro de várias contas aos fornecedores de madeira,
ferro, couro, panos e outro material das oficinas, e não
sabia onde achar a quantia necessária. Cheio de confian-

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190 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

ça na Providência, não podendo falar com os alunos que


estavam em aulas, pediu ao cozinheiro e outras pessoas
piedosas que fossem à igreja rezar o rosário por intenção
dele ; saíu então cheio de confiança. Mal chegara à rua
ao lado do Manicômio, um indivíduo lhe entregou um
envelope lacrado dizendo-lhe : Isto é para as suas obras !
e sem acrescentar nada, se retirou. D. Bosco abriu o en­
voltório e dele tirou sete mil francos.
Sempre que tinha alguma necessidade, a Divina Pro­
vidência, qual mãe carinhosa ia ao seu encontro e às
vêzes se antecipava até.
Um credor, furioso por não ter sido pago já ia sair
do escritório de D. Bosco ameaçando-o com uma citação
j udiciária, quando entra um benfeitor e entrega ao santo
a quantia de 3.000 liras, j ustamente a importância da
conta a ser paga.
D. Rua escreve : "Em 1867 certo dia D. Bosco devia
pagar a um credor tezentas liras. Por esquecimento ou
inadvertência de quem recebera o aviso , chegou-se ao
dia em que se daria o sequestro se a soma não fosse pa­
ga. Logo pela manhã avisaram-me disso por ser eu o
prefeito. Eu não tinha dinheiro nenhum, fui ter com D.
Bosco e achei-o nas mesmas condições que eu e ainda
por cima tinha que viajar naquele mesmo dia.
No entanto, cheio de confiança em Deus, o santo me
respondeu :
- Vá ao seu escritório, chame o indivíduo que deve
levar a quantia ao credor e mande-o ficar esperando ali
pois Nosso Senhor providenciará.
Lá pelas nove horas chega o Cavalheiro Carlos Oc­
celletti e diz a D. Bosco :
- Recebi uma quantia e acho que o senhor não fi­
ca triste se eu lha der.
- Pelo contrário, nada temos em caixa e precisamos
fazer um pagamento hoje mesmo, agora cedo.
- Não é grande coisa que lhe trago, não passa de
,00 liras.

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CONFIANÇA NA DIVINA PROVIDÊNCIA 191

- Precisamente o que desej amos; V. S. é o instru­


mento da Providência Divina; faça o favor de levá-la
a D. Rua que o espera devotamente.
"O Sr. Carlos Occelletti veio ter comigo e ao ouvir
esta . narração chorou de alegria. Mandei imediatamente
a soma por. um aluno e este ao voltar me disse já ter

sido lavrada a ordem de sequestro mas ele chegara antes


que o encarregado saísse e assim poude impedir a exe­
cução."
Estes casos aconteceram com maior frequência nos
últimos anos da vida de D. Bosco pois em vista do au­
mento e desenvolvimento de suas obras, as necessidades
se faziam mais prementes e a saúde do santo já não lhe
permitia sair como outrora em busca de socorros.
Em agosto de 1884 D. Bosco e o clérigo Viglietti eram
hóspedes do bispo de Pinerolo. Estavam um dia senta­
dos num murinho do j ardim do palácio, quando um crea­
do toruxe a D. Bosco duas cartas. Leu-as e começou a
chorar. Viglietti assustado perguntou-lhe o motivo: -
Nossa Senhora nos quer bem ! Leia estas cartas.
Numa delas se pedia a devolução de 30.000 liras que
um senhor emprestára a D. Bosco, na outra uma nobre
senhora belga perguntava como podia empregar para a
glória de Deus 30.000 liras !
O clérigo Viglietti naquele mesmo ano tomou nota
de outras maravilhas.
Em 1883 "tinham sido empregadas 30.000 liras para
ada;ptar um local em Mathi Turinês que servisse de mo­
radia aos filhos de Maria Auxiliadora. Estava D. Bosco
almoçando com o Conde Colle e pensava no modo de
pagar ao empreiteiro que realizara tais trabalhos. No fim
do almôço, o Con de que nada sabia disso, entregou a
D. Bosco um envelope com dinheiro para as obras que
o santo tinha em mãos. D. Bosco abriu-o e sorrindo con­
tou ao Conde que j ustamente as 30.000 liras que ali esta­
vam tinham sido a preocupação durante aquelas últimas
horas e que por isso o Conde Colle fora admirável ins-

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192 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

trumento da Divina Providência. O nobre benfeitor cho­


rou de comoção." No mesmo ano "estava D. Bosco em
S. Benigno Canavês para presidir ao retiro espiritual dos
seus ,filhos queridos. Tinha ao seu lado o P. Rua e o
P. Lazzero e planejavam o modo de arranjar 20.00Q liras
.
para pagar uma dívida inadiável. Estava-se em grande
penúria com imensa aflição dos Superiores. Enquanto
pensavam e discutiam, D. Bosco abria uma carta que
recebera. Era um benfeitor que avisava ao santo ter à
sua disposição 20.000 liras para ser empregadas em obras
de beneficiência. - São fatos de todos os dias, afirmava
D. Bosco. No entanto, os pósteros não acreditarão e ta­
xarão de fábulas."
No dia 4 de dezembro de 1884, D. Bosco dizia ! -
Como é grande a Providência ! O P. Albbera me escreve
que não pode ir adeante sem a importância de mil fran­
cos e uma Senhora de Marselha que desejava ardente­
mente revêr um filho, religioso em Paris, satisfeita por
ter obtido tal graça por intercessão da Virgem Maria,
dá no mesmo dia 1 .000 francos ao P. Albera. O P. Ron­
chail em grandes dificuldades, precisa urgentemente de
4.000 francos e no mesmo dia uma benfeitora põe à dis­
posição de D. Bosco a quantia necessária. O P. Dalmazzo
não sabe mais onde arranjar dinheiro e hoje uma senho­
ra envia para a Igrej a do S. Coração uma soma vultuo­
síssima.
No dia 14 de agosto de 1886 o prefeito P. Durando
vai ter com D. Bosco e lhe leva embora todo o dinheiro
que havia em caixa para pagamentos urgentes. Mal saí­
ra o P. Durando, entra um forasteiro que havia certo
tempo esperava sozinho na sala de entrada. D. Bosco lhe
disse : Perdoe-me se o fiz esperar, o prefeito da Congre­
gação velo vêr-me e levou todo o dinheiro de que dis­
púnhamos; eis D. Bosco sem um vintem.
- Mas, D. Bosco, se neste momento o senhor pre­
cisasse de uma soma urgente, como faria? - Oh ! a Pro-

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CONFIANÇA NA DIVINA PROVIDENCIA 193

vidência ! . .
. A Providência ! . exclamou D. Bosco com
os olhos marejados de lágrimas.
- Sim ! A Providência ! . . . está bem ! Mas se o se­
nhor precisasse de dinheiro neste momento?
� Neste caso, respondeu o santo com ar misterioso,
dir-lhe-ia, meu bom senhor : vá à sala de espera e lá
achará uma pessoa que traz uma oferta para D. Bosco.
- Como? O senhor fala sério? Quando eu entrei,
não havia ninguém.
Como o senhor soube?
- Ninguém me disse nada mas eu o sei e Nassa
Senhora também. Vá, vá vêr.
O visitante saiu e encontrou um homem a quem per­
guntou :
- O senhor quer falar com D. Bosco? - Sim, trouxe­
lhe uma oferta.
Não há palavras para narrar a admiração geral.
Todos louvavam e agradeciam a Nosso Senhor.
O que se disse até agora prova a bondade da Divina
Providência a eficácia da oração e a generosidade das
almas boas mas ao mesmo tempo deixa entrever um péso
de sofrimentos angustiosos experimentados com alegria
por D. Bosco. Um eclesiastico, seu ex-aluno, tendo ido
levJJ.r-lhe uma esmola, ouviu D. Bosco dizer-lhe : - Neste
ano já tive de pagar quatro milhões e pude faze-lo com
o auxílio divino; o pouco faz o muito ; preciso que me
ajudem com quantias mesmo pequenas. - E era sempre
assim. Como sua caridade se dirigia principalmente em
favor dos humildes, Deus dispunha que as ofertas também
lhe viessem das mãos dos humildes e em tão grande
número que ultrapassavam as grandes ofertas dos ricos.
Uma ocasião D. Bosco estava aflito por uma divida
de 300 liras que devia pagar sem dilação e eis que entra
no pátio um homem de idade madura e lhe diz : - S01,1
um funcionário público aposentado. Fiz umas economias
com meu ordenado e pensei em empregá-la em benefício
da minha alma. Eis esta carteira.

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194 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

- Mas o senhor reservou alguma coisa para si num


caso de doença?
- Há uma Providência ; ora, antes de morrer quero
adquirir algum merecimento. Se cair dciente, há muitos
hospitais.
D. BoscO ao abrir a carteira achou precisamente
300 liras.
Um dia veio falar-lhe uma pobre viúva de 75 anos.
Parecia ter vindo apenas para fazer-lhe um pedido. -
Não ! dizia ela. - Quero falar co.m D. Bosco. E ao vêr
o santo, disse :
- Sou uma pobre velha; sempre trabalhei para sus­
tentar minha família mas o único filho que me restava
j á morreu; não me resta senão morrer eu também ; não
tenho herdeiros; antes de morrer meu filho me disse que
désse de esmolas tudo o que sobrasse do necessário ; eis
cem francos; são a economia de 50 anos. Tenho ainda
quinze francos mas os conservo para meu caixão fune­
rário ; tenho também uma pequena quantia para o médico.
Hoj e vou para a cama e será negócio de poucos dias. -
D. Bosco respondeu-lhe :
- Recebo os 100 francos mas não tocarei neles até
depois da morte da senhora. Precisando mande-os bus­
car pois lhe pertencem.
- Isso não ; quero ter o merecimento da esmola,
use-os como quiser. Se eu precisar de alguma coisa
pedir-lhe-ei de esmola e assim o senhor terá também
méritos perante Deus. o senhor não virá me fazer uma
visita?
- Certamente !
No dia seguinte D. Bosco comovido com a caridade
tão ingenua da pobre velhinha queria fazer-lhe uma
visita mas não se lembrava do enderêço. Após dois dias
uma pobre mulher veio chamá-lo. D. Bosco foi depressa.
Apenas entrou no quarto reconheceu a velhinha que sor­
rindo lhe disse de nada precisar.

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CONFIANÇA NA DIVINA PROVIDÊNCIA 195

- Precisa ! - exclamou D. Bosco. - Precisa de


alguma coisa senão não me teria chamado.
- Preciso apenas de receber os últimos sacramentos.
· Recebeu-os com grande piedade e morreu sossega­
dinha.
D. Bosco, como êle mesmo o disse ao Ministro Lanza,
ia adeante sempre a vapor pois a locomotiva correndo
sóbre os trilhos diz sempre "puff, puff, puff" ; e em pie­
montês "puff" quer dizer "divida". Mas não se julgue
que êle confiava cegamente apenas na Providência como
aquela vez que adormeceu plàcidamente em pleno gabi­
nete do ministro Lanzi que o deixou descansar longo
tempo com religiosa admiração. Não ! A esta confiança
inteira na Providência, unia D. Bosco o empenho mais
diligente para se provêr dos meios necessários. Quem
pode contar as visitas que fez, as cartas que escreveu, as
circulares que espalhou, as rifas que empreendeu e cem
outros expedientes de que se valeu?
o arcebispo de Turim, D. Davi dei Conti Riccardi
costumava dizer :
"Temos em Turim dois prodigios : o Cottolengo e D.
Bosco ; tanto um como o outro têm o próprio espírito e o
devem manter. A Casa da Providência nada deve pedir
e faz muito bem pois a Providência se incumbe de lhe

enviar os milhares de liras necessários para a manu­


tenção dos 5 . 000 internados (hoje 12 . 000) . Dom Bosco
ao invés foi inspirado para recorrer à caridade pública.
Ai ! do Cottolengo se adotasse o sistema de D. Bosco ; ai !
de D. Bosco se adotasse o sistema do Cottolengo !
E D. Bosco pediu sempre, usando as formas mais va­
riadas, engenhosas e prudentes. Eis um exemplo :
No dia 3 de Setembro de 1856 pedia ao conde Galleano
d'Agliano que lhe enviasse um auxílio ; valeu-se · de afe­
tuosa carta sob a forma de diálogo :
"D. Bosco: - Bom dia, nobre senhor, posso fazer-lhe
uma visita e falar-lhe um pouco?

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196 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Conde - Oh ! D. Bosco ! Bom dia ! Como vai? Chegou


assim de sopetão ! . . .
D. B. - A minha demora aqui é muito bréve e por
isso não o preveni.
c ' - Se ao menos tivesse vindo no dia de S. Filo­
mena, teria v isto nossa bela festa !
D. B. - Desejei mesmo vir nesse belo dia e já tinha
começado uma carta para lhe pedir licença mas algumas
ocupações fizeram-me mudar de idéia. Desculpe-me,
como vai a Senhora Condessa, sua nobre família e José?
C - Graças a Deus vão todos bem. Eu é que me
cansei com o calor destes dias.
B - Como foi a lavoura?
C - Não vai mal o negócio por . lá. O trigo e o
milho diminuiram um pouco.
B - José está trabalhando? Estudando?
C - Sim, começa a fazer alguma coisa . . . Mas
afinal a que devo sua visita ?
B - Quero que aceita uma cópia d a História da
Itália.
C - Está bem, farei que minhas filhas e José a
leiam ; muito lhe agradeço.
B - Não fale de agradecimentos pois eu deveria
fazer um livro para agradecer-lhe.
C - Os seus alunos? A casa vai bem? E de finan­
ças, como vai?
B - Em dificuldades; se me der uma esmola não a
recuso mas o fim desta. visita é pedir-lhe uma lista de
familias desconhecidas para. que eu lhes ofereça algumas
cópias de História da Itália e agradecer-lhe pelo que tem
feito e futuramente fará pelos nossos alunos.
C - Não deixarei de fazer o que puder pelos seus mo­
lequinhos; reze e mande rezar por mim e pela· família
peça a N. S. que conserve os frutos do campo e dê a paz
de espírito a nós todos.

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CONFIANÇA NA DIVINA PROVIDÊNCIA 197

- Farei quanto me diz e rogarei ainda a N. S. que


lhe dê a graça de educar cristamente seus filhos . .
Portanto, caro Senhor ; passe bem na companhia dos seus;
que ira sau � ar à sua esposa e me creia . . . etc . .
Com data de 18 de Abril de 1863 escrevia ao Marquês
Fassati :
- "Se o senhor Marquês quiser ganhar indulgência
plenária, temos uma ocasião oportuníssima : devo pagar
ao padeiro 3 000 liras amanhã cêdo antes das dez horas
.

e até agora não tenho nem sequer um soldo. Recomen­


do-me à sua caridade para que faça o que puder nesta
necessidade extraordinária ; é o mesmo que dar comida
aos que têm fome. Durante o dia de hoje irei visitá-lo
e Vossa Excelência me dará o que Nosso Senho r e a
Virgem Santíssima lhe inspirarem ao coração. Deus
abençoe o Sr. Marquês, a sua digna esposa e Azelia, dando
a todos saúde e graça com um grande prêmio na pátria
celeste. Amén".
Em 31 de março de 1866 escrevia à Condessa Callori
de Vignale, da família Sambuy : . . . "Esquecia-me de uma
coisa. A estatua de Nossa Senhora que será colocada
sôbre a cupola da nova igrej a representa uma despesa
muito maior do que pensavamos. A sua altura será de
4 ms de cobre espesso e cuidadosamente trabalhado. A
despesa será de doze mil francos ; uma senhora oferece
oito mil. Não tenho a coragem de pedir-lhe o restante
a não ser que Nossa Senhora faça cair neve de marengos

em sua casa. A graça de N. S. J. C. estej a sempre


conosco, etc.".
Era incansável em pedir socorro mesmo às autorida­
des do govêrno; batia em tôdas as portas, entrava em
tôdas as repartições, apresentava-se em todos os Minis­
térios, recorria à prefeitura, dirigia-se aos membros da
familia real. Todos os ramos da Administracão do pars
recebiam suas multiplas petições. Muitas semanas man­
dava até dez petições e geralmente o atendiam. As vêzes

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198 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

I ecebia ordem para receber apenas 10, 15, 20 liras e


quando se apresentava na Tesouraria nem sempre era re­
cebido com muita afabilidade. Quanto aborrecimento e
traba!hos lhe custavam tais quantias ! Devia recorrer a
pessoas conqecidas, a relações, recomendações, visitas e
cartas continuas. Sempre que era mudado um prefeito
ou ministro, um sindico, ou um chefe de repartição, D.
Bosco o procurava e se esforçava para lhe ganhar as
simpatias.
No carnaval de 1869 teve uma idéia singular. Naquele
tempo, o carnaval de Turim era o mais decoroso, tran­
quilo e agradável de tôda a Itália; basta dizer que havia
uma comissão especial com plenos poderes e a polícia
à disposição para velar sôbre a ordem, moralidade e res­
peito a todos. Pois bem, D. Bosco obteve da prefeitura
licença para poder armar, j untamente com as outras obras
de beneficiência, uma barraca na Praça Castelo, nos últi­
mos dias de carnaval. A barraca do Oratório foi uma das
mais bem providas e das mais belas; os músicos prepara­
ram uma peça de fantasia escrita pelo maestro Devecchi :
A feira de "Gianduia" (1) e a execução dessa música atraia
uma verdadeira multidão. Os alunos da banda bem como
os que vendiam objétos, estavam vestidos de palhaços mas
sem mascaras. O cavalheiro Oreglia, fantasiado de "Gian­
duia" representava perfeitamente seu papel, vendendo
a preços bem elevados os livros e outros objetos que
eram disputados pela fina flor da sociedade turinesa. A
condessa de Caburzano escrevia ao cavalheiro oreglia : -
"Um senhor, chegando de Turim, me contou um novo
prodigio de caridade uma dessas invenções engenhosas
que só os Belzunce de Marselha e os Boscos de Turim
poderiam excogitar. Seria difícil contar a admiração pel a
feliz invenção do "Gianduia" e sua "troupe". Parece­
me que êste fato seja mais eloquente do que muitas pá­
ginas de moral para tornar conhecida e amada uma reli-

( 1) E' o personagem do teatro de bonecos, correspondente ao nosso


"'João-Minhoca" (N. do T.).

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CONFIANÇA NA DIVINA PROVIDÊNCIA 199

gião que tão bem sabe se adaptar aos homens, tornar-se


humilde e amavel para com os grandes e pequenos, ale­
gre aceitando o que possa ser de auxílio aos pobres em
suas necessidades.
Todavia, quando D. Bosco ia pedir esmolas, expunha
com suma à elicadeza as necessidades dos seus alunos ou
as precisões em que se achava; se lhe davam alguma coisa,
agradecia; se lhe negavam, não insistia. Dizia : - E'
preciso tornar conhecidas as nossas necessidades; se não
as conhecem não pensarão sequer em nos auxiliar ; mas,
um vez conhecidas, façam o que lhes ditar o coração ; eu
não insisto mais".
Em 1881 o vigário de S. José em Marselha desej ava
que D. Bosco travasse conhecimento com uma senhora
riquíssima que tinha um vivo desejo de ajudar as Obras
Salesianas mas queria que D. Bosco lho pedisse. O santo
falou-lhe longamente de coisas varias e ao se despedir
tleixou-a perplexa pois exortara-a eloquentemente a dar
esmolas, felicitando-a pela caridade que tivera até então
mas não tocou sequer nas próprias necessidades. Dai a
pouco, a senhora se apresentou ao vigário : - Eu dese­
j ava tanto ajudar os salesianos e D. Bosco nada me
pediu. - Mas a senhora devia entrar no assunto. - Está
bem, proporcione-me outra audiencia e procuraremos
arranjar tudo.
No dia seguinte, D. Bosco e o vigário vão ter ao pala­
cete da piedosa cristã.
A senhora volta a falar sôbre a caridade mas D. Bosco
não lhe pede nada; conhecia as intenções dela ma� con­
siderava inútil qualquer pedido. Já estavam para se des­
pedir, quando aquela senhora ao vêr que nada adeantara
no estado das coisas, perguntou-lhe : - Mas, D. Bosco,
não precisa de nada?
- Eu? Preciso de tudo - respondeu D. Bosco
sorrindo.
- Porque não me falou antes? E se a Providência
se valesse de mim ?

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200 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

- Ser-lhe-ia muito reconhecido:


- Quais as suas necessidades?
- São muitas e bem grandes; t emos dividas rela-
tivas às construções já feitas e precisamos fazer novas
constrüções.
- A. qua rito monta a dívida?
- Não saberia dize-lo.
- Pois verifique.
- Falarei ao arquiteto.
- E eu ficarei muito contente por ajudá-lo.
E despediram-se, ambos satisfeitos. D. Bosco man­
dou-lhe a conta do construtor ; subia a 60 mil liras.
Tendo-a recebido, a senhora exclamou: - "Pois bem,
até o fim do ano me comprometo a pagar tudo em quan­
tias parciais". Essa piedosa pessoa era Ana Prat.
No mesmo espírito de filial abandono nos braços da
Providência, queria que fossem formados os seus filhos.
Quando um ou outro diretor ia lhe manifestar a re­
pugnância em bater à porta dos ricos em busca de esmo­
las, D. Bosco costumava lhe dizer:
- Lembra-te que não são êles que te fazem caridade
mas és tu que lha fazes dando-lhes ocasião para fazer
um pouco de bem.
Num ano em que se achavam em grandes dificulda­
des pecuniarias D. Bosco promoveu a rifa de um artístico
painel que se achava na sacristia; o bilhete custava dez
liras. Alguns se mostraram tristes por perder o quadro
que era mesmo bonito. José Buzzetti manifestou a D.
Bosco o pesar geral e o santo lhe respondeu : - . Está
bem ! Diga-lhes que de hoje em diante na hora das
refeições em vez de ir ao refeitório os desgostosos se con­
tentarão de ir à sacristia e ficar contemplando o quadro.
Só assim não o rifarei.
Em 1871 o Pe. Albera era mandado com dois outros
salesianos a fundar uma casa em Marassi perto de Ge­
nova. Para iniciar a fundação o Pe. Albera arranjara

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CONFIANÇA NA DIVINA POVIDÊNCIA 201

uma pequena quantia. Ao se despedir de D. Bosco, êste lhe


perguntou se necessitava de alguma coisa.
- Obrigado, D. Bosco; já tenho comigo 500 liras.
-;- ó meu caro ; não é preciso tanto dinheiro. Não
haverá Pro.vidência em Genova? Vai tranquilo pois
haverá a Divina Providência para te proteger; não re­
ceies. Assim falando entregou-lhe umas poucas liras e
ficou com a nota de quinhentos. Essa fundação trans­
portou-se daí a um ano para Sampierdarena e se tornou
um dos maís florescentes Colégios Salesianos.
A Pia Sociedade atravessava em 1879 momentos difí­
ceis. Falecera o Barão Bianco di Barbania e deixara seus
bens aos salesianos mas não havia meio de vendê-los.
Havia uma rifa em andamento e diariamente chegavam
ofertas de valor mas insuficientes para as necessidades.
Nestas circunstâncias tão críticas, no dia 29 de Abril, na
presença de muitos padres do Oratório travou-se após as
confissões o seguinte diálogo entre D. Bosco e o Pe. Rua
então prefeito ou administrador da Pia Sociedade :
Ouça, Pe. Rua, todos me pedem dinheiro e dizem
__,..

que você os despede de mão vazia.


- Isso acontece por um único motivo : a caixa está
vazia.
- Vendam-se os títulos que nos restam e assim co­
briremos as necessidades mais urgentes.
- Já vendemos alguns mas não me parece conve­
niente vender os que ainda temos pois todos os dias acon­
tecem casos graves e imprevistos e não teríamos . então
nem sequer um soldo disponível.
- Paciência! Nosso Senhor providenciará; mas por
enquanto procuremos satisfazer as dívidas mais prementes.
- O pouco dinheiro que receberíamos em troca já
tem destino marcado. Daqui a quinze dias deveremos
saldar uma dívida de 28 . 000 liras e, só por isso, estou
guardando todo o dinheiro que vai chegando.

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202 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

- Não; isto é uma loucura; deixar de pagar as divi­


das que poderíamos pagar hoje para ajuntar a quantia
que se deve pagar daqui a 15 dias . . .
- As dívidas de hoje podem ser saldadas mais tarde.
Mas cómo fat:emos para pagar as 28 . 000 liras?
- Nosso Senhor providenciará ; desfaçamo-nos do
que temos. Guardar dinheiro para as necessidades vin­
douras é o mesmo que fechar a porta para a Divina
Providência.
- A prudência porém nos aconselha pensarmos no
futuro. Não vimos já em outras ocasiões em que aperto
nos achamos? Fomos obrigados a fazer uma segunda
divida para pagar a primeira.
- Escute-me, concluiu D. Bosco. Se você quiser que
a Divina Providência nos proteja diretamente, vá ao seu
quarto e amanhã procure se desembaraçar do dinheiro
que tem, satisfazendo as dívidas que se puderem e o que
vier depois deixemo-lo nas mãos de Deus.
E acrescentava :
- Não me é possível achar um prefeito que me siga
inteiramente, que saiba confiar de modo ilimitado na
Divina Providência e não procure aj untar coisa alguma
para as necessidades futuras. Receio que nos encontre­
mos em tanta penuria por desejar calcular demais. E'
sempre assim nisto : Se o homem entra, Deus se retira.
O guardar alguma quantia para as precisões do dia
seguinte, parecia a D. Bosco uma injuria à paterna Pro­
vidência de Deus.

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.CAPíTULO XITI

Amor à pobreza

D. Bosco nasceu pobre e viveu pobre até a morte


Conceito que tinha do dinheiro - Nada guardava
em depósito - "Enquanto nos conservarmos pobres, a
Providência não nos faltará" - Como economizava até
um soldo - O motivo dêste espírito de pobreza - A
pobreza no quarto e nas roupas - Amava com predi­
leção o que recebia de esmola · - Cenas comoventes -
Economizava em tudo - Uma viva recomendação
Delicadas preocupações - Os tempos heróicos do
Oratório - "A Congregação florescerá enquanto os
salesianos souberem dar o devido aprêço ao dinheiro".

Os socorros ordinários e extraordinários para iniciar


e sustentar tantas obras a que não ousariam lançar mãos
as pessoas mais ricas, não só eram uma resposta à fé que
D. Bosco alimentava, mas também um prêmio à sua po­
breza heróica. Nascendo pobre, pobre viveu e não só
na j uventude mas mesmo como sacerdote não procurou
j amais a menor satisfação temporal. Costumava dizer :
"Para praticar a pobreza, cumpre tê-la no coração", e êle
a l;inha em sumo grau pois a praticava no grau mais
elevado.
Passaram muitos milhões pelas suas mãos, tinha
(;Onstantemente necessidade de dinheiro, mas não o que­
ria nem buscav a senão como um meio de glorificar a
Deus e salvar as almas. Durante a construção do San­
tuário de Maria Auxiliadora, escrevia ao Cavalheiro
Oreglia : "Deus o abençoe, caro senhor, e abençoe suas
fadigas e faça que cada palavra sua salve uma alma e
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204 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

ganhe um marengo". O marengo devia salvar uma outra


alma ; eis porque êle ia a procura de dinheiro.
Em 1867 voltando de Lanzo e passando pelo Oratório
para dar recados, Luiz Costamagna foi ter com D. Bosco.
Eis o ctue escreve ao Pe. Rua :
"Achei o nosso querido Pai sob q pórtico e depois de
muito conversarmos, êle me disse : - Você vai à sua casa,
não é? Pois traga-me um saco de marengos.
- Ah ! caro D. Bosco; se eu os tivesse, lhos traria,
sim ; mas de que lhe serviriam?
- Vê você aquela torneira de água? - perguntou-me
com seu sorriso angélico.
- Não só a vejo mas posso até tocá-la com a mão.
- Pois bem, caro Luiz, eu precisaria que ela j orrasse
marengos.
Enchi-me de surpresa e lhe disse :
- O que faria com tanto dinheiro?
- Se minha torneira j orrasse dinheiro, eu fundaria
casas em tôda as partes do mundo para salvar tôdas as
almas que correm o risco de se perder, principalmente
para salvar a pobre j uventude desamparada.
Passaram-se os anos e em 1883 tive de novo a felici­
dade de conversar longamente com D. Bosco. Depois de
muito falarmos, a conversa caiu sôbre as Missões e D.
Bosco me descreveu as cidades, os lugares desertos, os rios,
as estradas intransitáveis, os graves perigos, etc. . . . que
se achavam na longínqua América onde queria que seus
filhos fossem levar a luz do S. Evangelho.
Ao ouvir isso., eu acrescentei ! - D. Bosco, vejo que
o senhor sabe geografia mais do que celebres professores;
parece-me pelo seu modo de expor, que o senhor tenha
vindo da América. D. Bosco me disse sorrindo : Olhe,
Luiz, não tenho tempo de manusear uma geografia; falo
assim porque parece-me que assim deve ser.
Eu porém, cada vez mais maravilhado, lhe perguntei:

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AMOR À POBREZA 205

- Lembra-se, D. Bosco como em 1867 me disse que


teria necessidade de que a torneira jorrasse marengos !
- Lembro-me muito bem, respondeu sorrindo ; mas
o Q\le a torneira não fez, fê-lo a Divina Providência; fê-lo

nossa Mãe. Santíssima; quem nela confia, nunca será


enganado".
O seu amor à pobreza era patente a todos. Rece­
bendo ofertas vultuosas chamava o prefeito e lhas entre­
gava dizendo : - Veja como a Providência foi boa para
conosco ! - e ordinariamente não retinha consigo senão
o necessário para dar esmolas. De fato muitas vêzes
mostrava aos que o rodeavam, os poucos soldos que tinha
e lhes dizia :

- "Eis tôda a minha riqueza ! " Outras vêzes acres­


centava : "D. Bosco é pobre como o mais pobre dos seus
filhos". Ou então : · "Depois de minha morte não quero
deixar de meu senão a batina que visto".
E quanto maior era sua pobreza tanto mais viva
alegria lhe brilhava na fronte.
Sua maxima era : "Gastar não para desperdiçar mas
só 'por estrita necessidade", não duvidava em fazer gran­
des despesas quando necessárias mas não suportava que
se gastasse inutilmente um soldo sequer e muito menos
em coisas supérfluas. Dizia! - "Enquanto nos manti­
vermos pobres, a Providência não nos faltará".
"Um dia, escreve José Brosio, D. Bosco me levou para
visitarmos um nobre senhor. D. Bosco estava vestido
como em festa; traj ava uma batina e um capote muito
velhos e um chapéu que já perdera todos os pêlos. Ao
olhar para os seus sapatos remendados mas bem luzidios,
vi que em lugar dos atacadores estava usando barbantes
pintados de preto. - Como? Os outros sacerdotes quando
vão visitar pessoas nobres usam fivelas de prata e o
senhor não usa nem cordões de seda ou de algodão, mas
barbantes ! E' demais ! Muito mais porque estando já
curta a sua batina, faz um papel indecoroso. Espere-me

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206 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

que vou comprar um par de cadarços de lã. - "Espere,


venha cá, devo ter ainda um soldo. Farei como você me
diz." - No momento porém em que ia me dar a moeda
uma velha lhe pediu esmola e D. Bosco lhe entregou a
moeda. Então eu queria de qualquer modo comprar os
cadarços às minhas custas mas D. Bosco não me permitiu
que eu fizesse o que êle chamou de desperdício de
dinheiro !
Oh ! Em que conceito êle tinha o dinheiro !
- Um dia, narra-nos o mesmo Brosio, estavamos na
rua Dora Grossa (hoje Garibaldi) . D. Bosco parou
deante duma vitrina que tinha um grande mapa-mundi
e me mostrou as diversas partes do globo. Quando che­
gou à América, disse-me :
- Olha, Brosio, como a América é grande e pouco
povoada.
- E lá há tantas minas de ouro.
- Sim, é verdade ; mas nenhum dos católicos o usa
para bons fins. Com· muito ouro, quantas misérias se
poderiam auxiliar ! Quantos méritos poder-se-ia ganhar.
Quanto serviria para a propagação da fé ! Todavia, foi
com a pobreza e a cruz que Jesus redimiu o mundo e a
santa pobreza foi sempre a riqueza dos seus apóstolos e
dos seus verdadeiros ministros !
Era êste o motivo da sua pobreza evangélica.
Durante 40 anos usou no seu quarto os mesmos
móveis simp1es e velhos e não quis cortinas na j anela,
nem uma tira de tapete ao lado da cama nem um aga­
zalho para os pés. Aos pobres móveis acrescentou um
velho sofá com assento de palha que por mais de vinte
anos serviu para receber as visitas. E se um dia teve
algum movei mais decente, é porque lho presentearam.
Pensou-se uma ocasião em que estava ausente, em
embelezar-lhe o quarto com poucas e modestas decorações,
mas ao voltar ficou tristíssimo e mandou que se caiassem
as paredes e o teto.

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AMOR À POBREZA 207

Uma vez, notando em casa de um pároco, seu


ex-aluno, uma elegância excessiva, censurou-o severa­
mente e lhe disse : - "Não voltarei mais à sua casa ! "
Era o éco da advertência materna, era a lembrança da
sublfme ameaça de Mamãe Margarida : "Se você resolver
ser padre sêcular e por desgraça vier a ser rico, eu não
lhe farei nem uma visita sequer".
D. Bosco era intimamente avêsso a tôda a comodi­
dade. Voltando de uma longa viagem dizia a um dos seus
filhos :
- Fui recebido e tratado com magnificência. Comi
e dormi em esplendidas salas, atapetadas e enfeitadas com
mil adornos; pareciam paços reais. Não liguei para nada
disso e até mais do que nunca, pensei no meu pobre
quarto e não consegui sentir-me feliz e tranquilo, enquan­
to não me pude achar de novo perante êste crucifixo que
me deverá julgar e êste espêlho . . . (e indicava um crâneo
de madeira que tinha sempre em cima da mesa) .
Eram pobres as sua.s roupas. A batina de pano
grosso, servia-lhe para tôdas as estações. A roupa branca
era de fazenda grosseira e costumava gracejar dizendo
que as roupas que agazalham no inverno, refrescam no
verão. Usava sapatos grosseiros, dos mais baratos, e
também seus lenços eram dos mais ordinários. No seu
onomástico os ex-alunos varias vêzes lhe externaram o
desejo de o presentear com um objeto de uso pessoal mas
D. Bosco os persuadia a presentear a igreja com alfaias.
O encarregado do seu quarto nos conta : Tendo eu
mandado consertar sua capinha, o alfaiate colocou fi­
tilhas de seda. Ao vê-las, D. Bosco disse:
- "Não está bem para D. Bosco" ; e mandou que eu
as substituisse por fitas de lã ordinária.
Uma vez um benfeitor trouxe ao Oratório algumas
camisas novas muito bonitas e bem feitas para que eu
fizesse D. Bosco usá-las. Sabado à tarde pús uma das
camisas em cima da cama mas com surpresa achei-a no

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208 O PERFil. MORAL DE DOM BOSCO

dia seguinte no mesmo lugar. Ao me encontrar no do­


mingo, D. Bosco me disse : João ! São camisas que se
dêem para um padre pobre? - Se não lhas der, a quem
as duei? - A quem quiser.
Tinha urna predileção pelo que recebia de esmola.
às vêzes davam ao Oratório uma batina velha e fora de
uso, D. Bosco a guardava para si. "Recordo-me, diz _ D.
Cagliero, do exemplo que D. Bosco nos dava quando re­
cebia do Ministério da Guerra sapatos, capotes, calças
militares usados ou rejeitados ou comidos de traça, e
até mantas de cavalos para que se agazalhassem os
pobres meninos. E D. Bosco, sem fazer distinção entre
si e os meninos servia-se dêsses sapatos, calças e até
capotes usando-os por vêzes fora de casa especialmente
quando saia à noite, posto que não fossem roupas como­
das nem elegantes. Em muitos invernos, quanta vez o
vimos com o capote preto de soldado na igrej a ou fóra.
Em 1866 e nos anos seguintes entregava muitas vêzes a
João Bisio as calças de soldado para que as adatasse
para seu uso afirmando que lhe assentavam muito bem.
Uma gualdrapa cinzenta era o que Dom Bosco usava como
cobertor" !
Uma tarde de 1852 voltou para casa tão encharcado
de chuva que não tinha um fio que não estivesse pin­
gando. Subiu para o quarto e procurou trocar de roupa
mas sua mãe não achava nenhuma batina para lhe dar.
Os alunos esperavam-no na igrej a para certa função e
D. Bosco não queria faltar. Seus olhares descobriram
um capote de soldado e um par de calças brancas rece­
bidas de esmola; mais que depressa vestiu-se com tais
roupas e enfiando os pés num par de tamancos desceu
para a igrej a. Já estava escuro mas os alunos percebe­
ram roupas tão extranhas e enquanto sorriam compre­
endiam que era por amor deles que D. Bosco se reduzira
a tal estado.

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AMOR A POBREZA 209

Devendo viajar ou fazer visitas a pessoas de distin­


ção, muitas vêzes pedia emprestado sapatos, meias, ba­
tina, capote, capinha e até chapéu .
. Não se preocupava em arranjar roupa nova por mais
usada que .estivesse a sua. Os seus filhos pensavam nisso
e quando era preciso usar uma batina ou um capote novo
custava convencê-lo a aceitar e servir-se. A quem lhe
opunha a necesidade de um decoro conveniente, respon­
dia que o decoro do religioso ou do eclesiástico é a po­
breza, acompanhada do asseio na pessoa.
Economizava em tudo unindo à prática da pobreza o
espírito de mortificação. Na mesa não punha azeite nem
sal na comida que precisasse dêsses temperos ; gostava de
comer pão que sobrara de outras refeições recolhendo
os pedaços que achava e lastimando-se ao vêr que muitos
alunos desperdiçavam pedacinhos de pão. Dizia-lhes :
"A Divina Providência cuida de nossas necessidades e
vós bem vedes como nada nos tem faltado. Se desperdi­
çardes o pão que a Providência vos tem mandado, f azeis
uma inj úria a Nosso Senhor e deveis temer que vos cas­
tigue deixando faltar-vos futuramente o que vos fõr
necessário". Recordava-lhes o exemplo do Divino Sal­
vador que depois de ter saciado milagrosamente as mul­
tidões queria que os Apóstolos recolhessem as sobras para
que se não perdessem.
Cuidava e queri11- que todos cuidassem até dos me­
nores pedaços de papel e diligentemente aproveitava o
papel em branco das cartas que recebia ou para escrever
outras ou para fazer blocos de rascunho. Sofria muito
ao vêr algum objeto abandonado ou se estragando e reco­
mendava que o recolhessem, cuidassem dele e o usassem
do melhor modo possível. Mandava apanhar os pedaços
de papel ou de barbante encontrados no pátio obser­
vando que a seu tempo teriam serventia. A tardas horas
da noite viam-no caminhar pelo Oratório diminuindo a
luz quando não era necessaria. A observância da pobreza
era uma das suas recomendações mais frequentes.

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210 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Recomendando-nos numa carta de 21 de novembro


de 1886 a santa pobreza, dizia :
"Lembremo-nos, filhos queridos, que desta observân­
cia dépende na maior parte o bem estar da nossa Pia
Sociedade e â vantagem de nossa alma. E' bem verdade
que até hoje a Divina Providência nos ajudou e, por
vêzes, de modo milagroso. Estejamos certos que não dei­
xará de nos ajudar pela intercessão da Virgem S. S.
Auxiliadora que semp·re nos faz o papel de Mãe. Mas
isto não quer dizer que não devamos usar de nossa parte
tôda a diligência, quer no diminuir as despesas na me­
Jida do possível, quer na economia do alimento, das via­
j ens, das construções e em tudo o que não fôr de neces­
sidade. Creio até que tenhamos disso um dever particular
perante a Divina Providência e perante os nossos ben­
feitores. Ficai persuadidos de que Nosso Senhor não
deixará de abençoar largamente a nossa generosa
fidelidade.
Nos últimos anos, achou muito luxuosos certos bicos
de gaz; inconvenientes os aquecedores que aumentavam
tanto o calor a ponto de ter que abrir as j anelas ; exage­
rada a ornamentação de móveis de nogueira e cortinas
nas j anelas da sala de visitas.
- Ao vêr êste luxo, quem nos dará esmolas? O
Marquês Fassati e o Conde Giriodi ao vêr no Oratório
uma porta elegante, exclamaram : "Não dou nem mais
um soldo ; isto é coisa de marqueses" ! E' verdade que o
disseram rindo e continuaram a ser nossos. bons amigos,
mas é-me suficiente ter ouvido tal coisa para me saber
regular.
Exortava-nos a não procurar as comodidades , a
cuidar das roupas, dos livros e demais objetos de nosso
uso e a não adquirir hábitos que se tornassem dispen­
diosos. "Tais economias nos permitirão abrigar mais um
aluno".

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AMOR À POBREZA 211

E para honra da verdade devemos dizer que também


os seus primeiros padres tinham por quarto uma pequena
água-furtada com uma mesinha, uma cadeira ou ban­
quil}hO de pau, uma bacia para a água e nada mais
além da ca}ll a ; para estudar iam à sala comum no meio
dos alunos. O rigor severíssimo com que também seus
filhos praticavam a pobreza mereceu para aqueles anos
o título de "tempos heróicos".
O Cônego Ballesio que viveu oito anos ao lado de
D. Bosco afirma que a pobreza que se via em tôda a
casa e em todos os momentos da vida de D. Bosco e
nossa no Oratório, fez-lhe vir muitas vêzes à mente esta
idéia : D. Bosco e sua família sem ser capuchinhos de
nome e de profissão, de fato o são na sua vida pobre e
sacrificada.
D. Bosco estava convencido de que a fidelidade escru­
pulosa na prática da pobreza era um meio infalível para
garantir a proteção divina.
Em 1885, o pároco de Alassio congratulava-se com
D. Bosco pelo imenso bem que a Pia Sociedade ia reali­
zando e se maravilhava com a proteção contínua que
recebíamos da Divina Providência. D. Bosco lhe respon­
deu : A Pia Sociedade prosperará enquanto os salesianos
souberem dar ao dinheiro o merecido valor, isto é,
souberem apreciar a importância do dinheiro que é
dádiva divina, que nos custa tanto pelos sacrifícios a que
se submetem os benfeitores que no-lo dão, pela atenção
que exige para que não o desperdicemos e pela economia
com que o devemos usar para não ir contra a virtude da
pobreza.
CAPíTULO XIV

Dons sobrenaturais

A voz dos milagres - D. Bosco teve o dom da


profecia em grau elevado - Predições realizadas -
Conhecia e via coisas ocultas e longinquas - Fatos reais
- Como poude saber estas coisas ? - Não saberia educar
aquela menina e para o bem de sua alma é melhor que
morra - Conhecia os mais íntimos segredos da con·
ciência - Na confissão revelava ou sugeria os pecados
- O dom das curas e dos milagres - Multiplicação
de pães - Extase, lágrimas, visões especialmente sob
a fórma de sonhos - No começo não acreditava nos
tais sonhos - Os sonhos são sinais do céu - Várias
categorias dos sonhos - Jii.u cada passo que devia
dar - Sonhos de caráter notóriamente didáticos -
Quanto sabia pelos sonhos - Outras ilustrações do céu.

Quem não se enche de admiração ao considerar o


espetáculo �nente dos poderes que Deus concede aos
seus santos? Filhos prediletos do Pai Celeste, partici­
pam de sua potência e reinam com êle, mostrando assim
aos homens quanto a virtude seja estimada por Nosso
Senhor.
"A voz dos milagres, eminentemente popular, é . com­
preendida por todos e a todos diz com voz poderosa :
eis o caminho que conduz à Vida ; segui, ó mortais, as pe­
gadas luminosas dos santos, são elas o caminho da glória
e da felicidade - Quem ousaria resistir a um apelo
divino de tanta clareza ?
No entanto, há indivíduos que sorriem de compaixão
ao ouvir êstes fatos maravilhosos, verdadeira auréola com
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214 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

que Deus corôa os seus santos. Pobres cegos ! Amam


êstes heróis da santidade, admiram o seu teor de vida
mas não creem nos seus milagres. Por que? Não são os
santos um milagre vivo pela p·rática heróica e constante
de virtudes infinitamente acima das pobres fôrças
humanas ?"
Estas palavras que se leem num dos primeiros fas­
cículos das Leituras Católicas, na vida da B. Aringa
Toscana, vêm muito mais a propósito quando nos refe­
rimos aos múltiplos dons sobrenaturais ou graças "gratis
datae" com que N. Senhor se comprazeu em acompanhar
as virtudes de D. Bosco. O leitor da vida de Dom Bosco
terá visto muitas delas e achará suas páginas cheias de
tais portentos ; mas não podemos aqui deixar de fazer uma
teferência especial a êsses dons concedidos ao Santo. Ti­
nha êle em grau elevado o dom da profecia. Predisse a
existência e o progresso da sua instituição quando contra
ela se levantavam dificuldades capazes de esfacelá-Ia. Pre­
disse acontecimentos públicos, cura de molestias gravís­
simas, e a morte iminente de grandes personalidades.
Por muitos anos não morreu aluno algum do Oratório
sem que algum tempo antes D. Bosco lhe predissese
a morte.

Em 1864 anunciava a morte de q.ois alunos cujo nome


confiou ao enfermeiro Mancardi : Êste para verificar a
profecia escreveu o seguinte : "Pro-memória. Oratório
de S. Francisco de Sales, 30 de Janeiro de 1864. D. Bosco
me disse na tarde de 29 de Janeiro : Caro Mancardi, dois
são os aprendizes que deverão ir ao paraiso antes que
termine a quaresma, fica atento ; são Tarditi e Paio.
Inácio Mancardi, enfermeiro". Esta página foi lacrada
no mesmo dia e entregue ao Pe. Alasonatti, prefeito do
Oratório, que escreveu em cima "Predições de D. Bosco
para serem abertas depois da Páscoa de 1864". Nesse
ano a Páscoa caia em 27 de Março ; no dia 26 de fevereiro
morria no Hospital S. Luiz o aluno Paio e no dia 12 de

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DONS SOBRENATURAIS 215

Março na Pequena Casa da Divina Providência, o aluno


Tarditi.
Na tarde de 1.0 de fevereiro de 1865 anunciava a todos
os alunos que um deles morreria logo e se chegasse ao
próximo Exercício Mensal da Boa Morte, não chegaria
ao outro. Para animação geral esperava D. Bosco que
tal aluno estivesse bem preparado. Enquanto os alunos
iam para o dormitório, D. Bosco passou perto de mim e
me disse em voz baixa : - Faze que o Ferraris seja teu
amigo ; afasta-o dos companheiros menos bons e faze-o
frequentar os Sacramentos. Compreendi perfeitamente
e êle me fez um sinal como se dissesse : "Guarda êste
segrêdo". Aproximei-me do Ferraris e vi que estava de
perfeita saúde. No dia 3 de Março morria um outro
aluno e D. Bosco dizia não ser êle o de que falara. De
fato na manhã seguinte procuro o meu protegido e não
o acho no recreio mas na escada da enfermaria; per­
gunto-lhe e êle me diz que não se sente bem. - Chegou
o dia ! pensei eu.- O dr. Musso tinha declarado e. sus­
tentou até o último momento que o mal era sem gravi­
dade. No dia 9 de março, Bisio perguntou a D. Bosco
quem devia morrer e êste lhe disse : "Daqui a oito dias
Ferraris morrerá mas estou tranquilo pois êle é muito
bom e está preparado". No dia 16 de março Antonio
Ferraris natural . de Castellazzo Bormida voava ao paraíso !
Em 1869 estando em visita ao colégio de Lanzo, D.
Bosco advertiu os meninos que estivessem preparados pois
naquele mesmo ano escolástico um deles seria chamado
ao tribunal de Deus. Particularmente acrescentou que
êsse aluno cursava a 2.a classe primária e a inicial do
nome era V. Note-se que sendo poucas as visitas de D.
Bosco a Lanzo, não lhe era possível saber o nome de
todos os alunos. A notícia de tal profecia chegou aos
ouvidos de algumas pessoas da localidade e o advogado
Luiz Andreis veio repetir-me as palavras de D. Bosco, a
mim que era diretor do colégio. Depois de alguns mêses
o aluno Valaguzza, do 2.0 primário, caiu gravemente

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216 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

enfermo. Ficou um mês na enfermaria e o advogado


informando-se curiosamente da doença, me repetia :
Valaguzza morrerá ; D. Bosco o profetizou ! - Ao invés
Valaguzza se restabeleceu e seu pai vindo de Brianza
para visitá-lo, ao vê-lo em convalescença não quis retirá­
lo do colégio.. Mas daí a poucos dias o menino recaiu e
morreu como D. Bosco havia predito.
Estando em Roma, na Tor de Specchi em 1880, che­
gou-lhe uma súplica de uma senhora francesa para que
abençoasse a sua filha única, muito doente. - Esta
carta, disse D. Bosco ao Pe. Francisco Dalmazzo, é de
uma senhora da França que pede uma bênção especial
para a filhinha de dois anos a,p·enas. Mas como respon­
derei? Sua filha vai morrer certamente.
- E' duro responder assim, observou o Pe. Dalmazzo.
- Então responda você.
- E que devo escrever?
- Dize-lhe que rezarei por ela para que faça a santa
vontade de Deus resignando-se aos divinos desígnios.
O Pe. Dalmazzo escreveu uma carta em que suavi­
zava a frase exortando a pobre senhora a se resignar e
acrescentando que iriam rezar. A senhora compreen­
deu a fôrça daquela carta e telegrafou logo renovando a
súplica de orações e avisando que seguia uma carta.
O Pe. Dalmazzo mostrou o telegrama ao santo pergun­
tando-lhe qual a resposta. - Nenhuma ! Eis que chega
uma carta na qual a mãe enlouquecida com a idéia de
perder a filha, afirmava querer que ela vivesse a todo o
custo mediante as orações de D. Bosco. - Nenhuma
resposta ! �epetiu D. Bosco. A mãe não saberia educar
essa menina e é melhor para a sua alma que ela morra.
- Daí a 4 ou 5 dias um telegrama anunciava a morte
predita.
D. Bosco conhecia e via as coisas ocultas e lon­
gínquas.

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DONS SOBRENATURAIS 217

No dia 31 de j aneiro de 1862, escreve o Pe. Bonetti,


passeava o santo sob os pórticos com alguns alunos,
quando de repente parou e chamando o diacono Cagliero
lhe disse baixinho : - Escuto o barulho de dinheiro e
não . sei onde estão j ogando. Procure os três j ovens (e
disse três oomes) e os achará j ogando.
"Logo me pús a procurar, narrava-nos o mesmo Ca­
gliero, e andando de um lado para outro não conseguia
encontrá-los ; eis que vejo de repente um dos três me­
ninos. Perguntei-lhe : - De onde vem você? Onde se
meteu que eu não o achava mais?
- Eu estava em tal lugar, assim e assim.
- E o que fazia lá ?
- Jogava bolinha.
- Com que?
- Com N. e R.
- Jogavam a dinheiro, não é? o menino engasgou,
gaguejou mas acabou dizendo que sim. Fui então ao lugar
indicado que era muito escondido mas não achei os outros
dois. Soube depois com certeza que dez minutos antes
tinham sido vistos muito agitados num j ôgo a dinheiro.
Levei a resposta a D. Bosco e êste contou-nos que na noite
anterior tinha visto em sonhos os três num j ôgo deses­
perado, com apostas de dinheiro.
Uma tarde no refeitório do colégio de Lanzo , voltan­
do-se subitamente para o Diretor, D. .Bosco lhe disse : -
Neste momento, na beira do tanque, há dois alunos
com palestra inconveniente. - Foi-se verificar e viu-se
que D. Bosco não se enganara.
Outra vez da Liguria D. Bosco escreveu ao seu secre­
tário, adivinhando-lhe os pensamentos e consolando-o de
varias aflições. :tste se maravilhou ao vêr como D. Bosco
tivesse escolhido tão bem o tempo para lhe escrever e
D. Bosco lhe respondeu : Eu .te vi aqui, no escritório, todo
triste e aflito e porisso te escrevi a carta de confôrto.
Em 1883 chagavam a S. Benigno Canavês dois padres
franceses um dos quais era o Pe. Carlos Bellamy. Ambos

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218 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

queriam ser salesianos. D. Bosco os acolheu com afeto


mas disse a Bellamy : O padre com que o senhor veio
não ficará conosco? - Porque ? - Porque é muito
inconstante.
O Pe. Bellamy achou um pouco arriscada a opinião
de D. Bosco pois a primeira vez que êle e o companheiro
se apr esentavam ao santo mas, qual não foi sua admi­
ração quando, apenas passados seis mêses seu compa­
nheiro voltava para a França?
O príncipe D. Carlos pretendente ao trono da Espa­
nha veio em 1872 acompanhado pelo Conde Servanzi de
Roma fazer uma visita a D. Bosco. O príncipe viajava
incognito.
- Que diz o senhor de D. Carlos? perguntou o Conde
a D. Bosco.

- Se fôr vontade de Deus que êle suba no trono,


subirá ; mas com meios apenas humanos isso é impossí­
\'el. - Conhece êste senhor? - E' D. Carlos, respon­
deu D. Bosco impassível.
O príncipe rompeu o silêncio exclamando : - Ou
agora ou nunca mais ! Tenho muitos amigos, sabe o
senhor? E estou com o direito. - Está bem ! disse D.
Bosco. Se quer ter esperança de bom êxito vá com inten­
ção reta para obter as bênçãos divinas. Depois de longa
conversa despediram-se os dois. D. Bosco o acompanhou
até a porta mas seu pensamento não podia se separar
do jovem guerreiro. No dia 29 de Abril de 1874 às 8 e 30
da manhã estava D. Bosco confessando na sacristia,
quando se ergueu de repente, parecendo-lhe estar num
campo de batalha. Ouvia de um lado e do outro rn,uitos
tiros de canhão. O que seria? Precisamente nessa
manhã os Carlistas se empenhavam em nova batalha
perto de Bilbáo.
Já acenamos ao fato de D. Bosco vêr de longe o que
se passava no Oratório. Era um fato que se repetia com
certa frequência. Varias vêzes escreveu aos alunos do
Oratório e de outros colégios tudo o que de bom e de mau

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DONS SOBRENATURAIS 219

tinha visto nas suas visitas misteriosas. No dia 21 de


j ulho de 1862 escrevia de Lanzo aos alunos de Valdocco :
"Já fui varias vêzes visitar o Oratório e encontrei
coisas boas e coisas más. Vi quatro lobos que corriam
de um lado . para o outro no meio dos alunos mordendo,
a alguns dêles. Talvez êstes lobos rapaces não estejam
mais no Oratório mas se o estiverem quero arrancar
deles a pele de cordeiro com que procuram se disfarsar.
Noutra visita, vi alguns que durante as orações da noite
tagarelavam na torre da igrej a. Outros que se escon­
diam na escada do novo edifício. Provera descobriu
alguns que estavam embaixo mas não avistou os que
estavam lá em cima. Vi também alguns que saiam de
casa no domingo cedo mas fiquei indignado ao vêr três
alunos que na função da tarde sairam para nadar.
Pobres infelizes ! Como cuidam pouco da própria alma ! "
Na boa-noite o Pe. Alasonatti leu a carta a tôda a
comunidade. Estas revelações encheram a todos de ma­
ravilha e posto que não houvessem sido lidos os nomes
·
dos culpados, êstes ficaram aterrorizados. Também os
seus nomes tinham sido notados a parte, divididos em
duas listas : Deceptores et illusi. No dia 25 de j ulho,
uma sexta-feira, D. Bosco chega ao Oratório e vai dar
a boa-noite.
A crônica do Pe. Bonetti assim fala:
- Interrogado pelo Pe. Rua se podia dar esclareci­
mentos, disse claramente que de Lanzo tinha visto os três
alunos sair do Oratório para ir tomar banho durante as
vesperas. Mas percebendo que isso nos enchia de grande
admiração, continuou sorrindo : - Talvez algum de vós
queira saber como D. Bosco teve conhecimento destas
coisas ; eu vos respondo : soube-o por meio do meu fio
telegráfico. Por meio dele, por mais longe que estej a,
estabeleço a comunicação e vejo e conheço o que pode
redundar na honra e glória de Deus e na salvação das
almas. TaJvez não deveria dizer-vos o que às vêzes vos
digo mas acho bom dizê-las para que ninguém pense

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220 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

poder agir à vontade quando estou longe do Oratório ;


engana-se redondamente quem pensa não ser visto. Repa­
rai porém que eu não quero que vos abstenhais do mal só
por receio de serdes vistos e descobertos por D. Bosco,
mas -sim porque vos está vendo aquele Deus que no dia
do juizo vos 1J.á-de pedir contas rigorosas. Bem precisaria
agora falar com cada wn de vós e dizer-lhe muitas coisas
mas vej o que me falta o tempo. Dir-vos-ei apenas que
durante esta viagem vi claramente qual o inimigo prin­
cipal de cada um de vós, e à medida que tiver tempo,
procurarei aos poucos falar com todos de wn em um e
dar-lhe os necessários conselhos.O' meus filhos caríssi­
mos, é tão grande o aféto que nutro pelas vossas almas
que não acabaria de vos dizer muitas coisas bonitas que
contribuiriam para vossa salvação.
O cavalheiro Oreglia quis saber de D. Bosco se por
meio do seu fio telegráfico não teria podido de longe não
só vêr mas também fazer alguma coisa. D. Bosco res­
pondeu sorrindo : - Oh ! Pude dar algumas palmadas
nos tais. E estas palmadas êles bem a sentiram pois
estando dentro dágua tiveram que dar um pulo para
fora e perguntaram a um soldado que nadava com êles
porque lhes tinha batido.
Enquanto D. Bosco contava isso, o aluno Tinelli vol­
tou-se para um seu companheiro de lado e exclamou em
voz baixa : - Agora compreendi quem me deu umas
palmadas fortes e dolorosas. Suspeitei que fosse um
soldado que estava tomando banho um pouco longe e me
enfureci contra êle. - Eu (Bonetti) que estava atrás de
Tinelli ao ouvir isto tomei-o pela mão e o levei ao
Pe. Alasonatti. Tinelli repetiu sinceramente o fato e ma ­
nifestou o nome dos dois companheiros. Os três então
confessaram ter recebido as pancadas, ter saído logo d a
água sem ter visto a ninguém e cheios de susto ter-se
vestido logo e voltado para o Oratório . . . " �stes fatos,
atestava o Pe. Luiz Rocca, repetiram-se muitas vêzes.

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DONS SOBRENATURAIS 221

Conhecia até os mais intimos segredos das consciên­


cias. Desde 1848 era voz comum no Oratório que, quando
confessava, D. Bosco manifestava aos penitentes os pe­
cadbs esquecidos ou calados por vergonha. Nestes casos,
costumava · dizer : - E dêste pecado você não se acusa?
Não te lembras mais desta falta? - Mas o mais admi­
rável era que D. Bosco para confirmar o aluno na certeza
de que o santo j á sabia de tudo, dizia-lhe: Quando tinhas
tal idade, em tal ocasião, lugar e circunstâncias fizeste
isso e aquilo - mostrando com exatidão o número dos
pecados.
"O que vou dizer, escrevia em 1861 o padre João
Turchi parece superstição e fanatismo e quem ler estas
linhas j ulgar-me-á tolo e muito crédulo. Perdôo tal
j uizo pois nem eu mesmo sei explicar certas coisas que
vejo D. Bosco. No entanto que são os argumentos deante
dos fatos? . . . Faz dez anos que estou no Oratório e mil
vêzes ouvi D. Bosco repetir : Dai-me um j ovem que eu
nunca tenha visto e ao olhar-lhe na fronte revelarei os
pecados que cometeu desde os mais verdes anos.
"Por vêzes acrescentava : Muitas vêzes quando estou
confessando vejo as consciencias dos meninos abertas
deante de mim como um livro no qual posso lêr. Tal
acontece principalmente nas festas e retiros espirituais.
Felizes daqueles que aproveitam então dos meus avisos
principalmente na confissão. Outras vêzes porém nada
vejo. Isto sucede com intervalos mais ou menos longos.
- Sempre acontecia quando a salvação das almas o
necessitava.
"Em geral D. Bosco suavizava a impressão produzida
por suas palavras desviando a ideia de um dom sobre­
natural e dizia sorrindo : Quando confesso à noite quero
ter uma luz bem perto para lêr na fronte dos alunos ; s e
d e dia prefiro confessá-los frente a frente.
O Pe. Turchi afirma ter conhecido muitos alunos que
lhe disseram : Fui me confessar com D. Bosco e êle me

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222 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

perguntou : "Você quer contar seus pecados ou prefere


que eu os diga" ? E recitou meu3 pecados todos sem fal­
tar nem acrescentar nenhum. Eu só tinha de responder :
sim ! sim ! e até certas coisas de que não me lembrava
mais êle mas recordou sem se enganar.
No dia 26 de dezembro de 1862, escreve o Pe. Pro­
vera, um aluno se aproximou de D. Bosco e lhe pediu
um conselho. - Que conselho você quer? - Qualquer
l'eferente à minha alma !
- Pois bem, escuta : já faz 3 anos e meio que estás
em pecado mortal. - Possível? Vou me confessar sem­
pre com o Pe. Sávio ! - Escuta porém ! - E lhe falou de
mais ou menos cincoenta coisas que o menino sempre
ocultara nas confissões. A cada pecado que D. Bosco ma­
nifestava, o aluno dizia : E' verdade ! Fiz isto e não
contei na confissão. Terminou dizendo que prometia
acusar-se de tudo isso.
O Pe. Berto escreve : Um aluno, que eu conheço
muito bem, foi num domingo confessar-se com D. Bosco
e não lhe contou uma coisa a que não dava importância
ou de que não se lembrava. Terminada a acusação, D.
Bosco lhe disse : Arrepende-te e pede a Deus perdão
dêste tal pecado. Êsse aluno ao vêr D. Bosco revelar-lhe
uma culpa com tanta clareza e conhecimento, reconhe­
ceu que o santo não teria podido saber disso sem uma
luz especial de Nosso Senhor. Ficou tão impressionado
que me afirmou nunca ter feito · uma confissão com tan­
tas lagrimas nem comunhão tão fervorosa.
Um dia após as funções da igreja encontrei no pátio
um novato que ao vêr passar o santo seguiu-o um bom
pedaço com os olhos fitos nele e depois voltando-se para
mim, um tanto perturbado perguntou-me : - Quem é
êsse padre? - Porque pergunta você isso? Não o conhece
ainda? - Porque hoje de manhã fui me confessar com
êle e falou-me todos os pecados que fiz quando estava
em casa ! . . .

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DONS SOBRENATURAIS 223

Certa manhã de 1870 quando D. Bosco Eaia da igrej a,


os alunos, apenas o viram, correram como sempre ao seu
encontro. Muitos sacerdotes o tinham ajudado a con­
fessar os alunos mas D. Boscso estava muito cansado pelo
grande número de penitentes a que atendera. Falava no
entanto delicadamente com todos. Num dado· momento
voltando-se para um aluno que lhe estava perto e pas­
sando o indicador da própria dextra na fronte do menino,
lhe disse :
- Hoje cedo você não lavou o rosto. - Lavei ! res­
pondeu o menino. - Não ! não ! repetiu D. Bosco sila­
bando a palavra. Abaixou-se depois e lhe disse ao ouvi­
do uma palavra o que fez o menino ficar de cabeça
baixa e pensativo. D. Bosco lhe dissera que não se tinha
confessado e precisava fazê-lo.
Uma tarde de 1871, D. Rua e outros Superiores fala­
vam no refeitório sôbre a ruina moral de tantos alunos.
D. Bosco depois de os ter escutado, começou a dizer :
- E' difícil conhecer certos males para poder curá­
los. No entanto, N. Senhor usa de grande caridade para
com nossos alunos. Quando eu me acho entre êles mesmo
que na roda se ache apenas um menino imodesto logo
o percebo por um mau cheiro insuportavel e se êle se

aproximar de mim e eu lhe vir o rosto, estou certo de


não me enganar.
li:le falava assim para ocultar o singularíssimo dom, no
entanto é mais que certo que alguns alunos conservavam­
se afastados de D. Bosco por medo de que lhes lesse na
fronte ; e se deviam se aproximar do santo por algum
motivo quer •p or terem sido chamados, ou por outra razão,
ao tirar o chapéu em sinal de reverência ou o conser­
vavam em frente da testa ou faziam os cabelos cair sôbre
a mesma, como se isto bastasse para lhe esconder a pró­
pria consciência. Mas D. Bosco estendia a rêde para
atrai-los a si e quando conseguia dizer-lhes uma palavra,
a vitória estava garantida. Com frases prudentes, um
pouco veladas, repreendia as faltas ocultas ; por exemplo :

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224 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Tens contas para acertar com N. Senhor. - Outras vêzes,


ao vêr um aluno triste, lhe dizia : meu caro, é preciso
arrancar o demônio do coração para termos alegria.
O Pe. Rua contava que alguns alunos acharam
debaixo do travesseiro um bilhete de D. Bosco com estas
palavras : - E se você morresse esta noite? Ou então :
Se morrer esta noite o que será de sua alma? ou ainda :
Estarias tranquilo se tivesses de morrer agora? - e estas
frases bastavam para que fossem correndo atirar-se aos
pés de D. Bosco para se confessarem .
Um dos nossos missionários, o Pe. Evasio Garrone
fez-nos esta declaração :
- "No dia 14 de Agosto de 1878, às 7 horas da tarde,
entrava eu como estudante no Oratório. Tinha 18 anos
f' em minha casa vivia ocupado apenas com negócios.

Chegando à porta da sacristia, vejo lá dentro um padre


que confessava, tendo ao redor de si muitos alunos que
se preparavam. Ajoelhei-me também, com o pensamento
mais em minha casa do que nos pecados. Vindo a minha
vez e não estando preparado, fiquei mudo não me lem­
brando nem sequer de um pecado. Então o padre me
disse : Eu falarei em seu lugar. Começou a dizer meus
pecados todos, em ordem de tempo, lugar, número e cir­
cunstâncias. Depois me deu alguns avisos com tanta
unção e carinho que a cada palavra sua, eu me sentia
mais consolado e o meu coração foi se enchendo de uma
alegria tão grande que me parecia estar no céu. Final­
mente me disse : "Garrone, agradece a Nossa Senhora
que te ouviu depois de seis anos de súplicas. Sê devoto
de Maria e Ela te salvará dos perigos". Com efeito, · desde
12 anos eu nutria no coração o desejo de ser padre mas,
conhecendo como era impossível à minha família man­
ter-me na escola, não disse a ninguém a minha inclina­
ção. Aos 18 anos ouví falar de D. Bosco e surgiu em mim
uma viva esperança de chegar a ser padre ; fui ter com
meu vigário e, manifestando-lhe o meu desejo, consegui
por meio dele ser aceito no Oratório. Não se pode pois

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DONS SOBRENATURAIS 225

descrever a maravilha que tive ao ouvir o número de


anos desde o tempo de minha primeira idéia de ser pa­
dre e muito mais ao ouvir chamar-me pelo nome, sendo
então a primeira vez que eu entrava no Oratório. Depois
da confissão apartei-me um pouco para um canto da sa­
cristia e ajoelhando-me, com as mãos cruzadas nas
costas, fiquei atentíssimo na contemplação daquele padre
misterioso. Pensei comigo mesmo : Será que êste padre
é de minha terra? Como poderá conhecer-me tão bem?
E pensei na confissão, nas belas palavras que ouvira,
enquanto lágrimas me enchiam os olhos.
No dia seguinte vejo no pátio todos os meninos correr
para um padre que caminhava no pórtico; também eu
corri. Era o confessor da tarde anterior. Apenas me
aproximei dele, ouvi-o dizer a um aluno: Quero te cozi­
nhar - e voltando-se para mim, me disse : Também
quero cozinhar você, Garrone. Eu pensei então : Quem
é êste padre que me chama pelo nome, sabe de minha
vida inteira e ainda me quer cozinhar? - Perguntei então
em voz alta : - Diga-me, o senhor não é de minha cida­
de? - Eu não ! Você não me conhece? - Nunca vi o se­
nhor . . . E perguntei a um companheiro : Quem é êsse
padre ? - E' D. Bosco, diretor do Oratório. - Sim sou
D. Bosco repetiu o padre sorrindo ! . . .
"

Tinha também o dom de curar de perto ou de longe


e isso era tão sabido que todos os dias especialmente na
novena e na festa de Nossa Senhora muitos iam a Turim
para implorar suas preces e bênçãos ; onde ia, sempre
acontecia a mesma coisa : paralíticos, aleijados, cegos,
surdos e mudos tiveram cura instantânea.
Eram singulares as trocas de doenças. O Pe. Bonetti
nos diz : "Na boa-noite de 9 de Abril de 1863 D. Bosco
falava sôbre as melhoras de sua saúde e disse : Bem
poderosas são as orações dos meninas. Há um entre
vocês que consegue logo que minhas doenças passem
para êle, logo que o pede a N. Senhor ; eu então reco­
mendo a Domingos Sávio que o faça ficar bom e dai a

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226 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

pouco tempo ambos estamos otimamente". O Pe. Bonetti


acrescenta : Conheço o feliz menino que obtem de Deus
a C�J.ra temporânea de nosso Pai amantíssimo. E' meu
grande amigo e vendo-o sempre mal de saúde , disse-o a
D. Bosco e ajuntei : Receio que o senhor não possa edu­
car êste menino pois logo morrerá ; é tão creança e tem
uma saúde tão enfermiça que não pode viver muito
tempo. Quando fui falar com meu companheira êle me
disse : Amanhã estarei curado; D. Bosco já me disse. E
arsim foi : no dia seguinte foi à aula e veio almoçar
conosco ao passo que na vespera mal suportava um
pouco de café. Fiquei maravilhado pois sabia mais do
que os outros companheiros como fosse precaria a sua
saúde. Não desconfiava eu porém que êle tinha adoecido
com a doença de D. Bosco mas estando uma tarde no
escritório do santo e perguntando-lhe pela saúde, D. Bosco
me respondeu : "Estou melhor· po:s temos N. N. que re­
cebe a minha doença". Comecei então a compreender os
repentinos males de um e de outro e me convenci de que
por vêzes Deus se compraz em brincar com as almas que
o amam.
O Pe. Francesia dá testemunho de fato semelhante :
Certa manhã D. Bosco estava com dôr de olhos e pouco
depois do almoço já estava perfeitamente bem. Pergun­
tei-lhe o motivo de tão súbita cura e êle me disse que a
dôr tinha passado para um indivíduo que o pedira a
Nosso Senhor afim de aliviar Dom Bosco.
Quis o Pe. Antonio Sala ter uma prova dêste fenô­
meno tão interessante e contou-nos muitas vêzes o que
lhe sucedera em Roma. Estava com D. Bosco e. êste
devia fazer uma conferência mas sentia-se tão abatido
por uma violenta dôr_ de cabeça, que nem poderia sair
de casa. Era muito importante a conferência pelo que
o Pe. Sala lhe disse : - Oh ! Se bastasse rezar para que
Nosso Senhor me mandasse a dôr que o senhor sente, de
boa mente a aceitaria contanto que o senhor ficasse livre
dela. - Pobre Pe. Sala, disse D. Bosco ; sim ! cedo-te a

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DONS SOBRENATURAIS 227

dôr de cabeça até que acabe a conferência. - D. Bosco


saiu de casa e uma terrível dôr de cabeça atormentou
ao Pe. Sala até a volta do santo .
. Num dos colégios da França iinham pr omovido urna
sessão teatcal em honra do santo e muitos benfeitores
tinham sido convidados. Eis que o diretor vem ter com
D. Bosco e lhe diz que a 5ala estava repleta de pessoas
ilustres mas que o ator principal não poderia entrar em
cena por ter perdido completamente a voz. D. Bosco
manda que lhe tragam o menino e abençoando-o lhe
diz: Vá representar pois eu te empresto minha voz ! O
menino subiu ao palco em plena posse de uma voz extre­
mamente clara, ao passo que D. Bosco foi tomado por
afonia completa durante todo o entretenimento.
Vários milagres de multiplicação operou D. Bosco e
nos últimos anos era voz corrente no Oratório que êle
tivesse multiplicado as sagradas espécies também no San­
tuário de Nossa Senhora Auxiliadora, no altar do Sa­
grado Coração de Maria, hoje de S. Francisco de Sales.
"Era o ano de 1860, escreve o Pe. Dalmazzo e fa:z;ia
poucos dias que eu entrara no Oratório . . . Tinha eu
quinze anos e fazia o curso de retórica. Achava dificul­
dades para me adatar à comida excessivamente pobre e
aos costumes do Colégio. Decidido a me retirar fui con­
fessar-me com D. Bosco. Quando eu me ia ajoelhar para
contar meus pecados, um aluno servente veio dizer ao
santo que não havia pão para dar aos meninos na salda
da igrej a.
- Vão buscar com o padeiro Magra. - Não quer
mais fornecer-nos porque lhe devemos dez mil liras. -
Então D. Bosco disse : Procurem na dispensa e reco­
lham tudo que encontrarem nos refeitórios. O menino
saiu e eu continuei a me confessar não me importando
que faltasse pão pois dai a poucos instantes pretendia
sair do Oratório. Mal acabara a confissão, eis que volta
o servente e diz novamente. Recolhi tudo e só há uns
poucos pãezinhos. - o menino pedia a D. Bosco uma

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228 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

providência pois os pãezinhos não eram suficientes. D.


Bosco fez-lhe sinal de que não se preocupasse pois êle
iria distribuir os pães. E assim foi : tendo confessado
mais um aluno levantou-se e foi para a porta por onde
os álunos costumavam sair da igreja e receber o pão­
zinho. Lembrando-me eu então de outros fatos mila­
grosos acerca de D. Bosco e cheio de curiosidade fui
adeante de D. Bosco para poder vêr e examinar à von­
tade o que ia suceder. Encontrei então minha mãe que
me esperava na porta e a quem pedira por carta que me
viesse buscar. Fiz-lhe sinal que me esperasse um pouco
e me coloquei bem atrás de D. Bosco num lugar mais alto
do que êle. O santo já começara a distribuir os pãezi­
nhos ; olhei para o cesto e vi que tinha quando muito
quinze ou vinte pães. D. Bosco no entanto distribue os
pãezinhos e os alunos felizes por recebê-lo das mãos do
Pai querido tomam-lhe a bênção e recebem dele j,unto
com os pães uma boa palavrinha e um sorriso. Todos os
300 alunos recebem o pãozinho e quando terminou a dis­
tribuição eu olhei para a cesta e com grande surpresa
vi ali a mesma quantidade de pães que havia antes da
distribuição. Corri para j unto de minha mãe e, sem
mais, lhe disse que não queria mais sair do Oratório e
que ela me perdoasse tê-la feito vir a Turim. Contei­
lhe o que vira com meus olhos dizendo-lhe que era im­
possível que eu deixasse uma casa tão abençoada por
Deus e um homem como D. Bosco. Foi esta a única
razão que me fez ficar no Oratório e mais tarde tornar­
me salesiano".
Tinha também D. Bosco o dom do êxtase e o de visões
celestes especialmente sob a forma de sonhos. Eis o
que afirma o Pe. Evasio Garrone : "Em 1879 no mês de
j aneiro, eu ajudava a missa de D. Bosco no altar cons­
truido na Sala de espera do seu escritório. Estava aju­
dando comigo um colega chamado Franchini. Chegando
â. elevação, vimos D. Bosco como em êxtase, com um
ar de paraíso no rosto parecendo iluminar a sala. Aos

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DONS SOBRENATURAIS 229

poucos os seus pés se separaram do supedâneo e ficou


o santo suspenso no ar por uns bons dez minutos. Não
conseguimos levantar-lhe a casula. Fora de mim pela
adm!ração, fui correndo chamar o Pe. Berta mas não o
encontrei. V.oltando para o meu lugar, vi que D. Bosco
começava a descer mas a sala tinha um quê especial que
:az::1 tcela t;m :?araiso. Acabada a missa, depois que
êle tinha feito uma longa ação de graças, ao levar-lhe
como de costume o café, lhe perguntei : "D. Bosco o que
tinha durante a elevação? Como poude ficar tão alto?
:ltle me olhou e para mudar de assunto me disse :
Tome também um pouco de café - e enchendo uma
xícara ma apresentou. Percebendo que êle não queria
falar dêste assunto, fiquei quieto e bebi o meu café. Por
bem três vêzes fui testemunha de tal fato na S. Missa.
A caridade e a intima união com Deus muitas vêzes
o faziam derramar lágrimas durante a celebração da S.
Missa e quando administrava a S. Comunhão ou mesmo
quando abençoava os fieis no fim da Missa. Também
quando falava aos alunos nas boas-noites e conferen­
cias ou quando lhes dava breves e úteis lembranças no
fim dos retiros espirituais e acenava ao pecado, ao escân­
dalo, à pureza, à pouca ou nula correspondência dos
homens ao amor de Jesus Cristo, ou ao receio de que
alguns viessem e se perder eternamente, bem frequente­
mente era interrompido pela comoção e fazia chorar os
que o escutavam.

Monsenhor Cagliero afirma que o viu, assim como o


viram seus colegas, derramar lágrimas frequentes quando
falava do amor de Deus, da perda da alma, da Paixão
de Nosso Senhor, da S. s: Eucaristia, da boa morte e da
esperança do céu. Tais lágrimas eram de amor, de dor,
de alegria e de santo entusiasmo conforme o assunto
tratado.
Acontecia isto mesmo quando ,p·regava nas igrejas
públicas. No Santuário de N. Sra. da Consolação, o Pe.

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230 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Reviglio viu-o derramar muitas lágrimas quando pre­


gava sôbre o j uizo universal e descrevia a separação dos
maus e dos eleitos.
José Buzzetti contava-nos que num domingo no fim
de 1�49 ou princípios de 1850, escutava um sermão de
D. Bosco e d.e repente um seu companheiro, sentado ao
seu lado, por nome Vicente Bosio, menino simples e ino­
cente ficou como fascinado e voltando-se para Buzzetti
mais com gestos do que com palavras, lhe dizia : Olha !
Olha D. Bosco !
- Mas o que tem? Está contando um trecho da
História Eclesiastica.
- Então não vês? Olha-o ! . . . Seu rosto brilhante
despede raios de todos os lados !
Buzzetti nada viu mas atestava que o pequeno Bosio
estava fora de si e foi difícil fazê-lo ficar quieto até o
fim do sermão e que depois da função contava a todos
companheiros o que vira.
Quanto aos sonhos, disse-nos D. Bosco ao nos falar
com paterna confiança, no começo eu ia devagar no lhes
prestar a fé que mereciam. Muitas vêzes os atribula à
pura fantasia. Contando tais sonhos, anunciando mortes
próximas, predizendo o futuro, muitas vêzes ficava eu
incerto não sabendo se compreendera bem e receando
dizer mentiras.
As vêzes, depois de ter falado, não sabia mais o que
tinha dito Porisso muitas vêzes me confessei ao Pe. Ca­
fasso por causa dêste meu falar ousado. O santo sacerdote
me escutou, pensou um pouco e depois me disse : - "Desde
que se verifica o que você diz, pode ficar tranq1.1ilo e
continuar".
Foi depois de vêr que sempre se realizavam os sonhos
e que ·a narração deles era de _m aior efeito do que muitos
sermões e talvez do que um Retiro espiritual, foi só então
que não hesitou mais em acreditar que tais sonhos eram
um verdadeiro aviso de Deus. Para que não se desper­
diçasse nem sequer uma partícula de um dom tão excelso,

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DONS SOBRENATURAIS 231

por vêzes D. Bosco não hesitou em chamá-los de dons


celestes. No dia 30 de junho de 1876, falando em público
pouco depois do retiro espiritual, afirmou : Faz muito
temP.o que eu pedia a N. Senhor que me fizesse conhecer
o estado da. alma dos meus filhos e qual coisa poderia.
servir melhor para seu prog1 essa na. virtude e para extir­
par de seu coração certos vícios. Especialmente neste
retiro eu estava pensando muito nisso. Graças a Deus.
o Retiro foi muito bom tanto para os aprendizes como
para os estudantes. Mas Nosso Senhor foi ainda mais
misericordioso ; quis favorecer D. Bosco com luzes espe­
ciais para que lêsse na consciência dos seus alunos, como.
num livro aberto e visse, de modo admirável, não só o
pre�ente mas até o futuro de cada um. E isto numa
forma extraordinaria também para mim, pois nunca me
acontecera vêr tão bem, com tanta clareza e tão aberta­
mente o futuro e as consciências dos meninos".
Os sonhos foram muitos e se podem agrupar em três
categorias : a primeira, a mais maravilhosa, reune os
que lhe mostravam as obras a realizar e os caminhos a
seguir ; a segunda, não menos admirável compreende os
que lhe manifestavam o estado das consciências, as voca­
ções, as mortes próximas ; a terceira categoria abrange
os muitos sonhos que mais se poderiam chamar didaticos,
deixando de parte o lado milagroso dos mesmos ; final­
mente há outros que lhe mostravam visões do futuro
da igrej a e das nações.
Dos primeiros e dos segundos já se deu algúm exem­
pio e aqui unir-lhes-emas uma declaração ; dos terceiros
diremos aiguma coisa e sôbre os últimos apenas faremos
um aceno.
Referindo-se aos sonhos da primeira categoria, D.
Bosco dizia em 1876 ao Pe. Júlio Barberis : "Estremeço ao
pensar na minha responsabilidade pela posição que ocupo.
As coisas que vejo acontecer são de tal importância, que
acarretam sôbre mim uma re&ponsabilidade imensa. Que

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232 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

·contas tremendas deverei dar a Deus pelas graças que


nos deu, pelo bom andamento de nossa Pia Sociedade.
Pode-se dizer que D. Bosco vê tudo e é conduzido pela
mão por Nossa Senhora . . . A cada passo, em tôdas as
circunstâncias, eis Nossa Senhora ! E' Ela que nos pro­
tege visivelmênte em todos os perigos e nos indica os
passos que devemos dar, ajudando-nos a dá-los. Se não
-correspondermos às graças da Virgem, quem sabe como
andarão as coisas para nós ! .

Disto se originava a estima pelas suas obras. Se al­


·guém lhe propunha novidades, santíssimas embora mas
fora de seu programa, respondia :
- Temos as nossas coisas! Promovamos o que nos
'Cabe. As coisas alheias, por melhore s que sejam, não
nos servem e afastam-nos até do nosso ideal. Pela mi­
sericórdia divina, nada temos que buscar nos outros mas
se os outros quiserem poderão vir buscar o que precisam.
- Continuamente nos admoestava contra o prurido de
reforma.
Os sonhos de caráter didatico eram acolhidos com
incrível avidez pois encantavam pela sua originalidade
atraente.
No dia .primeiro de j aneiro de 1866 descreveu a longa
viajem numa j angada sôbre a qual se achavam seus
padres, clérigos e alunos. Nem todos chegam sãos e sal­
vos ao pôrto e durante as variadas peripécias D. Bosco
fica sabendo da sorte futura de cada um. Finalmente
a j angada aporta a ameníssima praia e vai parar ao pé
de uma esplendida vinha". Os olhos de todos estavam
voltados para mim e na fronte de cada um se lia a per­
gunta : - D. Bosco, é a hora de descer e parar? - Eu
antes refleti e depois lhes disse : Desçamos pois chegou
a hora e agora estamos seguros. Foi um grito geral de
alegria e todos nós esfregando as mãos de contentamen­
to, entramos na vinha que estava em perfeito alinha­
mento. Da vinha pendiam cachos semelhantes aos da

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DONS SOBRENATURAIS 233

terra prometida e nas árvores havia as mais apetecíveis


espécies de frutas e do gosto mais saboroso. No meio da
vinha erguia-se um castelo rodeado de delicioso e prin­
cipeseo j ardim e muros fortíssimos.
Encaminhamo-nos para o castelo e foi-nos franqueada
a entrada. Estavamos cansados e com muita fome;
numa grande sala tôda ornada de ouro tinham prepa­
rado para nós uma grande mesa com tôda a espécie de
alimentos de que todos se serviram à vontade. Quando
acabamos a refeição entrou um nobre lacaio ricamente
vestido e de beleza extraordinária ; com cortês e familiar
delicadeza chamou-nos pelo nome, saudando-nos afavel­
mente. Ao vêr nossa admiração e maravilha pela sua
formosura e pelo encanto que nos rodeava, disse-nos :
Isso não é nada ; vinde vêr. Todos o seguimos até as
varandas de onde nos mostrou os j ardins dizendo-nos que
podíamos usar de tudo para nossos rectéios. Conduziu­
nos de sala em sala tôdas de magnífica arquitetura com
colunas e enfeites de grande beleza. Abrindo uma porta
que dava p ara uma capela, convidou-nos a entrar. Do
lado de fora a capela pareceu-nos pequena, mas apenas
entramos vimo-la tão grande que de um lado mal po­
díamos vêr os que estavam no outro. O chão, as paredes,
a abóbada tudo era ornamentado e rico; havia adornos
de mármore, prata, ouro e pedras preciosas. Cheio de
maravilha, eu exclamei : E' uma beleza de paraíso ! Pro­
ponho que fiquemos aqui para sempre !
No meio dêste grande templo erguia-se sôbre base
riquíssima, uma estatua imensa e magnífica represen­
tando Nossa Senhora Auxiliadora. Chamando alguns
alunos que se tinham espalhado daque e dali para exa­
minar a beleza do edifício sagrado, todos nos colocamos
deante da estátua para agradecer à Virgem Celestial os
favores que nos prestara. Foi então que dei fé da imen­
sidade da igrej a pois os milhares de alunos pareciam um
pequeno grupo no meio do templo. Enquanto os alunos
estavam contemplando a estátua cuja fisionomia era ver-

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234 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

dadeiraml;lnte celeste, súbitamente a Virgem pareceu ani­


mar-se e sorrir. Eis um borborinho de comoção geral.
- Nossa Senhora está movendo os olhos ! disseram
alguns. De fato, a estátua girava com imensa doçura
os seus olhares maternos sôbre aqueles meninos. Pouco
depois ouviu-s'e um segundo grito : Nossa Senhora move
as mãos ! - E vimos que lentamente abrindo os braços
levantava o manto como para agazalhar-nos sob êle. A
comoção arrancou-nos lágrimas que nos deslisavam pelo
rosto. - Nossa Senhora move os lábios ! disseram alguns.
Fez-se um silêncio profundo e a Virgem abriu os lábios
para nos dizer com voz suavíssima e argentina : - Se
vós fordes para mim filhos devotos, ser-vos-ei Mãe
carinhosa.
A estas palavras, caímos todos de j oelhos e entoamos
o canto "Louvando Maria".

Esta músic à era tão forte e suave que esmagado por
ela eu acordei e asim terminou a visão.
Vêde, meus filhos queridos; neste sonho podemos
reconhecer o mar tempestuoso dêste mundo. Se fordes
dóceis e obedientes às minhas palavras e não derdes
ouvidos aos maus conselheiros, depois de vos terdes esfor­
çado para fazer o bem e fugir do mal, vencidas tôdas as
más tendências, havemos de chegar no fim da nossa vida
a uma praia segura. Então virá ao nosso encontro, por
ordem de Maria SS. algum mensageiro que nos intro­
duzirá no j ardim paradisíá co na divina presença do nosso
Pai Eterno. Mas, se fazendo o contrário do que vos
ensino, não quiserdes prestar fé aos meus cons.elhos
preferindo seguir os próprios caprichos, ent�o só vos
resta um triste naufrágio".
, Na manhã seguinte, desejosos de saber o estado d a
própria consciência, o s alunos correram a s e confessar
com D. Bosco na sacristia. Respondendo a um que �he
perguntara depois da confissão como o tinha visto no
sonho, disse : - Estavas pescando na barca ; caíste varias

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SUA HERÓICA HUMILDADE 235

vêzes na água mas eu te salvei e repus na j angada. - E


na igreja eu também estava? - Sim ! sim ! respondeu­
lhe sorrindo.
Á um clérigo de Vercelli que lhe perguntou no pátio
algo sôbre si próprio:
- Atrapalhavas os outros e impedias a pescaria.
A um padre que lhe perguntou se o vira : - Eu te
vi sozinho, separado dos demais, muito sério num canto
da j angada preparando anzóis com iscas e todos vinham
buscá-los em tuas mãos. - E acrescentou muitas coisas
que daí a vinte anos se realizaram com precisão.
A 16 de Junho de 1867, festa da S. S. Trindade, con­
tava um outro sonho em que vira divididos em vários
rebanhos, conforme o bom ou mau estado de consciência,
todos os meninos presentes e futuros do Oratórios. Subi­
tamente apareceu um pastor que lhe disse : - Êstes são
os que ainda conservam sem mancha o lírio da inocên­
cia. Eu olhava maravilhado. Quase todos tinham na
cabeça uma corôa de flores de indescritível beleza. Estas
flores se compunham de outras florinhas diminutas- de
surpreendente delicadeza de um colorido vivo e variegado
que encantava a vista. Mais de mil cores numa só flor
P numa só se viam mil - florezinhas encantadoras. Uma
veste de brancura ofuscante descia-lhes até os pés entre­
tecida de flores como as da corôa. A luz fulgurante que
tais flores despediam iluminava-lhes a pessoa e espelhava
uma alegria angelical. As flores se refletiam mutua­
mente. Um raio de uma côr encontrando-se com um de
outra côr produzia uma terceir a côr diversa e cintilante.
Mas não basta. Os raios e as flores da corôa de um
se refletiam nos raios e flores da corôa dos outros, bem
como as grinaldas e vestes de urn se refletiam no outro.
A beleza do rosto de um menino, fundia-se com a beleza
do rosto dos companheiros e refletindo-se centuplicadas
sôbre tôdas as inocentes e r edondas carinhas produziam
uma luz tão grande que ofuscavam a vista e não permi­
tiam fixar o olhar.

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236 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Assim é que num só se acumulavam as belezas dos


demais companheiros com inefável harmonia de luz. Era
a glória acidental dos santos. Não há imagem humana
capaz de descrever nem pàlidamente como os jovenzinhos
se tornav�m belÇ>s no meio daquele oceano de esplen­
dores. Entre os jovens vi alguns que estão agora no
Oratório e estou certo de que se pudessem vêr ao menos
a decima parte da beleza que hoje .possuem, estariam
prontos a sofrer o fogo, a deixar-se cortar em pedaci­
nhos e ir ao encontro do mais atroz martírio, de prefe­
rência a perder tal beleza . . .
"

Há um grande número dêstes sonhos, cada qual mais


variado, capazes de encher de maravilha a mais aguda
fantasia e todos admiravelmente instrutivos. Não parece
que D. Bosco tenha contado todos os sonhos que teve.
Na noite de 7 de setembro de 1873, escreve o Pe. Joa­
quim Berta, acompanhando D. Boscó até o quarto, ali
chegando, perguntei-lhe se podia me dizer confidencial­
mente como faziam para conhecer a consciência dos alunos
e os seus pecados. Com sua bondade de sempre, D. Bosco
me respondeu : Veja, quase tôdas as noites eu sonho que
os meninos vêm se confessar, pedem licença para fazer
a confissão geral e me manifestam as suas dificuldades ;
vindo depois de fato confessar-se no dia seguinte, pode­
se dizer que eu não tenho mais nada a fazer senão desco­
brir-lhes as atrapalhações que têm na consciência.
Em 1868, escreve o mesmo Pe. Berta, duas senhoras
desconhecidas se apresentaram a D. Bosco. Mal as avis­
tou, disse sorrindo a uma delas : Faça-se religiosa e fique
sossegada pois esta é a vontade de Deus. Vendo-as eu
sair chorando dai a pouco, perguntei a D. Bosco o motivo
e êle me disse : "Vej a ; estas duas senhoras são duas
irmãs; uma queria ser freira mas a outra não o consen­
tia. Combinaram vir .pedir o conselho de D. Bosco. -
E porque choravam? - Porque sem deixar que falassem
lhes disse o motivo da sua vinda ; porisso se comoveram.

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DONS SOBRENATURAIS 237

- Como o senhor poude sabê-lo? - Como és curioso !


Esta noite sonhei que vieram duas pessoas pedir-me o
parecer sôbre êsse· assunto e hoje, logo que as vi, reconheci
as pêssoas do sonho e porisso apenas repeti o conselho
que lhes dera sonhando.
Além dêstes sonhos, teve o santo muitas vêzes, outras
manifestações maravilhosas.
No verão de 1855 fazia o Retiro Espiritual em S.
Inácio p�to de Lanzo na companhia de uma centena de
piedosos senhores e de alguns dos seus clérigos e puxava
as orações como de costume, quando chegando ao fim do
De Profundis cala-se de repente tenta continuar as preces
e o Oremus mas hesita, gaguej a e não pode continuar.
O Pe. Turchi escreveu : "Pensei então que por distração
tivesse esquecido momentâneamente a oração e, estando
ajoelhado atrás dele, não pude vêr o que fazia. Depois
de um minuto continuou a oração e eu fiquei mais per­
suadido do que pensara. Saindo da igrej a perguntei a
vários se tinham notado a interrupção e vi que ninguém
lhe dera importância".
Todavia os seus amigos mais íntimos suspeitaram de
que algum espetáculo extraordinário se lhe pusera deante :
e era isso mesmo. Tinha visto aparecer no altar duas
chamas ; no interior de uma estava escrito "morte" e na
outra "apostasia" ; as chamas tinham saído do altar e
caminharam para a nave da igrej a. D. Bosco instintiva­
mente se levantara para vêr aonde iriam e viu que de­
pois de ter girado pelos presentes, se pousavam sôbre a
cabeça de dois indivíduos aj oelhados no meio dos outros.
O reflexo da luz fez ressaltar a fisionomia dos dois e D.
Bosco pôde fixá-las sem perigo de se enganar. Pouco
depois as chamas se extinguiram. Tal a origem de sua
distração. No dia seguinte, terminado o Retiro, quando
todos já tomavam seus veículos, o sr. Bertagna de Cas­
telnuovo procurou ficar ao lado de D. Bosco para desco­
brir o segrêdo de que se suspeitava. Também os clérigos

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238 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

€Stavam muito curiosos e D. Bosco, esperando que as car­


ruagens se pusessem a andar, r evelou-lhes o segrêdo.
Um rico comerciante que tinha fama de bom cristão e
sôbre o qual a chama da "apostasia" se detivera, fez-se
protestante ; e um outro, nobre senhor morreu dai a al­
gum tempo. ·

Em 1882 achava-se em França um moço italiano que


desejava ardentemente abraçar o estado eclesiástico mas
não sabia como o conseguir. Chamado à Itália para
apresentar-se ao Conselho de Recrutamento do Exército ,
aconselharam-no a ir ter com D. Bosco. No dia 29 de
outubro chegava a Turim e se dirigiu à Igrej a de Maria
Auxiliadora. D. Bosco tinha acabado a Missa no altar de
S. Pedro e, ao descer os degraus, viu uma chama que
saia do altar de Nossa Senhora e ia se deter sôbre a
cabeça de um jovem desconhecido, de pé ao lado da
mesa da comunhão. Maravilhado, contempla um pouco
o j ovem e vai para a sacristia. Daí a meia hora, D. Bosco
sai da Igreja e circundado por uma turba de meninos,
vê o desconhecido que vem lhe tomar a bênção. �le o
fita e, como se o conhecesse de longa data exclama : Oh !
e sem que o moço abrisse a bôca, fala-lhe em francês e
o convida a súbir para o escritório; a vocação do rapaz
·estava decidida ( 1 ) .
A vista destas línguas de fogo que, saindo das velas
do altar, iam pousar sôbre a cabeça dos meninos, era o
meio comum com que D. Bosco chegava a conhecer os
·que eram chamados ao sacerdócio.

(1) O jovem era Antônio Malan, que veio mais tarde para o Brasil
·onde foi I nspetor e depois b;spo de Petrolina em Pernambuco. (N. do T.).

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CAPíTULO XV

Sua heróica humildade

A santidade é medida pela humildade - H umilde


atitude de D. Bosco: suas palavras e recomendações -
Falando de suas obras sempre o fazia na terceira pes­
soa - O merecimento era todo dos filhos e benfeitores
- " Contin uai a me aturar ! " - Exemplos precio síssi­
mos - Procurava ocasiões para se humilhar - Não
tinha nem queria título s - Como conseguiu mudar a
Cruz de Cavalheiro de S. Mauricio e de S. Lazaro
n uma s ubvenção anual para os seu s orfãozinho s - A
sua humildade aparecia em meio ao s lo uvores -
"Quantas maravilha s a mais Nosso Senhor teria feito
se encontrasse um padre de mais fé do que D. Bosco ! "
"Isto é demais ! " - "Ensoberbecer-me?" - Tudo
revertia em honra de No ssa Senhora A uxiliadora -
Distintivo especial de s ua h umildade : D. Bosco sacrifi­
cou s ua mesma h umildade pela glória de nosso Senhor
- Sua h umilima recomendação - Deante do genio do
mal - Fama de santidade em q ue era tido por todos.

As obras mais heróicas, se não forem feitas pelo


amor de Deus, nada valem para a eternidade. Antes de
mais nada, premeia Deus o obsequio da mente e o tributo
do coração. Porisso o maior mérito de uma alma mede­
se pela retidão e pureza de intenção e como prova da
santidade é preciso vêr se há humildade.
Em D. Bosco foi a humildade tão profunda que lhe
transparecia nas palavras, nos atos e em tôda a pessoa.
Grande era a admiração de quem o via pela primeira vez
ao encontrar sob tão modesta e simples aparência um
indivíduo que enchia a terra com o seu nome. Sua
humildade não se manifestava apenas no semblante e
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240 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

nas palavras mas outrossim em fugir de qualquer mani­


festação honorífica desnecessária persuadido como estava
de que nada valia.
D. Cagliero afirma : "Possuia D. Bosco a virtude da
humildade e a praticou sempre em grau eminente sen­
tindo e falando de si próprio com a maior humildade e
aceitando de boa mente o que podia humilhá-lo. Compra­
zia-se em falar-nos de sua origem humilde e como tivera
que lutar para ganhar o pão com muito trabalho e que,
se ultimara seus estudos, devia-o à caridade de pessoas
beneméritas, principalmente ao Pe. Cafasso. Falava disso
com gosto e deleite, como se lhe fosse uma glória e o
que dizia servia para instilar-nos um grande amor à
humildade virtude tão preconizada e praticada por Nosso
Senhor".
Considerava-se um simples e humilde instrumento
nas mãos de Deus e como uma 3.a pessoa na direção de
suas obras. Nunca dizia : "eu fiz; eu disse ; eu quero".
mas sim : "D. Bosco disse ; D. Bosco desej a ; D. Bosco reco­
menda". Muitas vêzes manifestava a sua incapacidade,
a tribuindo a N. Senhor tudo que fazia : - com a graça
de Deus fizemos isto. - Se a Deus aprouver, faremos
isto. - Se Deus quiser, faremos aquilo. - Deus nos man­
dou êste auxílio - Agradeçamos a Deus por tudo isto ! -
E sempre dava a Deus a glória de suas emprêsas, consi­
derando-se como um pobre instrumento nas mãos de
Nosso Senhor. O bem que fizera e fazia atribuía inteira­
mente aos benfeitores, aos cooperadores, aos seus filhos
e às orações dos alunos.
Em 1875, acabando as conferências aos seus diretores
·
na festa de S. Francisco de Sales, exclamava : "E agora,
que quereis que eu vos diga ? " a sua voz se abaixou pela
comoção e como chorando prosseguiu : "Não me resta
senão pedir-vos a caridade de me suportar como o tendes
feito até agora e de me recomendar a Nosso Senhor.
Suportemo-nos mutua;mente e seja esta uma lembrança
que nos sirva para a vida inteira".

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SUA HERÓICA HUMILDADE 241

D. Bosco foi sempre muito humilde.


Um dos seus pr imeiros alunos, o professor Carlos
'I'omatis, diz:
. - "O que mais admiravamos nele era como sabia
unir à firmeza uma doçura de modos, uma paciencia e
longanimidade ilimitadas com as quais fazia desaparecer
os obstáculos quer nas coisas grandes, quer nas pequenas.
Atraia-nos sua humildade.
"Uma ocasião, estava D. Bosco ensinando o sistema
métrico e fazia seus cálculos no quadro negro quando
casualmente se enganou e não conseguia encontrar a so­
lução exata do problema. Apesar da grande atenção os
alunos não entendiam onde estava o êrro. Percebendo eu
então uma passagem errada levantei-me e da maneira
mais delicada possível, corrigi o ponto errado. Outro
professor não teria aceitado uma correção em público,
mas D. Bosco aceitou humildemente minha sugestão e
desde então me considerou com maior afeto o que me
fez ficar encantado".
Também o Pe. Turchi escrevia : Foi sempre humilde
e simples desde que o conheci em 1851.
Sob a ,presidência do abade Amadeu Peyron afama­
díssimo por sua ciência e professor de línguas orientais
na Real Universidade de Turim, reuniam-se em outubro
de 1853 muitos sacerdotes turineses. D. Bosco estava ao
lado do abade. Discutidos vários assuntos, propôs alguém
que se multiplicassem as publicações populares e educa­
tivas. O presidente concordou com tal sugestão e D.
Bosco, pedindo a pálavra, recomendou àqueles · padres
que o aj udassem na propaganda das Leituras Católicas
iniciadas naquele ano e, no seu modo de vêr, uni meio
efiçaz para se opor à corrente de falsas ideias que os
valdenses propagavam.
- Está bem ! disse o abade Peyron. Eu li atenta­
mente êsses fascículos mas se o senhor quiser que pro­
duzam um efeito útil, é preciso que tais livrinhos sejam

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242 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

escritos com maior propriedade e pureza de linguagem


bem como mais diligência nas correções !
Esta censura pareceu muito áspera pôsto que fosse
ditada pelo zelo e o teologo Murialdo envergonhado pela
humilhação infligida a D. Bosco ficou observando como
êle responderia. D. Bosco, sem se ofender de forma al­
guma, com tôda a calma e humildade, disse : Justa­
mente porisso é que venho pedir a V.V. R.R. que me
ajudem e aconselhem nesta emprêsa. Recomendo-a aos
senhores. Digam-me tudo que devo corrigir e de bom
grado o farei. Ficaria até muito satisfeito se alguém
mais perito na língua italiana quisesse rever os originais
das Leituras antes que sejam publicadas ! - O teólogo
Murialdo contou-nos em 1890 que ao ouvir tais palavras
de D. Bosco, concluiu logo : �ste ·p adre é um santo ! - E
nunca mais esqueceu tal cena.
Uma tarde, diz Tiago Reano, o servente pediu ao cozi­
nheiro que . ao menos désse um pouco mais quente a
comida destinada a D. Bosco, mas o cozinheiro, de caráter
ríspido, falou : "Quém é D. Bosco ! E' como qualquer
outro da casa ! - Alguém referiu esta insolência ao santo
e êste comentou com tôda a calma : O cozinheiro tem
razão".
"Um dia, conta-nos o Pe. Rufino, um ilustre senhor
veio falar com D. Bosco para que aceitasse no Oratório
um aluno. Na conversa disse que êle j ulgava ter sido o
Oratório fundado por um bispo ilustre ao qual Turim
devia a maior gratidão por êsse benefício. Concluiu
dizendo que vinha recomendar a D. Bosco o seu prote­
gido esperando que o padre tivesse a faculdade neces�ária
para aceitar alunos. D. Bosco o escutou muito tranquilo,
não procurou de modo algum tirá-lo do equivoco e o
deixou na persuasão em que viera. Tratou do negócio
como se devesse prestar contas a um superior. O homem
saiu satisfeito e admirado com a delicadeza daquele hu­
milde sacerdote. Não é a todos que o amor próprio teria
permitido calar em tais circunstâncias; ao passo que

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SUA HERÓICA HUMILDADE 243

vimos em D. Bosco um sem número de exemplos dessa


profunda humildade. E não o podia ser diversamente
com um sacerdote preocupado sempre com o pensamen­
to fila morte e da eternidade e que todos os dias rezava
contritamente o Miserere ao se deitar".
Não mais ousavam alguns dos seus companheiros tra­
tá-lo de "tu" em vista da fama que D. Bosco adquirira.
Mas D. Bosco com alguma pilhéria os dissuadia de o tra­
tarem como a um superior ou de tratá-lo por "senhor".
Houve quem lhe dissess : Como posso eu usar de familia­
ridade para com um padre que fala com Cardeais e com
o Papa com tanta confiança e que bem cêdo terá o título
de "monsenhor"? - Não sou senão o pobre D. Bosco !
respondia o santo com humildade.
Diz D. Rua :
"Tão profundo era-lhe o sentimento da própria fra­
queza, que não deixava pasar a minima ocasião de se
humilhar.
- Recebia com humildade bem grande as sugestões
d9s seus alunos aceitando com prazer as observações que
lhe faziam. Recordo-me que depois de assistir a uma S.
Missa de D. Bosco, permiti-me fazer-lhe observações a
respeito de pequenos defeitos que eu notara. Agradeceu­
me e desde então tinha sempre consigo as rubricas da
Missa e as lia de vez em vez".
O Pe. Berto confirma: D. Bosco me disse muita�
vêzes : Eu bem queria que vci cê observasse o que há de
censurável em mim e me dissesse com tôda a fran queza.
- Fi-lo desde então e êle se enchia de reconhecimento
quando eu lhe observava coisinhas insignificantes que
não tinham nem a mais leve culpabilidade.
Um dia, havendo hospedes no refeiório, D. Bosco no­
tou que a toalha não estava muito limpa e fez vêr ao
encarregado que era uma falta de consideração para com
os convidados. O encarregado escreveu-lhe uma carta

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244 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

com a intenção de lhe pedir desculpas mas disse entre


outras coisas que aquela fôra a primeira vez que vira D
Bosco alterado.
Para se humilhar, o santo leu a carta na reunião do
·
Capítulo e ao se encontrar com o rapaz tomou-lhe da
mão e lhe dissê : Ora, não sabes que D. Bosco é um
homem como todos os outros?
Num dos seus colégios D. Bosco aceitara um sobrinho
cujo J)ai pagava a pensão regular. Depois de um ano,
como o menino não obtivesse bons resultados nos estu­
dos, foi transferido para o Oratório de Turim e acabou
voltando para casa dos pais, interrompendo o curso.
Após 20 anos dêste fato, D. Bosco falando ao diretor
daquele colégio, lhe disse : - Mandei um sobrinho para
teu colégio porque. ali estavas tu e sendo grande amigo
de D. Bosco, cuidarias dele do melhor modo. Espe­
rava que colhesse bons resultados e estava tranquilo.
Quando vi as notas dos exames, fiquei tristíssimo e pen­
sei comigo mesmo : "Aquele diretor não terá considerado
que o petiz era meu sobrinho e que lho confiei de modo
particular? Porque fazer pouco caso do menino? Porque
os superiores do colégio não se uniram para conseguir
que o petiz alcançasse ao menos a mediocridade? Porque
terão tido tão J)ouca consideração para comigo?" Absor­
vido por tais pensamento tive a ideia de mandá-lo para
um sacerdote em Bra para que ali o menino se desen­
volvesse. Caindo porém em mim mesmo, refleti : Vê
como o afeto aos teus parentes é que te impele a tal
resolução ! E é assim que pregas aos outros o desapego
dos parentes? o menino não teve bons resultados mas
bem sabes que o diretor e os outros fizeram o próprio
dever. Não pensemos mais nisto. Deixemos que a Pro­
vidência guie os acontecimentos. Bem gostaria de que
entrasse na Pia Sociedade um indivíduo que tivesse o
meu nome e o meu sangue. Mas isto não se dará porque
N. Senhor não o quer. - Fiquei tranquilo e deixei que
as águas continuassem a correr para o mar".

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SUA HERÓICA HUMILDADE 245

Quando D. Bosco abriu a casa de Marselha, foi com


o Pe. Bologna visitar um colégio religioso daquela cidade.
D. Bosco pediu para falar com o superior. Depois de
longa .espera, o superior apareceu e com modos reservados
lhe perguntou quem era. - Sou D. Bosco ! - E o que
desej a? - Quereria recomendar à sua benevolência o
novo colégio que fundamos nesta cidade. - Compreendi.
Se não tem mais nada a dizer, meus cumprimentos ; e
foi-se embora. D. Bosco não se ofendeu e consolou o Pe.
Bologna que estava irritadíssimo com os modos sêcos do
superior : - Fica tranquilo ; êles ficarão mais envergo­
nhados do que nós pelo tratamento que nos deram.
Um dia falava-se da Academia da Arcadia na qual ·
D. Bosco herdara o pseudonimo do falecido Cardeal Al­
tieri; alguem disse brincando que o Papa faria D. Bosco
cardeal. Êle sorriu e disse :
- D. Bosco morrerá sem títulos como sem dinheiro e
sem nada. Já pensei muitas vêzes como obter um título
e acho que o único meio seria se o govêrno estabelecesse
especiais para os profesores da primeira classe elementar
inferior e sem exames pois não teria coragem de fazê-los.
Morrendo, poderiam escrever no meu sepulcro ;
Mestre da primeira classe elementar inferior ! Mas nem
êsse título eu terei. Deverei morrer sem títulos. E é
mais claro que o sol que morrerei sem dinheiro para o
meu enterro. Morrerei sem nada. Já dei ordem ao Pe.
Berto que tire tudo do meu quarto. Para que ter roupas
que serão comidas pelas traças? Uma batina e um ca­
pote me bastam. E se for preciso consertar o capote ? -
Não o usarei por algum tempo. E se eu precisar mandar
consertar a batina? - Ficarei deitado durante o conserto.
Quando eu morrer quero que no meu quarto não haja
mais do que os panos que me cobrem.
Repetiu outra vez as mesmas palavras deante do
Comendador Garelli, Real provedor dos estudos em
Turim e êste lhe disse : - Como? D. Bosco não é pro-

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246 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

fessor? Não tem diploma nem patente? D. Bosco que


é o educador número um? ! O govêrno não reconheceu
os seus méritos? Nada fez pelo senhor até hoj e ? Está
bem ; vou pensar nisso e amanhã mesmo escreverei ao
Minis tro e terá então V. Rvdma. os títulos merecidos
pelos seus tr abalhos. - Mas D. Bosco sorrindo fez-lhe
vêr que não valia a pena se incomodar.
Não queria saber de títulos. Em 1852 o Conde Ci­
brário primeiro Secretário de Sua Majestade para o
Grande Magistério da Ordem Mauriciana, enviou-lhe o
diploma e a cruz de Cavalheiro da Ordem de S. Maurício
é S. Lazaro. D. Bosco foi logo ter com o Conde e lhe
disse : - Se isto se faz em consideração à minha pobre
pessoa, não sei que méritos vêm em mim que me distin­
gam de tantos outros ; é meu dever portanto, embora
agradecendo muito, não aceitar êste título. Se porém o
govêrno quer dar um sinal de aprovação e complacencia
pela obra de D. Bosco em pról da j uventude pobre de
Turim, aceito com gratidão pedindo porém que o título
seja substituído por uma subvenção em pról dos meninos.
O conde insistia e D. Bosco : - Escute, Excelência;
se eu fosse cavalheiro mauriciano o povo pensaria que
D. Bosco não precisa mais de auxílios ; além disso, já
tenho tantas cruzes . . . Dêm-me dinheiro para o pão dos
meus alunos.
Anuíram ao desejo de D. Bosco. O decreto não apa­
receu na Gazeta Oficial e a todos agradou a caridade do
Santo. A Ordem Mauriciana fixou-lhe a pensão de 500
liras anuais pagas fielmente até 1885 ; reduzida porém
em 1866 a 300 e em 1887 a 150. Mas não houve meios
de obrigar D. Bosco a usar ao peito a condecoração.
O Pe. Cerruti observa : "A humildade de D. Bosco
não se manifestava menos, quando recebia elogios pois
parecia nem se importar com os mesmos aceitando-os
com calma indiferença. As vêzes porém se comovia. Em
setembro de 1871 recebeu o encargo de ir ter com o mi-

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SUA HERÓICA HUMILDADE 247

nistro Lanza para as negociações da nomeação de Bispos.


Fomos ao palácio da prefeitura e ao sair eis que lhe vem
ao encontro a mulher do porteiro que ao vê-lo lhe pede
a bênção e diz : O' meu Deus, parece-me vêr Nosso
Senhor ! - D. Bosco ficou com o rosto em brasa, as lá­
grimas lhe vieram aos olhos e êle disse : Reze por mim
e por minha pobre alma ! "

"Êle censurava, diz o Pe. Rua, quem lhe atribuia o


mérito dos maravilhosos efeitos das suas bênçãos ou
orações e afirmava que só a Nossa Senhora ou o Santo a
que se tinham recomendado é que tal se devia atribuir.
Eu mesmo o ouvi pedir muitas vêzes a Nossa Senhora
que não o colocasse no embaraço de que alguém o j ul­
gasse autor de certas graças portentosas e de boa mente
contava certos fatos em que o resultado obtido fôra con­
tl·ário ao que todos desejavam".
Quantas vêzes o ouviram exclamar: - Se Nosso
Senhor tivesse encontrado um instrumento mais inépto
do que eu para as suas obras, contanto que estivesse
disposto a se abandonar inteiramente à Divina Provi­
dência tê-lo-ia escolhido no meu lugar. Eu com minhas
forças se Deus n ã o me ajudasse, teria sido um pobre
vigário de roça.
Nos últimos anos dizia sempre :
- Quantas maravilhas Nosso Senhor realizou no meio
de nós ! Mas quantas mais teria Êle realizado se D. Bosco
tivesse tido mais fé. - E os olhos se lhe enchiam de
lágrimas.
Considerava-se como um servo inútil e por vêzes
·

dizia : Mas quem é D. Bosco para ser assim aclamado?


Persuadido de ser um pobre pecador, dizia suspirando :
- Não quereria que alguém, j ulgando-me o que não
sou, não quisesse rezar por mim depois de minha morte
e me deixasse penar no purgatório !

Um senhor de S. Benigno a cujas orações D. Bosco


se recomendára, lhe disse : - Oh ! O senhor não precisa !

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248 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

o santo se fez sério as lágrimas lhe assomaram aos olhos


e com acento de muita persuasão repetiu que tinha muita
necessidade.
Em · 1885 o clgo. Viglietti lhe perguntava : - Como é
que o senhor faz para se lembrar de tudo tendo tanta
coisa na cabeça? Estou certo de que não se lembre por
vêzes de certas coisas pequenas.
- Oh ! Não só das coisas pequenas mas receio até
esquecer-me da mais importante de tôdas, da única
necessária, a salvação de minha alma.
No mesmo ano a piedosa Senhora Olive de Marselha
pediu-lhe que fosse à sua casa para que se entretivesse
um pouco com os membros da sua família, alguns dos
quais tinham vindo de longe para tal ocasião. Essa
reunião durou várias horas. A família reunida escutava
as palavras do santo sacerdote enquanto a nobre senhora
com uma tesoura ia cortando às ocultas umas madeixas
do cabelo de D. Bosco. :a:ste o percebeu mas sem se per­
turbar levantou-se para se despedir. Foi buscar o cha­
péu mas lhe apresentaram um outro novo.
D. Bosco não poude mais. Ficou rubro de comoção
e com lágrimas nos olhos disse : - Ista é demais ! Parece
que perderam a razão ! - Tenha paciencia, disse o Pe.
Cerruti que o acompanhava, é preciso que D. Bosco se
adapte a isto também. - Tens razão ; paciência ! Tudo
por amor de Deus.
Em 1887 num grupo de salesianos um deles falando
a D. Bosco fez-lhe vêr como suas obras lhe haviam gran­
geado fama mundial. D. Bosco o fitou sorrindo e disse :
- E você acha que D. Bosco se ensoberbece com isso?
Não ! Receio que Nosso Senhor me castigue por outras
coisas mas porisso não ! E' tão pouco o que entra de
meu nestas obras que se não fosse o auxílio de Nosso
Senhor que as deseja, elas ruiriam por terra. Especial­
mente agora é tão pequena a minha contribuição que me
admiro como as coisas que inicio podem ir adeante.

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SD'A HERÓICA HUMILDADE 249

Tudo atribuia a Deus e à bondade inefavel da Virgem


S. S.
Nas festas de Nossa Senhora Auxiliadora uma mul­
"
tidão imensa afluia ao Oratório; muitos enfermos eram
"
trazidos a D. Bosco para que os abençoasse ; centenas de
pessoas o rodeavam.
Para que ninguém pensasse que tinham vindo por
sua causa, o santo apontando para a multidão dizia : -
Quanto fé há neste bom povo ! Quanta devoção para
com a Virgem Maria !
Numa dessas festas ao voltar do altar para a sacris­
tia foi rodeado por tanta gente que com dificuldade pôde
passar. Uns queriam beijar-lhe a mão, outros os para­
mentos, uns lhe encostavam têrços , outros traziam-lhe
creanças para que as abençoasse. E êle, com os olhos
baixos e as mãos j untas dizia : Rezem por mim ! Rezem
por mim !
Teve sua humildade um distintivo especial. Se o
chamavam de santo e homem extraordinário, ria-se e
levava tudo em brincadeira e nunca disse coisa alguma
que fizesse ressaltar alguma de suas virtudes. Era ao
contrário seu máximo cuidado esconder todo o extraor­
dinário e de fato não parecia elevar-se sôbre a esfera
comum dos homens Com pouquíssimos e, sempre em ter
mos velados, deixava entrever os dons excelsos com que
N. Senhor o cumulara. Os louvores que permitia a seu
respeito reduziam-se ao que nós chamaremos de "esper­
teza" como argucias e solução de negócios, e só com o
fim de ganhar sempre mais o coração daqueles que dese­
j ava atrair a si para fazer deles membros úteis da sua
Pia Sociedade.
Finalmente foi obrigado a se revelar e começou a
acenar às muitas maravilhas que Nosso Senhora vinha
operando mediante êsses dons estraordinários e isso o fez
para torná-los mais entusiasmados na própria vocação e
assim ganhar mais almas.

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250 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

Em 1876, D. Bosco declarava : "Já escrevi sumaria­


mente muitas coisas que dizem respeito ao Oratório desde
sua origem até hoj e. Em 1854 começamos a falar da
nossa Pia Sociedade e as coisas assumem então um outro
aspéto. Pensei que êste meu trabalho poderá servir
muito para 0'5 que vierem depois de nós, redundando para
a maior glória de Deus e porisso continuarei a escrever.
Agora não se deve fazer diferença entre D. Bosco e a
nossa Pia Sociedade ; vejo que a vida de D. Bosco se con­
funde por completo com a da Pia Sociedade e porisso
falaremos de ambas. Para a maior glória de Deus, salva­
ção das almas e maior desenvolvimento da Pia Sociedade
é preciso que muitas coisas se tornem conhecidas. Di­
gamo-lo entre nós : as outras Congregações e Ordens Re­
ligiosas tiveram alguma visão nos seus inícios, algum
fato sobrenatural que deu o impulso à fundação e asse­
gurou-lhe o estabelecimento; mas no mais das vêzes tudo
consistiu num ou em poucos fatos ; ao contrário, entre
nós tudo se passou diversamente. Pode-se dizer que não
haja nada que não tenha sido conhecido de antemão.
Nossa Pia Sociedade não deu um passo que não fosse
aconselhado por algum fato sobrenatural ; não houve
mudança ou progresso que não tenha sido precedido por
uma ordem divina. Eis porque j ulgo oportuno que se
deixe a parte humana. Que nos importa que falem bem
ou mal de D. Bosco? O que podem dizer, pouco se me
dá ; não ficarei porisso nem maior nem menor aos olhos
de Deus. E' preciso que as obras de Deus sejam conhe­
cidas . . .
"

No fim de 1876 escrevia : . " . . Tenho prazer em . contar


as coisas antigas do Oratório. Alguns são fatos que se
referem a D. Bosco mas não os conto por vanglória ;
ch ! não ! graças a Deus isto não entra aqui. O meu fim
é tão só narrar as maravilhas da bondade divina; fazer
vêr que, quando Deus quer uma coisa se serve de qual­
quer meio mesmo fraco e inadequado, fazendo-o superar
todo o obstáculo !

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SU!t HERÓICA HUMILDADE 251

E deixou que esta confidencia se divulgasse; fundou


o Boletim Salesiano para tornar mais conhecidas as suas
obras proporcionando-lhes auxílios materiais e morais,
suscitando imitadores. "Estamos em tempos em que
precisam os agir; o mundo se tornou material, porisso é
preciso agir e tornar público o bem que se faz. O mundo
não se importa com um indivíduo que faça milagres mas
fique dia e noite rezando na sua cela; o mundo quer vêr
e apalpar". E isto em conformidade com o que diz o
Evangelho : Para que vejam as vossas boas obras e glo­
rifiquem vosso Pai que está nos céus.
D. Bosco fez fois o sacrifício heróico até de sua hu­
mildade, sacrificando-a pela glória de Deus pôstO que de
vez em vez esta virtude lutasse contra sua fama.
"A 16 de Outubro de 1884, nota a crônica do Oratório,
D. Bosco deplorava, como o faz sempre na intimidade, a
publicidade que se dá às suas obras e aos fatos de sua
vida com as biografias e artigos de jornal. �le diz :
Quanto mais a nossa fama progride na terra, mais dimi­
nui no céu . . . se formos dignos de lá chegar. Fiz todo
o possível para me ocultar : falava-se por tôda a parte
dêste pobre padre; uns diziam isto, outros aquilo e D.
Bosco calava. Mas quando a Pia Sociedade teve fórma
estável, então fui obrigado a não me opôr como no pas­
sado aos que desej avam por meio da imprensa tornar
nossas obras conhecidas. A pessoa de D. Bosco se iden­
tificava com a da Pia Sociedade e esta precisava ser
conhecida".
Deixou escrito nas suas memórias :
Recomendo ardentemente a todos os meus filhos, de
tomar cuidado, escrevendo ou falando, para não contar
nem afirma r que D. Bosco recebeu graças de Deus ou
tenha feito algum milagre. Cometeria um êrro prejudi­
cial pois embora a bondade divina tenha sido sobrema­
neira benevola para comigo, j amais pretendi conhecer ou
fazer coisas sobrenaturais. Eu não fiz mais do que rezar

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252 O PERFIL MORAL DE DOM . BOSCO

e pedir a almas piedosas que rezassem. Sempre experi­


mentei o poder das orações comuns dos nossos alunos e
N. Senhor veio compassivo em nosso socorro sempre com
sua Mãe Divina. Tal se verificou principalmente quando
nece'ssitavamos ajudar os nossos meninos pobres a aban­
donados e muito mais quando a alma de algum deles
corria perigo.
Parecia que entre D. Bosco e Nossa Senhora se tivesse
feito uma concordata : D. Bosco teria arrancado ao de­
mônio o maior número possível de almas graças aos
meios que seus benfeitores lhe proporcionassem e a Vir­
gem em compensação realizaria por meio de D. ·aosco os
mais estrepitosos ,prodígios.
Um dia em que o santo estava falando com seu se­
cretário sôbre a morte e os efeitos que dela proviriam,
isto é, no dizer do Pe. Berto : um pranto universal ; D.
Bosco com santa serenidade afirmou :
- "Ora, se D. Bosco morrer todos dirão : O pobre­
zinho também morreu ! e tudo estaria acabado nisso.
Quem há de fazer festa e rir de alegria é o demônio que
há de dizer : "Finalmente desapareceu quem me fazia
tão grande guerra e me estragava tantos serviços meus".
Deante do gênio do mal, D. Bosco era cioso do lugar
que tinha e ao pensamento da morte em lugar de pre­
librar o fim da luta e o repouso eterno, quase se entris­
tecia à idéia de não poder continuar por mais tempo as
santas batalhas pela glória de Deus e salvação das almas.
Quanto mais humildemente D. Bosco pensava de si,
mais o glorificava a opinião universal. "Não só na Itália,
afirma o Pe. Rua, mas até no exterior, em todos os países
da Europa e da América, na Africa, na Asia e na Oceania,
se estendeu a fama da santidade de D. Bosco, já durante
sua vida. De tôdas as partes chegavam-lhe cartas re­
correndo à mediação de suas preces como às de um
santo".

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SUA HERÓICA HUMILDADE 253

"Êste conceito da santidade de D. Bosco, acrescenta


D. Cagliero, estava arraigado em tôda a classe de pes­
soas, nobres e plebeus, eclesiasticos e leigos e em vez de
diminuir crescia de ano em ari o pela fama de suas emi­
nentes virtudes e dos dons sobrenaturais com que Deus
o enriquecera. De perto e de longe recorriam a êle ;
recomendavam-se às suas orações como a um santo para
mais facilmente obter graças de Deus e da Virgem. Eu
mesmo vi muitas vêzes pessoas que pediam a bênção de
Nossa Senhora mas a queriam dada por D. Bosco ; davam
e�molas para a celebração de Missas, mas queriam-nas
celebradas pelo santo. A sua Missa era sempre assistida
.
por multidão de pessoas devotas que, antes ou depois,
pediam-lhe a bênção, de joelhos; muitas delas vinham
de lugares distantes e sentiam-se felizes por ouvir a
Missa e receber a bênção de um Santo. Com avidez
igualmente religiosa procuravam um conselho, uma pa­
lavra ou um olhar de sua pessoa.
Também os seus autógrafos eram tidos em grande
veneração. Em 1883, estando D. Bosco em París, um se­
nhor lhe apresentou umas 50 imagens para que nelas
escrevesse o nome e sobrenome; dois dias depois, entre­
gava-lhe 2 . 000 francos fruto da venda de tais imagens.
O desejo de possuir tais autógrafos originara-se do fato
de que, algum tempo antes, uma pessoa gravemente
doente em Chambéry pusera sôbre o peito com viva fé
uma imagem de Maria Auxiliadora com a assinatura de
D. Bosco e ficára curada.
E' inútil aduzir fatos particulares a êste respeito ;
seria demasiado longa a simples lista de eminen tes ecle-
8iásticos e leigos que o tiveram na mais elevada conside­
ração. Pio IX o chamava "O Tesouro da Itália", pedia­
lhe conselhos e muitas vêzes se confessou com êle.
Leão XIII dizia-o "Homem providencial" - "O Santo" !
Bispos, arcebispos e cardiais se recomendavam à sua
caridosa oração e de j oelhos em terra queriam que os
abençoasse. Reis e Rainhas bem como personagens reais

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254 O PERFIL MORAL DE DOM BOSCO

queriam vê-lo, ouvi-lo e consideravam uma glória ajudá-lo


em suas obras. !numeras personalidades de Estado de tôdas
as cores e partidos lhe consagravam a mais sincera de­
voção. Os mesmos inimigos da Igrej a chamando-o O
811.nto, o taumaturgo de Valdocco, exprimiam o conceito
em que ó tinham.
Em certo j antar a conversa versava sôbre D. Bosco
c alguns começaram a j ulgá-lo mal, ao passo que outros
calavam e outros pareciam desaprovar o que se dizia.
Finalmente um ilustre eclesiástico observou :- D. Bosco
é um homem extraordinário e por isso não pode ser
considerado como os demais; j ustamente por ser extraor­
dinário, suas obras também o são. Considerai-o tão só
sob êste aspéto e então até o que vos parecer singular
há de suscitar vossa admiração.
D. Bosco era um homem realmente extraordinário !
Í N D I CE
CAP. PÁGS.
I - Um primeiro olhar 3
II - Consigo mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
III - Com o próximo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
IV Com Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
v "Da mihi animas! . . . " . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
VI Predileção pela juventude . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
VII - O sistema educativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
VIII - Ainda sôbre o Sistema Preventivo . . . . . . . . . . . . . . 115
IX - Escritor e Conselheiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
X No Ministério Sagrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
XI Franqueza apostólica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
XII - Confiança na divina Providência . . . . . . . . . . . . . .
.
· 185
XIII - Amor à pobreza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
XIV - Dons sobrenaturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
XV - Sua heróica humildade . . . . . . .. . . . . . .. . . . . . .. . 239

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