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AMANTE ETERNO

(Reach the Splendor)


Judith Duncan

Roberta logo se arrependeu por ter cedido tanto...


"Sou contra o casamento. Mulher alguma conseguirá me
prender para sempre", Paul declarou. Roberta sorriu, lembrando
que o sonho de todas as enfermeiras do Hospital Central de
Calgary era levar aquele médico atraente e sensual até o altar.
Jamais imaginaria que ela mesma viria a sonhar com isso e que,
para ficar com Paul, se tornaria até sua amante!
Paul era um conquistador irresistível, deixava as mulheres
loucas de paixão. No entanto, Roberta a ilusão de significar algo
mais na vida dele. Mas suas ilusões caíram por terra no dia em que
descobriu a verdade sobre o passado de Paul.
DIGITALIZAÇÃO: Tinna
REVISÃO: Savoy

Amante Eterno.
Título original: "Reach the Splendor".
Copyright: © by Judith Duncan.

Publicado originalmente em 1984 pela


Harlequin Books, Toronto, Canadá.

Tradução: Elza Joana Frezza.

Copyright para a língua portuguesa: 1985.


Abril S. A. Cultural — São Paulo – SP — Caixa Postal 2372.

Esta obra foi composta na ArteStilo Compositora Gráfica e


impressão na Companhia Lithographica Ypiranga.

Digitalizado e Revisado pelo “Projeto Revisoras” em 2009.



Capítulo I

Era meio-dia e a cantina do Hospital Central de Calgary estava


repleta. Residentes, internos e médicos antigos almoçavam com as
enfermeiras em descontraída confraternização.
Parada na fila, a Dra. Roberta Mitchell esperava sua vez de pedir
o almoço. Ao consultar o relógio, mordeu nervosamente o lábio inferior,
mal disfarçando a impaciência. Não podia perder mais tempo; mas se
não almoçasse agora, não teria outra chance.
Normalmente, passava a maior parte de suas horas de trabalho
no pavilhão infantil, colaborando com o corpo médico daquela seção.
Contudo, naquela tarde, o cirurgião-chefe iria executar uma operação
delicada, empregando uma técnica nova, e não queria perder a atuação
dele por nada deste mundo. Afinal, escolhera o Centro Médico de
Calgary para fazer seu curso de pós-graduação justamente pela fama do
hospital no campo cirúrgico.
O novo chefe da Cirurgia, o Dr. Wilcox, chegara há apenas três
semanas e apesar disso conseguira impressionar a maior parte da
equipe da casa. Internos e residentes curvavam-se diante de seus
conhecimentos e, por que não dizer, de seus modos autoritários.
Quanto às enfermeiras, essas ficavam visivelmente magnetizadas por
seu físico atlético e, quando ele queria, por seu inegável charme.
Pelos comentários que circulavam no hospital, suas reprimendas
atingiam até mesmo um profissional experiente, sempre que este não
tivesse dado o melhor de si. Residentes com três ou quatro anos de
casa, médicos competentes; todos agiam como novatos, baixando com
respeito às vozes cada vez que se referiam a ele.
Roberta tinha certeza de que também ficaria constrangida diante
dele. Afinal, era tão vulnerável quanto seus colegas, principalmente
quando se tratava de um cirurgião tão altamente conceituado.
Enquanto esperava a bandeja do almoço deslizar pela esteira
rolante, ela sorriu e acenou para Bernie Radcliffe que, por sua vez,
agitou freneticamente os braços ao avistá-la, apontando para uma
cadeira vazia na mesa dele.
Bernard Winston Radcliffe III! Ela sorriu intimamente, com os
olhos brilhando de alegria. Aquele aristocrático nome de família fazia
supor uma pessoa presunçosa e distante. Mas, pelo contrário, a
aparência e a personalidade de Bernie lembravam um pequeno gnomo
irrequieto e malicioso, cujo rosto franco de garoto sempre estava aberto
num sorriso amável.
Ele era leal, compreensivo e alegre como ninguém, Roberta o
adorava. Eram amigos de longa data. Conhecera-o no primeiro ano do
pré-médico, quando nunca em sua vida se sentira tão perdida e com
tanta saudade de casa.
Roberta nascera numa pequena cidade do interior da Columbia
Britânica e até então jamais saíra de casa. O aspecto austero da
Universidade de Alberta, em Edmonton, a intimidou. Não conhecia
ninguém e teve vontade de voltar para casa no primeiro dia de aula.
Foi então que conheceu Bernie. Ele se aproximara vermelho de
vergonha e, com a voz embargada, convidara-a para tomar café. Em vez
de lhe dar o contra, como ele esperava, Roberta agarrara-se a ele como
a uma tábua de salvação.
Ele era de Vancouver, o caçula de uma família numerosa, rica e
influente. O avô e o pai, donos de uma próspera firma de advocacia,
presumiam que, obedientemente, Bernie seguiria a tradição da família.
Conseqüentemente, houve a maior confusão quando o jovem,
armando-se de coragem, contou-lhes que se inscrevera no pré-médico.
A mãe chorou copiosamente, o avô quase explodiu de raiva, ameaçando
deserdá-lo, e o pai soltou uma saraivada de pragas. Quando,
finalmente, aceitaram o fato, profetizaram que Bernie estava condenado
ao fracasso e que seria uma fonte perpétua de preocupação para a
família.
Já a história de Roberta não era tão dramática. Ela deixara a
segurança de uma família unida, mas recebera todo o apoio e
encorajamento possíveis. O pai, médico, ficara muito orgulhoso que a
filha mais velha quisesse seguir-lhe os passos. O único problema dela
era que sentia falta dos familiares, das quatro irmãs, do cachorro, dos
dois gatos, das montanhas e da comunidade onde nascera. Sentia-se
tão desesperadamente solitária que teria enlouquecido se não fosse por
Bernie.
Este, por sua vez, sempre declarava que teria se rendido à
pressão paterna e seguido à carreira jurídica se não a tivesse conhecido.
Os dois tornaram-se inseparáveis durante as primeiras semanas
cruciais do pré-médico.
Terminado o período de adaptação, vencidos o medo e a
incerteza, tornaram-se ótimos amigos. Estavam quase sempre juntos,
tanto que os colegas de classe referiam-se a eles como o "estranho
casal".
Roberta resmungava, mas admitia que o apelido era apropriado.
Bernie, com seu rosto redondo de querubim, óculos de lentes grossas,
parecia um garotão tímido. Ela, alta e esbelta, exibia, na opinião dos
amigos, a segurança de uma sedutora, modelo de capa de revista. Mas,
julgando a imagem pouco compatível com a profissão, fazia de tudo
para camuflar sua exuberante feminilidade. Escondia o corpo curvilíneo
num amplo avental sem formas, dois números maiores do que o
necessário, e usava os espessos e sedosos cabelos negros presos num
rabo-de-cavalo.
Mas seus esforços eram inúteis, pois não conseguia disfarçar a
cor de mel da tez acetinada, nem o raro tom de violeta dos olhos azuis,
límpidos e francos.
— Está sonhando acordada, Dra. Mitchell? — sussurrou alguém
ao seu lado.
Murmurando um pedido de desculpa, Roberta saiu do estado de
transe, pagou a conta no caixa e abriu caminho através das mesas
lotadas.
— Oi, doutora — cumprimentou-a Bernie. — De que estava
sorrindo lá na fila?
Roberta lançou-lhe um olhar de esguelha, enquanto se
acomodava à mesa.
— Você não tem sensibilidade, Bernie. Pois saiba que eu estava
relembrando nossas primeiras semanas no pré-médico.
— Ah... era isso? Você está com senilidade! Os primeiros
sintomas são exatamente esses: recordar o passado por meio de lentes
cor-de-rosa.
— Nada disso, meu amigo. Lembro muito bem como foi horrível.
— Ora, Rob. Não foi tão mau assim!
— Veja só quem fala em senilidade! Foi horrível e você sabe
disso!
— Tem razão — concordou Bernie com fingida humildade,
estendendo a mão para roubar um pedaço de sanduíche do prato dela.
Roberta deu-lhe um tapa na mão.
— Deixe minha comida em paz!
— Só quero seu bem. Sabe como é: excesso de calorias...
colesterol...
— Preocupe-se com suas calorias e com seu colesterol e não me
perturbe! Estou faminta.
Bernie olhou-a por cima das lentes espessas e comentou:
— Seu penteado está horrível!
— Obrigada.
— O que está tentando esconder debaixo desse avental? Varies...
seios caídos...
— Vê se me esquece, Bernie!
Sorriram e logo um silêncio, amigável caiu entre ambos. Roberta
começou a comer e, enquanto se servia de café, olhou-o
pensativamente. Depois do curso médico, decidira especializar-se em
Cirurgia em Calgary. Nessa época, Bernie considerava a possibilidade
de ir para Toronto fazer pós-graduação em serviços de emergência. Mas,
ao pensar que ficaria quatro anos longe do amigo, Roberta sentira-se
desorientada e convencera-o a seguir com ela, para Calgary.
— Está arrependido de ter escolhido Cirurgia, Bernie?
— Pelo contrário. Estou contente que tenha me convencido,
sobretudo agora que Wilcox está aqui. Quanto mais o conheço, mais
impressionado fico com o desempenho dele. Foi uma sorte a
administração do hospital ter trazido de Toronto um colaborador com
tanta capacidade.
— Ouvi dizer que o homem é um dos melhores.
— Na minha opinião, ele é o melhor. Fico excitado só de pensar
que terei a oportunidade de praticar sob orientação dele.
— Você vai assistir à operação desta tarde?
— Claro! E você?
— Acho que vou perder o começo. Tenho de fazer minha ronda.
— Soube que foi designada para a cirurgia da próxima semana,
na ala infantil.
— Sim, estão muito sobrecarregados, por isso ainda continuo na
Pediatria. Mas gosto de trabalhar com o Dr. Anderson. É uma doçura de
criatura. Aprendi muito com ele.
— Tem fama de ser infalível nos diagnósticos.
— Fama merecida.
Enquanto Roberta comia a salada, Bernie percorria a sala com
os olhos.
— Parece que "Sua Majestade" dignou-se a participar do almoço
de seus súditos.
Havia um certo respeito no tom irônico de Bernie e, antes
mesmo de seguir a direção de seu olhar, Roberta deduziu que ele se
referia ao Dr. Wilcox.
Ainda não tivera contato direto com ele, mas conseguira assistir
a algumas de suas aulas e ficara impressionada. Realmente, o médico
tinha uma maneira agradável e simpática de transmitir seus
conhecimentos, qualidade nem sempre presente em outros cirurgiões.
Havia uma atitude geral de extremo respeito por seu
brilhantismo e capacidade, e uma certa tolerância por seu cortante
sarcasmo. Ele era competente, eficiente, ia direto ao que se propunha. E
esperava o mesmo de sua equipe.
Apesar do extremo profissionalismo clínico, que o fazia parecer
frio e distante, seus pacientes confiavam nele devido à franca
integridade que se evidenciava em sua voz. Era um profissional
completo.
Erguendo os olhos do prato, Roberta não se espantou ao ver
uma enfermeira muito bonita desfazer-se em sorrisos, quando o Dr.
Wilcox lhe dirigiu a palavra. Se os pacientes confiavam no médico, as
mulheres ficavam literalmente caídas pelo homem. E, com toda a
sinceridade, Roberta entendia o porquê. Ninguém poderia negar-lhe o
charme magnético: era um daqueles morenos altos e bonitos, de olhos
escuros e penetrantes, absolutamente irresistíveis.
"Brilhante, bem-sucedido, bonito e viril: esse é o homem", pensou
ela, com um suspiro.
— Eu soube algumas coisas interessantes do nosso bom doutor
— disse Bernie, enquanto tirava uma colherada do pudim de Roberta.
— Como consegue comer tanto e não engordar, Bernie?
— Alto metabolismo! Então, não está interessada nas fofocas?
— Não!
— Vou contar assim mesmo. Dizem que ele se formou com
distinção aos vinte e dois anos. Que façanha, hein! Sabia que fez pós-
graduação com os melhores cirurgiões do mundo?
Bernie enfiou mais uma colherada de pudim na boca e
continuou: — Sabia também que ele já atingiu a venerável idade de
trinta e quatro anos? E que, segundo os rumores que correm, não
mantém relações sociais com "ninguém" de sua equipe?
— Você tirou minha rosquinha!
— Essas fascinantes informações não lhe atiçam a curiosidade?
Não se importa nem um pouco?
— Importo-me, sim! Você comeu metade de meu sanduíche,
acabou com meu pudim e agora tem a cara-de-pau de afanar minha
rosquinha!
Bernie riu, levantando-se.
— Vou deixar você terminar o café sozinha.
— Sabe que é muito mal-educado?
— Não é verdade. Eu ia lhe agradecer pelo excelente almoço.
— Mentiroso!
— Muito obrigado, Rob. O almoço estava uma delícia! Ela riu,
resignada.
— Sempre às ordens, Bernie. Lançando um olhar ao relógio, ele
disse:
— Telefono à noite. Se você não puder assistir à cirurgia de
Wilcox, conto como foi.
— Faça isso, por favor.
Detestava a idéia de perder a operação de Wilcox. Seria
empregada técnica nova, inédita naquele hospital, e, como se tratava de
um caso raro temia que não pudesse assistir tão cedo à outra dessas
operações.
Pensava exatamente como Bernie. A oportunidade de trabalhar
sob a supervisão de um especialista do porte do Dr. Wilcox era coisa
rara. Fora Um golpe de sorte para o hospital, o maior centro de
treinamento médico da província de Alberta, que ele tivesse aceitado o
posto de cirurgião-chefe.
Talvez fosse difícil trabalhar ao seu lado, especialmente para os
membros mais jovens da equipe, de quem ele exigia muito. Mas o
homem era, sem dúvida, o maior em seu campo. Valia a pena suportar
com paciência seus apartes irônicos.
Seria verdadeira a informação de Bernie, de que Wilcox
mantinha sua vida particular completamente separada da profissional?
Suspeitava que sim. E, a bem da verdade, achava essa atitude correta.
Digna de um profissional sério e responsável.
Olhou para sua xícara de café vazia e depois para a imensa fila
no caixa. Daria qualquer coisa por outro café fresco, mas não tinha
tempo para enfrentar novamente àquela provação. Com relutância,
recolheu a louça usada e colocou-a na bandeja. Quando se levantava,
teve a incômoda sensação de estar sendo observada e sentiu um frio
percorrer-lhe a espinha.
Voltou-se. O Dr. Wilcox, com os braços cruzados sobre o peito,
olhava-a intensamente. Experimentou a inquietante impressão de que
ele sabia exatamente o que ela estava pensando. Com um gesto
instintivo, alisou o avental e, empregando mais tempo do que o habitual
dirigiu-se para a saída. Sentiu os olhos dele seguirem-na passo a passo,
acompanhando-lhe todos os movimentos. Não conseguiu dominar o
nervosismo e só respirou aliviada quando se viu a salvo daquele olhar
perscrutador.
No final das contas, foi mesmo impossível, para Roberta, assistir
à operação do Dr. Wilcox, pois uma emergência na Pediatria a impediu
de sair. Ficou com pena de perder uma oportunidade tão preciosa, mas,
num certo sentido, achou até melhor. O insignificante episódio ocorrido
na cantina deixara-a nervosa. Normalmente, era calma e ponderada,
porém o incidente a perturbara além da conta.
Pensava ter esquecido tudo dois dias depois. Puro engano. Não
apenas lutava contra uma inexplicável agitação interior, como foi
obrigada a enfrentar o homem em pessoa.
A confrontação aconteceu de manhã. Ela estava na ala infantil, à
espera do Dr. Anderson, chefe da Pediatria. Lembrava o tempo passado
como assistente dele. Sua permanência ali se constituía numa grande
experiência, gratificante em todos os sentidos.
O Dr. Anderson era um médico competente, dotado de um bom
senso fora do comum. Além de ter aprendido muito com ele, privara da
amizade de um homem bondoso e naturalmente afável, de um ser
humano de rara sensibilidade. Os pacientes e o pessoal da Pediatria o
adoravam. Sentimento que era completamente compartilhado por
Roberta.
— Bom dia, Rob. Resolvi atender a seus insistentes pedidos e
trouxe comigo seu santo milagreiro para dar uma espiada em Uavy
Martin. — o Dr. Anderson comentou, aparecendo subitamente.
Roberta ficou nervosa ao encarar o Dr. Wilcox e perceber o olhar
que ele lhe lançava. Por uma fração de segundo, sentiu uma
inexplicável vontade de estrangular o pobre pediatra que,
inconscientemente, a colocava numa situação constrangedora. "Por que
ele se lembrou disso justamente agora?" Seu rosto estava pegando fogo!
Evitando o olhar penetrante de Wilcox, respirou profundamente.
Desejava ter a calma necessária para explicar o que provocara o
comentário desastrado do Dr. Anderson. Mas sabia que, se abrisse a
boca, faria o papel de idiota. Realmente...
— Falei de Davy a Paul e ele, muito gentilmente, ofereceu-se
para examiná-lo — continuou o Dr. Anderson, passando a ficha que
continha o histórico clínico do caso ao colega. — A Dra. Mitchell
acredita que só uma cirurgia poderá salvar a perna do garoto.
O Dr. Wilcox correu os olhos pela ficha e depois fitou Roberta.
— Gosta da Pediatria, Dra. Mitchell?
— Sim, gosto.
O Dr. Anderson interveio prontamente.
— Para ser sincero, fiz de tudo para mantê-la conosco. Mas não
fui bem-sucedido; ela continua preferindo a Cirurgia.
— Nós, do Centro Cirúrgico, vamos sair ganhando com sua
perda, Dr. Anderson.
Roberta cerrou os dentes com força. O comentário era muito
ambíguo.
— Exponha-me todos os detalhes do caso, Dr. Anderson — pediu
o Dr. Wilcox, impassível.
Roberta encostou-se na mesa e pôs-se a ouvir atentamente a
exposição do pediatra. Era um caso trágico. Davy, um garoto de dez
anos, morava numa fazenda e se ferira numa máquina de beneficiar
grãos. Fora levado a Calgary e aí operado, na tentativa de lhe salvar a
perna. A princípio pareceu que a cirurgia tinha sido bem-sucedida. Mas
surgiram complicações. O organismo do garoto não reagia como se
esperava.
O médico que executara a operação insistia em amputar-lhe a
perna, mas Roberta rejeitava duramente essa solução. Discutira o caso
com o Dr. Anderson e, durante essa troca de idéias, insistira em que o
Dr. Wilcox fosse consultado.
Um ar de intensa concentração marcava o rosto dele, enquanto o
Dr. Anderson expunha, com detalhes, as condições do paciente.
— Há infecção?
— Controlada, por enquanto. Só não sabemos até quando
poderemos esperar.
Nesse instante, uma das enfermeiras da ala chegou correndo.
— Dr. Anderson, pode dispor de uns minutos?
— Claro.
Quando o pediatra se afastou, Roberta sentiu os olhos do Dr.
Wilcox fixos nela.
— Qual é a sua opinião, Dra. Mitchell?
— Acho que há vinte por cento de chance para o garoto.
— Não é muito.
— É verdade. Mas a chance, embora pequena, existe. Davy tem
apenas dez anos e, se for amputada a perna, sofrerá bastante pelo resto
da vida. Eu não gostaria de ser o médico responsável por isso. A não ser
que não haja outra alternativa.
Havia uma nota de amargura na voz do Dr. Wilcox, quando ele
declarou:
— Não sou um santo milagreiro, doutora. Ela o encarou séria.
— Sei disso, Dr. Wilcox.
O Dr. Anderson aproximou-se, sacudindo a cabeça.
— Essa menina. A pequena Amanda enfiou alguma coisa no
nariz, e não permite que ninguém se aproxime para ver o que é.
Amanda era o terror da Pediatria. As enfermeiras faziam o
possível para ficar longe dela. Roberta reconhecia que ela era
problemática, mas admirava a pequena ruivinha de apenas seis anos de
idade, que não se deixava intimidar por ninguém. A garota armava um
escândalo por qualquer coisa: injeções, banhos, controle de
temperatura. No entanto, Roberta percebia que aquela rebelião era
ditada pelo medo.
— Acho que sobrou para mim, Dr. Anderson — comentou bem-
humorada.
— Ela é toda sua. Já avisei a enfermeira.
— Presente de grego! O Dr. Anderson sorriu.
— É a única que consegue controlá-la, Rob. Contei a Paul como
você sabe se comunicar com as crianças, coisa que não acontece com a
maior parte dos residentes do sexo masculino. É uma pena.
Enquanto o pediatra falava, Roberta notou que o Dr. Wilcox a
examinava atentamente e sentiu as palmas das mãos úmidas.
Subitamente, parecia uma novata enfrentando o mestre pela primeira
vez. A emoção era tão real, que sua voz fraquejou ao comentar:
— A bem da verdade, não podemos dizer que Amanda seja uma
menina tímida.
O pediatra virou-se e explicou ao Dr. Wilcox:
— Amanda é um azougue. A Dra. Mitchell operou-a há três dias
do apêndice e a menina quase pôs o Centro Cirúrgico abaixo, antes de
ser anestesiada. Ela foi à única pessoa que conseguiu controlá-la. Mas
acho que você já sabe do que a nossa jovem doutora é capaz.
— Para ser franco, não sei. Ela esteve o tempo todo de plantão
aqui na Pediatria, desde que assumi o posto.
— Sinto muito — desculpou-se o Dr. Anderson. — Pensei que já
se conhecessem.
Roberta procurou escapar de uma apresentação formal, dizendo:
— Bem, vou atender o monstrinho!
"Abençoada Amanda", pensou soltando um suspiro de alívio ao
se afastar apressadamente. "Prefiro enfrentar um de seus ataques
histéricos do que encarar Wilcox por mais tempo."
A garotinha de rosto sardento estava sentada no meio da cama,
com ar hostil, apertando uma boneca nos braços. Pela expressão da
enfermeira, Roberta pôde imaginar a batalha que acabavam de travar.
— Bom dia, Amanda. Não houve resposta.
— Como está se sentindo?
A enfermeira interveio impaciente:
— Ela vomitou durante a noite e, depois dessa agitação toda, a
febre voltou a subir.
Quando Roberta a operara, o apêndice estava supurado e a
criança ainda lutava contra uma infecção que não queria ceder. Apesar
disso, não queria que tivessem pena dela. Suportava os enjôos e as
dores com paciência, provando sua independência, mesmo em
situações difíceis. Roberta aproximou-se e se sentou na beirada da
cama.
— Soube que você enfiou alguma coisa no nariz. É algo especial,
que quer guardar?
Uma sombra de sorriso apareceu nos lábios da menina, no
momento em que a médica passou o dedo por seu narizinho.
— Não podemos permitir isso, queridinha. Você sabe. Amanda
fitou-a e fez um gesto na direção da porta.
— Não quero que eles fiquem aí!
Roberta lançou um olhar por cima do ombro. Um grupo de
internos entrara no quarto, evidentemente à espera do plantão para
começarem a ronda.
— Estão esperando o médico. Não vão fazer nenhum mal a você.
— Tirando o estetoscópio do bolso do avental, mostrou o instrumento à
criança. — Vamos dar uma olhadinha nesse nariz? Vai deixar que eu
faça isso, não vai?
Amanda ficou pensativa e concordou com relutância. Sem deixar
de apertar a bonequinha de encontro ao peito, permitiu o exame. Uma
das narinas estava obstruída com uma pequena conta azul. Em voz
baixa, Roberta deu instruções à enfermeira, que a olhou, espantada.
Voltando-se a seguir para a criança, perguntou:
— Há uma bolinha em seu nariz, não?
A garotinha cerrou fortemente os lábios e olhou-a com ar
desafiador.
— O que é Amanda? — insistiu a doutora, com voz mais
enérgica.
A menina entregou os pontos.
— O colar da mamãe quebrou e as contas caíram no chão — a
expressão rebelde deu lugar a um ar assustado e Amanda começou a
tremer.
Penalizada, Roberta tomou-a nos braços e começou a alisar-lhe
os cabelos.
— Sei que está com medo, mas vou retirar a conta sem
machucá-la. Se perceber que vai doer eu aviso e você me diz se devo
parar, está bem?
— Está bem — murmurou a menina, escondendo o rosto no colo
dela. — Não gosto daqui.
— Eu sei. Mas vai ter de ficar até melhorar.
— Depois posso voltar para casa?
— Não prometo nada, mas se a febre baixar, acho que vai poder,
sim.
Começou a embalar a criança, até que a percebeu mais calma.
— Sabe que eu tinha uma boneca igualzinha a essa, quando era
menina?
Houve um silêncio tenso, antes que a pequena cabeça de cabelos
vermelhos se erguesse.
— Verdade?
— Ahan... Era minha boneca preferida e chamava-se Annie.
Quando eu estava com ela, as coisas não pareciam tão ruins.
Amanda endireitou-se, colocando a boneca na cama.
— Espere um pouquinho, Marta. Depois eu cuido de você. —
Olhando para Roberta, perguntou: — Vai doer, quando tirar a bolinha?
— Acho que não. Tentarei uma coisa diferente. Vamos ver se
dará certo.
Nesse instante, a enfermeira retornou e depositou a bandeja de
instrumentos na mesinha, antes de entregar à médica dois
envelopinhos de papel. Roberta abriu um deles e despejou o conteúdo
na palma da mão.
— Sabe o que é isso, Amanda?
A menina olhou o pó acinzentado e arregalou os olhos, com
expressão intrigada.
— Parece pimenta.
Ao se voltar para a porta; Roberta gelou. Não eram só os
internos que a olhavam com curiosidade. O Dr. Wilcox chegara com o
mesmo olhar enigmático que ela notara na cantina.
"Oh, não!", pensou desesperada. "O que ele está fazendo aqui?
Devia estar examinando Davy Martin!"
— É pimenta? — perguntou Amanda.
Sufocando a raiva, Roberta forçou os músculos do rosto e sorriu.
— Sim, é. A pimenta faz você espirrar?
— Faz.
— Então vamos tentar uma experiência. Mas você tem de fazer
exatamente o que eu mandar. Está bem?
— Está.
— Ótimo! Vou lhe dar uma boa pitada de pimenta, você vai
cheirá-la e talvez, se tivermos sorte, vai espirrar, obrigando a bolinha a
sair de seu nariz.
Os olhos da menina brilharam de excitação, mas Roberta
preveniu-a:
— Agora a enfermeira vai segurar sua barriguinha porque o
corte da operação poderá doer, quando você espirrar.
Amanda sorriu e concordou.
"Senhor!", rezou Roberta silenciosamente. "Faça tudo dar certo,
caso contrário o poderoso chefão irá pensar que estou louca!"
— Pronta Amanda? — perguntou, enquanto a enfermeira
apertava com delicadeza a barriga da criança. — Dê uma boa cheirada.
A garota obedeceu, e seus olhos encheram-se de lágrimas. Por
um interminável momento, pareceu que a tentativa fracassara. De
repente, porém, ouviu-se um:
— Ah... ah... ah...
Rapidamente, Roberta pôs a mão na boca da criança, a fim de
ter tempo de lhe bloquear a narina com o dedo.
—... tchin!
Mas não aconteceu nada e Roberta sentiu-se uma perfeita idiota.
— Ah... ah... tchin!
A continha pulou no chão e correu pelo tapete de borracha. O
Dr. Wilcox inclinou-se para apanhá-la e Roberta esperou, tensa, que ele
fosse embora, agora que a cena terminara. Mas ele não se mexeu.
Amanda sorria, com os olhos cheios de lágrimas.
— Saiu, não foi?
— Saiu, sim. Mas vamos examinar esse narizinho para ver se
não há mais nada dentro dele. Ou será que encontraremos um ônibus?
A menina caiu na gargalhada.
— Não tem, não — disse, tocando o laço vermelho que prendia o
rabo-de-cavalo de Roberta. — Que fita bonita!
Ela sorriu e desprendeu a fita dos cabelos.
— Você merece um prêmio por ter sido tão corajosa.
Pediu a tesoura à enfermeira e cortou a fita pelo meio,
perfeitamente consciente de que o Dr. Wilcox não despregava os olhos
dela.
"Vou receber um sermão por usar métodos pouco ortodoxos",
pensou aflita.
Sorriu carinhosamente para Amanda, enquanto lhe prendia os
cabelos rebeldes com a fita.
— O espirro fez sua barriguinha doer?
Balançando a cabeça em negativa, a menina deitou-se,
aconchegando a boneca ao seu lado.
— Descansem bem — murmurou Roberta. — Voltarei amanhã.
— Está certo.
No instante em que saía, ouviu o Dr. Wilcox dizer:
— Dra. Mitchell?
Soltando um suspiro de resignação, ela o encarou.
— Sim, doutor?
— Gostaria que fosse à sala de conferências do quarto andar...
dentro de duas horas.
Wilcox fitou-a por longo tempo e, a cada segundo, ela ficava
mais tensa. O peso daquele olhar fazia-a tremer dos pés à cabeça. De
repente, ele deu-lhe as costas e saiu do quarto, seguido pelos internos.


Capítulo II

Numa rápida e inesperada sucessão, uma série de problemas


que exigiam soluções imediatas mergulhou Roberta numa atividade fora
do comum. Decididamente, aquele não era seu dia!
Alguns minutos antes da hora marcada por Wilcox, entretanto,
ansiosa e com os nervos à flor da pele, dirigiu-se para o salão de
conferências do quarto andar. Em contraste com a atividade da
Pediatria, a ala quieta e fresca trouxe-lhe um bem-estar imediato.
Antes de ultrapassar a porta de carvalho no fundo do corredor,
passou os dedos pelos cabelos, tentando alisar os cachos rebeldes que
lhe escapavam do rabo-de-cavalo. Respirando fundo, abriu
resolutamente a porta.
Uma onda de alívio invadiu-a, quando entrou na grande sala
atapetada. Um grupo de internos e residentes, evidentemente à espera
do mestre, ocupava as cadeiras em semicírculo. Havia um murmúrio de
conversas e risos no ar carregado de fumaça de cigarros.
— Rob!
Ela sorriu, abrindo caminho por entre o grupo de estudantes, e
foi ao encontro de Bernie que lhe acenava sem parar.
— Oi! Que confusão é essa? — perguntou, sentando-se ao lado
dele.
— Wilcox vai operar amanhã de manhã. Cirurgia de emergência.
Convocou-nos a todos. Hum... que perfume mais esquisito é esse?
— Essência de clorofórmio. Gosta? Bernie sorriu, ajeitando os
óculos no nariz. — Parece que você teve uma manhã e tanto!
— Assim, assim...
Certamente não iria lhe contar o incidente da pimenta. Bernie
morreria de rir e ela se sentiria uma tonta completa.
Logo a porta se abriu e o Dr. Wilcox entrou na sala, carregando
uma pasta cheia de papéis. Colocando-a na mesa em frente do
auditório, ele correu os olhos pela assistência.
— A operação que se realizará amanhã não estava programada
— declarou, a guisa de introdução. — Convoquei-os para lhes explicar a
técnica que será empregada.
Cruzou os braços sobre o peito. Um ar de profunda concentração
estampou-se em seu rosto no momento que se seguiu.
— O caso de que iremos tratar é complicado. O nome do
paciente é Davy Martin...
Roberta experimentou uma forte emoção acompanhada de
imenso alívio. Havia uma chance para o pequeno Davy!
— Um de nossos médicos residentes opinou que há vinte por
cento de chance de salvarmos a perna afetada — continuou o cirurgião.
— Depois de examinar o paciente, concordei com o diagnóstico. A lesão
apresenta uma substancial necrose de tecidos...
Durante uma hora, o Dr. Wilcox detalhou com precisão o que
pretendia fazer, o processo que iria empregar, e as complicações pós-
operatórias que receava. Quando terminou a explanação, todos na sala
sabiam exatamente o que aconteceria no Centro Cirúrgico, na manhã
do dia seguinte.
— Alguma pergunta?
— Quem será seu assistente? O Dr. Anderson?
Houve uma pausa cheia de suspense, antes que o Dr. Wilcox
respondesse:
— Não, a Dra. Mitchell.
Roberta endireitou-se de chofre, a boca entreaberta. Ele não
podia estar falando a sério!
— Mais alguma coisa?
Se ela tivesse coragem, provavelmente teria perguntado: "Por que
me escolheu?" Mas o Dr. Wilcox já estava dizendo:
— Senhores, a operação será na sala da galeria, as dez em
ponto.
Dito isso, juntou rapidamente os papéis e saiu do auditório,
deixando Roberta sem ação.
— Ora, vejam só! — comentou Bernie. — Você o impressionou!
— Ele não deixou transparecer nada, depois de ter examinado
Davy Martin.
— É seu modo de agir: pegar os outros de surpresa!
— Como será que ele se comporta na cirurgia?
— Com extremo profissionalismo. Uma vez pediu a um interno
que se retirasse da sala, porque o coitado tinha feito um comentário
pouco amável sobre o doente. Segundo ele, o paciente deve ser tratado
com o máximo de respeito.
— E tem razão! Não gosto de ouvir piadinhas sobre os enfermos
que estão na mesa operatória. É degradante!
— Não tenha medo, com Wilcox isso não vai acontecer — Bernie
levantou-se. — Vamos, eu lhe pago um lanche.
— Estou tão tonta, que não vou conseguir me levantar — disse,
estendendo-lhe a mão para que ele a ajudasse. — Wilcox me faz sentir
como uma novata insegura.
— Você não é diferente dos outros. Todos se comportam assim
diante do poderoso chefão.
Roberta mordeu nervosamente o lábio e enfiou as mãos nos
bolsos do avental.
— Vou falar com ele!
— Negativo. Wilcox vai passar à tarde no consultório.
— Então, o que devo fazer?
— Não se preocupe. Não é difícil trabalhar com o chefe. Ele só
perde a calma quando alguém comete um erro imperdoável.
Ela o observou com ar cético, para ver se havia no amigo alguma
intenção oculta.
— Acha que estou mentindo para você, Rob?
— Não tenho a menor dúvida!
Quando acordou no dia seguinte, o sol entrava radiante pela
janela. Rolando na cama, ela consultou o relógio. Seis horas. Podia
demorar-se mais uma hora no calor das cobertas ou levantar-se de
imediato para ter tempo de tomar uma refeição decente na cantina do
hospital. Optou pela segunda alternativa.
Meia hora depois, fechando a porta da frente, ficou parada na
varanda da antiga casa de tijolos vermelhos, olhando a grama orvalhada
brilharem ao sol matutino. Respirou fundo o ar fresco e revigorante.
Adorava aquela época do ano, quando a primavera começava a
afugentar o inverno. Folhagens novas cobriam os ramos das árvores e
os primeiros botões de uma sebe de lilases perfumavam o ar com seu
aroma.
Com os cabelos ainda úmidos do banho a ondular-lhe pelos
ombros, desceu rapidamente os degraus e saiu para o frescor da
manhã. Gostava de morar ali. Quando se mudara para Calgary
escolhera aquele velho apartamento situado num antigo bairro
residencial por uma série de motivos.
O principal era fazer economia. Devia saldar o crédito escolar
que lhe permitira cursar a faculdade e não lhe agradava a idéia de
dividir um apartamento com alguma colega. Esse em que morava,
situado no andar superior da velha casa, convinha-lhe perfeitamente:
era limpo, aconchegante e ficava, a apenas algumas quadras do
hospital.
Era ótima aquela caminhada a pé. As alamedas inteiramente
arborizadas tinham ramos que quase se tocavam de uma calçada a
outra. A luz do sol atravessava as folhagens, formando estranhos
desenhos.
Roberta sorriu, apesar de preocupada. Não sabia por que
experimentava tanto receio em assistir à operação de Davy Martin. Em
geral, confiava em sua habilidade. Não era uma iniciante na sala
operatória, mas, por alguma razão, estava insegura.
Sabia que iria enfrentar uma operação longa e delicada, que não
daria margem ao menor deslize. Para tornar as coisas ainda piores,
suspeitava de que o Dr. Wilcox pretendia testá-la. Ela queria e podia
dar o melhor de si, no entanto, nunca estivera tão pouco confiante em
sua capacidade.
Continuou a caminhada, absorta em pensamentos. Quando
chegou à esquina, um longo e reluzente Jaguar esporte, com a capota
abaixada, encostou ao meio-fio, impedindo-lhe a passagem. Levantou os
olhos. Era o Dr. Wilcox sentado ao volante.
— Entre, Dra. Mitchell. Vou levá-la.
Dito isso, inclinou-se sobre o assento e abriu-lhe a porta.
Hipnotizada por aquela voz suave como veludo, uma súbita timidez a
envolveu.
— Obrigada — murmurou, quando se sentou ao lado dele.
Depois, conseguiu sorrir e dizer: — Linda manhã, não acha?
Em vez de pôr imediatamente o automóvel em movimento, ele a
encarou, os braços apoiados no volante.
— Pensei que não tivesse notado. Parecia tão distraída.
O sorriso desfez-se nos lábios de Roberta. Fitou-o. Os olhos dele
estavam escondidos pelos óculos escuros, mas, mesmo assim, percebeu
que a examinavam.
— Está preocupada com o caso Martin?
Como não sabia mentir, ela suspirou fundo e fez um gesto
afirmativo.
— Sim, estou.
— Ah...
Sem nada acrescentar, ele pegou um maço de cigarros do porta-
luvas e ofereceu-lhe. Ela hesitou, embora estivesse tentada a pegar um.
— Não, obrigada. Deixei de fumar.
O Dr. Wilcox acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro e
sorriu.
— Todos nós estamos preocupados — afirmou, tirando os óculos
escuros e aspirando a fumaça. — Por favor, doutora, diga exatamente o
que está pensando.
Roberta corou, envergonhada.
— Não esperava que me escolhesse para sua assistente. Seu
anúncio me pegou de surpresa.
— Preferia que não a tivesse escolhido? Seu tom seco deixou-a
um tanto perplexa.
— Não é isso. Quero trabalhar a seu lado, Dr. Wilcox, mas...
— Assustou-se com os comentários que correm pelo hospital?
Acho que minha fama cresceu muito. — Ele sorriu de repente, as
feições severas suavizando-se inesperadamente. — Relaxe. Não vou
agredi-la, já pedi a cabeça de alguns, mas não sou antropófago.
O comentário bem-humorado a fez sorrir, descontraindo-se.
— Mas, pelo que ouvi dizer, já mandou muita gente passear.
— Deve ser verdade. Confesso que não tenho muita paciência
para suportar irresponsáveis.
Roberta olhou o anel de fumaça que se desprendia do cigarro
dele e voltou a fitá-lo.
— Não assisti a nenhuma de suas operações e, francamente, não
sei o que espera de mim.
— Espero que seja excepcional, é claro. Vamos ao hospital que
quero lhe explicar umas tantas coisas. Sou como os demais cirurgiões e
tenho certas manias quando estou operando. Vou deixá-la a par delas.
— Certamente! — exclamou Roberta, aliviada.
— Já tomou café? — perguntou ele colocando o carro em
movimento.
— Ainda não.
— Que tal a cantina do hospital?
— Era para onde eu ia.
Roberta sentiu-se tão excitada quanto Cinderela indo ao baile.
Quando o Dr. Wilcox estacionou na vaga reservada, ela desceu do carro
e comentou:
— Não tem medo que roubem seu Jaguar?
— Duvido que alguém se atreva!
Ela riu, tirando a fita do bolso para prender os cabelos. Mas,
sacudindo a cabeça, o Dr. Wilcox tomou-lhe a fita das mãos e tornou a
guardá-la. Roberta esperou até entrarem no hospital para lhe
perguntar:
— Os pais de Davy já chegaram?
— A mãe, sim. O pai deve chegar daqui a pouco. Vou me
encontrar com eles às nove horas.
— O Dr. Anderson lhe contou que o pai está fora de si? Ele se
julga culpado pelo acidente.
— Sim, contou. Não posso permitir que eles alimentem muitas
esperanças. Há poucas chances de salvar a perna de Davy. E, mesmo
que isso aconteça, ele perderá boa parte de sua elasticidade.
— Eu sei, mas temos de tentar.
A cantina estava praticamente deserta e em questão de minutos
os dois acomodavam-se numa mesa de canto. Roberta arrumou os
pratos de bacon, ovos e torradas e distribuiu os talheres, enquanto o
Dr. Wilcox, usando charme, persuadia a garçonete a conseguir-lhe um
bule de café fumegante. Encheram as respectivas xícaras e sorriram um
para o outro.
— Bom apetite, Dra. Mitchell.
— Obrigada.
— Foi bem servida?
— Há comida suficiente para alimentar um batalhão! Temperou
os ovos mexidos com sal, enquanto Wilcox lhe lançava um olhar
malicioso.
— Não quer um pouco de pimenta? Ela quase se engasgou.
— Que maldade!
— Você merece. Pensei em suspendê-la por usar métodos
empíricos com seus pacientes.
— Vai querer minha cabeça antes que eu termine de comer?
— Pois desta vez, está perdoada. Mas me diga uma coisa: o
método que empregou em Amanda era receita de sua avó?
— Não, de meu avô paterno.
— Ele era médico?
A conversa tomou um rumo ameno. Parecia a coisa mais natural
do mundo que estivessem conversando ali, como se fossem amigos de
longa data. Momentos depois, Roberta consultou o relógio e murmurou:
— Dr. Wilcox...
— Paul, por favor.
— Acho que vou conseguir, se me chamar de...
— Roberta.
Ela se surpreendeu. Não imaginava que ele soubesse seu nome.
Ficou alguns instantes sem ação.
— O que ia dizendo, Roberta?
— Tenho de fazer a ronda das oito.
— Pedi ao Dr. Anderson que a substituísse na parte da manhã.
Quero que esteja ao meu lado na entrevista com os pais de Davy. Eles a
conhecem e se sentirão mais tranqüilos.
— E Davy? Como está reagindo?
— Está assustado, é natural. Mas os pais vão lhe dar forças. Eu
os autorizei a permanecer com o filho até o momento da operação.
Roberta quase o beijou ao ouvir isso. Poucos cirurgiões teriam a
sensibilidade de proporcionar aquele conforto moral ao menino.
Encorajando-se, ela resolveu entrar num assunto delicado.
— Passei muitas noites em claro por causa de Davy e quero lhe
explicar aquela história de "santo milagreiro".
Paul inclinou-se para frente, mostrando-se interessado.
— Pode falar. Estou curioso.
— Parece um comentário irresponsável, mas não era o que eu
pretendia dizer.
— Isso a preocupava?
— Muito. Pedi ao Dr. Anderson que o consultasse, para ver o que
podia ser feito no caso de Davy. Ele me disse que precisávamos de um
milagre e eu respondi que você era a única pessoa capaz de realizar
esse milagre.
— Hum... Gosta de jogar às claras, não?
— Não sou boa jogadora de pôquer, se é isso o que quer dizer.
— Não é exatamente isso — comentou ele enigmaticamente,
enquanto se levantava. — Vamos ver se conseguimos realizar esse
milagre, está bem?
Lá pelas nove horas, Roberta se sentia a mais humilde das
criaturas. Era como se estivesse realmente diante de um santo
milagreiro! A atenção que Paul dispensou aos pais do menino dera-lhe a
oportunidade de fazer uma idéia clara do homem e do médico. O
respeito que sentia por ele aumentou consideravelmente.
Mesmo dispondo de pouco tempo, Paul não demonstrara estar
com pressa e respondera a todas as perguntas, com simplicidade e
clareza. Fora absolutamente honesto, afirmando que a chance de êxito
era remota. Apesar disso, conseguira incutir esperança no casal.
Roberta presenciara muitos médicos se esquecerem do lado
humano, no trato com seus doentes. Não era esse o caso de Paul, que
também se preocupava com os pacientes e seus familiares. Havia
compaixão e cuidado nas atitudes que tomava e em tudo que dizia. Sim,
aprenderia muito mais do que complicadas técnicas cirúrgicas ao seu
lado!
Quando entrou no Centro Cirúrgico, todas as suas dúvidas e
temores haviam desaparecido como que por encanto. Sentia-se segura,
confiante e cheia de uma energia revigorante.
A operação transcorreu com precisão matemática. Graças às
instruções prévias que recebera, ela foi capaz de antecipar cada um dos
movimentos de Paul. Como era de praxe, ele ia explicando todas as
etapas da cirurgia, informando em detalhe os internos e os residentes
que lotavam a galeria. Mas Roberta sentia que aquelas explicações eram
dirigidas principalmente a ela.
Havia se passado exatamente cinco horas quando ela fez a
sutura final. Estava suada, suas costas doíam e as pernas pesavam
como chumbo. Os músculos da nuca e dos braços pareciam tão rígidos
e doloridos que mal conseguia movimentá-los. Mas a exaustão
evaporou-se no momento em que Paul murmurou:
— Excelente trabalho, Roberta.

Ao chegar ao hospital, três dias depois, Roberta recebeu uma


entusiástica ovação da equipe da Cirurgia. Ela deixara definitivamente a
Pediatria e os colegas estavam de fato contentes de tê-la novamente em
seu quadro. E a alegria daquela recepção não foi nada, comparada com
o que ela sentiu ao receber o sorriso amigo de Paul.
— Bom dia, Roberta.
— Bom dia.
Aproximando-se do balcão onde ela examinava as fichas de seus
pacientes, ele comentou:
— Estou chegando agora da Pediatria. Davy disse-me que você
costuma visitá-lo nos fins de semana.
— Não consigo ficar longe dele. Vai tudo bem, não?
— Ele vem reagindo normalmente, mas tem de ficar em
observação. — Houve um repentino cuidado em suas palavras, quando
ele completou: — Ainda temos de lutar muito.
Em seguida endireitou-se, examinou alguns relatórios e logo
propôs:
— Gostaria que me acompanhasse na ronda.
Percebendo que uma enfermeira os observava, ela disse
formalmente:
— Pois não, doutor.
Ele a fitou com ar divertido.
— Pensei que não gostasse de jogar pôquer.
— Mas sei respeitar as regras.
— Ah, compreendo! Mesmo não gostando, sabe jogar, quando é
preciso, não é isso?
Ela teve uma vontade enorme de rir.
— Exatamente.
— Pôquer pode não ser o seu forte, mas você esgrima como
ninguém.
Juntou os relatórios e voltou-se para a enfermeira.
— Podemos começar a ronda, senhorita?
— Claro doutor.
Enquanto seguiam pelo amplo corredor branco, Roberta foi
obrigada a abafar uma risada, ao perceber como a jovem insinuava-se
junto a Paul. Ele não dava nenhuma demonstração de ter notado a
aproximação, mas apresentava um ar tão exasperado que ela teve de
apertar os lábios para não se comprometer.
Os olhos de Paul fixaram-se imediatamente nela. Não
conseguindo conter-se, Roberta entrou na sala de raios X e fechou a
porta. A porta voltou a abrir-se e Paul entrou, comentando secamente:
— Parece que está se divertindo às minhas custas.
— Sinto muito. Não tinha essa intenção.
— Você não está sentindo coisa nenhuma! Outro acesso de riso
sacudiu Roberta.
— Tem razão, desculpe-me. É a primeira vez que consigo rir
nesses últimos dias.
— Às minhas custas!
— Lembrei de uma cena semelhante que assisti pela televisão no
seriado Hospital Geral.
Paul riu também.
— Olhe só quem está falando — observou, tirando a fita que
prendia os cabelos de Roberta e jogando-a no cesto.
Imitando a enfermeira, ela sacudiu sensualmente os cabelos e
disse, num tom cheio de intimidade:
— Dr. Wilcox, podemos começar a ronda?
— Pois não, Dra. Mitchell. Mas não quero ver nem a sombra de
um sorriso em seu rosto, entendeu?
— Entendi doutor.
Nos dois dias que seguiram Roberta não teve oportunidade de
encontrar Paul. Mas, mesmo sem sua presença, lembrava com um
sorriso a cena da enfermeira.
Suspeitava que a atitude remota e distante de Paul era o disfarce
profissional de uma pessoa calorosa e espontânea. Não parava de
pensar nele. Verdade seja dita, noite e dia ele não lhe saía da cabeça.
Soltando um suspiro, voltou a examinar as radiografias que
tinha nas mãos.
— Dra. Mitchell, dispõe de um minuto?
Ela olhou para a jovem enfermeira que entrara na sala.
— Sim Joan. O que há?
— Gostaria que desse uma olhada na mão da Sra. Decker.
— Claro.
Gostava da Sra. Decker. A senhora de setenta e dois anos
submetera-se recentemente a uma cirurgia, mas, doce e suave como ela
só, não se queixava de nada. Sofria dores terríveis e, no entanto,
mantinha uma compostura admirável.
A pequena e frágil anciã estava sentada na cama, o rosto pálido
e cansado vincado pela dor.
— Teve problemas com o soro, Sra. Decker?
— Não queria lhe dar trabalho.
— Ora, o que é isso...
Examinou-lhe cuidadosamente a mão esquerda, onde estava
inserida a agulha do soro. A área apresentava um grande hematoma,
estava dolorida e muito inchada. Tomando-lhe a mão direita, examinou
as veias azuis, visíveis através da pele transparente.
— Vamos inserir a agulha na mão direita. Mas a senhora não
poderá fazer tricô.
— Não tem importância. Os pontos caíram da agulha e estou
com preguiça de pegá-los.
Roberta deu-lhe uma palmadinha afetuosa na mão e sorriu.
Sabia que a Sra. Decker estava muito fraca para fazer qualquer esforço,
por menor que fosse.
A enfermeira trouxe um novo tubo de plástico com agulha
esterilizada e Roberta prontamente fez a mudança. Quando viu que
tudo estava em ordem, sentou-se ao lado da cama.
— Vou pegar os pontos de tricô para você.
— Não precisa fazer isso, minha querida.
— Está me mandando embora?
A Sra. Decker sorriu, enquanto Roberta punha o tricô no colo e,
pacientemente, começava a pegar os pontos caídos.
— Muito bem, Sra. Decker. Está dando aulas de tricô à Dra.
Mitchell?
Roberta levantou a cabeça, os olhos arregalados de surpresa.
Paul estava parado junto à cama. Um sorriso malicioso entreabriu-lhe
os lábios.
"Ele me flagrou de novo!", pensou ela.
— Oh... — suspirou a velha senhora. — Pedi à Dra. Mitchell que
arrumasse o tricô para mim.
Roberta lançou-lhe um olhar cheio de gratidão.
— Hum... — Paul murmurou ceticamente, pegando o livro que a
paciente estava lendo. — Pássaros de Alberta. Gosta de pássaros, Sra.
Decker? — perguntou com naturalidade.
— Oh, sim! Quando era jovem, ia passear nos bosques todos os
domingos. Gostava muito.
— Ornitologia é um passatempo agradável — comentou a
companheira de quarto da mulher.
— Sim, certamente — concordou Paul. Seus olhos brilharam ao
voltar-se para Roberta. — Realmente fascinante!
— Gosta de pássaros, doutor?
— Ah, sim. Especialmente os de plumagem negra e sedosa.
Roberta entendeu a indireta, mas nada podia fazer ou dizer.
Tinha vontade de se enfiar num canto. Sabia que, se abrisse a boca,
cairia numa risada incontrolável.
— Ouvi dizer que teve problemas com a agulha do soro, Sra.
Decker — observou Paul.
— Agora está tudo bem. A doutora já deu um jeito.
— Ótimo. Vou continuar minha ronda. Não fique tricotando,
Dra. Mitchell. Está sendo esperada na Cirurgia dentro de uma hora.
Ela o ouviu rir baixinho, enquanto atravessava o corredor.
Aquela batalha verbal podia tornar-se uma guerra muito interessante!
Quando finalmente Roberta terminou a tarefa, voltou à recepção
para rever alguns gráficos. Encontrou Bernie discutindo com outro
residente uma operação marcada para o dia seguinte. Quando a viu, o
amigo sorriu-lhe alegremente.
— Oi, feiúra.
— Oi, Bernard — ela retrucou, sabendo que ele detestava seu
nome.
Bernie fez um ar feroz.
— Está procurando encrencas, Rob?
O outro rapaz, que os conhecia dos tempos de faculdade,
levantou as mãos para o alto, num gesto impaciente.
— Até quando vou ter de agüentar vocês dois?
Roberta sorriu e pôs-se a fazer anotações na ficha da Sra.
Decker. De repente, um movimento ao seu lado chamou-lhe a atenção.
Ao erguer os olhos, deparou-se com Paul encostado no balcão de
recepção, o olhar penetrante fixo em Bernie. O sorriso desapareceu dos
lábios dela, quando o ouviu dizer com impaciência:
— Quando acabar com essas amenidades sociais, Dr. Radcliffe,
espero que me dê alguns minutos de seu tempo para estudarmos o caso
de amanhã.
Atônito, Bernie perdeu sua costumeira presença de espírito.
— Ah... ah... claro, doutor. Nesse instante, senhor.
O rosto de Paul transformou-se numa máscara impassível.
Girando bruscamente nos calcanhares, ele deu as costas a Roberta e
seguiu apressado pelo corredor. Bernie, espantado e apreensivo, saiu
correndo atrás do chefe.


Capítulo III

Roberta permanecia à janela da sala de reunião, olhando o


dilúvio que se abatia sobre o jardim do hospital. Seus pensamentos
estavam tão tristonhos quanto à chuva que caía lá fora.
Os últimos dias tinham sido um pesadelo. À costumeira
sobrecarga de trabalho, acrescentara-se uma série de casos críticos de
emergência. As tragédias que acompanhavam cada caso a deprimiram
profundamente: um jovem tentara o suicídio com um tiro de revólver no
abdome; uma mãe de quatro filhos vítima de um acidente de carro
provocado por um motorista bêbado; uma moça assaltada e gravemente
ferida a facadas; uma criança morta em conseqüência de maus-tratos
paternos...
A vida sem sentido, a brutal violação da dignidade, à ultrajante
crueldade dos seres humanos em relação a seus semelhantes deixavam-
na descrente e angustiada.
Ver o corpo frágil da criança morta na mesa operatória devido ao
brutal castigo aplicado pelo pai fora a pior experiência de sua vida.
Lutar contra a doença e a morte era uma coisa, socorrer vítimas de
crueldade, era outra, completamente diferente. Nunca se sentira tão
desencantada e tão derrotada!
Cruzou os braços e descansou o corpo de encontro à janela.
Fechou os olhos. Para aumentar sua pressão psicológica, havia o vago
sentimento de rejeição que a invadia. Desde o episódio com Bernie, Paul
a evitava deliberadamente. A princípio, pensara que fosse coisa de sua
imaginação, mas depois de repetidos encontros, quando ele a tratara
sempre com extrema frieza, tivera que se render às evidências.
Tanta coisa desabava de vez! Por quê? Como tinha acontecido?
Não conseguia entender, não havia explicação plausível! No entanto,
fizesse o que fizesse Paul não lhe saía da cabeça. Seus pensamentos
continuavam a convergir para ele.
Uma profunda insatisfação tomou conta de seu ser,
despertando-lhe um amargo desapontamento e a suspeita de que a
atração que sentia por ele era bem maior do que queria admitir.
— Oi, Rob. Vamos tomar café? — convidou Bernie, aparecendo
na sala.
— Mas sem afobação. Estou exausta — disse ela, sorrindo.
— Tão mal assim?
— Você não imagina quanto!
Bernie abriu a pesada porta de carvalho e olhou-a, com ar sério.
— Essa semana foi dura, não?
Roberta encolheu os ombros, evitando encará-lo.
— Foi mesmo. Estou arrasada.
— Imagino como você está se sentindo... Também passei
momentos terríveis na Cirurgia. É uma pressão que acaba com a gente.
Não vai tirar folga?
— Três dias. Domingo, segunda e terça. Meu próximo plantão é
na quarta à noite.
— Vai para a casa de seus pais?
— Não. Meu carro não está bom e a passagem de avião é muito
cara.
No final do corredor, Roberta encostou-se na parede, enquanto
Bernie apertava o botão do elevador.
— Quer que eu lhe empreste o carro? Não vou fazer nada de
especial neste fim de semana.
— Não, obrigada, Bernie. Estou cansada demais para enfrentar
uma viagem de quatro horas.
— Não quer jantar fora, no sábado à noite? Você está precisando
de uma injeção de ânimo. Há um novo restaurante grego que dizem ser
fantástico.
— Vamos ver. Se estiver me sentindo como agora, duvido que
tenha energia para dar um único passo.
— Vou fazer as reservas, por via das dúvidas.
Quando chegaram à cantina, encontraram quase todo o pessoal
da Cirurgia reunido numa grande mesa junto à janela.
Roberta sentiu-se como se estivesse andando sobre brasas ao
perceber Paul sentado à cabeceira. Queria evitá-lo custasse o que
custasse, especialmente no estado de depressão em que se encontrava.
Temia romper em lágrimas se ele a esnobasse mais uma vez.
— Oi, gente. Quem ficou de plantão na Cirurgia? — perguntou
um dos residentes.
— O pessoal da limpeza — informou Bernie alegremente.
— Deixei as faxineiras fazendo a ronda e o zelador na recepção.
Depois de um coro de risadas, alguém disse:
— Vocês já viram a pedrona que Joan tem no anular? — Roberta
olhou surpresa para a enfermeira que estava ao seu lado.
— Por que não me disse nada, Joan? Está querendo fazer
segredo de seu noivado?
A moça corou, mostrando a mão esquerda para os recém-
chegados. Um enorme anel de brilhantes luzia em seu dedo anular.
— Parabéns! Quando será o grande dia?
— Provavelmente em meados de outubro.
— Você deve estar radiante.
— Se estou!
Animada pelo sincero interesse que Roberta demonstrava, Joan
contou seus planos para o futuro, com o rosto irradiando felicidade. A
um certo momento, Roberta levantou a cabeça e uma estranha
sensação invadiu-a. Paul olhava para a enfermeira, demonstrando
claramente não compartilhar do entusiasmo da jovem pelo casamento.
Seu olhar era de reprovação, como se alguma tristeza o
angustiasse. Era simplesmente desconcertante. Será que algum
casamento frustrado explicaria aquele desdém? Perturbada, Roberta
voltou-se novamente para a amiga.
— Estou feliz por você, Joan. Mas espero que continue conosco.
— Ah, sim. Pelo menos por enquanto, não pretendo deixar meu
trabalho.
— Ótimo! — exclamou Bernie entusiasmado. — Seria o caos sem
você por aqui.
Enquanto Bernie e Joan entretinham-se em animada conversa,
Roberta recostou-se na cadeira, observando Paul, que estava inclinado
para frente, ouvindo um colega cirurgião. Como seria realmente o
homem sob aquela máscara de profissionalismo? Pensava que o
conhecia suficientemente bem, quando julgara que seu ar distante não
significava frieza ou esnobismo, mas...
— Olhem só! Aí vem Lisa — exclamou Joan, apontando para
uma jovem que se aproximava. Em seguida, fez as apresentações. —
Lisa Gordon, minha gente. Vai substituir a Srta. Holson na supervisão
da Terapia Intensiva.
Lisa tinha cabelos muito bonitos, de várias tonalidades de loiro,
passando do acinzentado ao vermelho dourado, brilhantes como ouro à
luz intensa da cantina. Suas feições de traços finos apresentavam uma
calma confiança, que apagava a impressão de fragilidade.
"Vou gostar dessa nova enfermeira", pensou Roberta, com
otimismo.
Bernie parecia compartilhar da mesma opinião. Encarava Lisa
como alguém em transe, os olhos arregalados, a boca entreaberta,
totalmente enfeitiçado pela moça.
— Controle-se, Bernie — Roberta disse-lhe em voz baixa. — Você
está com cara de bobo.
Ele engoliu em seco e desviou o olhar, ainda parecendo alheio a
tudo que o rodeava. Roberta estalou os dedos diante de seu rosto.
— Acorde! Onde pensa que está?
Bernie não respondeu, e corou intensamente ao perceber que a
amiga o observava com ar divertido. Mas a alegria de Roberta durou
pouco.
— Dra. Mitchell? — chamou uma das enfermeiras da
Emergência, chegando perto da mesa.
— Sim, senhorita?
— O Dr. Standish pede sua presença na Cirurgia. Mandou avisá-
la que a operação vai demorar algumas horas.
Roberta suspirou fundo, afastando a cadeira para trás.
— Está bem. Chegarei lá num instante.
— Não! Você já trabalhou demais nesta semana — interveio
Bernie, levantando-se. — Vou ver se consigo substituí-la.
— O Dr. Standish pede a presença da Dra. Mitchell — repetiu a
enfermeira, taxativa.
— Obrigada pela intenção, Bernie — disse Roberta, dando-lhe
uma palmadinha no ombro.
— Que pena...
Ela esboçou um sorriso e seguiu a enfermeira. Já estavam quase
no elevador, quando ouviu uma voz familiar chamá-la:
— Um momento, Dra. Mitchell! Voltou-se lentamente para
encarar Paul.
— Sim, doutor?
Ele se dirigiu à enfermeira, dizendo-lhe que informasse o Dr.
Standish que ela iria diretamente para a Cirurgia. Diante daquela
ordem, a moça não teve outro remédio senão afastar-se discretamente.
Assim que a viu desaparecer, Paul começou a falar.
— Ouvi o comentário do Dr. Radcliffe. Parece que você está
trabalhando demais. Gostaria de uma explicação, se não se importar.
Consultando rapidamente o relógio, ela o fitou, angustiada.
— Não podemos adiar essa conversa? Tenho uma cirurgia de
urgência e o Dr. Standish não gosta de esperar.
Ele hesitou por alguns segundos, mas finalmente acedeu, com
expressão descontente.
— Muito bem. Continuaremos mais tarde. Quero que passe pelo
escritório assim que sair do Centro Cirúrgico.
— Já são três horas! Talvez só terminemos à meia-noite...
— No meu escritório, Dra. Mitchell!
Sem esperar uma resposta, deu-lhe as costas, deixando-a
parada no meio do corredor, imersa em grande confusão. Por que ele
parecia tão aborrecido?
O relógio da parede marcava dez e meia, quando Roberta abriu a
porta da sala de operações. Depois de arrancar a máscara e jogá-la no
cesto, massageou os músculos da nuca, na vã tentativa de afastar a
tensão que a oprimia. Daria qualquer coisa para ir para casa e cair na
cama, mas ainda tinha de enfrentar aquela entrevista com Paul.
Soltando um suspiro de resignação, endireitou os ombros e
deixou a Cirurgia, sentindo as pernas pesadas como chumbo. No
entanto, seu cansaço era suportável. A operação fora um sucesso e, a
menos que ocorressem complicações pós-operatórias, o paciente
poderia enfrentar uma vida normal dentro de dois meses, no máximo.
Um arrepio de frio percorreu-lhe o corpo, enquanto entrava no
elevador vazio e apertava o botão. As portas se fecharam e ela apoiou-se
na parede do fundo, observando as luzes do painel acenderem-se,
iluminando o número dos andares, à medida que o elevador descia.
Lembrou que seria a terceira vez, naquela semana, que deveria tomar
um táxi devido ao adiantado da hora. Aquilo estava lhe custando uma
fortuna!
Ao sair para o corredor deserto, em direção ao escritório
administrativo, alimentava a esperança de que Paul tivesse desistido de
esperá-la. Mas se frustrou quando percebeu que havia luzes na sala.
Sentiu-se como uma criança culpada e a sensação aumentou ao ver o
escritório particular dele iluminado. Tomando coragem, bateu na porta.
— Entre.
Sentado à mesa de trabalho muito bem-arrumada, Paul
consultou o relógio antes de lhe fazer um gesto indicando o confortável
sofá colocado à sua frente.
— Sente-se, por favor.
Após completar uma anotação, ele lhe passou uma folha de
papel.
— Dê uma olhada nisso.
Ali estavam, anotadas com precisão, todas as suas horas de
trabalho. Havia, também, uma lista das operações em que ela tomara
parte nos últimos dias, incluindo a cirurgia daquela noite.
— A relação está completa?
— Sim, está — disse ela, sem compreender onde o chefe queria
chegar.
— Isso dá uma média de onze horas diárias. Houve dias, como o
de hoje, por exemplo, em que você duplicou seu horário normal.
"Que é que ele está pretendendo?", perguntou-se ela,
desconfiada. Com um ar de preocupação no rosto, Paul deu uma
tragada no cigarro que queimava no cinzeiro.
— Não gosto que os residentes de minha equipe sejam
solicitados por outros cirurgiões que pensam gozar de privilégios
especiais neste hospital. Eles se esquecem de que, no passado, também
foram vítimas desse sistema bárbaro.
Fez uma pausa e logo continuou:
— Sua carga horária nesta semana foi brutal, Roberta. É
impossível se executar um bom trabalho sob tanta pressão. Acho um
absurdo que, por ser mais hábil, um membro de minha equipe seja
solicitado até a exaustão. De agora em diante, quero que me informe,
caso isto volte a acontecer.
Roberta não sabia o que dizer. Esperava ouvir um sermão, mas,
em vez disso, ele lhe oferecia apoio e compreensão, coisas difíceis de se
esperar de um chefe de Cirurgia. Quase à beira das lágrimas, teve de
engolir o nó que se formara em sua garganta.
— Normalmente, um horário puxado não me afeta. Mas tive uma
série de casos dolorosos nesta semana e...
Interrompeu-se, a angústia sufocando-lhe o peito e impedindo-a
de continuar. Cerrou fortemente os punhos. Não podia chorar diante
dele! Percebendo seu estado emotivo, Paul levantou-se e foi sentar-se ao
lado dela.
— Não quer me contar tudo?
Com voz emocionada, ela relatou os tristes casos que a tinham
sensibilizado. À medida que falava, a tensão emocional em que
mergulhara durante a semana afastava-se, deixando-lhe apenas uma
grande exaustão física.
— Há vezes em que nos perguntamos por que escolhemos esta
profissão, Roberta. Em compensação, há outras em que nos sentimos
completamente gratificados.
Pousou as mãos nos ombros dela e voltou a dizer em tom
compreensivo:
— Você deve aprender a andar passo a passo, se não quiser
passar da euforia ao mais negro desespero.
— Vou tentar... Mas não será nada fácil.
— Já é alguma coisa. Vamos, vou levá-la para casa. Roberta
consultou o relógio e levantou-se de um salto.
— Onze e meia! Desculpe, não percebi que era tão tarde.
— Não se preocupe. Eu tinha um serviço atrasado para pôr em
dia.
— Obrigada, mas quero verificar se meu paciente já foi levado
para o quarto. E tenho de mudar de roupa, pois ainda estou com o
uniforme da cirurgia.
— Está bem. Mas vou junto, caso contrário você é capaz de ficar
no hospital até o dia amanhecer.
Passou-se uma hora, antes que Paul a deixasse diante da porta
da casa dela.
— Vou mudar seu horário neste fim de semana, Roberta. Você
terá também o sábado de folga.
À fraca luz do painel, ela percebeu que ele sorria de seu espanto.
— Não era necessário...
— Mais do que necessário! Você está morrendo de exaustão!
— Poderia parecer favoritismo — murmurou ela, ainda confusa.
Ele sorriu, divertido.
— Verdade?
Em seguida acendeu um cigarro e voltou-se para ela. A brasa
espalhava pelo seu rosto uma leve claridade avermelhada. Seu riso, seu
modo suave de falar provocaram um arrepio de excitação em Roberta.
— Sim, poderia — reafirmou ela. — Mas eu não me importo.
— Você precisa de descanso.
— Obrigada por sua compreensão. Eu estava muito angustiada e
o desabafo me fez bem.
Ele tomou-lhe a mão e apertou-a.
— Já passei por isso e sei como é. Gostei de ouvi-la. Roberta
sentiu uma forte emoção sufocá-la. Desviou a vista, incapaz de encará-
lo.
— Obrigada — murmurou, pegando a bolsa e abrindo a porta do
carro.
— Boa noite, Roberta. Descanse bem.
— Boa noite.
O Jaguar partiu rapidamente, e ao vê-lo desaparecer na esquina,
ela entrou em casa, sentindo-se mais solitária do que nunca.

Os dias que se seguiram foram enervantes para Roberta, não


pelo excesso de trabalho, mas devido ao estranho comportamento de
Paul, que retomara seu ar reservado e distante. Agora ela suspeitava
que havia um motivo de ordem pessoal para aquela maneira de agir.
Várias vezes surpreendera-o fitando-a com uma intensidade
perturbadora, porém, no instante em que seus olhos se encontravam,
ele desviava a vista. Perplexa e preocupada, ela duvidava que
agüentaria por muito tempo aquela reserva glacial e aqueles olhos
escuros que a observavam quase com hostilidade.
Na quinta-feira, foi tão solicitada que teve pouco tempo para
pensar em outra coisa que não fosse seu trabalho. Encontrava-se na
supervisão, verificando pelo monitor os sinais vitais de um paciente de
Bernie, em estado crítico, quando o amigo, acompanhado de Paul e de
uma enfermeira, entrou na sala.
— Ele está reagindo, Rob?
— Não, continua na mesma.
Depois de observar o gráfico do monitor, Paul correu os olhos
pela ficha do paciente e fez várias perguntas a Bernie.
— É melhor removê-lo imediatamente para a Unidade de Terapia
Intensiva, Dr. Radcliffe. Seu paciente está correndo o risco de sofrer
uma parada cardíaca.
Apreensivo, Bernie pediu à enfermeira que tomasse as
providências, que o caso requeria. Enquanto seguiam a jovem que se
precipitava corredor afora, os dois homens continuaram a trocar idéias
sobre o enfermo. Roberta não prestava atenção na conversa, atenta aos
menores movimentos de Paul.
Só voltou à realidade quando chegaram aos elevadores. Ia
prosseguir em sua ronda, porém Bernie segurou-a pelo braço.
— Não se importa se cancelarmos o jantar de sábado à noite?
Consciente de que Paul os ouvia, ela respondeu com um sorriso:
— De maneira nenhuma!
Algo na expressão de Bernie chamou-lhe a atenção. Certa de que
seu palpite estava correto, ela sugeriu:
— Quer que eu mesma cancele as reservas?
— Ah... não. Não... não se preocupe com isso, Rob — gaguejou o
amigo, corando.
— Hum... Estou começando a entender! Leve-lhe flores, Bernie.
Ela vai gostar.
— Espertinha!
Roberta riu e voltou-se para prosseguir a ronda.
— Não se esqueça das flores... Acho que ela prefere rosas
amarelas.
Se tivesse olhado para Paul naquele instante, teria percebido
uma expressão de alegria invadir-lhe o rosto. Mas, ainda sorrindo, ela
se afastou rapidamente e não notou nada. Entrou na sala de
enfermagem e, depois de examinar alguns testes de laboratório,
verificou que dispunha de alguns minutos antes de ir para a Cirurgia.
Resolveu tomar um café e estava prestes a pegar o elevador,
quando ouviu que a chamavam pelo intercomunicador. Com um
suspiro de resignação, voltou à sala de enfermagem e discou o número
anunciado. Ficou à espera.
— Chefe da Cirurgia — disse uma voz feminina.
— Aqui é a Dra. Mitchell. Fui chamada pelo intercomunicador.
— Ah, sim, doutora. Aguarde um instante. O Dr. Wilcox vai
falar.
Depois de uma pequena pausa, Roberta ouviu-o.
— Alô, Roberta. Foi bom ter encontrado você antes que entrasse
na sala de Cirurgia.
— Algum problema?
— Depende de você — seu tom de voz era descontraído. — Quer
jantar comigo amanhã?
O coração dela quase parou de bater. Entre medrosa e excitada,
conseguiu murmurar:
— Gostaria muito. A que horas?
— As oito, está bem?
— Ótimo!
— Temos muito que conversar... mas não pelo telefone.
— Entendo...
— Vou passar o dia de amanha no escritório. Não poderei vê-la
senão à noite.
Sentindo-se transportada às nuvens, só lhe ocorreu responder
com um até amanhã.
— Às oito?
— Sim, às oito.
Ao recolocar o fone no gancho, ela ainda sentia o coração bater
descontroladamente, excitada pela perspectiva daquele encontro.
Na sexta-feira, Roberta aprontava-se para deixar o hospital,
quando alguém a chamou.
— Dra. Mitchell!
Ela se voltou lentamente e viu o Dr. Standish que chegava
apressado, acompanhado de um novo residente que fazia um esforço
terrível para acompanhar-lhe os passos.
— Que sorte encontrá-la! Quero que venha comigo
imediatamente ao Centro Cirúrgico.
— São cinco horas, Dr. Standish. Eu devia ter saído há mais de
uma hora. Tenho um compromisso importante para esta noite.
— Esqueça! Preciso de você aqui. Emergência. Um garoto sofreu
um acidente grave.
Roberta ia protestar quando notou o cortejo que se aproximava:
um interno e dois enfermeiros empurravam a maça, onde jazia um
pequeno corpo deitado. O menino devia ter no máximo seis anos.
De imediato veio-lhe à mente a imagem do garoto morto em
conseqüência dos maus-tratos paternos. Desta vez, podia não ser tarde
demais... Sua euforia evaporou-se, e ela voltou à triste realidade da vida
e da morte.
Passava das nove quando finalmente pôde deixar a sala de
operação. Estava exausta e completamente molhada de suor sob o
uniforme azul. Começava a tirar as luvas, quando o Dr. Standish
aproximou-se.
— Ótimo trabalho, Dra. Mitchell. Ótimo! Cabeça fria, mãos
firmes. Gosto disso.
— Não tente me agradar, Dr. Standish. O senhor quase me
matou!
O médico riu.
— Tem razão. Mas não queria ter como assistente nenhum
desses residentes que se derretem como manteiga todas as vezes que
deixo escapar alguma praga. Gosto de trabalhar com você.
Roberta retirou o gorro que lhe escondia os cabelos.
— Eu também gosto de trabalhar com o senhor... na maior parte
das vezes.
Ele soltou outra de suas sonoras risadas, antes de se desculpar,
com ar sério.
— Eu estava preocupado com aquele garoto... Sinto muito se
estraguei sua noite.
— Não se preocupe. Quer que eu fique aqui para dar uma
espiada no garoto?
— Não, não! Eu me encarrego disso. Quero falar com os pais
dele.
Com as pernas pesadas como chumbo, Roberta conseguiu
chegar ao saguão. Não estava apenas cansada. Sentia-se como uma
adolescente que tivesse perdido o primeiro encontro com o namorado.
Sem conter a fúria, fechou a porta da sala dos médicos com mais força
do que o necessário.
Pouco depois, ao encontrar Paul no gabinete dele, percebeu que
o chefe vestia-se mais elegantemente do que o normal. Com o coração
batendo forte, as mãos tremendo, começou a desculpar-se.
— Sinto muito. Houve uma emergência e... Ele se aproximou
lentamente, interrompendo-a.
— Eu sei. Standish novamente. Imaginei que algo do gênero
tivesse ocorrido, quando você não apareceu na hora combinada.
Esboçou um sorriso e colocou a mão no ombro dela.
— Vamos, Roberta, vamos para casa.
— Tenho de trocar de roupa...
— Vou levá-la já, antes que Standish a chame para outra
emergência.
— O que é que os outros vão pensar?
— Sem desculpas, Roberta. Pegue suas coisas e vamos. Você
deve estar faminta.
Um calor delicioso percorreu-lhe o corpo. Afinal, o jantar ainda
estava de pé! Quando chegaram ao apartamento, ela ofereceu:
— Posso lhe preparar um drinque?
— Claro. O que tem?
— Pouca coisa. Um bom uísque escocês que papai deixou...
vinho... alguns licores.
— Uísque, por favor. Com gelo.
Paul ficou no corredor da pequena cozinha, enquanto ela abria o
armário e pegava o copo e a garrafa de bebida.
— Para uma residente até que você tem uma adega bem fornida.
Ela riu, enquanto deixava cair os cubos de gelo no copo.
— O salário não seria tão mau, se eu não tivesse de pagar as
prestações do crédito-educação.
Paul tomou um gole de bebida e fez um sinal de aprovação.
— Seu pai é um bom conhecedor de uísque.
— Direi isso a ele. Vai ficar contente — ela endireitou os ombros
e friccionou os músculos cansados. — Preciso mudar de roupa.
— Quer mesmo sair para comer alguma coisa? Acho que você
não tem forças nem para descer as escadas.
O cuidado e a preocupação que ele demonstrava emocionaram-
na.
— Você não se importa?
— De maneira nenhuma. Aliás, prefiro não sair. Restaurantes
não são meus lugares preferidos. — Segurando-a gentilmente pelos
ombros, conduziu-a em direção à sala. — Tome um bom banho quente,
enquanto vou providenciar nosso jantar.
— Paul, eu...
— Vá tomar uma ducha, Roberta.
Ela suspirou, deliciada. Como tudo parecia perfeito! Ser mimada
por alguém como Paul era uma experiência fascinante.
Demorou bastante no banheiro, não só para tentar livrar-se do
cansaço, mas, também, porque precisava de tempo para pôr em ordem
às idéias. Num esforço para ser realista, reconheceu que estava
suscetível demais à dinâmica personalidade de Paul. Brincava com fogo
e seria a única a sair queimada. Além do mais, sua mente a advertia
para as possíveis conseqüências advindas do fato de ele ser seu chefe...
Porém, seus temores evaporaram-se diante da onda de deliciosa
excitação que a dominava.
Vestiu calça branca e uma blusa de mangas compridas do exato
tom azul de seus olhos. Prendeu os cabelos no alto da cabeça, deixando
algumas mechas livres em volta do rosto. Lançou um rápido olhar ao
espelho e voltou ao living.
Paul acabava de entrar com um enorme embrulho.
— Na hora exata. O jantar chegou — comentou ele.
— Que rapidez!
— Espero que goste de comida chinesa. Descobri um pequeno
restaurante onde fazem coisas divinas.
Roberta começou a abrir as caixas contendo os quitutes.
— Hum... o aroma é tentador!
— Deixe que eu faço isso. Providencie os pratos e os talheres.
Ela preparou o necessário numa mesinha baixa e retirou uma
garrafa de vinho branco da geladeira. Ao voltar para a sala, arregalou os
olhos.
— Quanta coisa! Não vamos conseguir comer tudo.
— Claro que vamos. Mas, se sobrar, pode guardar para a
refeição matinal.
— Nunca comi coisas tão estranhas no café da manhã. Paul
tomou-lhe o saca-rolha das mãos e abriu a garrafa.
— Você me decepciona. Uma cirurgia tão hábil e não consegue
desarrolhar uma garrafa?
— Falta de prática — observou ela, rindo. — É bom poder contar
com um homem para essas coisas.
— Estou tentando impressioná-la — comentou ele, passando-lhe
o prato de comida fumegante.
Ela se sentou de pernas cruzadas no chão acarpetado e Paul
acomodou-se ao seu lado.
— Aquele sofá sob a janela dá um ar aconchegante à sala. É um
lugar perfeito para ficar à vontade com um bom livro.
Era o recanto preferido de Roberta no apartamento. Havia uma
intimidade gostosa criada pelo amplo sofá, colocado entre as duas
colunas das janelas que se abriam para a cidade iluminada. A vista era
espetacular.
— Quando minha irmã vem me visitar, os meninos dormem ali.
— Eles vêm com freqüência?
A conversa tomou um rumo descontraído, que deu a Roberta
uma sensação de total tranqüilidade. Ela pressentia que, se permitisse
sua admiração por Paul se tornaria mais profunda e pessoal. Mas não
tentou forçar a situação, achando que seria melhor deixar as coisas
correrem normalmente.
Quando terminaram de comer, ofereceu:
— Gostaria de tomar um café?
— Não, obrigado. Vou continuar com o vinho. Está ótimo.
— Não quer mais nada? — insistiu, começando a recolher os
pratos.
Ele fez um gesto negativo.
— Vai sobrar muita coisa para seu café da manhã.
Sorrindo, ela levou os pratos para a cozinha. Quando voltou,
Paul estava junto à janela. Tinha tirado o paletó e o colete e
contemplava o céu que refletia as luzes da cidade, enquanto tomava
pequenos goles de vinho.
— É uma linda vista — observou ela, aproximando-se.
Ele permaneceu em silêncio durante longo tempo. Por fim,
voltou-se, os olhos refletindo uma ânsia incontida.
— Posso lhe fazer uma pergunta pessoal?
Os olhos de Roberta demonstraram surpresa. Ela hesitou uma
fração de segundo, antes de dizer:
— Pode perguntar. Só que não prometo responder.
— Qual é exatamente o tipo de relacionamento que você tem com
o Dr. Radcliffe?
Ela arregalou os olhos, surpresa.
— Está querendo saber se estamos envolvidos emocionalmente?
Paul desatou a gravata e tomou o resto do vinho de um só gole.
— Sim, é isso.
Uma emoção nova percorreu as veias de Roberta, dando-lhe a
sensação de que estava prestes a fazer uma importante descoberta.
— Há apenas amizade entre mim e Bernie. Ele é um velho e
querido amigo.
Paul a fitava fixamente. E diante da profundidade daquele olhar,
ela prendeu instintivamente a respiração. Havia uma força irresistível
que os atraía, forçando-a a sentir-se completamente lânguida e sem
forças.
Sorrindo, ele tomou-lhe gentilmente o rosto entre as mãos e
beijou-lhe os lábios com profunda ternura, a boca movendo-se
suavemente sobre a dela.
— Roberta — murmurou roucamente. — Roberta... Trêmula, ela
encostou o rosto no ombro másculo. Sentia o sangue correr mais
rápido, uma onda de desejo crescendo dentro dela como uma misteriosa
flor selvagem.
Permaneceram estreitamente abraçados, Roberta preocupada
em decifrar as desconcertantes emoções que ele lhe provocava. Fora
beijada algumas vezes, mas sentira apenas prazer, não aquela explosão
de alegria.
Ele segurou-lhe o queixo e fitou-a, os olhos castanho-escuros
quase negros de paixão.
— Sabe que queria beijá-la há muito tempo?
Completamente cativada pelo tom íntimo de sua voz, Roberta
olhou-o, incapaz de falar. Com a respiração presa na garganta, passou
lentamente os braços por seu pescoço e puxou-o para si.
— Espero que ache isto... satisfatório — murmurou, depois de
beijar-lhe os cantos da boca.
Ele riu, aninhando-a em seus braços fortes.
— Muito satisfatório — sussurrou-lhe ao ouvido. — Quer saber
de uma coisa?
— Diga...
— Seu amigo Bernie foi me procurar na quinta-feira de manhã,
muito preocupado.
— Por quê?
— Acusou-nos de estar sobrecarregando você de trabalho. Tive
vontade de jogá-lo para fora do escritório, mas me controlei e deixei-o
falar. — Sua voz tornou-se um sussurro ao completar: — Acreditava
realmente que ele a estivesse monopolizando e não estava gostando
nem um pouco disso.
A franqueza inesperada, combinada com o tom acariciante de
sua voz, deixou Roberta profundamente emocionada.
— Quero lhe contar o que foi que me ligou a Bernie.
— Algo terrível?
Ela passou-lhe o dedo pelo contorno dos lábios.
— Nada disso.
Paul soltou um suspiro de alívio e beijou-lhe a testa.
— Já que quer conversar, é bom ficarmos a uma certa distância
um do outro. Caso contrário, não vou conseguir prestar atenção.
Mal se sustentando nas pernas, de tão cansada, Roberta deixou-
se cair no sofá. Ele fez o mesmo. E ao recostar-se nas almofadas,
puxou-a de encontro ao peito.
Sentindo como se a sala girasse, ela fechou os olhos para
deliciar-se melhor com o vigor dos braços que a apertavam. Num
impulso, beijou-lhe os lábios ainda úmidos de vinho, correspondendo à
exigência e à avidez de sua boca com um ardor nunca imaginado.
Quando ele a deixou, sentia-se como alguém que voltasse à
superfície, depois de um longo mergulho num mar revolto. Ouviu-o
murmurar com voz rouca:
— Roberta... Quer falar comigo ou me atormentar?
Acariciando-lhe ternamente o queixo, ela o encarou com os olhos
azuis brilhantes de desejo.
— Você não disse que queria manter certa distância entre nós?
Ele riu.
— Tem razão. Vamos falar do Dr. Radcliffe, então.
— O Dr. Radcliffe é o disfarce de Bernard Winston Radcliffe III.
— E lhe contou em detalhes como conhecera Bernie, ressaltando a
profunda amizade que se desenvolvera entre ambos com o passar dos
anos.
Ao final do relato, Paul deixou escapar um pequeno suspiro.
— Acho que devo desculpas a Bernard Winston Radcliffe III.
Deixei-o passar por maus momentos.
— Eu também sofri o mesmo.
Ele acariciou-lhe os cabelos, depois seguiu o contorno do seu
rosto com a ponta dos dedos.
— Tenho de mudar de tática, não é mesmo? Acomodando-a
melhor no seu peito forte, começou a massagear-lhe os músculos
tensos. Roberta fechou os olhos, experimentando uma doce sensação de
conforto. Um sorriso suave entreabria-lhe os lábios.
— Como está se sentindo? — perguntou ele, friccionando-lhe a
nuca.
— Maravilhosa...
A brisa que penetrava pela janela aberta, carregada com a suave
fragrância da primavera, era um convite ao repouso. Relaxando
completamente o corpo exausto, ela fechou os olhos, adormecendo
quase no mesmo instante.
Ao voltar aos poucos à consciência, espreguiçou-se
languidamente, sorrindo sem saber por quê. Quase sucumbiu à
tentação de mergulhar outra vez naquele delicioso torpor. Mas um som
ritmado e abafado rompeu as névoas do sono e penetrou em sua mente.
Por um momento sentiu-se desorientada, mas, ao reconhecer o
som como as batidas compassadas de um coração, despertou por
completo. Era manhã e ela estava aninhada nos braços de Paul, a
cabeça confortavelmente apoiada em seu peito!
O sentimento de confusão logo foi substituído pela surpresa.
Como pudera dormir ao lado dele? Como podia ter sido tão...
— Posso imaginar o que você está sentindo nesse exato
momento, Roberta! — comentou ele, a voz vibrando de alegria.
Ela ergueu a cabeça e fitou-o.
— Faz tempo que está acordado?
— Há meia hora. Mas não faça essa cara de horror. Até parece
que dormiu ao lado de um desconhecido!
Seus cabelos estavam em desalinho, o rosto sombreado pela
barba por fazer, mas ele parecia tão atraente como sempre.
— Não, sei o que me deu... Acho que estava exausta. Percebeu,
então, que estava coberta pela manta que sempre ficava no parapeito da
janela.
— Foi você quem me cobriu?
— Não, um velho gnomo que entrou na calada da noite.
— Não se faça de desentendido. Ele riu e beijou-lhe a testa.
— Quem mais poderia ser?
— Quer que eu lhe prepare algo para comer?
— Desde que não seja comida chinesa! Roberta sorriu.
— Que tal ovos e bacon?
— Hum... passável!
Ela fez menção de se levantar, mas Paul a reteve.
— Sem pressa, Roberta.
Houve um silêncio perturbador, enquanto se encaravam com os
rostos quase colados. Uma onda de calor a envolveu e ela voltou a
fechar os olhos para saborear aquele instante de serena intimidade.
Passados alguns momentos, Paul declarou:
— Preciso ir. Tenho uma cirurgia às nove.
— Que horas são?
— Quase oito — disse ele, levantando-se com relutância.
— Vou fazer café.
Ele inclinou-se e beijou-a na testa.
— Não é preciso. Vou para casa tomar banho e mudar de roupa.
Sua boca sensual era uma tentação. Roberta queria beijá-la,
mas se controlou.
— Há um barbeador disponível no banheiro e uma escova de
dentes nova. Tome um chuveiro, enquanto preparo o café.
Paul acariciou-lhe os lóbulos das orelhas e a serena
tranqüilidade de momentos atrás deu lugar a um silêncio carregado de
emoções. Ela queria submergir nas profundezas daquele olhar que a
enfeitiçava. Suas pulsações aceleraram-se sob a carícia suave daqueles
dedos sensíveis. Desejava entregar-se à força poderosa que a arrastava
inexoravelmente para ele. Mas não havia tempo.
— Os minutos correm Paul.
Ele soltou um suspiro de resignação.
— Não quero arriscar minha reputação.
— Mas é o que vai acontecer, se o pontual Dr. Wilcox chegar
atrasado para a cirurgia!
Ele rumou apressadamente para o banheiro.
— Vou tomar um chuveiro rápido — anunciou por cima do
ombro.
Roberta levantou-se de um salto e foi cantarolando para a
cozinha, invadida por uma alegria sem limites. Explicada a estranha
atitude de Paul nos últimos dias, dava graças a Deus que tudo estivesse
esclarecido. O banal mal-entendido quase arruinara o começo de um
envolvimento emocional.
Mas, à medida que se atarefava na cozinha, a sensação de bem-
estar desapareceu como que por encanto. Relembrou seu
comportamento na noite anterior e arrepiou-se. Como Paul o
interpretaria?
Ao vê-lo voltar do banheiro, estava tão convencida de lhe ter
causado péssima impressão, que não ousou sustentar seu olhar.
Encostado à parede, ele a observou por alguns instantes e então,
parecendo adivinhar-lhe os pensamentos, agarrou-a com firmeza pelos
ombros.
— Não faça um drama por uma coisa tão simples. Você estava,
exausta e adormeceu sem perceber. Isso não é nenhum crime. Fiquei
orgulhoso em saber que confia tanto em mim.
— Paul...
— Vou perdoá-la por ter adormecido, mas não a perdoarei se
deixar queimar a comida!
A refeição matinal transcorreu num clima de felicidade, que fez
Roberta pensar nos pais e no caloroso relacionamento que os unia.
Enquanto enchia as xícaras de café, Paul tocou-lhe a mão.
— Tenho muito trabalho hoje. Mas gostaria de passar o dia de
amanhã com você. Se estiver livre, é claro.
— Eu adoraria!
Ele sorriu e beijou-lhe a mão.
— Há um lindo lugar nos arredores da cidade. Um piquenique
não seria má idéia. Que acha?
— Ótimo!
— Então está combinado.
Quando a porta se fechou atrás dele, Roberta deixou-se cair
sentada no sofá, possuída de intensa emoção.


Capítulo IV

Os raios do sol atravessavam as árvores cobertas de folhas


novas. Sentada no chão gramado, com as costas apoiadas num tronco,
Roberta olhava o cenário bucólico que se estendia à sua frente.
A primavera transformara as colinas numa massa de verde
luxuriante. Os cumes das cordilheiras distantes erguiam-se de encontro
ao horizonte como uma horda de verdes criaturas pré-históricas,
enquanto, a oeste, abria-se p desfiladeiro Livingston, revelando o
esplendor da região montanhosa.
Florestas virgens e bosques de pinheiros e bétulas aninhavam-se
nas encostas agrestes das Montanhas Rochosas, os cumes nevados e os
picos mais altos envoltos em névoas. O brilhante Old Man River
precipitava-se sinuosamente pelo leito rochoso, refletindo o brilho do sol
em suas águas claras como cristal.
Com a brisa leve que lhe despenteava os cabelos, vinha o aroma
da terra aquecida pelo sol, o perfume das flores e o frescor do ar das
montanhas. Uma águia solitária pairava majestosamente no azul do céu
sem nuvens.
Suspirando de pura alegria, Roberta voltou-se para o homem
que descansava a cabeça em seu colo. As feições másculas, a boca
sensual entreaberta na tranqüilidade do sono... Mesmo adormecido, ele
irradiava uma virilidade poderosa que era impossível ignorar.
Com infinita ternura, afastou a mecha de cabelos que lhe caía
na testa e deixou as mãos repousarem no peito largo. Seus
pensamentos retrocederam ao passado.
Estivera emocionalmente envolvida com outros homens, mas
nenhum a afetara tanto quanto Paul. Os sentimentos que ele lhe
inspirava aprofundavam-se com uma rapidez alarmante, abrindo as
comportas de um extraordinário fluxo de emoções, cuja força ela ainda
desconhecia. Mas sabia que era maior do que uma simples atração
física. Muito maior.
Respirando fundo para sufocar a excitação que ele lhe
provocava, recostou a cabeça no tronco. A brisa brincava com seus
cabelos e ela os empurrou para trás, movendo-se cuidadosamente para
não perturbar o sono dele. Sentia as batidas compassadas do coração
dele sob a palma da mão, e sorriu à lembrança de ter acordado
naqueles braços fortes. Agora, era ele quem adormecera ao seu lado.
— Dou um vintém por seus pensamentos.
— Pode sabê-los de graça — disse ela, baixando os olhos para
fitá-lo. — Eu apenas constatava que estamos nos acostumando a
adormecer um ao lado do outro.
— Parece que sim. É ótimo relaxar e esquecer o trabalho por
alguns momentos.
— Você tem muitas responsabilidades, Paul. Não sei como
agüenta tanta pressão.
— Quero lhe contar uma novidade. O Dr. Radcliffe foi meu
assistente na operação de ontem. Ele é um bom cirurgião.
Paul riu, sacudindo a cabeça e deixando-a intrigada.
— O que há de tão engraçado? — ela quis saber.
— Quando saímos do Centro Cirúrgico eu o cumprimentei pelo
excelente desempenho. Acho que ele não ficaria mais espantado, se eu
lhe tivesse apontado uma arma.
— Pobre Bernie! Posso até imaginar a cena. Ele não deve estar
entendendo nada!
— Se acredita que Bernie está confuso, eu então, estou
baratinado!
— É isso que acontece quando se tira conclusões apressadas!
— Bem, comecei a perceber que eu estava enganado sobre você e
Bernie quando percebi que ele se impressionara com a nova enfermeira.
Mas só respirei aliviado ao vê-lo cancelar o jantar programado com
você.
— Só por curiosidade: como pôde imaginar que eu e ele
estivéssemos comprometidos?
— Não está a par dos rumores que correm pelo hospital?
— Francamente, não dou nenhum crédito a esses comentários.
É inacreditável como os fatos podem ser distorcidos.
— Pois foi o que aconteceu. — Ela sorriu maliciosamente.
— Mas parece que o nosso novo cirurgião-chefe está acima de
qualquer fofoca. Ninguém foi capaz de saber coisa alguma sobre sua
vida particular.
— Ótimo! — exclamou ele com um sorriso de satisfação. — Já
aprendi a me esquivar dos curiosos.
Um certo ressentimento em sua voz lembrou-a do episódio do
noivado de Joan, quando ele fizera uma expressão desdenhosa ao notar
a alegria da enfermeira. O que haveria no passado de Paul que...
— O que aconteceu, Roberta? — perguntou ele, de repente.
— Agora é minha vez. Importa-se se eu lhe fizer uma pergunta
pessoal?
— Hum, pode ser...
Embora soubesse que ele detestava ver sua privacidade
invadida, Roberta seguiu em frente.
— Você já foi casado?
Paul sentou-se de chofre, os braços rodeando os joelhos
erguidos.
— Não. Por que pergunta?
Ela ainda pensou em deixar o assunto morrer, mas algo na
expressão dele a impediu de recuar.
— Lembra-se de quando Joan nos contou que estava noiva? Pois
bem, naquela hora você a olhou como se reprovasse a idéia e isso me
deixou intrigada.
— Não pensei que eu tivesse dado qualquer demonstração...
— Mas deu.
Ele se levantou e estendeu-lhe a mão.
— Vamos passear?
Minutos depois caminhavam em silêncio ao longo da margem
rochosa do rio. Por fim, Paul resolveu falar.
— Eu era muito jovem quando percebi que o casamento destrói
as pessoas, inferniza a vida. Acabei me convencendo disso com o passar
dos anos.
— Nem sempre é assim!
— Pois não conheço um só casal feliz.
Roberta, pelo contrário, conhecia vários. No entanto, preferiu
entrar com muita cautela na discussão daquele assunto.
— Talvez sua visão sobre esses casamentos que citou tenha sido
superficial.
— Bem que eu gostaria de ter me enganado. Mas sei que o
relacionamento homem-mulher muda muito depois do casamento. Já vi
isso acontecer inúmeras vezes. Um começa a exigir demais do outro ou
ambos deixam de se respeitar... O fato é que, depois de alguns anos, a
união que parecia tão sólida se desmorona por completo. E dois seres,
que talvez se amassem, passam a se comportar como irracionais. O
casamento torna-se, então, uma armadilha cruel.
Roberta lembrou-se dos pais, cuja felicidade em comum vinha
acompanhando há tanto tempo. Claro que eles enfrentavam períodos de
discórdia, mas eram sempre capazes de superar os obstáculos. Por que
Paul via apenas o lado negativo da questão?
— Muitos casamentos sobrevivem — argumentou ela, com
segurança.
— Mas por quê? Na maior parte das vezes por causa dos filhos, o
que é um erro fatal. Mesmo que não haja divórcio, eu sei o mal que um
casamento fracassado pode causar a uma criança.
Seu tom de voz induziu-a a perguntar o motivo de tanta
amargura. Só não o fez por temer um pouco a expressão severa que
havia em seu rosto.
— Alguma vez pensou em constituir família, Paul?
— E arriscar-me a arruinar a vida de meus filhos? De maneira
nenhuma! Eu não gostaria de enfrentar esse tipo de situação. Jamais
me casarei, jamais!
Falou com tanta veemência, com tanta convicção, que parecia
querer dar o assunto por encerrado. Seus olhos deixavam transparecer
intenso sofrimento. Paul era um homem sensível e tudo indicava que
fora profundamente magoado.
Ele parou por um momento para arrumar os cabelos de Roberta,
que o vento teimava em desmanchar. Seus dedos tremiam quando lhe
acariciou o rosto. Depois, ele a apertou de encontro ao corpo e de novo
passou o braço por sua cintura. Assim, firmemente abraçados,
continuaram o passeio.
Depois de um longo silêncio, Roberta percebeu que ele começava
a relaxar, e retomou o assunto:
— Às vezes as pessoas se casam sem preparo para uma união
duradoura.
— Eu sei. Conheço uma porção de gente que se casou só porque
as namoradas tinham um belo corpo.
— Então merecem o inferno de vida em que se meteram! —
Sorrindo, Paul a agarrou pelos ombros, com um brilho malicioso no
olhar.
— Depois desse comentário, você vai me bater se eu lhe disser
que tem um corpo maravilhoso?
Roberta corou, mas procurou manter a naturalidade.
— Isso não me impressiona nem um pouco.
— Mas você ficou vermelha! Que interessante!
— Ah, pare de me chatear. Se não vou me aborrecer.
— Pronto, já não está mais aqui quem falou... Que tal se
voltarmos agora?
— Ainda não. Quero dar uma olhada no rio.
Pouco depois eles escalavam uma plataforma rochosa, de onde
se avistava um magnífico cenário. Estavam em uma espécie de
península que se projetava sobre as águas cristalinas como uma ponta
de lança. Logo abaixo, um refúgio de areia branca, banhado pelo sol,
estendia-se até a margem rochosa. Acima do verde das árvores, ao lado
do rio, as montanhas cobertas de neve formavam um fundo de cena tão
magnífico, que Roberta perdeu o fôlego. Depois de alguns instantes de
muda contemplação, exclamou, com olhar sonhador:
— Que ótimo lugar para pescar trutas!
— Não acredito no que escutei! Será que descobri uma mulher
que gosta de pescar?
— É meu passatempo predileto!
— Agradeçamos aos céus! — comentou Paul, com fingido fervor.
— É a meu pai que deve agradecer. Eu o acompanhava nas suas
andanças desde pequena.
Demonstrando um entusiasmo de garoto, Paul agarrou-a pela
mão, sugerindo:
— Vamos até a perua. Tenho lá um equipamento de pesca
novinho em folha.
Começaram a caminhar tão depressa, que ela tropeçou numa
raiz exposta e quase caiu.
— Epa! Vamos mais devagar. Você quer me matar, é?
— Deixe de conversa e ande rápido.
— Eu não tenho licença de pesca...
— Eu tenho.
— Ma se os guardas me pegarem pescando sem licença, não...
— Não me venha com desculpas, Roberta, ou vou pensar que
você estava mentindo, quando afirmou que sabia pescar!
— Está querendo me provocar? — perguntou ela, ofegante.
— Entenda como quiser — retrucou ele, acelerando o passo.
— Você é um desalmado! Devemos estar a cerca de vários
quilômetro da perua. E ainda teremos de fazer o caminho de volta. Não
agüento, vou morrer!
— Voltaremos de carro, minha flor. Não se aflija. Quando
chegaram ao grupo de árvores onde tinham deixado à perua, Roberta
estava completamente sem fôlego. Porém, no instante em que fez
menção de descansar à sombra de um enorme chorão, Paul a impediu
com um gesto firme:
— Ah, não! Você não vai se sentar de jeito nenhum!
— Você é pior do que meu pai — gemeu ela, seguindo-o com
relutância. — Se descobre um bom lugar para pescar, ele se transforma
num doido varrido.
— Meu Deus, nunca vi uma mulher tão choramingas! Entraram
no veículo e Paul engrenou a marcha, seguindo cuidadosamente pela
descida íngreme.
— Estou desconfiada de suas intenções — murmurou Roberta,
ainda ofegante.
— Você veio para passear ou para descansar?
— Isso não é passeio. É morte certa!
— Pare de se queixar, se não, sou capaz de acreditar que você
está cansada.
Sacolejando, o veículo vencia com dificuldade o caminho
acidentado. Quando chegaram à plataforma rochosa onde tinham
estado antes, Roberta sentia-se mais morta do que viva.
— Você é um maluco!
Sorrindo, Paul pegou rapidamente as varas de pescar e
encaminhou-se para a margem do rio, seguido por ela, que carregava a
caixa de anzóis. Quando depositou o equipamento na areia branca da
pequena praia, ele perguntou:
— Você sabe preparar um anzol direito?
— Com a confusão que está nessa caixa, será um verdadeiro
milagre encontrar as coisas aqui. Vou ver o que consigo fazer. Trutas,
não é?
— São boas, aqui em Alberta?
— Ótimas! Mas vamos precisar de iscas.
— Tenho algumas no compartimento de trás da perua. Dizendo
isso, foi até lá, pegou o que precisava, voltando a seguir. Instantes
depois, acomodando-se no alto de um rochedo, ele estudou a correnteza
e, então, com um movimento leve do braço, arremessou a linha, que
traçou um arco e afundou nas águas cristalinas.
— Nada mau — comentou Roberta.
— Fui aprovado?
— Certamente.
Ela se deitou na areia quente, apoiando o corpo nos cotovelos.
— Acho que é melhor fazer o arremesso mais para cima. Há uma
depressão no leito do rio bem em frente àquela árvore do lado de lá —
informou, com um gesto vago, indicando a margem oposta.
— Santo Deus! Tem uma verdadeira floresta do outro lado do rio.
Não pode ser mais explícita?
Sorrindo, ela se levantou, limpou a areia dos jeans e aproximou-
se. Paul, percebendo-lhe a intenção, estendeu-lhe a vara.
— Vamos lá, espertinha. Faça sua demonstração.
— O que aconteceria se eu perdesse a vara na correnteza do rio.
— Nada demais... Eu jogaria você na água.
— Obrigada. É bom saber.
Com um hábil movimento de mão, Roberta lançou a linha na
água. Não conseguiu esconder um sorriso de satisfação, quando o anzol
caiu exatamente onde queria.
— Pronto moço! Deu para perceber que não sou uma iniciante?
— Tem razão. Dou minha mão à palmatória.
Assim, entre uma brincadeira e outra, acabaram pescando
quatro peixes em menos de meia hora e discutiram na hora de limpá-
los.
— Céus, como somos infantis! Dois cirurgiões altamente
treinados, brigando para ver quem limpa quatro peixinhos — comentou
ela.
Paul riu, entregando-lhe o facão.
— Concordo plenamente. Faça tudo, então.
— De jeito nenhum! Eu limpo e você cozinha. Enquanto ela
preparava os peixes, Paul acendeu o pequeno fogareiro e minutos
depois os filés estavam dourando na manteiga. Roberta abriu a cesta de
piquenique e estendeu a toalha, improvisando uma bonita mesa, onde
ambos comeram com apetite.
Terminada a refeição, ela voltou à margem do rio com a vara de
pescar.
Paul sentou-se ao seu lado, as costas apoiadas num tronco
caído, um cigarro aceso nos lábios.
— Desta vez não está dando, Roberta — comentou, depois das
várias tentativas frustradas que ela fez para pescar algo.
— Gostaria de ter alguns marshmallows.
— Para comer?
— Não, para servirem de isca.
— Acho que você tomou muito sol. Está delirando!
— Funciona, sim. Colocando um pedacinho de marshmallow no
anzol, os peixes pensam que é uma minhoca.
Arremessando o cigarro na água, Paul aproximou-se e passou o
braço em torno dos ombros dela.
— Vamos dar um passeio, seguindo a correnteza?
— Estou com preguiça. Prefiro sentar ao sol e deixar que as
calorias que ingeri se transformem em gordura.
Paul deu uma sonora gargalhada, e ela sentiu uma explosão de
alegria percorrer-lhe as veias, uma emoção que sempre experimentava
quando ele soltava aquela risada tão espontânea. De repente, quando
recolhia a vara, percebeu que o anzol se prendera na camisa dele.
— Afinal, não voltei de mãos vazias. Acabei pescando você.
— É verdade, Roberta. Pescou-me de fato.
A intensidade de seu olhar surpreendeu-a, e aos poucos sua
pulsação acelerou-se e uma excitação febril aqueceu seu sangue. Paul
tomou-lhe o rosto entre as mãos, mergulhando os dedos em seus
cabelos.
Seus corpos se amoldaram com uma intimidade perturbadora,
enquanto ele a beijava, obrigando os lábios dela a se entreabrirem para
receber sua língua.
Roberta sentiu-se sem defesa diante da onda de emoção que a
invadia. Um fogo percorreu-lhe as veias quando ele voltou a beijá-la,
agora mais avidamente. Então ela lhe entregou a boca macia,
correspondendo com ardor e paixão.
Logo Paul a deitou com delicadeza sobre a areia e ela gemeu
baixinho quando ele se estendeu ao seu lado. Juntou os quadris aos
dele, e aquele contato incendiou-a, fazendo sua sensualidade explodir.
Com gestos ternos, ele insinuou as mãos dentro de sua blusa,
massageando-lhe os ombros com toques leves e sensuais, enquanto
seus lábios desciam pela pele macia de seu colo, provocando-lhe um
calor gostoso por onde passava.
Ao sentir-lhe as mãos nos seios, ela arrepiou-se, experimentando
uma onda de desejo. O contato eletrizante fazia seus sentidos delirarem.
Por um momento sem fim, abandonou-se completamente às sensações
provocadas por aqueles toques mágicos que lhe deixavam o corpo
trêmulo de paixão.
Notou que ele lhe desabotoava a blusa e foi possuída de extrema
excitação. Abafou um gemido e arqueou automaticamente o corpo
vibrante de sensualidade, oferecendo os seios às carícias. Paul
debruçou-se por cima dela, roçando-lhe os seios alvos contra o peito,
fundindo seus corpos num só.
Roberta atingiu o auge da excitação quando ele voltou a tomar-
lhe a boca. Sua resistência enfraquecia. Logo, não haveria mais
retorno...
Esse inquietante pensamento atravessou-lhe a mente com a
rapidez de um raio e ela tentou recuperar o controle. Desvencilhando-se
dos braços dele, murmurou:
— Não, Paul... não!
Espantado, ele se levantou de um salto, enquanto ela escondia o
rosto entre as mãos, tentando sufocar o desejo insatisfeito que ainda
fazia pulsar as partes mais sensíveis de seu corpo.
Demorou, antes de recolher forças suficientes para sentar-se.
Seus dedos tremiam ao fechar os botões da blusa. Por que se deixara
arrastar pelo fogo da paixão como uma adolescente impulsiva?
— Acha que passei dos limites? — perguntou Paul, num tom
gélido e de fúria contida.
Como ela não respondesse, segurou-lhe o queixo, forçando-a a
encará-lo. A expressão desapontada dele só serviu para lhe aumentar a
angústia.
— Não se faça de rogada, Roberta. Diga de uma vez o que pensa.
Demorou ainda alguns minutos até que ela se sentisse em
condições de lhe explicar por que o repelira.
— Sinto muito, Paul, mas eu não...
Um nó na garganta a impediu de continuar. Tentou virar a
cabeça para escapar de seu olhar intenso, mas ele não permitiu.
— Por favor, diga logo — insistiu, tomando-lhe o rosto entre as
mãos.
Sua voz suplicante deixou-a de coração partido. Temia romper
em lágrimas a qualquer momento, quando de repente leu nos olhos dele
que Paul adivinhava o que lhe passava pela mente.
— Você nunca... nunca fez amor com ninguém, não é isso?
Quando ela assentiu com um gesto de cabeça, Paul, num ímpeto
apaixonado, apertou-a de encontro ao peito.
— Ah, Rob... sinto muito. Eu pensei que...
Ela respirou fundo, encostando a cabeça em seu peito. Pouco a
pouco, a tensão que a oprimia cedeu, embora seus olhos ainda
estivessem marejados de lágrimas.
— Paul...
— Não me olhe desse jeito, Rob. Não é o fim do mundo.
— Sinto tanto...
— Eu não — retrucou ele, com os olhos faiscando de malícia.
— Eu devia ter dito logo que...
Ele a silenciou colocando um dedo sobre os seus lábios.
— Não precisa explicar nada... embora eu admire que numa
época de emancipação sexual ainda haja quem dê tanto valor a
conceitos antigos. — Beijou-lhe suavemente a testa e concluiu: —
Percebi desde o começo que havia algo especial em você.
A ternura que se irradiava de seu olhar produziu nela uma
alegria tão intensa, que Roberta não se conteve. Abraçou-o com força,
entregando os lábios aos seus beijos, ciente de que uma emoção nova e
arrebatadora os envolvia num círculo de mágico esplendor.
O sol desaparecia atrás das montanhas quando Paul desligou o
motor do carro. A luz do crepúsculo coloria de dourado as nuvens que
cobriam o céu.
Perdida em divagações, Roberta mal se deu conta de que tinham
chegado. O dia fora perfeito; não havia palavras para descrevê-lo. Era
uma pena que tivesse terminado. Voltou-se para Paul, mostrando uma
ponta de pesar na expressão dos olhos.
— O que foi Roberta?
— Estou triste por ver chegar ao fim um dia tão maravilhoso.
Ele beijou-a ternamente nos lábios, antes de afirmar:
— Não há motivo para tristeza. Hoje foi o começo de tudo para
nós.
Feliz diante daquela promessa, ela pegou suas coisas no assento
traseiro da perua e convidou Paul a entrar.
Subiram as escadas de braços dados e, assim que fecharam a
porta do apartamento, ele a puxou de encontro ao peito e beijou-a
novamente com um ardor que a fez sentir-se lânguida e sem forças.
— Vou buscar a cesta de piquenique que esqueci no carro.
Enquanto isso vá preparando o café — ele disse, com o dedo em riste.
— Sim, chefe — brincando, ela bateu continência. Paul desatou
a rir.
— Você me faz sair do sério, Roberta! Ao chegar na cozinha, ela
improvisou um jantar, que minutos depois devoraram num piscar de
olhos.
Voltaram ao living de mãos dadas e acomodaram-se no amplo
sofá, ela aninhada de encontro ao peito dele, experimentando uma doce
sensação de conforto. Foi Paul o primeiro a falar, depois de um
prolongado silêncio.
— Posso lhe fazer outra pergunta de caráter pessoal, Roberta?
— Só se depois eu também puder lhe fazer outra.
— Combinado! — seu tom brincalhão contrastava com a
ansiedade refletida no olhar. — Como alguém tão bonita como você
nunca se envolveu num relacionamento sexual?
— Bem, meus pais são um tanto tradicionais e nos criaram, a
mim e a minhas irmãs, dentro desses conceitos.
— Nunca caiu em tentação?
— Desde adolescente tive curiosidade natural sobre o assunto,
mas sempre achei que a intimidade sexual devia ser acompanhada pelo
amor.
— E nunca teve ninguém especial?
Paul esforçava-se para aparentar descontração. Na realidade,
demonstrava exatamente o oposto.
— Sim, houve alguém, mas não deu certo.
— O que aconteceu?
— Saíamos juntos no meu último ano de faculdade. Ele fazia
pós-graduação em Engenharia. Quando terminou o curso, recebeu uma
proposta muito boa de uma empresa petrolífera.
Fez uma pausa, a expressão absorta, como se quisesse
relembrar melhor aquele episódio. Com um suspiro fundo, continuou a
história:
— Ele queria que eu abandonasse a faculdade e o
acompanhasse. Não conseguia entender que a Medicina fosse tão
importante para mim. Mas, quanto mais me pressionava, mais
revoltada eu ficava contra aquela atitude egoísta... Aí nosso
relacionamento chegou ao fim.
— Você ficou muito magoada?
— Não sei... As discussões eram tantas e eu estava tão cansada
da situação, que cheguei a sentir um certo alívio.
Paul segurou-lhe gentilmente o queixo, fitando-a bem no fundo
dos olhos.
— Não se arrependeu?
— Nem um pouco!
Desanuviando o semblante, ele se recostou nas almofadas, o ar
pensativo e sonhador.
— E quanto a você, Paul?
— O que quer saber com exatidão? Durante os anos de
faculdade, meu comportamento podia ser qualificado de escandaloso!
— Houve alguém especial?
— Não, absolutamente ninguém... até este momento. — E
completou ternamente: — Você é a pessoa mais importante que
apareceu na minha vida.
— Ah, Paul...
Seus lábios se entreabriram para receber os dele, quentes e
exigentes. Era como entrar numa espiral de volúpia que acabaria por
consumi-los.
Um som estridente quebrou o silêncio e a magia do momento se
desfez. Paul correu os dedos pelos cabelos em desalinho.
— Não atenda Roberta.
— Deve ser Bernie. Ele é o único que tem a chave do prédio. Ele
soltou um suspiro de resignação.
— Parece que, desta vez, você foi salva pelo gongo. Ouviram o
ruído dos passos que se aproximavam pelo corredor. Então Roberta
disse apreensiva:
— Não vou deixar que ele entre... com você aqui.
— Confia nele?
— Completamente!
— Tudo bem, então. É melhor abrir a porta, antes que ele se
impaciente.
Bernie entrou feito um rojão e foi logo resmungando:
— Droga! Telefonei o dia inteirinho, ninguém atendia. Preciso
falar com você, Roberta, antes que...
Interrompeu-se de chofre, os olhos arregalados de surpresa ao
perceber que a amiga não estava sozinha. Completamente sem graça,
balbuciou:
— Ah... desculpe... eu não sabia. Telefono mais tarde... Fez
menção de sair, mas Roberta bloqueou-lhe a passagem.
— Não vai a lugar algum, moço! Você ficará aqui e tomará café
conosco... Ou precisa de uma bebida forte?
— Ah, sim, é melhor.
— Por que está tão preocupado? Bernie engoliu em seco.
— Acho que esqueci.
Paul aproximou-se, com um sorriso nos lábios.
— Pensei que soubesse enfrentar as coisas com cabeça fria,
Radcliffe.
Como quem se desculpa, ele arqueou os ombros e tentou se
justificar:
— Crises eu posso enfrentar. Mas essa bomba... — lançou um
olhar aflito para Roberta. — Cadê a bebida que me ofereceu?
— Já trago!
Quando ela terminou de preparar os dois uísques, Bernie
parecia recuperado do choque.
— Posso fazer uma pergunta?
Paul e Roberta trocaram olhares de entendimento e
responderam a uma só voz:
— Não!
— Há quanto tempo vocês...
— Esqueça Bernard.
— Estou começando a entender... — Voltando-se para Paul, o
recém-chegado perguntou: — Sabe o que os fofoqueiros andam dizendo
de mim e Roberta?
— Claro que sei.
— Simplesmente revoltante, não? Mas será que esses
comentários não têm algo a ver com a inexplicável raiva que um certo
cirurgião-chefe vinha demonstrando nos últimos dias?
Notando que Roberta enrubescia de constrangimento, Bernie
não perdeu a deixa.
— Parece que você tomou muito sol, Rob. Está vermelhinha! Ela
olhou para Paul, em busca de ajuda, mas ele não disse nada. Apenas
sorriu.
— Hum... já vi tudo — murmurou Bernie, os olhos fixos nela.
— Bem, o que tinha de tão importante para me dizer?
— Acontece que as fofocas chegaram aos ouvidos de quem não
devia. Não tive chance de me explicar e ainda fui chamado de
conquistador barato. Triste ironia para quem nunca se insinuou com
ninguém, não?
— Oh, Bernie, que pena! Mas não se preocupe que eu vou falar
com ela. Quero que fique tudo esclarecido.
Ele lhe lançou um olhar de gratidão, mas Roberta o conhecia
muito bem para saber que Bernie ainda não estava satisfeito.
— Você me deve isso! Tive de agüentar as iras de nosso chefe por
sua causa, Rob. Não é justo.
Paul interveio:
— Certo, Radcliffe. Devo-lhe desculpas.
— Claro que me deve!
Paul e Roberta sorriram, enquanto Bernie cruzava os braços
sobre o peito, com olhar triunfante.
— Vai ser a fofoca do ano e eu...
— Veja lá, Bernard! — cortou Roberta.
— Bem, queira Deus que ainda haja esperança para você, Rob.
"Não muita", lamentou-se ela em silêncio. "Estou a ponto de me
apaixonar perdidamente por um homem que considera o casamento uma
armadilha."


Capítulo V
Roberta mergulhou na banheira e se espreguiçou, deixando que
a água morna a envolvesse por completo. Fechou os olhos e, à
lembrança do jantar da noite anterior, sorriu feliz.
No intuito de resolver o problema de Bernie, fora ao hospital na
segunda-feira à tarde e persuadira Lisa Gordon a tomar café com ela. A
moça estava muito pálida e mantivera uma atitude fria e distante.
Ouvira educadamente o que Roberta tinha a lhe dizer, mas não fizera
comentário algum. Aparentemente, não acreditava na sinceridade do
pobre Bernie.
Para esclarecer a confusão, Roberta convidara-a para jantar em
sua casa, sem lhe dizer, no entanto, que também pretendia chamar
Bernie. Depois de muito refletir, telefonou a Paul e lhe fez idêntico
convite, afirmando que entenderia, caso ele não aceitasse.
Afinal, percebia que, expondo a situação de ambos a outra
pessoa além de Bernie, estaria correndo um risco muito grande. Se
soubessem que ela e Paul andavam se encontrando, a notícia logo se
espalharia pelos corredores do hospital e Paul não era tão tolerante
quanto ela àquele tipo de coisa.
Mas ficara provado que sua ansiedade não tinha razão de ser.
Depois de passar meia hora com Lisa, concluíra que a jovem era uma
pessoa muito séria, que jamais se prestaria a qualquer fofoca.
Quando Paul e Bernie chegaram, a enfermeira foi colhida de
surpresa, tanto pela presença do médico com quem brigara, quanto
pela imponente figura do chefe da Cirurgia.
Bernie estava em forma naquele dia e logo dominou a conversa,
fazendo-os rir até as lágrimas. A noite foi um sucesso.
Com um sorriso nos lábios, Roberta começou a ensaboar-se,
cheia de lembranças. Seu mundo parecia tomar outra dimensão. Agora
que Paul tornava-se parte integrante dela, cada acontecimento era visto
sob uma perspectiva nova, excitante e promissora.
Suspirando de alegria, pensou em qual vestido usaria naquela
noite. Paul iria sair mais cedo do consultório e tinham planejado jantar
em Banff.
O ruído insistente do telefone interrompeu suas divagações. Com
um gesto de impaciência, enrolou-se na tolha e saiu do banheiro.
— Alô?
— Temos de mudar nossos planos — disse Paul, parecendo
muito zangado. — Meus pais apareceram inesperadamente e preciso
acertar alguns negócios com eles. De nada adiantou eu dizer que ia sair
com você... Eles insistiram em nos acompanhar!
— Ótimo.
— Não é nada ótimo! Vou buscá-la às oito.
— Paul, há algo errado?
— Claro que sim. Mas você não iria entender... Preciso desligar.
Tenho um paciente à espera.
Murmurando um até-logo, Roberta recolocou o fone no gancho e
ficou um longo tempo sem saber o que fazer. Desconhecia o motivo da
fúria de Paul, mas tinha a inquietante impressão de que ele estava
aborrecido com ela.
Por mais que tentasse, não conseguiu afastar da mente essa
sensação. Procurou entreter-se com uma coisa ou outra, mas mesmo
assim a incerteza continuou a atormentá-la.
Por volta das sete, a campainha da porta tocou. Era Paul, muito
elegante no terno escuro de talhe impecável. Bastou apenas um olhar,
entretanto, para Roberta perceber que estava tão abatido quanto ela.
— Posso entrar?
— Claro que sim!
Depois que ele entrou, fez-se um longo silêncio na sala, até que
Paul aproximou-se e a tomou pela cintura. Logo segurou-lhe o queixo e
examinou seu rosto atentamente.
— Sinto muito, Roberta — disse, com voz sincera. — Eu me
comportei como um idiota ao telefone.
— Não tem importância...
— Tem, sim! — soltou um suspiro exasperado e a envolveu num
grande abraço. — Fui rude com você sem motivo!
— Não acredito que tenha ficado aborrecido comigo
gratuitamente.
— Meu mau humor não tem nada a ver com você.
— Não quer me contar o que houve?
Ele balançou a cabeça em sinal de negativa e perguntou a
seguir:
— Tem certeza de que ainda quer jantar comigo, apesar do modo
como a tratei pelo telefone?
— Claro Paul.
— Bem, devo preveni-la de que não será uma noite agradável.
Acho que estou sendo egoísta levando-a comigo.
Percebendo que ele não iria contar o problema que o
preocupava, ela preferiu deixar de lado o assunto. — Com você, as
noites sempre serão agradáveis.
— Ah, Roberta... Você é tão compreensiva.
Paul só se mostrou um pouco mais animado quando alguns
minutos depois a viu vestida num lindo conjunto de seda branca.
Porém, durante o percurso até o hotel, seu semblante voltou a carregar-
se tanto que ela desejou tocá-lo, na tentativa de fazer desaparecer as
linhas de preocupação que lhe vincavam a testa.
Ao descerem do carro, ele a segurou pelo braço, ainda sem nada
dizer. À medida que se aproximavam do saguão do hotel, apertou-a com
mais força. Era óbvio que a noitada seria uma provação para ele...
Roberta não demorou a descobrir o porquê disso. Sentados à
mesa do bar, os Wilcox os esperavam. A Sra. Wilcox devia estar na casa
dos cinqüenta anos e era uma mulher extremamente bonita e elegante,
embora uma expressão de infelicidade lhe marcasse as feições
delicadas. O pai de Paul, um pouco mais velho do que a esposa, não era
exatamente bonito, mas possuía a mesma virilidade característica do
filho.
Feitas as apresentações, os recém-chegados sentaram-se e
quase no mesmo instante o absurdo comportamento do casal revelou a
Roberta o motivo da cólera de Paul. Era evidente que seus pais se
detestavam e nada faziam para esconder isso.
Não levaram em consideração que havia uma estranha entre
eles, nem que colocavam Paul numa posição delicada. Com uma
insensibilidade que a chocou, humilhavam-se um ao outro a cada
minuto, ao mesmo tempo em que faziam esforços infantis para disputar
a preferência do filho.
Paul tomou dois uísques duplos em menos de meia hora e
fumou um cigarro depois do outro. Roberta esperava que o clima tenso
cedesse ao entrarem na sala de jantar, mas nada disso ocorreu. Pelo
contrário, foi ainda pior.
Diante da expressão a cada instante mais sombria de Paul, teve
vontade de esganar o casal que não parava de se agredir. Nervosa, tirou
um cigarro do maço dele, ignorando-lhe o ar de censura. Por uma
fração de segundo, pensou que Paul fosse retirá-lo de seus dedos, mas,
parecendo refletir, ele esboçou um sorriso irresistível, antes de acendê-
lo. O brilho de seus olhos intensificou-se ao observar o ar de alegria
estampado no rosto dela quando deu a primeira tragada.
— Espero que fique doente!
— O mesmo desejo a você — murmurou ela, piscando o olho.
Esse foi o único momento de descontração que tiveram. No
instante seguinte, a Sra. Wilcox fez um aparte sarcástico e de novo
recomeçou a troca de insultos entre o casal, que parecia unicamente
empenhado em se destruir.
Mais tarde, quando entraram no carro para voltar ao
apartamento, Paul suspirou, repousando a cabeça no encosto do
assento. Ficou assim um longo momento, depois engrenou a marcha e
pôs o carro em movimento.
Roberta sentiu uma pontada de compaixão. Daria a vida para
afastar a mágoa que o corroia, provocada pelo sofrimento que seus pais
lhe infligiam.
Na chegada ao apartamento, ele a acompanhou até a porta e
beijou-lhe a mão.
— Agora você já sabe de tudo — disse, num tom cheio de
desgosto.
— Foi sempre assim?
— Sempre. Pelo menos desde que eu me lembre.
— Por que não se divorciaram? Paul riu com sarcasmo.
— Para deixarem ao único filho um lar desfeito?
— Teria sido melhor.
— Concordo. Mas parece que preferem torturar-se a se
concederem à liberdade.
— É uma maneira destrutiva de conservar um casamento.
— A situação toda é uma loucura. Foi por isso que saí de
Toronto. Se tivessem me oferecido um emprego no Alasca, eu teria ido
de bom grado só para ficar distante deles.
— Não quer entrar e tomar um drinque?
— Obrigado, mas não vou aceitar.
— Por quê?
— Não acho prudente.
Passou o braço por sua cintura e, apertando-a contra si, tomou-
lhe a boca num beijo quente e úmido. Com o coração quase parando de
bater, ela se abandonou nos braços dele e, sentindo o desejo florescer
de modo exigente, moldou o corpo ao seu, enquanto emoções primitivas
desencadeavam-lhe uma sensualidade que não imaginava possuir.
Segurando-a pelos quadris, Paul iniciou um movimento lento e
ritmado que a fazia enlouquecer. O desejo, crescente e imperioso,
chegou ao auge, fluindo por suas veias como fogo líquido.
Bruscamente, com o semblante alterado pela mesma paixão que
a consumia, ele se afastou.
— Roberta... não posso entrar hoje... Você está tão quente e
convidativa que eu não seria capaz de resistir.
Ela quase soluçou os olhos cheios de lágrimas.
— Eu o amo, Paul. Eu o amo muito.
— Minha querida... Pensei que eu ia passar uma das piores
noites de minha vida e, no entanto, você me oferece um momento
precioso, inesquecível.
— Paul...
— Não há palavras para descrever o que você me faz sentir. Você
me completa, me faz sentir inteiro. Não pensei que isso pudesse
acontecer comigo. Quero você, mas acima de tudo, quero protegê-la. —
Sua voz transformou-se num sussurro ao completar: — Por isso não
vou entrar. Não essa noite.
— Por favor, Paul...
— Ouça minha querida. A necessidade que sinto de você vai
além do desejo físico. Não quero estragar a perfeição deste momento
com um ato impensado. Você é tão especial...
Sua boca sensual moveu-se sobre a dela, num beijo que falava
de amor, de ternura, da realização de um desejo profundamente
ansiado.
— Entre, amor. Quero vê-la a salvo, antes de fechar a porta.
— Não vai me dar um beijo de boa-noite?
— Você está tornando as coisas difíceis para mim. — Voltou a
beijá-la longamente na boca, aprofundando-se na exploração
apaixonada com a língua, pondo à prova o pouco de resistência que
ainda lhes restava.
De repente, erguendo-a nos braços, ele entrou no apartamento e
bateu a porta atrás de si. A sala estava iluminada apenas pela luz que
vinha da rua. Sem dizer palavra, carregou-a para o sofá. Tirou o paletó
e deitou-se ao lado dela, beijando-a de maneira delirante e apaixonada.
— Eu não queria que as coisas terminassem dessa maneira —
sussurrou Roberta, logo depois.
— Não quero pressioná-la, querida.
— Não está me pressionando...
— Não sou um adolescente de sangue quente, que não sabe
medir as conseqüências do que faz. Não quero magoá-la.
— Você pode não ser um adolescente, mas discordo que não
tenha sangue quente.
— Acho que não me expressei bem — disse ele com um toque de
humor na voz. — Mas, se fizermos amor, quero que seja por uma
decisão consciente sua, não por um ato ditado pela paixão do momento.
Quero ter certeza de que é isso mesmo que quer. E, se tiver de
acontecer, gostaria que houvesse um significado profundo, um
compromisso real tanto para mim, quanto para você.
Essas palavras calaram fundo na mente de Roberta. Pela
primeira vez percebeu que não gostaria de ser responsável por aquela
decisão. Ansiava que aquilo acontecesse com naturalidade, embora
temesse que Paul encarasse sua reserva como falta de amor.
No entanto, os cuidados dele a emocionaram. Sentiu um assomo
de felicidade tão embriagador quanto o champanhe. E esse sentimento
perdurou até bem depois que Paul saiu.
Na manhã seguinte, ao acordar, Roberta relembrou a triste cena
do jantar no hotel. A atitude dos pais de Paul explicava muitas coisas
que a tinham intrigado. Ficava fácil saber por que ele era tão
fundamentalmente contra o casamento. E essa descoberta não a
agradava nem um pouco.
Muito sensível Paul fora obrigado a viver num meio onde os
únicos sentimentos que contavam eram a autopiedade e um ódio
terrível. Portanto, não era de admirar que encarasse o casamento com
tanta desconfiança.
Ela, pelo contrário, não se diferenciava da maioria das mulheres.
Queria o mesmo que todas: amor, um lar, família, segurança,
casamento. Fora criada num ambiente de união e carinho, de amor e
harmonia. E ansiava por esse tipo de vida no futuro.
A fantasia da adolescente sonhadora que almejava entrar na
igreja vestindo um lindo traje de cetim e renda já não tinha grande
importância. Mas o sonho do casamento, mesmo com seus altos e
baixos, permanecia igual. Neste sonho só havia lugar para uma pessoa:
Paul Wilcox.
Com um suspiro fundo, rolou na cama e consultou o relógio de
cabeceira. Eram apenas seis horas. Sabendo que não voltaria a dormir,
enquanto a mente continuasse a remoer pensamentos tão
perturbadores, ela se levantou.
Estava saindo do chuveiro, quando o telefone tocou.
— Alô?
— Bom dia, Roberta.
A voz profunda e insinuante de Paul provocou-lhe uma onda de
calor que se espalhou pelo corpo inteiro.
— Bom dia.
— Gostaria de tomar o café da manhã comigo?
— Depende do que pretende me oferecer. — Ele deu uma
risadinha.
— Algo melhor do que bacon e ovos.
— Ótimo!
— Passarei para apanhá-la dentro de cinco minutos.
— Tenha dó, Paul! Vai me encontrar de toalha de banho
enrolada no corpo.
— Quinze minutos, então. Se bem que toalhas de banho são
muito excitantes...
Mais tarde, quando o Jaguar estacionou diante da casa de
tijolinhos vermelhos, Roberta já estava sentada nos degraus da
varanda. Paul olhou-a com um alegre sorriso estampado no rosto.
— Você está sensacional! — exclamou, admirando o conjunto de
linho que ela vestia. — Mas confesso que teria preferido à toalha de
banho.
— Onde acha que podemos tomar um bom café da manhã a
estas horas? É muito cedo! — disse ela, acomodando-se no assento do
carro.
Paul inclinou-se em sua direção e beijou-lhe os lábios.
— Espere e verá!
Roberta ficou imóvel, hipnotizada por seus provocantes olhos
negros.
— No que está pensando? — perguntou ele.
— Sabe que você tem olhos maravilhosos? Voltando a beijá-la,
Paul declarou:
— E você sabe que seus lábios têm um gosto delicioso? É difícil
resistir a eles.
Ela sorriu maliciosamente.
— O leiteiro está nos olhando.
— Verdade?
— Veja você mesmo!
— Será que ele não tem coisa melhor para fazer?
— Acho que não.
— Você está vivendo perigosamente, Roberta Mitchell!
— Dize-me com quem andas...
— Vamos sair daqui?
— Não vai dar adeusinho ao leiteiro?
Paul engrenou a marcha e pôs o pé no acelerador. Ao fazer a
curva, acenou alegremente para o leiteiro, depois de lançar a Roberta
um olhar triunfante.
Ainda sorrindo, ela fez menção de apanhar o maço de cigarros
que estava sobre o painel, mas Paul interceptou-lhe a mão.
— Ah, não! Hoje não vou contribuir para seu vício.
— Está parecendo meu pai!
— Minhas intenções não são nada paternais. Aproveitando um
instante em que ele estava com a atenção voltada para o trânsito, ela
não resistiu à tentação: acendeu dois cigarros, passando um a Paul.
— Vai se arrepender — ele a advertiu.
— Provavelmente...
— Você podia pelo menos ter a bondade de mostrar-se
arrependida!
— Vou me arrepender amanhã.
Depois de um breve silêncio, Paul observou:
— Nesta semana você vai pegar o plantão da noite, não vai?
— Certo.
— Teremos pouco tempo à nossa disposição. Gostaria de ficar
com você até a hora em que fosse para o hospital.
— Por que não passa lá por casa, quando terminar seu
expediente? Poderia preparar meu jantar...
— Você aceitaria? — perguntou ele, interessado.
— Mas é claro!
— E quando iria dormir?
— Normalmente, vou direto para a cama quando termino o
plantão. Posso dormir até a tarde. Tempo suficiente para um bom sono.
— Nesse caso, acaba de conseguir um cozinheiro, Dra. Mitchell!
— Sempre sonhei em ter um mestre-cuca! Você também lava a
louça?
— Não abuse da sorte! Está exigindo demais.
— Não custa nada tentar...
— E você? Não quer passar seu dia de folga me ajudando? Tenho
três operações a fazer.
— De jeito nenhum. Vou passar minha folga na oficina
mecânica.
— Que história é essa?
— Tenho de levar meu carro para o conserto. Vai ser uma briga
na hora do orçamento. Só espero poder saldar a conta com uma de
suas operações!
— Você conviveu tempo demais com Bernie Radcliffe, Roberta.
Seu senso de humor é muito desenvolvido!
Roberta sempre tivera dificuldades em se preparar para o
plantão noturno e aquele dia não foi diferente. Revirou-se na cama,
tentando abstrair-se dos problemas, mas seus pensamentos convergiam
sempre para Paul.
Completavam-se com perfeição, sem dúvida. No entanto, tinha
certeza de que nada do que pudesse fazer ou dizer mudaria o ponto de
vista dele. Mas... como gostaria de experimentar o calor e a segurança
de uma união estável, antes de acreditar que pudesse existir o reverso
da medalha!
Sentia-se dividida. Não podia ignorar as emoções que ele lhe
provocava. Por outro lado, jamais conseguiria esquecer os valores
morais em que fora educada. Uma voz interior lhe dizia que, não
importava o que acontecesse, sairia machucada da experiência, porque,
com Paul, era tudo ou nada.
Passadas duas horas, ainda estava se revirando na cama. Por
fim, teve a certeza de que, se fosse obrigada a fazer uma escolha, esta
recairia em Paul, pois o amava e o simples reconhecimento disso a
enchia de felicidade.
Era noitinha quando tomou um chuveiro rápido e começou a
preparar o jantar. Paul chegou logo em seguida, elegante na camisa
esporte que lhe acentuava o físico robusto.
Deu-lhe um abraço apertado e beijou-a com carinho. Então
aspirou o aroma que vinha da cozinha e sorriu.
— Que é isso? Não tínhamos combinado que eu faria o jantar?
Ou não confia nas minhas habilidades culinárias?
— Confiar, eu confio. Mas fiquei com pena!
— Vai acabar me acostumando mal com tantos mimos. Rodeou-
a com os braços e ela fechou os olhos, enquanto Paul lhe acariciava o
rosto. Não podia negar que estava se tornando cada vez mais
dependente de seus carinhos. Sufocando a emoção que a dominava,
voltou à realidade.
— As bistecas vão queimar!
Pouco depois, sentada à mesa ao lado do homem que amava, se
sentia como se o sonho de sua vida tivesse se tornado realidade.
Enquanto comiam, Paul contou-lhe que Davy Martin já iniciara as
sessões de fisioterapia.
— Ele vai indo bem? — ela perguntou interessada.
— É difícil dizer. O garoto tem muita força de vontade e isso
ajuda bastante. Pergunta sempre por você.
— Vou vê-lo amanhã de manhã.
— Davy vai gostar. Tem um fraco por você.
— Ele é um amor.
De repente, Paul encarou-a, sorridente.
— Está interessada em saber qual foi o veredicto do mecânico
sobre o seu carro?
— Não diga que você passou pela oficina!
— Passei. E ouvi uma história horrorosa.
— Aquele sujeito tem uma língua muito comprida!
— Nem tanto. Na verdade, seu carro não está em condições de
rodar numa estrada... Sendo assim, vendi-o no ferro-velho.
— Você... o quê? Não acredito no que estou ouvindo.
— Pois é, vendi seu carro pelo peso. Neste momento aquele
calhambeque deve estar reduzido a um monte de metal amassado.
— Você não podia ter feito isso! Vou agora mesmo à oficina e...
— Sabendo que reagiria dessa forma, falsifiquei uma nota de
venda. O mecânico, pensa que você vendeu o carro a mim. O que
pretende fazer agora, Dra. Mitchell? — perguntou, com um sorriso
divertido.
Logo, porém, percebendo seu ar desconcertado, assumiu uma
expressão séria e esboçou uma explicação.
— Roberta, os freios estavam em péssimo estado, à direção com
folga e o motor queimando óleo. Não valia a pena consertá-lo.
— Mas eu preciso de um carro...
— Sei disso.
— Não posso comprar outro.
— Calculei isso também. — Inclinou-se para frente, colocando a
mão sobre a dela. — Eu gostaria de lhe emprestar o Jaguar, mas todos
no hospital sabem que é meu. Em compensação, desconhecem que o
Bronco me pertence. Você pode usá-lo.
— Não vou fazer isso, Paul. Não é certo.
— Por acaso vai querer andar a pé ou de ônibus à noite? É muito
arriscado. E eu ficaria preocupado.
— Mas não posso usar seu carro.
— O que prefere? Que a leve de casa ao hospital e vice-versa?
Não quero vê-la sozinha na rua altas horas da noite!
Se outra pessoa ousasse lhe dizer o que fazer, ela teria
explodido. Mas, embora aborrecida, a preocupação que Paul
demonstrava emocionou-a, desarmando-a. Fitou-o, sem saber o que
responder.
As feições de Paul suavizaram-se no mesmo instante. Ele se
levantou e tomou-a nos braços.
— Não quero que nada de mal lhe aconteça, Roberta. Por favor,
faça como eu disse.
Ela apoiou o rosto no peito dele.
— Você não é responsável por mim.
— Sou sim. Quero cuidar de você. As coisas estão acontecendo
rápido demais e é preciso se acostumar com elas. — Acariciou-lhe o
rosto e continuou: — Não desejo pressioná-la. Você tem todo o tempo de
que necessita. Mas lembre que, quando estiver pronta, eu a estarei
esperando.
— Paul...
— Enquanto isso deixe que eu faça algo por você, amor. Não
ficaria sossegado, vendo-a ao volante de um carro que não está em
condições.
Ela esboçou um sorriso.
— Você sempre consegue o que quer?
— Quase sempre. E então?
— Tudo bem... Vou usar seu carro.
— Ótimo! — ele exclamou com tanta satisfação, que Roberta não
pôde deixar de rir.
— Você está me acostumando mal...
— É justamente o que eu quero. Vou lavar os pratos e depois
iremos dar um passeio.
Resolveram dar um passeio pelo Parque do Riacho do Pescador.
O parque, que limitava o lado sudeste da cidade, englobava centenas de
acres de terra. Era magnificamente bem situado, especialmente o lado
oeste, que terminava na reserva dos índios sarcee.
Bosques de pinheiros e choupos, entremeados de carvalhos de
ramos nodosos, cobriam o vale pitoresco. De mãos dadas, eles
caminharam ao longo do borbulhante riacho de águas claras que corria
por entre as árvores copadas. Os raios do sol refletiam-se no contínuo
enovelar-se de água provocado pela brisa que trazia um odor fresco de
resina de pinho.
Bandos de pássaros fugiam em revoada, enquanto eles
atravessavam um bosque de bétulas novas que vergavam seus ramos
flexíveis e delicados até o chão. Transpuseram uma pequena ponte de
madeira e atingiram a outra margem do rio.
Ali o vale ampliava-se, transformando-se num prado verdejante,
cheio de chorões e roseiras selvagens. Castores nadavam nos açudes
formados pelo riacho que se alargava de quando em quando.
Mais adiante, dois meninos pescavam, sentados à margem das
águas cristalinas. Roberta lançou um olhar risonho a Paul.
— Não sente cócegas na mão?
— Será que eles me emprestariam a vara?
Nesse instante, um dos meninos começou a gritar. Em seguida,
mostrou a bota presa à terra lodosa da margem.
— É melhor que eu vá auxiliá-lo, antes que ele se atole mais na
lama — comentou Paul.
— Faça isso, meu Cavalheiro da Távola Redonda.
A brisa morna acariciava-lhe o rosto, enquanto Roberta o
observava seguir a margem do rio, erguer o garoto e levá-lo para terra
firme. Quase perdendo o equilíbrio, ele retirou as botas da lama e
ajudou o menino a calçá-las. Então, pegou a vara de pesca, afastando-
se à procura de um bom lugar para arremessar a linha.
Os dois meninos o seguiram, e seu modo fácil e natural de tratá-
los revelou uma nova faceta de sua personalidade que
Roberta ainda desconhecia. Ela quase riu quando, com um
arremesso hábil, a linha mergulhou na água. "Esse incrível charme
funciona com todo o mundo", pensou.
Depois de alguns momentos, Paul deixou os garotos pescando e
aproximou-se dela com um sorriso nos lábios.
— Agora que você já deu um jeito em tudo, como está se
sentindo? — perguntou ela, sorridente.
— Muito bem! Vamos andando, amor?
— Não se atreva a me dizer que quer me levar para casa! Ele riu.
— É tarde. Você precisa descansar um pouco, antes de pegar o
plantão da meia-noite.
Enquanto seguiam uma pequena trilha em campo aberto, Paul
disse:
— Fui convidado para um churrasco no domingo. Gostaria que
você fosse comigo, mas será que esse plantão noturno vai permitir?
— Darei um jeito de voltar mais cedo para casa. Terei tempo de
dormir algumas horas. — Depois acrescentou, com malícia: — Conheço
você, Paul! Quer me levar ao churrasco para não ter de fazer o jantar.
— Hum, você me deu uma boa idéia! Com a desculpa de seu
plantão, poderemos chegar mais tarde à reunião e sairmos logo em
seguida.
— Parece que não está com muita vontade de ir.
— Não estou mesmo. Sei que vai ser aborrecido, mas sou
obrigado a comparecer. Keith e eu fomos colegas de faculdade por um
certo período. Depois ele tomou um rumo diferente do meu. Mas éramos
bons amigos. Ele e a família mudaram-se para cá faz alguns meses.
Amanhã será a inauguração da nova casa deles.
Ela o olhou intrigada.
— Se são tão amigos, por que não está com vontade de ir a casa
dele?
— Keith e a mulher não se dão bem.
— Que pena...
Paul aconchegou-a mais.
— Quero que saiba que a amo, Roberta.
Aquelas palavras foram ditas com tamanha ternura, que os
olhos dela encheram-se de lágrimas.
— Eu sei.
O ruído monótono do limpador de pára-brisas era o único som
que rompia o estranho silêncio que pesava no ar.
Roberta recostou-se no banco dianteiro do Jaguar e fechou os
olhos. A reunião na casa dos Dennison tinha sido uma provação do
começo ao fim.
Acontecera num daqueles dias em que nada dava certo. Para
começar, Paul atrasou-se. Fora chamado para uma cirurgia de
emergência e, devido à inexperiência de um dos internos, a operação
não transcorrera satisfatoriamente. Em conseqüência disso, ele estava
de mau humor quando chegou para apanhá-la e parecia que
continuaria assim pelo resto da vida.
Para tornar as coisas piores, a casa dos Dennison ficava numa
zona residencial exclusiva, localizada numa área isolada, distante
quarenta quilômetros da cidade. Absorto durante o percurso, Paul
passou reto pelo desvio que devia tomar.
Desse modo, foram os últimos a chegar e a dona da casa, Nicole,
não se mostrou compreensiva. Não disse nada, mas o ar de impaciência
com que os recebeu expressava claramente seu aborrecimento. Roberta,
que já não gostava de reuniões sociais, ficou constrangida.
Os convidados formavam estranhos grupos. Alguns eram colegas
de Keith, outros membros de um clube de campo exclusivo ao qual os
Dennison pertenciam, e havia ainda uns poucos vizinhos. Mas nenhum
laço unia aquelas pessoas. Todos permaneciam encerrados em seu
próprio círculo, parecendo sentir-se ameaçados pela presença de
estranhos.
Talvez a situação pudesse ter sido contornada se não houvesse
chovido, forçando todo mundo a ficar no interior da casa. Os grupos
olharam-se com desconfiança mútua, criando uma atmosfera pesada.
Todos falavam alto demais, bebiam além da conta, entregavam-se a
gargalhadas incontroláveis.
Roberta não via a hora de voltar para casa, principalmente
porque os modos secos de Paul não ajudavam a diminuir a tensão
reinante. Ele ainda estava aborrecido com o que acontecera no hospital,
mas seu mau humor era devido, em boa parte, ao comportamento rude
de Keith.
O anfitrião estava bêbado e alguns de seus comentários,
sobretudo os dirigidos à esposa, foram bastante ofensivos. Se Nicole não
tivesse frisado que o jantar atrasara-se por causa deles, Roberta teria
sugerido a Paul que deixassem a reunião naquele mesmo instante.
Tinha a desagradável impressão de que a situação iria culminar numa
cena desagradável.
Infelizmente, seus receios se confirmaram. E, para cúmulo do
azar, a cena começou por sua causa.
Os convidados estavam se servindo no rico bufê armado junto às
amplas janelas do living. Um dos garçons encarregados dos vinhos
estendeu uma taça de champanhe a Roberta que, gentilmente, recusou.
Por algum tolo motivo, sua atitude incomodou uma das senhoras
presentes, que fez um comentário maldoso.
Por educação, ela deixou passar a indelicadeza. Mas Paul
revoltou-se. Com o mesmo gélido desdém que usava para intimidar sua
equipe, disse:
— Roberta é uma cirurgia competente. Ela estará de plantão
hoje à noite. Seu senso de responsabilidade não lhe permite beber.
Um silêncio constrangedor caiu sobre a sala. Depois de alguns
minutos de tensão intolerável, alguém iniciou uma conversa, mas as
vozes tinham baixado consideravelmente de tom. Keith, depois de se
desculpar com Roberta, abordou a esposa e um terrível bate-boca
irrompeu entre o casal.
— Sua esnobe mesquinha! — gritou ele, no auge da exaltação. —
Se não tivesse engravidado de propósito, eu jamais teria casado com
você.
No mesmo instante, armou-se uma briga terrível. Os convidados
fingiam não ouvir, mas cada palavra insultuosa era claramente
pronunciada. Um horror!
Lembrando-se disso tudo, Roberta enrolou o xale em volta dos
ombros, acomodando-se melhor no assento do carro.
— Está com frio? — perguntou Paul.
— Não, estou bem.
— Sinto muito... Detesto essas cenas familiares horrorosas. Elas
me, deixam um gosto amargo na boca. Sinto-me culpado por ter
envolvido você nessa confusão.
Uma expressão de mágoa estampava-se no rosto dele. Talvez
estivesse relembrando cenas semelhantes que ocorreram com seus pais.
Se para ela a reunião fora desagradável, para Paul devia ter sido ainda
pior.
— Quer falar a respeito, ou prefere esquecer o assunto, Paul?
— Não há muito que falar. É apenas mais um casamento
arruinado.
— É verdade o que Keith disse sobre a gravidez da mulher?
— Eles moraram juntos durante três anos, antes de se casarem.
Ambos pareciam realmente felizes nessa época. Uma vez casados, as
coisas mudaram.
— A gravidez foi mesmo proposital?
— Ele diz que sim, ela nega. — Paul encolheu os ombros. — Mas
isso é irrelevante. Quando o bebê nasceu, Nicole deixou o emprego e
eles passaram por dificuldades. Keith ainda estava cursando a
faculdade e o relacionamento tornou-se um pesadelo.
— Você acredita que teria sido diferente, se não existisse o
bebê... ou o próprio casamento?
— Sim, acredito. É preciso encarar os fatos. Os casamentos de
antigamente duravam porque os papéis do homem e da mulher estavam
bem definidos. Mas os tempos são outros e tudo mudou.
Havia certa verdade nisso, ela admitiu. Dentre as mulheres da
geração de sua mãe, poucas seguiam uma carreira. A maior parte ficava
em casa para cuidar do lar e dos filhos.
Mas não aceitava a idéia de que todos os casamentos estivessem
fadados à destruição. Queria discutir o assunto com ele, convencê-lo de
que estava enganado. No entanto, sabia que seria tempo perdido.
Nutrira uma secreta esperança de que, com o tempo, pudesse mudar a
opinião de Paul. Depois da cena desta noite, admitia que jamais
conseguiria.
Ele fora franco, mas, após os acontecimentos daquela tarde, ela
não se atrevia a lhe expor com igual franqueza seus sentimentos.
Desejava um lar, uma família. Se lhe dissesse isso, porém, Paul se
afastaria, e ela o amava demais para correr esse risco. Ele teria de
aprender a confiar nela e talvez um dia...
— Roberta, olhe para mim.
Simulando uma calma que não sentia, ela o encarou. Seus
expressivos olhos escuros transbordavam de amor.
— Não se deixe afetar pelo comportamento dos Dennison. Isso
não vai acontecer conosco. Você é importante demais para mim.
Ela percebeu que aquela era a última chance que tinha de se
abrir, de lhe confessar seus mais íntimos desejos. Mas não conseguiu
encontrar as palavras adequadas. Sabia o que ele pretendia: morar com
ela, amá-la, cuidar dela. Porém, definitivamente, não queria ouvir falar
de casamento.
Tinha consciência de estar passando por cima de seus valores,
mas esse preço era pequeno pelo amor do homem que amava.
Sufocando a vontade de gritar, inclinou-se para ele e o beijou
ternamente na boca. Depois, com um trêmulo suspiro, murmurou
suavemente:
— Vamos para casa, Paul.


Capítulo VI

Houve significativa mudança no relacionamento dos dois, a


partir daquela noite chuvosa. Atônita, Roberta percebeu que a causa do
estranho comporta-mento de Paul era ela mesma.
Ao voltarem da casa dos Dennison, ele presumira que o motivo
de sua introspecção fosse o incidente ocorrido entre Keith e Nicole. Mas
não era verdade. A razão de seu mutismo fora à aguda e inesperada
descoberta de que devia tomar a decisão mais difícil de sua vida.
Paul a acompanhara até o apartamento e isso fora um grande
erro. Estranhamente desolada, ela sentira a desesperada necessidade
da segurança e do calor do seu contato físico. O beijo que trocaram
transformara-se rapidamente numa sessão de carícias delirantes que
quase a fizera sucumbir.
Desde então, Paul pareceu afastar-se, como se quisesse evitar
qualquer contato íntimo com ela. Estava tenso e retraído, como uma
pantera enjaulada obrigada a reprimir seu vigor.
Roberta inquietava-se com o rumo dos acontecimentos. Dúvidas
e questões sem respostas povoavam sua mente de fantasmas, e não
apenas devido aos seus padrões morais. Sempre almejara ter um lar,
uma família. Não podia imaginar o futuro sem filhos, e tampouco que
estes tivessem outro pai que não Paul.
À medida que os dias passavam, sua depressão aumentava.
Sabia que precisava escapar daquela atmosfera sufocante que
ameaçava esmagá-los, mas temia dar um passo em falso. Chegou ao
ponto de se convencer de que Paul não a amava mais. E teria
continuado a pensar assim se não fosse pelos acontecimentos do dia de
seu aniversário.
Esse dia ameaçou ser um desastre desde as primeiras horas da
manhã, quando ela acordou com um humor impossível. Como se isso
não bastasse, foi designada para o plantão da tarde na Emergência, o
que significava que suas chances de ver Paul eram praticamente nulas.
Bernie, o único que sabia que era seu aniversário, estava em
Vancouver com Lisa Gordon e só chegaria no dia seguinte. O que, de
certo modo, era um alívio. Afinal, ela não estava com vontade de
comemorar uma data que, naquelas circunstâncias, não lhe
proporcionaria nenhuma alegria.
Mesmo deprimida, esforçou-se para atender os casos da
Emergência de cabeça fria. Eram quase oito horas quando uma leve
sensação de mal-estar voltou a incomodá-la. Resolveu tirar uma folga e
jantar. Porém, ao se dirigir para a cantina, uma enfermeira a abordou,
dizendo:
— Telefone, Dra. Mitchell.
Roberta foi até a mesa da recepção e atendeu. Era Paul que, pelo
tom de voz, parecia cansado.
— Roberta, você pode sair por alguns minutos?
Ela lançou um olhar à enfermeira que estava próxima e
respondeu formalmente.
— Sim, posso.
— Quer passar pelo consultório?
— Claro, doutor.
Houve um silêncio e então ele voltou a falar:
— Há alguém por perto?
— Exatamente. Já vou indo.
Pouco depois encontrou Paul de pé, junto à janela, numa
posição rígida, que demonstrava tensão.
—Oi — disse ela, ao entrar.
Ele se voltou. Parecia exausto, a julgar pelas linhas que lhe
vincavam o rosto.
— Eu devia estar muito zangado com você, sabe? — a voz dele
era grave, mas havia um brilho malicioso em seu olhar.
— Por quê?
— Hoje não é o dia de seu aniversário?
Ela fez uma careta divertida e soltou um suspiro.
— Eu esperava que passasse despercebido.
Paul sorriu ternamente e, aproximando-se, beijou-a de leve na
boca. Roberta quis aconchegar-se nele, desejando que a apertasse
contra si, mas ele se afastou rapidamente em direção à mesa, de onde
tirou um embrulho envolto em papel laminado. Entregando-lhe, disse:
— Feliz aniversário, amor.
Emocionada, ela fitou o rosto sério de Paul e então começou a
desatar as fitas. Nada poderia lhe causar tanto prazer quanto o que
experimentou ao afastar as folhas de papel de seda que envolviam o
presente. No interior da caixa estava a mais linda boneca que já vira
com um cartão:
"O nome dela é Annie. Ela é filha de outra Annie, que estou certo,
você deve lembrar. Espero que a ame.
Com todo carinho, Paul".

Quando o colarzinho de prata da boneca cintilou sob as luzes,


Roberta o tocou automaticamente. Seu coração quase parou de bater:
suspensa à corrente, reconheceu a conta azul de Amanda. Ele não
esquecera e por algum motivo inexplicável, uma razão sentimental
talvez, a conservara!
Sufocando um soluço, ela ergueu a cabeça e encontrou os olhos
de Paul. Os músculos do rosto dele estavam tão contraídos que
pareciam esculpidos em pedra. Mas seu olhar traduzia amor e um
desejo intenso, que a comoveu.
Entendeu toda a verdade num relance: o motivo de seu
afastamento, de sua incompreensível reserva. Ele chegara ao limite
extremo da resistência. Desejava-a tanto que não confiava em si
mesmo! Estava tudo explicado.
Teve vontade de se atirar nos braços dele, mas se sentia
intimidada. Por fim, com a voz embargada pela emoção, murmurou:
— É tão linda, Paul. É tão especial!
Ele deu passo em sua direção, mas justamente nesse instante o
telefone tocou. Por um momento interminável, Roberta acreditou que
ele não fosse atender. Mas o senso do dever foi mais forte.
Enquanto Paul falava ao telefone, a mente dela girava em
turbilhão, presa de emoções que a arrebatavam.
— Emergência — anunciou ele, ao recolocar o fone no gancho. —
A ambulância está chegando com um paciente do interior.
— Sei do que se trata. É um caso crítico. Preciso ir, Paul. Ele
pegou sua mão e disse com voz suplicante:
— Temos muito que conversar, querida.
— É verdade.
— Amanhã, quando terminar seu plantão, certo?
— Tudo bem. Eu o amo, Paul. — Ele esboçou um gesto.
— Roberta... — Deixou cair o braço e um momento depois seu
rosto transformou-se numa máscara impenetrável. — É melhor você ir
logo.

No dia seguinte, Roberta acordou levemente indisposta devido à


noite mal dormida. Insone, revirava-se na cama até a madrugada
quando, finalmente, chegara a um acordo consigo mesma. Então, o
peso que lhe oprimia o peito fora lentamente diminuindo, e seus
músculos começaram a relaxar.
Não podia negar que as diferenças que a separavam de Paul
ainda existiam, mas agora as encarava sob novo ângulo. Ficara
realmente preocupada ao constatar a angústia dele e não queria que ele
continuasse a sofrer.
Em outras palavras, ainda sonhava em constituir família e
estava firmemente convencida do próprio ponto de vista sobre
casamento. Mas entendia que precisava dar tempo a Paul. Quando ele
percebesse que ela não era uma frustrada como Nicole Dennison ou
como a mãe dele, mudaria de opinião. Tudo que ele precisava era de
tempo. E isto tinha de sobra para lhe dar.
Depois de uma profunda auto-analise, tomou uma decisão.
Certa ou errada, não haveria retorno. Iria ao encontro de Paul, que
precisava dela e a queria junto de si.
À medida que a manhã avançava, no entanto, começou a ficar
preocupada. Parou diante do sofá da sala e olhou a boneca com ar
absorto. Seu rosto suavizou-se, iluminado por um doce sorriso. Uma
maravilhosa sensação de bem-estar a invadiu.
Não gostaria de dar a Paul nenhum motivo para duvidar de seus
sentimentos. Os últimos dias tinham sido uma dura provação para
ambos. Ele devia ter sofrido tanto quanto ela.
Sabia que não haveria muita conversa, quando ficassem a sós.
Suas emoções tinham chegado a tal ponto que seria impossível reprimi-
las.
Queria que ele soubesse de sua decisão, antes que se
encontrassem. Era essencial. Mas como fazer? De repente, um sorriso
formou-se em seus lábios: havia encontrado a maneira certa.
Sete horas, anunciava o relógio da parede da recepção da
Emergência. Roberta sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.
Aquelas horas finais de plantão seriam as mais longas de sua vida. O
que pensaria Paul, quando chegasse em casa e visse Annie no sofá de
sua sala, com um bilhete preso ao vestido? Iria telefonar?
Às oito horas, sua ânsia incontida deu lugar ao desespero. Paul
não iria telefonar!
— O que há Rob? Parece que você viu um fantasma!
Era Bernie quem falava, debruçado no balcão da recepção,
olhando-a fixamente por meio das lentes espessas.
— Que está fazendo aqui? Pensei que estivesse de folga —
estranhou ela.
— Estava... mas recebi um telefonema de alguém interessado em
saber se eu poderia substituí-la no plantão. — Os olhos de Bernie
demonstravam preocupação. — Você está doente?
— Não — ela respondeu com voz sumida.
— Hum... — ele cocou o queixo. — Tenho um recado para você.
Annie... quem é essa Annie, Rob?
Uma grande onda de calor a envolveu.
— Diga logo, Bernie. Qual é o recado?
— Paul recebeu a mensagem e manda dizer que Annie será
recebida de braços abertos. Ele queria mandar o recado mais cedo, mas
chegou em casa depois das sete.
— Não se importa de terminar o plantão para mim, Bernie? Ele a
fitou com calma estudada.
— Parece que você tomou uma decisão muito importante, não?
— Não sei do que está falando.
— Ora, você não vai querer enganar seu velho amigo, vai?
Roberta passou por sua casa para apanhar alguns objetos de
uso pessoal e então se dirigiu ao apartamento de Paul.
À medida que corria ao encontro dele, sua ansiedade
aumentava. Agarrou o volante com força, dominada por sentimentos
conflitantes: passava da mais excitante euforia a um nervosismo que
beirava a angústia.
Mas, enquanto subia pelo elevador, todas as emoções se
fundiram numa só: a deliciosa antecipação que fazia seu coração quase
explodir de alegria. Suas mãos tremiam ao procurar a chave do
apartamento entre as que Paul lhe dera junto com a do Bronco.
Ficou parada diante da porta por um longo momento, sentindo
um arrepio percorrer-lhe a espinha à idéia de que iriam fazer amor. Por
fim, deu um passo à frente e entrou.
Do saguão, viu Paul recostado no sofá, às mãos cruzadas sob a
nuca, a camisa aberta no peito. Parecia tão vulnerável sentado ali,
sozinho, à suave luz do abajur!
Sentindo-lhe a presença, Paul voltou-se e fitou-a. Roberta soltou
um suspiro. Os olhos dele ardiam de paixão e não deixaram os seus,
hipnotizando-a com sua negra magia, enquanto ela ia vagarosamente a
seu encontro.
Quando se curvou para beijá-lo, seus cabelos caíram para frente
e Paul mergulhou os dedos neles, ao mesmo tempo em que a beijava de
modo quente e suave, delicado e terno, mas tremendamente dominante.
— Eu temia que você não viesse.
Roberta compreendeu instintivamente que, se experimentasse
outra vez o calor daquele corpo másculo e vigoroso de encontro ao seu,
seria dominada pela onda de desejo que já lhe percorria as veias.
Passado o momento de paixão, Paul se odiaria por tê-la feito sua ainda
despreparada.
Por ele, unicamente, por ele, teve a força de resistir. Tomou-lhe o
rosto entre as mãos, beijou-o mais uma vez e, com uma explicação
sussurrada a seu ouvido, desvencilhou-se.
Paul deixou cair os braços ao longo do corpo e contraiu os
maxilares. Um sentimento de culpa surgiu dentro dela, ao perceber-lhe
a expressão atormentada. Mas ela teve ânimo para pegar a bolsa e
encaminhar-se para o quarto.
Quando voltou, encontrou-o na sacada, exatamente como ela
desejava. Apoiado à balaustrada de mármore, ele olhava a cidade que se
estendia a seus pés. Os ombros largos, o dorso forte em silhueta contra
a claridade do céu.
Emocionada, contemplou seu perfil de traços marcantes. “Como
o amava”!
Paul permanecia imóvel como uma estátua, os olhos perdidos
num ponto distante do horizonte. Mas havia um magnetismo a envolvê-
lo, um vigor refreado que, ela sabia, terminaria numa explosão primitiva
e selvagem.
Sentindo-se observado, ele se voltou. Roberta estava junto à
porta da sacada. Os cabelos negros emolduravam-lhe o rosto pálido e a
brisa noturna agitava-lhe o negligé de chiffon transparente. A luz suave
que vinha da sala envolvia-a num halo dourado, revelando-lhe as
formas perfeitas.
Por um longo momento, ele examinou deslumbrado, cada
detalhe de seu corpo: os seios altos e cheios, a cintura fina, os quadris
bem-feitos.
Avançou alguns passos e, quando estavam bem próximos, pôs-
se a acariciar-lhe os ombros nus com voluptuosa lentidão. Ela fechou
os olhos e jogou a cabeça para trás, os seios arfando docemente, como
que perdida na mesma tensão sensual que lhe fazia vibrar os nervos.
Seu coração batia desordenadamente, respondendo aos toques
leves como seda em sua pele febril. Uma onda de calor lhe percorria o
corpo e sua respiração tornou-se ofegante.
Ele murmurou-lhe o nome, enquanto a erguia nos braços e a
carregava para o interior do quarto. Depositou-a sobre a cama e voltou
a fitá-la. Ela sentiu a atração daqueles olhos que ardiam de paixão e
sussurrou ternamente:
— Paul... meu amor!
Com delicadeza, acariciou-lhe o peito coberto de pêlos, fazendo
correr os dedos pela cintura de seu short. Ouviu-o suspirar, quando o
tocou.
— Roberta... Ainda não, amor.
Sem lhe fazer caso, ela abriu o zíper do short, fazendo-o cair ao
chão. Sentiu-o estremecer, enquanto continuava a despi-lo.
Tomado de incontrolável tremor, Paul abraçou-a com força, e ela
se dobrou ao furor do beijo que se seguiu. Sua boca roçou-lhe a pele
macia e delicada, despertando desejos e prazeres que, sem ele, teriam
permanecido adormecidos para sempre.
O desejo tornou-se uma obsessão ao sentir-lhe a virilidade de
encontro ao corpo. Daquela vez, não haveria retorno...
O tênue negligé era a única barreira que os separava. Paul
desatou o laço que o prendia e a seda escorregou docemente pelo corpo
de Roberta. Com impaciência febril, acomodou-a na cama e afastou-se,
para admirar-lhe a nudez.
— Esperei tanto por você...
E se deixou cair ao lado dela, abraçando-a estreitamente e
prendendo-lhe a boca num beijo. Depois, com lábios ávidos desceu ao
longo de seu corpo, na ânsia de buscar pontos sensíveis que ela
ignorava, fazendo-os vibrar com suas tórridas carícias.
Quando percebeu que ela estava no auge da excitação, Paul
acomodou-a sob seu corpo viril, possuindo-a. Corpos colados, ela
sentiu, deliciada, um mundo de emoções explodir dentro de si.
Com um gemido abafado, experimentou sucessivas ondas de
prazer que lhe aliviavam a quase insuportável tensão. Sua febre
contagiou Paul, provocando-lhe um violento tremor, até que, exausto,
ele descansou a cabeça em seu ombro.
A luz do luar banhava seus corpos nus, enquanto um doce
torpor os envolvia, mergulhando-os numa serenidade impregnada de
alegria. Paul tomou-lhe o rosto entre as mãos e ela o fitou, com olhos
azuis cintilantes de emoção.
— Não está arrependida, Roberta?
— De jeito nenhum. Vou para onde você quiser me levar —
sussurrou ela, o rosto afogueado.
— Com você eu me sinto completo. Nunca me senti assim, antes.
Rolando na cama, estendeu o braço para o maço de cigarros que
estava na mesinha-de-cabeceira e acendeu um para si e outro para ela.
— Pobre Bernie! Deve estar louco, imaginando o que está
acontecendo — Roberta murmurou, dando uma tragada.
— Se ele tiver a metade da inteligência que eu lhe atribuo já deve
ter percebido tudo.
— Será?
— Você duvida? Sabe, gostei muito do recado de Annie. Não
queria acreditar em meus olhos, quando a encontrei sentada no sofá da
sala.
Roberta sorriu, levemente intimidada. Paul a olhava com ar
intrigado, à espera de uma explicação.
— Cheguei a pensar que havia cometido uma infantilidade.
— Nada poderia ter me proporcionado tanta alegria. Acredite!
— Queria que você tomasse conhecimento de minha decisão,
antes de nos encontrarmos.
Ele a olhou profundamente emocionado.
— Eu pretendia que essa noite fosse especial. Com flores,
champanhe e tudo mais... Mas, quando você chegou, não pude resistir.
— Foi especial, Paul. Muito especial, mesmo. Não poderia ser
mais perfeita.
— Gostaria de ter lhe proporcionado... mais prazer — sussurrou
ele ao seu ouvido.
Roberta fechou os olhos saboreando o contato do corpo forte e
viril, e a preocupação que ele demonstrava.
— Paul, meu amor, acho que... me falta prática.
Ele jogou a cabeça para trás, com uma sonora gargalhada.
— Não acho que você precise praticar muito, mas queria que
sua... iniciação tivesse acontecido num ambiente mais apropriado.
— Aqui não é o ambiente apropriado?
— Eu tinha planejado algo diferente.
— Diferente, como?
— Queria levá-la a Banff para um romântico fim de semana.
Vinho, rosas, jantar à luz de velas... Mas minhas boas intenções foram
por terra no instante em que você me beijou.
— Seria maravilhoso, mas eu não poderia acompanhá-lo. Tenho
plantão.
Paul mergulhou o rosto nos cabelos dela.
— Não vou mudar meus planos, nem irei sozinho. Um lindo
pássaro de plumagem negra irá comigo.
— Como?
— Tive o cuidado de mudar seu horário, amor. Você terá o fim de
semana livre!
— Não!
— Sim!
— Paul, explique-me como conseguiu justificar essa mudança de
plantão.
— Muito fácil. — Ele fez uma pausa dramática. — Aleguei que
tinha duas cirurgias longas e complicadas e queria que você e Bernie
fossem meus assistentes.
— Sério?
Ele beijou seus lábios com sensual ternura e murmurou-lhe ao
ouvido:
— Mas a razão mais importante é que eu quero passar mais
tempo com você.
O beijo que trocaram foi à antecipação de um novo ato de amor.
Num silêncio impregnado de paixão, seus desejos vibravam em
harmonia, fundindo-se no calor do êxtase.

O fim de semana foi perfeito: tempo bonito, cenário espetacular,


noites de amor repassadas de ternura e voluptuosa paixão.
Conversaram, riram, conheceram-se melhor, usufruíram uma deliciosa
liberdade, fazendo o que gostavam e indo aonde queriam, sem medo de
se exporem. Permaneceram deliberadamente afastados dos outros
turistas e escolheram lugares desertos para vaguearem a esmo. Essa foi
à única precaução que tomaram.
Roberta descobriu que nada lhe proporcionava tanta alegria
quanto à proximidade física de Paul. Talvez fosse antiquada, mas seus
cuidados faziam-na sentir-se frágil e feminina.
Paul tinha milhares de modos de lhe dizer, sem palavras, o
quanto ela significava para ele: o jeito encantador como lhe arrumava os
cabelos que o vento desmanchava, o cuidado com que a conduzia pelas
trilhas ásperas das montanhas, o modo como a olhava quando lhe
tomava as mãos...
Algumas vezes, acontecia de ela acordar no meio da noite e
encontrar-se segura em seus braços. Voltava então a dormir, tranqüila
e descansada.
Sentia-se querida e amada e desabrochava sob seus carinhos
como uma flor aos raios do sol. A cada instante que passavam juntos,
seu amor por ele tornava-se mais profundo e mais forte. E Roberta
saboreava-os todos.
Quando, porém, voltaram ao apartamento de Paul, aquela
euforia evaporou como por encanto e a fria realidade golpeou-a com a
força de uma chicotada. Estava morando na casa de Paul, era sua
amante!
Essa constatação mergulhou-a numa inesperada angústia.
Questões perturbadoras envolvendo a situação afloraram-lhe à mente,
fazendo-a sentir-se como uma criança ignorante e simplória. Qual era,
exatamente, seu papel? E o que ele esperava dela?
Devia tratá-lo como amigo ou como marido? Devia assumir a
responsabilidade de tomar conta da casa, ou deviam dividir as
despesas? Podia simplesmente usar o que era dele, ou devia pedir
permissão?
Costumava telefonar a seus pais todos os domingos e ali estava
ela, na cozinha "dele", fazendo o café "dele", sentindo-se sem jeito de
usar o telefone "dele"...
— Quer comer alguma coisa, Roberta?
A pergunta, feita num tom de voz natural, espantou-a. De
maneira estranha e distante, ela balbuciou:
— Ah... não. Obrigada.
Depois, criando coragem, respirou fundo e pediu:
— Posso usar seu telefone?
Paul lançou-lhe um olhar atônito e fez um gesto vago,
mostrando o aparelho da copa.
— Se quiser ficar mais à vontade, há uma extensão no quarto.
Pegando uma laranja da fruteira, começou a descascá-la,
observando-a discar o número. Ao ouvi-la pedir o auxílio da telefonista,
perguntou:
— Está querendo algum serviço especial?
— Gostaria de debitar esse chamado na minha conta...
Não chegou a terminar a frase, pois a mão de Paul abateu-se
sobre o aparelho, interrompendo a comunicação.
— O que está pretendendo? — perguntou-lhe com voz rude.
— Estava telefonando para casa...
— Isso eu entendi. Mas por que debitar o chamado em sua
conta?
Ele a olhava com tal expressão de desagrado, que a deixou
nervosa. Como explicar-lhe suas dúvidas sem fazer o papel de idiota?
— Roberta, o que significa isso?
Ela engoliu em seco, baixando os olhos.
— Nunca vivi junto com outra pessoa antes e desconheço as
regras do jogo.
Paul a fitou, os maxilares contraídos. Por um momento, Roberta
pensou que ele fosse explodir. Mas, aos poucos, sua expressão voltou a
suavizar-se.
— Não há nenhuma regra, amor. Esse é o nosso lar. Pelo menos,
até que eu possa providenciar algo melhor. Se lhe agradar, pode pintar
as paredes de amarelo, de vermelho, de qualquer cor. A única coisa que
importa é que você está a meu lado.
Apertou-a de encontro ao peito e beijou-lhe ternamente os
lábios.
— Agora, use o telefone à vontade.
Roberta suspirou fundo e, antes de fazer a chamada, consultou
o relógio. Paul resmungou exasperado, retirou-lhe o relógio do pulso e o
guardou no bolso. Ela sorriu, voltando a atenção à ligação que acabava
de se completar.
— Alô? Oi, papai! Como vai? — Percebeu a hesitação do pai e
identificou-se. — É Bimmy, papai.
— Bimmy?
Não teve idéia de quanto tempo ficou no aparelho, mas foi
suficiente para tomar a xícara de café e fumar o cigarro que Paul lhe
ofereceu.
Quando terminou, recolocou o fone no gancho com um suspiro
de satisfação. Era tão bom ouvir aquelas vozes queridas...
— Bimmy? — estranhou Paul. — Que apelido é esse?
— Quando minhas irmãs eram pequenas, não conseguiam
pronunciar. Roberta e começaram a me chamar de Bimmy.
Ele enlaçou-a pela cintura.
— Bimmy... Esse apelido combina com você.
— Acha mesmo? Parece um apelido de menina.
— De certa menina... — murmurou ele com voz sensual,
beijando-a com ternura.
Trêmula de desejo, Roberta correspondeu à doçura de seus
lábios que ainda guardavam o sabor da laranja. Aos poucos, os beijos
tornaram-se mais ávidos e ela desejou mergulhar novamente na
voluptuosa vertigem em que ele a iniciara.
O ruído estridente da campainha da porta ecoou pelo
apartamento silencioso e a única demonstração que Paul deu de ter
ouvido foi um inesperado sobressalto. Quando voltaram a tocar, ele
resmungou, frustrado:
— Droga! Por que será que não me deixam em paz? Ela riu.
— Cuidado com a pressão! Vá abrir a porta.
Ainda agitada, dirigiu-se para a sala e sentou-se no sofá, à
espera dele. Percebeu a porta abrir-se e depois fechar-se. Após um
momento de silêncio, ouviu o riso de Paul, que logo entrou na sala,
estendendo-lhe um papel.
— Esse telegrama foi enviado na sexta-feira à noite. Leia! Ela o
desdobrou e leu:
"Aos Drs. Mitchell e Wilcox: Gostei do novo horário. Espero que
seus seminários de fim de semana tenham sido um sucesso. Esperando
uma futura sociedade. Dr. Bernard Winston Radcliffe III"
Roberta teve de ler duas vezes para entender direito. Então ficou
vermelha e olhou para Paul. Ele a observava com um brilho no olhar
que a deixou mais corada ainda.
— Aquele pilantra! Gostaria de estrangulá-lo! — exclamou ela.
— Em vez disso, convide-o para jantar.
— Que está insinuando? Que minha comida é capaz de
envenená-lo?
Paul fez cara de inocente e ela, sorrindo, introduziu a mão por
dentro de sua camisa, fazendo-lhe cócegas. A reação dele foi
instantânea. Agarrou-lhe o pulso, segurando-o com firmeza.
— Homens de verdade não são sensíveis — observou ela.
— Homens de verdade podem ser o que quiserem — afirmou ele
com um sorriso. — Ah, Roberta, como eu poderia viver sem você?
O riso dela morreu-lhe na garganta, quando percebeu a ardente
paixão com que aqueles olhos negros a fitavam. Colou-se a ele e
ofereceu-lhe os lábios entreabertos e convidativos.
Mergulharam num êxtase tempestuoso e, subitamente, nada
mais existiu no mundo, a não ser aquela emoção, aquela força de vida.


Capítulo VII

Depois de duas semanas que se mudara para a casa de Paul, a


felicidade de Roberta continuava a crescer a cada, dia que passava.
Agora, em sua primeira folga desde o fim de semana em Banff, cenário
de sua lua-de-mel, ela queria aproveitar o tempo para pôr o
apartamento em ordem.
Desceu para apanhar a correspondência e, ao voltar, abriu com
uma certa surpresa a carta que lhe era endereçada. A surpresa
transformou-se em aborrecimento quando leu a mensagem. Aquilo não
era possível! Obviamente, algum funcionário do banco cometera um
engano! Com um brusco sacudir de cabeça, verificou mais uma vez a
data e o número da conta. Que teria acontecido? Sabia que ainda
faltavam algumas centenas de dólares para saldar o crédito escolar de
que se beneficiara para cursar a faculdade, mas aquela carta afirmava
que sua dívida fora totalmente paga.
Exasperada, foi à copa e pegou o fone, disposta a perder a tarde,
se necessário fosse, para resolver o mistério. Depois de vários
telefonemas, ainda continuava na mesma: os funcionários do banco
confirmavam que a dívida tinha sido paga.
Evidentemente havia um engano, mas como resolver a questão,
se todos insistiam em dizer a mesma coisa? Bem, talvez Paul pudesse
orientá-la sobre o que fazer.
Ficou repetindo consigo mesma: talvez Paul... talvez Paul! Então
gelou. Acendendo um cigarro encostou-se na porta da cozinha. Claro
que tinha sido Paul! Só podia ser ele.
O que ele estaria pretendendo se não permitia que ela
participasse das despesas da casa e ao mesmo tempo saldava-lhe a
dívida com o banco? Sentiu a cólera crescer dentro de si. Ele era um
teimoso! Recusava-se a entender seu ponto de vista e não queria ouvir
nenhuma razão válida.
Quando Paul chegou, recebeu-o de cenho franzido, disposta a
ouvir uma explicação. Mas, ao vê-lo, sua fúria abrandou-se.
Ele estava com o paletó jogado sobre os ombros, a gravata
afrouxada e a camisa branca desabotoada. O vento lhe desmanchara os
cabelos e os óculos escuros davam um toque de mistério à sua atraente
figura.
— Como está quente aqui dentro! — exclamou, fechando a porta
da cozinha.
"Vai ficar ainda mais", pensou ela. Paul colocou o paletó na
mesinha do saguão e tirou os óculos. Lançando-lhe um olhar
penetrante, perguntou:
— Algo errado?
Ela ia falar, mas, ao notar as linhas de cansaço que lhe
marcavam a testa, resolveu adiar a conversa.
— O jantar ficará pronto dentro de vinte minutos. Não quer
tomar um chuveiro, antes? — perguntou, encaminhando-se para a
cozinha.
— Quer me dizer o que há de errado? — Paul agarrou-a pelo
pulso.
— Acho que você é o único que pode explicar o que aconteceu
com meu crédito escolar.
Ele pegou o paletó de volta e anunciou num tom gélido:
— Vou tomar um banho.
Roberta cerrou os punhos. Ele não iria se safar tão facilmente!
Enquanto terminava de preparar o jantar, decidiu que, se mais dias
menos dias teriam de acertar suas diferenças, melhor fazê-lo naquela
noite.
Quando Paul sentou-se à mesa, sua expressão era impenetrável
e ela percebeu, com um único olhar, que não arrancaria uma só palavra
dele.
A refeição transcorreu num clima carregado, que parecia
intensificar-se a cada minuto. Não suportando a tensão, Roberta
propôs:
— Vamos esclarecer esse assunto, Paul.
— Não, não vamos... porque eu não quero — completou,
levantando-se.
Ela fez o mesmo, ainda sem acreditar no que ouvira.
— Ouça, Paul...
— Vou dar uma volta — anunciou ele, bruscamente.
Roberta empalideceu incapaz de pronunciar uma única palavra.
Observou que ele lhe virará desdenhosamente as costas e seu mal-estar
cresceu, ao ouvir a porta da entrada bater.
Perplexa, dirigiu-se para o quarto e sentou-se na beira da cama,
tentando pôr alguma ordem na confusão de sentimentos que a
agitavam. Quanto mais pensava no tolo incidente, mais percebia que
agira com absoluta falta de tato. Sobretudo conhecendo o ambiente
familiar em que Paul vivera.
A discórdia que dividia seus pais ainda o machucava e ele devia
considerar qualquer discussão como um veículo destinado a levá-lo
ladeira abaixo, rumo àquela mesma destruição.
Começou a sentir-se culpada pelo modo como havia abordado o
problema. Ainda acreditava que Paul lhe devia explicações, mas
desejava ardentemente não ter iniciado aquela conversa.
À medida que as horas passavam, e nada de Paul, sua
ansiedade aumentou. Estava preocupada. Qual a seriedade do infeliz
incidente? Grave o suficiente para que ele julgasse a vida em comum
com ela uma péssima idéia? Disse a si mesma, à guisa de consolo, que
Paul não era nenhum irresponsável e que ela estava fazendo uma
tempestade num copo de água. Mas não se convencia...
Quando finalmente o viu chegar, deu um suspiro de alívio.
Pelo menos Paul estava em casa e a salvo. Mas, ao notar-lhe a
expressão severa do rosto, gelou. Parecendo não vê-la, ele entrou no
banheiro. O ruído do chuveiro foi, de um certo modo, tranqüilizador.
Roberta acendeu mais um cigarro, sentou-se na poltrona da sala e
fechou os olhos.
"Por favor, saia logo daí e fale comigo", implorou silenciosamente.
"Não me deixe nesse desespero."
Mas o tempo transformou-se num jogo de espera. O chuveiro
silenciou e nenhum outro som chegava do quarto. Tremendo de
ansiedade, ela apagou o cigarro, e, determinada, resolveu enfrentar de
vez aquela absurda situação.
Paul estava deitado de costas na cama, o rosto escondido pelo
braço, o peito ainda úmido da água do banho. E permaneceu imóvel,
não dando nenhum sinal de ter notado sua presença.
Ela o fitou com os olhos marejados de lágrimas e o coração
doendo insuportavelmente de amor. Chegaria algum dia a entender
aquele homem tão complexo? Daria a vida por ele, mas não sabia como
lidar com seus traumas psicológicos.
— Paul... sinto muito, querido. Sei que não entendeu meu
nervosismo, mas veja bem: você assumiu muita responsabilidade. Não
só as do hospital, como as de casa. Não é porque eu me sinta
dependente... No entanto, quero contribuir de alguma forma.
Não conseguiu acrescentar mais nada e saiu mansamente do
quarto, fechando a porta atrás de si. Com o coração pesado, foi à
sacada e debruçou-se no parapeito, a mente bloqueada por dúvidas e
angústias. O que a unia àquele homem não era um casamento como o
de seus pais, mas um arranjo indefinido, que provavelmente não
duraria para sempre. Uma dor aguda apertou seu coração. Essa idéia
era insuportável!
Incapaz de conter as lágrimas pressionou a boca com o punho, e
deu vazão à dor que a consumia. Foi quando braços fortes a rodearam,
apertando-a contra um peito confortador.
— Não chore, Roberta — murmurou Paul.
Ela recostou a cabeça em seu ombro, enquanto tentava abafar
os soluços.
— Passei horas terríveis...
— Minha querida... eu não pretendia magoá-la.
— Eu estava errada, Paul.
— Não, não estava. Eu me aborreci porque pensei que a
discussão só envolvesse dinheiro. Só depois percebi que não era bem
assim.
Fez uma pausa, como se procurasse as palavras adequadas.
Então continuou:
— Minha família sempre foi muito rica e me acostumei a ter
mais do que precisava. Por isso não me conformava que você fosse
obrigada a sobreviver apenas com seu salário. Queria que fosse
diferente — ele lhe acariciou ternamente os cabelos. — Eu não sabia
como você se sentia. Pensei... pensei que fosse bom eu poder cuidar de
você, proporcionar-lhe todo o conforto...
Entendendo o quanto lhe custara falar de seus sentimentos,
Roberta ficou enternecida. Com infinita ternura, beijou-lhe as pálpebras
e pediu com a voz trêmula de emoção:
— Não me deixe no ar, Paul. Não tenha medo de se abrir comigo.
Haverá outras vezes em que discordaremos, mas isso não significa que
tenhamos de nos ferir mutuamente. Se abrirmos nossos corações, tudo
se tornará mais fácil.
— Estou vivendo uma situação nova, Roberta. Vai demorar um
pouco até eu aprender. Você não imagina o que significa tê-la a meu
lado. De manhã, antes de ir ao hospital, observei-a, enquanto você
dormia. Como estava bonita! Saber que confia em mim, que me ama, é
tudo o que eu quero, Rob.
Ela fechou os olhos, deliciada. E a seguir ofereceu-lhe a boca
sedenta de amor. A paixão levou-os através da tempestade dos sentidos,
a uma absoluta, perfeita e suprema realização.
Na manhã seguinte, Roberta acordou cedo, com o espírito leve
depois do desinibido ato de amor da noite anterior. Como sempre,
adormecera com a cabeça aninhada no ombro de Paul, a coxa presa
entre as dele.
Com um suspiro de satisfação, começou a passar lentamente os
dedos pelo peito largo, deliciando-se com a textura de sua pele e o leve
aroma que se desprendia de seu corpo.
— Será que está tentando me seduzir? Ela riu suavemente.
— Acertou!
Paul acariciou-lhe o rosto, beliscando de leve suas bochechas.
— Vamos aproveitar, enquanto o alarme do relógio não toca?
— Falta muito?
— Dez minutos, infelizmente.
— Só? Pensei que tivéssemos pelo menos mais meia hora.
— É isso o que eu aprecio: Uma mulher que gosta de cama!
— Não seja convencido! Você sabe que sou preguiçosa.
Ela se deixou ficar nos braços dele por mais alguns instantes,
saboreando a doçura daquela proximidade. Ao afastar-se, o lençol
escorregou-lhe do busto. Paul sorriu, observando-a.
— É difícil sair da cama, quando você está ao meu lado.
— Você tem uma imaginação fértil.
— Não preciso "imaginar" nada — afirmou ele, acariciando-lhe os
seios.
— Paul...
Trêmula de desejo, apoiou-se nele, os lábios entreabertos.
Trocaram um beijo alucinante, apaixonado, que os fez mergulhar numa
frenética excitação.
Porém, correndo raivosamente os dedos pelos cabelos, ele rolou
para um lado, ainda ofegante.
— Se eu não tivesse duas cirurgias marcadas para esta manhã,
daria um jeito de não comparecer ao hospital.
— Tenho minhas dúvidas. Acho que você nunca faltou um só dia
ao trabalho.
— Também não tinha motivos — respondeu, tocando-a no
ventre, descendo as mãos até suas virilhas. — Mas você, Roberta, é a
mais tentadora das razões.
— Volte para casa mais cedo...
Houve um brilho de interesse nos olhos dele, que fez o coração
dela bater com mais força.
— Vou dar um jeito.
Depois que Paul saiu, Roberta deitou-se, as mãos cruzadas sob
a nuca, um sorriso nos lábios. Ele afirmara que iria cuidar dela. Por
isso não podia censurá-lo, agora que o sabia rico. Se ela tivesse muito
dinheiro, agiria do mesmo jeito.
Ela herdara a extrema simplicidade da avó e sua precaução no
gastar devia tê-lo impressionado. Seu sorriso ampliou-se. Poder dispor
completamente de seu salário era bastante tentador. Mais do que isso:
uma fantasia tornada realidade!
Sem perda de tempo, decidiu passar a manhã fazendo compras.
Parou numa loja especializada em camping e comprou para Paul uma
vara de pesca com molinete, a última novidade no gênero. Então, com a
excitação de uma criança, encaminhou-se para uma rua elegante,
famosa por suas butiques de luxo.
Um sofisticado vestido de um lindo tom de vermelho chamou-lhe
a atenção. Escolheu-o, mas logo em seguida descartou-o. Embora a cor
fosse linda, o modelo era extravagante demais: decote ousado e saia
aberta num dos lados por uma fenda que lhe revelaria a coxa. Para
completar, o tecido macio lhe moldaria as formas, acentuando cada
curva de seu corpo.
No entanto, acabou reconsiderando a decisão e, num ímpeto
incontrolável, juntou-o às demais compras.
O telefone tocava com insistência quando chegou em casa com
os braços cheios de pacotes. Deixou-os no sofá e correu para atender,
lançando um olhar aflito ao relógio. Quatro horas! Não tinha percebido
que era tão tarde.
Paul estava ligando para avisar que ia participar de uma reunião
em que seria discutido o orçamento de seu departamento e, com
certeza, não chegaria em casa antes das sete.
Roberta soltou um suspiro de alívio. Pela primeira vez alegrou-se
com o atraso dele. Afinal, precisava de tempo para o que tinha em
mente.
Faltavam alguns minutos para as sete, quando ela acabou de se
vestir. Sorriu à imagem refletida no espelho. O vestido, extremamente
sexy, estava realçado pelo penteado sofisticado: os cabelos presos para
um lado com um pequeno pente. Brincos de argola de ouro, uma
maquilagem mais forte do que o normal e sandálias de salto alto
completavam o efeito.
Preocupara-se em esconder seu corpo sensual sob o uniforme
médico durante anos. Agora, fazia de tudo para revelá-lo. Tinha vontade
de rir!
Ao sair da sala, ouviu Paul girar a maçaneta da porta. No
instante seguinte ele entrou, parando perplexo ao vê-la tão elegante.
— Oi, amor — ela o saudou.
Paul olhou-a da cabeça aos pés. Um sorriso largo desenhava-se
em seus lábios.
— Oi, querida — murmurou num tom rouco e sensual.
Roberta foi ao encontro dele, ondulando os quadris, as narinas
vibrando. Acariciou-o na nuca, antes de lhe desatar a gravata com
gestos lânguidos.
— Não quer ficar mais à vontade?
Sentindo a eletricidade que seu contato lhe comunicava, os
olhos dele faiscaram de antecipado prazer. Assim que se livrou do
paletó, Paul a abraçou com imensa ternura.
— Que ótima idéia! — exclamou, introduzindo a mão na
abertura de sua saia e acariciando-lhe as coxas.
— Posso fazer algo por você? — ela perguntou brincando.
— Oh... claro que sim! — disse, entusiasmado, insinuando a
outra mão em seu decote.
— Paul... não pensei... que você levasse isso a sério — sua voz
estava entrecortada pelo riso, e ela se deixou cair pesadamente no sofá.
— Fez mal. Estou levando a sério, sim. E você vai ter de terminar
o que começou — disse, avançando em sua direção.
Tomando fôlego, ela se levantou e refugiou-se atrás do sofá.
— Sabe, amor, comprei-lhe um presente. Uma vara de pescar
último tipo.
Ele não prestou atenção ao pacote que ela lhe apontou. Estava
desafivelando o cinto da calça.
— Ficarei contente amanhã. O que me interessa agora é a linda
criatura embrulhada em cetim vermelho.
Os olhos de Roberta brilharam. Era chegado o momento de
terminar aquele jogo de gato e rato. Esperou-o, ansiosa, enquanto ele,
com a agilidade de um felino, transpunha o sofá de um salto.
— Sabe que tocar seus seios através desse vestido é uma
experiência fantástica?
— Ai, Paul, pensei que isso fosse uma brincadeira. Rindo, ele a
ergueu nos braços. E, ao chegar no quarto, jogou-a sobre a cama,
imobilizando-a sob o peso de seu corpo.
— Você perdeu o jogo, querida. Vai ter de pagar.
Uma torrente de felicidade invadiu Roberta. Num gesto ousado,
beijou-o com paixão. Ele era seu mundo, sua razão de ser.
— Oh, Paul! Como amo você!
Com um ímpeto selvagem, ele a apertou mais fortemente contra
si e tomou-lhe a boca com exigência, forçando os lábios dela a se
abrirem.
— Oh, baby... — murmurou, expondo-lhe os seios e roçando os
lábios sobre os bicos rosados.
Roberta agarrou-se a ele com furor. Mal conseguiu respirar,
quando ele iniciou um lento e quase insuportável passeio erótico,
tocando com a boca úmida e quente os pontos mais sensíveis de seu
corpo.
— Paul! — gritou, mergulhando na vertigem do êxtase.
No dia seguinte, Roberta despertou no exato momento em que
ele dava o nó na gravata, aprontando-se para sair.
— Bom dia — murmurou ela, a voz ainda rouca de sono.
— Bom dia, meu anjo! Dormiu bem?
Ele se aproximou e passeou os olhos pelo corpo dela. Havia um
inequívoco brilho em seus olhos escuros, quando a beijou, as mãos
acariciando-lhe sensualmente as coxas expostas.
— Se continuar nessa pose provocante, vai me atrasar. Roberta
riu com suavidade e acariciou-lhe o rosto. Ele voltou a beijá-la e, com
um suspiro resignado, deu-lhe as costas e vestiu o paletó. Já na porta,
disse:
— Quer saber de uma coisa, querida? Ontem estive no paraíso!
Ela fechou os olhos, contente. O vestido vermelho valera cada
centavo de seu preço... e muito mais!
À noite, quando Paul voltou do hospital, encontrou-a na porta, à
sua espera.
— Você é única, Roberta.
— Você também, meu querido. Parece cansado! Como foi o dia
hoje?
— Terrível!
— Quer jantar logo?
— Não, prefiro esperar até mais tarde — disse, encaminhando-se
para o quarto.
Ela o ajudou a tirar o paletó e pendurou-o no cabide. Dobrou
rapidamente a colcha da cama e afofou os travesseiros. Paul passara o
dia inteiro na Cirurgia e devia estar muito cansado.
— Quer ficar sozinho?
— Não, de forma alguma! — ele a puxou pelos ombros,
obrigando-a a deitar-se ao lado dele. — Ah, assim, sim.
Ao ver que ele sorria, Roberta perguntou:
— Qual é a graça?
— Eu não queria acreditar, quando você apareceu com aquele
vestido.
— De fato, você parecia mesmo espantado — disse ela, sorrindo.
— Espantado? Você me deixou doido! Onde encontrou aquele
vestido?
— Numa butique da cidade.
— Não se desfaça nunca dele. É espetacular!
— Já que gostou tanto, vou usá-lo na próxima vez que formos
jantar fora.
— Nem morta! Não vou permitir que saia de casa com aquele
traje!
Roberta começou a massagear-lhe os músculos tensos dos
ombros e da nuca.
— Hum... que delícia... Diga, meu bem, você tem folga no
sábado?
— Sim. Mas darei plantão no domingo.
— Vamos aproveitar seu dia de folga para pescar. Quero
experimentar minha vara nova.
— Você não parecia muito impressionado com ela, ontem à
noite.
Paul passou lentamente a mão pelos seus quadris.
— Tinha coisa melhor para fazer.
— Pode começar a praticar, arremessando a linha da sacada. Se
tiver sorte, fisgará alguma mulher bonita.
— Negativo! Tem de ser você, ou nada!
Um leve rubor tomou conta do rosto de Roberta e um toque de
contentamento enfeitou o sorriso que lhe franzia os cantos da boca. Por
algum motivo, aquela resposta a enchia de felicidade.
Durante o silêncio que se seguiu, pensou que Paul estivesse
dormindo e pousou a cabeça no travesseiro com medo até de respirar
para não perturbá-lo.
— Roberta, eu gostaria de morar numa casa — disse ele, de
repente. — Detesto apartamentos e acho que você também.
— É verdade, mas não estou com vontade de procurar nada.
— Não se incomoda, se eu me encarregar disso?
— Absolutamente!
— Tem certeza?
Ela franziu o cenho, intrigada.
— Claro que sim!
Ele a abraçou, encostando a cabeça nos seios dela.
— Eu poderia ficar assim para sempre... Fechou os olhos e seus
músculos tensos relaxaram. Logo mergulhou num sono profundo.

Roberta recostou-se no banco dianteiro do carro esporte,


deixando que a brisa fresca lhe desmanchasse os cabelos e dispersasse
seu cansaço. Aquele lindo e quente fim de semana de junho fora um
inferno! A temperatura amena parecia impelir todo o mundo a guiar
sem cuidado. Com o pronto-socorro do hospital repleto de acidentados,
passara o turno inteiro na Emergência. No auge da maré de
atendimentos, o ar-condicionado falhara, transformando o setor num
forno.
Quando chegara em casa, pouco depois das cinco, ficara
deliciada ao perceber que Paul fizera os preparativos para um
piquenique. Ele lhe dera apenas o tempo necessário para mudar de
roupa e depois saíram imediatamente.
Ela nem lhe perguntara onde iam. Não se importava. Tudo o que
desejava era um lugar calmo e gostoso, onde pudesse usufruir de
algumas horas de descanso ao lado dele.
Paul guiava com habilidade por entre o tráfego intenso. Mesmo
vestindo jeans desbotados e uma camiseta amarela, ainda assim
sobressairia na multidão, pois possuía uma aura de inconfundível
magnetismo que não o deixaria passar despercebido onde quer que
fosse.
Ele estivera muito silencioso nos últimos dias e ela não sabia o
que o estaria aborrecendo. Não gostava de vê-lo assim, tão isolado, tão
recolhido dentro de si mesmo.
O carro entrava naquele momento por uma rua residencial
intensamente arborizada, no bairro preferido de Roberta. Lindas casas
de estilo vitoriano, de extensos gramados, situavam-se numa das
margens do rio Elbow. Aquela tranqüilidade bucólica, dentro da cidade
grande, era o lugar ideal para se morar.
Sem dar nenhuma explicação, Paul estacionou diante de uma
casa de dois andares. Um ar intrigado passou pelo rosto de Roberta ao
vê-lo descer do carro e ajudá-la a fazer o mesmo. O que significaria
aquilo?
A casa de tijolos aparentes era linda e Roberta apaixonou-se por
ela no mesmo instante em que a viu. As janelas da frente brilhavam sob
os raios do sol e a trilha ensaibrada ladeada de flores era um convite
silencioso a entrarem.
Mais uma vez ela procurou os olhos de Paul, que permanecia
silencioso e com expressão indecifrável. Uma suspeita atravessou-lhe a
mente, quando o viu retirar uma chave do bolso e introduzi-la na
fechadura.
Mesmo vazia a casa era um encanto. Roberta ficou parada no
amplo vestíbulo e prendeu a respiração diante da escada em espiral que
conduzia ao andar superior. O corrimão de carvalho escuro contrastava
com os suportes de latão polido. Era magnífica!
Deslumbrada, seguiu Paul até o living e olhou em volta com
evidente admiração. Uma das paredes era quase que inteiramente
tomada por uma enorme lareira de pedra, ladeada de prateleiras
destinadas a livros. No lado oposto, duas amplas portas-janelas abriam-
se para um pequeno jardim de inverno, todo envidraçado, permitindo a
entrada do sol.
Roberta permaneceu no meio da sala, em estática contemplação.
— Vai alugá-la, Paul? — perguntou, num sussurro.
— Esta casa não é para alugar. Está à venda.
Roberta sentou-se no degrau da lareira e ficou olhando para o
pequeno jardim de inverno banhado pelo sol.
— Pretende comprá-la?
— Fiz a reserva, mas a compra está condicionada à sua
aprovação.
Falou com tanta determinação que ela ficou tensa. Agora
entendia a razão do silêncio dele e de seu aparente retraimento nos
últimos dias. Paul estava tramando algo, que ela com certeza não iria
gostar nem um pouco.
— Paul, a compra da casa deve ser decisão sua. Sei que essas
propriedades situadas à margem do Elbow são caríssimas. Mas, se
quiser fazer o investimento, deve decidir sozinho.
— Se fôssemos casados, você ainda pensaria assim?
Ela o fitou atônita. Onde ele queria chegar? Não gostou do tom
de sua voz, mas tentou dar uma resposta convincente.
— Sinceramente, não sei. Afinal, isso não passa de uma
hipótese.
— Mas gosta da casa e do bairro?
— Sim... claro. Quem não gostaria?
— Então não acharia ruim, se nós quisermos comprá-la?
Roberta levantou-se, subitamente nervosa.
— "Nós", não, Paul. O dinheiro é seu. Pode gastá-lo como bem
entender.
— Se a comprarmos, será a nossa casa.
Uma ponta de cólera na voz dele lhe provocou um arrepio ao
longo da espinha.
— O que quer dizer com isso?
— Que pretendo registrá-la em nosso nome.
Roberta sentiu uma onda de calor subir-lhe ao rosto, enquanto o
olhava perplexa demais para falar. Por fim, conseguiu recuperar o
autocontrole e retrucou:
— Você sabe muito bem que não tenho condições para arrumar
um empréstimo.
— Já lhe expliquei uma vez que dinheiro não é problema.
— Qual é o problema, então?
Os olhos dele estavam profundos e sombrios.
— Você sabe...
— Não sei, não! Está querendo me dar um presente, é isso? Não
posso aceitar um presente desse valor! Seria uma loucura!
— Seria loucura, se fôssemos casados? Nesse caso, você ficaria
extasiada, confesse! Mas, como não somos me nega o privilégio de lhe
proporcionar uma vida confortável. Por que não quer me dar esse
prazer? Que diferença faz se somos ou não casados?
Ela teve vontade de dizer que fazia uma diferença enorme, mas,
mordendo o lábio para não responder, saiu correndo da sala, com os
olhos cheios de lágrimas.
Que ele fosse para o inferno! Por que não comprava a casa
sozinho? Oferecer-lhe metade daquela propriedade era completamente
fora de propósito!
O coração batia-lhe descompassadamente no peito, quando
atravessou o gramado e deixou-se cair sentada à sombra de uma velha
árvore. Por que ele não queria entender o ponto de vista dela? Ao
mesmo tempo, uma voz interior sussurrou-lhe: "E você? Por que não
quer entender o ponto de vista dele? Está cega pelo orgulho?"
Ergueu os joelhos e apoiou o queixo neles. Aos poucos a raiva
esfriou, dando lugar ao raciocínio frio. Depois de um longo tempo,
levantou finalmente a cabeça. Estaria reagindo com exagerado orgulho
à proposta de Paul? Havia algo de verdadeiro no que ele dissera. Se
fossem casados, ela teria reagido de outra forma...
Por que uma certidão de casamento possuiria o poder de tornar
certo o que ela julgava errado? Não seria porque achava natural que o
homem providenciasse um lar para a esposa? A verdade é que seus
valores, profundamente enraizados, contrastavam com os valores da
sociedade moderna e ela não gostava de saber-se amante de Paul...
Começou a separar suas idéias, retendo algumas, rejeitando
outras, mas estava longe de ter chegado a uma solução.
Os risos de um grupo de adolescentes, descendo rio abaixo
numa canoa, despertaram sua atenção. Um rio nos fundos da
propriedade... era o paraíso! Correu os olhos pelo vasto jardim que,
como um tapete de veludo verde, descia até as margens do rio onde
chorões vergavam seus ramos flexíveis em direção às águas.
Os limites laterais da propriedade eram marcados por muros de
pedra. De um lado, uma fileira de lilases e madressilvas, flores
vermelhas e rosas entrelaçadas dando um toque de cor ao verde das
folhagens. Do outro, um grupo de bétulas e choupos de folhas azuladas
escondiam um pequeno pavilhão coberto de hera. Era tão encantador...
Nesse instante, um vulto alto surgiu ao seu lado. Tensa,
levantou a cabeça. Paul a olhava, ainda com expressão severa, embora
os vincos em redor de sua boca tivessem desaparecido.
— Temos de esclarecer isto, Roberta.
— Está bem.
Paul sentou-se ao lado dela e apoiou a cabeça no tronco da
árvore.
— Está disposta a me ouvir?
Quando a viu assentir com um aceno de cabeça, ele lhe
estendeu a mão num mudo pedido de trégua.
— Não sei se vou conseguir explicar direito, querida. Não estou
acostumado a confidencias e não será fácil falar. Mas tenho de ser
honesto com você.
Fez uma pausa, estreitando a mão dela entre as suas, antes de
continuar:
— Não sou nada apegado ao dinheiro e gostaria de lhe
proporcionar bem-estar e conforto. Quando vi esta casa pela primeira
vez, soube no mesmo instante que você a adoraria. Sua personalidade
parecia combinar com tudo que há aqui. E eu me senti feliz, sabendo
que poderia comprá-la para você.
— Mas...
Ele beijou-lhe a mão e não a deixou objetar.
— Você me dá uma felicidade que dinheiro algum poderia
comprar. Você me dá amor, confiança, compreensão. Jamais
experimentei tanta segurança emocional. Não imagina que valor isso
tem para mim.
Ansiando que ela o compreendesse, prosseguiu:
— Você se dá por inteiro. Por causa disso, de seus cuidados e
carinhos, estou conhecendo uma paz interior que não acreditava existir.
O tom sincero daquela declaração fez com que ela sentisse um
arrepio no corpo.
— Paul...
— Sabe o que significa ter alguém que não espera que eu seja
um super-homem? Alguém que me apóia em tudo, que me aceita como
sou?
— Meu querido...
— Eu não acreditava que duas pessoas pudessem ser tão
intimamente compatíveis. Você me faz feliz. Permita que eu retribua
parte dessa felicidade!
Roberta tomou-lhe gentilmente o rosto entre as mãos.
— Paul... Você me faz feliz. Está dando tanto de si mesmo e nem
percebe!
— Foi você quem me ensinou. Você confia em mim e, em troca,
aprendi a confiar em você.
— Querido, querido... — murmurou ela, com lágrimas nos olhos.
— Você me deixa ao menos comprar uma argola de metal para a porta
da frente?
— Com a condição de que seja de estilo vitoriano, daquelas em
forma de cabeça de leão.
— Iremos comprá-la juntos.
Sem dizer palavra, ele a ajudou a levantar-se e, de braços dados,
encaminharam-se para dentro da casa. Mal fechou a porta à chave,
Paul virou-se para ela, beijando-a com lábios sedentos de amor.
Sucumbindo àquele apelo ardente, ela amoldou o corpo ao dele,
num abandono total. Uma incontrolável onda de desejo fez com que se
ajoelhassem no chão, arrastados pelo delírio de paixão.
Murmurando-lhe o nome, ele deitou-a com delicadeza e ali, no
meio da sala banhada pelos últimos raios do sol poente, desnudou-a
por completo. Depois, arrancando a camisa, cobriu-a com seu corpo,
excitando-a com carícias lentas e enlouquecedoras, até que, tomados
pela mesma crescente sensualidade, fizeram amor com uma paixão
devastadora.
Quando saiu do torpor que a invadira, Roberta estava aninhada
nos braços dele. A realidade da situação penetrou-lhe de súbito na
mente e ela sentou-se de chofre, alarmada.
— Paul, o que fizemos? E se alguém nos viu? Ele riu.
— Não se preocupe, minha querida. As portas estavam fechadas
e as correntes passadas. Além disso, também corri as cortinas.
Um brilho de malícia fez os olhos dela cintilarem.
— A sala é de seu agrado, doutor?
— Sem dúvida, Dra. Mitchell. Mal posso esperar que me mostre
o resto da casa. Quero verificar se os outros aposentos são igualmente
satisfatórios.
— Vai demorar um bocado...
— Tenho tempo... Sabe de uma coisa? Eu amo você! — O rosto
de Roberta estava radiante de felicidade.
— Adorei a casa, Paul. Obrigada por esse presente encantador.
— Já me agradeceu... Muito mais do que essa casa vale.
Quando, finalmente, se dispuseram a inspecionar os demais cômodos,
ela se entusiasmou ainda mais. Cada aposento tinha algo especial que o
tornava único, fazendo da casa um lar de verdade.
Mais tarde, comeram sanduíches à sombra de um dos chorões,
contemplando as águas tranqüilas do rio. Quando terminaram, Paul
estendeu a manta no gramado, tirou a camisa e deitou-se de costas.
— Vamos entrar na posse da casa no dia primeiro de julho. O
que acha?
— Bom, já que ela é nossa, é melhor fazermos a mudança o mais
rápido possível.
— Ótimo!
Roberta deitou-se ao lado dele, a cabeça apoiada em seu peito.
— Espero que tenha tempo para aparar a grama do jardim. Ele
sorriu, aconchegando-a.
— Se não puder, contratarei um jardineiro.
— Você tem solução para tudo.
— Sabe que já contratei uma governanta?
— O quê? Acho que não ouvi bem.
— Ouviu, sim. Teremos uma empregada. Chama-se Sra.
Butterfield e é um amor. Vai gostar dela.
— Você é impossível, Paul!
— Impossível não, prático! Você dispõe de pouco tempo para
cuidar de uma casa com dois acres de terreno. Vai brigar comigo de
novo?
— Você me obriga a concordar com tudo que faz. É impossível,
teimoso e mandão. Mas eu o amo assim mesmo.
Entrelaçaram amorosamente os dedos.
— É isso o que me agrada em você, Roberta. Não perde tempo
com ninharias. Vai direto ao assunto.
— Eu gostaria de saber se há outras surpresas.
— Espere e verá — afirmou ele, sorrindo misteriosamente. —
Gosta de antiguidades?
— Você quer me deixar maluca! Que história é essa agora?
— Herdei algumas coisas de minha avó. Estão em Toronto. Se
gostar de antiguidades, mandarei buscá-las.
— Eu adoraria!
— Está feliz?
— Mais do que pode imaginar.
Pela primeira vez, encarava seriamente o futuro ao lado de Paul.
Talvez aquele fosse um verdadeiro começo. Talvez.


Capítulo VIII

Com o fim do verão, o céu azul e o clima quente deram lugar aos
dias frescos, de manhãs enevoadas, e às folhas cor de ferrugem do
outono. Num ambiente de alegria e felicidade, Roberta compartilhava
com Paul não apenas o amor, mas também o trabalho. Eram ambos
dedicados à profissão e ela encarava o talento e os conhecimentos dele
com um respeito que beirava a reverência. Paul passava horas
instruindo-a nas diversas técnicas cirúrgicas e, devido àquela
dedicação, os conhecimentos dela aumentaram.
Os dias maravilhosos de outubro foram substituídos pelos dias
cinzentos de novembro, mas Roberta teve pouco tempo para pensar em
outra coisa que não fosse o trabalho. Um surto epidêmico de uma nova
espécie de gripe assolou a cidade, sobrecarregando de serviço todos os
hospitais.
A doença caracterizava-se por vômitos e febres altas que
deixavam a vítima severamente desidratada. Para completarão quadro
clínico, uma persistente pneumonia quase sempre acompanhava
aqueles sintomas.
Depois de provocar alguns casos fatais, a gripe passou a ser
enfrentada com seriedade pela comunidade médica. Como medida de
segurança, todas as cirurgias que não fossem de emergência foram
adiadas. Eram executadas apenas as operações inadiáveis e, mesmo
assim, cercadas de um rígido esquema de precauções.
Membros do corpo clínico da Cirurgia foram deslocados para
outras alas mais sobrecarregadas de trabalho. Roberta e Paul tiveram
de cobrir turnos de doze horas, ele na ala Cirúrgica, ela na Pediátrica.
O coração dela confrangia-se pelos pequenos doentes, fracos e
assustados. Mas o hospital estava tão necessitado de pessoal, que não
havia gente disponível para dispensar-lhes outros cuidados, além do
tratamento médico. Entristecia-lhe observar o sofrimento das crianças e
dos bebês e sentia não poder fazer mais por eles.
A estafa, a preocupação, as longas horas de vigília produziram
seus efeitos. Roberta ficou completamente exausta. Vezes sem conta
teve de permanecer até tarde, confortando as crianças desamparadas.
Paul a observava, os olhos escuros cheios de apreensão, mas em
momento algum reclamou por causa das horas extras.
Aos poucos, a epidemia foi sendo debelada e o trabalho voltou ao
normal. No entanto, Roberta ainda se sentia exaurida. Tinha direito a
cinco dias de folga e pretendia passá-los na cama. Não via a hora que
chegasse sexta-feira para começar a desfrutá-los.
Na quinta-feira teve de participar de uma cirurgia longa e
cansativa. Naquela tarde, a sala operatória parecia mais quente do que
o normal. O calor roubava-lhe toda a energia. Suas costas estavam
molhadas de suor e tão doloridas quanto os músculos dos ombros e das
pernas. Mas preferia morrer a deixar que Paul percebesse seu cansaço.
Olhou-o por sobre a mesa operatória e sentiu um profundo
respeito por seu desempenho. Ele não era apenas brilhante:
demonstrava uma energia de campeão!
— Vamos fazer uma pequena incisão a partir daquela artéria,
Dra. Mitchell. Isole-a.
Roberta sentiu uma leve sensação de enjôo, quando os longos
dedos de Paul manejaram o bisturi e o sangue jorrou. Estava mais
exausta do que pensava; nunca se sentira tão nauseada na sala
operatória desde seus tempos de estudante.
— Como está à pressão sangüínea, Mac?
— Dez por quatro. Um pouco baixa, mas o pulso está firme —
respondeu o anestesista.
Embora cansada, Roberta sorriu. Gostava de trabalhar com
MacDonald, que era o melhor anestesista do hospital. Quando tinha de
enfrentar uma crise, ele desempenhava suas funções com rapidez,
segurança e presença de espírito.
— Wilcox, há muito tempo quero lhe fazer uma pergunta. O que
aconteceu com você? Quando veio para cá, praticamente morava no
hospital. Agora, temos sorte quando nos dedica "apenas" dezesseis
horas diárias.
Paul sorriu.
— Tenho um hobby.
— Qual?
— Observar pássaros.
Roberta mordeu o lábio para não rir.
— Observar pássaros? Deve estar brincando — retrucou Mac.
— Nada disso — confirmou Paul, ainda sorrindo sob a máscara.
— Que hobby estranho... Pássaros de duas pernas, suponho.
Roberta não conseguiu resistir.
— Nunca vi um pássaro de quatro pernas, doutor. — Mac riu.
— Fique fora disto, Dra. Mitchell. Como posso encostar esse
sujeito na parede, se você lhe fornece uma desculpa?
Roberta limpou a área em volta da incisão e jogou a gaze suja no
recipiente esmaltado.
— Fiz apenas uma observação — disse ela.
— Você está rindo debaixo dessa máscara. Acredita, realmente,
que nosso amigo seja um ornitologista?
— Eu não disse que era ornitologista — disse Paul. — Afirmei
que gostava de observar pássaros. Essa é a diferença.
— Esta pobre mulher teria um choque se soubesse que estamos
falando de pássaros, em vez de lhe removermos os cálculos biliares.
— Olha que eu ponho você nesta mesa, Dra. Mitchell —
ameaçou Mac, com um sorriso.
— Não tenho cálculos biliares, Dr. MacDonald. Paul soltou um
suspiro.
— Muito bem, terminei minha parte. Parem de discutir, vocês
dois. Termine a operação, Dra. Mitchell.
O anestesista observou Roberta, que fazia a sutura.
— Você maneja a agulha com habilidade — elogiou, balançando
a cabeça.
Ela se voltou para que a enfermeira lhe enxugasse o suor.
— Obrigada.
— Onde aprendeu a suturar desse jeito?
— Bordando toalhas de linho, nos meus dias de folga.
Ao ouvir a risadinha de Paul, que deixava a sala, ela terminou a
operação com o coração mais leve. Porém o corpo parecia pesar uma
tonelada, quando finalmente saiu da Cirurgia. Arrancou a máscara e o
gorro e pôs-se a flexionar os músculos das costas na tentativa de
amenizar-lhes a rigidez.
Quando se voltou, viu Paul parado junto à porta, observando-a
com ar preocupado. Nesse instante, Mac saiu também da sala
operatória. Depois de arrancar o gorro, a máscara e o avental, ele
exclamou:
— Se eu não tivesse de trabalhar amanhã, iria para casa e me
anestesiaria com alguns drinques. Deus, como estou cansado!
— Foi um dia estafante! — concordou Paul. — Vamos tomar um
café?
Roberta tirou o avental e consultou o relógio da parede.
— Vão vocês dois. Tenho de fazer a ronda.
Mac agarrou firmemente pelo braço e levou-a para a porta.
— Você vai descer e descansar, antes de começar essa ronda.
No instante em que ela entrou na cantina, o cheiro de comida
provocou-lhe uma forte tontura, seguida de náuseas. Apoiou-se no
braço de Paul para firmar-se, enquanto a sala parecia ondular sob seus
pés.
Ouviu o Dr. MacDonald dizer alguma coisa, mas não entendeu o
que era. Com o braço passado pela cintura dela, Paul guiou-a para fora
da cantina, rumo à saleta de espera. Acomodou-a no sofá e abaixou-lhe
a cabeça até os joelhos.
— Quer que eu peça uma maca? — perguntou Mac. Roberta
ergueu lentamente a cabeça.
— Não... por favor — balbuciou.
Paul a fitava apreensivo, enquanto lhe enxugava o suor da testa.
— Vou levá-la para casa, Mac. As chaves do carro estão na
minha escrivaninha. Quer pedir a alguém que as leve ao
estacionamento?
— Eu mesmo me encarrego disso.
Assim que o anestesista desapareceu de vista, Paul sentou-se ao
lado dela e apertou-a de encontro ao peito, os braços rodeando-lhe o
corpo trêmulo.
— Por que não avisou que não estava passando bem, Roberta?
Sabia que você estava exausta, mas não imaginava que estivesse
doente.
Ela fechou os olhos.
— Eu também não sabia, até entrarmos na cantina.
— Vamos à Emergência. Quero examinar-lhe a garganta.
— Leve-me para casa, Paul... Chega de hospital por hoje. Ele
beijou-lhe gentilmente a testa.
— Está bem. Fique sossegada.
No instante em que chegaram em casa e Paul a acomodou na
cama, Roberta sentiu-se vagamente culpada. Estava ainda com um
pouco de dor de cabeça e sentia um certo cansaço, embora a náusea e a
tontura tivessem desaparecido.
Depois de tomar um chuveiro rápido, Paul voltou ao quarto e
começou a vestir-se.
— Não lhe passou pela cabeça que eu pudesse estar fingindo? —
ela perguntou.
Ele enfiou a camisa e subiu o zíper das calças.
— Ninguém, nem mesmo você, pode transpirar quando bem
entende. — Sentando-se na beirada da cama, esfregou-lhe as costas
nuas. — Tem certeza de que está bem?
— Estou ótima,
— Vou dar um jeito de voltar para casa mais cedo.
— Não se preocupe, Paul. Estou bem de verdade. Ele tomou-lhe
a mão entre as suas.
— Detesto ter de deixá-la sozinha. Vou de táxi ao hospital, assim
posso trazer o Bronco. Onde estão as chaves?
— Peça a Lisa, ela sabe onde está minha bolsa.
— Certo. Telefone, se precisar de mim.
— Preciso sempre de você — murmurou ela docemente.
— É bom saber disso.
Roberta adormeceu no instante em que Paul saiu do quarto.
Dormiu durante cinco horas sem mover um só músculo do corpo.
Estava emergindo do estado de sonolência, quando um leve ruído
despertou-a por completo. O quarto estava em penumbra, iluminado
apenas pela luz que chegava do corredor.
— Paul?
— Oi! Eu estava começando a pensar que você dormiria até
amanhã — observou ele, levantando-se da poltrona.
— Que horas são?
— Oito horas. — Ele tocou-lhe a testa com a palma da mão. —
Como está se sentindo?
— Bem.
— Quer comer alguma coisa?
— Não. Estou com vontade de tomar um suco.
— Do quê? Maçã ou tomate?
— Não se preocupe. Vou descer — disse ela, fazendo menção de
se levantar.
Ele a impediu.
— Não vai, não.
— Mas, Paul...
— Vai ficar na cama — ele insistiu categoricamente.
— É uma proposta? Ele sorriu.
— Talvez.
Pouco depois, ao retornar com o suco, Paul não pôde impedi-la
de ir tomar uma ducha rápida.
Ao levantar-se, Roberta ficou espantada por perceber como
estava fraca. Depois do chuveiro, no entanto, sentiu-se melhor.
Enxugou os cabelos, envolveu-os numa toalha e voltou ao quarto.
Paul vestira um roupão de veludo e se estendera sobre as
cobertas, lendo o jornal. Ao vê-la, deixou-o cair.
— Sabe que é a primeira vez, nesses últimos dias, que estamos
indo para a cama numa hora decente?
Roberta aproximou-se dele e, insinuando a mão por dentro de
seu robe, correu os dedos de leve, do estômago até as coxas.
— Depende do que você quer dizer com isso.
— Roberta...
A respiração dele estava entrecortada e ela sorriu. Afinal, não
estava tão mal assim...
— Quer que eu lhe faça uma massagem nas costas? — ofereceu-
se ele.
— Como adivinhou?
— Eu sei tudo, querida. Vamos, deite-se de bruços.
— Sim, doutor.
Adorava que ele lhe fizesse massagens. Fechou os olhos,
deliciada, enquanto as mãos fortes trabalhavam os músculos doloridos
de suas pernas. Quando lhe massageou as costas, ela soltou um
suspiro de prazer.
— Não imagina como isso é gostoso!
— Claro que imagino!
Roberta sorriu e rolou na cama, aconchegando-se a ele. Com
gestos lânguidos, desatou-lhe o cinto do roube.
— Você está brincando com fogo, menina. Vai se queimar. Ela
riu, passando os braços em volta de seu pescoço.
— Gosto de calor.
Paul roçou a língua por seus lábios.
— Hum... que gostinho bom! — exclamou, agarrando-a com
paixão.
Na sexta-feira, Roberta percebeu que não amanhecera nada bem
e fingiu que dormia quando Paul saiu de casa. Não queria que ele
ficasse preocupado durante o turno no hospital. Ao meio-dia, notou que
estava com febre. Sentia uma dor de cabeça tão forte que pensou que
fosse enlouquecer. Quando Paul retornou à noitinha, ela admitiu que
estava realmente doente. Ele a examinou com o cenho franzido de
preocupação.
— Vamos direto ao hospital. Quero que faça uns exames de
laboratório.
Roberta engoliu em seco.
— Já sabemos do que se trata, não? Ele enxugou-lhe o rosto
úmido de suor.
— É exatamente por isso que você deve ser hospitalizada.
Lágrimas de frustração encheram-lhe os olhos. A garganta doía e falar
custava-lhe um esforço enorme.
— Faço o que você quiser, mas não me leve para o hospital.
— Roberta, esse vírus é muito perigoso.
— Por favor, Paul. Vamos esperar mais um dia.
Embora a contragosto, Paul acabou concordando. E, durante a
noite, sem que ela percebesse, foi obrigado a trocar-lhe várias vezes a
camisola empapada de suor.
De manhãzinha, Roberta foi sacudida por violentos espasmos de
náusea. Mergulhada num estado de torpor, percebeu, vagamente, que
Paul fazia vários telefonemas. Estava tão fraca, que não conseguiu falar
quando Lisa e Bernie chegaram.
Com a ajuda da enfermeira, Paul vestiu-lhe uma camisola mais
recatada e passou-lhe uma toalha úmida pelo rosto e pescoço. Nesse
instante, Bernie entrou no quarto, ofegante.
— A ambulância chegou.
— Mande os enfermeiros subirem — ordenou Paul.
— Paul... — sussurrou Roberta.
— Que foi amor?
— Vai cuidar de mim?
Ele tomou-lhe o rosto quente entre as mãos.
— Acha que eu deixaria outro médico cuidar de você? —
Voltando-se para Bernie e Lisa, informou: — Irei na ambulância com
ela. Vejo vocês no hospital.
— Deixe que Bernie vá em seu lugar — sugeriu a enfermeira.
— Nada disso!
— Pense bem, Paul — interveio Bernie. — Se você aparecer no
hospital ao lado de Roberta, o que os outros não irão pensar? Isso vai
provocar a maior fofoca. O percurso até o hospital é pequeno. Nada de
mal acontecerá a Roberta nesse curto espaço de tempo.
— Bernie tem razão, Paul — reforçou Roberta.
Minutos depois, a ambulância seguia velozmente pelas ruas
desertas. Quando chegou ao hospital, Paul já se encontrava no saguão,
à espera. Segundo as regras, Roberta deveria ficar na ala destinada aos
médicos e seus familiares, mas Paul conduziu-a ao departamento de
Cirurgia que estava sob seu controle direto.
Quando a retiraram da maça e a colocaram na cama, ela
começou a tremer convulsivamente. Fez um esforço sobre-humano para
relaxar os músculos rígidos, mas não conseguiu. Sua mente tinha
perdido o controle do corpo. Fechou os olhos e perdeu o conhecimento
do que se passava ao redor.
Durante as dezoito horas que se seguiram, Roberta flutuou num
mundo de trevas que parecia disposto a engoli-la. Mas, mesmo nesse
estado, percebia que Paul estava sempre ao seu lado.
Era madrugada quando saiu da inconsciência. Por um momento
ficou desorientada, ao notar que estava num leito de hospital. Com
grande esforço voltou-se para Paul, que descansava na poltrona, a
barba por fazer, os olhos fundos de preocupação e cansaço. Apesar da
pouca luz da lâmpada de cabeceira, conseguiu perceber a tensão que o
dominava. Desejou tocá-lo, mas o braço não correspondeu ao comando
dá mente.
O peito e a cabeça doíam-lhe terrivelmente, mas a febre baixara.
Com a boca seca, teve de umedecer os lábios várias vezes antes de
poder falar.
— Paul...
Ele levantou a cabeça no mesmo instante.
— Posso beber alguma coisa?
Ele a soergueu e ofereceu-lhe um copo de água.
— Só um pouquinho. Como está se sentindo?
— Melhor... Não se preocupe, vou ficar boa em poucos dias.
— Você me deu um susto! A febre continuava a subir e... —
havia uma angústia profunda na voz dele.
— Não vai se livrar de mim tão facilmente assim, Dr. Wilcox.
Ele sorriu, satisfeito.
— Que bom ouvir isso! Agora durma, minha querida!
— E você vá para casa. Precisa descansar.
— Não vou sair daqui, Roberta.
— Paul...
— Vou continuar aqui! Fico mais descansado do que estando em
casa. Além do mais, quero ter certeza de que você não fala enquanto
dorme.
— Bobinho.
Na segunda-feira, Roberta tinha superado a crise e Paul, diante
de seus insistentes pedidos, deixou o quarto. Cancelando as aulas da
parte da manhã, ele foi para casa e dormiu algumas horas.
À medida que recuperava as forças, ela percebeu que não
gostava de desempenhar o papel de paciente. Era como viver num
aquário. Sempre havia alguém rondando pelo quarto: enfermeiras que
lhe controlavam a temperatura e lhe ministravam os medicamentos,
fisioterapeutas que a obrigavam a fazer exercícios respiratórios para
desobstruir os pulmões congestionados... era uma procissão que não
tinha fim. Ressentia-se dessa contínua invasão de sua privacidade. E
depois havia Paul. Ele apresentava um ar tão cansado...
— A senhorita realmente impressionou alguém! — exclamou a
ajudante de enfermagem, na terça-feira, entrando no quarto com um
enorme buquê de rosas.
Roberta leu o cartão que acompanhava as flores e ficou
repentinamente saudosa do lar.
"Annie e eu estamos sentindo enormemente sua falta!
Com todo amor, P."

Depois de reler a mensagem, ela pediu à jovem:


— Quer trazer meu estojo de maquilagem? Gostaria de me
arrumar um pouco.
Ao se olhar no espelhinho, impressionou-se. Estava pálida, e
olheiras profundas marcavam seus olhos. Ajudada pela moça,
maquilou-se ligeiramente e vestiu uma camisola nova. Quando
terminou, parecia outra.
Estava decidida a permanecer acordada até que Paul chegasse,
mas sua determinação foi vencida pela fraqueza. Tinha mergulhado
numa leve sonolência, quando ele entrou no quarto.
Acordou com o leve ruído das cortinas do leito. Abriu os olhos e
viu Paul ao lado da cama.
— Bom dia, doutor.
— Bom dia. Está com boa aparência, Dra. Mitchell.
— Estou me sentindo melhor.
— Pode ir, enfermeira — disse Paul, voltando-se para a
atendente.
I— Perfeitamente, doutor.
Paul lançou um olhar cúmplice a Roberta e pôs-se a examinar a
ficha clínica. Não ergueu os olhos da papeleta, enquanto a enfermeira
não deixou o quarto. Roberta sorriu, quando ele se inclinou para beijá-
la.
— Obrigada pelas flores, Paul. São lindas!
— Amor, a casa parece tão vazia sem você...
— Não quer me dar alta?
— De jeito nenhum! — Ele tirou o estetoscópio e auscultou-lhe
os pulmões. — Respire fundo.
Ela fez uma careta, mas obedeceu.
— Vai ter de ficar no hospital por um bom tempo — afirmou ele,
endireitando-se.
— Detesto isto aqui!
— Eu sei, mas precisa de uma terapia intensiva. Roberta
estendeu-lhe os braços.
— Abrace-me, Paul, por favor!
Ele não se fez de rogado, estreitando-a fortemente contra si.
— Meu Deus, como sinto sua falta. Você não sabe como fico
aliviado, agora que está melhor.
— Não se preocupe comigo, amor.
Paul fechou a cortina em volta da cama para ficarem a salvo de
olhares indiscretos e tornou a abraçá-la. Não precisavam de palavras.
Queriam apenas saborear o calor daquela proximidade.
— Prometa que nunca mais vai me pregar um susto desses!
— Prometo.
— Telefonei para os seus pais. Achei melhor que eles soubessem
que está internada.
Os olhos de Roberta arregalaram-se de surpresa. Paul não
entendia por que ela se recusava a convidar os pais, desde que se
mudara para a casa dele, nem por que relutava em contar-lhes que
estavam morando juntos.
Paul conhecera-os quando, num certo fim de semana, os
Mitchell apareceram em Calgary, hospedando-se num hotel.
Desde então, insistia em que o velho casal se hospedasse na
casa deles.
— Não me olhe desse jeito, Roberta. Sabe que gosto de seus pais
e não concordo que esconda deles os fatos.
— Eu sei, mas...
— Não vamos discutir isso agora, amor. Essa é uma decisão sua.
Eu devia ter telefonado antes a eles, porém fiquei tão preocupado, que
não consegui pensar em mais nada.
— O que eles disseram?
— Queriam saber se podiam visitá-la.
— Não, não quero que venham.
— Roberta, eu lhe dou minha palavra que não contarei nada.
— Não é por isso. Não tenho forças para receber visitas. Telefone
de novo e diga que lhes mando todo meu amor. Mas que estou muito
fraca para falar.
— Se é isso que você quer... — ele inclinou-se e beijou-a. — Acho
melhor ir embora, caso contrário acabo me deitando ao seu lado.
— Precisa ir já, Paul?
— Bem, ainda disponho de alguns minutos... Tem certeza de que
não quer que seus pais venham vê-la?
— Tenho. Pretendo voltar para casa e não quero ninguém ao
meu lado, a não ser você.
Ele não resistiu ao mudo apelo de seus olhos e voltou a abraçá-
la.
— Vou levá-la para casa assim que puder, amor. E vou cuidar de
você.
Roberta fechou os olhos e deixou-se envolver pelo calor e pela
segurança que aqueles braços fortes lhe proporcionavam.

Na quinta-feira, quando Paul terminou de examiná-la, Roberta


insistiu na mesma pergunta de sempre:
— Quando posso voltar para casa?
Ele fez que não ouviu e continuou a fazer anotações na ficha.
Roberta irritou-se. Sentia uma instintiva aversão pela enfermeira que o
acompanhava nas rondas. A ruivinha fitava-o com ar extasiado, e aquilo
a aborrecia enormemente.
Ao voltar os olhos para Paul, percebeu que ele esboçava um
sorriso divertido.
— O que falou Dra. Mitchell?
— Quando terei alta?
— Por que está com tanta pressa, doutora? A voz dele era
absolutamente impessoal.
— Tenho um cão que está criando problemas — afirmou ela,
lançando um olhar à enfermeira que ainda fitava Paul com ar de
interesse. — Tive muito trabalho para treiná-lo e não quero que ele se
sinta muito solto.
— Hum... O cão é de raça?
— Ah, sim. Um belo espécime, segundo o parecer de um júri
feminino. Mas as mulheres são muito parciais, quando julgam cães
dessa raça.
Percebeu que ele fazia força para não rir, e continuou com doce
malícia:
— Então, doutor? Acha que posso ter alta logo?
— Talvez...
Ela teve vontade de estrangulá-lo. Mas, sem dar mostras de ter
notado sua irritação, Paul virou-se e saiu do quarto, acompanhado pela
ruiva que o olhava com adoração.
Naquele dia, o quarto tornou-se o centro de um contínuo vai e
vem. Roberta gostava do pessoal com quem trabalhava e não queria
magoar ninguém, mas a enfermaria mais parecia o terminal de um
aeroporto. Estava começando a rebelar-se contra a situação. Queria
ficar sozinha e não deixavam. Ter Paul a seu lado era impossível. Já não
agüentava mais! Pretendia voltar para casa de qualquer jeito!
À tardinha, quando Paul chegou, encontrou o Dr. Standish no
quarto.
— Quando vai tirá-la daqui? — perguntou o homem, com voz
ressonante.
— Roberta está se recuperando de uma pneumonia. Por isso não
poderá ser removida, por enquanto.
— Você já foi paciente alguma vez, Wilcox?
— Não, por quê?
— Pois eu, sim. Faz uns dois anos. O pessoal vivia me rodeando,
quase me matavam com tantos cuidados. Foi um inferno!
— Está querendo dizer que devo dar alta à Dra. Mitchell?
— Se ela fosse uma paciente comum, não me atreveria. Mas
tratando-se da Dra. Mitchell... Tem alguém que possa cuidar dela em
casa?
Roberta sorriu e disse:
— Tenho alguém que pode seguir as instruções médicas básicas,
doutor.
Os olhos de Paul estreitaram-se e ela quase riu.
— Então, prometa que vai obedecer fielmente às instruções de
Paul — disse o Dr. Standish, dando-lhe uma palmadinha afetuosa na
mão. — Não facilite.
Encaminhou-se para a porta, acompanhado por Paul.
— Espero que não me julgue intrometido, Wilcox. Se ela fosse
uma doente qualquer, não lhe daria alta. Especialmente depois de
examinar as chapas de seus pulmões. Mas há o outro aspecto da
questão.
— Não vejo nenhuma ofensa nisso. Olhe o ar satisfeito da Dra.
Mitchell.
O cirurgião piscou o olho para Paul.
— Não se deixe impressionar, Wilcox. Ela pensa que ainda é a
melhor residente do hospital.
— Obrigada por ter vindo, Dr. Standish. Gostei muito de sua
visita — afirmou Roberta.
Quando o colega saiu, Paul dirigiu-se para a janela e ficou
olhando para fora.
— Posso ir para casa? — insistiu ela, com voz cautelosa. Ele se
voltou para encará-la e, depois de soltar um suspiro resignado,
assentiu.
— Tenho minhas dúvidas, mas...
— Então, leve-me já! — implorou ela, com expressão ansiosa.
Paul inclinou-se para beijá-la, mas, naquele exato momento, a
enfermeira entrou no quarto. Com um gemido de frustração, ele se
afastou e dirigiu-se para a porta.


Capítulo IX

Por volta do meio-dia de sexta-feira, Roberta estava em casa,


cercada pelas atenções da Sra. Butterfield, que se tornara
indispensável. Depois do leve almoço, ela tomou o sedativo prescrito e
mergulhou num sono profundo, só acordando à noitinha, quando Paul
chegou.
Ignorando seus protestos, ele a submeteu a uma sessão de
exercícios respiratórios, obrigando-a a tossir violentamente. Depois,
Paul tomou um banho, vestiu o robe e deitou-se ao lado dela. Soltando
um suspiro de satisfação, estreitou-a nos braços e aconchegou-a
firmemente de encontro ao peito.
— É tão bom ficar com você, querida! Senti muito sua falta.
Ela levantou a cabeça, os olhos brilhando de felicidade.
— Eu estava com tanta saudade de casa! Sentia-me perdida,
longe daqui e de você.
Paul acariciou-lhe o rosto com infinita ternura, e, quase
imediatamente, ela fechou os olhos, um suave sorriso entreabrindo-lhe
os lábios. Sentia-se segura nos braços dele. Adormeceu sem perceber.
Quando acordou, o quarto estava imerso em penumbra. A
respiração calma e regular de Paul indicava que ele dormia. Esticando-
se sensualmente, ela descansou a cabeça no peito dele. Um calor
agradável lhe aquecia o corpo.
Correu os dedos de leve pelo tórax musculoso, deliciando-se com
a textura da fina camada de pêlos que o cobria e com a firme
musculatura daquele corpo que a encantava. Atlético, forte, viril; um
homem de verdade. Gentil, amante, apaixonado, era assim o homem
que ela amava.
De repente, Paul moveu-se em sua direção, abrindo os olhos e
estendendo os braços para tocá-la. Uma intensa sensualidade emanava
de seus dedos carinhosos.
— Isso não fazia parte da prescrição médica, amor —
murmurou, respirando forte.
Abraçaram-se e beijaram-se. Os lábios e a língua de Paul
acendiam labaredas por onde passavam e Roberta sentiu-se tomada de
verdadeira vertigem. Um gemido de prazer escapou de sua garganta,
enquanto uma onda de volúpia explodia em suas veias.
— Vou fazer amor com você bem devagar. Quero recuperar o
tempo perdido...
— Ame-me, Paul! Preciso que você me ame.
E ela se abandonou às ardentes carícias dele com uma ousadia
que não acreditava possuir. No delírio da paixão, rolaram na cama,
beijando-se com sofreguidão, mordiscando-se, excitando-se
mutuamente.
Quando ele a acomodou sob seu corpo e finalmente a possuiu,
Roberta foi tomada de um prazer tão intenso que, por alguns instantes,
quedou-se imóvel incapaz até mesmo de respirar. Depois, soltou um
longo suspiro, quase desfalecendo.
— O que foi Roberta?
Ainda imersa naquele turbilhão de emoções, ela não conseguia
falar. Paul acendeu a lâmpada de cabeceira e tomou-lhe o rosto entre as
mãos, fitando-a com olhos ainda enevoados de paixão.
— Algo errado, amor?
Ela engoliu um soluço e balbuciou:
— Eu o amo tanto! Não poderia suportar a vida sem você.
— Minha querida... Por uns instantes, cheguei a pensar que
houvesse magoado você. Por que essa preocupação? Não vou a lugar
algum e não tenho nenhuma intenção de desaparecer.
Já mais calma, ela sorriu.
— Não gostei do jeito daquela ruivinha. Ela só faltava agarrá-lo!
— Não percebi nada. Estava distraído com o decote da sua
camisola.
— Mentiroso!
— Você acha que um homem, em perfeito juízo, escolheria um
ensopado frio, quando tem um prato quente e saboroso ao seu alcance?
— Talvez sim, por curiosidade. Ele riu.
— Não gosto de ensopado!
Roberta respirou fundo e seu peito chiou.
— Percebe que precisa de outra sessão de terapia? E é
exatamente isso o que vai ter.
— O que há com você, Paul? Faz amor comigo e depois quer me
quebrar os ossos?
— Não se faça de engraçadinha. Se me provocar, vai direto para
o hospital.
— Não se atreva!
Ele a olhou subitamente sério.
— Tem razão. Não me atreveria.
A volta para casa revelou-se um santo remédio para Roberta,
que melhorava a olhos vistos. Dormia quando queria e precisava, e Paul
era rigoroso com os exercícios respiratórios e cuidados médicos.
Ambos precisavam de repouso e de passar algum tempo
sozinhos. Ela ficou encantada, quando soube que Paul emendaria a
segunda-feira e que poderiam usufruir de um fim de semana
prolongado.
Aproveitaram cada minuto de lazer, e na terça, quando ele foi
trabalhar, a casa parecia mais vazia e silenciosa do que nunca. Roberta
andou a esmo, de quarto em quarto e, por fim, exasperada, resolveu pôr
uma máscara de beleza antes do banho de imersão.
No banheiro, ao abrir a gaveta do armário de cosméticos e
remédios, suas forcas a abandonaram.
— Meu Deus! Não...
A repentina fraqueza nada tinha a ver com a doença que a
acometera. Tinha pegado à caixa de pílulas anticoncepcionais e fitava-a
horrorizada. Quanto tempo fazia que deixara de tomá-las? Seis dias no
hospital e três... não... quatro dias em casa... Misericórdia!
Encaminhando-se para o quarto com passos lentos, deixou-se
cair na beirada da cama. Enterrou o rosto entre as mãos, desesperada.
Seu corpo trêmulo estava úmido de suor. Não conseguia pensar direito,
não se lembrava de nada.
Levantou-se de repente, os dedos apertando convulsivamente a
caixa das pílulas, e precipitou-se para baixo, movida pela força do
desespero.
O coração batia-lhe selvagemente no peito, quando entrou no
escritório de Paul. Agarrou o calendário da mesa de trabalho e, depois
de contar quantas pílulas faltavam no invólucro, verificou as datas e fez
as contas. Não, não podia ser! Seus joelhos fraquejaram e ela caiu
sentada na poltrona.
Passados alguns minutos, começou a raciocinar. Como podia ser
tão idiota? Tinha de pensar, não entrar era pânico. E tinha de pensar de
cabeça fria!
Ela e Paul haviam feito amor muitas vezes, desde que voltara
para casa. Isso devia ser levado em conta. Por outro lado, como estivera
doente, podia ter ocorrido uma mudança no seu período fértil. Era uma
roleta-russa onde só existiam duas eventualidades: ou estava grávida,
ou não estava. Mas não tinha condições de prever nenhuma das duas
alternativas. Provável... possível... impossível... Quem poderia saber?
Qual seria a reação de Paul, se soubesse que ela poderia estar
grávida? Quanto mais pensava nisso, mais confusa ficava. Além do que,
contar-lhe não resolveria nada. Pelo contrário: iria desencadear uma
sucessão de problemas que provocariam uma tremenda tensão entre os
dois.
Suspeitava que ele nunca a apoiaria. Ou então se julgaria na
obrigação de se casar com ela. Essa idéia era inquietante. Razão pela
qual decidiu não envolvê-lo custasse o que custasse. Se Paul quisesse
casar-se com ela, deveria fazê-lo de espontânea vontade, não porque se
visse forçado a isso.
A cena ocorrida na casa dos Dennison voltou-lhe à memória.
Como esquecer a amargura de Keith ao proclamar que não teria se
casado com Nicole se ela não estivesse grávida?
Conhecendo o que Paul pensava do casamento e a infância triste
que tivera, era fácil imaginar que ele não enxergaria o lado positivo da
paternidade. E ainda havia uma chance de que seus receios fossem
infundados. Uma chance...
Bem, o melhor seria nada dizer a Paul. Afinal, o problema era
seu e ela o enfrentaria sozinha.
Mais calma, consultou de novo o calendário. Deveria fazer um
teste de gravidez em meados de dezembro, se nada acontecesse até lá.
Saberia o resultado antes do Natal, quando iria com Paul à casa de seus
pais. Nesse meio-tempo faria o possível para não fornecer a Paul um só
motivo de suspeita.
Os dias que se seguiram foram cheios de altos e baixos. O
comportamento de Paul mudara sensivelmente, desde que ela adoecera.
Agora parecia mais compenetrado, e muitas vezes em conversas
descontraídas fazia planos para o futuro que a incluíam.
A compra da casa dera a Roberta senso de segurança, pois
significava criar raízes, que pouco a pouco ganhavam força, fazendo-a
realmente acreditar que Paul passaria o resto de seus dias ao lado dela.
Então, sentia-se mais feliz do que nunca.
No entanto, havia horas, especialmente quando estava sozinha,
em que aquela felicidade lhe parecia mais frágil do que cristal. Nessas
ocasiões, encarava um futuro ao lado dele como uma quimera. E seus
sonhos se povoavam de pesadelos, que a acordavam assustada no meio
da noite. Só encontrava consolo nos braços fortes de Paul.
No dia em que soube que sua irmã, Cecile, dera à luz uma linda
menina, Roberta descontrolou-se. Mas à noite, quando Paul chegou, já
recobrara o domínio de si mesma. Não podia entrar em pânico... ainda
não.
Desde que fora hospitalizada, tinha perdido a alegria e a
serenidade e não sabia se atribuía isso à doença ou às apreensões.
Notou que Paul a observava com preocupação e experimentou um início
de desespero, que logo procurou disfarçar.
Estava com tanto receio de se trair que se sentia tolhida em sua
espontaneidade, embora não percebesse...
Certa noite, depois do jantar, descansavam diante do fogo da
lareira. Ela fitava as chamas com ar absorto e não se deu conta de que
Paul dobrara o jornal e a olhava fixamente.
— Qual é o problema, Roberta? — perguntou ele num tom
suave. — Você não parece mais a mesma.
No mesmo instante o sangue lhe fugiu do rosto, enquanto ela
erguia os olhos para encontrar os dele.
— Deve ser o cansaço.
— Duvido... Tenho a impressão de que algo a preocupa.
— Como assim?
Ele acendeu o cigarro e soltou uma baforada.
— Arrependeu-se do convite que me fez?
— Que convite?
— Passar o Natal em Kimberley, na casa de seus pais.
O absurdo daquela dedução espantou-a. Então se endireitou na
poltrona e o fitou com ar de incredulidade.
— Por que deveria estar arrependida?
— Ora, eu poderia criar uma situação constrangedora para você.
Seus pais não sabem que estamos vivendo juntos.
A tensão que a voz dele traía fez com que Roberta se atirasse em
seus braços, beijando-o desesperadamente.
— Não sei como eles irão reagir. Espero que entendam a
situação, porque pretendo contar-lhes a verdade.
Ele segurou-lhe o rosto e olhou-a bem no fundo dos olhos.
— Você vai tomar essa atitude porque acha que é a mais correta,
ou porque crê que me deve isso?
Ela murmurou, com a voz embargada pela emoção:
— Não é só por você, mas também por mim. Não quero
continuar com esse jogo de esconde-esconde. Prefiro ser honesta com
eles. Poderão me criticar, mas não me condenarão. Sei disso.
Respirou fundo e prosseguiu:
— Quero viver com você à luz do dia, em vez de me esconder
para não magoá-los. Você é muito importante para mim e eles precisam
saber disso.
— Eu não gostaria que se indispusesse com seus pais por minha
causa. Sei quanto eles significam para você.
— Se isso acontecer, não será por sua causa, mas por nossa
causa. Sem você, a vida não tem sentido.
Paul beijou-a de forma delirante, a que ela correspondeu com
uma paixão ditada mais pelo desespero de esquecer as dúvidas e as
incertezas do que pelo prazer.

Sentada à saleta de espera do laboratório de análises, Roberta


sentia uma contração no estômago. Dissera à enfermeira encarregada
dos testes que estava com uma paciente na Cirurgia. Suspeitava que a
jovem estivesse grávida, embora a médica responsável descartasse a
hipótese, achando-a totalmente absurda. Queria ter certeza, antes de
tomar qualquer decisão. Porém, para não melindrar a colega, precisava
conhecer o resultado dos testes extra-oficialmente. Era essa a história
que inventara para resguardar-se.
A enfermeira prometera discrição e Roberta ficara à espera. Mas
o tempo passava devagar, cada segundo parecia uma eternidade.
Quando pensou que não poderia agüentar a tensão p6r mais tempo, o
envelope lacrado lhe foi entregue.
Recebeu-o com mãos trêmulas e, quase cambaleando,
encaminhou-se para a sala dos médicos. Fechou cuidadosamente a
porta atrás de si. Tremia tanto que quase não conseguia retirar a folha
dobrada do interior do envelope. O bilhete da analista dizia:
"Acertou em cheio, Dra. Mitchell. A jovem está mesmo grávida".
Roberta amassou o papel, abafando uma enorme vontade de
gritar: "Não, Senhor, não!" O golpe atingiu-a em cheio. Por falta de
cuidado, estava carregando no ventre um filho de Paul. O que devia
fazer, agora?
O pânico revolvia-lhe as entranhas. Sentiu uma enorme vontade
de sair correndo. Com gestos frenéticos, retirou a bolsa e alguns objetos
de uso pessoal do armário e precipitou-se para o corredor. Encontrou
forças para se controlar e avisar a enfermeira encarregada da seção que
não estava passando bem e que ia embora.
Não soube como chegou em casa. Uma vez a salvo no quarto,
deu vazão à dor e à angústia que lhe arrebentavam o coração. Quando o
peso que lhe oprimia o peito diminuiu, sentiu-se vazia de tudo. Até
mesmo da dor.
Seu rosto parecia uma máscara, quando desceu à saleta de
estar. Retirou um cigarro do maço que estava na mesinha do café,
acendeu-o e dirigiu-se para o pátio coberto dos fundos.
Flocos de neve caíam do céu cor de chumbo, envolvendo as
árvores e as folhagens num espesso manto branco. Imersa num estado
de torpor, ela permanecia insensível à paisagem. Um pensamento
obstinado continuava a lhe martelar a mente.
E agora? O que fazer? Podia contar tudo a Paul, mas seria uma
solução? Ele não queria filhos; dissera isso mais de uma vez. Um
aborto? Paul não iria considerá-lo uma alternativa e ela muito menos.
Como poderia pensar em destruir a vida de uma criança que desejava
de todo o coração? De um ser que fora concebido num ato de amor
muito especial?
Só havia uma solução para o impasse: deixar Paul... Mas a
simples idéia de abandonar o homem que amava era insuportável. Não
poderia viver sem ele. Depois de muito pensar, viu-se diante de três
alternativas: contar a Paul; fazer um aborto; sair da vida dele. Que
caminho deveria seguir?
Não podia dizer a verdade a Paul. Ele poderia querer casar-se
com ela... e um casamento naquelas circunstâncias acabaria por
destruí-los. Não, nunca.
Restavam duas opções: abortar ou deixá-lo. Poderia abandoná-
lo, sabendo como isso o magoaria? Seria justo infligir-lhe esse
sofrimento? Não, de maneira alguma...
O aborto era a alternativa mais difícil, porém traria sofrimento
apenas a ela. Paul nunca saberia de nada. Poderia fazer isso fora da
província, num centro maior, como Vancouver.
Sua avó morava lá. Usaria isso como desculpa, era uma
camuflagem perfeita... No começo de janeiro, quando Paul fosse a
Houston, tomaria as providências nesse sentido, sem que ele soubesse
de nada.
Fechou os olhos, na vã tentativa de esquecer a agonia
insuportável que a acompanharia pelo resto de seus dias. Seu filho
jamais nasceria. Destruindo o milagre de vida que trazia dentro de si,
estaria também se destruindo...
Os dias que se seguiram àquela tomada de posição foram
terríveis. Continuou a fazer as coisas de sempre com obstinada
determinação, disfarçando a angústia que sentia. Notava que Paul a
observava com redobrada atenção, como se desconfiasse de algo...
Por diversas vezes, ele tentara descobrir o que a perturbava, mas
ao receber respostas evasivas não insistira no assunto.
O único momento em que ela conseguia esquecer o desespero
era à noite, quando faziam amor. Parecia impossível, mas havia
renovação, uma nova riqueza nas carícias que trocavam que os
transportavam as alturas jamais sonhadas. Antes, ela atingia o clímax
rapidamente, mas, agora que queria fugir do tormento pelo menos por
alguns instantes, demorava-se no ato o mais que podia.
Passavam-se horas antes que seus desejos fossem satisfeitos
num fogo de paixão indescritível. Depois, adormecia tranqüila e segura,
nos braços dele, esquecendo no sono seus atormentados pensamentos.
Partiram para Kimberley num daqueles dias frescos e límpidos
de inverno que, no passado, sempre a encantavam. Parecia haver no ar
algo revitalizante e mágico que afastava sua dor secreta,
proporcionando-lhe uma estranha alegria.
À medida que deixavam Calgary para trás, uma maravilhosa
sensação de bem-estar a invadiu. Seus olhos brilhavam, seu sorriso era
leve.
Disse algo que fez Paul rir, e, com satisfação por vê-la tão
descontraída, até passou o braço por seus ombros e apertou-a contra
si. Beijando-a na testa, aninhou sua cabeça no peito forte e a manteve
assim durante longo tempo.
Ficava claro que a tensão dos últimos dias o abandonara, como
se sua alegria fosse uma fonte de energia para ele. Envergonhada,
percebeu que fazia muito tempo que não demonstrava aquela fácil
espontaneidade.
Seu bem-estar foi de curta duração. Durou, exatamente, até
pouco depois do jantar na casa de seus pais.
Ela e as duas irmãs mais novas estavam lavando a louça e uma
delas, Alana, tentava convencer todo mundo a esquiar naquela noite, à
luz dos archotes.
— Vamos, Bimmy. Você sempre esquiava nessas colinas. Por
que não quer ir?
— Não seja impertinente, Alana. Prefiro ficar em casa com papai
e mamãe.
Jennifer, a outra irmã, entrou na cozinha com os últimos pratos
do jantar e afirmou:
— Eu vou. Esse semestre de faculdade foi massacrante e quero
me divertir um pouco.
Paul chegou da sala nesse instante e serviu-se de uma xícara de
café.
— Já conseguiram convencê-la, Roberta?
— Detesto esquiar à noite. Não quero me arriscar a quebrar o
pescoço nessas colinas.
— Ora, Bimmy, deve estar brincando! — admirou-se Jennifer. —
Você esquia, praticamente, desde que nasceu.
Paul sorriu, enquanto a ajudava a enxugar a louça.
— Sua irmã está ficando preguiçosa — disse, com um brilho de
malícia no olhar. — Acha que a cama é o melhor local de lazer que
existe.
Corando, Roberta lançou-lhe um olhar de repreensão, a que ele
respondeu com um sorriso triunfante, examinando-a dos pés à cabeça.
— Então, acompanhe você esses dois pequenos monstros. Alana
entusiasmou-se.
— Vamos, Paul? É um lugar fantástico, especialmente à noite.
— Não se importa se eu for Rob? — ele quis saber.
— Claro que não, desde que leve essas duas impossíveis para
longe daqui.
Jennifer trocou um olhar de entendimento com Alana.
— Não somos tão más assim, somos?
— São uns demônios! — afirmou Roberta.
Nesse momento, Edwin Mitchell entrou na cozinha, o cachimbo
apagado preso entre os dentes.
— As duas estão dando muito trabalho? — perguntou, indicando
Jennifer e Alana.
— Acho que conseguirei domá-las — respondeu Paul, com um
sorriso.
Edwin lançou um olhar cético às filhas mais jovens e balançou
desanimadamente a cabeça.
— Essas meninas! Eu disse à mãe delas, há alguns anos, que
iriam tornar nossa vida um inferno. Ela não acreditou.
Alana sorriu e beliscou-lhe delicadamente a bochecha.
— Sabemos que você não acredita numa só palavra do que diz.
— Olhou-o com afeto e apontou um furo no suéter, — Papai, por que
não joga fora esse casaco horroroso? Mamãe pode tricotar-lhe outro.
— Gosto desse — replicou Edwin com uma nota de teimosia na
voz.
Roberta ouvia aquela amigável troca de palavras com um sorriso
nos lábios. De repente, sentiu uma emoção estranha apertar-lhe o peito.
O brilho de seus olhos desapareceu, dando lugar a uma expressão de
angústia. Debruçou-se na pia, fingindo-se ocupada para esconder o
rosto. Custou-lhe esforço manter uma aparência de alegria, enquanto
Paul e as garotas não saíam para esquiar nas colinas.
Talvez sua emoção fosse causada pela incontida ânsia de abrir-
se com os pais. Dana e Cecile, as irmãs mais velhas, chegariam no dia
seguinte com os filhos. Mais uma vez a família estaria toda reunida.
Então, as chances de ter uma conversa particular com eles seriam
praticamente nulas.
Soltando um suspiro triste, saiu da cozinha, ao encontro deles.
A mãe, sentada na poltrona favorita, tricotava ao lado do marido que lia
o jornal. Roberta permaneceu no limiar da sala, olhando-os,
profundamente emocionada. Trinta anos de casamento, cinco filhas e
três netos, e ainda eram tão unidos!
A devoção que sentiam um pelo outro continuava a mesma
através dos anos e dos bons e maus momentos. Os laços que os uniam
eram sólidos, invencíveis e... invejáveis.
Dorothy Mitchell levantou a cabeça e sua expressão tornou-se
preocupada, ao olhar para a filha.
— Algo errado, querida?
Com um nó na garganta, Roberta aproximou-se e sentou-se no
chão, ao lado da mãe.
— Que foi Bimmy? — perguntou o pai, abaixando o jornal. O
calor do sorriso de ambos começou a desfazer a angústia que envolvia o
coração dela.
— Queria falar com vocês, mas acho que não vão gostar do que
tenho a dizer. Não queria desapontá-los...
Edwin olhou-a afetuosamente.
— Duvido muito, minha querida. Pode falar... Diga o que a está
preocupando.
Respirando fundo, Roberta confessou:
— Paul e eu estamos morando juntos há mais de seis meses.
— Nós já sabíamos — disse Dorothy depois de um breve silêncio.
— Como pode ser? — Roberta perguntou atônita.
— Quando fomos a Calgary, percebemos que sua vida estava
mudada. Então ficamos conhecendo Paul e tiramos nossas conclusões.
— Mas nada foi dito que...
Edwin deu uma risadinha e sacudiu a cabeça.
— Nada foi dito, mas não somos cegos. Era evidente a adoração
que Paul demonstrava por você. Além do mais, minha querida, você é
transparente como água.
Dorothy pôs o tricô no colo e fitou-a atentamente.
— Você parece tão preocupada, Bimmy...
— É uma longa história, mamãe.
Edwin acendeu o cachimbo. À primeira baforada, um agradável
cheiro de fumo invadiu a sala.
— Somos bons ouvintes, você sabe.
Titubeante a princípio, depois com mais decisão, ela contou-lhes
tudo. Não omitiu nada, exceto que estava grávida. Quando terminou,
sentia-se emocionalmente exausta. Edwin pigarreou, antes de começar
a falar.
— Desde que conhecemos Paul não tivemos nenhuma dúvida
quanto à retidão do caráter dele. Percebemos também que ele se
preocupa muito com você.
— Não sabe como ele ficou aflito durante a sua doença —
acrescentou Dorothy num tom emocionado. — Você não tomaria a
decisão de morar com ele, se não o conhecesse bem. Não deve ter sido
fácil.
— Viva sua vida do jeito que achar melhor — aconselhou o pai.
— E não importa o que aconteça, estaremos sempre de seu lado.
Sempre.
Roberta levantou-se e o abraçou fortemente.
— Amo vocês demais — sussurrou.
Ainda estavam na sala quando os outros chegaram do campo de
esqui. Paul entrou os cabelos escuros em desalinho, o rosto rosado pelo
frio. O suéter de lã acentuava-lhe o peito largo e a cintura estreita.
Tinha uma aparência magnífica. Aproximou-se de Roberta e encostou-
lhe as mãos geladas nas faces. Ela afastou-as, arrepiada.
— Divertiram-se bastante?
Ele enlaçou-a pelos ombros e ela pôde sentir o perfume do ar
fresco de montanha e o cheiro da neve.
— Foi espetacular!
— Papai está abrindo uma garrafa de seu melhor uísque em sua
homenagem.
— Aqui estou eu — disse Edwin, entrando na sala com dois
copos. — Mas o melhor está aqui — e apontou para os drinques.
Depois de entregar um dos copos a Paul, acomodou-se na sua
poltrona predileta.
— Soubemos que você e Bimmy estão morando numa casa perto
do Elbow — comentou, com naturalidade.
A expressão de Paul tornou-se séria. Cauteloso, tentou
encontrar no rosto do velho alguma intenção oculta.
— Sim, estamos.
— O rio passando nos fundos da propriedade... Deve ser o
paraíso para um pescador. — Edwin tirou uma baforada do cachimbo
antes de completar: — Ouça meu conselho: não a mime demais, senão
ela vai transformar sua vida num inferno.
Roberta percebeu que Paul relaxava, olhando para seu pai com
profundo respeito e gratidão. Sorriu, quando ele apertou-a contra si e
respondeu:
— Por mais que me esforce, não vou conseguir mimá-la tanto
quanto vocês.
— Todos os pais gostam de dar carinho aos filhos — observou
Edwin.
— Nem todos... — murmurou Roberta. O rosto de Paul tornou-se
sombrio.
— É verdade. Nem todos...
Havia tanta amargura em sua voz que ela se sentiu invadida por
uma onda de piedade e ternura. Perturbou-se quando ele se levantou
abruptamente e dirigiu-se para a cozinha.
A partir daquele instante, soube que as festas natalinas não
iriam transcorrer no clima alegre e descontraído que imaginava. Pelo
menos para ela e Paul. E não se enganara.
Na manhã seguinte, ele parecia recolhido em si mesmo, sem
deixar transparecer nada que pudesse esclarecer aquela atitude
distante. No entanto, notou que comparava mentalmente seus pais com
os dela.
Precisavam conversar abrir-se, mas Roberta não tinha forças
para suportar novas tensões. Já bastava o sentimento de culpa que lhe
invadia a alma.
Uma comoção geral marcou a chegada de sua irmã Cecile, com o
novo bebê nos braços. Todos se acotovelaram junto à porta de entrada,
rindo e conversando. Jennifer aproximou-se querendo pegar a nova
sobrinha no colo, mas Cecile fez que não, olhando para Roberta, de
modo terno.
— Você em primeiro lugar, Bimmy.
Como se lhe tivessem cravado um punhal no peito, seu primeiro
impulso foi de se negar e sair correndo dali. Mas não podia magoar a
irmã.
Com a sobrinha nos braços, dirigiu-se para o living e sentou-se
numa poltrona. Afastou o xale rosa e sorriu, emocionada, ao ver o
rostinho do bebê. Tão perfeito, tão lindo e real!
Pôs-se a embalar a criança com profunda ternura, até que um
movimento atrás dela chamou-lhe a atenção. Voltou-se. Paul estava
apoiado no arco de entrada da sala, com um brilho estranho nos olhos
escuros.
— Parece um quadro antigo... Eu não tinha percebido antes,
mas a maternidade assenta bem em você.
O que significaria aquele comentário? Roberta desviou o olhar,
receosa de que ele pudesse ler o segredo que guardava dentro de si.
Nesse momento, Alana entrou na sala saltitante de excitação.
— Quero segurar o bebê. Você parece que fica maluca quando
está com uma criança no colo.
Com um sorriso contrafeito, Roberta passou a sobrinha para os
braços da irmã, ciente da corrente de tensão que se estabelecera entre
ela e Paul.
— Então, ela fica maluca quando vê um bebê, é? — perguntou
ele, com voz neutra.
— Sempre — confirmou Alana. — Disse que quer ter pelo menos
quatro filhos.
Paul fixou os olhos nela.
— Realmente...
Ela se levantou abruptamente.
— Vou ajudar mamãe com o jantar.
Evitaram-se pelo resto da tarde, mas, quando Dana chegou com
os dois meninos e o marido, a tensão entre eles diminuiu um pouco.
A família inteira reuniu-se no living e Roberta sentou-se no
chão, observando o cunhado Miles, de quem gostava imensamente. Ele
acabara de levar ao banheiro o pequeno Troy, de dois anos, e agora
estava com o menino no colo.
Ao olhar Paul, percebeu que também ele observava Miles e Troy.
O garoto passara os bracinhos em volta do pescoço do pai e aninhara a
cabeça de cachos loiros em seu peito. Com um sorriso nos lábios, Miles
embalava a criança, murmurando-lhe alguma coisa ao ouvido.
Diante daquela cena encantadora, Roberta desejou
ardentemente saber o que se passava na mente de Paul, cuja expressão
era remota e estranha, como se acabasse de fazer uma descoberta
importante, e ao mesmo tempo intoleravelmente penosa.


Capítulo X

Um terrível pesadelo despertou Roberta no meio da noite. Seu


corpo estava úmido de suor e a mente bloqueada pelo pânico. Mas,
embora tentasse, não conseguia lembrar um único detalhe do horror
que ameaçara sufocá-la.
Com mãos trêmulas, afastou os cabelos do rosto,
experimentando uma vaga sensação de alarme ao perceber que as faces
estavam molhadas de lágrimas. Permaneceu imóvel por alguns
instantes, depois levantou-se cautelosamente da cama, procurando não
acordar Paul, que dormia ao seu lado.
A espessa escuridão do quarto quase a impedia de respirar.
Vestiu o robe de veludo e saiu, fechando a porta atrás de si. Encostou-
se na parede do corredor, esperando que a sensação de claustrofobia
passasse.
Depois de um instante de indecisão, desceu silenciosamente as
escadas e dirigiu-se ao living. Uma expressão de desespero marcava
seus olhos azuis, quando se sentou pesadamente no sofá, o corpo ainda
tenso por aquele pavor desconhecido.
Tudo havia mudado. Tudo. Fora vítima das circunstâncias de
sua própria moral, e até mesmo de seus sentimentos por Paul. Seu
mundo ruíra e nada podia fazer para impedir isso.
Recostou-se no sofá, o olhar perdido em algum ponto distante.
Devia ter pensado melhor, antes de resolver passar o Natal com a
família. Tinham sido dias enervantes, quando tudo parecia voltar-se
contra ela: alegria, amor, risos, a compreensão dos pais...
Então fora a única a ser afetada. Paul também estava muito
estranho. Tornara-se distante e impenetrável, e, a julgar por sua
expressão enigmática, estava tramando algo. O que mais a perturbava,
fazendo seus nervos estremecerem, era a raiva reprimida que percebia
nele.
Desde que tinham voltado de Kimberley, quatro dias antes, a
estranha tensão só aumentara. Mal se falavam, não faziam amor e,
embora dormissem na mesma cama, não podiam estar mais distantes.
Refugiavam-se no silêncio, que aumentava a cada dia que
passava, separando-os ainda mais. Logo, esse fosso seria
intransponível. Não poderiam continuar assim por mais tempo. Era
necessário tomar uma decisão antes que Paul partisse para a
convenção de Houston. E só faltavam dois dias.
Era inacreditável como seus planos podiam rapidamente ser
alterados pelas circunstâncias. Naquela tarde, resolvera contar a
verdade a Paul e isso lhe proporcionara uma paz de espírito que não
experimentava há muito tempo. Mas fracassara.
Ao chegar em casa, ele demonstrara uma frieza e um
distanciamento tão grandes que sua vontade de se abrir com ele
morrera subitamente. A sensação de perda a assustara. Tivera a
impressão de que eram dois estranhos, que estavam apenas adiando o
inevitável.
Suas divagações foram inesperadamente interrompidas pelo som
do antigo relógio de pedestal. Duas horas. Levantou-se e foi para a
cozinha. Talvez uma xícara de chocolate quente a ajudasse a pegar no
sono. Seus olhos detiveram-se no maço de cigarros que Paul deixara no
armário. Era incrível como ele não percebia que ela deixara de fumar.
Ou talvez tivesse percebido e não quisera fazer nenhum comentário.
Como podia saber o que se passava em sua mente?
— Qual é o problema? — ouviu-o perguntar. Sobressaltou-se,
não sabia se devido à inesperada rudeza de sua voz ou por sua brusca
entrada na cozinha. Controlando-se, ela o encarou.
— Perdi o sono.
Sob seu olhar penetrante, retirou o chocolate do fogo, encheu
uma xícara e sentou-se à mesa.
Paul hesitou por um momento, então acomodou-se diante dela,
a luz refletindo em seus cabelos e acentuando-lhe as feições severas.
— Temos muito que falar, Roberta — disse, com voz metálica.
Ela permaneceu em silêncio.
— Ouviu o que eu disse? — Ela o fitou a contragosto.
— Sim, ouvi.
— Não tenho paciência para jogos. Você se fechou como uma
concha e acho que me deve uma explicação.
Por um breve segundo, ela esteve tentada a lhe contar tudo, mas
a atitude desconcertante dele esfriou-lhe o ânimo. Esperara demais
para fazer aquela confissão, e o reconhecimento disso a feria
terrivelmente. Um profundo abismo os separava agora.
— Eu podia dizer o mesmo de você, Paul.
Houve um silêncio carregado de tensão, durante o qual ele a
fitava, atento a cada detalhe de sua expressão.
— Você está fugindo da resposta, Roberta.
— Será?
Seus olhos se encontraram por uma fração de segundo, e logo se
desviaram. Pareciam dois adversários medindo-se cautelosamente,
resguardando-se, enquanto procuravam descobrir a fraqueza de cada
um. Paul cruzou os braços diante do peito, começando a falar.
— Os dias que passei na casa de sua família foram uma
revelação. E o que me deixa louco, é que você nunca tentou se abrir
comigo.
— Como assim?
— Nunca comentou o que pensava de uma série de coisas...
Casamento, por exemplo. Filhos... Eu não sabia que você desejava
constituir família, até que Cecile chegou com o bebê e vi a expressão de
seu rosto...
Com um movimento brusco, empurrou a cadeira para trás e
levantou-se. Foi até o armário, pegou um cigarro e acendeu. Deu uma
tragada e então voltou a enfrentá-la.
— Francamente, Roberta! Não entendo por que nunca me disse
nada. São coisas que devíamos ter discutido!
— Teria feito alguma diferença?
— Você sabe que sim!
— Como se atreve a afirmar uma coisa dessas, depois de deixar
claro, desde o começo, o que pensava do casamento e de filhos? O que
aconteceria se eu tivesse lhe contado minhas aspirações? Teria alterado
seus valores, suas crenças? Você sabe muito bem que não!
Respirou lentamente, fazendo um esforço para acalmar-se. Não
iria ganhar nada argumentando com ele. Era muito tarde.
— Não me deixou nenhuma escolha, Paul.
— Eu não pretendia que você se sacrificasse por mim. Já sofri o
suficiente com os problemas de minha mãe. Esperava sinceridade de
sua parte.
Foi como se ele lhe desse uma bofetada. Nada poderia tê-la
magoado tanto. Engolindo lágrimas de humilhação provocadas por
aquelas palavras injustas, levantou-se de um salto.
Não chegou a dar dois passos e Paul agarrou-a pelos pulsos,
obrigando-a a fazer dar meia-volta.
— Vamos ter de esclarecer isto, Roberta! Não podemos permitir
que essa maldita tensão acabe conosco!
Ela estava pálida, os olhos vazios de expressão.
— Não, não podemos.
Desvencilhou-se de seu braço e soube no mesmo instante que
estava se condenando a uma morte lenta.

Quando fechou à chave no quarto de hóspedes, a triste realidade


golpeou-a com a força de uma chicotada. Percebeu então, com nítida
clareza, que não tinha outra escolha: via-se forçada a deixá-lo. O
paralisante horror de seu pesadelo não fora maior do que a terrível
realidade... E a dor era insuportável.
O tênue clarão da aurora invernal acabava de iluminar o
horizonte quando Roberta, o corpo e a mente entorpecidos pela
exaustão e pela dor, afastou-se da janela. Deixaria a casa assim que
Paul fosse para Houston: não poderia suportar outra cena como aquela.
Mas, apesar da dor que lhe partia o coração, havia uma
recompensa. Carregava o filho dele dentro de si. Poderia, afinal, ter seu
bebê e isto lhe daria forças para enfrentar os dias vazios que se
estenderiam diante dela. Porque era exatamente assim que seria sua
vida sem Paul.
Nos dois dias que se seguiram, agarrou-se a essa idéia como a
uma tábua de salvação. Sem esse consolo, não seria capaz de encarar a
vida. Paul, por sua vez, parecia não suportar a sua presença. Dedicava-
se inteiramente ao trabalho, evitando-a o mais que podia, saindo de
casa de madrugada e só voltando bem tarde da noite.
Entretanto, sua ausência não tornava as coisas mais fáceis.
Tinha de fechar os olhos, ouvidos, o coração a todas as coisas queridas
que logo iria abandonar. Porém, o que mais temia, impedindo-a de
conciliar o sono, era passar pela prova de fogo de dizer adeus a Paul.
Foi na quinta-feira que isso aconteceu, quando encarou frente a
frente sua sentença de morte. Estava no living, lutando contra a náusea
que a acometia todas as manhãs, quando ele desceu as escadas, a
maleta na mão. Desesperada, pensou que, no instante em que ele
saísse, estaria tudo terminado. Iria morrer de dor.
Sem nem sequer lhe dirigir um olhar, Paul vestiu o capote de
inverno e retirou as luvas de couro do bolso. Voltou-se então para
encará-la. Seus lábios estavam crispados numa linha de amargura, os
olhos cintilavam com um inconfundível desdém.
— Bom, Roberta, acho que é um adeus, não?
A rispidez de sua voz provocou-lhe uma dor aguda no peito e o
sangue fugiu do seu rosto.
— Não faça essa cara de chocada... Tenho a impressão de que
você está pensando em se mudar, enquanto eu estiver em Houston.
Fez uma pausa e não deixou de fitá-la, ao mesmo tempo calçava
as luvas.
— Não são esses seus planos?
— Paul, eu...
— Sim ou não? — cortou ele rispidamente. — Não está pensando
em me deixar?
Passou-se uma eternidade, antes que ela pudesse balbuciar:
— Sim...
— Foi o que pensei. Então é mesmo um adeus.

Três longas semanas haviam se passado desde a dolorosa cena


final com Paul. Roberta vivia num inferno. A dor que a torturava era
sempre a mesma, não diminuía e pouco a pouco ameaçava consumi-la.
Noites sem sono, povoadas de fantasmas, dias longos e
cansativos, acrescidos do debilitante mal-estar matinal conduziam-na
lentamente a um estado de exaustão física e mental.
Emagrecera e olheiras profundas acentuavam sua
impressionante palidez. Pelo bem da criança que carregava no ventre,
tinha de descansar. Mas, para requisitar um pedido de licença, deveria
apelar a Paul e era justamente isso que não queria fazer.
Se permanecesse ali, teria de vigiar-se a todo instante para não
encontrá-lo. Sabia que, cedo ou tarde, uma confrontação seria
inevitável. E essa terrível perspectiva estava acabando com ela.
Começava a considerar a possibilidade de mudar-se para Kimberley. Na
casa dos pais, ela e o filho encontrariam o apoio e o calor de que tanto
iriam necessitar. E havia também Bernie.
A presença dela traria complicações ao amigo e talvez arruinasse
sua planejada associação com Paul. Velho e querido Bernie! Ficaria ao
lado dela, por um profundo senso de lealdade, mesmo se isso lhe
custasse a carreira naquele hospital.
Revirou-se na cama, a mente girando num turbilhão. Precisava
de tempo para elaborar planos, antes de tomar a decisão final. Por esse
motivo, mudara-se para o hospital. Era um arranjo provisório, que lhe
convinha, embora se sentisse terrivelmente sozinha. Mas a solidão seria
sua companheira constante dali para frente.
Crispou os lábios, dominando a sensação de náusea. Estava tão
cansada quando terminara o expediente que julgara poder dormir
algumas horas. Sua mente, porém, não lhe dava sossego. O sono não
vinha.
Levantou-se, foi até a janela que dava para o estacionamento e
abriu as cortinas. Com as mãos cruzadas diante do peito, reviveu a
cena final com Paul. Uma batida na porta interrompeu-lhe as dolorosas
divagações. Era Bernie.
— Posso entrar?
Sorrindo, o amigo deixou-se cair sentado numa confortável
poltrona e esticou as pernas. Roberta acomodou-se ao seu lado, o
coração quase parando de bater, ao perceber que ele a examinava
atentamente.
— Não está com vontade de se abrir comigo?
— Bernie, já disse que não quero discutir...
— Meu bem... Não quero saber o que aconteceu entre você e
Paul. Entendo como se sente. Mas estou terrivelmente preocupado com
você. Está com péssima aparência, Rob. É evidente que não anda
dormindo bem e não pode esconder de ninguém que emagreceu. Somos
amigos há tanto tempo!
Roberta fechou os olhos e massageou as têmporas.
— Não é que eu não confie em você, Bernie...
— Eu sei. E há dois fortes motivos para você não falar. Um é seu
senso de lealdade a Paul, o outro sou eu mesmo.
— Você não entende...
Solidário, Bernie tomou-lhe a mão entre as suas.
— Entendo mais do que pensa. Não quer me envolver porque
isso poderia abalar meu relacionamento com Paul, não é?
Ao vê-la assentir, levantou-se e, enfiando as mãos nos bolsos do
avental, começou a andar de um lado para o outro.
— As coisas entre você e Paul terminaram de verdade?
— Sim, terminaram.
— Está pensando em deixar a Residência?
— Vai me fazer um sermão, se eu disser que sim?
— Não.... sermão, não. — Ele retirou os óculos, limpou-os com o
lenço e tornou a colocá-los. — Você e eu não somos desse tipo. Mas,
embora deteste constatar isso, não sei se você agüentará essa tensão
por mais um ano.
Mais um ano desejando ver Paul e não se atrevendo. Mais um
ano de agonia. E essa era apenas parte da questão. O que aconteceria...
como Paul reagiria quando sua gravidez se tornasse aparente? Não
queria nem pensar no que ele faria. Não; havia outra alternativa a não
ser partir. E se era a única solução, melhor que fosse embora logo,
antes que todo o hospital soubesse que a Dra. Mitchell estava grávida.
— Não vou me intrometer, Rob, porque sei que é isso o que você
quer. Mas prometa me avisar, se precisar de auxílio.
Tocada pela sinceridade daquelas palavras, Roberta balançou
afirmativamente a cabeça. Bernie sorriu a expressão traduzindo alívio.
— Se você fosse realmente uma boa amiga, me convidaria para
jantar.
— Ainda não terminou seu plantão?
— Não. Alguns parentes de Mark vão chegar hoje à noite e eu
tomei o lugar dele na Emergência.
— Se formos jantar juntos você vai ter de mudar essa gravata
espalhafatosa.
— Nem morto! É meu talismã.
— Se precisa disso, use um dente de alho. Servirá para manter
os vampiros a distância.
Bernie estendeu-lhe a mão e ajudou-a a levantar-se.
— Não sei o que você vê de errado nessa gravata!
— É simplesmente nauseante! — Ele riu.
— Você hão tem classe, Rob. Não tem mesmo. Quando estavam
atravessando o longo subterrâneo que ligava a Residência ao hospital,
Roberta encontrou coragem para falar:
— Vou pedir demissão, Bernie. Quanto mais cedo eu parar,
melhor.
— Pensa em voltar a Kimberley?
— Sim. Pretendo praticar com papai.
— Vou sentir sua falta, Rob.
— Eu também.
Soltando um suspiro, ele tomou-lhe o braço e a conduziu à
cantina. Obrigou-a a sentar-se com outros colegas, e, depois de alguns
minutos, Roberta estava rindo de mais uma de suas histórias malucas.
Quando Bernie foi embora, ela não teve coragem de enfrentar
novamente a solidão do quarto. Queria preencher o tempo vazio de
qualquer maneira. Assim, com o pretexto de verificar o estado de dois
pacientes, voltou à Cirurgia.
As enfermeiras da noite estavam ocupadas em ministrar os
medicamentos e preparar os doentes. Não havia ninguém na recepção.
Sentou-se à mesa, fez algumas anotações nas fichas de seus pacientes e
então pegou uma folha de papel em branco. Aquele era um bom
momento para escrever sua carta de demissão.
Girou a esferográfica entre os dedos, indecisa a quem dirigir o
pedido.. Ao cirurgião-chefe, sem dúvida.
Mas o que dizer?
"Caro Dr. Wilcox: Por motivos de ordem pessoal, não me é possível
completar o período de quatro anos de residência médica...".
Ou então:
"Prezado Dr. Wilcox, queira aceitar meu pedido de demissão..."
Ficou longo tempo com a caneta parada no ar, sem saber como
resolver a questão. De repente, o telefone tocou e automaticamente ela
atendeu.
— Recepção da Cirurgia. Dra. Mitchell falando.
— É da Emergência, doutora. Houve uma briga aqui. Temos um
paciente com graves ferimentos abdominais. Vai ser necessária uma
cirurgia de emergência.
— Como foi isso?
— Um rapaz que estava sendo examinado. Ficou alucinado, de
repente. Dose excessiva de drogas. Parece que ele tinha uma faca
escondida na bainha da calça e atacou alguém que estava por perto.
Não estou sabendo exatamente como foi não aconteceu na minha ala,
mas ouvi dizer que um dos médicos foi esfaqueado.
— Bernie! Bernie estava na Emergência!
— O Dr. Radcliffe, por acaso? — ela perguntou, aflita.
— Não, ele foi ferido na mão, mas nada grave. Está aqui a meu
lado e manda dizer que vai subir imediatamente com o paciente. Pede
que convoque a equipe da Cirurgia. Parece que o caso é grave.
— Vou tomar as devidas providências.
Ato contínuo precipitou-se corredor afora e cruzou as portas; de
vidro do Centro Cirúrgico. Deu algumas ordens rápidas e depois de
alguns minutos o local fervilhava de agitação.
Acabava de vestir o uniforme azul, quando MacDonald, o
anestesista, entrou.
— Oi, Dra. Mitchell? O que aconteceu?
— Você não vai acreditar, mas um de nossos médicos foi ferido
na Emergência. Um rapaz drogado atacou-o com uma; faca.
— Sabe quem é?
— Não, a plantonista não soube me dizer. Mas parece que o caso
é grave.
Enquanto a enfermeira ajudava-a a vestir o avental esterilizado e
a máscara, o paciente foi introduzido na sala operatória coberto por um
lençol verde. Houve um murmúrio de vozes em volta de Roberta e ela
voltou-se no exato momento em que Mac levantava a ponta do lençol.
Olhou interrogativamente, quando o ouviu praguejar baixinho.
Com expressão de espanto e preocupação, ele indicou-lhe o paciente
com um gesto da cabeça. Intrigada, ela se aproximou.
A férrea disciplina que se impusera durante anos de prática
médica foi o que a manteve ali. Ou talvez o tremendo choque que
paralisava seus músculos... Mas, fosse qual fosse o motivo, ficou
completamente imóvel, o suor de medo inundando-lhe a fronte,
enquanto fitava o rosto mortalmente pálido de Paul.
Tinha vontade de gritar! Não podia operar aquele homem. Oh,
Deus, não seria capaz! Um inaudível gemido de dor lhe escapou da
garganta, enquanto mentalmente protestava: "Não posso, meu Deus!
Não posso fazer isso!"
Jamais sentira um pavor tão grande em sua vida! Enquanto
permanecia imóvel como uma estátua, Paul abriu os olhos. Os
músculos de seu rosto estavam contraídos pela dor. Ele a fitou e então
esboçou um sorriso irônico.
— Como é Dra. Mitchell, vai... me abandonar... também desta
vez?
A amargura daquelas palavras sacudiu-a brutalmente do torpor.
— Por favor, Mac, — ordenou —, dê-lhe rápido a anestesia.
Nesse momento, Bernie entrou na sala operatória, o rosto alterado pela
preocupação. Roberta olhou-o, implorando silenciosamente que ele a
afastasse daquele pesadelo.
Compreendendo seu desespero, ele mostrou-lhe a mão
enfaixada, com ar contrafeito.
— Tem de ser você, Rob. Sinto muito. Ela sacudiu a cabeça,
incapaz de aceitar aquela imposição.
Bernie aproximou-se mais, e disse em tom firme:
— Não há tempo para chamar outro cirurgião. Você tem de
operá-lo!
Roberta fechou os olhos por alguns instantes, rezando para que
sua disciplina profissional dominasse o medo, o choque, o pânico.
Respirando fundo, abriu os olhos e, com calma determinação, cerrou
fortemente os maxilares e fez um sinal para Mac, ordenando-lhe que
iniciasse o processo.
Então se virou para Paul. Por um breve espaço de tempo,
enquanto a anestesia não fazia efeito, eles se fitaram os olhares
traduzindo o que ambos sabiam. A vida dele estava em suas mãos.


Capítulo XI

No silêncio pesado que se instalou na sala de operações, não


houve conversas descontraídas nem observações sobre o tempo. Nada.
Apenas os sons dos equipamentos de Mac e as ordens bruscas de
Roberta.
Aquele homem não morreria em suas mãos. Como se estivesse
dividida em duas diante do corpo inconsciente e mutilado de Paul, cada
gesto que ela fazia, cada incisão, cada sutura revestia-se de uma
segurança inabalável. Ao mesmo tempo, nunca se sentira tão
emocionada durante uma cirurgia.
Observando-a, Bernie sentia respeito por sua incrível habilidade.
Precisa, rápida, meticulosa, alerta, ela não esquecia nada. Se Paul
sobrevivesse, deveria a vida à mulher que trabalhava em seu corpo, o
rosto pálido banhado de suor, os olhos franzidos em profunda
concentração, enquanto os dedos sensíveis sondavam e reparavam os
extensos ferimentos.
Ela estava lutando pela vida daquele homem com todo seu
talento, toda sua prática e conhecimento, e dentro dos mais altos
padrões médicos de que dispunha. Por algum inacreditável processo
psicológico, conseguira dissociar a mulher apaixonada da cirurgia
competente que lutava pela vida de seu paciente. Era uma façanha
notável.
Os minutos transformaram-se em horas, mas seu zelo e sua
devoção não diminuíam. Quando completou a sutura final, todos na
sala deixaram escapar um suspiro de alívio. Era, de certo modo, uma
ovação silenciosa: ela fora brilhante!
O relógio de parede marcava exatamente dez e meia, quando
Roberta empurrou a porta da sala operatória. Os músculos de seu rosto
estavam contraídos, linhas de cansaço e preocupação vincavam-lhe os
olhos e os cantos da boca.
Sem olhar para ninguém, sem dizer uma só palavra, arrancou o
avental cirúrgico e encaminhou-se para a saída.
Bernie agarrou-a pelo braço. Em voz baixa, porém firme e
insistente, advertiu-a:
— Não interfira no trabalho do pessoal da Terapia Intensiva,
Rob. Eles são competentes. Dê-lhes tempo para fazer o que deve ser
feito.
Ela o fitou com uma determinação que beirava a teimosia e
desvencilhou o braço.
— Deixe-me ir, Bernie.
— De maneira alguma. Dê-lhes apenas meia hora e então poderá
passar a noite ao lado dele, se tiver vontade. Mas fique longe da UTI,
enquanto tudo não estiver ajeitado. Além do mais, quero que dê uma
olhada em minha mão. Não estou com vontade de voltar à Emergência.
No mesmo instante, ela mudou de atitude.
— Deixaram você sair da Emergência sem ter feito o curativo?
— Não tiveram outro remédio. — Passando o braço em torno de
seus ombros, ele a conduziu para o corredor, longe de ouvidos
indiscretos. — Queria poupar você dessa provação, mas não tive
escolha. Procurei Standish e outros três cirurgiões de gabarito, só que
não encontrei ninguém. Desculpe Rob, não queria jogá-la nesse inferno.
O pesar e a preocupação de Bernie comoveram-na. Ela o
abraçou, e disse com voz trêmula de emoção:
— Obrigada pela força, Bernie. Se não fosse você, não teria
conseguido chegar ao fim.
Ele fez uma careta de dor.
— Agradeça tratando da mão deste coitado aqui.
— Pobrezinho! Vamos, vamos que a tia Roberta vai pôr um
curativo na sua mãozinha.
O ferimento de Bernie pedia muito mais do que uma bandagem.
Os cortes, profundos e paralelos, atravessavam-lhe diagonalmente a
palma da mão, indicando que tinham sido provocados por uma faca de
duas lâminas. Roberta estremeceu e seu rosto tornou-se mais pálido
ainda. Se o corte fosse uma fração de milímetro mais profundo, a
carreira de cirurgião de Bernie estaria encerrada para sempre. Mesmo
assim, passariam alguns dias antes que ele pudesse manejar de novo o
bisturi.
Cuidar do amigo foi uma espécie de terapia para ela. Precisou
concentrar-se, enquanto suturava cuidadosamente o ferimento, e isso a
impediu de pensar no homem que lutava desesperadamente pela vida
na Terapia Intensiva.
Quando terminou, olhou-o com ar impaciente. Bernie observou-
lhe o rosto alterado pelo sofrimento e, pegando-a pelo braço, disse:
— Vamos ver como ele está reagindo.
Roberta acreditava que as horas de plantão que passara na
Terapia Intensiva fossem suficientes para prepará-la para o encontro.
Estava enganada. Era completamente diferente, quando se tratava de
Paul. Tubos passavam-lhe pelo nariz, e havia outros dois ligados ao
sangue e ao soro que lhe eram injetados por intermédio das veias das
mãos. Suas funções vitais estavam monitorizadas por um sofisticado
aparelho eletrônico, enquanto o fluído da cavidade abdominal era
drenado.
Ela sentou-se ao lado da cama e olhou o relógio. A longa noite de
vigília ia começar. <
Quando Lisa chegou, momentos depois, acompanhada de
Bernie, suas forças ameaçavam abandoná-la. A enfermeira envolveu-a
num grande abraço e ela teve de sufocar um soluço. Nunca se sentira
tão só. Como poderia continuar vivendo, se acontecesse alguma coisa a
Paul? Magoara-o profundamente. As palavras amargas que ele dissera
na sala operatória ainda ecoavam em sua mente, aumentando sua
aflição.
— Roberta?
Voltando-se para Lisa, ela enterrou o rosto em seu ombro e deu
vazão à dor que a sufocava.
— Paul vai ficar bom — murmurou suavemente a jovem. — Falei
com MacDonald. Ele disse que você foi fantástica. Acredite nisso.
Enquanto Roberta enxugava as lágrimas, Lisa retirou uma
garrafa termina e um embrulho da bolsa.
— Trouxe café e alguns sanduíches para vocês dois. Estão
precisando comer alguma coisa.
— Infringindo as regras, querida? Não é permitido trazer comida
de fora para a UTI — Bernie disse, sorrindo.
Lisa fez uma careta e passou-lhe um sanduíche. Depois puxou
uma cadeira e sentou-se ao lado deles.
— Posso saber o que aconteceu?
— Bem, o rapaz chegou à Emergência acompanhado por amigos.
Tinha tomado uma dose excessiva de drogas e, num ímpeto de loucura,
tentara o suicídio, jogando-se do terceiro andar de um prédio. Teve a
sorte de cair na marquise e sofreu apenas fraturas leves. Estava sendo
examinado por um dos plantonistas, quando enlouqueceu de repente.
Então sacou aquela maldita faca e começou a atacar cegamente quem
via pela frente.
— E Paul?
— Não teve chance de se defender. Tudo aconteceu tão rápido!
— O que houve com você?
— Para ser sincero, não sei. O rapaz era um verdadeiro touro.
Foram necessárias quatro pessoas para enfrentá-lo. Eu estava entre
elas. Quando a confusão terminou, percebi que minha mão estava
ferida.
A jovem tomou-lhe a mão e examinou-a. Bernie tranqüilizou-a.
— Não se preocupe Lisa, Rob já deu um jeito nisso.
Roberta e Lisa estremeceram, percebendo, instintivamente que
só a pronta intervenção de Bernie salvara Paul de ser atacado pela
segunda vez.
Roberta olhou para o homem que jazia na cama, a mão inerte
presa entre as suas. Se pudesse apoiar a cabeça em seu peito e aí
encontrar o conforto de outrora...
— Por que Paul estava na Emergência?
— Ele foi chamado para dar o diagnóstico de um paciente em
estado crítico que vinha de um hospital rural.
Roberta consultou o relógio e advertiu-o:
— Tome o remédio, Bernie. Caso contrário sua mão vai começar
a latejar.
— Sim, doutora.
Ela se recostou no espaldar da cadeira e fechou os olhos. Se
existisse algum analgésico milagroso que pudesse anestesiar seu
desespero...
Durante as longas horas de vigília que se seguiram, deixou seu
posto apenas os instantes necessários para checar os monitores. Mas
cumpriu a promessa feita a Bernie e não interferiu no trabalho do
pessoal da Unidade.
De madrugada, acometida pela costumeira onda de náuseas que
a deixava trêmula e exausta, foi obrigada a afastar-se. Quando a crise
terminou, percebeu que não podia voltar ao quarto de Paul naquelas
condições.
Deitou-se num dos sofás da sala de espera e, enquanto
descansava, refez mentalmente a cirurgia, etapa por etapa. Teria
negligenciado algum detalhe? Dera a Paul o melhor que podia?
Quando o mal-estar passou, levantou-se, disposta a retomar sua
vigília. Ao aproximar-se do quarto, ouviu um murmúrio de vozes. Ficou
parada junto à porta, o coração batendo descompassado.
Paul estava acordado e falava com Bernie. Ela se preparava para
entrar, quando o ouviu dizer, com voz rouca e abafada.
— Não quero... ver Roberta... aqui.
— Ela está muito preocupada com você.
Houve uma longa pausa e Paul voltou a falar:
— Deixe-a... fora disso...
Levantando os olhos, Bernie a viu e empalideceu. Fitou-a
intensamente, com pesar e compreensão. Fez menção de se levantar,
mas ela o deteve com um gesto e afastou-se. Bernie observou-a seguir
pelo longo corredor vazio, imaginando a dor que as palavras de Paul lhe
haviam infligido. Parecia tão indefesa...
— Bernie...
A voz rouca de Paul tirou-o da divagação.
— Deixe-a fora disto...
— Paul, ela está terrivelmente preocupada!
— Sei disso. — Paul engoliu com dificuldade e murmurou: — Ela
já passou... não quero... envolvê-la... mais... Por favor...
O rosto de Bernie estava marcado pelo pesar e pelo cansaço.
Paul tinha razão. Roberta alcançara seu limite máximo.
Exausta com a noite de vigília, Roberta telefonou aos pais de
Paul, informando-os das condições de seu filho. Nem mesmo a histérica
reação da Sra. Wilcox conseguiu penetrar na bruma espessa que lhe
envolvia o cérebro.
O pessoal do hospital assediou-a com perguntas sobre o
acidente. Houve uma investigação interna e outra policial. Ela foi
chamada a depor em ambas, obrigada, como médica, a dar testemunho
sobre as condições de Bernie e Paul.
No final da tarde, recebeu um telefonema, informando que o sr. e
a Sra. Wilcox tinham chegado e queriam vê-la. Então, seu
entorpecimento deu lugar a um ímpeto de raiva.
O casal estava à sua espera na saleta da UTI. Roberta contou-
lhes o acontecido e quais eram as condições de Paul. A reação da Sra.
Wilcox não se fez esperar.
— Eu disse a ele — apontou para o marido —, que devíamos
tomar providências para levar Paul de volta a Toronto. Meu filho precisa
receber cuidados médicos especializados. Mas "ele" não quis me ouvir.
— Paul não está em condições de ser removido, minha senhora.
Além do mais, há ótimos médicos neste hospital. Seu filho está
recebendo um excelente tratamento.
Ethan Wilcox sorriu ironicamente.
— A Sra. Wilcox imagina que qualquer lugar a oeste de Toronto
seja habitado por selvagens. Eu acho que se este hospital não tivesse
excelente reputação, meu filho não teria vindo trabalhar aqui.
— As visitas devem ser breves. Paul não pode ser incomodado.
Os senhores terão de obedecer a certos regulamentos impostos pela
administração do hospital.
— Por que isso? — perguntou insolentemente o Sr. Wilcox.
Roberta levantou-se e seu tom de voz tornou-se quase ameaçador.
— Porque tenho autoridade para tanto, como médica deste
hospital. No entanto, há outras regras que pretendo impor extra-
oficialmente.
— Como assim?
— Quero deixar bem claro que, se discutirem diante de Paul,
darei ordens expressas para que as visitas sejam proibidas. Vocês
fizeram da vida de Paul um inferno. Não vou permitir que isso aconteça
durante sua recuperação.
Um silêncio mortal seguiu-se a esse desabafo. A Sra. Wilcox foi a
primeira a recobrar-se.
— Você não tem o direito...
— Tenho todos os direitos — cortou Roberta. — Amo Paul e não
quero que a vida dele seja infernizada.
Ethan levantou-se e abordou-a com rudeza.
— Sua conduta profissional deixa muito a desejar, Dra. Mitchell.
Eu diria que chega a ser ofensiva.
— Está me ameaçando? — perguntou ela com desdém.
— Apenas avisando...
— Não me importo absolutamente com seus avisos. Façam o que
bem entenderem, destruam-se, se tiverem vontade, mas, pelo amor de
Deus, deixem Paul em paz. Não perturbem a convalescença dele.
Profundamente irritada, deu-lhes as costas e saiu da sala,
batendo a porta atrás de si. Sabia que corria o risco de receber uma
advertência da administração do hospital, mas não se importava. De
certo modo, vingara Paul das mágoas que seus pais lhe haviam
infligido. E isso lhe proporcionava uma enorme satisfação.
A tensão, a mágoa, a exaustão esgotavam rapidamente as
últimas reservas emocionais de Roberta. Com Paul e Bernie ausentes do
Centro Cirúrgico, o trabalho naquele departamento tornava-se a cada
dia mais pesado. Ela foi solicitada até o limite máximo de suas forças.
Paul passara da UTI para um quarto particular pertencente à
Cirurgia. Em condições normais, isso traria alegria a Roberta, mas, na
situação em que se encontrava, tornava as coisas ainda piores. Sabê-lo
tão perto e, no entanto tão distante, era uma agonia.
Havia se passado seis dias desde os trágicos acontecimentos,
quando o muro de reserva que Roberta construíra à sua volta
desmoronou, deixando-a exposta e sem defesa.
A manhã fora muito cansativa e ela saiu da sala operatória
extenuada. Mas sabia que seu cansaço era causado pelas noites mal
dormidas e pela falta de alimentação adequada.
Para complicar ainda mais seu estado físico e emocional, tivera
de assistir o Dr. Standish numa cirurgia demorada. Durante a
operação, percebeu que o velho médico a observava com mais atenção
do que o normal, um ar preocupado franzindo-lhe o cenho.
Essa preocupação pareceu aumentar, à medida que faziam as
rondas. O Dr. Standish a examinava furtivamente e ela, constrangida,
desviava a vista para o outro lado. Acabavam de sair do quarto de um
paciente, quando o destino finalmente interveio.
De repente, sentiu como se o solo ondulasse sob os seus pés.
Acometida de vertigem, tentou dar um passo, mas seus joelhos
dobraram-se. Caiu, deslizando para a escuridão que se fechava em
torno dela.
Voltou a si lentamente. A primeira coisa de que teve consciência
foi do Dr. Standish ao lado dela, os dedos tateando-lhe o pulso.
— Traga a maca — ouviu-o dizer à enfermeira.
Embora visse tudo indistinto diante dos olhos, ela balbuciou:
— Não... já estou bem.
Fez menção de se erguer e o Dr. Standish prontamente passou-
lhe o braço pelos ombros e ajudou-a. Foi dominada pela náusea,
enquanto ele a conduzia para um quarto vago e a obrigava a deitar-se.
— Você está doente, Dra. Mitchell.
De olhos fechados, Roberta sacudiu negativamente a cabeça.
Ouviu o ruído da água correndo na pia e o Dr. Standish dando algumas
ordens à enfermeira. Sentiu a agradável sensação de uma toalha úmida
na testa e soltou um suspiro de alívio.
Depois de alguns instantes, abriu os olhos e disse a primeira
coisa que lhe veio à cabeça para justificar seu mal-estar:
— Acho que estou gripada.
— Não tente me enganar, Dra. Mitchell. Faz semanas que a
venho observando. Está com péssima aparência.
A enfermeira voltou ao quarto e, sem dar a Roberta chance de
protestar, o Dr. Standish enfiou-lhe o termômetro na boca. Com rapidez
e eficiência, ajustou o aparelho de medir pressão e acionou-o. Sua
expressão era indecifrável, quando voltou a conferir-lhe o pulso, os
olhos fixos no relógio. Mas Roberta sabia o que havia por detrás daquela
calma exterior.
— É tudo por enquanto, enfermeira — disse ele, despedindo a
jovem com um gesto de mão.
Quando ela saiu, o Dr. Standish cruzou os braços sobre o peito e
fitou Roberta com expressão severa.
— Vou precisar de alguns exames de laboratório. Hoje, sem falta.
Não quero recusa nem desculpa.
— Não é preciso... — balbuciou ela.
— Claro que é! Ninguém desmaia à toa. — Ele lançou-lhe um
olhar penetrante. — A menos, é claro, que você conheça o motivo de seu
mal-estar.
— Exaustão, só isso.
— Conversa fiada! Quero que me entregue os resultados amanhã
de manhã. — Fez uma pausa e sua fisionomia suavizou-se.— Já sabe
do que se trata, não é mesmo?
Roberta pôs as pernas para fora da cama e sentou-se.
— Sim, eu sei.
— Gravidez, é isso?
A perspicácia dele não a espantou. Ela assentiu mudamente,
incapaz de falar. Ele olhou-a com simpatia e tomou-lhe a mão. Sua voz
estava cheia de compreensão.
— O que pretende fazer?
O dia do acerto de contas finalmente havia chegado. Ela
retribuiu-lhe o olhar, o rosto lívido, os olhos escuros de desespero.
— O senhor conhecerá minha decisão amanhã.


Capítulo XII

Havia um envelope fechado na escrivaninha do Dr. Standish, na


manhã seguinte. Ele o abriu, leu o conteúdo e então recostou-se no
espaldar da poltrona, com ar perplexo. Não esperava isso dela! Jogar
fora três anos de residência médica, especialmente sendo tão talentosa
e tão dedicada!
Apanhou a carta e leu-a de novo. Depois guardou-a no bolso do
avental. Balançando a cabeça, encaminhou-se para os elevadores. Ia
falar com Paul Wilcox. Ninguém lhe dissera se havia algo entre ele e a
Dra. Mitchell, mas tinha a vaga intuição de que não se enganava.
Encontrou-o recostado à janela do quarto.
— Bom dia, Paul. Que bom vê-lo de pé.
— Veio se alegrar com minha desgraça? Estou começando a
perceber que os cirurgiões são uns sádicos.
Standish deu uma risadinha.
— Não é nada agradável entrar na faca, não é mesmo? Paul
respondeu com igual bom humor:
— Realmente, não é a melhor maneira de passar um dia de
folga.
— Não mesmo.
Paul sentou-se na beirada da cama, enquanto seu colega
acomodava-se na poltrona.
— Então, como vão as coisas? Tudo em ordem na Cirurgia?
— Estamos trabalhando como burros de carga, mas isso não é
novidade. — O Dr. Standish retirou a carta do bolso e passou-a a Paul.
— Veja o que recebi esta manhã.
Um brilho estranho passou pelo olhar de Paul, que leu a
mensagem sem fazer comentários.
— Ontem, aconteceu algo que justifica isso — o Dr. Standish
apontou a carta.
— O que foi?
— Ela desmaiou. Estávamos fazendo a ronda e ela caiu ao chão
sem mais nem menos. Roberta está com péssima aparência.
Emagreceu, está pálida e parece muito cansada.
— Ela disse alguma coisa?
— Tentou me enganar com desculpas. Insisti em que se
submetesse a alguns exames. Estou preocupado e tenho a impressão de
que você também se preocuparia.
— Por que tem essa impressão?
Standish não respondeu. Era evidente que receava expressar
suas suspeitas.
— Com os diabos, Standish! Fale logo!
— Ela está grávida.
Uma dor intensa apareceu na expressão de Paul, mas Standish
não notou.
— Quando minha esposa engravidou pela primeira vez, estava
como a Dra. Mitchell. Passou mal, emagreceu... foi uma verdadeira
provação...
— Pode me fazer um favor? — interrompeu Paul, impaciente. —
Deixe um recado na recepção que eu quero vê-la.
Roberta recebeu o recado no final da tarde, ao sair da sala
operatória. Teria preferido tomar veneno a vê-lo, mas o inevitável devia
ser enfrentado.
A bruma da tarde de inverno começava a baixar, quando decidiu
não adiar mais o encontro. Apelou às últimas forças que lhe restavam e
entrou no quarto com contida ansiedade. Permaneceu no limiar. O
crepúsculo invadia o aposento, envolvendo todas as formas em suas
sombras. Paul parecia dormir. Jazia com uma das mãos sob a nuca e a
outra sobre a cama. O zíper de seu blusão estava parcialmente corrido e
ela entrevia a faixa branca que lhe envolvia o abdome. Sentiu-se mal, ao
pensar no perigo que ele passara. O ferimento fora tão feio...
— Entre e feche a porta.
Aquelas palavras, ditas num tom calmo, causaram-lhe um
sobressalto. Não notara que ele estava acordado.
— Soube que, se não fosse por você, eu não estaria mais aqui —
continuou ele.
Roberta não respondeu. Ele virou a cabeça para certificar-se de
que ela continuava ali.
— Por que não veio ver-me?
Ela mordeu os lábios para não responder.
— Roberta?
— Ouvi o que você disse a Bernie naquela noite — revelou de um
só fôlego. — Parece que minha presença o incomodava.
Um silêncio constrangedor instalou-se entre os dois. Sentindo-se
mais desolada do que nunca, Roberta voltou-se para sair.
— Não vá...
Paul pediu tão mansamente que ela julgou ter ouvido mal.
Virou-se bem devagar. Ele se sentara na cama e agarrava o tubo de
soro. Parecia que ia desligá-lo e cobrir de um salto à distância que os
separava.
— Não faça isso, Paul. Por favor.
Com uma força que a surpreendeu, ele a segurou pelos ombros.
Sua voz era baixa e traduzia premência.
— Ouça-me, Roberta, Eu não queria você aqui porque sabia o
esforço que isso lhe custava. Estava com remorso pelas palavras rudes
que lhe disse na sala de operação. Percebi, não sei bem como, que você
ficou de vigília naquela noite e queria poupá-la.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Será que deveria
acreditar naquelas palavras? Atormentado por sua evidente aflição,
Paul tomou-a nos braços
— Nunca mais vou permitir que me deixe novamente. Nunca
mais.
Roberta pousou os braços no pescoço dele e abraçou-o com
força. A incerteza, a angústia, o medo fundiram-se numa só emoção e
ela se desmanchou em lágrimas.
Seu desabafo foi interrompido quando a porta se abriu e Bernie
e Lisa entraram. A reação de Bernie foi imediata. Tomou a namorada
pelo braço e deu meia-volta, encaminhando-a novamente para a porta.
— Desculpe — disse, sem se virar.
— Não seja bobo, Bernie — censurou-o Paul. — Volte aqui.
— Vim avisar que você vai ter companhia. Seus pais acabam de
entrar no vestíbulo do hospital. Avistei-os do elevador.
Roberta não sabia o que fazer. Chegara ao limite máximo de sua
resistência. E não podia interromper o fluxo de lágrimas que lhe
escorria pelo rosto.
Percebendo como ela estava vulnerável, Paul continuou a
sustentá-la nos braços. Com incomensurável gentileza, apertou seu
rosto de encontro ao peito, como que protegendo-a de qualquer
intrusão.
— Lisa, será que você pode entreter meus pais por alguns
instantes? Quero falar com Bernie.
— Claro!
Paul acariciou ternamente o rosto de Roberta, murmurando:
— Tudo vai dar certo, amor.
Em resposta, ela apertou convulsivamente os braços em torno
dos ombros dele.
— Pode me fazer um favor, Bernie? — perguntou Paul.
— Tudo que quiser.
— Leve-a para minha casa e passe a noite lá, com ela.
— Certamente.
— Mais um favor. Encarregue-se da mudança. Chame uma
empresa transportadora, não quero que Roberta faça isso sozinha. E
também não quero vê-la no hospital. Ela vai entrar de licença, a partir
de amanhã.
Roberta demorou até se convencer de que estava realmente nos
braços de Paul e que era seu calor que lhe aquecia o coração. Ao notá-la
mais serena, ele inclinou-lhe a cabeça para trás e beijou as lágrimas
que ainda lhe umedeciam os olhos.
— Vá para casa — murmurou-lhe ao ouvido. — Não volte aqui
por nenhum motivo.
— Mas, Paul...
— Nada de mas, Roberta. Você não pode continuar abusando de
suas forças. Vá para casa e durma... Não se preocupe com nada. Faz
isso por mim?
Ela deixou escapar um soluço e fez um sinal afirmativo.
— Promete, Roberta?
— Prometo — respondeu, num fio de voz.
— Tome conta dela, Bernie...
— Fique descansado.
— E tente conservá-la longe de meus pais.
Bernie fez que sim com um gesto de cabeça, antes de tomá-la
pela cintura.
— Vamos, Rob. Vamos para casa.

Lar! Um lar de verdade, com a lareira acesa e as chamas


crepitando alegremente. Um lar aconchegante e quentinho, uma
sensação agradável, sabendo que nevava lá fora.
Roberta chorara de emoção na noite anterior, ao chegar em casa
acompanhada de Lisa e Bernie. Continuara a chorar durante a noite e
na manhã seguinte. E, mesmo naquele instante, via as chamas através
das lágrimas. Talvez de exaustão, mas não podia se controlar.
O agudo tilintar do telefone ecoou no silêncio da sala e ela
atendeu.
— Alô?
— Roberta?
— Sim.
— Tudo bem? — havia uma nota de preocupação na voz de Paul.
— Tudo!
— Está sozinha?
— Sim...
— Não responda com monossílabos. Fale comigo, Roberta! Diga
o que há, pelo amor de Deus!
— Não há nada, Paul. Acho que é exaustão.
Mas havia algo, sim. Carregava o filho dele no ventre e ele não
sabia. Precisava contar tudo com urgência. Ouviu-o suspirar e teve
pena.
— Não se preocupe comigo. Por favor.
— Mas estou preocupado!
— Eu estou bem... Preciso descansar só isso. — Houve uma
pausa e então Paul disse com voz firme:
— Quero que vá para a cama. Já! Telefono mais tarde, está bem?
— Está bem.
— Amo você, Roberta.
— Também te amo — sussurrou ela.
Não conseguiu suportar a tensão. Escondeu o rosto entre as
mãos e voltou a chorar, os soluços sacudindo-lhe o corpo. Muito tempo
depois, exausta de corpo e mente, mergulhou na tranqüilidade do sono.
Um toque em seu rosto, tão leve quanto uma pluma, devolveu-
lhe lentamente a consciência e, ainda sonolenta, abriu os olhos. Por
uma fração de segundo, sua mente não pôde assimilar o fato de que era
Paul que estava a seu lado e que eram suas mãos que lhe acariciavam
ternamente o rosto.
Fitou-o perplexa e então a realidade acabou de acordá-la.
— Paul, o que está fazendo aqui? Devia estar no hospital...
— Mas estou aqui. Sou eu, em carne e osso!
— Precisava de mais três dias de tratamento!
Ele tomou-lhe as mãos.
— Meu melhor tratamento é estar ao seu lado. Ela fitou com
ansiedade seu rosto lívido.
— Não deviam ter-lhe dado alta.
— Estou bem.
Roberta não insistiu, e ele se afastou com ar aborrecido, pondo-
se a fitar as chamas da lareira. Ao voltar-se, mostrava o semblante
carregado de tensão.
— Temos de conversar, Roberta.
O seu tom surpreendeu-a. Quis fugir, mas, ao notar a expressão
dolorosa de seu olhar, assustou-se.
— O que foi, Paul? Diga-me o que está sentindo.
Ele permaneceu calado e, apreensiva, ela estendeu-lhe a mão.
— Por favor, Paul. Está tão pálido! Não quer que o leve de volta
ao hospital?
Ele fitou-a, o rosto transtornado pela raiva.
— Por que insiste tanto para que eu volte ao hospital? —
Roberta deixou cair à mão ao longo do corpo e baixou os olhos, confusa.
Sentia-se terrivelmente insegura dele e de si mesma. Retraiu-se, mas o
ar estranho de Paul obrigou-a a pensar melhor. Talvez ele estivesse tão
inseguro quanto ela.
— Quero que fique bom logo. Não agüentaria, se alguma coisa
lhe acontecesse. Estou com tanto medo...
Ao notar sua extrema aflição, as feições de Paul suavizaram-se.
Com um gemido rouco, puxou-a para si, moldando o corpo ao dela, de
alto a baixo.
— Roberta, Roberta...
Um soluço morreu-lhe na garganta, abafado por aqueles lábios
sedentos de amor. Os braços dele a apertavam com força.
— Vivi num inferno desde que você me deixou. Só Deus sabe
como senti sua falta.
Aflita pelo sofrimento que aquelas palavras traduziam, ela
segurou-lhe o rosto e beijou-o com ardor. Fechou os olhos, sentindo um
calor intenso percorrer-lhe o corpo. Fazia tanto tempo que não sentia
aquela emoção!
— Vamos subir — murmurou Paul, roucamente.
Os lábios de Roberta entreabriram-se voluptosamente, num
estado de total ansiedade, sentindo o desejo florescer.
Quando alcançaram à privacidade do quarto, ele pressionou-lhe
fortemente o corpo e beijou-a tão sofregamente, que uma onda selvagem
de paixão explodiu dentro dela.
Sabendo que seu premente desejo logo seria saciado,
abrandando o fogo que lhe corria pelas veias, ela correspondeu ao beijo
com total abandono.
Jogou a cabeça para trás e fechou os olhos, tremendo de
excitação, enquanto ele a despia. Quando a viu nua, Paul a deitou e
inclinou-se sobre ela, cobrindo-lhe o corpo macio e palpitante com o
vigor de seu corpo.
Braços e coxas entrelaçados alcançaram o ponto em que não
havia retorno, flutuando num mundo insuportavelmente excitante. Um
gemido de prazer escapou-lhes da garganta ao atingirem o êxtase em
apaixonada harmonia.
Quando Roberta retornou da espiral de prazer que a conduzira a
alturas delirantes, ficou horrorizada ao encontrar-se em cima de Paul.
Quis rolar para um lado, mas ele a impediu.
— Não, quero que fique aqui.
— Mas posso machucá-lo.
— Agora não. Eu a senti minha de novo.
Suportando o peso do corpo nos cotovelos, Roberta sorriu para
aqueles olhos escuros que brilhavam de emoção.
— Paul, meu amor...
Soltando um suspiro de satisfação, escondeu o rosto no seu
peito, saboreando aquele instante de felicidade.
Horas mais tarde, ao acordar, Roberta estava sozinha e sentiu
um frio intenso. Contava acordar nos braços de Paul e ele não estava lá.
O sentimento de frustração logo deu lugar à preocupação. Ele podia não
estar passando bem! Vestiu rapidamente o robe de veludo e correu para
fora do quarto.
Encontrou-o sentado à mesa da cozinha, os braços apoiados na
superfície polida de madeira, o olhar absorto e distante. Era evidente
que alguma coisa o preocupava. Sua postura rígida e a severidade de
sua expressão a deixaram alarmada.
— Que aconteceu, Paul?
— Nada... - Ela foi tomada de um grande medo. Sentindo as
pernas fraquejarem, sentou-se diante dele e tocou-lhe a mão.
— Fale, Paul, por favor!
— Tenho de lhe dizer algumas coisas, e sei que você não vai
gostar. Mas devo dizê-las, pois precisa haver franqueza entre nós.
Fez uma pausa, durante a qual ela se perguntou se estaria
preparada para enfrentar o que viria a seguir.
— Você não foi franca comigo, nem me disse o que pretendia da
vida. Não confiou em mim e isso me magoou profundamente. Comecei
então a culpá-la por tudo o que aconteceu e, por um momento, cheguei
a pensar que a odiava.
Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. De
repente voltou-se para ela, o rosto alterado, o olhar sombrio.
— Não percebi que tinha imposto meu modo de encarar a vida,
sem perguntar se você estava de acordo. Mas não era minha intenção
mudar seu modo de pensar, nem magoá-la.
Lágrimas brotaram dos olhos de Roberta. Queria se atirar nos
braços dele, mas sentiu que aquele não era o momento.
— Quero saber quais são seus sonhos, Roberta. Quero que
confie em mim e que seja sincera. E, mais do que tudo, preciso saber
por que foi embora.
— Meu sonho é passar o resto da vida com você — murmurou
ela.
— Não é suficiente! Pelo amor de Deus, não vê como é
importante que seja sincera comigo?
Ela experimentou uma irresistível vontade de se afastar, correr
dali, mas o sexto sentido, uma certa premonição, dizia-lhe que se o
fizesse seria a gota d'água final.
Mas, o que dizer? Paul exigia sinceridade e ela tinha a impressão
de que o estaria prendendo numa armadilha, se lhe revelasse a verdade.
Queria saber a que ele esperava dela, mas, obedecendo a um impulso,
perguntou com incontida ansiedade:
— Quer se casar comigo, Paul?
— Dê-me um bom motivo.
Paul a testava, chegava a ser brutal, magoava-a na ânsia de
atingir seu objetivo. Ainda não estava certo de seus sentimentos, ela
percebia isso. Tinha de tranqüilizá-lo.
— Não pode me responder, Roberta? — havia amargura na voz
dele. — Não consegue me dar um único motivo?
Ela se levantou e encarou-o com tal intensidade que chegava a
criar uma corrente de tensão emocional entre ambos.
— Eu não disse que gostaria de me casar com você porque tinha
medo de perdê-lo. Você era totalmente contrário ao casamento. Mas
pensei que, se lhe desse tempo, talvez pudesse ver as coisas de um
modo diferente.
Fez uma pausa, escolhendo as palavras.
— Para mim, o casamento tem um significado profundo. Quer
dizer segurança emocional, cuidado, amor, certeza de se envelhecer um
ao lado do outro.
Paul deu um passo à frente, como se quisesse tocá-la.
— Então, por que me abandonou?
Roberta desviou a vista e torceu nervosamente as mãos. Essa
seria a pior parte. Não queria olhá-lo, para não ver a expressão de seu
rosto, quando lhe revelasse a verdade. Morreria se percebesse
ressentimento ou raiva..
— Roberta?
Ela respirou fundo.
— Estou grávida... e não queria que você se casasse comigo por
obrigação. Não era desse modo que queria prendê-lo. Vi o que
aconteceu com os Dennison e fiquei apavorada.
— Olhe para mim, Roberta.
Ele a agarrou pelos ombros, obrigando-a a encará-lo, e ela viu
um homem atormentado e aflito diante de si.
— Já sei que está grávida, soube por Standish. Mas queria ouvir
isso de você.
— Agora já sabe.
— Quando ele me contou, quase caí das nuvens. Não sei como
pude ser tão cego.
— Não tem importância.
— Tem amor. Você pensou em fazer um aborto por minha causa.
Meu Deus.
Paul fechou os olhos por alguns instantes, tentando recuperar o
autocontrole.
— Quero esse filho e quero me casar com você, Roberta! Não
imagina quanto eu a quero!
Ela atirou-se nos braços dele, murmurando-lhe o nome,
enquanto o cobria de beijos. Havia gosto de lágrimas nas bocas que se
buscavam com incontida ânsia. Seus desejos cresceram, transportando-
os daquela emoção profunda a mais ardente paixão.
O fogo crepitava na lareira e as chamas lançavam agulhas,
quebrando a quietude que envolvia a sala em penumbra.
Paul e Roberta estavam no amplo sofá, ainda imersos na suave
languidez do amor. Ela fitava as chamas, um ar de contentamento
estampado no rosto sereno. Sentia-se mais próxima de Paul do que
nunca.
Haviam finalmente posto a nu seus sentimentos mais íntimos,
falando de suas inseguranças e de suas dúvidas.
Pela primeira vez conversaram abertamente sobre os pais de
Paul e Roberta armara-se de coragem para contar a cena do hospital.
Pensava que ele fosse ficar ofendido com sua intromissão em assuntos
de família, mas Paul encolhera os ombros com indiferença. Já não havia
mais segredos entre eles e isso criava uma nova harmonia. Ela sorriu,
vibrando de alegria.
— Eu o amo muito — sussurrou ao seu ouvido. Paul a abraçou
com ternura.
— Minha querida...
— Você ainda vai me amar, quando eu estiver gorda e
barriguda?
— Vai ficar linda!
— É o que você pensa!
— Tenho certeza... Ah, não consigo acreditar que serei pai dentro
de alguns meses.
— Você já é pai, Paul. — Ele soltou uma gargalhada.
— Roberta, você é a luz da minha vida. — Ela aconchegou-se a
ele, feliz.
— Sabe, Roberta, o Natal com sua família tirou-me a venda dos
olhos.
— Como assim?
— Comparei seus pais aos meus e cheguei a invejá-los. E,
quando vi Miles com Troy, percebi que estava enganado sobre uma
porção de coisas.
— Você estava com um ar tão estranho naquela noite!
— Percebi como você e suas irmãs eram unidas e senti-me
desesperadamente só.
— Pobrezinho... Por que não me disse nada?
— Ainda não via claro dentro de mim mesmo. Mas de uma coisa
pode estar certa: nossa filha terá uma porção de irmãos.
— Filha?!
— Sim. Vai ser uma menina — ele afirmou com segurança. —
Parecida com você. E se chamará Amanda.
— Está enganado! Será um menino teimoso como o pai.
— Vamos fazer uma aposta? Se perder, quero que vista para
mim, mais uma vez, aquele seu excitante vestido vermelho.
Roberta riu.
— Combinado.
Houve um confortável silêncio, antes que ela voltasse a dizer:
— Paul?
— Ahan...
— Não se importa, se eu continuar trabalhando?
— Claro que não! Ficaria desapontado se você abandonasse a
profissão. Tantos anos de estudo e de prática... Não seria justo. Mas
não se preocupe, daremos um jeito. Trabalharemos apenas quatro dias
da semana. O resto do tempo será dedicado à nossa filha.
— Filho!
— Olha...

No dia dezoito de agosto, as dezessete e quarenta e cinco, nascia


Amanda Lee Wilcox. Parecia tanto com a mãe, que a avó chorou,
emocionada.
A criança veio ao mundo pelas mãos do pai, o Dr. Paul Wilcox, e
o primeiro presente que recebeu foi uma enorme boneca chamada
Annie. O segundo, uma delicada corrente de ouro com um pingente em
forma de coração, foi-lhe dado pelo padrinho, o Dr. Bernard Winston
Radcliffe III.
Seu pai deixou o pessoal da maternidade louco, com tantas
exigências, mas sua mãe apenas sorria e não dizia nada.
As enfermeiras se espantaram ao ver o enorme buquê de rosas
vermelhas que a Sra. Wilcox recebeu. O cartão dizia simplesmente: "É
uma menina, prepare o vestido vermelho".
Quando lhe perguntaram o significado da mensagem, a Sra.
Wilcox sorriu, mas não fez nenhum comentário.
— Roberta...
Ela espreguiçou-se, ainda sonolenta, e abriu os olhos. À luz do
abajur, viu Paul sentado na beirada da cama com a filha nos braços.
— Sinto muito, amor, mas acho que Amanda está com fome.
— Que horas são?
— Três horas.
— Que gulosinha...
Paul arrumou os travesseiros e Roberta acomodou-se,
aninhando a criança nos braços para lhe dar o seio.
— Você não pode ficar acordado a noite inteira, Paul. Precisa
descansar.
Ele acariciou o rostinho rosado de Amanda.
— Não perderia essa cena por nada neste mundo. Ajudei-a a
nascer... É uma sensação indescritível, sabendo que ela foi gerada por
nosso amor, que é parte de nós.
A sinceridade de suas palavras emocionou Roberta.
— Amo-o demais, Paul.
Os olhos dele brilharam de ternura. Envolveu a esposa e a filha
num abraço protetor.
— A vida tem agora outro sentido para mim, Roberta. E devo
isso a você.

— Não me deve nada. Construímos nossa felicidade juntos. Ele


olhou-a com uma expressão cheia de amor.
— Sim, juntos e para sempre.

 Fim 

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