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Um diamante

no meio do
volp
Créditos
TEXTO
Wilhan Santin
wilhansantin@gmail.com

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Ricardo Gogel
ricardo@gogel.design

ILUSTRAÇÕES
Carlos Nacci
fanzineria@gmail.com
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Santin, Wilhan
Um diamante no meio do Volp / Wilhan Santin ;
ilustração Carlos Nacci. -- Londrina, PR : Ed. do
Autor, 2022. -- (BemContado ; 1)

ISBN 978-65-00-52099-6

1. Contos brasileiros I. Nacci, Carlos.


II. Título. III. Série.

22-126102 CDD-B869.3
Índices para catálogo sistemático:

1. Contos : Literatura brasileira B869.3

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380


5 Um diamante no meio do VOLP
Em dia de plantão tranquilo, a gente logo desconfia
e sabe que alguma bomba vai estourar antes do fim do
horário. Naquele sábado, aconteceu quando eu já estava
pensando no banho quente, em um bom lanche em
seguida e na minha cama para ler e dormir o sono dos
justos. Faltavam só vinte minutos para encerrar meu
turno de 12 horas quando ele chegou.
Sou médica, tenho 30 anos de idade e cinco anos
de plantões em prontos-socorros de hospitais gerais.
Exatos sessenta meses de labuta e pouco glamour.
Demorei para escolher qual residência eu faria
e toquei a vida nos plantões logo que peguei o CRM.
Sempre fui indecisa. Os colegas todos saíram da
graduação já certos sobre quais especialidades seguir.
Eu pensei em cardiologia, depois achei que seria melhor
tentar dermato. Minha mãe insistiu para que eu optasse
por pediatria. “Assim você cuida dos meus netos”, ela
argumentava.
Os netos da minha mãe, obviamente são meus
sobrinhos. Quatro crianças. Dois meninos do João, meu
irmão mais velho, e duas meninas da Bia, a do meio. Eu
sou a caçula e permaneço solteira, sem perspectivas,
para desgosto do meu pai. “E aí, Carol? Este mês você me
apresenta um pretendente?”, ele sempre me questiona
em tom de deboche.
Os pretendentes são poucos para uma mulher de
poucas palavras. Há quem diga que sou azeda. Talvez eu
seja mesmo. A verdade é que ando sem paciência para
relacionamentos. Quero viver o meu mundo, a minha
vida, sem dar satisfações para ninguém.
Mas se você quer saber, acabei optando por me

6 Um diamante no meio do VOLP


especializar em geriatria. Terminei no fim do ano
passado. Prefiro cuidar dos velhos a cuidar das crianças,
embora alguns dos meus pacientes de consultório
comportem-se como crianças. Vários enfrentam o
alemão. São uns fofos. Com eles até deixo meu azedume
de lado. Ali a doutora Carol sorri de vez em quando.
Nunca sonhei com clínica com meu nome na frente
e secretária atrás de balcão de mármore. Isso tudo é
caro e meu volume de pacientes é pequeno. Atendo no
ambulatório do SUS. Uma vez por semana, 16 velhinhos.
Está bom assim. No resto do tempo, vamos de plantões.
Há plantões em que acontece de tudo. Chega um
baleado de confronto com a polícia junto com um
acidentado de motocicleta, ao mesmo tempo de alguém
com apendicite. Daí é correria e adrenalina.
Mas há outros plantões como o daquele sábado de
junho. O que havia chegado de mais grave desde às 7h
era um rapaz com cólicas renais e uma mulher que caiu
de bicicleta e fraturou o rádio, que é um dos ossos do
braço.
Eu bocejava, às 18h30, quando um dos serviços de
ambulância da cidade telefonou para avisar que estavam
trazendo um caso de infarto. A bomba chegando.
Homem, 62 anos. Levariam dez minutos. E assim foi.
Às 18h40 estavam deitando aquele senhor na maca da
sala de emergência.
Corri para lá. Ele ainda estava lúcido e tinha uns
olhos azuis incríveis. Antes que eu fizesse qualquer coisa,
segurou nas minhas mãos. Apertou-as com o resto de
forças que tinha. Olhou nos meus olhos. “Doutora, no
meio do VOLP, na minha biblioteca, entregue o que tem

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lá para ela, somente para ela, por favor.”
Nem deu tempo de eu questionar quem era “ela”.
O coração do homem parou.
Administrei os medicamentos recomendados,
utilizamos o desfibrilador, fizemos a massagem, um
colega cardiologista que estava no setor de hemodinâmica
correu para me ajudar. Tínhamos tudo o que um
profissional de emergência pode desejar nas mãos, mas
nem sempre conseguimos vencer a morte. Ela é danada.
Dá uma sensação de vazio quando isso acontece. Não é
só comigo. Percebo que ocorre com outras médicas e
outros médicos. A equipe de enfermagem também fica
mal. Somos gente, embora exista a piadinha corrente
que diz que acreditamos ser deuses.
Não havia nenhum familiar daquele paciente
esperando por notícias na recepção, o que é incomum.
Entrei na ficha para registrar o atendimento. Ele já havia
passado pelo hospital outras vezes. Retirou a vesícula em
2015. Esteve no pronto-socorro em 2017, com crise de
hipertensão. Pedro Navajo Combinatto era o nome. Não
me soou estranho, mas era certo que eu não o conhecia.
Saí do hospital depois das 21h, exausta. O plantão
de 12 durou, na verdade, mais de 14 horas. Pedi um
x-salada na minha lanchonete preferida, passei pegar,
fui para casa. Moro sozinha em um apartamento de 52
metros quadrados. É o suficiente para mim.
Tomei o sonhado banho. Que maravilha a água
quente entrando em cada poro da minha pele gelada,
relaxando os músculos, dando-me uma sensação de
vida, aquecendo-me.
Devorei o lanche com a fome de quem não comia

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nada desde o meio-dia.
Já na cama, peguei um livro da Lygia Fagundes
Telles. Ela é maravilhosa. No entanto não consegui
me concentrar para ultrapassar a primeira página de
um dos contos. “Doutora, no meio do VOLP, na minha
biblioteca, entregue o que tem lá para ela, somente
para ela, por favor.” Essa fala não saía da minha cabeça.
Aquele paciente havia me dado uma missão que eu não
estava nem um pouco com vontade de cumprir. Isso não
era uma das minhas obrigações. Dane-se, pensei.
Mas a gente não comanda a nossa cabeça, por isso
não fiz psiquiatria. Lembrei-me da Vó Nice, mãe da minha
mãe, que sempre dizia que não se deve desrespeitar a
última vontade de um morto. Que bobagem.
Apaguei as luzes, puxei as cobertas e dormi mal,
acordando a todo instante, tendo sonhos desconexos,
lembrando-me dos olhos azuis penetrantes daquele
paciente. Desisti de lutar às 6h. Levantei-me, peguei o
celular, abri o Google e digitei Pedro Navajo Combinatto.
Em um site local já havia nota sobre o falecimento
dele. “Morreu, no fim da tarde de ontem, Pedro Navajo
Combinatto. Ele teve uma parada cardiorrespiratória.
Um dos arquitetos mais renomados de Londrina,
Combinatto tinha 62 anos e deixa o legado de traços
modernistas em diversos edifícios em todo o Brasil. Ele
era solteiro e não tinha filhos.”
Falei alto, sozinha. “Pô, se o filho da mãe era solteiro
e sem filhos, que raio de ela era a pessoa da qual me falou.
Que droga!” Lembrei-me de novo do pedido: “Doutora,
no meio do VOLP, na minha biblioteca, entregue o que
tem lá para ela, somente para ela, por favor.”

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10 Um diamante no meio do VOLP
Eu nem sabia o que era VOLP. Pesquisei. Vocabulário
Ortográfico da Língua Portuguesa. Um livro que traz
todas as palavras do nosso idioma. Não é dicionário, só
o registro das palavras que existem.
Na ficha do Pedro no hospital certamente teria o
endereço dele, mas como eu iria entrar na casa do cara,
ir até a biblioteca e pegar o tal VOLP para ver o que havia
no meio? Jurei para mim mesma que não pensaria mais
naquilo. Tomei café e saí para caminhar.
Andei em ritmo acelerado, com uma boa seleção
nos fones de ouvidos. Cantarolei Guns N’ Roses, Bonnie
Tyler e Rod Stewart, em alta voz. As outras pessoas que
caminhavam em volta do lago da cidade julgaram-me
louca. Melhor do que ficar louca de verdade pensando
na história absurda do plantão do dia anterior.
Mas, no almoço, na casa dos meus pais, meu irmão
tocou no assunto. Ele é engenheiro e conhecia, de vista
e de nome, o arquiteto que eu não consegui salvar.
“Era um gênio”, resumiu. Contei para o João a história
completa, inclusive com o pedido do morto. “Carol,
você se lembra do que a Vó Nice dizia sobre pedidos dos
mortos?” Respondi que sim, emendando um palavrão.
Meu irmão é um amigo. Ele sabia em qual prédio
o Pedro morava e tinha um colega engenheiro que
ocupava um dos apartamentos. Uma torre linda, com
24 andares e um apê por andar, cada um com mais de
400 metros quadrados. Coisa chique. Fomos até lá os
dois, na segunda bem cedo, dia em que eu não tenho
plantão. Só o consultório do SUS, à tarde.
O colega do meu irmão informou que cada
apartamento possuía sua própria senha no elevador. Era

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impossível acessar sem sabê-la. Mas disse que o Pedro e
o companheiro tinham empregada, que deveria chegar
logo. Que aguardássemos a moça perto do elevador de
serviço.
E ficou com a gente até a Maria chegar. Na verdade,
uma senhora baixinha, de uns cinquenta anos. Estava
triste com a morte do patrão. Contei que eu era a
médica que havia recebido ele no hospital e estava
ali para atender a um último desejo e precisava ir ao
apartamento. “Então vocês façam o favor de subir, mas
vamos logo, o seu André disse no zap que vai chegar
antes das 9h e ele não vai gostar nada dessa conversa.”
E foi nos empurrando para o elevador de serviço.
O apartamento era cenário de filme. Só a
decoração deve ter custado umas cinco vezes o valor
do meu inteirinho. Perguntei pela biblioteca. A Maria
me mostrou. João me acompanhou e começamos a
procurar pelo Vocabulário Ortográfico em meio a três
estantes de livros que iam do chão ao teto. Encontramos
na seção que guardava dicionários e gramáticas. Um
livrão, de 878 páginas.
Abrimos. A maior parte das páginas do miolo
haviam sido recortadas com estilete, criando grande
espaço para acomodar o que julgamos ser um diamante,
enorme, e muitas notas de 100 dólares. Ao lado do
diamante, um bilhete, escrito a caneta tinteiro, com
uma letra miúda e linda. “Juliana, eu fui horrível, eu
sei. Aceite esta pedra e estas notas. Obs.: não se meta
com o André.”
Estávamos em silêncio, espantados, olhando para
aquilo quando a Maria apareceu. “Rápido, sumam, o

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seu André está subindo pelo elevador social.” Fechei o
VOLP e obedeci, levando-o junto, com todo o recheio.
De novo ela nos empurrou para o elevador de serviço.
Deu tempo de eu fazer duas perguntas que a mulher
respondeu secamente. “Quem é esse André?”. “O marido
do seu Pedro”. “E quem é Juliana?”. “Não faço ideia.”
Pelo menos agora eu tinha um nome: Juliana.

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14 Um diamante no meio do VOLP
Escondi o livro embaixo da minha cama, como
se um ladrão que eventualmente entrasse na minha
casa não fosse procurar por ali, e fui atender os meus
velhinhos.
À noite, em casa, contei as notas de dólares. Eram
300, todas de 100. Isso dá 30 mil dólares, mais de 150 mil
reais. Ou mais de 100 plantões de 12 horas.
Também pesquisei na Internet, com mais calma
e tempo, sobre o Pedro. Encontrei uma reportagem
que fizeram com ele em uma revista especializada
em arquitetura há quatro anos. Três páginas inteiras,
com diversas fotos. Bonitão. Alto, magro, visivelmente
preocupado com a boa forma. Não me pareceu um
sujeito com muitos fatores de risco para doenças
cardíacas. Em meio a tanto texto, encontrei esta fala
dele: “Eu fui criado em uma cidadezinha do Norte do
Paraná, chamada Primeiro de Maio. Tenho muitas
lembranças das máquinas de beneficiar café, da terra
vermelha, do pessoal da lavoura. Tudo isso eu utilizo em
minhas criações.”
Era uma pista: Primeiro de Maio. Eu não conhecia
a cidade, mas olhei no mapa e vi que ficava no extremo
Norte do Paraná, perto de Londrina, onde moro. Em
torno de 60 quilômetros. Passei o meu plantão de sexta
para um colega e fiquei com o dia livre para ir até lá.
Gosto de dirigir em estradas. Dá uma sensação de
liberdade. Mas as rodovias estaduais que peguei eram
estreitas, margeadas de milharais, e não permitiam
passar dos 100 por hora com segurança. Fui devagar.
Primeiro de Maio até que é simpática. Fica
às margens de uma grande represa de uma usina

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hidrelétrica. Os nomes das ruas são números. A Nove
é a principal. Perguntei pelo Hospital Municipal. Um
senhor, de chapéu e pelo menos dois dentes de ouro,
me informou que ficava na Rua Quinze. Fácil de achar.
Todas as ímpares são paralelas e cruzam com as pares.
No hospital, perguntei pelo médico. Rodolfo era o
nome do colega. Uns 40 anos, simpático. Apresentei-me
e questionei o que ele sabia sobre a família Combinatto.
“Nada”, foi a resposta.
Ele não mora na cidade, é de Assis, no interior de
São Paulo, e se desloca apenas para os plantões. Mas
chamou as funcionárias, todas locais. Não ajudou em
nada, nenhuma conhecia a família. Eu disse que era
gente que havia morado ali tempos atrás.
Indicaram um certo senhor José, ou “Zé do Paco”,
morador da Rua Oito. Era um dos antigos, lúcido, de boa
memória. Fui até a casa dele. O homem estava sentado
em cadeira destas de cordinhas, na varanda. Parei o
carro, desci, perguntei se ele era o José. Respondeu
que sim e fez sinal com a mão para que eu entrasse. O
portão, baixinho, estava aberto.
Aquele senhor, que certamente tinha mais de 80
anos, era tão magro que dava para identificar cada
um dos ossos sob a pele. Por alguns segundos fiz esse
exercício, até que ele dissesse com uma voz forte demais
para tão pouco peso. “Do que a moça precisa?”
“O senhor conhece alguém da família Combinatto?”
Ele ficou pensando por uns 15 segundos, coçou a
cabeça, olhou para o horizonte. “Não.” Insisti. “E Navajo
Combinatto, diz algo para o senhor?”
“Ah, é verdade, moça. Navajo, Juan Navajo, o

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espanhol. A mulher dele, a Juliana, era isso mesmo,
Combinatto, italiana ela, eita, que cabeça a minha!”
“Pois então, senhor José, eu procuro alguém da
família deles?”
“Aqui a senhora não encontra. O Juan morreu,
deixa eu ver, acho que em 1962, coitado. Ele era meeiro
em fazenda de café. Eu também. A gente se conheceu
muito. Homem valente, sem medo de enxada. Mas um
dia tombou duma vez no meio do cafezal. Foi ataque do
coração. Ele tinha menininho novo, acho que Pedro. Daí
o dono da fazenda deu dinheiro para a Juliana comprar
casa aqui na cidade. Não por bondade, mas para se livrar
da moça. Ela era sozinha no mundo. A família toda na
Itália e ela era desgarrada. Costurava que era uma
bênção e com o dinheiro das costuras criou o menino,
s0zinha. Quando apontou o bigode, ele foi embora para
lugar maior e deixou a mãe aqui, solitária. Ela morreu
de desgosto uns cinco anos depois da partida do rapaz.”
Mentalmente, proferi uns dez palavrões. Por fora,
sorri e agradeci o velhinho. “A senhora é da polícia?”.
“Não, sou médica.” “Mede pressão?” “Tô sem aparelho,
seu José. Muito obrigada. Até logo.” Ele insistia para que
eu tomasse um café, mas fui para o carro.
A viagem serviu para eu descobrir que Juliana era
o nome da mãe do Pedro, mas certamente a herança no
meio do livro não era para ela. Ele devia saber da morte
dela. Que horror. Também concluí que o problema
cardíaco era congênito. O pai dele morreu subitamente.
E espanhóis colocam o nome do pai no meio e não como
o último dos filhos. Por isso, Navajo Combinatto. Mas
quem era a Juliana que eu procurava?

17 Um diamante no meio do VOLP


Tentei seguir a vida e me esquecer daquilo tudo.
Passaram-se cinco dias sem que eu mexesse com
aquela história. Decidi voltar ao apartamento do Pedro
e devolver o livro, o dinheiro, o diamante e recuperar
a minha paz. O tal do André que se virasse com aquilo
tudo. Ele era quase invisível. Nem o jornal sabia da
existência dele, dando o Pedro como solteiro quando
morreu. Eu não tinha nada a ver com esta história.
Apenas dei o azar de estar de plantão no dia em que o
homem resolveu morrer. Por vinte minutos não escapei.
Mas quando reli o bilhete que acompanhava aqueles
valores, com aquela letrinha tão caprichada, de artista,
mandando a Juliana não se meter com o André, recuei.
Procurei o meu irmão. Mandei mensagem.
Ele também estava preocupado e impressionado e
pesquisara mais sobre o arquiteto morto. Me respondeu
com um áudio. “Carol, descobri que ele se formou em São
Paulo, em 1984. Entrei no site da faculdade e encontrei a
lista de todos que se formaram com ele. Alguns desses
arquitetos estão nas redes sociais e tomei a liberdade de
mandar mensagens perguntando se conheciam o Pedro
Navajo Combinatto. Só uma mulher respondeu. Pérola
é o nome dela. Pedi o número de telefone e ela passou.
O DDD é 21. Deve morar no Rio. Se quiser ligar, fique à
vontade. Cuide-se. Qualquer coisa, me chama.”

Liguei para a Pérola, às 21h. Contei que eu era


a médica que havia atendido o colega de turma dela
no dia em que ele morreu e que precisava saber mais
sobre ele, na verdade queria descobrir quem era uma
certa Juliana. Do outro lado da linha, a mulher desabou,

18 Um diamante no meio do VOLP


começar a chorar de fazer soluço. Eu tentei acalmá-la.
Ela respondeu com dificuldade, pedindo para eu ligar no
dia seguinte, no mesmo horário, até lá estaria melhor.
Foram 24 horas que custaram a passar até que
eu pudesse telefonar novamente. Pérola foi direta. “O
Pedro sempre foi um cara estranho. Vindo do interior
do Paraná, filho de costureira, órfão, pobre, retraído,
mas de uma inteligência enorme. Ele era um etê na
nossa turma de burgueses. Imagine se admitisse que
era gay, em plenos anos oitenta. Ficaria isolado. Eu gostei
dele. Vamos combinar que era bonito. Começamos uma
amizade colorida, que virou namorico e chegamos à
cama. Engravidei, no meio do último ano de faculdade.
Quando contei que teríamos uma criança, ele também
me contou que estava namorando com o André, do curso
de Direito. Foi barra.”
Pedro falou para a Pérola que não iria assumir a
criança. Não tinha intenção de participar da criação.
Afeto não poderia dar. O André não entenderia. Dinheiro
também não tinha para contribuir nem com a mais
mísera das pensões. Sobrevivia com a pouca herança
deixada pela mãe.
“Mas no dia em que a menina nasceu o desgraçado
apareceu na maternidade para ver a carinha dela.
Ninguém falava em DNA naquele tempo e ele estava
interessado em ver se tinha os traços dele. O pior é que
tem vários, incluindo o azul dos olhos. Ele contou uma
lorota. Estava arrependido. Iria ajudar a criar e pediu
para eu registrar com o nome da mãe dele, Juliana,
mas sem os sobrenomes Navajo e Combinatto. Ela
ficou só com os meus sobrenomes e ganhou um ‘pai
desconhecido’ na certidão de nascimento”, completou

19 Um diamante no meio do VOLP


a Pérola.
Ouvindo a história, eu estava com ódio do Pedro,
mas feliz por ter achado a Juliana, ou melhor, a mãe
dela. Faltava só um passo para eu saber da moça.
“Que história complicada, dona Pérola. Desculpa eu
te cortar, mas vou ser sincera. Não quero mais detalhes,
só preciso saber onde encontrar a sua filha para entregar
nas mãos dela um presente que o Pedro deixou.”
Acho que fui até grosseira no tom de voz, mas eu
já estava cansada, querendo me livrar logo de todas
aquelas “heranças.”
“Ela mal fala comigo, Carol. Durante 18 anos eu
sustentei uma história que criei. Eu dizia para a Juliana
que o pai dela era um espanhol, um turista, que eu
havia conhecido casualmente e que teria morrido em
um desastre aéreo antes mesmo de saber que eu estava
grávida. Colou. Até o dia em que, na praia, encontramos
um ex-colega da nossa turma de faculdade e ele fala para
ela: ‘menina, você tem os olhos do seu pai’. Daí, como
dizem, a casa caiu. Contei toda a verdade. Ela estava com
18 anos e foi para Londrina atrás do Pedro.”
Em Londrina, a coitada da Juliana foi recebida
com frieza pelo pai, segundo a Pérola. Ele ofereceu uma
pensão gorda para a menina, como compensação por
tantos anos sem ajudar em nada. Ela aceitou para se
bancar morando sozinha na cidade, com esperança de,
aos poucos, conquistar o afeto dele.
Alugou apartamento, fez seis meses de cursinho,
passou em Biologia na universidade estadual. Mas
o Pedro raramente atendia as ligações dela e se
encontraram apenas cinco vezes em mais de quatro

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anos. Ele sempre preocupado com as possíveis reações
do André.
Quando pegou o diploma, a moça o mandou enfiar
a pensão em lugares impróprios e foi tocar a vida. Fez
pós e mestrado. Pérola deu mais detalhes. “E agora está
em Manaus, faz doutorado em alguma coisa que tem a
ver com insetos importantes para a floresta. Dela eu só
tenho um endereço de e-mail. Nem o telefone quer me
passar. Ainda não perdoou eu ter mentido durante 18
anos, mas um dia ela vai me entender. Mando mensagens
quase todas as semanas. Às vezes ela responde, lacônica.
Pelo menos sei onde e como está.”
A Pérola me deu o endereço e mandei e-mail para
a Juliana, detalhando o que o Pedro havia deixado para
ela e perguntando como fazer para que tudo chegasse
até a capital do Amazonas. A resposta só veio dois dias
depois.
“Carol, lamento que tenham envolvido você nisso
tudo. Não quero nada que era desse senhor. Faça o que
quiser com o dinheiro. Pegue para você ou doe para
alguma instituição. Quanto ao diamante, faça um último
favor, jogue no Rio Tibagi. Creio que é o melhor lugar
para ele. Obrigada. Ju.”
Contei para o meu irmão. Ele me disse que deveria
fazer o que a moça pedia. E explicou que o Tibagi, rio
que nasce em Palmeira, na região dos Campos Gerais do
Paraná, e tem a foz naquela represa que banha Primeiro
de Maio, no Norte do Estado, já foi um grande produtor
de diamantes. Eu não sabia disso.
Era segunda de manhã. Dia da minha folga, porque
havia passado as consultas do SUS para as terças. Fazia

21 Um diamante no meio do VOLP


vinte minutos que eu tinha lido o e-mail e falado com
o João quando o meu telefone tocou. Era um número
desconhecido, mas atendi. Do outro lado, uma voz grave
e cordial. “Doutora Carol, meu nome é André. Eu era
companheiro do Pedro, que você socorreu. Soube que
esteve em nosso apartamento e levou emprestado um
Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Gostaria
que me devolvesse, por favor.”
Eu gelei, fiquei sem voz. Nunca senti tanto medo e
aflição. Ainda não sei como consegui responder, mas me
saí assim. “Claro, seu André. O Pedro pediu que eu desse
uma olhada nesse livro, mas não tinha nada demais nele.
Não entendi até agora. Deixo amanhã na sua portaria.”
Ele engrossou. “Amanhã, não, querida. Hoje. Ou irei com
a polícia buscar. O ‘empréstimo’ que você fez também
pode ter o nome de furto.”
Daí foi a minha vez de trucar. Eu estava tremendo,
com vontade de chorar, mas não deixei transparecer
na voz. “Está ótimo, André. Traga também o pessoal da
polícia científica para fazermos a exumação do cadáver
e colhermos material para DNA. Uma filha pode estar
interessada na parte dela de toda a herança.”
Ele desligou.
Liguei para o João, aos prantos. O meu irmão largou
tudo o que estava fazendo e chegou em instantes em
meu apartamento. Ficamos abraçados um bom tempo,
até que a minha crise de choro passasse.
Quando melhorei, fomos à livraria. Compramos
um VOLP. João me filmou entregando ao porteiro,
enfatizando que era para devolver ao senhor André o
que eu havia emprestado. Servia de álibi. O crápula

22 Um diamante no meio do VOLP


certamente tinha imagens de câmeras que deveriam
mostrar eu saindo do prédio com o livro e poderia
utilizar para me acusar formalmente.
Sobre os dólares e o diamante ele jamais poderia
provar qualquer coisa. Provavelmente aquela pedra
tinha origem ilegal.
Vou trocar os dólares e doar os reais para asilos.
Conheço dois que fazem excelentes trabalhos. Sempre
levam os velhinhos para eu atender.
O diamante eu joguei de cima da ponte da BR 369
no Rio Tibagi, na cidade de Jataizinho. Enquanto ele caía,
reluziu ao sol de uma forma esplêndida. Foi engolido
pelas águas. Repousa no fundo. Pena que não existam
mais os bravos homens que mergulham em busca de
tesouros.
Voltei de lá agora e resolvi escrever sobre tudo o
que aconteceu, com a promessa de que nunca mais
vou atender pedido de morto nenhum. A Vó Nice vai
entender.

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