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Quando soa o gongo

Eram onze e quinze quando o barulho começou. Uma mistura de helicóptero


pousando, urso rosnando e máquina de lavar funcionando. No primeiro
momento senti um medo incontrolável, me levantei devagar e fiquei um tempo
em choque esperando a coragem surgir. Depois de uma respirada consegui dar
alguns passos e foi aí que dei de cara com uma das piores cenas de minha
vida, uma cena que me marcaria para sempre.

Estava com a língua entre os dentes, baba e comida saindo de sua boca, os
olhos ficando azuis e aquele barulho alto quase insuportável. A cachorra
estava com os olhos enormes, dando patadas, chorando e tentando fazer algo
pela minha mãe. Joguei todo o desespero que tentava tomar conta de meu
corpo em alguma gaveta e peguei o telefone.

- Você pode vir aqui ? Minha mãe está passando muito mal !

Em pouco tempo mais vizinhos estavam lá, eu e mais dois tentávamos


carregar minha mãe para descer as escadas e levá-la o mais rápido possível
para o hospital. Estava bem difícil pois ela era pesada e mole.

- Eu vi num filme que colocaram uma pessoa numa colcha e conseguiram


carregá-la !

A colcha funcionou, puxei força de não sei aonde e colocamos ela no carro.
Eu segurava sua cabeça e sua mão enquanto via seu lábio roxeando e dizia em
seu ouvido que tudo ia dar certo, então o coração parou.

O primeiro enfermeiro veio com uma cadeira de rodas, apenas olhei para a
cara dele, em seguida foi correndo pegar uma maca.

- O plano dela não cobre este hospital, mas cobre um que é aqui perto.

- Porra, minha mãe tá morrendo !!

Eram mais de cinco pessoas, fecharam as portas, barulhos, palavras e uns


quinze minutos que duraram semanas. Depois de um tempo a porta se abriu
um pouco.
- Olha,dá pra ver o pé dela, não tá mais roxo !

Fiquei olhando meus pés descalços naquele chão de hospital enquanto


esperava, esperava e esperava. Nessas horas tudo vem na sua cabeça e você
tem que se controlar o máximo possível. É muito difícil mas é preciso se
controlar, manter-se lúcido. Não conseguia parar de pensar que uma hora e
meia antes disto acontecer ela havia me chamado porque estava com uma forte
dor de cabeça, não me deixou levá-la para o hospital, disse que ia passar. Mais
tarde fui descobrir que isso havia sido o primeiro aneurisma.

Os primeiros passos que dei dentro da UTI no dia seguinte foram bem
estranhos. Havia um moleque muito pequeno com fios e tubos saindo de tudo
quanto era buraco de seu corpo, ele estava apagado abraçado com um ursinho
de pelúcia. Na frente do leito de minha mãe havia uma senhora que era
idêntica a uma tartaruga de Galápagos. Achei que não ia agüentar ver tudo
aquilo mas me senti incrívelmente bem quando vi minha mãe completamente
sedada, respirando por uma máquina e cheia de outras coisas pelo corpo. A
vizinha falava com ela e a sua pressão começou a abaixar, um de seus olhos
abria um pouco mas depois fechava com força, era como se ela a ouvisse.

Os outros dias foram bem pesados. Poucas horas de sono. Uma incerteza
desgraçada rodando em volta de minha cabeça, ligar pra pessoas, receber
ligações, uma porrada de coisas. Bruno estava comigo o tempo todo e me
ajudou a segurar muitas barras. Quando vi minha mãe tendo o tréco na cama a
primeira coisa que veio na minha cabeça foi a história de Bruno com seu pai, o
dia que ele o ressucitou, os problemas que acarretaram e por fim a tristeza da
morte. Lembrar disto me fez ficar o mais durão e lúcido possível.

- Aqui é o cérebro, aqui é o osso..... este é o coágulo que está na cabeça dela.

- Cacete ! É enorme !

- Temos que drenar este coágulo.A cirurgia demora umas quatro horas, mas
se tiver alguém aqui no fim dela, o médico pode dar um parecer.

Nem sei porque fui dar confiança a aqueles quatro olhos e duas bocas me
dizendo para ficar tranqüilo, ir para a casa e voltar mais tarde. Nem sei porque
acreditei que eles ficariam até o fim da cirurgia.
- Oi, eu sou filho da paciente do leito dezoito, ela acabou de fazer uma
neurocirurgia e eu gostaria de falar com o médico.

- O médico já foi embora. Disse que quando acabou a cirurgia ele procurou
alguém e não achou.

- Mas meu pai e a mulher dele disseram que iriam ficar até o fim da cirurgia
pra falar com o médico !!

- É..... pelo jeito não ficaram.

Engoli aquilo seco e Bruno ficou pasmo por uns bons dois dias.

Minha mãe teve o aneurisma no Domingo, e foi na Sexta-feira, Sexta-feira


treze que o telefone tocou.

- Estão pedindo para os familiares irem pro hospital.

Tensão, nervosismo, tudo e mais um pouco estava ao extremo naqueles


quinze minutos ou trezentas horas que demoramos para chegar lá. Sua amiga
que dirigia o carro fumava um cigarro atrás do outro enquanto chorava.

A maldita salinha de atendimento familiar.

- Então, eu quero informá-los que a dona Cecile..... faleceu.

Foi um desmaio, foi como um tiro no peito, foi como rolar um barranco cheio
de merda de cachorro e pregos.

- Ééééé, agora eu vou chamar a assistente para acertar a parte burocrática


com vocês.

Não vi nada da parte burocrática, não vi mais nada o resto da noite, não
entendi, não sei o que aconteceu, eu não estava lá.

- Cara, você quer tirar o lençol ?

- Quero.
Nunca pensei que sentiria um sentimento tão bom por um cadáver com
quarenta pontos na cabeça, gelado e amarelo.

- É cara, agora soou o gongo, eu agüentei a luta até o fim, não me importanto
o quanto eu estava apanhando, mas agora soou o gongo. Agora acabou.

Custei a acreditar que isto havia acontecido. Ainda não me conformei, acho
que nunca vou. Estou apenas seguindo em frente porque não tenho outra
escolha. Estou seguindo em frente por ela.

A cerimônia foi num crematório na puta que o pariu, o único crematório de


São Paulo. Escolhi duas músicas para tocar, uma do Ray Charles e outra do
BB King, músicas que ela gostava, que ela dançava quando ouvia, bêbada ou
não.

- Quando eu morrer eu quero só uma cerimônia rápida e quero ser cremada,


não quero ninguém se afogando na tristeza.

Um dia antes disso tudo acontecer minha mãe havia olhado todas suas fotos de
quando era jovem e tudo mais e depois que as viu olhou para o nada e disse.

- É, eu fui feliz.

Era como se ela soubesse, era como se eu soubesse, era como se a cachorra
soubesse.

A casa ficou para mim, ainda sinto ela em todos os lugares, ainda penso que a
qualquer hora ela vai abrir a porta, começar a falar alto, cozinhar.

Eles tinham razão, a única certeza desta vida é a morte, mas por mais que você
se prepare, por mais que você pense nela, quando ela chega você nunca está
preparado, é como se tudo ficasse em preto e branco, é como se tudo perdesse
a graça.

Toca o telefone.

- A Cecile está ?

- Não.

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