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Jenny Loring
Digitalização: Vicky
Revisão: Anitta
Super Sabrina 90 - Nunca te esqueci - Jenny Loring
Projeto Revisoras 2
Super Sabrina 90 - Nunca te esqueci - Jenny Loring
CAPÍTULO I
Uma abelha entrou pela janela da centenária sala do tribunal de River County,
embriagada pelo calor e pelos aromas da morna manhã de abril, enchendo o ambiente
com seu zumbido.
Sentado a uma das mesas, esperando que a juíza entrasse, o advogado Dan
Sullivan mantinha-se alheio ao ruído do inseto, ouvindo apenas aquele nome que soava
sem cessar em sua mente: juíza Susannah Ross. Folheando distraidamente a pasta de
documentos à sua frente, mal tomava conhecimento da presença de seu cliente, na
cadeira ao lado, ou de Robert Corwin, o advogado da companhia de seguros, na outra
mesa, um oponente respeitável que viera de Los Angeles para representar a firma
naquele caso.
Susannah Ross. Tentou tirar o nome do pensamento como fizera durante os
últimos dez anos, quando não o pronunciara em voz alta uma única vez. Naquele
momento, porém, o nome teimava em torturá-lo com uma insistência de enlouquecer,
envolvendo-o em lembranças pungentes de uma felicidade perdida, enchendo-o com as
sombras de um velho ressentimento.
Com o nome de Susannah voltava a dor quase esquecida e ele se martirizava
imaginando se não seria melhor largar tudo e ficar o mais longe possível daquele tribunal
e da recém-nomeada juíza.
Ainda não percebida por Dan, a abelha fez uma rápida manobra ao redor da
cadeira colocada sobre o tablado do juiz e desceu sobre as mesas destinadas aos
advogados, dispostas em forma de "L". O outro advogado observava-a nervosamente e
ficou visivelmente aliviado vendo-a voar na direção de Dan.
— Dan! — Corwin chamou a meia-voz. — Essa filha da mãe deve estar gostando
da sua loção de barba. Mate-a, homem, ou será picado.
Dan ergueu a cabeça com expressão absorta e demorou alguns segundos para
perceber o que acontecia. Vendo o inseto que o rodeava, chegou a pensar em permitir
que o ferroasse. Talvez fosse uma daquelas abelhas bem ferozes cuja picada lhe daria
uma desculpa para largar o caso e esperar que o sócio sarasse e assumisse a tarefa em
seu lugar; mas, azarado como era, inevitavelmente aquela seria uma abelhinha ordinária,
que o deixaria apenas com um calombo ridículo no nariz e não o livraria do trabalho nem
da provação de se ver frente a frente com Susannah. E encarar qualquer juiz com nariz
de palhaço não era algo que o seduzia.
Alarmado pelo próprio raciocínio, gelou diante do perigo. Logo, porém, o esboço de
um sorriso curvou-lhe os lábios. Se aquele advogado criado na cidade, o Corwin, pensava
que ia vê-lo apavorado pela abelha e ferroado por ela, estava redondamente enganado.
Havendo crescido numa fazenda, Dan sabia, desde a mais tenra idade, que o único jeito
de defender-se de um inseto voador era ficar imóvel. E foi o que fez.
A abelha zumbiu ao redor de seu rosto, chegando a esbarrar em uma das faces,
mas não o atacou. Depois de alguns segundos, cruzou a sala e saiu pela janela.
Dan relaxou os músculos e ajeitou-se na cadeira. O ar ameaçava tornar-se
opressivo e já fazia bastante calor para um começo de primavera, mesmo considerando-
se o clima quente da Califórnia. O servente fechou os vidros das janelas e ligou o ar-
condicionado, mas ele continuou a sentir as palmas das mãos úmidas.
Aquele era um sintoma da ansiedade que o perseguia desde que iniciara a carreira
de advogado, doze anos atrás, não podendo ser atribuído nem ao calor nem à umidade
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exagerada do ar, como acontecia ali em Cacheton, sede da comarca de River County,
uma cidade eternamente úmida devido aos campos alagados para a plantação de arroz e
aos inúmeros canais de irrigação que havia nas redondezas.
Naquele dia, o que o deixava ansioso não era o caso em si, mas o juiz, ou melhor,
juíza, que atuaria no julgamento para o qual ele viera, viajando trezentos quilômetros.
Susannah Ross. Do signo de Gêmeos, volúvel, mulher de dupla personalidade. Era
um riacho de montanha e um lago profundo, flor e chama, brisa e vendaval, gata mansa e
tigresa.
Lamentava que na faculdade de direito, nas aulas de ética profissional, nunca lhe
houvessem ensinado como portar-se na presença de um juiz com o qual partilhara não só
um apartamento, mas a vida, o riso, o amor desenfreado que, apesar do fim amargo,
ainda teimava em perseguir-lhe os pensamentos.
No gabinete do juiz, cuja porta se abria para a sala do tribunal, a juíza Susannah
Ross ocupava a escrivaninha rodeada de estantes de livros que forravam as paredes do
chão ao teto. O que lia, porém, nada tinha a ver com a lei. Nos cinco meses que se
haviam passado desde que fora indicada para o cargo, descobrira que aquele era o
melhor meio de limpar a mente de preocupações antes de entregar-se aos graves
assuntos do tribunal.
Sendo mulher, uma estranha em River County e, aos trinta e três anos, um dos
magistrados mais jovens do Estado, na primeira semana como juíza aparecera na corte
como se fosse ser submetida a julgamento, tão nervosa ficara. Temendo não dar conta do
recado, contraíra o mau hábito de gastar os últimos minutos antes de entrar no tribunal
lendo livros de Direito, cultivando sua insegurança. Aos poucos, porém, percebera que
aquilo a deixava ainda mais tensa, optando então por entregar-se à leitura de algo bem
diferente que a ajudasse a relaxar.
Naqueles momentos de preparação para o desempenho de sua função, lia de tudo,
desde romances e contos policiais até poesias, clássicos da literatura e peças teatrais.
Gostava de reler livros que se haviam tornado favoritos, trazendo-os de casa, ou
comprava novos ao sabor da fantasia, deixando-se atrair por uma bela capa ou um título
sugestivo.
Já havia travado conhecimento com os caminhos da imaginação de vários autores,
podendo facilmente reconhecer aqueles que a ajudariam a combater a tensão que a
assaltava sempre nos minutos que precediam o momento de vestir a toga. Essa tensão
aumentara consideravelmente depois que tivera início o movimento causado pelas
eleições do próximo mês de junho. Sabia que precisaria custear uma campanha agressiva
e cara para ter chance de ser eleita para a magistratura, pois ocupava o cargo apenas
como substituta, mas não tinha nem dinheiro nem tempo para tanto.
O livro que escolhera para aquele dia era um velho exemplar cheio de orelhas do
Anatomia de um Pescador, de autoria de um juiz aposentado da Suprema Corte de
Justiça do Estado de Michigan, John Voelker, que escrevia sob o pseudônimo de Robert
Traver. Parecia que o livro fora escrito especialmente para ela, quando sua carreira
atravessava um momento de incerteza e sua mente enchia-se de problemas que não
podia solucionar. Suas páginas evocavam deliciosas lembranças de um tempo
infinitamente feliz, dez anos atrás, quando ela ia, em companhia do homem que a
presenteara com aquele livro, ao alto da sierra, para pescar. Ele a ensinara a delicada
arte de lançar a isca num determinado ponto sem enrugar a superfície da água e ela
adorara cada minuto daquele aprendizado, pouco se importando se fisgasse algum peixe
ou não, enchendo-se de satisfação pelo simples fato de poder sentar-se à margem de um
riacho cascateante, aspirando o ar perfumado pelas coníferas e ouvindo o som musical da
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água correndo. Aprendera a deixar que a paz das montanhas limpasse de sua mente as
exigências frenéticas da cidade e lhe rejuvenescesse o espírito.
Quando a indicação judicial a obrigara a viver perto daquela parte da sierra que
nunca havia explorado, prometera-se descobrir um outro riacho que lhe devolvesse os
doces sentimentos de uma época feliz, mas ainda não encontrara tempo. Com a pressão
exercida pelo novo trabalho e pela preocupação com as próximas eleições, o aperto da
saudade daquele tempo tornara-se mais vigoroso e ela continuava prometendo a si
mesma que num fim de semana qualquer iria em busca de um lugar onde as águas
cantassem e o ar fosse perfumado.
Com um suspiro, desistiu das lembranças e voltou à leitura. "A verdade é que
pescar trutas pode ser mais louco e inebriante que inalar ópio", ela leu, logo sendo
interrompida por uma batida na pesada porta de carvalho que separava seu escritório de
uma outra sala. Devia ser Jill Fitzgerald, a secretária que herdara juntamente com o cargo
de juíza. Não se apressou em mandá-la entrar.
Ainda não sabia direito o que fazer com a jovem que fora treinada para o trabalho
pelo juiz anterior. Jill parecia uma adolescente séria com seus modos formais, as sardas e
o nariz arrebitado. Tinha apenas vinte e três anos, mas era inegavelmente competente e
sabia tudo sobre procedimentos legais e protocolo.
Era evidente que a secretária não gostava dela, mas ainda não descobrira o
porquê do ressentimento. A moça dava a impressão de não suportar vê-la sentada na
cadeira do velho e venerado juiz Randall, o que não era de surpreender, pois ela própria
sentia-se inadequada para o cargo, mas as atitudes da jovem já a estavam cansando.
Nos cinco meses decorridos desde que o governador a nomeara para ocupar a
vaga deixada pela morte do velho juiz, ela freqüentemente vira Jill agir com simpatia com
todas as outras pessoas, menos com ela. A moça falava com bom humor e graça com os
advogados conhecidos e com o pessoal do tribunal, mas com Susannah era fria e
reservada apesar de cortês e prestativa. A juíza tinha a sensação perturbadora de que
fora comparada com o grande juiz falecido e que saíra perdendo.
Se lhe acontecia deixar um romance sobre a mesa, podia estar certa de que o
encontraria discretamente escondido sob alguma pilha de documentos legais quando
voltasse a procurá-lo. Os modos de Jill a divertiam, mas não deixavam de aborrecê-la,
pois revelavam uma censura velada ao comportamento frívolo da juíza, que tinha a
coragem de dedicar-se à leitura profana no santuário do antigo magistrado.
Susannah marcou a página do livro com o dedo e olhou para a porta fechada ainda
relutando em mandar a moça entrar. Por fim suspirou, sabendo que precisava atendê-la.
— Pode entrar, Jill.
Não havia a menor semelhança física entre as duas mulheres. Susannah era alta e
esguia, possuidora de uma estrutura óssea bem esculpida que lhe dava um corpo
harmonioso e elegante. Jill, por sua vez, com sua estatura que não chegava a um metro e
sessenta, era dotada de curvas generosas.
A juíza trazia o cabelo castanho-escuro solto, caindo até um pouco acima dos
ombros, uma moldura suave para o rosto delicado de sobrancelhas bem delineadas e os
brilhantes olhos castanhos ligeiramente puxados. O rosto redondo e resoluto de Jill,
graciosamente semeado de sardas, era emoldurado por uma massa de cabelos curtos e
crespos de uma cor que lembrava a areia, e os olhos azuis seriam lindos se não fossem
tão impessoais.
— Trouxe a pasta com os documentos sobre aquele caso da perfuração de poços,
excelência — anunciou Jill. — Acabei de recebê-la da secretária do sr. Clothier.
— Obrigada. Coloque-a na outra mesa, por favor. Darei uma olhada quando a
sessão desta tarde terminar.
Sem nada comentar, a secretária aproximou-se da outra escrivaninha e começou a
arrumar as pastas que ali já estavam, colocando-as em ordem segundo um critério
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conhecido apenas dela. A juíza a observava, imaginando o que se passaria por trás
daquela aparência de inabalável eficiência e se as diferenças entre as duas seriam tão
drásticas no modo de pensar como eram no tipo físico.
Seria de esperar que depois de cinco meses a concha de reserva que envolvia a
secretária já se houvesse partido, mas os dias passavam e a moça não parecia nem um
pouco mais à vontade na sua presença. Susannah sentia falta do relacionamento informal
que tivera com suas outras secretárias e chegava a ter uma sensação de desconforto
com a proximidade da moça. Era desagradável não poder conversar livremente, limitando
a troca de palavras ao estritamente necessário para o bom andamento do trabalho.
De repente, o que um juiz veterano lhe dissera quando ela fizera seu juramento
voltou-lhe à mente.
— Devo avisá-la, minha querida, que está iniciando uma carreira freqüentemente
associada à solidão.
Ela rira, achando que ele exagerara.
— Vale a pena aceitar o desafio, não é? — comentara ela. — Tenho certeza de
que sempre encontrarei amigos.
Acertara ao falar em desafio, mas errara quanto ao resto. Era muito difícil fazer
amigos sendo nova numa comarca que nas últimas eleições havia votado maciçamente
contra o governador que lhe dera a magistratura.
Olhou para o vestido que usava, de linho salmão, lembrando-se de que Jill a olhara
com censura quando a vira com ele pela primeira vez. Entrou em pânico ao pensar que o
cargo, além de lhe negar os amigos que desejava, poderia exigir que renunciasse à cor,
ao gosto de vestir-se com modelos alegres, à descontração de viver com alegria.
Desanimada, não resistiu ao impulso de deter a secretária que se preparava para
sair da sala.
— Espere um pouco, Jill — começou, sem saber direito o que diria a seguir. —
Sabe alguma coisa sobre pesca? — Ergueu o livro que mantinha nas mãos.
Pela primeira vez foi possível ver um lampejo de sentimento genuíno nos olhos
azuis. Viu surpresa, a princípio, depois, antes que o véu de reserva tornasse a cair,
percebeu um traço de secreta vulnerabilidade, como se por trás da competência existisse
timidez.
— Cacheton fica a alguns minutos dos melhores riachos da sierra, excelência.
— Já fui muito boa em lançar iscas — Susannah disse impulsivamente, cedendo à
nostalgia.
— Sim? — Jill respondeu. — Nunca tentei pescar, mas tenho... tive... bem... um
amigo que pescava muito bem.
Espantada pela tristeza que então viu nos olhos da outra mulher, Susannah hesitou
um instante; mas, havendo conseguido trazer à tona um fragmento do verdadeiro interior
da secretária, ousou levar a conversa adiante.
— O autor deste livro me deixou ansiosa para conhecer esses riachos da sierra
que você mencionou. — Mostrou a capa para que a outra visse o título. — Ele diz que
pescar é algo mais velho que o xadrez ou até mesmo que o amor. Ouça isto: "Pescar é
uma fonte inesgotável de prazer".
Procurou mais alguns trechos sem ousar erguer os olhos para a moça.
— "Uma espécie de rebelião"-— leu — "não muito importante, mas como a maioria
dos atos de rebeldia do homem não faz grande diferença, fico com a pesca, bem mais
divertida. Um dia hei de pescar uma sereia."
Ergueu os olhos do livro para encontrar uma expressão de puro espanto no rosto
da secretária, o que a fez duvidar instantaneamente da validade de sua iniciativa. Se a
moça já a desaprovava, depois daquela ia julgá-la uma boba completa, inadequada para
o alto posto que ocupava.
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Na sala do tribunal, Dan lutava contra o impulso que o fazia olhar seguidamente
para a porta pela qual Susannah logo surgiria, ao mesmo tempo que ouvia a cantilena do
cliente em seus ouvidos. O oficial de justiça levou os jurados para os seus lugares e Dan
tentou concentrar-se no exame dos rostos daqueles cidadãos que decidiriam sobre a
sentença.
Em todos os seus longos anos de trabalho aquela era a primeira vez que teria que
enfrentar um júri formado de pessoas completamente desconhecidas, pois não estivera ali
para escolhê-las. Seu oponente havia participado da escolha, o que o colocava numa
posição de desvantagem, aumentando-lhe a ansiedade.
A experiência lhe ensinara que o processo de questionar, considerar, escolher ou
rejeitar os possíveis jurados, ajudava muito durante o decorrer do julgamento. Criava-se
uma sensação de que, certo ou errado, aquele era o seu júri. Naquele dia, esse elemento
faltava, pois, mesmo tendo o sócio, Jerome Curtis, participado da escolha, aquelas
pessoas lhe eram completamente estranhas.
Tentando minimizar a desvantagem, passara a maior parte das últimas quarenta e
oito horas decorando as anotações que Jerome — Jerry, como o chamava — fizera sobre
os jurados e estudando os comentários que o sócio escrevera no hospital, depois de
sofrer o acidente. Mas não era a mesma coisa. Teria que passar os minutos que
precediam o início do julgamento tentando relacionar os jurados com as informações
recebidas e formar um quadro geral sobre cada pessoa.
Arrependia-se de não haver dito um redondo "não" quando Jerry sugerira que
pegassem o caso Minerva. Seu próprio pai e dois irmãos ainda cuidavam da fazenda
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onde ele fora criado, no vale de São Joaquim, e a simples idéia de travar uma luta no
tribunal em favor de uma imensa corporação igual àquela que estava engolindo as terras
de famílias como a sua, no vale, virava-lhe o estômago.
Jerry, porém, argumentara que era muito esnobismo recusar uma das melhores
causas que já lhes surgira por causa de sentimentos pessoais. Até o pai lhe dissera que
seria loucura não aceitá-la, desde que a fazenda Minerva havia sofrido sério prejuízo e
tinha direito a uma indenização. Também, como advogado, Dan era obrigado a admitir
que mesmo um latifundiário ambicioso como Bancroft podia escolher a firma que o repre-
sentasse e ser aceito, a menos que houvesse um motivo bastante razoável para a recusa,
o que não era o caso.
Todavia, todo seu instinto se revoltava contra a idéia, e sabia que Jerry teria cedido
se ele houvesse insistido. O sucesso da sociedade baseava-se no trato que haviam feito,
estabelecendo que Dan faria todo o trabalho de tribunal, mas que em compensação teria
a última palavra na aceitação ou não das causas que surgissem.
Aquele caso estava fadado a ser um dos mais difíceis de sua carreira. Sem falar no
cliente, o antipático Bancroft, havia ainda o fato de não haver testemunhas e, pior que
tudo, o julgamento seria presidido por Susannah Ross, a nova juíza da comarca. Na
manhã em que descobrira isso, falara com Jerry, explicando que não representaria a firma
no tribunal, daquela vez. O sócio olhara-o como se houvesse sido traído, mas Dan fora
irredutível. Mesmo detestando os trabalhos da corte, Jerry não tivera outro jeito a não ser
resignar-se, mesmo cheio de ressentimento. Receando que a tensão entre os dois
ameaçasse a sociedade e até a amizade que havia entre eles, Dan sentira-se obrigado a
contar ao sócio que ele e a juíza de River County haviam sido amantes. Aquilo pusera um
fim à questão.
A voz do oficial de justiça quebrou o silêncio da sala e trouxe o pensamento de Dan
de volta aos jurados. Perdera preciosos minutos divagando e, como o julgamento estava
prestes a começar, não teria tempo para aprender algo mais sobre as pessoas que
compunham o júri.
— Está iniciada a sessão na Corte Superior de Justiça de River County, Califórnia
— o oficial anunciou com voz cantada. — Presidindo, sua excelência a meritíssima juíza
Susannah Ross. Levantem-se, por favor.
Os rijos músculos do estômago de Dan se contraíram. Num pensamento
incompatível com a solenidade do momento, desejou com todas as forças que Jerry não
houvesse bancado o salvador de gatos, subindo ao telhado para pegar o animal do
vizinho, ou que pelo menos tivesse tomado cuidado para não cair. Levantou-se, como
todos os outros presentes, num gesto tradicional de respeito para com um juiz.
Finalmente seu olhar caiu sobre Susannah e foi como se levasse um soco, ficando um
momento sem poder respirar.
Observou-a aproximar-se do estrado, cheia de compostura, como se houvesse
nascido para o cargo que ocupava, lembrando-se da primeira vez que a vira, vestida de
vermelho, uma advogada novata, cheia de medo, embora inteligente, teimosamente
honesta e adorável.
Estudou-lhe o rosto claro, mais branco em contraste com o negro das vestes
judiciais, e viu-lhe os olhos escuros e sóbrios. Então, todos os sentimentos esquecidos
inundaram-no inesperadamente numa enchente de emoções.
Susannah caminhou para a mesa sobre o estrado, deixando tudo o que era
pessoal para trás, concentrando-se apenas no fato de que era uma juíza e estava ali para
ouvir um caso. Sentou-se na enorme poltrona de madeira entalhada e espaldar alto,
pensando que era a primeira mulher a ocupá-la desde que aquele tribunal fora
estabelecido, muitos anos atrás, e esperou que o oficial pedisse aos demais que se
sentassem também.
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Enquanto todos se acomodavam ela correu o olhar pela sala, pelos jurados e pelas
mesas dos advogados. Esperando ver o homem baixo e robusto que conhecera na
semana anterior, o advogado Jerome Curtis, não percebeu imediatamente a pessoa que
ocupava seu lugar. Depois, como num relâmpago que quase a fulminou de surpresa, ela
o reconheceu.
Dan! Não podia ser! O que estaria fazendo em sua corte?
De repente, tudo tornou-se irreal. Numa ligeira vertigem, a cena a sua frente saiu
de foco para depois voltar a ficar clara.
A sala permanecia em silêncio, à espera. O mutismo da juíza pesava no ar, mas
ela não tinha voz para falar. Mexeu cegamente nos papéis sobre a mesa, tentando ganhar
um pouco de tempo que lhe permitisse controlar as emoções, que ameaçavam derrubá-la,
e o tremor das mãos.
Vagarosamente recuperou a compostura. Forçou-se a erguer os olhos e encarar
aquele homem que surgira do passado.
CAPÍTULO II
Embora tudo fizesse para negar a evidência, Susannah não podia fugir da verdade.
O homem à sua frente era Dan. Conservava o mesmo rosto bonito, apenas tocado pela
maturidade que transformara os traços cheios de juventude em feições fortes e mais
atraentes ainda. Os cabelos ruivos, mesclados de dourado, apresentavam alguns fios
brancos que mostravam os anos perdidos em que haviam ficado separados e incapazes
de acompanhar a lenta modificação que o tempo operara nos dois. Esse pensamento
provocou uma pontada de dor que ela tentou em vão ignorar.
As emoções em tumulto levaram-na perigosamente à recordação daquela noite do
rompimento e, temendo sucumbir, ela procurou refúgio no exame da aparência de Dan. O
homem que conhecera jamais haveria pensado em combinar a gravata com a camisa.
Observou que, embora as roupas que usasse tivessem bom corte e fossem feitas de
tecido caro, ao contrário de dez anos atrás, quando o dinheiro era sempre curto, ele ainda
se vestia com descontração e elegante indiferença. Lembrou-se de como ele detestava
ternos, vivendo de jeans, mesmo no escritório, apenas usando roupas mais formais para
ir ao tribunal.
Sentiu o coração apertado por uma mão de gelo ao pensar que a gravata verde
que usava naquele momento e que acentuava a magnífica cor dos olhos, poderia ser a
escolha de uma mulher e que provavelmente ele se houvesse casado.
Percebeu o silêncio da sala, notando que se tornava opressivo. Procurando forças
para falar, espantou os pensamentos deprimentes, considerando que não lhe interessava
se ele tinha ou não uma esposa. Suas vidas estavam irremediavelmente separadas.
Quando falou, finalmente, a voz saiu controlada e fria.
— De acordo com os autos do processo, o advogado do autor da demanda, neste
caso, é o dr. Jerome Curtis — ela começou, dando a entender que demorara a falar por
estar examinando os papéis. — Não se acha presente?
Dan ergueu-se da cadeira e ela percebeu que o corpo longo e flexível continuava
enxuto e firme como o fora aos vinte e seis anos de idade.
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nem se importara em pedir outro juiz. Na verdade, nem pensara em tomar tal medida,
nem mesmo como desculpa para não participar de um julgamento juntamente com ela.
— Parece que vamos ter que suportar chiliques femininos durante o maldito
julgamento — Bancroft comentou num cochicho irritado.
Dan ficou rígido. Se aquelas palavras fossem ouvidas pelas mulheres do júri, que
ainda saíam, seu cliente não ganharia nenhuma simpatia delas, muito pelo contrário.
— Não são apenas as juízas que têm que pedir um recesso inesperado, Bancroft.
Sexo nada tem a ver com isso.
O outro ficou vermelho do pescoço à cabeça calva. Mesmo sabendo o quanto seu
cliente odiava ser contrariado, Dan não tentou apaziguá-lo. Aceitara defender a causa e
faria tudo para ganhá-la, mas não tinha a mínima intenção de alimentar-lhe o ego
exagerado.
— Uma mulher não tem nada o que fazer numa corte de justiça — Bancroft teimou
com petulância, erguendo-se e alcançando o corredor. — Sou um homem ocupado. Vou
voltar para o meu escritório. Quando a sessão reabrir, acho melhor aquela dona parar de
enrolar ou então vou querer saber o que está acontecendo.
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— Temos três horas até que os trabalhos sejam reabertos. Se no fim desse tempo
qualquer um de nós achar que será preferível chamar outro juiz, eu me declararei
desqualificada.
Dan também se levantou e virou-se para sair. Todo o seu íntimo gritava de
frustração e desapontamento, mas o rosto permanecia impassível. Corwin pegou a pasta
do chão e empurrou a cadeira para trás, erguendo-se.
— A propósito — falou —, se optarmos por escolher outro juiz, quanto tempo
levará para termos o julgamento?
— As agendas de todos os tribunais do Estado estão lotadas — a juíza esclareceu.
— Poderá levar algumas semanas, talvez até meses.
— Neste caso sinto-me inclinado a confiar no seu senso de justiça e não exigir seu
afastamento do caso, juíza Ross. Vamos deixar as coisas como estão — Corwin propôs.
— Não vamos nos precipitar, doutor. Acredito que concordará que se trata de um
assunto delicado, que merece cuidadosa consideração. Os clientes de ambos devem ficar
cientes do que se passa, inclusive.
Dan seguiu para a porta e Corwin acompanhou-o.
— Voltem para falar comigo aqui no escritório à uma e quarenta e cinco, por favor
— Susannah pediu. — Então resolveremos o que fazer.
Depois que os dois advogados saíram do escritório, Susannah sentiu que a tensão
nervosa diminuía, mas tremia por dentro, ainda descontrolada pela proximidade de Dan.
Colocou a cabeça entre as mãos, revendo as cenas que se haviam passado, conseguindo
uma visão clara da situação.
Descobriu que não precisava temer ser injusta naquele julgamento. Não mereceria
o nome de "juíza" se, depois de dez anos não conseguisse ver com objetividade um caso
que envolvia Dan. Tinha um dever a cumprir e continuaria em seu posto, a menos que
uma das partes litigantes achasse por bem exigir sua desqualificação.
No choque dos primeiros minutos decorridos após deparar inesperadamente com
Dan no tribunal, pensara em largar tudo e fugir para um lugar onde não tivesse que
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caso para que os dois pudessem conversar sem violar os regulamentos, mas aquilo era
uma bobagem.
Imaginou então o que aconteceria se Corwin pedisse sua desqualificação. Dan
voltaria para sua cidade, saindo outra vez de sua vida, ou viria vê-la antes de partir? Por
outro lado, o que a impediria de tomar a iniciativa de procurá-lo? Repreendeu-se por estar
imaginando loucuras, pois passara a maior parte daqueles dez anos tentando esquecê-lo
e possivelmente nada teriam a dizer um ao outro.
Antes que pudesse aprofundar-se naqueles pensamentos, ouviu uma ligeira batida
na porta. O coração agitou-se esperançoso, mas era apenas Jill que viera avisar que
sairia para o almoço.
— Quer que lhe traga um sanduíche, exce... — A moça interrompeu-se, acanhada.
— Tudo bem, Jill. Não sei por que fiz tanto barulho por causa do "excelência".
Quanto ao sanduíche, não se preocupe. Estou sem apetite.
— Não se sente bem? — A secretária preocupou-se. Susannah hesitou, mas sua
necessidade de dividir os problemas com alguém venceu a discrição.
— Acho que vou perder o emprego — acabou por dizer com um sorriso.
— Eles vão desqualificá-la? — a moça perguntou surpresa, entrando na sala e
fechando a porta atrás de si. — Por que fariam isso?
Encorajada pela nota de indignação que percebeu na voz da secretária, Susannah
decidiu contar-lhe o motivo.
— Porque o dr. Dan Sullivan e eu, bem... nós... não somos completamente
estranhos.
— A senhora e aquele homem lindo se conhecem? — De repente, a voz ficou
jovem e excitada. — Que maravilha!
— Sim, nós nos conhecemos e achei que não devia ocultar o fato do dr. Corwin.
— E contou-lhe. — Era inconfundível a nota de respeito na voz da moça. —
Poderia ter se calado e lhe contou, mesmo sabendo que não precisava fazê-lo.
— É claro que precisava, Jill. Acho melhor sentar-se e ouvir a história toda.
A secretária aceitou a sugestão e a expressão do rosto não escondia o ansioso
interesse que sentia pelo que a juíza tinha a contar. Depois de ouvir tudo, fechou os olhos
com um suspiro de satisfação. Quando abriu-os novamente, fitou Susannah com um
sorriso caloroso.
— A senhora tem sorte. Amou um homem fantástico daqueles, perdeu-o. A história
de muita gente acabaria aí, mas a vida está lhe dando uma segunda oportunidade. Isso
quase me faz acreditar em destino.
— Detesto estragar seu devaneio romântico, Jill, mas o que a faz pensar que eu
quero uma segunda chance?
— Bem... não sei mas, no caso de querer, seria loucura deixar essa oportunidade
escapar — a moça declarou com senso prático.
— Não está esquecendo nada? Ele é advogado e eu juíza, e estamos trabalhando
no mesmo caso.
O rostinho redondo e semeado de sardas mostrou espanto.
— Oh, é mesmo! Esqueci os regulamentos todos. Vocês não podem encontrar-se a
sós, nem sequer falar um com o outro ao telefone, não é?
Pareceu a Susannah estar olhando para uma versão mais jovem de si mesma e
não para a secretária eficiente que chegara a intimidá-la no princípio.
— Não deixe que isso a preocupe — disse com gentileza. — Não desejo envolver-
me novamente com ele e pode até ser que Dan esteja casado.
— Não está. Hoje de manhã ouvi o dr. Corwin perguntar-lhe se a esposa ficara em
Fresno ou viera com ele e o dr. Dan respondeu que não era casado.
A moça deu a informação com evidente contentamento e Susannah tentou ignorar
a sensação de alívio que a invadiu.
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— O juiz Randall sempre dizia que não se deve ficar sentado esperando que o
destino decida nossa vida. Se eu fosse a senhora, encontraria um jeito de falar com ele.
— Sempre podemos ser otimistas, Jill. Talvez eu seja desqualificada — Susannah
respondeu com ácida ironia.
O rosto da moça iluminou-se.
— É verdade! Talvez a senhora seja desqualificada!
— O que o seu querido juiz Randall diria se soubesse que sua sucessora está
prestes a ser desqualificada após apenas cinco meses de cargo?
Jill tornara-se uma verdadeira caixa de surpresas. Daquela vez o olhar tornou-se
malicioso e o sorriso travesso.
— Tem certeza de que quer ouvir? O juiz tinha uma linguagem bem profana, às
vezes.
— A toga não me transformou numa santa, Jill.
A secretária empostou a voz em cômica imitação do velho magistrado.
— Olhe aqui, mocinha, não deixe que os desgraçados filhos da mãe a derrubem do
posto.
Susannah olhava para a moça com um sorriso crescente no rosto. Depois, como
se uma barreira invisível desmoronasse entre elas, as duas mulheres começaram a rir.
CAPÍTULO III
Dirigindo a perua rural que se adaptava mais ao seu ritmo de vida do que um carro
comum, Dan corria pela estrada que o levaria à Fazenda Minerva. Pisava forte no
acelerador com a mente longe dos movimentos mecânicos que fazia ao dirigir.
Desejos longamente esquecidos corriam-lhe pelo corpo como a seiva que subia
pelas árvores na primavera, enchendo-o de novo arrependimento por uma frase
impensada, infantil e despeitada que dissera tantos anos atrás e que estragara o único
verdadeiro caso de amor de sua vida. Nenhum outro envolvimento, nem mesmo seu
malogrado casamento que terminara quando ele deixara Washington para mudar-se para
Fresno, fora adiante, ele bem sabia, porque sempre procurara por Susannah em cada
nova mulher que conhecera.
Talvez não fossem as palavras enraivecidas que haviam trocado naquela noite as
únicas responsáveis pela separação. A amargura já se havia estabelecido entre eles
muito tempo antes e a última briga fora apenas o reavivamento de um fogo de
ressentimento que jazia disfarçado sob as cinzas.
Haviam vivido num paraíso irreal, sustentando o relacionamento em duas bases
fracas: a louca convicção de que seu amor era forte o suficiente para tudo vencer e, no
terreno prático, o pensamento idealista de que poderiam ter carreiras vitoriosas servindo
qualquer pessoa que necessitasse de ajuda legal, podendo pagar ou não.
A lembrança do sobrado que eles haviam transformado em escritórios com
aposentos para moradia na parte de cima, trouxe-lhe um sorriso amargo para o rosto.
Estavam tão certos de agir corretamente dando assistência legal às pessoas decentes,
cobrando o que elas podiam pagar, que demoraram a perceber a estranha clientela que
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clima de intensa hostilidade, mas aquilo não lhe doía na consciência, pois lhe faltavam os
princípios irredutíveis da juíza.
Não seria ele a desqualificar Susannah. Apesar do que dissera ao cliente, temia
que Corwin, na reunião marcada para aquela tarde, declarasse não poder permitir que ela
julgasse o caso.
Três horas mais tarde, Dan e Corwin estavam novamente sentados no gabinete da
juíza. O momento da decisão havia chegado e Susannah foi diretamente ao ponto.
— Senhores, o assunto está em suas mãos. Posso lhes garantir que presidirei o
julgamento com total imparcialidade, porém, se um dos senhores tiver algo em contrário,
sintam-se livres para falar. Dr. Corwin?
— Meu cliente deseja ver o caso encerrado o mais breve possível e deu-me
liberdade para decidir, excelência. Como já disse, quero que continue como juíza deste
julgamento.
A despeito do tumulto de emoções que a sacudia, ela forçou-se a olhar para Dan.
— E o senhor, o que decidiu?
— Falei com meu cliente, excelência, e nenhum de nós dois deseja que seja
desqualificada.
Ela fez uma pausa, surpresa pelo desfecho da questão.
— Entendo — disse finalmente. — Assim sendo, senhores, só nos resta dar
andamento ao caso. — Olhou para o relógio. — A sessão será aberta em dez minutos.
Por um momento, logo depois que os dois homens saíram para voltar à sala do
tribunal, Susannah sentiu-se incapaz de qualquer movimento. O pungente e quase
esquecido anseio pelo homem que conhecera tão na intimidade voltara de repente,
obstinado e sufocante. Sem querer acreditar no que estava sentindo, protestava em
silêncio contra o assalto das emoções.
Esperara que um dos dois advogados a desqualificasse, mas nenhum deles o
fizera. Como poderia, dali por diante, encarar Dan, dia após dia, presa às regras da ética
escravizante? Como poderia vê-lo simplesmente como um advogado pleiteando a causa
de um cliente, num julgamento igual a centenas de outros, quando não podia esquecer
que aquele era o homem a quem amara de forma alucinante, mesmo depois que ele lhe
destruíra todas as ilusões?
Ocorreu-lhe que ainda não era tarde demais para que ela mesma se
desqualificasse, mas, com um suspiro, rendeu-se à voz da consciência, que a proibia de
virar as costas ao dever por motivos pessoais. Ressentida por sentir-se numa armadilha,
descobriu que, no íntimo, desejara ardentemente que a tirassem do cargo. Analisando o
sentimento, percebeu que, mais que sua carreira, o que a preocupava era a
impossibilidade de falar com Dan e pedir-lhe desculpas pelas palavras duras de tantos
anos atrás.
A batida familiar na porta tirou-a do estado quase de transe em que mergulhara e
Jill entrou.
— Você não vai acreditar. Vão me conservar no caso — Susannah disse com voz
monótona, sem nenhuma emoção.
— Não a desqualificaram?
O tom de espanto da voz da moça acabou de desfazer a atmosfera de irrealidade
que a envolvera.
— Não vai me dar os parabéns? — Susannah perguntou com um sorriso irônico. —
Se eu fosse desqualificada, meus adversários na próxima eleição teriam muito o que falar.
A secretária deu de ombros.
— Desqualificação é algo que vive acontecendo aos juízes e isso não os
desmerece em nada.
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— Droga! É intratável, cara, mas vou avisar-lhe de uma coisa. Enquanto este caso
durar, nem pense em reatar velhos laços, porque estarei de olho em você.
Entraram, finalmente, e ocuparam seus lugares ao lado dos respectivos clientes. O
rosto de Corwin estava vermelho de irritação e Dan, de alguma maneira, não se sentia
muito satisfeito consigo mesmo. Havia violado sua própria regra de nunca antagonizar o
oponente fora da sala do tribunal e exagerado ao melindrar-se com os comentários de
Corwin, que apenas gostava de falar demais.
Nem mesmo era o que o outro advogado dissera que o irritara, mas o modo como
Susannah permitira que um perfeito estranho tivesse acesso ao mundo íntimo que um dia
pertencera somente aos dois. O aborrecimento que aquilo causara até o surpreendia pela
intensidade.
Abandonou os pensamentos por um instante para dizer a Bancroft que o
julgamento estava prestes a começar e que a juíza Susannah Ross continuaria a presidir.
O outro apenas resmungou. Ia olhar novamente para o compartimento dos jurados, pre-
tendendo avaliar-lhes o caráter pela observação, quando Susannah saiu do gabinete e
caminhou para sua cadeira, uma digna juíza dos pés à cabeça.
Vendo-a novamente envolta em negro, sentiu-se frustrado, pois ainda mantinha na
mente a imagem que vira horas atrás. O vestido salmão fizera-o lembrar-se da mulher
que ela era, amante de cores vivas, que a deixava mais feminina e provocante. Aquele
vestido com que a vira no gabinete desnudava-lhe os braços bonitos e o decote agudo
convidava o olhar a mergulhar no segredo sedutor dos seios sugeridos sob o tecido.
Sentira o coração disparar e o velho desejo de fazer algo louco que desmanchasse
a máscara séria da mulher voltara com força total, como nos tempos em que se haviam
amado, e ele precisara refrear o impulso de dizer alguma coisa que a obrigasse a romper
naquele riso borbulhante que conhecera tão bem. Muito depois de se haverem separado
ele ainda tinha a impressão de ouvir-lhe o riso, ao caminhar sozinho pelas montanhas, e
em todas as vezes sentira a dor aguda do arrependimento e da saudade.
— A Corte Superior de Justiça de River County, Califórnia, está em sessão —
anunciou o oficial.
Dan sacudiu da mente todas as imagens da mulher que ele conhecera,
concentrando-se na figura austera da juíza.
— Dr. Dan Sullivan, está pronto para seu discurso de abertura? — Susannah
dirigiu-se a ele.
— Sim, excelência, estou.
Cada nervo do corpo de Susannah estava tenso como uma corda de violino e ela
precisou fazer um esforço consciente para relaxar antes de iniciar suas instruções de
rotina aos jurados.
— Senhoras e senhores — ela se dirigiu formalmente aos membros do júri. —
Antes que o advogado do queixoso inicie sua explanação, devo pedir-lhes que se
lembrem de considerar apenas a evidência. Como evidência entende-se apenas o que for
dito sob juramento pelas testemunhas. Não se esqueçam de que nada o que qualquer
dos dois advogados possam dizer constituirá evidência e que tudo quanto disserem
deverá servir apenas para que compreendam o caso.
Olhou para Dan.
— Pode começar, doutor.
Ela o observou erguer-se e não pôde reprimir o pensamento de que ele era um
homem maravilhoso. Ao vê-lo encaminhar-se para perto dos jurados, admirou-lhe as
longas pernas de músculos rijos e o andar elástico e fácil. Surpreendeu-se com o orgulho
que sentiu, um orgulho de proprietária dificilmente justificável naquelas circunstâncias.
— Senhoras e senhores do júri — ele disse com um sorriso charmoso, correndo os
olhos por todos os rostos. — Desejo expressar meu desagrado por não haver podido
conhecê-los individualmente durante o processo de escolha dos jurados. Perdi a
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CAPÍTULO IV
Dan aproveitou o breve recesso que seguiu os argumentos de abertura para falar
com Bancroft uma última vez sobre o que ele devia dizer quando fosse chamado a
testemunhar, logo depois do intervalo. O cliente era do tipo falante, incapaz de fechar a
boca depois que pegasse impulso, e Dan precisava ter certeza que não falaria demais,
causando danos irreparáveis.
— Lembre-se, Bancroft, de que como vice-presidente e gerente-geral da Minerva,
tudo o que tem a fazer é expor as circunstâncias do caso — ele avisou, consciente de que
o homem não era muito propenso a receber "ordens".
— Eu sei o que estou fazendo, doutor. Não sou retardado — retrucou o outro
truculentamente.
As palavras de rotina do juramento foram ditas pelo oficial, que parecia à beira de
um bocejo, e Bancroft, primeira testemunha de Dan, ocupou o banco.
Para alívio do advogado, o depoimento decorreu melhor do que esperava e, salvo
por uma menção deslocada de uma colheita de tomates de cento e vinte toneladas por
hectare, e que valera alguns protestos de Corwin e uma reprimenda da juíza, Bancroft
soube portar-se.
A segunda testemunha foi Rex Horner, avaliador de colheitas, empregado de uma
grande companhia de conservas. Denominava-se perito e Dan já o vira testemunhar em
outros casos envolvendo problemas agrícolas, desconfiando tratar-se de uma testemunha
profissional que recebia pagamento para depor. Seu primeiro impulso fora não aceitá-lo,
mas Bancroft insistira e, quando Horner aceitara manter o depoimento dentro de limites
impostos pelo advogado, não tivera outro jeito a não ser render-se ao desejo do cliente.
Com a intenção de fazer um trabalho rápido com a testemunha, Dan fez uma
introdução sucinta e partiu para a única pergunta que desejava que Horner respondesse.
— Sr. Horner, qual era a situação da plantação em questão, comparando-a com as
outras que visitou naquele mês de agosto?
— Teria produzido cento e vinte toneladas por hectare quando chegasse o
momento da colheita, doutor.
Houve um murmúrio na assistência e Dan ficou furioso. Traidor mentiroso! Havia
concordado em declarar uma estimativa de cem toneladas no máximo, um número que
outros peritos poderiam confirmar mais tarde. Seria difícil fazer os jurados aceitarem a
declaração como verdadeira, pois uma colheita de oitenta toneladas já seria considerada
extremamente boa.
— A testemunha é sua, dr. Corwin — disse ele, quase desejando que o outro
advogado fizesse o depoimento do mentiroso em pedaços.
Dan dormiu mal naquela noite e, ao chegar ao tribunal, na manhã seguinte, sentia-
se como se houvesse levado uma surra. Não estava satisfeito com sua atuação na
sessão de abertura do julgamento, achando que agira como um novato defendendo sua
primeira causa. Estivera muito consciente da presença de Susannah e permitira-se
divagar demais, quando sua mente devia estar ocupada apenas com o trabalho que
estava fazendo.
Propondo-se mergulhar no caso e sair vitorioso, deu uma olhada em volta para ver
se tudo estava em ordem, os gráficos, a tela, o projetor e os slides que seriam usados
para reforçar o testemunho de Walter Short, chefe das operações do cultivo de tomates
da Minerva. Chegou à conclusão de que tudo fora bem planejado e preparado, então,
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sentindo um novo impulso de energia, mal conseguia esperar pelo momento de entrar na
luta.
Levando Short para o banco das testemunhas, Dan colocou-se em uma posição
adequada, sem dar as costas nem ao júri nem à juíza e começou o interrogatório. O
homem tinha profundo conhecimento de seu trabalho e respondia com segurança
lacônica que inspirava confiança em seu depoimento. Apesar de uma objeção de Corwin,
que evidentemente desejava abalar a testemunha, tudo correu bem. Short levou a manhã
toda depondo e continuou à tarde, depois do recesso para o almoço.
No correr do interrogatório, Corwin apresentara três objeções, todas negadas pela
juíza. Ocorreu, então, a Dan, a idéia de fazer uma experiência para ver como Susannah
se comportaria se ele fizesse algo que provocasse uma objeção justificada. Resolveu,
impulsivamente, pôr a idéia em prática.
— Não é verdade, sr. Short, que, se aquela plantação não houvesse sido
danificada, a Minerva teria tido a maior colheita de excelentes tomates jamais obtida
antes? — ele induziu a testemunha, despudoradamente.
Olhou então para a juíza e viu o rubor que cobriu o rosto de camafeu, ao mesmo
tempo que os olhos escuros lhe enviavam uma mensagem avisando que ela lhe havia lido
o pensamento e sabia o que ele pretendia. Susannah não esperou que Corwin
protestasse.
— Está induzindo a testemunha, dr. Sullivan, e tenho certeza de que o faz
deliberadamente — ela disse com severidade. — Tenha mais cuidado ao formular suas
perguntas, porque não tolerarei tal procedimento.
Os olhos castanhos, normalmente cheios de calor, estavam frios e duros como
aço. Dan aceitou a reprimenda com um gesto de cabeça e voltou-se para a testemunha,
considerando que não obteria favores daquela mulher, mesmo que o quisesse. Ele usara
de um ardil e tivera a resposta. Era apenas um advogado e ela uma juíza implacável que
não o trataria com a menor deferência, apesar do passado. Voltou a interrogar Short com
propriedade até que a sessão foi interrompida, no meio da tarde, para um ligeiro intervalo,
durante o qual ele teve tempo de recuperar o senso de humor e a calma.
Em seu gabinete, Susannah dirigiu-se para o pequeno banheiro e procurou pelo
frasco de analgésico no armário de porta espelhada acima da pia. Tomou dois
comprimidos, pensando que aquela era a primeira vez que tinha uma dor de cabeça tão
forte durante um julgamento. Gostaria de imaginar que estava ficando resfriada, mas
sabia que a única causa do seu mal-estar era Dan. Induzira a testemunha
descaradamente e aquilo nem seria necessário, pois Short sabia todas as respostas e
não precisava de ajuda. Portanto, a intenção do advogado fora evidentemente testá-la e
descobrir se poderia contar com sua condescendência, o que a obrigara a ser dura com
ele, na verdade, mais severa do que seria normal. Afinal ele apenas formulara uma
pergunta indutiva, fato corriqueiro no tribunal.
No caso de Dan, a pergunta fora até inofensiva, mas ela reagira de forma
exagerada. Seu comportamento estava sendo perturbado pela presença dele e ela
precisava reconhecer que se estava escondendo atrás de uma severidade anormal para
fugir do encanto dos olhos verdes cheios de malícia que a encaravam provocantes depois
de cada pergunta dirigida à testemunha.
Ele agira como um menino arteiro. O pensamento fez com que os lábios dela
esboçassem um sorriso condescendente, mas ela o apagou rapidamente e voltou para a
escrivaninha, apanhando uma pasta para dar uma olhada no caso de um celeiro
incendiado, numa tentativa de tirar Dan da cabeça. Não conseguiu concentrar-se, pois
sua mente fugia do assunto, teimosamente voltando para aquele homem que a
perturbava tanto.
— Oh, Dan, Dan — ela murmurou baixinho, fechando os olhos. — O que vamos
fazer? O que vai acontecer, Dan?
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— Para ser honesta, não está indo. Papai, não tenho tido tempo para pensar na
campanha e na eleição.
— Foi o que imaginei — a voz do pai explodiu através do fio. — Porém acho
melhor começar a pensar ou então daqui a algum tempo ficará desempregada.
O pai tinha a capacidade irritante de fazê-la sentir-se como uma adolescente
irresponsável, parecendo não perceber que a filha crescera e podia cuidar-se muito bem.
— Desculpe, papai, mas tenho presidido um julgamento atrás do outro e não me
sobra tempo para nada. Não se esqueça de que há apenas um juiz nesta comarca, e
muito trabalho. Pensarei na eleição quando este caso em que estou agora terminar.
— Escute, filha. Tenho andado às voltas com a política desde antes de você
nascer e posso lhe dizer uma coisa, sem medo de errar. O eleitorado não quer nem saber
quanto trabalho você tem ou que boa juíza tem se revelado. Se não sair por aí e não
vender sua imagem, eles não votarão em você.
— Papai... — Ela odiou o tom de súplica que havia em sua própria voz — estou
bem no meio de um caso. Prometo que assim que terminar eu...
Inesperadamente, um soluço cortou-lhe as palavras. Lutou para controlar-se, e o
pai tornou a falar, mais calmo e apaziguador.
— Continue com seu trabalho e não se preocupe, filhinha. O tratamento delicado
aqueceu-a por dentro, mas o que veio a seguir estragou tudo.
— Susannah, pode contar com todo o dinheiro que quiser para a propaganda nos
jornais e na televisão. Vou mandar uma equipe de relações públicas para aí, umas três
semanas antes da eleição. Vão virar River County de cabeça para baixo atrás de votos
para você.
— Papai! Você não pode fazer isso! O povo de River County não vai se deixar
influenciar por estranhos e além do mais não posso usar dinheiro de fora.
— Isso apenas vem demonstrar que você não entende nada de política, minha
querida. Falaremos depois — ele fez uma pausa, como se pensasse, antes de concluir. —
Durma bem.
O pai desligou e ela depositou o aparelho no gancho, cheia de raiva. Um jeito certo
de perder a eleição era trazer para River County uma cara campanha sofisticada, aos
moldes do que se fazia nas grandes cidades. Precisava impedir o pai de se intrometer
naquele assunto, embora ele tivesse razão ao dizer que ela tinha que começar a fazer
alguma coisa se desejava continuar como juíza da comarca. O que faria para demovê-lo
da idéia, teimoso como era?
Ela também era teimosa. Quando terminara a faculdade de Direito, não quisera
aceitar o emprego que o pai lhe conseguira, numa importante firma, preferindo trabalhar
por conta própria e quando fora viver com Dan também tomara a decisão e fora
irredutível. Porém, em tudo o que fizera, sempre tivera a certeza de que contara com a
aprovação do pai no final, e de que ele nunca deixara de sentir-se orgulhoso por tê-la
como filha.
Com a mãe fora diferente. Aprendera desde pequena que, se quisesse conseguir a
almejada aprovação, era necessário atingir as metas estabelecidas pela mãe, autoritária e
orgulhosa. Entrará na escola mais cedo que as outras crianças e sempre se sentira
obrigada a ser a melhor em tudo, o que resultara em sua formatura de advogada aos vinte
e dois anos de idade, poucos meses antes de a mãe falecer, vitimada por um aneurisma.
Revendo os anos da infância e juventude, achava-os inacreditavelmente
deprimentes. Não tivera tempo para ser jovem nem para dedicar-se à doce
irresponsabilidade da adolescência. Apenas quando encontrara Dan fora que aprendera a
brincar e a rir, a ser espontânea e alegre.
Pensando nele, foi para a cozinha preparar um lanche. Ficaria feliz se os dois
pudessem voltar a ser amigos depois que o julgamento terminasse, embora soubesse que
amizade jamais seria o suficiente entre eles e que não havia mais lugar para o amor.
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— Não há dúvida de que Dan estava me testando, ontem. Suspeito que desejava
descobrir sua posição em relação a mim. Foi apenas algo pessoal, não preconceito contra
as mulheres.
— E o dr. Corwin?
— Quem sabe? Mas isso não importa. Agora que já me testaram, talvez possamos
trabalhar mais tranqüilos e acabar o julgamento — concluiu com um toque divertido na
voz. — De qualquer forma, aqueles dois são minhas menores preocupações.
— Como assim?
— Quem dera eu pudesse manipular meu pai tão bem como faço com esses
advogados ardilosos!
A curiosidade borbulhou nos olhos da moça, logo mascarada pela discrição
profissional.
— Jill, o que você diria se eu trouxesse uma equipe especializada para dirigir
minha campanha?
A desaprovação tomou conta do rosto e do olhar da moça.
— Isso custaria uma fortuna — foi a resposta evasiva.
— Suponho que alguém financie — ela pressionou, vendo o ar chocado e
desiludido de Jill.
Fez uma pausa, antes de explicar as idéias do pai.
— É isso o que meu pai quer fazer. Preciso impedi-lo, mas não sei como.
Encorajada pelo alívio que viu na expressão da secretária, contou-lhe toda a
conversa que tivera com o pai.
— A política tem sido a vida dele — explicou depois. — Meus avós o deixaram
relativamente bem e, apesar de lidar com seguros, nunca precisou realmente trabalhar e
fazer uma carreira. Infelizmente, a nova geração de políticos tomou conta de San
Francisco e papai tem quase oitenta anos. Pela primeira vez na vida ficou fora do que
mais amou. Se eu não tomar a iniciativa da campanha, ele vai aparecer por aqui com uma
porção de gente e um bocado de dinheiro para tentar me eleger. O que eu farei então?
— Puxa! — exclamou Jill. — Precisa impedi-lo, isto é certo.
— Diga-me como! Não posso discutir campanhas com meu pai. Ele é um perito e
eu nada sei. Além disso, quando o julgamento terminar ele já estará aqui com armas e
bagagens.
A moça franziu as sobrancelhas, preocupada, pensando em algo para dizer.
— Também não entendo muito de campanhas — começou por fim. — Mesmo
porque jamais apareceu ninguém querendo derrotar o juiz Randall; mas, se a senhora
quiser, poderei fazer uma pesquisa e descobrir como se começa.
Susannah animou-se, sorridente.
— Obrigada, Jill. Agradeço muito sua boa vontade e confiança, mas não posso
permitir que acumule mais trabalho do que já tem me aturando o dia todo. Tem que
aproveitar as noites e os fins de semana para divertir-se, como qualquer jovem.
— Não tenho nada de interessante para fazer nas minhas horas de folga.
Mais uma vez apareceu uma sombra de tristeza no rosto bonito da moça.
— Algo a preocupa, não é? — Susannah perguntou com delicadeza.
Duas lágrimas rolaram pelas faces salpicadas de sardas.
— É que... acho que algo terrível aconteceu. — A voz quebrou-se num soluço e o
rosto encharcou-se de lágrimas.
Susannah ofereceu-lhe um lenço de papel.
— É alguém de quem você gosta, Jill?
— Alguém que eu amo muito — respondeu a moça com alguma relutância, como
se lhe custasse admitir o fato. — Ele foi embora e escrevia sempre, mas de repente não
tive mais notícias. A última carta que lhe escrevi voltou esta manhã.
— Acho que sei como se sente.
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Não era recomendável fazer muitas perguntas, pois Jill poderia assustar-se e
fechar-se novamente em sua concha.
A moça virou-se para sair, ainda com o rosto marcado de lágrimas e os olhos
vermelhos.
— Use o meu banheiro para retocar a maquiagem — a juíza ofereceu.
Jill aceitou com um sorriso triste e depois de alguns instantes retornou com o rosto
lavado e nova maquilagem aplicada, não dando sinal de que algo fora do normal ocorrera.
— Sei de vários entendidos em campanha aqui na comarca e vou tentar falar com
eles esta noite — a moça ofereceu. — E, se me permite falar assim, acho que devia dizer
ao seu pai que o que é bom na cidade pode ser fatal para a senhora, aqui na zona rural.
Dirigiu-se para a porta de ligação, mas voltou-se para a juíza antes de abri-la.
— Se os eleitores não lhe derem a vitória é porque não a merecem... —
Curiosamente, a sentença parecia inacabada — Susannah — acabou por dizer, depois de
um longo momento.
CAPÍTULO V
O café da manhã era a refeição favorita de Dan, talvez devido à firme convicção da
mãe, que sempre dissera ser muito importante começar o dia bem alimentado. O
restaurante Quentin, em Cacheton, servia pão caseiro e salsichas quase tão gostosos
quanto os preparados na fazenda de sua família e, a bem da verdade, um café muito
melhor, ele pensou, entrando no estabelecimento, esperando poder encontrar uma mesa
perto da janela onde pudesse ler o jornal enquanto comia.
Desiludido, descobriu que todas as mesas estavam ocupadas e que o único lugar
disponível era uma banqueta no balcão. Sentou-se ali, entre dois homens, e fez o pedido.
Dobrou o jornal de forma a poder lê-lo naquele aperto, começando a tomar o café
quentíssimo que a garçonete lhe trouxera quase imediatamente. Logo em seguida um dos
fregueses a seu lado levantou-se e quando ninguém ocupou o lugar ele espalhou o jornal
no espaço vazio.
— Desculpe — disse uma voz feminina atrás dele. — Está guardando este lugar
para alguém?
Sem olhar para quem falava, ele recolheu o jornal.
— Dr. Dan Sullivan! — a voz exclamou. — É o senhor? Ouvindo seu nome, ele
ergueu os olhos. O rosto não lhe era desconhecido, mas não conseguia lembrar-se de
onde o havia visto.
— Apesar das aparências, não sou dono do balcão — ele disso em tom de
desculpa.
De repente soube onde vira a jovem. Era a secretária de Susannah e a vira, toda
eficiência e fria cortesia, na sala de recepção da juíza. Fora de seus domínios parecia
muito mais acessível e agradável.
— Não quer me fazer companhia? — ele convidou.
— Obrigada — disse ela polidamente, começando a acomodar-se na banqueta
alta.
Já sentada, ela o olhou e endereçou-lhe um sorriso acanhado e Dan percebeu que,
sem a máscara de secretária perfeita, a moça era atraente e denotava alguma timidez.
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Algo nela lembrou-o da Susannah muito jovem que conhecera. Desistiu de ler o jornal,
enrolou-o e enfiou-o no bolso do paletó.
— Não vai me dizer seu nome? — perguntou com um sorriso. — Poderemos
conversar melhor se você parar de me chamar de "doutor" e eu não tiver que chamá-la de
"moça", não acha?
Ela deu um sorriso divertido.
— Meu nome é Jill Fitzgerald. — Quase imediatamente, ficou séria outra vez. —
Por favor, não quero interromper sua leitura.
— Não se pode comparar o jornal com uma boa conversa. Só estava dando uma
olhada na página de esportes para ver se havia uma indicação de bons lugares para a
pesca de trutas nesta parte da sierra, mas não encontrei nada.
A garçonete chegou com o pedido de ovos e bacon de Dan e anotou o que Jill
queria voltando logo em seguida com o café e o pedaço de torta de ameixas que a moça
pedira.
— Gosta de pescar trutas, doutor? — a secretária perguntou quando começavam a
comer.
— Bastante. Tenho pescado a vida toda, mas nunca estive nesta região e gostaria
de tentar os rios daqui. Isto é, se encontrar alguém que possa me aconselhar sobre os
melhores lugares.
— Está pensando em ir pescar no fim de semana?
— Se descobrir onde posso ir.
A disposição de Jill para conversar pareceu terminar naquele ponto. Ele fez várias
tentativas para interessá-la em vários assuntos, mas a moça limitava-se a responder
educadamente, mas com poucas palavras. Quase desistindo, o advogado imaginou se a
ofenderia se voltasse a ler o jornal. Então, depois de haver tomado um gole de café, ela
se voltou para ele, como se acabasse de tomar uma decisão.
— O que deseja pescar? Peixes grandes, ou ficaria satisfeito com peixinhos de
vinte centímetros?
— Isso me satisfaria — ele exclamou. — Tem alguma sugestão?
— O riacho fica nas montanhas, e o senhor terá que viajar uma hora pela rodovia e
depois trinta minutos, mais ou menos, por uma estrada cheia de buracos. O riacho Patch
é um dos mais lindos da sierra, e pouco concorrido nesta época do ano. Provavelmente
não encontrará ninguém por lá.
— Já esteve lá?
— Sim, mas não para pescar. Costumava ir lá para tirar fotos.
— Oh, entendo! — Dan respondeu, sem poder esconder o desapontamento da
voz.
Esperara que a moça soubesse do que estava falando, que estivesse acostumada
a pescar, e ela lhe dissera que tirava fotos! Poderia bem ser que nem houvesse peixes
naquele riacho!
— Escute, doutor, desculpe se me meti a lhe dar conselhos, mas um rapaz, que
pode chamar de meu irmão se quiser, pois crescemos sob o mesmo teto... — ela parou,
de repente. — Isso não importa. Nem sei por que estou falando tanto.
Ela baixou os olhos e apanhou a xícara com mão trêmula e Dan percebeu que ela
poderia chorar a qualquer momento.
— Você estava quase me dizendo exatamente onde encontrar um maravilhoso
riacho cheio de trutas, Jill, e não vou deixá-la em paz até que o faça. Desculpe se achei
que, por apenas tirar fotos, você não sabia do que estava falando. Agora, vai me dizer
como chegar a esse lugar, ou vou ter que me ajoelhar no chão? — ele exagerou,
brincando.
Ela tornou a olhá-lo, querendo reprimir um sorriso, sem conseguir.
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— Acho que não lhe inspirei confiança com meus conselhos, mas acredite-me,
andei muitos anos com um pescador exímio atrás de riachos e acabei por saber onde se
encontram os melhores. Ele trazia peixe que dava para três refeições da família toda e eu
ia junto para fotografar as montanhas e os animais que às vezes apareciam.
— E nunca aprendeu a pescar?
— Tentei algumas vezes — ela franziu o nariz arrebitado, num gesto de
aborrecimento. — Mas, para falar a verdade, detestava a idéia de fisgar os pobrezinhos.
Ele riu.
— Pegou algum, nessas tentativas?
— Não. Nunca me esforcei.
Ela comeu o último pedaço da torta, acabou o café, descendo da banqueta.
— Tenho que ir agora mas, se quiser ir ao riacho Patch, desenharei um mapa.
— Gostaria muito.
Com gestos decididos ela tirou dinheiro da bolsa e colocou-o sobre o balcão
juntamente com sua conta. Instintivamente, Dan soube que a ofenderia se se oferecesse
para pagar. Ela começou a afastar-se, mas logo em seguida voltou, olhando-o com certa
hesitação.
— Acha que irá ao riacho neste fim de semana? — ela perguntou.
— Sem dúvida. No sábado. E, se achar terreno apropriado, acamparei, voltando no
domingo.
— Tudo bem, então. Vou desenhar o mapa. Pode passar no gabinete para pegá-lo
e eu lhe explicarei tudo.
Dan ficou olhando-a sair do restaurante, considerando que aquela moça agradável
e emotiva em nada se parecia com a secretária fria que vira no gabinete da juíza.
No gabinete, Susannah estava revendo as anotações sobre a sessão do dia
anterior, quando ouviu a leve batida de Till na porta de comunicação.
— Entre — ela respondeu, recebendo a secretária com um sorriso.
— Tem um minuto para falar sobre as eleições? — a moça perguntou.
— Não, mas acho melhor encontrar esse minuto — a juíza disse com um suspiro
resignado.
— Ficaria mais tranqüila se eu dissesse que Jack Kramer prometeu organizar uma
campanha para você?
Uma horrível confusão apossou-se de Susannah. Ela nem mesmo sabia quem era
Jack Kramer! Fazia cinco meses que morava em Cacheton, mas estivera tão preocupada
em provar ao povo da cidade que era uma boa profissional, que nem se importara em
travar conhecimento com as pessoas. Passava o tempo entre o tribunal, julgando casos, e
seu escritório, estudando a lei, procurando melhorar sempre. À noite, levava trabalho para
casa, assim, exceto pelos funcionários da corte, não conhecia mais que meia dúzia de
pessoas pelo nome.
Até sobre Jill sabia muito pouco. A moça lhe contara que os pais haviam morrido
quando ela era criança e que fora criada por uma família de fazendeiros até terminar os
estudos, quando fora trabalhar para o juiz Randall. Sabia também que ela comprara um
apartamento e nada mais. Descobrira, por confidências recentes, que sua secretária
padecia a dor de um amor não retribuído, mas não conhecia os detalhes do romance
frustrado.
Mantivera-se distante de sua própria secretária, achando que a moça não
simpatizava com ela, mas não fizera a menor tentativa de aproximação, não perguntara
nada, por demais envolvida com o trabalho, não tendo tempo, talvez, de ouvir as res-
postas que seu interesse provocaria. Sentiu-se repentinamente envergonhada.
— Desculpe-me, Jill — ela disse, corando.
— De que se desculpa, Susannah?
— Suponho que eu devia saber quem é Jack Kramer, mas não sei.
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Uma nova energia impulsionava os passos de Dan quando ele caminhou para sua
mesa, no dia seguinte. Encontrava-se no controle de suas emoções após haver feito um
exame de consciência e chegado à conclusão de que ver Susannah todos os dias estava
derrubando a parede que ele erguera contra os verdadeiros sentimentos naqueles dez
anos. Descobrira que precisava decidir-se por qual caminho tomar e enveredar por ele.
Pegara o carro e fora para o campo, acabando por subir a pé as encostas das
colinas, assustando alguns coelhos e codornas até que a noite descera e ele voltara para
a cidade, cheio de um saudável cansaço físico. Mais tarde, depois de um bom banho no
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hotel, um copo de uísque com água e um ótimo jantar no Quentin, fora para a cama e
adormecera quase imediatamente.
A longa caminhada trouxera-o de volta à realidade. Qualquer futuro relacionamento
entre ele e Susannah traria, para os dois, mais sacrifícios do que estariam dispostos a
fazer. A mulher que ele conhecera já não existia, deixando em seu lugar a séria juíza. Não
mais se permitiria esquecer tal fato. Quando o julgamento terminasse, ele voltaria para
Fresno e para a firma, e começaria a convidar várias mulheres conhecidas para jantar.
Depois de descobrir que havia apenas a sombra de Susannah entre ele e as outras
mulheres, encontraria uma maneira de exorcizar os fantasmas do passado.
Agüentaria os dias do julgamento e iria para a sierra nos fins de semana, parando
de vagar pelas ruas de Cacheton com a esperança imatura de encontrar a juíza por
acaso. Pela primeira vez, desde que a reencontrara, sentia-se senhor de si. O estado de
espírito, forte e decidido, duro até o momento em que o oficial anunciou o início da sessão
e ela entrou, dirigindo-se para sua mesa sobre o estrado.
Olhando para ela, sentiu que o coração vencia o raciocínio. Daria tudo para vê-la a
sós novamente. Irritado, pensou no que havia decidido, jurando que a veria apenas na
corte e que assim que aquele julgamento acabasse iria embora para sempre.
O coração, porém, era mais forte e lhe dizia que não adiantava raciocinar.
Susannah fazia parte dele e os dois se pertenciam, mesmo que levassem vidas diferentes
e permanecessem distantes.
De cada vez que entrava na corte, Susannah temia olhar para Dan e não mais
conseguir desviar os olhos. Mais perturbador era o receio de que ele lhe lesse no rosto
todos os pensamentos que a mantinham acordada até de madrugada, fazendo-a ver,
como num filme, tudo o que lhes acontecera no passado e estava acontecendo no
presente, misturado com cenas imaginadas para o futuro, todas incluindo Dan. Via o
momento em que, terminado o julgamento que os proibia de encontrar-se, ele a procuraria
para as explicações. Então se perdoariam e se entrega-riam à doçura do amor. Mas e
depois? Sua carreira se interpunha entre eles, pois gostava do que fazia e não renunciaria
ao cargo sem amargura. Se perdesse a eleição, porém, poderia ir para Fresno com ele e
continuar como advogada, tirando do trabalho a satisfação pessoal de que necessitava.
Se continuasse como juíza, havia pouca possibilidade de Dan aceitar sair de sua cidade e
ir para Cacheton, começando tudo de novo e talvez sentindo-se inferiorizado pelo posto
que ela ocupava.
Nas três noites de insônia, desde o início do julgamento, sempre acabava por
decidir que pararia de sonhar com o futuro e se preocuparia mais com as eleições que se
aproximavam. Naquela manhã, a quarta do caso Minerva, não olhou para Dan até sentir-
se segura e controlada, ocupando a cadeira que era o símbolo de sua autoridade. Ficou
aliviada e ao mesmo tempo desapontada ao ver que ele mantinha os olhos baixos,
examinando algumas anotações.
Daquele modo começou mais um dia de trabalho na corte, marcado pela falta de
depoimentos interessantes e causadores de protestos, desde que Dan punha uma
testemunha técnica após outra no banco, provocando respostas sobre a velocidade do
vento e a temperatura no dia da danosa pulverização, assim como sobre as condições do
solo e o preço da tonelada de tomates naquele ano. Corwin parecia haver perdido a
mania de crucificar as testemunhas com perguntas sem fim, dispensando-as após
algumas questões apressadas. Para alívio de Susannah, os dois advogados haviam
desistido do jogo irritante de submetê-la a testes.
Como de costume, Susannah permaneceu no gabinete depois que os trabalhos do
dia foram encerrados para recomeçarem apenas na tarde do dia seguinte. Jill colocara as
pastas com os papéis referentes a outros que ela ouviria, sobre a mesa. começou a
examinar o caso que mais a preocupava, o divórcio de um jovem casal que se
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empenhava numa luta amarga pela custódia dos três filhos. Qualquer que fosse a
resolução que tomasse, no fim seriam as crianças a sofrer e a idéia a deprimia
imensamente.
Duas horas mais tarde, pousou a pasta e fechou os olhos, recostando-se no
espaldar da cadeira. Após ler o processo todo, ficara com a impressão de que nem o
marido nem a mulher queriam realmente o divórcio. As frases "se ele me amasse", "se ela
me amasse de verdade", pontilhavam as declarações dos dois e o problema maior
parecia ser o dinheiro. Como aqueles jovens podiam esperar continuar a manter o mesmo
padrão de vida se, para agravar o problema monetário, pensavam em divórcio, o que
redundaria em duas famílias para serem sustentadas com o mesmo dinheiro?
Levantou-se da cadeira e esticou os braços para aliviar os músculos cansados,
resolvida a aconselhar o casal e seus advogados, quando viessem para a audiência, na
manhã seguinte, a adiarem o processo de divórcio até que os dois envolvidos con-
versassem com um consultor financeiro, alguém que os fizesse entender estarem
entrando em choque com uma realidade que não queriam aceitar, tentando viver uma
vida acima de suas posses.
Preparando-se para sair, guardou os documentos na pasta e deu um longo bocejo.
Talvez aquela noite pudesse dormir um sono tranqüilo e reparador, sem imagens de Dan
a persegui-la O dia a deixara esgotada.
Com os braços cheios de pastas e livros desceu o corredor deserto em direção aos
elevadores, alheia a tudo, completamente distraída. Notando que o elevador chegara
vazio, entrou e começou a tentar apertar o botão do térreo com os movimentos
embaraçados pelo peso que carregava, quando viu Dan sair da biblioteca, no meio do
corredor, e vir correndo em sua direção, Fez um gesto frenético para apertar o botão e
fugir do encontro, deixando cair um livro e vários papéis. Indecisa por um segundo, entre
apanhar o que caíra ou acionar o botão, deu tempo para que o homem de quem fugia
entrasse no elevador.
Os olhos verdes que procurava evitar durante as horas na corte aprisionaram os
seus e ela ficou paralisada.
— Vá embora — murmurou fracamente.
Ele ergueu a mão para o painel e as portas se fecharam. Tomou-a nos braços, sem
uma palavra e ela não protestou, emudecida. Recostou-se no peito forte, sentindo a
textura do tecido de sua camisa, exposta pelo paletó aberto, e o seu cheiro limpo e nunca
esquecido. Involuntariamente, apertou-se contra o corpo dele, sentindo-se voltar a um
lugar ao qual nunca deixara de pertencer.
A suavidade do momento, porém, não foi suficiente para afastar a sensação de
desespero que lhe dava vontade de chorar. Quando ele a soltou delicadamente para
poder olhá-la no rosto, as lágrimas transbordaram e rolaram pelas faces aveludadas. Com
um dedo, ele as secou e tornou a puxá-la para si, tomando-lhe a boca num beijo
profundo. Completamente desarmada, ela entregou-se aos lábios dele, perdendo a noção
de espaço e de tempo.
Então, sem aviso, ele interrompeu o beijo e soltou-a. Antes que ela pudesse
recuperar o controle, as portas se abriram e ele saiu. Tonta, apanhou o livro e os papéis
do chão, saindo também, pensando bobamente que não haviam quebrado o regulamento,
pois, apesar do beijo, não haviam trocado palavras.
Quando Jill entrou no gabinete da juíza, na tarde seguinte, após a sessão, ainda
encontrou Susannah com sua toga, sentada na cadeira e olhando desconsoladamente
para o vazio. A moça limpou a garganta, chamando-lhe a atenção.
— Perdida em pensamentos? — perguntou.
— Acreditaria se lhe dissesse que estava pensando na campanha?
— Não.
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— Bem, tem razão — Susannah admitiu com um suspiro. — Mas vou fazê-lo.
Pretendo começar a planejar no próximo fim de semana, ou seja, amanhã, sábado. Vou
apertar campainhas, beijar bebês e acariciar os cães de todas as casas.
— Não vai, não — Jill contestou. A outra olhou-a cheia de surpresa.
— O que há com você, Jill? Está tentando me dizer que será perda de tempo sair e
tentar falar com as pessoas?
— O que estou tentando dizer é que deveria deixar de ser juíza pelo menos por um
dia, Susannah. Sei que tem gasto todos os fins de semana trabalhando desde que
assumiu o cargo e se continuar desse modo vai acabar por cristalizar-se.
"Cristalizar"? A palavra era tão apropriada que ela teve que rir. Descrevia
exatamente o que ela suspeitava estar acontecendo com ela. Mas não podia dedicar-se
ao lazer enquanto não terminasse aquele julgamento e as eleições não passassem.
— Aprecio sua preocupação, Jill, mas meu pai está certo. Se não começar essa
campanha já, poderei dizer adeus à magistratura. Não posso perder outro fim de semana.
— Não precisa se preocupar. Não se esqueça de que Jack Kramer vai liderar o
movimento a seu favor e está muito contente por poder fazer o que gosta. Para ter uma
idéia, ele já planejou um baile, uma espécie de "noite de encontro com a juíza". As
pessoas mais influentes estarão lá ajudando no lançamento da campanha.
Susannah olhou-a espantada.
— Assim, não tendo que apertar campainhas — a moça continuou — poderá usar
o fim de semana como preferir.
Após pensar um pouco, Susannah decidiu-se.
— Então acho que vou aproveitar para ir ver papai. Preciso mesmo falar com ele
sobre a campanha.
— Isso seria bom — Jill concordou. — A menos que prefira ir pescar...
— Pescar? "Uma pequena e louca rebelião" — Susannah citou o livro que andara
lendo, já cheia de entusiasmo. — Serial maravilhoso, mas não sei aonde ir.
— Mas eu sei — afirmou Jill. — Vou lhe desenhar um mapa.
CAPÍTULO VI
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carreira na profissão que haviam escolhido. Porém, quando Dan dera o primeiro passo
naquele caminho, ela se sentira traída.
Era delicioso recordar os doze primeiros meses que haviam vivido juntos, quando
qualquer honorário recebido era motivo para comemoração e quando colocavam o
dinheiro num velho pote de cerâmica e ao qual os dois recorriam. E o pote nem sempre
tinha fundos, mas dinheiro pouco lhes interessava, e sua falta era encarada mais como
uma inconveniência que motivo para grande preocupação.
Vivendo daquele modo, sem grandes ambições, fora um choque ouvir Dan
anunciar que aceitara um emprego na Bradley & Hammer e que ganharia um salário
altíssimo. O pote não mais serviria para guardar todo o dinheiro que ia entrar e ele dissera
que teriam que abrir uma conta conjunta em algum banco. O que a deixara mais furiosa,
entretanto, fora a atitude chauvinista de Dan, que começara a dizer que ela não mais
precisava preocupar-se com as despesas, porque ele as pagaria todas. Propusera pagar
o aluguel do sobrado onde viviam, incluindo a parte referente ao escritório que seria
apenas dela, e até o salário da secretária, como se ela fosse uma incapaz.
— O idiota arrogante! — ela disse em voz alta, movida pela raiva antiga.
A briga causada pelo exibicionismo machista de Dan terminaria em uma
reconciliação regada a champanha e esfuziante paixão, como todas as outras que se
seguiram, depois dos desentendimentos cada vez mais constantes. A situação continuara
por seis meses, até que uma tremenda briga colocara um ponto final em tudo.
Dan, o machão ambicioso e autoritário, não era o tipo de homem que ela desejava
novamente em sua vida. De alguma forma, porém, aquelas acusações pareciam um
pouco injustas, depois de dez anos, quando a mente de Susannah como que se abria a
novas possibilidades. Podia ser que as propostas irritantes não fossem produto de
arrogância machista, mas de uma real preocupação com ela. Por experiência própria, Dan
sabia como seria difícil para uma pessoa sozinha manter o escritório pouco lucrativo.
Ela começava a temer que houvesse sido injusta com ele durante todos aqueles
anos de separação em que o culpara do que acontecera, lembrando-se de que também
fora arrogante ao ponto de recusar-se a aceitar que ele lhe desse a ninharia equivalente a
uma passagem de ônibus. Pensando naquilo, ocorreu-lhe que talvez o dinheiro não
houvesse sido a única causa do rompimento, mas que as pequenas mesquinharias
acumuladas poderiam haver se transformado numa bola de neve que aumentara com a
contribuição do orgulho e do amor-próprio ferido.
Apesar de todo o raciocínio, havia algo que ela não podia atribuir à injustiça e à
precipitação, algo que ainda doía terrivelmente. Por que ele não lhe contara sobre a oferta
de Bradley & Hammer antes de aceitá-la?
Chegando a uma encruzilhada, ela parou o carro e examinou o mapa que Jill
desenhara e que indicava que devia tomar o caminho da esquerda. Tomou a direção
indicada, dirigindo mais devagar por causa da superfície acidentada da estradinha.
Aspirou com prazer o perfume dos pinheiros e da terra molhada pelo orvalho da noite. Os
cheiros da montanha misturavam-se ao aroma primaveril dos lilases selvagens que co-
briam os barrancos com sua cor azul.
A estrada serpenteava montanha acima, tornando-se bastante íngreme. Lá
embaixo ela divisava uma corrente de água que adivinhava ser o Patch despencando
pelas encostas. Não se atrevia, porém, a distrair-se olhando a paisagem. Motorista capaz
e confiante nas rodovias mais movimentadas, estava achando enervante a experiência de
dirigir sozinha numa estrada de montanha.
Exceto por seu próprio carro, o caminho estava assustadoramente deserto. De
repente, um movimento na vegetação do topo de um dos barrancos chamou-lhe a
atenção e instintivamente ela pisou no freio. Um segundo depois, um pequenino cervo
com pintas no lombo escorregou pela encosta do barranco até o leito da estrada, bem no
caminho do carro que acabava de parar a poucos metros de distância.
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Susannah ficou observando a linda criatura, esperando que se movesse para que
ela pudesse passar. Depois de algum tempo, como o animalzinho não mostrasse intenção
de sair do caminho, ela buzinou, sem resultado. Desligou o motor e desceu do carro,
achando que sua presença assustaria o bichinho.
— Vá para casa, Bambi! — ela gritou. — Você é novinho demais para andar
sozinho.
Os líquidos olhos castanhos a encaravam sem sombra de medo, embora ela
batesse as mãos e gritasse. O animal parecia ter poucos dias de vida e ela imaginou se
sua mãe haveria sofrido algum acidente, deixando-o desamparado. Se tivesse certeza de
que a mãe não se encontrava por ali, vigilante, ela simplesmente o tomaria nos braços e o
colocaria na margem do caminho. Já ouvira muitas histórias sobre como uma corça se
tornava perigosa ao ver o filhote ameaçado e desistiu da idéia arriscada.
Pensou em contornar o animal com o carro, mas desistiu, ao ver a única passagem
possível, uma espécie de acostamento cheio de pedras e sulcos profundos que
apresentava um desafio maior do que ela estava pronta para enfrentar. Além disso, sabia
que não seria capaz de deixar um animal indefeso no meio de uma estrada, com tráfego
ou não. Deu um passo indeciso na direção do cervozinho e então ouviu o inconfundível
barulho de um motor possante mudando de marcha. Parecia próximo, pouco além da
última curva, talvez, e vinha rapidamente.
Esqueceu toda a cautela e correu para o animalzinho, pretendendo agarrá-lo. A
criaturinha pareceu repentinamente amedrontada e começou a andar de costas em
pequenos passos de dança, afastando-se dela. O ruído de vegetação quebrada sob pés
pesados chegou aos ouvidos de Susannah. Ela olhou para o topo do barranco e viu uma
enorme corça dourada que saía do mato. O animal deu um salto corajoso e dentro de
segundos estava no meio da encosta do barranco, dirigindo-se para a mulher que, como
num pesadelo, sentia as pernas pesadas como chumbo.
Se corresse para o carro poderia ser alcançada pela corça enfurecida e atacada
pelas costas; se ficasse parada onde estava poderia ser atirada ao chão e massacrada
por aqueles cascos pontiagudos. Quando pensou que ia entrar em pânico, sentiu-se
invadir por uma estranha calma. Decidiu ficar parada e não tirar os olhos do animal
furioso. De repente, lembrou-se da jaqueta vermelha que vestia e tirou-a rapidamente.
Talvez conseguisse distrair a corça segurando a peça aberta imitação desajeitada de um
toureiro. Se tivesse sorte, até conseguiria jogá-la sobre a cabeça do animal, cobrindo-lhe
os olhos. Alguns segundos de cegueira poderiam confundir o bicho, o tempo suficiente
para ela fugir para o refúgio do carro.
Firmou os pés no chão, decidida, com a jaqueta aberta nas mãos.
Pela primeira vez, desde que pisara no tribunal presidido por Susannah, Dan
sentia-se completamente em paz consigo mesmo.
Tomara a decisão final de não mais desejar ver Susannah a não ser na corte e,
como se o destino quisesse recompensá-lo pela coragem, estava gozando uma das mais
belas manhãs que um pescador de trutas poderia desejar.
Saíra de Cacheton na tarde anterior, depois da sessão no tribunal e entrara na
sierra, seguindo o mapa que Jill lhe dera, antes do anoitecer. A beleza estonteante do
riacho Patch o empolgara, embora tivesse suas dúvidas se realmente seria um bom lugar
para a pesca. Afinal a moça vira a região com olhos de artista e não de pescador. O
riacho era pequeno e preguiçoso e escorria mansamente pela estreita campina onde ele
parara. Não parecera nada prometedor, porém. Ele fizera café no fogãozinho de
acampamento, notando que o gás estava acabando, e comera um sanduíche.
Com a mente ainda presa nos problemas do caso Minerva, acendera o cachimbo e
ficara fumando, perdido em pensamentos. Imaginara o que faria para salvar o caso, se a
agência de detetives que contratara não encontrasse o piloto que poderia testemunhar
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que o tanque de herbicida do avião estava vazando. Quando voltou a pensar no riacho, já
estava escuro demais para pescar, então abriu o saco de dormir sobre a grama, resolvido
a passar a noite ao ar livre.
O sol já banhava a campina, na manhã seguinte, quando ele finalmente dirigiu-se
ao riozinho. A maioria dos pescadores diria que as melhores horas para a pesca, antes do
alvorecer, já haviam passado, mas ele atinha-se à idéia de que os peixes mordiam a isca
quando tinham vontade, independentemente de horário. Ainda sem acreditar muito nas
possibilidades daquela água mansa, atirou a linha e, quase imediatamente, uma bela
trutazinha de vinte centímetros abocanhou a mosca que usara como isca. A luta para tirá-
la da água acendeu-lhe o sangue nas veias, até que, com um sorriso, colocou-a no cesto.
Jill estava certa. O Patch fervilhava de peixes e certamente os pescadores pouco
vinham ali por estarem influenciados, segundo a moça lhe dissera ao entregar-lhe o
mapa, pela crônica esportiva que resolvera promover um grande lago e um rio muito
maior algumas milhas abaixo, um lugar que oferecia muito mais potencial turístico.
Duas horas depois de haver pescado sua primeira truta, ele descia a estrada de
montanha em sua perua rural revendo os eventos da manhã com profundo
contentamento. A campina, com seu riacho preguiçoso, havia provado ser a delícia de um
pescador, mas era apenas o começo do encanto. O prazer real surgira quando ele a
abandonara para explorar o riozinho, acima e abaixo do lugar onde acampara. A água
cascateava formando pequenos lagos e correntes cantantes e cada recanto oferecia a
promessa de uma pescaria compensadora.
Cheio das recordações da manhã, descia a estrada para comprar gás para o
fogãozinho num posto de gasolina que vira ao subir, um pouco antes de sair da rodovia e
entrar no caminho de montanha. O Patch fizera-o pensar num riacho onde fora com
Susannah quando... Susannah! Sem aviso, sua imagem encheu-lhe. a mente, viva e
colorida, adorável e sensual. Desapareceu em seguida, deixando-o com um sentimento
de perda. Aquela obsessão não o largava. Considerou-se louco por haver pensado em
voltar para Fresno sem falar com ela, em deixá-la sair de sua vida uma segunda vez.
Toda a euforia causada por aquele lugar maravilhoso desapareceu, deixando no
lugar uma dolorosa melancolia. Já repassara aquela situação um milhão de vezes na
mente cansada e sempre obtinha a mesma resposta. Não havia chance para os dois, a
menos que ele deixasse a posição que levara dez anos para construir em sua cidade e
fosse para Cacheton ser humildemente, o marido da juíza da comarca. E isso era algo
que ele não seria capaz de fazer, assim como não poderia pedir a ela que renunciasse à
magistratura para tornar-se a sra. Dan Sullivan em Fresno.
Continuou a dirigir numa espécie de alheamento sombrio, apertando o volante com
violência, pisando fundo no acelerador, sem prestar muita atenção à estrada, até que o
carro fez uma curva larga. Pisou no freio e apertou a buzina com desespero.
— Susannah!
Concentrada no animal pronto a atacar, ela se mantinha firme, mesmo ao vê-lo dar
um salto final para a estrada e depois parar de repente a uma pequena distância. Talvez a
jaqueta o houvesse assustado e ela continuou a balançá-la com mãos trêmulas. No terror
do momento, não registrara o som da buzina nem vira a pesada rural que, descendo a
montanha, passara pelo acostamento acidentado, até que o carro parou entre ela e a
corça enfurecida, erguendo um chuveiro de cascalho. Ficou olhando confusa e o
motorista abriu a porta ordenando-lhe que entrasse. Com as pernas moles, conseguiu
subir no veículo, que já começava a se movimentar.
Fechou os olhos, tremendo dos pés à cabeça com o relaxamento da tensão, mal
percebendo que o motorista esticava o braço para bater a porta. Um segundo depois ela
ouviu e sentiu o corpo pesado do animal atingir a lateral do carro num ataque furioso.
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A perua arrancou e ela se deixou ficar largada no banco como uma boneca
desconjuntada.
— Essa foi uma coisa bem estúpida, considerando-se como é inteligente — o
motorista observou enquanto parava o carro além da curva.
Os olhos de Susannah arregalaram-se para encarar o homem.
— Dan! — murmurou atônita. — O que está fazendo aqui?
— Poderia fazer a mesma pergunta a você, mas deixarei para mais tarde. Agora,
gostaria de saber que diabo estava fazendo no meio da estrada bancando o toureiro com
uma corça enraivecida.
— Foi por causa do filhotinho. Ele não queria sair do caminho... Pensei que fosse
órfão — ela explicou fracamente, olhando espantada para ele, que parecia furioso.
A voz tornou-se mais firme quando ela se inflamou em defesa própria.
— Se eu não houvesse "bancado o toureiro" você viraria a curva como um louco e
atropelaria o pobre bebê.
— Se eu não houvesse "virado a curva como um louco" aquela corça teria feito
você em pedaços, minha querida.
Ouvindo as palavras cruas, ela começou novamente a tremer, sabendo que se
tentasse responder alguma coisa começaria a chorar. Virou a cabeça e ficou em silêncio.
Ele passou as mãos pelos cabelos e suspirou.
— Você quase me matou de susto, Susannah — ele disse como se desculpando
por haver ficado irritado.
Houve mais um momento de silêncio até que ele estendeu a mão para a chave e
deu partida no motor.
— Vamos voltar para o seu carro.
Ele fez uma hábil manobra, virando o veículo, e voltaram lentamente. Não havia o
menor sinal da corça ou do filhote e o carro de Susannah permanecia bem no meio da
estrada onde ela o abandonara. Dan parou no acostamento pedregoso e desceu para
olhar o declive cheio de vegetação, voltando rapidamente.
— Ela está lá embaixo, lambendo a cria e parecendo um pouco espantada. Deve
ter tido uma dura surpresa ao atingir o carro, mas não está ferida.
Aliviada, Susannah levou a mão à maçaneta para abrir a porta.
— Fique onde está — ele mandou e, surpreendentemente, ela não teve vontade de
desobedecer. — Você levou um susto muito grande. Quando puser os pés no chão vai
perceber que está tonta.
Ela o viu descer novamente e dar a volta para o seu lado, parando um pouco para
olhar o lugar onde o animal batera antes de abrir a porta para ajudá-la a sair. Estendeu a
mão, mas ela a recusou, plantando os pés firmemente no chão apenas para descobrir,
apavorada, que suas pernas se haviam transformado em gelatina. Sem querer,
obedecendo ao instinto de procurar apoio, agarrou-se ao braço dele.
— Upa! — Dan exclamou. — Ainda não está pronta para voar sozinha. Sente-se
mais um pouco e espere seu corpo voltar ao normal.
— Estou bem — ela protestou.
— Acredito, mas o que acha de me dar as chaves para que eu tire seu carro do
meio do caminho?
Para evitar discussão, ela lhe entregou o chaveiro e segurou-se na porta aberta
enquanto ele se distanciava. Depois de algum tempo forçou-se a olhar para o lugar
amassado onde a corça atingira a lataria. A amassadura era do tamanho de uma frigideira
grande e, quando pensou o que o golpe faria em seu corpo, sentiu-se nauseada.
Dan levou menos de dois minutos para colocar o carro à margem da estrada.
Quando voltou, o normal autocontrole de Susannah já a havia ajudado a recuperar-se.
Todavia, embora não soubesse a razão, não estava com pressa de ir embora. Encostou-
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CAPÍTULO VII
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Num acesso de raiva, ergueu-se do chão, abriu a porta do carro com força e
sentou-se atrás do volante. Não ia ficar ali esperando sua possível volta, impondo sua
presença. Deu partida e voltou para a estrada, descendo-a até encontrar um caminho que
entrava pelo mato, à esquerda. Assim que o tomou arrependeu-se. Era esburacado e
descia de forma íngreme, não havendo espaço para fazer a volta, a não ser quando
alcançava a margem do riacho. Ela apertou os dentes e agüentou a descida até chegar à
beira da água. Então desceu do carro e retirou a vara e a caixa de iscas sem nem mesmo
olhar para o riozinho.
Não conseguia entender Dan. Ela a beijara no elevador do tribunal e aquele não
fora um beijo casual por amor aos velhos tempos, mas uma carícia cheia de exigências e
promessas. Dois dias depois, encontrando-se sozinhos no alto de uma montanha, ele
nem quisera ficar na mesma parte do rio que ela. De testa franzida, ela encaixou todas as
partes da vara desmontável. Isso feito, puxou a linha do molinete para passá-la até a
ponta da vara, mas o fio escapou-lhe dos dedos e reenrolou-se. Desgostosa, resmungou,
tentando descobrir o que fizera de errado. A resposta era evidente. Não usava aquele
equipamento havia dez anos. As peças estavam ressecadas e a linha podre. Devia ter
cuidado da linha e do molinete como Dan lhe ensinara ou, pelo menos, comprado tudo
novo.
Continuou a tentar e depois de algum tempo conseguiu esticar a linha até a ponta.
Amarrou uma mosca no couro destinado a prender a isca e preparou-se para lançá-la
sobre a água. Foi então que a linha começou a escapar do molinete, dura e espiralada
como uma mola. Irritada, desistiu de enrolá-la, optando por puxá-la toda para fora,
deixando-a amontoar-se aos seus pés.
Uma coisa era certa. Havia feito uma viagem e entrado numa encrenca com um
animal, levando um susto pavoroso, para nada. Ganharia mais se houvesse ficado em
Cacheton e começado a trabalhar na campanha. Com gestos nervosos, recolheu a linha
enrolada, pegou a vara, desmontou-a, e, juntamente com a caixa de iscas e anzóis, atirou
tudo no porta-malas, batendo a porta com força.
Endireitando-se, respirou fundo e olhou os arredores, dando, pela primeira vez,
uma boa olhada no riacho, de água cintilante e murmúrio suave. Caminhou ao longo da
margem até um lugar onde a corrente se derramava, formando espuma, sobre um tronco
caído. Abaixo do tronco a água se represava, límpida e, olhando melhor, ela viu um
lampejo prateado, uma truta que passeava preguiçosamente, quase no fundo do pequeno
lago.
Uma deliciosa sensação de tranqüilidade tomou conta dela, admirando o peixe que
gozava a liberdade. A irritação por não poder pescar dissipou-se e ela imaginou se algum
dia gostara realmente de fisgar os peixes inocentes, lembrando-se de como detestava
tirá-los do anzol, ainda se debatendo, e de como muitas vezes procurara lugares
improdutivos apenas para proteger-se da possibilidade de pegá-los.
Todavia, as pescarias que fizera com Dan haviam lhe dado alguns dos momentos
mais felizes de sua vida. Talvez o que apreciara na verdade fora a companhia dele, os
lugares idílicos às margens dos rios, e não o esporte em si. Recentemente, o que
despertara novamente o desejo de pescar fora a leitura do livro do juiz-escritor, Robert
Traver, que, com sua prosa lírica encantara-a e a fizera voltar ao passado. Se adorasse
tanto pescarias como julgara, não teria esperado dez anos para recomeçar.
A truta deslizou para as sombras do tronco caído, desaparecendo. Susannah ficou
olhando para a água por uns momentos, depois riu, cheia de alegria. Por que voltar para
casa só por não mais pretender pescar? Ficaria e tiraria o máximo de prazer que a
natureza lhe pudesse oferecer.
Começou a subir a encosta até atingir o topo do barranco que margeava o rio,
deixando o olhar correr pelos bosques que se estendiam em todas as direções. Deitou-se
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de bruços no chão coberto de vegetação rasteira, sentindo a brisa fresca e o sol morno a
acariciar-lhe as costas.
Pensou no pai, que no dia seguinte iria vê-la, passando por Cacheton em sua
viagem de volta da capital do Estado para San Francisco. Não sabia como iria dizer-lhe
que não queria a sua interferência na campanha, mas teria que o fazer. Se permitisse que
ele fizesse as coisas à sua maneira, sua derrota seria certa. Dan sempre soubera lidar
com o velho Ross. Se ela pudesse pedir-lhe que a ajudasse naquela situação, não
precisaria ficar tão preocupada em não ferir o pai.
Os pensamentos voltaram aos problemas do tribunal, para o caso da custódia das
crianças e para o caso Minerva. Até aquele ponto, a vitória parecera pertencer a Dan,
mas ainda era cedo para se ter certeza. A defesa de Corwin estava por vir e poderia
modificar tudo. Se Dan não apresentasse uma testemunha para reforçar o depoimento do
fiscal da fazenda, o outro advogado não precisaria esforçar-se demais para introduzir a
dúvida na mente dos jurados.
Alguma coisa caiu-lhe na cabeça e Susannah virou-se de costas para ver o que
era. Deparou então com uma cena mimosa que a encantou, fazendo-a sorrir. Um esquilo
de olhinhos vivos, sentado num galho de pinheiro, descascava algum tipo de fruto,
segurando-o com as patinhas dianteiras. O que a atingira fora um pedacinho de casca.
Quando o animalzinho, num salto gracioso, desapareceu entre a ramagem, ela sentou-se,
abraçando os joelhos, já com o pensamento voltando para Dan.
Que diferença fazia se ele não aproveitara o encontro não planejado para tentar
uma reaproximação? Mesmo que as antigas feridas pudessem ser curadas e as cicatrizes
apagadas, não haveria futuro para os dois. Todavia, era necessário parar de fugir da
verdade. Ela o amava ainda. Aquele amor nunca morrera.
Algum tempo mais tarde, descia a encosta e corria para o carro. Se Dan não ia dar
o primeiro passo, ela o faria. A idéia de passar a vida toda naquela situação indefinida era
mais do que ela podia suportar.
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tomados de estranha timidez. Finalmente ela fez a pergunta que demorara dez anos a ser
feita.
— Por que fez aquilo sem me dizer?
Apanhado de surpresa, Dan olhou-a sem compreender.
— Fiz o quê?
Susannah olhou-o cheia de suspeita e percebeu que ele não sabia realmente sobre
o que ela estava falando.
— Assinou o contrato com Bradley & Hammer sem me dizer uma única palavra.
Ouvindo aquelas palavras ditas em voz alta, Susannah achou-as mesquinhas, mas
precisava saber a resposta.
— Isto tem alguma importância? — ele perguntou franzindo as sobrancelhas.
— Se tem importância? — ela o encarou com descrença.
— Juro que já havia esquecido tudo isso. — Ele fez uma pausa como se voltasse
ao passado para rever o que acontecera. — Foi há muito tempo mas, pelo que me
lembro, no momento em que lhe contei sobre a oferta de Bradley & Hammer a situação
entre nós começou a ficar explosiva. Mas por que não fez essa pergunta naquela época?
— Não poderia, Dan — respondeu baixinho. — Era orgulhosa demais.
Espantado com a expressão de mágoa e raiva que viu nos olhos dela, ele não fez
nenhum esforço para se defender. Sua mente continuava pesquisando o passado,
buscando desesperadamente juntar as peças soltas daquele enigma. Não sabia, na
verdade, por que não lhe contara. Suas vidas haviam sido tão entrelaçadas como
poderiam ser as vidas de duas pessoas diferentes e um sempre se achara no direito de
saber tudo sobre o outro. Ele falhara naquele aspecto e dez anos depois podia ver no
rosto de Susannah o sofrimento que aquilo lhe causara. E não sabia que explicação lhe
dar.
Ela continuava imóvel, encarando-o, esperando uma resposta.
— Escute, Susannah... Posso me lembrar de várias outras acusações que me fez
naquela noite em que rompemos, mas isso você nunca mencionou. O que quer que eu
diga? Tudo o que posso fazer é pedir desculpas.
Na pausa que se seguiu, ele percebeu que ela considerava o que ouvira.
— Também peço desculpas — ela murmurou, já sem nenhum rancor. — Mas ainda
gostaria muito de saber por que me deixou fora naquela decisão.
Havia uma nota de tristeza na voz dela que o feria mais que qualquer palavra que
ela pudesse dizer. No desejo fervoroso de consolá-la, deu a única resposta que lhe
ocorreu e na qual nem ele mesmo acreditava.
— Nunca pretendi deixar você de fora, Susannah. Acredite em mim. — Aquilo era
verdadeiro, pelo menos. — Acho que agi daquela maneira por covardia. Eu precisava
daquele emprego e fiquei com medo que, se lhe dissesse antes de assinar, você acabaria
por me convencer a não aceitá-lo.
Susannah fitou-o com seus bonitos olhos castanhos:
— Eu não faria isso, Dan. Era uma oportunidade que muitos jovens advogados
dariam tudo para conseguir.
— Você não era um desses.
— Talvez, mas sou mulher. Para um homem, reconheço que a tentação era grande
demais.
— Não entendo o que quer dizer.
— Em primeiro lugar, por eu ser mulher, eles não teriam me oferecido um salário
tão fantástico e uma perspectiva tão brilhante para o futuro. Segundo: nunca me dariam
chance de progredir. Vinte e cinco anos depois eu ainda estaria fazendo trabalho de
pesquisa para advogados jovens o bastante para serem meus filhos.
Era uma verdade que ele não podia discutir. As injustiças que vira na firma foram
um dos motivos que o fizeram pedir demissão o mais cedo que pudera.
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— Você devia ter tido um pouco mais de confiança em mim — ela continuou, sem
amargura. — Eu teria compreendido.
— Não tentaria me fazer mudar de idéia? — Ele não pôde reprimir um sorriso. —
Nem um pouquinho?
Ela teve que sorrir também com aquela alusão a sua teimosia.
— Bem... talvez um pouquinho, sim. Mas eu sempre quis tudo de melhor para
você.
— Eu também. E foi por isso que acabei saindo da Bradley & Hammer.
— Não gostou de lá?
— Odiei. Aquele modo de praticar a advocacia, desumano e sem princípios, não é
de meu estilo. Eu sabia em que estava entrando, por isso não posso me queixar. Eles me
compraram, literalmente, e exigiam todo o meu tempo. Lembra-se de que não tínhamos
mais quase oportunidade de estarmos juntos?
— Claro, me lembro. Era um dos motivos das nossas brigas. Só não entendo por
que aceitou trabalhar para eles se sabia de tudo.
— Pelo dinheiro.
— Continuo sem entender. Dinheiro nunca foi a coisa mais importante do mundo
para você.
— Eu precisava dele, Susannah. E não queria que você soubesse. Meu irmão
adolescente havia entrado numa encrenca que colocara toda a família em dificuldades
financeiras. Trabalhando para a Bradley & Hammer pude tomar dinheiro emprestado e
ajudar a tirar Brian da confusão que poderia arruinar-lhe a vida.
— Oh, Dan! Sinto muito. Pobre garoto!
— Não se preocupe. Acabou tudo bem para ele.
— E para você? — ela perguntou com suavidade. Vendo-a tão perto que poderia
tocá-la se estendesse as mãos,
Dan desejava desesperadamente vencer a pequena distância e tomá-la nos
braços. Dominou-se, porém, temendo destruir o clima de confiança que começava a
surgir entre eles, embora a aura de sensualidade que a rodeava fosse quase irresistível.
Era difícil ver naquela mulher vestida em jeans apertados, usando tênis e com tanto calor
nos olhos castanhos, a severa juíza que mantinha a ordem na corte com mão de ferro. A
voz dela quebrou-lhe o fio dos pensamentos.
— Tenho estado enterrada naquele escritório desde que fui nomeada, e este é o
primeiro dia que saio ao sol. Se não tomar cuidado, vou aparecer no tribunal, segunda-
feira, com o nariz descascado. Vamos procurar uma sombra?
— Desculpe minha falta de atenção. Há muita sombra à beira do riacho, mas o
chão é desnivelado e um pouco úmido. Vou pegar alguma coisa para sentarmos em cima.
Ele foi ao carro e tirou um saco de dormir da parte de trás. O coração batia forte e
ele não ousava imaginar o que aconteceria mais tarde. Pegou Susannah pela mão e
tomaram a direção do rio, em silêncio, como se, tendo já falado demais sobre o passado,
tivessem que recobrar forças para continuar.
Um pouco temeroso, Dan considerava que nada ainda ficara acertado entre eles,
pois nem tinham tocado nos motivos que haviam transformado sua casa num campo de
batalha nos últimos seis meses de convivência. Nem mais sabia se aqueles motivos
haviam sido realmente importantes. Tudo o que conseguia entender era a necessidade
premente de fazer as pazes com ela, de amá-la e ficar para sempre ao seu lado.
Susannah, caminhando com ele, tentava chegar a uma conclusão sobre tudo o que
havia sido dito. Dan lhe dera uma resposta plausível e ela acreditara, pois apesar de
todas as suas falhas, aquele homem jamais poderia ser chamado de mentiroso. Porém,
havia algo que não se encaixava. Ele não era covarde e se ela alguma vez tivera o poder
de induzi-lo a fazer o que não queria, nunca percebera.
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— Conseguiu?
Ela sacudiu a cabeça e sorriu.
— Depois da segunda colina, olhei em volta e vi que todos os corredores pareciam
estar sofrendo em vez de se divertir. Não vi um rosto sorridente. Descobri que eu também
não estava me divertindo nada e mandei tudo para o inferno.
— Dan jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.
— Essa é a Susannah que eu conheci. A Susannah a quem eu ensinei dar
prioridade ao divertimento.
Ela se ajoelhou num movimento rápido e tomou-lhe o rosto entre as mãos,
aproximando-o do seu.
— Oh, Dan. senti tanto a sua falta!
CAPÍTULO VIII
Com um longo suspiro, Dan tomou-a nos braços, puxando-a para si. Agasalhada
na doçura daquele abraço, Susannah enterrou o rosto no peito dele e deixou-se invadir
pelo excitante cheiro masculino. Por um momento de encanto irresistível, ela se entregou
à lembrança de perfumes, sabores e contatos experimentados na companhia daquele
homem e que, por dez anos, havia tentado banir da mente.
Abraçando-a com força, ele lutava para dominar o desejo, sabendo ser aquele um
momento errado para a paixão. Todo seu corpo, porém, doía na ânsia aguda de viver
aqueles instantes de amor, completamente e sem outro pensamento.
Quando a luta interior tornou-se intolerável, ele ergueu o rosto da mulher e
mergulhou nos olhos escuros, esperando que um traço de rejeição naquele olhar o
ajudasse a vencer a tentação. Mas ela era toda aceitação. Ergueu os braços e entrelaçou-
os ao redor do pescoço dele, fazendo com que os dois perdessem o equilíbrio e caíssem
sobre o saco de dormir. As bocas se encontraram, separaram-se, para se buscarem
novamente, sedentas e inflamadas de desejo. No íntimo do corpo, ela sentiu o calor que
anunciava o renascimento de sua sensualidade. Ele mergulhava no sabor dos lábios dela,
cada vez mais profundamente, sabendo que se continuasse naquela febre logo atingiria
um ponto de onde não mais seria possível retornar. Com relutância, por fim, interrompeu
o beijo desesperado, resolvido a parar com aquele jogo perigoso, mas ela, com dedos
suaves, acariciou-lhe o rosto e seu propósito caiu por terra.
Como se tivessem vida própria, as mãos de Dan deslizaram para a cintura dela,
tirando-lhe a camiseta para fora do cinto e entrando por baixo do tecido leve. Acariciou-lhe
a pele nua e os olhares se encontraram. Nos olhos dela brilhava uma nova luz de
confiança, fazendo-o sentir o golpe da emoção, cheio de ternura e desejo de protegê-la
de tudo, até dele mesmo.
Vagarosamente, retirou as mãos e colocou desajeitadamente a camiseta para
dentro das calças outra vez. Percebeu que ela ficara muito quieta, mas juntou o
autodomínio que lhe restava, sentando-se após beijar-lhe o rosto de leve, tentando não
ver o espanto nos olhos castanhos.
— O que está fazendo? — ela perguntou com voz magoada.
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Talvez fosse melhor ele jamais haver aparecido em Cacheton, pois ela continuaria
na ilusão de haver esquecido o passado. Tornara-se capaz de pensar nele apenas
raramente e sem a dor lancinante dos primeiros tempos, experimentando apenas uma
sensação de tristeza pelo que havia perdido. Mas ele aparecera e um futuro para os dois
continuava a ser impossível, o que significava que ela teria que passar outra vez pelo
longo e doloroso processo de esquecê-lo.
Finalmente, cansada de pensar e não achar saída, ela esticou-se na grama
deixando que o calor do sol filtrado pelas copas das árvores lhe entrasse na pele,
relembrando os doces momentos de prazer sensual que passara nos braços dele até que
o encanto fora interrompido pelos pensamentos cheios de escrúpulo de Dan. Considerou
a idéia de voltar para casa deixando um bilhete preso ao limpador do pára-brisa do carro
dele, mas continuou deitada, amolecida pelo calor do sol, deixando-se embalar pelas
recordações até adormecer.
O sol já descia atrás das montanhas quando despertou. Sentou-se e olhou ao
redor, desorientada, sem saber onde estava. Recuperando a noção, olhou para o relógio
para ver espantada que passava das cinco. Mal pôde acreditar que dormira a sono solto
por mais de duas horas, num lugar duro, de solo coberto apenas pela grama. Bocejou e
espreguiçou-se languidamente, percebendo que estava com frio. Levantou-se, ainda um
pouco zonza, imaginando por que Dan não a despertara. Examinou as sombras mais
espessas na margem do rio e não viu nem sinal dele. Colocou as mãos em concha ao
redor da boca e chamou-o, mas não obteve resposta. Tentou novamente, sem resultado,
o que levou-a a empreender o caminho de volta ao carro.
Enquanto andava, imaginava o bilhete que deixaria para ele, dizendo que estava
feliz pelo fato de que o ressentimento entre eles havia desaparecido, mas que resolvera
voltar para Cacheton. Não seriam necessárias maiores explicações. Chegando à cam-
pina, viu que apenas seu carro permanecia ali, dando a impressão de que Dan se fora.
Andou mais depressa, não sabendo o que pensar daquilo, achando que ele deveria ao
menos tê-la despertado e dito aonde ia e quando pretendia voltar.
Não tendo onde deixar o bilhete que pensara em escrever, resolveu ir embora
imediatamente, evitando assim uma despedida desajeitada. Aproximando-se do carro, viu
um papel dobrado preso pelo limpador do pára-brisa. Tirou-o e, ao abri-lo, reconheceu
instantaneamente a letra espalhada de Dan.
"Não vá embora. Voltarei logo."
Ela olhou um longo tempo para o papel antes de dobrá-lo e guardá-lo no bolso da
jaqueta. O que adiantaria ficar? Seria muito mais desapontador ficar a sós com ele,
desejando estar em seus braços, do que vê-lo no solene ambiente do tribunal apenas.
Com o coração pesado, entrou no carro e ligou o motor.
O dia terminara, a oportunidade de uma reconciliação fora perdida e talvez nunca
mais houvesse outra. Ficar com ele na quietude e na solidão da montanha somente
serviria para criar novas recordações que tornariam esquecê-lo mais difícil do que já seria.
Levou o carro para a estrada como se algo a perseguisse, desatenta ao terreno
desigual, apenas diminuindo a velocidade quando os pneus derrapavam de leve.
Alcançou a rodovia percebendo que estava agarrada ao volante com uma força que lhe
empalidecia os nós dos dedos. Diminuiu a pressão sobre o acelerador e relaxou os
músculos do pescoço e dos ombros.
Mais ou menos um quilômetro abaixo, perdeu a calma recém adquirida ao ver a
perua de Dan que vinha em sentido contrário. Ele tocou a buzina numa sucessão de
toques rápidos e colocou o braço para fora fazendo sinais frenéticos para que ela pa-
rasse. O coração de Susannah perdeu a compostura, pondo-se a bater como louco,
deixando-a desesperada ao perceber o poder que a presença inesperada daquele homem
tinha de descontrolá-la. Sabendo que seria inútil tentar ignorar os sinais que ele lhe fazia,
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entrou no acostamento e parou. Olhou para trás e viu que ele deixara o carro e corria em
sua direção com os cabelos rebeldes esvoaçando na brisa da tarde.
— Aonde você vai? — ele gritou aproximando-se.
— Para casa — foi a resposta lacônica.
— Quer dizer que veio para a montanha pretendendo voltar no mesmo dia? — ele
perguntou quase acusadoramente. — Não gosta mais de acampar?
— Nunca mais acampei, desde que... ah, nem sei desde quando — ela terminou a
frase num tom de impaciência.
— Sabe, sim — ele pressionou.
— É isso aí — ela admitiu. — A única vez que acampei foi com você e não tenho
equipamento.
— Bem, seu antigo amante, Dan Sullivan, tem — ele disse com um sorriso. — O
saco de dormir abrigará nós dois.
— Não seja engraçadinho. Acho que esse assunto foi resolvido hoje à tarde.
Agora, se fizer o favor de desencostar do carro, irei para casa.
Ela deu partida e deixou o veículo rodar devagarinho por alguns metros, mas ele
não tirou as mãos da janela, andando junto.
— Não vá, Susannah. Fique para jantar comigo e vá embora mais tarde. Vou
preparar uma truta deliciosa para nós dois.
Ela riu alto.
— Deliciosa? Duvido um pouco.
A lembrança de Dan debruçado sobre uma fogueira de acampamento, segurando
uma frigideira cheia de pedaços carbonizados de truta, passou-lhe pela mente nos
mínimos detalhes. Repentinamente, o convite tornou-se irresistível. Seria a última chance
de estarem juntos, de partilharem uma refeição. Depois que terminassem de jantar, ela
desceria a montanha e sairia da vida dele. Hesitou, mas o bom senso venceu.
— É um convite tentador, Dan, mas aquela estradinha é um perigo, à noite. Não sei
se terei coragem de descê-la.
— Passe a noite lá em cima.
— Dan, seja realista. Não vai dar certo. Isso apenas servirá para nos encher de
mais frustração.
— Comprei champanha — ele declarou, tentador.
Algo na voz dele fez com que ela o olhasse, procurando descobrir por que parecia
tão contente consigo mesmo, de repente.
— Espere um pouco — ela disse cheia de suspeitas. — Onde esteve? Não ia ficar
pescando?
— Parei por volta das três e meia e voltei para onde a havia deixado. Não tive
coragem de acordá-la ao ver que dormia como um anjo ao sol e resolvi ir sozinho até o
posto-restaurante-armazém Acampamento do Índio.
— Parece que continua o mesmo em tudo. O que esqueceu desta vez?
— Não me esqueci de nada — ele respondeu, olhando-a como se estivesse
ofendido. — Só não sabia que ia precisar de champanha esta noite.
O pulso de Susannah disparou e ela nada encontrou para dizer.
— Champanha para uma juíza — ele acrescentou solenemente.
— Encontrou champanha naquela venda de beira de estrada? — ela riu.
— Lá existe de tudo o que um turista lunático possa desejar. Comprei champanha
e mais alguma coisa.
— O quê?
— Clareza de idéias e coragem para decidir que quero você dormindo comigo na
campina esta noite. Não vão ser uma juíza e um advogado desobedecendo o
regulamento, mas um homem e uma mulher que se desejam e precisam um do outro.
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Ela sentiu-se amolecer de emoção ao ver o carinho que havia nos olhos dele e a
alegria do seu sorriso. Tomou então a mão que ele mantinha pousada na janela do carro
e levou-a ao rosto.
— Oh, Dan! — ela murmurou, sabendo que nada mais a impediria de voltar com
ele para a campina.
Ele introduziu a cabeça pela janela e beijou-lhe o rosto, antes ele afastar-se
ligeiramente do carro para apontar na direção da montanha.
— Logo quando se sai da rodovia para entrar na estradinha, há um espaço largo
destinado ao estacionamento de veículos. Pode deixar seu carro lá e subir a montanha
comigo.
— Não há necessidade, Dan. Não é tão perigoso assim dirigir por aqui à noite. Eu
estava dando desculpas.
Ele apenas sacudiu a cabeça e começou a andar na direção da perua.
— A estrada está limpa — gritou por cima do ombro. — faça a volta e siga-me. Vai
voltar no meu carro e pronto.
Ao chegarem à campina, Dan ultrapassou o lugar onde havia estacionado
anteriormente e seguiu até a orla do bosque. Parou ao lado da pequena clareira, desligou
o motor e voltou-se para ela com um sorriso que a fez sentir um arrepio na espinha.
— Vamos ficar onde conversamos à tarde.
— Não poderia haver lugar melhor — ela concordou.
— Então vou começar a descarregar para estabelecermos acampamento.
Ela o seguiu para fora da perua, observando-o tirar uma caixa de isopor, vários
utensílios de cozinha e uma mesa dobrável sobre a qual colocou o fogãozinho a gás.
— Não vamos ter uma fogueira? — perguntou desapontada.
— Cansei de comer peixes carbonizados. Um fogão é muito prático, não acha?
— E muito menos romântico também.
Rapidamente, entraram na rotina estabelecida anos antes, quando acampavam
todos os fins de semana do verão e quando não tinham nem fogão nem caixa de isopor
para gelo e os utensílios de cozinha não passavam de uma frigideira torta e uma
cafeteira, as duas pretas pelo uso sobre fogueiras.
O sol já desaparecera completamente e não havia tempo para conversa inútil
enquanto a tarefa de arrumar tudo não fosse cumprida. Susannah havia esquecido a
excitação de correr contra o tempo, executando o trabalho de preparar o acampamento
antes da completa escuridão. Já era noite quando trouxeram água do riacho e
estenderam o saco de dormir no chão.
Finalmente, ela sentou-se na cama improvisada e Dan tirou o champanha do gelo,
abrindo a garrafa e servindo o líquido em duas canecas de tomar café. Sentou-se ao lado
dela, dando-lhe uma das canecas e olhando-a nos olhos. Ficaram em silêncio por algum
tempo, até que ele suspirou longamente.
— Oh, Susannah, estou de língua presa. Gostaria de fazer um brinde que a
deixasse encantada e não consigo encontrar palavras — ele hesitou, cheio de emoção. —
Só gostaria de dizer que estou mais feliz esta noite do que jamais fui.
— Amor querido, já esqueceu? Sempre conseguiu me encantar, mesmo sem
brindes.
Ela ouviu um som abafado que escapava dos lábios dele e sentiu que a caneca lhe
era retirada das mãos. No instante seguinte estava nos braços do homem amado que lhe
murmurava palavras de carinho e lhe procurava a boca com lábios famintos. Entregaram-
se a um beijo longo e apaixonado e ela, sentindo o latejamento da paixão que lhe pulsava
no íntimo, abraçou-o com força.
A necessidade que tinham um do outro ficou de repente tão exigente que tudo o
que não fosse aquele momento fugiu-lhe dos pensamentos. Ele começou a despi-la,
tirando-lhe a camiseta pela cabeça, admirando os seios firmes que se ofereciam livres.
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Deitando-se de costas no saco de dormir, ele puxou-a sobre si, beijando-lhe os seios,
acariciando-os com a boca, provocando nela uma sensação de êxtase quase dolorosa.
O jogo de carícias não era mais suficiente para aplacar a sede que os devorava.
Com movimentos febris livraram-se das roupas restantes, entregando-se ao prazer de
sentirem a carne contra a carne e de verem, à luz da lua que surgia, os corpos se pro -
curando e se tocando, ansiosos por se fundirem, e todavia desejosos de prolongar um
pouco mais a doce agonia do desejo.
As mãos dele percorriam as partes sensíveis do corpo cujos segredos havia
conhecido tão bem, deixando-o úmido e pulsante de paixão.
— Venha para mim, amor — ela murmurou num gemido, afastando-se dele apenas
o bastante para deitar-se de costas, erguendo os braços e fechando os olhos para
recebê-lo.
Ele se inclinou sobre ela e enterrou o rosto nos seios quentes e palpitantes.
— Meu amor — ele sussurrou. — Não tinha mais esperança de que isso
acontecesse outra vez.
Com a força total da paixão se uniram e galgaram as alturas do desejo, movendo
os corpos no ritmo do prazer até alcançarem o pico máximo, caindo depois no torpor
exausto e satisfeito do amor saciado.
Ele tocou o rosto suave e encontrou-o molhado de lágrimas.
— Está chorando, meu amor? Por quê?
— Nunca pensei que seria tão feliz novamente. Senti tanto a sua falta, Dan, tanto!
— ela murmurou entre lágrimas.
Passando o calor da paixão, eles perceberam a brisa fria que os envolvia e
abrigaram-se no conforto do saco de dormir, desenhado para agasalhar uma única
pessoa, juntinhos, abraçados, aqueceram-se e adormeceram.
Em algum momento da madrugada, Dan acordou de um sono profundo, sentindo o
braço dormente pelo peso do corpo de Susannah. Conseguiu livrá-lo e virar-se de lado,
acabando por despertar a mulher adormecida.
— O que foi, Dan?
— Nada, querida.
Ficaram em silêncio e, de alguma forma, ele começou a sentir-se inquieto, como se
algo lhe pesasse na consciência. Lembrou-se de que não fora capaz de dar resposta
convincente quando ela lhe perguntara por que não lhe comunicara haver aceitado o
emprego com Bradley & Hammer, tanto tempo atrás que parecia que um século já se
havia passado. Aquele dia longínquo voltou-lhe à mente com clareza e ele sentou-se,
pensando no motivo que o fizera dar uma resposta evasiva em vez de contar-lhe como
tudo se passara realmente.
— Por favor, Dan, deite-se. Está deixando o frio entrar — ela queixou-se.
— Sabe por que não lhe contei sobre o emprego antes de aceitá-lo?
— Não foi por covardia? Bem que achei estranho.
— Um pouco, talvez. Naquela tarde estive no escritório da Bradley & Hammer para
tratar de um assunto referente a um cliente meu e eles me ofereceram o emprego,
dizendo que eu precisava resolver imediatamente.
— Por que tanta pressa?
— É o jeito deles trabalharem. Disseram-me que haviam entrevistado dezenas de
advogados, mas que estavam de olho em mim. Se eu não aceitasse, pegariam outro.
Como sabe agora, eu estava precisando desesperadamente de dinheiro e assinei o
contrato sem pensar duas vezes. — Ele riu. — Não ficava bem pegar o telefone deles e
ligar para você, pedindo permissão, não é?
— Por que não me contou depois a pressão que havia sofrido?
Ele apoiou-se sobre um cotovelo e percorreu o rosto dela com os lábios,
provocando-a.
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CAPÍTULO IX
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Por outro lado, desfazer a sociedade com Jerry estava fora de questão. Quando
voltara de Washington para Fresno, ele e o sócio haviam refeito os laços de amizade
muito antiga, relaxados quando os dois haviam ido para universidades diferentes, unindo-
se numa sociedade que já durava oito anos. Haviam se tornado uma dupla perfeita e
juntos tinham uma atuação espantosamente boa o que lhes angariara uma sólida
reputação de étimos advogados em casos da zona rural no estado inteiro.
Mesmo que não fosse por lealdade, Dan não conseguia imaginar-se abandonando
a sociedade. Entrar num tribunal para lutar por uma causa que Jerry não houvesse
estudado e preparado era o mesmo que entrar numa quadra de tênis para disputar uma
partida sem raquete. De modo que a situação transformara-se num verdadeiro impasse e
ele não fazia a mínima idéia de como solucioná-la, mesmo sabendo que seria impossível
viver sem Susannah depois de havê-la reencontrado.
Ele saiu da estrada e entrou na campina, estacionando na orla do bosque, onde
haviam passado a noite. Pisou na grama amassada onde estivera o saco de dormir e
olhou em volta. Em todos os lugares via a mulher amada. Era como se ela houvesse dei-
xado sua essência encantadora em tudo.
A ausência dela lhe doía, tornando-o incompleto. A doçura dos momentos de
paixão não haviam saciado sua fome por aquela mulher, muito pelo contrário, tornara-a
quase insuportável.
Ele se dedicou à tarefa de limpar os utensílios antes de retirar o equipamento de
pesca da perua. Porém pescar havia perdido a graça. Acabou por guardar tudo e sentar-
se atrás do volante olhando aquele lugar que se tornara inesquecível. Com um suspiro,
deu partida no veículo.
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Pensou no pai, que veria naquela tarde, e no que lhe diria. Não tinha nada de
concreto para apresentar provando que estava trabalhando na campanha e ele tomaria
conta da situação.
Com aquilo na mente, ligou para Jill assim que chegou em casa.
— Jill, sou eu, Susannah, Já voltei.
Houve uma pausa do outro lado até que a voz da moça surgiu, cheia de
entusiasmo.
— Se apresentou-se como Susannah, e não como juíza Ross, é porque não está
furiosa comigo.
— Furiosa? — Susannah nem se lembrava dos truques românticos da secretária,
mas tentou uma reprimenda. — Tive vontade de esfolá-la viva quando descobri o que
você havia feito, mas está perdoada, desde que não tente mais nada parecido.
— Como foram as coisas? — A curiosidade da moça era quase palpável através
do fio.
— Não foi por isso que telefonei — Susannah cortou, quase ríspida. — Quero
discutir minha campanha com você.
Jill suspirou, resignada, mas quando falou era uma secretária perfeita.
— Ajudarei em tudo o que puder, Susannah.
— Meu pai vai chegar esta tarde e tenho que ter algo para lhe mostrar se não
quiser que ele agarre esta oportunidade para fazer uma campanha à sua moda.
— bem, tendo algumas coisas planejadas. O que você quer saber?
A juíza fez uma pausa, pondo os pensamentos em ordem.
— Primeiro, o que pode me dizer dos dois advogados que vão concorrer contra
mim? Conheço-os da corte, de modo que tenha uma boa idéia de sua competência
profissional, mas fora isso...
— Bem, Elmer Fairchild esperava ser designado para o cargo, quando o
governador a nomeou. Vem de uma das mais antigas famílias de Cacheton e é muito
querido pelo povo, mas meio preguiçoso. Acho que mesmo seus melhores amigos não o
julgam apropriado para a magistratura, mas votarão nele por lealdade, a menos que você
os convença do contrário.
— E o outro, o Parker?
— Mel Parker? Ele sim, vai ser um concorrente perigoso — Jill respondeu com
alguma relutância. — É duro, agressivo e deseja ser juiz acima de tudo na vida. Já está
por aí, atrás de dinheiro para a campanha e tentando pôr nas cabeças dos eleitores que a
comarca não precisa de uma mulher como juíza.
Susannah respirou fundo, apreensiva.
— Muito bem, Jill. Já me deu a notícia ruim. Quer agora me dar a boa?
— O bom disso tudo é que, como são dois, vão dividir os eleitores. Tudo o que
você precisa fazer é ter mais votos que aquele que for mais votado, aliás muito mais
votos, se não quiser enfrentá-lo novamente no próximo outono.
— Deus me livre!
— Não se assuste. Se sua vitória não for tão estrondosa que o faça desistir de
concorrer nas eleições do ano que vem, terá o verão todo para provar ao povo que é a
melhor pessoa para usar a toga na comarca.
— Obrigada pelo incentivo e pelas informações, Jill. Não sei o que faria sem você.
— Não desligue. Há mais. Pode dizer ao seu pai que amanhã serão expedidos
convites para o baile de lançamento de sua campanha na fazenda dos Kramer, na sexta-
feira à noite. Pode ficar tranqüila e ter certeza de que, com Lucille organizando a festa,
tudo vai ser um sucesso.
— Nem sei como agradecer, Jill. Mal conheço a filha do juiz Randall e ela está
tendo todo esse trabalho por minha causa. Foi você quem lhe pediu, não foi?
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— Apenas toquei no assunto. Lucille e Jack resolveram sozinhos fazer o que fosse
possível para ajudá-la. Estavam preocupados sobre a pessoa que substituiria o velho
Randall e temiam que fosse Elmer Fairchild. Quando você chegou, bombardeavam-me
com perguntas todos os fins de semana.
Susannah deu um gemido involuntário.
— Não precisa gemer — a moça disse em tom ofendido. — É verdade que me
ressenti com sua presença no lugar do meu querido juiz, mas sou uma pessoa sensata.
Na primeira semana tive que admitir que você era inteligente, trabalhadora e justa.
Quando o mês terminou, a única coisa que pude dizer a Lucille foi que você era
merecedora do cargo e que o próprio juiz Randall ficaria feliz por vê-la em seu lugar.
Desde então eles estão pensando em ajudá-la a reeleger-se.
— Quem diria! E pensar que você me olhava de um modo tão desaprovador que
eu acreditei que me detestasse.
— Não havia como gostar de você, Susannah, mas também não havia motivo para
detestá-la. Você era fria e fechada, de modo que me mantive a distância, apenas
cumprindo o meu dever.
— Você é um enigma, Jill — ela disse com um leve tom admirado na voz. —
Apesar da frieza que havia entre nós duas, foi capaz de me recomendar como juíza aos
Kramer.
— Eles não estavam interessados em saber se eu gostava ou não da juíza, mas
sim se ela seria capaz de ocupar o cargo com competência e eu não poderia mentir,
inventando defeitos que não existiam.
— Obrigada pela confiança.
— Não há o que agradecer. Na época fiz o que era correto, mas demorei quatro
meses para descobrir que, além de juíza competente, você era uma pessoa real com
sentimentos, senso de humor e tudo o mais.
— Posso dizer a mesma coisa a seu respeito, Jill. A moça ficou um instante em
silêncio, depois riu.
— Não vou prendê-la mais. Boa sorte no encontro com seu pai. Susannah desligou
e ia se afastar quando o telefone tocou.
— Oi, sou eu de novo — Jill disse. — Esqueci de dizer que faz dois meses que os
Kramer estão angariando fundos para a campanha, recorrendo aos amigos do juiz
Randall.
— Até me sinto envergonhada, Jill.
— Não se preocupe. Os Kramer estão entusiasmados mandando fazer folhetos e
cartazes. Estão se divertindo um bocado.
— Já vão começar a distribuir folhetos?
— Jack diz que já estamos com um mês de atraso.
— Fui um pouco relapsa, Jill, e me sinto acanhada por estar deixando todo o fardo
nas costas de estranhos generosos que se propuseram a não me deixar perder um
emprego que adoro.
— Uma juíza não tem tempo para lidar com isso, pois seu lugar é no tribunal. Deixe
que os "estranhos generosos" se encarreguem de tudo.
— Daqui por diante, Jill, estarei à disposição dos organizadores da campanha para
fazer o que eles acharem melhor, pelo menos nas minhas horas de folga.
O pai de Susannah, Manfred Ross, era um típico cidadão de San Francisco.
Nascido num lar abastado, nas horas que se seguiram ao terremoto de 1906, o qual os
habitantes acostumaram-se a chamar de "O Incêndio", ele possuíra tudo para ser parte
integrante da vida política da cidade. Formado pela Universidade de San Francisco no
tempo em que ainda era o Colégio Santo Inácio, fora grande esportista, jogando beisebol
e nadando durante vinte anos na competição anual de natação que consistia na travessia
do mar, desde o Museu Marinho até a praia do Oceano, no outro lado da baía.
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Exceto por uma ligeira barriga, era alto e esguio, sempre mantendo as costas
eretas e a pose elegante. Observando-o caminhar pela alameda na frente da casa, aquela
tarde, Susannah pensou que ele parecia pelo menos dez anos mais jovem, sendo difícil
acreditar que já chegara aos oitenta. Continuava com boa aparência, olhar alerta e
perfeito controle dos gestos. Nunca ocorrera à filha que ele talvez não devesse mais
dirigir seu próprio carro no tráfego intenso, estando em idade tão avançada.
Ela foi encontrá-lo na porta, saudando-o com um abraço e um beijo.
— Papai, você está ótimo! Que bom que tenha saído do seu caminho só para me
ver!
— É uma viagem bem longa, mas acho melhor ir me acostumando.
Ela percebeu imediatamente o sentido das palavras, mas nada comentou,
desejando adiar o mais possível o momento de discutirem o assunto da campanha.
— Concordo! — ela exclamou calorosamente. — Quando se acostumar, espero
que venha de vez em quando para passar o fim de semana comigo. Agora, vamos entrar
e sentar. O que quer beber? Café? Chá? Vinho? Cerveja?
— Gostaria de algo mais forte, mas acho que não devo, pois ainda vou dirigir. Você
tem café de coador? Não me venha com aquela droga de café instantâneo.
— Preparei uma garrafa térmica, só para você. Que tal um pedaço de bolo de
chocolate, daqueles que você adora?
— Foi você quem fez? — ele duvidou.
— Sabe muito bem que não — ela riu. — Quem mandou você permitir que mamãe
me transformasse num cabide de diplomas em vez de me ensinar um pouco de arte
culinária?
Ele viu que ela estava brincando e sorriu.
— Minha secretária, Jill Fitzgerald, mandou-o quando soube que você viria me
visitar.
Sentaram-se à pequena mesa de jantar com o bolo e o café e conversaram sobre
várias coisas sem importância que haviam acontecido desde seu último encontro.
Examinando-o detidamente e de perto, Susannah sentiu o coração doer ao perceber que
apesar da aparência saudável o pai estava velho.
Quando ele atacou o assunto da campanha, apanhou-a desprevenida.
— Susannah, vamos falar da sua campanha — ele disse, pousando a xícara no
pires. — Eu poderia ir e vir todas as semanas, mas pensei bem e cheguei à conclusão
que seria melhor ficar em um hotel aqui em Cacheton, até o dia da eleição.
Ela olhou-o de olhos arregalados, sem poder pronunciar uma palavra.
— Acho que você tem um quarto de sobra e que gostaria que eu o ocupasse mas,
sem querer ferir seus sentimentos, será bom que eu fique no centro da cidade.
Ele não notou o embaraço da filha, envolvido em seus planos.
— Se não encontrar um hotel que tenha suítes — ele continuou. — Vou tomar dois
quartos e transformar um em escritório para os trabalhos da campanha.
— Papai... — Susannah começou, recuperando a voz. Manfred nem a ouviu.
— Vamos começar a passar slides pela televisão e colocar cartazes seus em toda
parte. Seu rosto e as palavras "Para juíza, Susannah Ross" e mais nada.
— Papai! — ela tentou novamente.
— Já sei que vai dizer que isso custa dinheiro, mas não se preocupe. Há muita
gente a quem ajudei no passado e que vai ficar muito feliz em retribuir a gentileza,
colaborando para que você continue no cargo.
— Papai! Tem que me ouvir! O modo mais seguro de eu perder esta eleição é usar
dinheiro de fora e fazer uma campanha como a que está sugerindo.
— Ora, vamos, filha...
— Estou falando sério, papai.
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A voz dela estava firme. Teria que ser naquele momento ou nunca mais. Era uma
pena ter que desapontar o pai, mas não podia pôr sua carreira em risco só para agradá-
lo.
— Acredito que ninguém entende mais de política e campanhas em grandes
cidades do que você, e sei que ajudou a eleger um grande número de deputados,
prefeitos e até governadores.
— Não exagere — Manfred deu um sorriso modesto.
— Não estou exagerando e você sabe disso. Em San Francisco você é o maior,
mas minha comarca é River County, com sede em Cacheton, uma cidadezinha a
duzentos e trinta quilômetros de San Francisco e o povo daqui tem orgulho de manter-se
nos padrões antigos das pequenas comunidades. Não vê com bons olhos qualquer
estranho que apareça querendo ensinar-lhe como dirigir seu próprio show.
— Escute, Susannah, não está pretendendo largar sua campanha nas mãos de
amadores, está?
— Estou, sim, papai. Na verdade já entreguei tudo nas mãos de pessoas que
sabem tanto a respeito de uma campanha em Cacheton como você sabe a respeito das
de San Francisco.
Uma hora mais tarde, o pai empurrou a cadeira e levantou-se para partir. Estava
calmo e a filha beijou-o no rosto com um novo afeto. Na porta, ele olhou-a com um sorriso
malicioso.
— Estaria mentindo se dissesse que não gostaria de fazer a primeira campanha da
minha própria filha e ganhar a eleição para ela, mas estou calejado em política e sei
quando algo vai funcionar e quando não vai. Você me deu uma visão bem clara da
situação e tenho que admitir que estava errado. Esse pessoal que vai ajudá-la parece
saber o que está fazendo. Talvez, em vez de ser útil, eu acabasse por prejudicá-la.
Os olhos de Susannah inundaram-se de lágrimas e ela ergueu os braços para
enlaçar o pescoço do pai.
— Papai, eu amo você.
CAPÍTULO X
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Projeto Revisoras 62
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— Se gostei? Fazia muito tempo que não pescava tão lindas trutas. Além disso,
tivemos o lugar só para nós.
Tarde demais descobriu que usara o plural e que se tentasse corrigir o que dissera
apenas pioraria a situação, mas, exceto por uma rápida piscada, Jill não deu mostras de
haver percebido nada.
— Fico contente em saber que se divertiu — ela disse com sobriedade, mas
sorrindo abertamente.
— Voltei com um estoque tão grande de peixes que, mesmo após haver dado
alguns ao pessoal do hotel, ainda sobraram vários. Não quer tirar o problema das minhas
mãos?
— Lucille e Jack Kramer! — ela exclamou. — Adoram truta, mas nunca têm tempo
de pescar.
— Quer se encontrar comigo na biblioteca hoje à tarde, quando a sessão estiver
terminada? Poderá ir comigo até o carro e eu lhe darei os peixes.
— Combinado, doutor. Agora, se me der licença, vou correr atrás do escrivão para
lhe entregar estes documentos.
Sorrindo, Dan voltou para a sala do tribunal. Sentiu uma onda de afeto pela
alcoviteira bonitinha e sardenta que fora a responsável por seu encontro com Susannah
na montanha.
Alguns minutos depois de reaberta a sessão, o oficial de justiça levou a Dan um
bilhete de Oliver Fox, o detetive contratado para procurar o piloto desaparecido, pedindo-
lhe para que entrasse em contato com ele o mais breve possível. O bilhete deixou o
advogado entusiasmado. Dobrou-o, guardando-o no bolso, imaginando se o detetive
havia descoberto alguma coisa.
Corwin estabeleceu a tônica de sua defesa com a primeira testemunha que
apresentou, um perito em plantas híbridas que explicou que tais plantas, a cuja categoria
pertenciam os tomateiros destruídos, eram mais suscetíveis do que as outras a agentes
externos como clima, solo e condições da água.
Interrogado por Dan, logo a seguir, teve que admitir não haver visto a plantação em
questão nem poder afirmar com toda certeza de que o que dissera era aplicável ao caso
dos tomateiros da Minerva.
Imperturbável, o outro advogado apresentou um especialista que declarou que a
temperatura durante o período no qual a plantação fora danificada estivera alta demais.
Um especialista em solo foi chamado para tentar incutir na mente dos jurados que os
tomateiros haviam sido plantados muito superficialmente para suportarem o peso de
tantos frutos. Um doutor em química chamou a atenção do júri para o baixo teor de boro
da água usada na irrigação.
O único modo de lutar contra aqueles depoimentos, Dan decidiu, era trazer
testemunhas que declarassem que o mesmo tipo de plantação, em outros campos, não
havia sido afetado pelo mesmo calor e pela mesma falta de boro. Chamaria também um
especialista em solo para verificar a qualidade da terra do campo danificado.
Tornou-se claro para Dan que Corwin não possuía evidência real para refutar os
depoimentos já apresentados e que estava tentando confundir o júri com uma enxurrada
de possibilidades apresentadas pelos peritos.
Se Oliver Fox houvesse encontrado o piloto, ele poderia apresentar provas
arrasadoras e acabar com aquela palhaçada de uma vez por todas. Dan olhou para
Bancroft e viu pela expressão do cliente que o homem não estava nada satisfeito com o
rumo que o caso tomava. Preocupado, ansioso para falar com o detetive, Dan foi o
primeiro a erguer-se quando o martelo da juíza bateu na mesa anunciando o fim da
sessão.
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— É mesmo. Até me esqueci do baile. Quando vai ser? A moça olhou-a com
espanto.
— Não se lembra? No fim desta semana. Sexta-feira.
— Já? — Susannah exclamou desanimada. — Mas não se preocupe, minha
amiga. Estarei apropriadamente vestida, mas eu devia ter me comunicado com os
Kramer. O que eles vão pensar?
— Que você não faz tanta questão assim de vencer a eleição.
— Devo ter mania de avestruz, que enterra a cabeça na areia até que o problema
desapareça. Sempre detestei política mas, se quiser permanecer como juíza, vou ter que
enfrentar tudo isso periodicamente, portanto acho bom ir me acostumando.
Ela ficou pensativa por alguns instantes, depois tomou uma decisão.
— Olhe, Jill, ligue para os Kramer e pergunte se posso visitá-los hoje à noite,
depois do jantar.
— Ficarão felizes em recebê-la, a menos que já tenham outro compromisso.
Quanto ao que disse, pode ir tirando a cabeça da areia e preparando-se para conhecer
seus eleitores.
— Preciso esquecer minha aversão à política e colocar na minha cabeça dura que
os eleitores têm o direito de saber quem eu sou, o que penso e de conhecer minha
filosofia de trabalho. Ê o único modo de decidirem com consciência se querem que eu
fique no cargo ou não.
Jill bateu palmas, aplaudindo.
— Grande discurso, juíza!
Na cabine do telefone público, Dan deu o número de Oliver Fox à telefonista e ficou
esperando impacientemente que a chamada fosse completada. Finalmente, ouviu a voz
familiar do detetive.
— Alô? Oliver falando.
— Oliver, aqui é Dan Sullivan. Alguma novidade?
— Parece que encontrei uma pista sobre o paradeiro do piloto — o detetive
esclareceu. — Viveu com uma família de nome Kramer, em Cacheton, quando era
adolescente. Falei com os Kramer e eles me disseram que, quando souberam dele pela
última vez, o rapaz estava morando no Alasca.
O entusiasmo de Dan sofreu um golpe duro. Além de ser longe, o Alasca era um
lugar muito grande.
— Eles não têm o endereço?
— Perderam contato com ele, mas me deram o nome de uma mulher que se
corresponde com o rapaz. Achei melhor falar com você antes de continuar na
investigação para saber se por acaso a conhece.
— Um pouco difícil. Não conheço quase ninguém aqui em Cacheton.
— É secretária da juíza e o nome dela é Jill. . .
— Fitzgerald! — o advogado completou alvoroçado. — É uma das poucas pessoas
que conheço. Por coincidência, vou me encontrar com ela dentro de uma hora.
— Pode cuidar disso para mim, então?
— Será um prazer. Tem mais alguma pista, no caso desta falhar?
— Receio que não.
— O tempo está ficando cada vez mais curto. Bem, vamos tentar com Jill. Se
descobrir alguma coisa, telefonarei a você imediatamente.
Dan desligou o telefone e saiu da cabine, passando a mão pelos cabelos
distraidamente. Jill era o fio da meada e estivera o tempo todo bem embaixo do seu nariz.
Imaginou se ela sabia ser possuidora de informações preciosas. Em caso afirmativo, por
que escondera o fato? Sacudiu a cabeça, espantando as perguntas que não podia
responder e dirigiu-se para o terceiro andar do edifício do tribunal onde pretendia ficar
trabalhando até que Jill ficasse livre para encontrar-se com ele.
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Um pouco depois das cinco, ergueu a cabeça do livro que estivera lendo e viu Jill
na porta da biblioteca. Rapidamente juntou as anotações, recolocou o livro na estante e
foi ao encontro dela.
— Vamos ao estacionamento e eu tirarei o peixe da minha perua e o colocarei em
seu carro — ele disse, descendo o corredor com ela.
— Sinto muito, mas não vim trabalhar de carro. Sempre venho a pé do meu
apartamento até o tribunal.
— Então deixe-me lhe dar uma carona.
— Será ótimo, obrigada.
Ela o orientou até chegarem a um prédio de apartamentos de três andares com um
pátio central e piscina, a alguns quarteirões do tribunal.
— Meu apartamento é nos fundos — ela explicou quando ele estacionou na frente
do prédio.
— Espere só um minuto enquanto tiro as trutas da caixa de isopor e...
Antes que ele terminasse a frase, a moça desceu da perua e foi olhar na parte de
trás, onde se amontoavam os apetrechos de pesca e o equipamento que ele usava para
acampar.
— Sempre leva isso tudo para onde vai? — ela perguntou com curiosidade.
— Geralmente — ele admitiu sorrindo. — Nunca se sabe quando se irá topar com
um bom lugar para a pesca.
Ela deu um sorrisinho triste.
— Isso me lembra alguém que conheci.
Vendo que Dan se dispunha a levar a sacola de plástico contendo os peixes até o
apartamento, ela fez um gesto para pegá-la. — Não precisa levá-los para mim, obrigada.
Eu me arranjo.
— Nada disso. Apenas mostre-me o caminho.
Quando ela abriu a porta do apartamento e tentou pegar a sacola, ele ainda
recusou-se a entregá-la.
— Posso colocá-los na geladeira para você e, se não se importar, gostaria de
conversar um pouco.
A moça olhou-o com estranheza, mas não protestou. Quando o pacote de trutas já
estava na geladeira, ela lhe ofereceu um drinque, mas ele não aceitou. Após um momento
de indecisão, convidou-o a sentar-se e Dan afundou num sofá exageradamente estofado
e recoberto de tecido estampado. Ela ocupou uma poltrona ao lado, olhando-o meio sem
jeito.
— Se pretende perguntar algo sobre a juíza Ross, doutor, é melhor desistir porque
não vou dizer coisa alguma.
A idéia pareceu tão maluca que ele riu alto.
— Relaxe — ele disse. — É claro que não vou fazer perguntas sobre a juíza. Por
que o faria?
O rostinho bonito ficou corado.
— Porque não vejo outro motivo para o senhor querer conversar comigo — ela
respondeu com candura.
— O que sabe sobre um homem chamado Oreste Kerns, Jill? A moça ficou pálida
e os olhos azuis expressaram alarme.
— O que aconteceu com ele, doutor? — ela correu para o lado dele tomando-lhe
uma das mãos entre as suas, muito frias. — O que aconteceu com Resty?
— Fique calma, garota — ele disse, afagando os dedos gelados. — Que eu saiba,
nada aconteceu. Estou apenas tentando encontrá-lo e disseram-me que você podia ter
seu último endereço.
A jovem retirou as mãos, suspirando. Ergueu-se do sofá e foi até a geladeira,
servindo-se de um copo de vinho branco, visivelmente trêmula.
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CAPÍTULO XI
O celeiro dos Kramer era grande, pintado de vermelho e possuía um teto arqueado
que formava um sótão para a armazenagem de feno de ambos os lados, logo abaixo do
telhado. O chão havia sido varrido e esfregado para o baile daquela noite, que traria os
mais expressivos representantes da população de Cachetón e de outras cidadezinhas da
comarca para conhecer Susannah. Os Kramer acreditavam que essas pessoas
acabariam por persuadir outras a votarem na juíza.
As enormes portas das duas extremidades do celeiro haviam sido abertas para
deixar entrar a brisa da noite e erva-cidreira queimava nos incensários suspensos das
traves do teto com o propósito de espantar os mosquitos. Ao longo das paredes
enfileiravam-se fardos de feno que seriam usados como bancos, deixando um grande
espaço livre no centro para a dança que estava prestes a começar.
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— Quer que eu diga a ela que vou ajudar um dos advogados envolvidos no caso a
procurar uma testemunha? Não posso. O que a juíza pensará disso?
Dan refletiu um pouco.
— É, acho que ela não vai gostar nada, embora não seja ilegal.
— E há outra coisa — Jill hesitou. — Nunca viajei de avião.
— Então vai se divertir muito — o advogado tranqüilizou-a.
— Só de pensar em voar até o Alasca já fico apavorada — ela confessou.
— Não há o que temer. Vai adorar. — Ele levantou-se. — Então está tudo
arranjado.
Jill olhou-o atônita e também se ergueu.
— Espere um minuto, doutor. Eu...
— Vou mandar Oliver cuidar dos detalhes da viagem. Ligarei mais tarde para
informá-la de tudo.
A moça respirou fundo e depois abriu um sorriso que encheu o advogado de alívio.
— Devo estar louca, doutor, mas vou ajudá-lo.
Quando o telefone tocou, Susannah estava esticada ao sol no pátio de sua casa,
lutando contra a avalanche de preocupações que nem a deixava ler a edição de domingo
do jornal local.
— Susannah?
No mesmo momento ela soube que era Jill, embora a voz da moça soasse um
pouco estranha.
— Jill? É você? Algum problema?
— Não... bem... acho que sim. É que... Você ficaria aborrecida se alguém... Helen
Perkins... ela me substituía nas férias, no tempo do juiz Randall... você a conhece.
— Jill! É claro que conheço Helen Perkins. Ela trabalha meio período como escrivã
no tribunal — a juíza disse, procurando compreender o que a moça queria dizer. — Jill,
por favor! Explique-se.
A secretária riu nervosamente e depois ficou em silêncio. Quando tornou a falar, a
voz estava firme.
— Se não se importar, eu gostaria de faltar ao trabalho por alguns dias.
— É claro que não me importo. De quanto tempo precisa?
— Espero estar de volta na quinta-feira. Já falei com Helen e ela estará no
gabinete amanhã às nove horas.
Havia uma nota de apreensão, quase medo, na voz da moça, que deixou
Susannah perturbada.
— Há algo errado, Jill, eu sei. Posso ajudar?
— Não há nada errado, acredite.
— Está falando com uma amiga, Jill, não com a juíza. Não quer me contar o que se
passa?
— Você se lembra do rapaz sobre o qual lhe falei, aquele que não estava mais
respondendo minhas cartas? Bem... é ele.
— Jill, que maravilha! Você o encontrou?
Notando que a moça não demonstrava nenhum entusiasmo, Susannah preocupou-
se.
— Espero que não tenha tido más notícias.
— Não, não foram más notícias. Bem, preciso desligar. Até quinta-feira.
Vagarosamente Susannah recolocou o fone no gancho. Havia algo errado. Ficou
triste ao perceber que a secretária não havia confiado nela, o bastante para lhe fazer
confidências, fechando-se numa atitude fria, muito semelhante àquela dos primeiros
meses de sua convivência.
Dando uma olhada no relógio, levantou-se do colchão de ar e entrou em casa.
Tirou os short e a miniblusa que usava para apanhar sol, tomou uma ducha e vestiu um
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oferecer. Tive um relacionamento maravilhoso com minha mulher. Depois que ela
morreu...
Susannah colocou a mão no braço dele, fazendo-o calar-se e riu da expressão
preocupada que viu nos olhos cinzentos.
— Ficaria mais à vontade se eu lhe dissesse que, quando pediu para entrar, fiquei
com medo que estragasse nossa amizade querendo algum tipo de compromisso? Quero
você apenas como amigo, Nathan, e espero que possamos nos ver de vez em quando.
— Até que o homem de sua vida apareça, Susannah?
Uma sombra de melancolia passou pelo rosto dela, cobrindo o brilho dos profundos
olhos castanhos.
— Ele já veio — ela explicou — e se foi.
Ele sorriu de leve, cheio de solidariedade pela dor que adivinhou e dirigiu-se para a
porta.
— Quanto à campanha, manterei contato com você e Jack. Se precisar de alguma
coisa, procure-me Susannah. Boa noite.
Ela fechou a porta pensando em tudo que acontecera. Nathan era um homem
maravilhoso e ela estava feliz por que o teria como amigo.
CAPÍTULO XII
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Com passos firmes e rápidos, Dan passou sob a lâmpada da esquina e saiu do
arco de luz, mergulhando novamente nas sombras. Odiava ter que agir como um fugitivo
para ver a mulher que amava, mas ficou aliviado ao ver que os moradores da rua
pareciam estar adormecidos.
Quando entrava no jardim de Susannah, um carro virou a esquina. Sentindo-se
extremamente ridículo, escondeu-se entre os arbustos, até que o veículo, em marcha
irritantemente lenta passasse.
Dirigiu-se então rapidamente para a casa escura e quando chegou à pequena
varanda a porta abriu-se. Ela estava esperando por ele, numa vestimenta longa, cuja cor
clara parecia luminosa na obscuridade e lhe dava uma aparência irreal. Temendo vê-la
desaparecer, estendeu a mão e tocou-a, sentindo a maciez da seda. Ela o tomou pela
mão e ele entrou, abraçando-a, murmurando palavras de amor e saudade. As bocas
finalmente se encontraram, num beijo longo e profundo.
Com mãos impacientes, ele abriu o quimono que ela usava e fêz-lo deslizar pelos
ombros até cair no chão, deixando-a apenas com a camisola fina e curta.
Com pressa, em tirá-la, ele deslizou as mãos por baixo das dobras macias,
procurando a suavidade de cetim da pele morna, Apanhou os seios redondos nas palmas,
sentindo os mamilos que se enrijeciam, quase perdendo o controle. Retirou as mãos
abraçando-a pela cintura.
— A menos que goste de fazer amor no chão frio, acho melhor irmos para o quarto
— ela murmurou com voz quente e gutural.
Caminharam abraçados pelo corredor e ao chegarem ao quarto ela acendeu uma
luz pálida e indireta que revelou a enevoada expressão de desejo dos olhos escuros. Ele
apertou-a com mais força, enfeitiçado pelo olhar sensual, mas ela afastou-o com de-
licadeza, fazendo-o temer, por um instante, que o estivesse rejeitando.
— Vamos para a cama, Dan — ela convidou. — Pode ser que amanhã eu me
odeie por isto, mas agora tudo o que quero é você.
Sem nenhum acanhamento, à vontade na frente do homem amado, tirou a
camisola e começou a ajudá-lo a desabotoar a camisa. Quando finalmente o viu nu,
abraçou-se a ele fazendo-o sentir o calor dos seios contra o peito musculoso e rijo.
Ele se deixou cair na cama puxando-a sobre si, buscando-lhe os lábios cheios e
úmidos em beijos ansiosos, entremeados de murmúrios incoerentes ditados pelo desejo.
A urgente necessidade que ele sentia de mergulhar no corpo excitante aumentava entre
carícias loucas, mas adiava aquele momento, saboreando todas as delícias do contato
alucinante.
Por fim, a paixão instigada tornou-se uma tortura insuportável e Susannah rolou
para o lado, puxando-o, enlaçando-o com as pernas longas, chamando-o para dentro de
si, arqueando o corpo para encontrá-lo. Então ele deixou de resistir e entregou-se ao
torvelinho de emoções, perdendo a noção da realidade, apenas consciente dos espasmos
de prazer dos dois corpos.
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— Aquele homem, o Dexter, jura que estava nos campos no dia do acidente com o
herbicida, na mesma hora que você, e que não viu nenhum líquido vazando do tanque do
avião.
Martin franziu a testa, pensando.
— Que coisa maluca! Lembro-me de que ele vinha pela estrada em sua
caminhoneta e que parou um pouco para conversar comigo. Depois seguiu seu caminho e
tornou a parar mais adiante colocando a cabeça para fora. Olhou para o avião que voava
baixo fazendo um barulho danado.
— O aparelho estava longe?
— Mais ou menos. Se estivesse mais perto nós dois teríamos ficado encharcados
de herbicida.
— Dexter insiste em dizer que não viu nenhum vazamento.
— Não entendo — Martin sustentou, verdadeiramente confuso.
— Ele teria alguma razão para mentir, estando sob juramento?
— Acho que não mas, mesmo que tivesse, não mentiria. Conheço Dexter muito
bem. É um machão exibido, mas ficaria com medo de incorrer em falso testemunho.
— Tem que haver uma explicação — Dan insistiu.
— Tive uma idéia. Talvez ele não tenha mesmo visto. Freqüentei a escola com ele
e os professores o obrigavam a colocar óculos na sala de aula. Assim que saía, os tirava.
Pode ser que não veja bem.
— Não estava usando óculos quando testemunhou... — o advogado ponderou.
— Acho que não precisa usar o tempo todo, mas é necessário enxergar muito bem
para ver algum tipo de líquido escorrendo de um avião a distância.
Depois de falar com o fiscal e descobrir no Departamento de Trânsito que Dexter
trazia uma observação na carteira de motorista obrigando-o a dirigir de óculos, Dan havia
descoberto um ponto para derrubar o depoimento do homem, mas ainda não estava
satisfeito. Corwin não terminara sua parte e tornava-se cada vez mais difícil combater os
testemunhos apresentados.
À noitinha, foi para o hotel, esperar notícias do Alasca. Às oito horas ainda
esperava, de modo que mandou buscar pizza e cerveja, jantando no quarto. Às nove,
parecia uma fera enjaulada andando de um lado para outro do quarto. Sentindo que um
bolo de tensão lhe pesava no estômago, acabou por apagar a luz e esticar-se na cama
tentando relaxar.
Às nove e vinte e sete exatamente, o telefone tocou. Na pressa de tirar o aparelho
do gancho, derrubou a base no chão com estrondo.
— Dan? Que diabo está acontecendo aí? Terremoto? — Oliver gritou.
— Pegaram Resty? — ele perguntou com impaciência.
— Nós o encontramos — o detetive informou. — Não posso dizer que o pegamos,
porém. Ele não quer testemunhar.
Dan resmungou aborrecido.
— Boas notícias — ironizou.
O detetive riu, nada preocupado.
— Eu poderia intimá-lo, já que ele não sabe que não pode ser forçado, mas aquela
mulherzinha intrometida não quer me deixar.
— Jill? — o advogado perguntou, imaginando a moça discutindo com o calejado
Oliver.
— Quem mais? Disse que se eu insistir vai contar ao rapar que ninguém pode ser
intimado, vivendo em outro Estado, a menos que seja caso de assassinato. Garante que o
convencerá apenas com conversa. O que acha?
— Deixe-a fazer o que bem entender, Oliver. Vamos torcer para que consiga
convencê-lo.
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Logo em seguida Dan desligou, pensando que seria bom Jill conseguir trazer o
teimoso Resty rapidamente. Corwin estava acabando de apresentar as testemunhas e
depois seria o momento do outro advogado rebater as declarações feitas, mas aquilo de
nada adiantaria se não pudesse apresentar o depoimento do piloto. Imaginou quanto
tempo poderia prolongar o interrogatório das outras testemunhas menos importantes
antes que Corwin se pusesse a protestar e Susannah descobrisse seu jogo e o mandasse
parar.
Havia mais um problema. Trazer Resty para Cacheton era uma coisa, mas fazê-lo
depor era outra muito diferente. Não se podia apresentar um novo depoimento depois do
caso exposto pelos dois advogados e, a menos que uma das testemunhas de Corwin
declarasse que o tanque de herbicida estivera em perfeitas condições de uso, ele não
poderia colocar Resty no banco para depor.
Às seis e meia da manhã o telefone o despertou de um pesadelo em que via
Susannah afastar-se dele num iceberg, perdendo-se num mar escuro. Era Oliver,
parecendo extremamente satisfeito.
— Pegamos o homem, Dan! Aquela garota é demais. Vamos sair de Juneau dentro
de vinte minutos.
— Quando calcula que estarão aqui?
— À noitinha.
A conversa terminou e Dan deitou-se novamente, pensando no que faria com a
testemunha, como arrumaria uma deixa para apresentar o novo depoimento. Seria bom
se pudesse discutir o assunto com Susannah, como havia feito tantas vezes no passado,
quando os dois juntos tentavam solucionar os intrincados problemas legais.
Hesitou por algum tempo, mas acabou por discar o número da casa dela. No
quarto toque ele ouviu a voz morna e lânguida de sono.
— Juíza Ross falando.
— Bom dia, senhora. Está na hora de acordar.
Depois de um breve silêncio ela deu uma risadinha divertida.
— Dan, seu palhaço! Não deve ficar me telefonando!
— Liguei apenas para lembrá-la de que o encontro na montanha se aproxima.
— Como se eu pudesse esquecer! Agora, doutor, pare de quebrar o regulamento.
Nos veremos na corte. Tchau!
Ela desligou e ele colocou o telefone no gancho com um suspiro resignado.
Naquela manhã, Dan ocupou seu lugar no tribunal cheio de preocupação, quase
certo de que trouxera Resty do Alasca para nada.
Corwin chamou Ashton, o proprietário da companhia de pulverização Ag Dusters e
começou a interrogá-lo sobre sua experiência no trabalho e fazê-lo descrever os sistemas
de segurança usados. Nada de muito interessante para o outro advogado, que ouvia as
respostas com desânimo. Então, de repente, Corwin fez uma pergunta que poderia mudar
tudo, dando oportunidade para a apresentação de Resty.
— Sr. Ashton, como chega à conclusão de que o equipamento de pulverização de
qualquer dos aviões está em condições adequadas para uso?
— Bem, eu próprio examino tudo e se percebo alguma anormalidade chamo um
dos mecânicos. Depois faço novo exame.
— Segue essa rotina antes de cada vôo?
— Sim, senhor.
A pulsação de Dan acelerou-se, mas ele se controlou, aparentando calma.
— Naquele dia, tratado neste caso, examinou o avião que ia sair para pulverizar o
campo vizinho à plantação de tomates da Fazenda Minerva?
— Sim, senhor.
— E a que conclusão chegou?
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CAPÍTULO XIII
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Ao abrir a toga para a juíza colocar os braços nas mangas, Jill parou no meio do
gesto e estudou o rosto da amiga.
— Não parece muito contente.
— Este julgamento está me perturbando. Se eu soubesse que ia ser tão
estressante, teria me desqualificado quando tive a oportunidade.
— Mas disse que o dr. Sullivan está fazendo um bom trabalho!
— O que, infelizmente, não é suficiente para fazê-lo ganhar a causa. — A juíza
suspirou. — Dentro de poucos dias terei que anunciar à corte que os jurados deram a
vitória a Corwin.
— O que a faz pensar assim?
— Ontem, o proprietário da Ag Dusters, Ashton, declarou sob juramento que
examinara pessoalmente o tanque de herbicida que Martin jurou haver visto vazando e
que o encontrara em perfeitas condições.
— Não é a palavra do dono da empresa acusada contra a do fiscal? Por que
Ashton não poderia estar mentindo?
— O júri acreditou nele.
— Como sabe?
— Intuição, talvez, ou experiência. Ashton mostrou-se um homem tão decente e
agradável que os jurados querem acreditar nele. É uma pena que Dan não haja
conseguido ninguém para reforçar o testemunho de Martin, o fiscal.
— Ainda há tempo. Ele não terminou de apresentar as refutações.
Como a moça podia saber daquilo se Susannah nada comentara a respeito?
— Se ele pudesse, já haveria apresentado a testemunha, mas a verdade é que não
tem nenhuma — a juíza explicou. — Assim, os jurados imaginam que Martin mentiu para
agradar os patrões e conservar o emprego.
— Nunca pensei que fosse tão pessimista. Lembre-se do ditado que diz que
enquanto há vida há esperança. O caso ainda não terminou — a moça comentou
animada.
A juíza achou-a muito cheia de entusiasmo e olhou com suspeita o sorriso
luminoso que Jill lhe deu antes de vestir-lhe a toga. O que estaria acontecendo com a
secretária? Ao mesmo tempo que parecia esfuziante de alegria secreta, fechava-se numa
reserva estranha, sem confiar na amiga. Não era aconselhável forçar confidências, mas
aquilo doía como uma espécie traição.
Susannah abotoou a toga no pescoço e foi para a porta em silêncio. Entrou na sala
de julgamento sentindo-se estranhamente ferida.
Enquanto Dan prosseguia no interrogatório final de rebate aos ataques de Corwin,
o desânimo caiu sobre a juíza. Percebia que, embora os peritos trazidos ao banco de
testemunhas estivessem fazendo um esplêndido trabalho respondendo as perguntas, os
jurados haviam perdido o interesse e mal ouviam o que era dito. Depois do depoimento do
proprietário da Ag Dusters, o clima havia mudado. Aparentemente, apesar dos esforços, o
homem que amava perdera a causa.
Durante o recesso do meio da manhã, Jill levou-lhe café, mas com pressa de voltar
para sua sala, de modo que Susannah não a convidou para lhe fazer companhia, como
costumava.
De volta ao julgamento, a manhã arrastou-se e as testemunhas sucedaram-se até
o intervalo para o almoço. A tarde, o monótono desfile recomeçou fazendo com que a
juíza desejasse que Dan acabasse com aquela agonia que não levaria a nada. Não era
possível que ele não houvesse percebido o estado de espírito dos Jurados.
Depois do intervalo para o café, quebrando as regras que a si mesma impusera,
olhou para ele ao ocupar sua cadeira no tablado. O advogado não percebeu o olhar, pois
estava conversando com uma testemunha que ela ainda não vira. Bateu com o martelo na
mesa, reabrindo a sessão. Dan olhou-a e ficou em pé.
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— Excelência, gostaria de chamar o sr. Oreste Kerns para depor — declarou ele,
indicando o homem ruivo, de bigode atrevido, sentado a seu lado.
Enquanto o homem prestava juramento, a juíza observava-o, estranhando a
expressão de triste determinação que transparecia no rosto jovem e simpático. Era
evidente que ele não estava feliz por achar-se ali e ela ficou curiosa para saber o motivo.
— Jura dizer a verdade, toda a verdade, nada além da verdade?
— Juro!
Dan deu um passo à frente para começar o interrogatório e ela, em seu coração,
desejou-lhe boa sorte. Depois esforçou-se para esquecer que amava aquele homem e a
vê-lo apenas como um advogado em sua corte.
— Qual é sua profissão, sr. Kerns?
— Piloto aviões.
— Onde trabalha atualmente?
— No departamento de esportes de uma companhia de turismo em Juneau,
Alasca.
— Onde trabalhou antes de ir para o Alasca?
— Aqui em Cacheton, River County, Califórnia, para o sr. Ashton, da Ag Dusters.
— O que fazia?
— Comecei como sinaleiro e mais tarde passei a pilotar aviões de pulverização.
— Quanto tempo trabalhou para o sr. Ashton como piloto?
— Seis anos.
Ela devia saber que Dan trazia uma carta escondida na manga, um trunfo para o
último momento. A nova testemunha conseguira despertar a atenção dos jurados e
Corwin ouvia as respostas com rosto de pedra. Pela primeira vez, desde que o julgamento
começara, Ashton não se achava na corte.
As perguntas e respostas prosseguiram, esclarecendo que Ores-te Kerns havia
pilotado o avião cujo suposto vazamento de herbicida matara a plantação da Minerva e o
rosto de Dan brilhava de excitação antecipada pelo que seria dito a seguir.
— Sr. Kerns, o avião e o equipamento de pulverização estavam em condições
apropriadas para o uso no dia em questão?
— Eu achei que estavam.
— O que o fez acreditar que estava tudo em ordem? Houve um longo momento de
hesitação e era visível o ar de
tristeza que passou pelo rosto da testemunha.
— O sr. Ashton disse que estava tudo bem.
— Durante o trabalho de pulverização sobre o campo vizinho à plantação de
tomates sobre a qual passava a cada volta, continuou a acreditar que o equipamento
funcionava bem?
— Não, senhor.
— Por favor, explique isso ao júri.
— Bem, a princípio estava tão certo de que tudo estava em ordem que nem prestei
atenção. Fazia a volta sobre a plantação de tomates tomando cuidado para não bater nos
fios telefônicos, de modo que não estava pensando em nada que não fosse a manobra
até que me pareceu ver líquido escorrendo. Olhei bem e percebi que o tanque de
herbicida vazava.
— Sabe quanto tempo já havia vazado antes que percebesse?
— Dan indagou.
— Penso que vazou o tempo todo da operação, porque quase não havia mais
líquido no tanque quando voltei ao hangar.
— Entendo. Mais uma coisa, sr. Kerns. Por que saiu de Cacheton e da empresa do
sr. Ashton?
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Naquela noite ela esperou pelo telefonema de Dan. Ficou na cama, com as luzes
apagadas, mas completamente desperta e ansiosa. Quando o telefone tocou, atendeu
imediatamente.
— Alô? — disse uma voz morna.
— Devo ter discado o número errado. Parece mais Marilyn Monroe que a austera
juíza. — A voz de Dan soou brincalhona.
Susannah ficou muda, sentindo-se frustrada. Queria cumprimentá-lo pelo trabalho
maravilhoso que fizera no tribunal, mas qualquer menção ao julgamento era tabu. Queria
perguntar se Oreste Kerns era mesmo o namorado perdido de Jill e o que Dan tinha a ver
com a estranha viagem da secretária, mas não podia.
— Dan — ela acabou por suspirar. — Tenho uma porção de coisas para lhe dizer e
todas elas são contra o regulamento.
— "Eu amo você" quebra alguma regra? — ele perguntou.
A primeira hora da sessão de sexta-feira pertenceu a Corwin, cujo discurso final foi
forte em hipóteses e retórica e fraco em fatos. Dan apresentou o argumento do cliente.
Susannah instruiu os jurados sobre os pontos da lei a serem considerados e mandou-os
para a sala do júri para começarem as deliberações, retirando-se em seguida para o
gabinete.
Quatro horas mais tarde a corte tornou a reunir-se para ouvir o veredicto. Quando
todos se achavam em seus lugares, o oficial de justiça entregou a Susannah o papel com
o resultado das discussões dos jurados. No primeiro instante ela não pôde acreditar no
que leu. Não era possível. Aquilo estava errado.
Os olhos castanhos pousaram sobre os jurados, depois voltaram-se para os
advogados. Todos a fitavam imóveis, esperando ouvir o veredicto.
— O júri decidiu que o queixoso deve receber uma indenização de... — ela hesitou,
achando quase impossível ler em voz alta o número que representava cem mil dólares a
mais do que o total de prejuízo que Dan havia provado.
Finalmente leu o número e houve um silêncio espantado. Os dois advogados
pareciam estupefatos e de repente ergueu-se um zumzum de conversas abafadas.
Corwin ergueu-se e olhou em volta. Susannah bateu com o martelo impondo
silêncio.
— Excelência, gostaria que o júri fosse consultado sobre a possibilidade de ter
havido algum engano.
Tinha que haver erro. A quantia era tão exagerada que Corwin com toda a certeza
pediria novo julgamento. E o caso Minerva já lhe esgotara a paciência.
Não houvera engano, porém. Ficou claro que o veredicto expressava a vontade
unânime do júri, não deixando nenhuma alternativa a Susannah, que agradeceu aos
jurados pelos serviços prestados, dispensou-os e encerrou a sessão. Retirou-se para o
gabinete, enquanto Dan e seu cliente, Bancroft, reuniam-se a um grupo de pessoas da
Fazenda Minerva que havia vindo para ouvir o veredicto. Obviamente, todos estavam
extremamente satisfeitos com o resultado do julgamento.
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Tirou a toga, sentindo-se derrotada. Deixou-se cair em sua cadeira olhando para o
nada, antevendo o que aconteceria a seguir. Falou com Jill pelo intercomunicador,
pedindo-lhe que atendesse a todos os telefonemas e que não permitisse que fosse
perturbada.
Como poderia fazer Dan entender que sua consciência não lhe permitiria ir com ele
para o riacho Patch até ter certeza de que Corwin não entraria com uma apelação para
novo julgamento? Se o veredicto houvesse sido razoável, não haveria motivo para
esperar protestos e ela ficaria livre para ir aonde e com quem quisesse, mas sob as novas
condições criadas, o assunto continuava em suspenso.
Não conseguia imaginar por que os jurados haviam decidido conceder uma
indenização tão alta, pois Dan baseara-se no depoimento dos peritos em agricultura para
provar que a colheita haveria sido de cem toneladas por hectare e pedir uma quantia
compatível com os prejuízos.
Refletindo, descobriu, de repente, em que os jurados haviam baseado sua decisão:
nas cento e vinte toneladas por hectare que Bancroft mencionara levianamente e no que
fora apoiado pelo perito da companhia de conservas, um tipo, aliás, bastante envolvente.
Corwin ficara tão possesso com o exagero dos dois depoimentos que debatera
demais a questão, conseguindo apenas fixar a quantia de cento e vinte toneladas na
mente dos jurados. Um caso típico de feitiço virando contra o feiticeiro. Podia ser também
que o júri houvesse tomado uma atitude vingativa. Ashton fora pego numa mentira e
aquilo criara um clima de irritação entre os jurados.
A luz do intercomunicador sobre a mesa começou a piscar, e quando todos os
seus esforços para ignorá-la tornaram-se inúteis, apertou o botão impacientemente.
— Detesto ter que interromper seu descanso, Susannah — a secretária desculpou-
se —, mas faz meia hora que o dr. Dan quer falar com você no telefone. Sinto muito, mas
não posso mais me negar a passar a ligação para você.
— Não pode imaginar quantas vezes ele consegue o que quer usando a tática da
insistência irritante. Coloque-o na linha.
Precisava enfrentá-lo, mas não pôde deixar de estremecer pensando na reação
dele, sabendo que não seria fácil fazê-lo aceitar o que teria que dizer.
— Queria falar comigo, Dan?
— Sempre quero, meu amor. Quanto tempo precisa para partir comigo para a
montanha? — A voz estava cheia de excitação, exuberante de alegria pela vitória recente.
— Não posso, Dan. Tão cedo, pelo menos, não posso.
— Susannah! Que inferno! Você prometeu que quando o caso estivesse terminado
iria comigo. — Descrença, raiva e frustração haviam apagado todo o entusiasmo da voz
querida.
— O caso não terminou, Dan, e você sabe disso. Acha que Corwin não vai apelar
contra o veredicto e pedir novo julgamento?
— O que há de errado com o veredicto? Acha que eu não merecia vencer?
— É claro que merecia, Dan! Estou falando da indenização exorbitante.
— O júri não a considerou "exorbitante".
— Cem mil dólares a mais do que você provou ser justo? É por isso que o caso
não terminou e, para ser franca, nem deveria estar discutindo isso.
— Não me venha com seus princípios exagerados, Susannah! São duvidosos após
a quebra de uma promessa — ele atacou-a com amargura.
— Não quebrei nenhuma promessa! — Ela precisou controlar a voz para não gritar.
— Disse que iria com você para a montanha quando o julgamento estivesse encerrado.
Suponha que Corwin apele. Como vou ficar?
— Droga, Susannah! A lei dá a Corwin dez dias para apelar. Acha que vou ficar por
aqui durante todo esse tempo, esperando que meu ilustre oponente entre com o
requerimento?
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Era bem próprio de Dan tornar tudo difícil. Ela perdeu a paciência.
— Ninguém espera que você fique aqui em Cacheton durante dez dias. Preencha
as formalidades e vá embora!
— Muito bem, Susannah, se Corwin apelar, poderei ser encontrado em meu
escritório em Fresno. Pra mim chega!
— Dan, querido! Oh, Dan, sinto muito!
— Eu também, Susannah, porque a amo. Mas como às vezes desejo não havê-la
encontrado!
CAPÍTULO XIV
— Dan... — Susannah gemeu, sem saber o que dizer. Queria mantê-lo no telefone
até que a raiva que o dominava esfriasse, mas era tarde demais. Ele desligou. Não podia
deixar que fosse embora sem lhe dizer que o amava e que odiava aquela situação tanto
quanto ele. Com dedos trêmulos discou seu número no hotel, apenas para descobrir que
ele não ligara de lá. Deixou recado para que ele telefonasse, mas sentia que seria inútil
esperar. Jill bateu na porta, tirando-a dos pensamentos angustiosos.
— O que aconteceu, Susannah? — a secretária perguntou alarmada com a palidez
da outra mulher.
— É este julgamento infernal — a juíza explodiu.
— Pensei que estivesse eufórica. O pessoal do tribunal disse que o veredicto caiu
do céu para o cliente do dr. Dan.
— Sim, e caiu do inferno para mim.
Os olhos da moça encheram-se de curiosidade.
— Desculpe perguntar — ela disse com cautela —, mas isso tem algo a ver com o
dr. Sullivan?
— Tem a ver com aquela absurda indenização concedida à Fazenda Minerva, que
vai me manter presa ao caso. Corwin ainda pode apelar. E Dan vai embora para Fresno
louco da vida com a situação e comigo.
— Não diga!
Naquele momento, Susannah precisava da simpatia de alguém, de um ouvinte
para o desabafo e abriu-se com a moça, fazendo um resumo dos fatos que haviam levado
à desavença com Dan.
— Quando lhe disse, há poucos instantes, que não poderia ir acampar na
montanha com ele até que tudo se definisse, agiu como se eu houvesse traído sua
confiança.
— Puxa! — foi o comentário de Jill.
— Estou fazendo o que é certo.
Como a secretária nada respondesse, a juíza olhou-a com firmeza.
— Você concorda, não é? Fiz o que devia. Ainda sem resposta, Susannah, irritou-
se.
— Queria falar comigo, Jill? — perguntou quase áspera.
— Desisto, se ainda está presa ao caso Minerva.
— Dê-me uma pista, pelo menos.
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— Ia contar-lhe onde estive e o que fui fazer, mas isso pode esperar.
— Não haverá mal nenhum em me contar — a curiosidade dominou a juíza. —
Agora que o julgamento, para todos os efeitos, terminou, podemos conversar.
A moça balançou a cabeça.
— Terminou, mas você ainda está envolvida, portanto, acho melhor não dizer
nada.
— Se não a considerasse Miss Secretária Perfeita, diria que está tentando me
aborrecer. — A irritação era evidente na voz da juíza.
Caminhando para a porta, Jill olhou para trás.
— Ia me esquecendo. Lucille mandou avisar que os folhetos para a campanha
estão prontos. Ela está tentando arrumar gente para colocá-los nos envelopes. Também
me pediu para lembrá-la do jantar do Departamento da Agricultura hoje à noite, no Salão
Grange.
Chegando do jantar, um pouco depois das dez, Susannah ouviu o telefone assim
que colocou a chave na fechadura. Talvez fosse Dan. Temendo que a pessoa desligasse,
correu para dentro e tirou o aparelho do gancho com o coração batendo fora do
compasso.
— Susannah? Parece cansada. — A voz do pai, parecendo um pouco estranha,
preocupou-a.
— Papai, aconteceu alguma coisa?
— Não. Estava aqui pensando sobre sua campanha e resolvi ligar.
— Não se preocupe com minha campanha. Está em boas mãos, e o senhor, o que
tem feito? Está trabalhando para algum candidato?
Ela não gostou da risada artificial do pai.
— Estou descansando — ele respondeu com falsa despreocupação. — Os novos
candidatos do nosso partido não são lá essas coisas, portanto decidimos ficar de fora.
— Nós? — ela perguntou, imaginando quantos da geração do pai estariam sendo
postos de lado pelos mais jovens.
— Eu, Denning, Guido, White, O'Toole e o resto. — A voz era desanimada.
Ela sabia quem formava "o resto". Podia dizer todos os nomes dos amigos do pai
que haviam participado com ele de política e esportes por mais de meio século. Quando
haviam ficado velhos demais para jogar ou nadar, sua participação nos esportes limitara-
se a assistir a todos os jogos e competições juntos. A política, então, passara a ocupar
um espaço ainda maior em suas vidas. E estavam sendo privados até daquela paixão.
— Vocês estão certos — a filha consolou. — Esses novos candidatos emproados
não merecem a ajuda de uma equipe campeã.
Repentinamente sentiu remorsos ao lembrar-se de que ela mesma recusara sua
ajuda.
— Eu lhe disse para não se preocupar com minha campanha, pai, mas estamos
com um pequeno problema. Não temos gente para colocar os folhetos nos envelopes.
Todos os que estão me ajudando são pessoas muito ocupadas. Tem alguma sugestão?
— Dê gorjetas e logo terá um bando de jovens fazendo o trabalho.
— Papai! Estamos evitando pagar mão-de-obra. Esta é uma pequena campanha
de zona rural. Esqueceu? O dinheiro arrecadado é para impressos e cartazes. O trabalho
tem que ser voluntário.
O velho ficou em silêncio por alguns segundos.
— Seus eleitores ficariam ofendidos se eu e o resto da turma ajudássemos? —
Havia entusiasmo reprimido na voz do pai.
— Oh, papai, faria isso por mim? — Susannah disse, contente por ter seguido a
intuição.
Cobrindo-o de agradecimento, ela prometeu mandar a primeira remessa do
material impresso na segunda-feira de manhã. Quando se despediram, ela estava
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contente. O tom de autoconfiança havia voltado à voz do pai. O trabalho, de certa maneira
humilde, manteria a ele e a sua equipe ocupados e felizes por algum tempo.
Era possível adivinhar a ação diligente de Lucille e Jack por trás do telefonema de
Nathan, na manhã seguinte. Não havia tido notícias do amigo desde o jantar ao ar livre na
mansão histórica e ele queria saber se ela iria ao Festival de Maio em Barnstown, naquele
dia. Apanhada em falta, pois nem pensara nas possibilidades políticas do evento, ela
mentiu que havia planejado ir.
— Ótimo! — ele comentou. — Você ainda não entrou em contato com aquela
região da comarca. Pode conseguir várias centenas de votos.
A propriedade que Nathan possuía em River County ficava perto de Barnstown,
uma cidadezinha ao pé da colina, a meio caminho entre Cachetón e Sacramento. Ele
estaria lá e se ela fosse ao festival teria oportunidade de travar conhecimento com os
moradores.
Tendo pretendido passar o dia em casa, curtindo a amargura causada pela briga
com Dan, Susannah sentia-se pouco inclinada a comparecer à festa rural, mas o convite
era algo que ela não podia deixar de aceitar. Um pouco relutante, acabou por concordar
em encontrá-lo ao meio-dia na frente do antigo estábulo na rua principal, um ponto que
ela acharia facilmente.
Teve que apressar-se para chegar ao encontro na hora marcada, mas ao meio-dia
estava junto de Nathan, que a cumprimentou e imediatamente começou a falar sobre o
assunto que seria o único daquele dia: a campanha.
— Gostaria de falar com você sobre a cobertura da campanha pela imprensa. Jack
me disse que nada foi feito a esse respeito, por enquanto. Conhece o diretor do Correio
de Cacheton, Lew Hadley?
— Muito pouco — admitiu ela. — Uma vez tive que chamar a atenção de um
repórter dele sobre um erro grave na cobertura de um julgamento. Acredito não ser bem
vista no jornal.
— Lew dirige tudo com honestidade e recusa-se a ser comprado por anunciantes
ou favores especiais. Não vai deixar-se influenciar por falatórios.
— Está insinuando que eu deveria pedir a ele que me apoiasse através do jornal?
Nathan, não sou boa nessas coisas.
— Então não peça, Susannah.
— O que acha que eu deveria fazer?
— Pensaremos em alguma coisa. Você precisa aparecer no jornal. Faz alguma
objeção a um debate entre os três candidatos, digamos, na Prefeitura?
— Não, mas e se Lew mandar o repórter que tem raiva de mim?
— Não haverá perigo, pois eu levarei o próprio Lew. Aquele foi outro dia passado
entre conversas e discussões políticas. Guiada pelo amigo, Susannah conheceu muita
gente e descobriu que estava começando a gostar das atividades da zona rural e do povo
da comarca.
Nascida e criada em San Francisco, onde havia abundância de casas em estilo
vitoriano, ela ficou encantada ao descobrir que Barnstown exibia uma notável coleção de
habitações daquela época perfeitamente conservadas. Quando soube que Nathan pos-
suía uma das mais antigas a três quilômetros da cidade e ele a convidou a visitá-la,
aceitou o convite com entusiasmo. No fim do dia seguiu-o em seu próprio carro até a
propriedade.
A casa era uma adorável construção de madeira, pintada de branco e de apenas
um andar, pertencendo ao estilo eastlake, e Nathan disse que fora construída em 1880.
Enquanto ela admirava o belo exterior com os alpendres sustentados por colunas de ferro
batido e trabalhado, terminadas em capitéis enfeitados, o amigo contava como comprara
a casa como presente de casamento para a esposa e como haviam vivido ali e sido
felizes até o dia em que ela morreu.
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— Não tenho tido sorte com inquilinos — ele explicou —, e agora estou procurando
caseiros.
Percorreram o interior que apresentava sinais de descuido.
— Se encontrasse comprador — ele continuou — preferiria vendê-la a vê-la
arruinando-se aos poucos.
Voltando para Cacheton, Susannah pensava na casa que a deixara encantada,
vendo-a como um refúgio, imaginando-a decorada com as cores claras que eram sua
marca pessoal.
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ficarem separados. Se tivessem ido à sierra naquela sexta-feira, que dano teriam causado
à corte ou àquele julgamento que ameaçava arrastar-se pela eternidade? Quando
voltassem a Cacheton ela continuaria a ser a juíza de mão de ferro e integridade
inabalável. Nada do que pudesse acontecer lá em cima, à beira do riacho Patch, afetaria
seu trabalho.
Não havia sido sempre assim, porém. Ela obedecera fanaticamente à ética como
advogada em San Francisco, mas muitas vezes ele fora capaz de apelar ao bom senso
evitando que exagerasse. Como juíza, teria ficado insensível a qualquer apelo ou
argumento? Talvez se tornasse insuportável viver à sombra de uma consciência como
aquela pelo resto da vida, mas não podia pensar naquilo enquanto não se livrasse da
desagradável tarefa de persuadir Bancroft a abrir mão dos cem mil dólares excedentes.
Parou na frente do escritório do cliente, derrapando no cascalho solto, e lançou-se
para fora da perua, marchando decidido para a porta. Ainda não sabia como lidaria com a
situação, mas não estava disposto a admitir que errara. Não pretendia dizer a Bancroft
que ficara tão perturbado pela presença de Susannah, no início do julgamento, e perdera
o controle. Se estivesse com a mente livre de pensamentos estranhos, jamais colocaria o
avaliador da fábrica de conservas para testemunhar.
De qualquer forma, não tinha a menor intenção de sair da fazenda sem o
consentimento do cliente para a redução da indenização. Atacaria com o argumento de
que aquela declaração sobre cento e vinte toneladas de tomates por hectare fora men-
tirosa e de que o exagero não suportaria um novo julgamento.
Uma hora mais tarde, ele saía do escritório de Bancroft. Conseguira convencê-lo a
aceitar uma indenização menor, mas ficara com a perturbadora certeza de que seu
ambicioso cliente faria tudo o que pudesse para vingar-se da juíza Susannah Ross.
Às três horas daquela tarde, estavam todos reunidos novamente no escritório da
juíza para o ato final do caso Minerva versus Ag Dusters. Às três e meia estava tudo
terminado, e Susannah, sozinha, imaginava quanto tempo Dan levaria para entrar em
contato com ela. O fato de ele estar emburrado nada significava. Ele se acalmaria vendo
o caso terminado e chegaria à conclusão de que ela estivera certa em não desejar
precipitar as coisas. Tudo entraria nos eixos quando estivessem a sós na montanha,
amando-se sob as estrelas.
O telefone tocou e ela estendeu a mão para atender, ansiosa. Estava pronta para
dizer ao homem amado que talvez eles pudessem encontrar um modo de continuar juntos
se realmente se amassem.
Mas era Jill, perguntando se Susannah tinha tempo para conversar um pouco. A
juíza engoliu o desapontamento e, quando a secretária atravessou a porta, foi recebida
com um sorriso eufórico.
— Está escrito em seu rosto que tudo acabou bem — Jill disse, também sorrindo.
— Sim, tudo acabou bem. Agora, mocinha, já pode me contar como conseguiu
trazer Oreste Kerns do Alasca salvando a causa de Dan.
— Não foi nada fácil — a moça admitiu.
Com sua típica eficiência, passou a contar os fatos com simplicidade e clareza,
explicando tudo o que acontecera sem o conhecimento da juíza desde que Dan a
questionara sobre Resty até o glorioso momento em que ela, Oliver Fox e o rapaz haviam
chegado a Cacheton.
— Resty relutou muito em vir e nem quis falar com o dr. Sullivan antes de ir contar
a Ashton o que ia fazer.
— O rapaz tem caráter. Qual teria sido a reação de Ashton?
— Acredito que tenha ficado contente por tudo terminar, apesar de que para ele o
problema não está encerrado. Mentiu sob juramento. Não vai ter que responder por
perjúrio?
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CAPÍTULO XV
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No caminho de volta para Fresno, Dan parou em Sacramento por quase dois dias.
Queria verificar algo que ele e o sócio Jerry haviam discutido exaustivamente no período
que ele passara em sua cidade, entre o julgamento e a audiência daquela tarde.
A conversa que tivera com Susannah ao telefone, na sexta-feira do término do
julgamento, matara todas as suas esperanças de um novo começo ou, pelo menos, fora
assim que sentira no choque inicial que recebera ao ser rejeitado. Chegara a Fresno de
mau humor, esperando encontrar o escritório num verdadeiro caos, com Jerry afastado do
trabalho e ele próprio longe dali por três semanas. Para sua surpresa, os dois jovens
advogados que trabalhavam para eles haviam dado conta do recado com a capacidade
de profissionais veteranos, com o aconselhamento do sócio que, em casa, continuava no
aparelho de tração que o hospital lhe emprestara ao conceder-lhe alta.
Jerry passara o tempo que Dan estivera em Cacheton planejando detalhadamente
a abertura de uma filial da firma Curtis & Sullivan em Sacramento. De acordo com os
planos, Dan estaria à frente do novo escritório, enquanto Jerry continuaria a dirigir a
matriz em Fresno. O registro de todos os serviços prestados à área agrícola do Estado
pelos dois sócios justificava a idéia de uma filial e Jerry confiava que o colega veria a
vantagem de tal empreendimento.
Apenas depois que o ressentimento contra Susannah arrefeceu foi que Dan
conseguiu ver a inovação como uma maneira de reconciliar sua carreira com a da mulher
que desejava para companheira. Cacheton ficava cerca de setenta e cinco quilômetros de
Sacramento e não seria impossível cobrir aquela distância duas vezes por dia. Ainda
assim, a dúvida persistia. Depois que se estabelecesse em Sacramento, ele teria tempo
para um minucioso exame de consciência, tentando descobrir se seria capaz de adaptar-
se à vida da mulher que, forçosamente, teria sofrido uma mudança de atitudes ao tornar-
se juíza.
Ele a amava mais que tudo no mundo, mas não estava disposto a viver de modo
diferente, por ter como esposa alguém que ocupava o mais alto posto da carreira
partilhada por ambos.
Depois de concordar com a redução da indenização devida à Minerva pela
companhia de seguros que cobria a Ag Dusters, na volta para Fresno, Dan parara em
Sacramento para assinar o contrato de aluguel do novo escritório. Relutava em sair de
Cacheton sem ver Susannah, mas acabara por decidir-se a deixar apenas uma carta.
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torcer uma regra para sua própria conveniência, é problema dele decidir se vale a pena
cair em tentação e correr o risco de ser descoberto.
Com tristeza, Susannah pensou que "torcer uma regra" por amor a Dan valeria a
pena. E como valeria!
— O juiz Randall devia ser mesmo um homem notável.
— E era — Jill concordou.
— Sinto não tê-lo conhecido.
Sem nem ela mesmo saber como aquilo acontecera, de repente a vida de
Susannah passou a girar em torno das eleições que se aproximavam. Todas as noites
havia reuniões, ou pessoas a quem visitar ou ainda eventos comunitários a que seus
conselheiros achavam que ela devia comparecer.
Encontrou-se fazendo e dizendo as mesmas coisas noite após noite,
incansavelmente. Apenas o ambiente e as pessoas eram diferentes, pois os assuntos
eram sempre os mesmos.
A rotina tornou-se tão monótona que em breve ela não sabia distinguir uma noite
da outra nem dizer o que acontecera em determinada reunião, a não ser algo muito bom,
muito ruim ou muito fora do comum que acontecesse em algumas daquelas atividades.
Por exemplo, a noite em que conheceu Resty a quem vira apenas no tribunal.
Conversando com o rapaz, descobriu que Jill não tinha com que se preocupar, pois ele já
estava percebendo que a moça ocupava um lugar muito importante em sua vida. Quando
olhava para sua amiguinha de infância, um sentimento muito profundo transparecia nos
olhos sérios e todos os traços do rosto jovem se suavizavam.
Inesquecível também foi o dia em que Jill jogou todo o decoro profissional para o ar
e entrou correndo no escritório da juíza, para comunicar que Resty não voltaria para o
Alasca e que resolvera comprar a Ag Dusters, usando as economias feitas durante os
anos de trabalho como piloto de pulverização e depois como piloto de reconhecimento,
este bem mais perigoso, porém bem pago. Ashton estava disposto a aceitar o dinheiro
que o rapaz possuía como entrada e receber o saldo em prestações. Só faltava fazer a
documentação e acertar todos os detalhes.
— Susannah, você notou como ele me olha? — Jill perguntou expandindo toda a
alegria que a dominava.
A juíza, sorridente, assegurou que notara, acalmando a moça que, aos poucos,
voltou à atitude sóbria de sempre.
— Muito bem, vamos voltar ao trabalho — a secretária encerrou o momento de
confidências.
Faltando pouco mais de duas semanas para a eleição, Susannah cumpriu o dever
de passar uma tarde ensolarada de sábado numa feira de artesanato e culinária em
Appleton, uma vila a oeste de Cacheton, habitada por grande número de pessoas idosas
e aposentadas. Não pôde resistir ao impulso de comprar um acolchoado de retalhos
desenhado e confeccionado por uma mulher que tinha a idade de seu pai e que unira, à
mão, centenas de pedacinhos de tecido, apesar de ter os dedos atacados por artrite.
Pensou que o acolchoado ficaria perfeito na cama de colunas que vira na casa de Nathan,
mas que certamente era grande demais para sua própria cama que, embora de casal, era
mais estreita, à maneira moderna.
Quando saiu da festa agradável e alegre, já era tarde. Mal teria tempo para tomar
um banho e vestir outras roupas antes de ir à casa de Lucille e Tack, participar do jantar
para o qual fora convidada.
Apressadamente, entrou em velocidade exagerada pelo portão de carros do jardim
de sua casa e a curva acentuada fez com que a torta que comprara na feira para o jantar
escorregasse no banco. Freando, abaixou-se para segurá-la e o carro parou brus-
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camente. Um sibilo estranho anunciou que algo estava errado. Arrumando a caixa da torta
no banco, ela olhou para fora e viu que tinha perdido a direção e o carro entrara pelo
gramado. Deu um gemido desanimado ao descer do carro e ver que o pneu fora furado
por uma estaca de metal que o jardineiro deixara enfiada no canteiro.
— Estourei um pneu — ela contou a Lucille no telefone alguns minutos mais tarde.
— Não posso andar por aí sem estepe e ficarei muito atrasada se for ao borracheiro.
— Não se preocupe. Mandarei alguém buscá-la — Lucille resolveu o problema,
ignorando os protestos da outra. — Estará pronta dentro de vinte minutos?
Quando a campainha tocou, Susannah abriu imediatamente, usando um vaporoso
vestido de voile estampado, em tons de verde e terracota e deparou com Nathan.
— Juiz! — ela exclamou, não escondendo o prazer que sentiu ao vê-lo. — Lucille
não me disse que seria você a vir buscar-me.
— Ela ia mandar Jack, mas eu insisti em vir.
O jantar foi uma refeição farta, típica do lar dos Krammer, e a conversa foi quase
exclusivamente sobre política. Pela primeira vez Susannah entendeu claramente por que
Nathan se lançara ao trabalho de sua campanha com o mesmo empenho que usaria se
fosse ele mesmo o candidato. Como Jack e seu próprio pai, Manfred Ross, ele era um
político nato. Ela suspeitava que iria vê-lo muito pouco depois da eleição, quando não
houvesse mais nenhuma campanha a fazer, principalmente se ela vencesse por um total
de votos superior à soma dos votos dos dois adversários. Segundo a lei, se isso
acontecesse, ela teria o cargo garantido por mais seis anos.
No fim da noite, quando já iam partir, Jack anunciou que tinha duas entradas para
a corrida de cavalos da exposição de Sacramento, no dia seguinte.
— Susannah, você precisa de um descanso. Que tal você e Nathan...
— Sinto muito mas não posso — os dois responderam ao mesmo tempo,
rompendo em riso.
— Obrigada, Jack — Susannah falou —, mas preciso ficar em casa e colocar uma
porção de coisas em ordem.
— Obrigado — o juiz agradeceu, sem maiores explicações. No carro, Nathan
olhou-a pensativo.
— Acha que Jack estava tentando alguma coisa?
— Reunir nós dois? — ela perguntou sorrindo. — Acho que sim.
— Bem, pensei em acabar logo com as ilusões dele, mas achei que não seria
delicado explicar que já tenho encontro marcado com outra mulher.
Era bom ter aquele homem encantador como amigo. Ela riu alto.
— Essa é uma risada honesta — ele comentou. — Existe uma tristeza indisfarçável
ao seu redor, Susannah. Pensei que fosse preocupação com a campanha, mas acho que
há algo mais que isso.
— Há, sim.
— Não quer me contar?
Olhando para ele, a juíza descobriu que precisava desesperadamente da opinião
daquele homem gentil, sincero e que era governado pelas mesmas regras de ética que
ela.
— Gostaria muito, mas devo avisar que é uma longa história.
— Tenho bastante tempo.
Voltando a dez anos atrás, a San Francisco, Susannah contou com sinceridade
completa seu relacionamento com Dan e como ele reaparecera em sua vida semanas
antes. Quando ele freou o carro em frente de sua casa, ela já lhe havia contado sobre o
encontro na sierra. Ele desligou o motor e ficou ouvindo enquanto ela descrevia o trato
que fizera com Dan de ir com ele novamente à montanha quando o julgamento estivesse
encerrado.
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Finalmente, ela contou sobre o veredicto e como ele fora para Fresno aborrecido
por ela haver se recusado a ir acampar com ele pensando na possibilidade de Corwin
apelar.
— O que me perturba agora, Nathan, é pensar que estou deixando que os
escrúpulos me ceguem. Estaria eu realmente obedecendo à ética ou caindo fora? Não sei
mais nada.
— Quem me dera ter uma resposta instantânea, minha que-rida. Essas coisas
funcionam de forma diferente para cada um. Muitas regras existem para proteger os
interesses da justiça, de modo que é uma questão de princípios obedecê-las. O resto fica
para cada juiz decidir sozinho, eu acho.
— Essas palavras parecem ter saído dos lábios do juiz Randall — Susannah
exclamou surpresa.
— De certa forma, acho que saíram mesmo. Eu trabalhava no escritório dele todas
as férias de verão quando freqüentava a faculdade. Devo ter assimilado muito do que ele
dizia e uma de suas declarações era de que o magistrado não devia fazer algo quando
sua consciência o avisava de que aquilo interferiria na aplicação da justiça. Se a
consciência não fizer nenhuma objeção, estará tudo bem.
Ele fez uma pausa e deu uma risada que parecia provocada por alguma
recordação.
— E ainda tem mais — ele continuou. — Ele sempre dizia que o juiz precisava
tomar cuidado para não se transformar num santarrão.
Susannah sorriu.
— Obrigada. Acho que agora só me falta aprender a decidir sozinha. — Ela
começou a desafivelar o cinto de segurança.
Ele desceu e deu a volta no carro para abrir a porta para ela.
— Acho que Jack tem razão, juíza. Você está precisando de descanso. Não quer
passar o dia comigo e Caroline? Vocês se dariam bem. Ela é uma velha amiga,
professora de medicina veterinária na Universidade da Califórnia em Daves e é uma
pessoa sensacional.
— Gostaria muito, Nathan, mas não me atrevo a parar até que essa eleição se
realize.
Aquele também fora um dia agradável, mas houve dias ruins. Tudo começou
quando Jack apareceu no tribunal para avisar que Bancroft estava colocando dinheiro e o
poder da Minerva numa campanha para derrotá-la. Mostrou-lhe um impresso maledicente,
cujo tema ela ouviria sem parar até quase o dia da eleição.
— E o que é pior — Jack disse sombriamente — estão dizendo que Bancroft está
apoiando Mel Parker.
— Mel vai ter que dividir os votos com Elmer Fairchild.
— Os votos de Elmer virão de antigas famílias que admiravam o pai dele, mas Mel
ficará com todo o resto.
— Parece desanimado, Jack.
— Ouça, Susannah, Mel só está interessado em duas coisas: dinheiro e ele
mesmo. Fará tudo para poder tirar proveito da posição de magistrado.
Na semana seguinte, ela sentiu todo o impacto da propaganda negativa de
Bancroft durante o encontro na Prefeitura quando os três candidatos tiveram chances de
fazer seus discursos. Sem falsa modéstia, ela podia dizer que seu desempenho fora muito
superior ao de Mel e Elmer, mas quando a parte de perguntas e respostas começou ela
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percebeu que todas as questões que lhe eram dirigidas giravam em torno do tema
erguido pelos folhetos caluniosos.
Parecia um perverso ataque premeditado e ela estava exausta quando acabou de
responder. Ficou acanhada quando Nathan lhe apresentou Lew Handley do Correio de
Cacheton. No calor do debate havia esquecido completamente a presença do jornalista e
sentia-se humilhada pensando que ele presenciara o massacre.
A noite foi um pesadelo e ela não se sentiu melhor nem quando Nathan assegurou-
lhe que Bancroft, julgando fazer-lhe mal, havia na realidade lhe dado uma oportunidade
de ouro para expor suas idéias e modo de conduta aos eleitores.
— O que Lew Hadley disse? — ela perguntou.
— Nada. Lew é caladão.
Na quarta-feira da semana precedente à eleição, Susannah já se havia resignado à
idéia da derrota. Escondia os sentimentos de seus animados colaboradores, mas sabia
que todo o trabalho da campanha e todo o otimismo de pessoas como lack e Lucille
seriam soterrados sob a avalanche insidiosa desencadeada por Bancroft.
Começou a pensar em como levaria a vida quando não fosse mais juíza, sem Dan
e sem a carreira que amava. Nos momentos de solidão aprofundava-se em pensamento,
voltando ao passado, sorrindo com humor irônico ao lembrar-se das palavras que sua
enérgica e ambiciosa mãe costumava dizer para animá-la.
— Não vou tolerar uma derrota, Susannah. Não criei minha filha para o fracasso.
Aquelas palavras sempre haviam funcionado, mas daquela vez tudo parecia
realmente perdido.
CAPÍTULO XVI
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Resty voltou logo em seguida com um punhado dos papéis ofensivos e espalhou-
os na mesa. Dan estudou-os por um momento e quando tornou a olhar para o rapaz os
olhos estavam cheios de ira gelada.
— Quem está no comando da campanha da juíza? — ele perguntou em voz baixa
e controlada.
— Jack e Lucille Kramer, mas o juiz Nathan, aqui de Sacramento, tem dado sua
colaboração, trabalhando muito para que ela fique bastante conhecida.
Alguns minutos mais tarde, Resty voltava para Cacheton e Dan ligava para Nathan.
Dois dias depois, na quinta feira, Dan e Nathan estavam no balcão de recepção do
Correio de Cacheton esperando que Lew Hadley voltasse do almoço. Quando o homem
chegou, o juiz encaminhou-se para ele.
— Lew, este é Dan Sullivan, advogado da Minerva no julgamento do caso dos
tomateiros destruídos.
O jornalista olhou para o advogado cumprimentando-o com um gesto de cabeça.
— Desejo colocar um anúncio, ou melhor, uma carta aberta à população na edição
de sábado e também na de domingo — Dan explicou. — Aqui está o texto.
Ele levara dois dias rasgando tudo o que escrevia, inutilizando textos furiosos, até
que conseguira redigir uma carta que agradara à sensibilidade política de Nathan.
— É evidente que você está furioso — o juiz explicara após cada rascunho
rejeitado. — Os leitores pensarão que você está empenhado numa vingança pessoal
contra Bancroft. Nem prestarão atenção às palavras, apenas ligados na possibilidade inte-
ressante de uma briga.
Depois de muito trabalho e exercício do autocontrole, o advogado produziu o texto
ideal.
"Carta aberta aos eleitores da comarca:
"Durante as últimas semanas, a integridade profissional da Juíza da Corte Superior
de Justiça de River County, Susannah Ross, tem sofrido um ataque incansável baseado
em inferências enganosas tiradas do caso Minerva versus Ag Dusters, ouvido pela juíza
no mês passado.
"Por causa do perigo de que os eleitores possam ficar influenciados por essa
informação caluniosa ao colocarem seus votos nas urnas na próxima terça-feira, sinto ser
de minha responsabilidade, como advogado da Minerva naquele caso, fazer um relato
correto dos fatos, de modo que todos possam julgar a situação com conhecimento de
causa.
"O veredicto deu à Minerva uma indenização consideravelmente excessiva, muito
além daquela pedida por mim para cobrir os danos cuja monta foi provada pelas
testemunhas. Quando, compreensivelmente, o advogado da companhia de seguros da Ag
Dusters pediu novo julgamento, a juíza Susannah Ross disse que, a menos que a
Minerva concordasse com uma redução da indenização imposta, teria que deferir o
pedido. Meu cliente concordou com a redução e não houve necessidade de outro
julgamento.
"A mudança do veredicto foi legal e correto, e não uma decisão arbitrária por parte
da juíza ou um desrespeito à vontade dos jurados como sugere o material ofensivo
espalhado pela comarca. A lei da Califórnia que prevê tal circunstância pode ser
encontrada no Código Civil do Estado, no artigo 662, parágrafo único, alínea b.
"Respeitosamente,
"Dan Sullivan, advogado."
O editor leu a carta vagarosamente e olhou para Dan e Nathan.
— O que acham de colocá-la ao lado do editorial de sábado no qual dou meu apoio
à reeleição da juíza?
Os dois homens olharam-no atônitos. Não podiam esperar que o Correio de
Cacheton tomasse tão declaramente o partido de Susannah.
"Adivinhe quem desrespeita o júri? A juíza Susannah Ross. Vote em Mel Parker
para juiz."
Num gesto irritado, Susannah virou o botão do rádio da cozinha procurando outra
emissora e acabou por desligar o aparelho. Aquele era um anúncio pago, naturalmente,
mas, a cada vez que ouvia seu nome ser ofendido no ar, tinha a impressão de que o
locutor lhe fazia um ataque pessoal.
Maio, que sempre fora seu mês favorito, havia lhe reservado golpe após golpe,
naquele ano. Pela primeira vez na vida sentira-se continuamente deprimida e havia
escondido muito mal aquele estado de espírito, mantendo um sorriso forçado.
Tinha certeza de que Jill percebera sua infelicidade, a saudade que sentia de Dan
e a desanimadora certeza de perder a eleição. Seu descontentamento consigo mesma
também devia ser evidente. Fora culpada por haver perdido o homem que amava e
estava prestes a perder o cargo que era tão importante para ela, por sua própria culpa
também.
Ficou de pé, olhando através da janela, para o quintal florido, tão distraída que
assustou-se quando a campanhia da porta tocou. Todavia não se moveu. Não queria ver
ninguém, nem mesmo Jill, que às vezes aparecia para uma breve visita. Dentro de
instantes teria que tirar o confortável quimono e vestir-se apropriadamente para a reunião
que Lucille e Jack haviam programado para aquele sábado, o último antes da eleição,
mas desejava ficar mais um pouco à vontade e sozinha.
A campainha soou novamente. Quem quer que estivesse na porta, era teimoso. Ao
terceiro toque, ela saiu da janela e atravessou a sala de estar até o vestíbulo, parando
para apertar o quimono ao redor do corpo antes de abrir a porta.
— Jornaleiro! — uma voz gritou.
Por um momento ela acreditou realmente que seu coração ia parar de bater. Ficou
muda, imóvel, como que hipnotizada pela visão do homem que significava mais que tudo
em sua vida.
— Posso entrar, madame? — ele perguntou, quebrando o encantamento.
— Dan... Dan... por favor, entre — ela disse tolamente, sentindo a garganta se
apertar e a voz sair esganiçada.
Ele a seguiu à cozinha e depois à copa, enquanto ela andava às tontas pela casa
até que, dominada por uma espécie de formalidade, quase timidez, ela o levou para a
sala de estar, indicando-lhe uma poltrona e dirigindo-se para outra.
— Trouxe-lhe um jornal — ele declarou estendendo-lhe um exemplar do Correio de
Cacheton. — Gostaria que desse uma olhada.
Ainda em pé, como se lhe fosse impossível sentar-se tranqüilamente, ela pegou o
jornal e colocou-o sobre a mesa de centro.
— Obrigada, Dan. Foi muito gentil. Vou lê-lo mais tarde — ela respondeu a parte.
— Não, Susannah. — Ele foi firme. — Quero que dê uma olhada agora.
— Se você ao menos pudesse imaginar como senti sua falta, Dan — ela disse
como que saindo de um transe. — Não percebe que parece que passou uma eternidade
desde que foi embora? Foi uma idéia gentil trazer-me o jornal, mas se pensa que vou ler
agora, está louco. Quero ficar aqui, olhando para você, saboreando este momento.
— Susannah...
Mas ela já estava ajoelhada ao lado dele, estendendo a mão para acariciar-lhe o
rosto.
— Dan, querido, vamos sair daqui e passar o fim de semana no riacho. Ficarei
pronta em menos de dez minutos.
Dan riu, verdadeiramente divertido.
— Agradeço a intenção, meu amor, mas sabe que não podemos fazer isso.
— Por que não?
— Você não pode ficar pegando peixes quando tem apenas quatro dias até a
eleição para pescar votos.
— Dan, estou falando sério. Enquanto esteve longe, pensei muito e cheguei a
algumas conclusões.
— Por exemplo?
— Certas coisas não são tão importantes a ponto de nos separar.
— Querida, escute...
Susannah beijou-lhe rapidamente a boca para silenciá-lo.
— E esta eleição é uma delas — continuou aflita. — Tanto faz que eu fique aqui
fazendo visitas ou vá ao riacho com você. A sorte está lançada.
Ela fez menção de levantar-se, mas ele lhe colocou as mãos nos ombros, retendo-
a.
— Solte-me, Dan. Preciso me preparar para ir pescar com você e não quero
pensar em nada que não seja nós dois.
Ele suspirou ruidosamente.
— Mal pude esperar para vê-la tão ansiosa em me acompanhar e quando isso
acontece preciso agüentar firme. A verdade é que eu nem devia estar aqui perdendo
tempo com você.
Ela olhou-o assombrada.
— Dan! O que está dizendo?
— Nathan e eu temos milhares de jornais para entregar até segunda-feira à noite e
precisamos organizar as equipes de garotos que nos ajudarão.
— De que é que você está falando? Conhece Nathan? — Ela sentou-se no chão
toda empertigada. — Dan Sullivan, pode me dizer o que está acontecendo?
Rindo, ele apanhou o jornal que ela abandonara sobre a mesinha.
— Isto! — ela disse, abrindo-o no editorial e dobrando o jornal de modo que ela
visse a carta, impressa em duas colunas e ao lado do artigo que Lew Hadley escrevera
apoiando sua reeleição como juíza.
Susannah acabou de ler e olhou-o entre lágrimas.
— Obrigada — ela murmurou.
Procurou um lenço no bolso do quimono e assoou o nariz.
— Droga!
Dan olhou-a confuso, sem entender o motivo da exclamação irritada.
— Logo agora, que eu ia lhe mostrar a nova Susannah! — ela exclamou. — Você
nunca acreditará que eu estava realmente disposta a largar tudo e fazer o que meu
coração pedia!
Dan escorregou para o carpete e tomou-a nos braços.
— Eu acredito. Acredito tanto que vou sugerir que nos casemos.
— Seria delicioso, mas espere até depois de terça-feira, querido. Ainda não disse
nada a ninguém, mas tenho certeza de que vou perder a eleição.
— Você não vai perder, mas isso nada tem a ver com nosso casamento. Que tal eu
morar aqui com você até que possamos achar uma casa para comprar?
— Seja realista, Susannah. Barnstown é uma cidade pequena, onde quase todas
as pessoas moram em casas que passam de pais para filhos. Não deve ser muito fácil
encontrar alguma coisa por lá.
Ela deu um sorriso de triunfo.
— Já encontrei, meu amor.
— Já? — ele perguntou abismado. — Como sabia...
— Não sabia de nada, apenas fui visitar uma propriedade que Nathan possui em
Barnstown e me apaixonei pela casa. Você também vai adorá-la. É do mais puro e lindo
estilo vitoriano.
— Talvez ele não queira vendê-la — Dan argumentou.
— Aí é que está. Quer, sim. Está cansado de vê-la sendo estragada pelas mãos
descuidadas de inquilinos, e disse que podemos fechar o negócio assim que nos
decidirmos.
Finalmente entusiasmado, ele segurou-a pelos ombros fitando os olhos castanhos
úmidos de emoção.
— Diga a Nathan que compraremos a casa se ele concordar em fazer nosso
casamento, na semana que vem — ele murmurou com voz emocionada. — No momento,
temos que ir à montanha, cumprir algumas promessas.
Escaparam do celeiro lotado de gente barulhenta e alegre sem serem notados.
Caminhando no escuro, em direção à perua, quase esbarraram em Jill e Resty que se
abraçavam no meio do caminho.
— Resty me pediu em casamento, Susannah — a moça explicou com voz excitada
e transbordante de felicidade.
— Oh, Jill, estou feliz por você!
— Parabéns, Resty — Dan cumprimentou o rapaz. — Jill é uma moça decidida e
corajosa.
— E eficiente — a juíza completou rindo. Recomeçaram a andar, de mãos dadas.
— Estão fugindo da festa? — a secretária perguntou curiosa. — Onde vão?
Susannah olhou para Dan e, por um longo momento, perderam-se nos olhos um do
outro. Finalmente, voltaram-se para a moça, sorrindo sonhadoramente.
— Pescar a felicidade — Susannah respondeu.