Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
NERY&BECK
Encordoando histórias do tênis
Escritos
Quando eu tenho que fazer um gesto difícil, eu recomeço,
persisto e, no final, o gesto sai. A partir de então, passo a
realizá-lo com desembaraço, com destreza cada vez maior.
Tudo acontece rápida e corretamente. Quando o treino
vence as primeiras inércias, é igual: o corpo torna-se leve,
ele responde. A alegria não é uma contemplação satisfeita
de um resultado obtido, a emoção da vitória, a satisfação
de ter conseguido. É o sinal de uma energia que se expande
na facilidade, é uma afirmação livre: tudo é fácil. A alegria
é uma atividade: executar facilmente o que é difícil e que
levou tempo, afirmar as faculdades da mente, do corpo.
Alegrias do pensamento quando ele encontra e descobre;
alegrias do corpo quando ele realiza sem penar. Por isso
também, ao contrário do prazer, a alegria aumenta com
a repetição e se enriquece.
Frédéric Gros
Sumário
9 Créditos e agradecimentos
11 Apresentação
15 No vestiário – a preparação
21 Bate-bola
35 Primeiro Set
49 Segundo Set
77 Match point
78 Bibliografia
Créditos e agradecimentos
|9|
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
Apresentação
Otávio Piva Neto1
S empre me interessei pela história. A relevância dos fatos e das personagens
que contribuíram, sem medir esforços, para que suas realizações marcassem,
de forma indelével e generosa, os passos e ambições das gerações futuras. Ao
entrar em contato com este livro, viajei ao passado do tênis e da minha vida.
Reviver o passado é viver novamente. E, retrospectivamente, as memórias ficam
mais doces. Depois de todos esses anos, as lembranças estão vivas e pulsantes.
Inevitavelmente, a história que o Silvio conta me captura. É também parte da
minha vida. Também compartilho dos afetos que conduzem à narrativa. Preciso
tomar cuidado para não me esquecer de apresentar o livro.
Ainda garoto, com seis ou sete anos de idade, meu pai Eugenio me levava
para a Sogipa quando ia jogar tênis aos domingos. Naqueles anos 50, o Sr. Beck
era o ecônomo do tênis. Tive aulas com o Petersen, testemunhei a construção
das novas quadras de tênis e conheci alguns segredos do Beck que resultavam
naquelas quadras perfeitas.
Também dessa época, recordo que meu pai era o responsável pela equipe
de tênis da Renner, que tinha sua associação atlética na Vila Assunção, Zona
Sul de Porto Alegre. Em épocas de amadorismo, o Petersen, o Armando
Vieira, o Melin, o Godofredo Nardi e outros acabavam sendo registrados
como funcionários da Renner para, na verdade, competirem nos torneios
interclubes.
Na transição para a Era Aberta, fui jogador profissional. Entre outros, dis-
putei o circuito do Caribe organizado pelo Bill Riordan, ainda numa época em
que era comum jogarmos pela hospedagem e pelas refeições pagas. O dinheiro
recém começava a fluir.
Dessa fase, lembro-me de um dos marcos da evolução do tênis, e sua popu-
larização, que foi a disputa da final do WCT, em Dallas, entre Laver e Rosewall.
A primeira partida transmitida de costa a costa nos Estados Unidos. Aconte-
cimento que nem de longe nos fazia imaginar a disponibilidade de horas de
transmissão que temos hoje.
| 10 |
| Apresentação |
Afirmo, com certeza, que a paixão pelo tênis, a admiração pelo ambiente e
pelas pessoas que faziam parte daquele meio determinaram meu futuro profis-
sional, sempre ligado a esse esporte. Empreendi muito e por isso me identifico
com as personagens retratadas neste livro. Para que o tenista esteja na quadra
empunhando sua raquete muita coisa precisa acontecer antes.
Em parte, é disso que o livro trata. Pessoas como o Sr. Beck, que literalmente
forneceram a infraestrutura para a prática do tênis em Porto Alegre, devem ser
lembradas. Ao lado do Nery, do Renato, do Bohrer, do Bráulio e do Petersen,
deve ser lembrado por todas as suas contribuições ao tênis. Especialmente, es-
ses personagens devem ser lembrados num contexto em que a criatividade e a
improvisação precediam a oferta e a disponibilidade dos produtos que conhe-
cemos hoje. Sim... sei que muitos dos quais irão ler este livro nunca vestiram
(nem ouviram falar) um short Ramenzoni! Era isso ou mandar fazer no alfaiate.
A Sra. Luiza Petersen se encarregava das roupas sob encomenda para abastecer
sua loja, pioneira no varejo de materiais para a prática do tênis.
O trabalho quase anônimo dessas pessoas permitiu que o Rio Grande do
Sul fosse um dos pioneiros e, também, berço de grandes jogadores. Tínhamos
professores, quadras, cordas, roupas, raquetes e varejo, tudo organizado aqui. A
disponibilidade também era um incentivo para a prática do esporte.
Ao mesmo tempo em que escrevo essa apresentação e reflito sobre a passagem
do tempo, me ocorre que há aqui uma preocupação dupla que justifica o registro.
Em primeiro lugar vem a memória afetiva. A vontade de contar uma história
da qual participamos, mesmo que a narrativa do livro raramente ocorra na pri-
meira pessoa, é uma história vivida pelo autor. E por muitos de nós. Em relação
à qual se tem carinho e orgulho, e vontade de compartilhar. Em segundo lugar,
essa doce lembrança se estende àqueles que dela fizeram parte. Ainda mais no
caso deste livro, os personagens que povoam a história do varejo do tênis em
Porto Alegre não só compartilharam com a gente essas histórias, mas em gran-
de medida as tornaram possíveis. Aí entra a valorização, o respeito e o reconhe-
cimento dessas realizações e dos nomes dessas pessoas.
Acredito no potencial que todos têm para criar e realizar alguma coisa. Algo
que possa somar-se às demais contribuições individuais e que construa coleti-
vamente uma base que poderá suportar realizações futuras. Este livro procura
olhar para isso. É na verdade um ajuste de lente. Olhar na direção certa, pro-
curando identificar o objeto conhecido ao qual se atribui valor. É, portanto,
reconhecimento e valorização.
| 11 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
É difícil explicar por que temos, no Brasil, uma carência tão grande de memó-
ria e de valorização dos tenistas do passado. Se não fosse pelo livro do Marcher
(e Carta), a geração de tenistas brasileiros da Golden Age não teria qualquer
registro. Conhecendo alguns museus esportivos pelo mundo, observo como é
distinto o reconhecimento e o valor atribuídos aos heróis do esporte. Sem alon-
gar, a Maria Esther e o Koch ainda recebem tratamento distante do merecido.
Se isso acontece com jogadores, verdadeiros protagonistas do espetáculo,
para aqueles que estão behind the scene o que esperar? É isso que, em parte, me
motivou a participar deste projeto. Recuperar memórias, personagens e realiza-
ções de algumas dessas pessoas. É uma forma de agradecer.
Podemos dividir este livro em quatro seções. A primeira seção poderia ser
considerada uma espécie de história cultural do tênis. Origens, antecedentes
históricos e evolução do esporte.
A segunda é focada na evolução do tênis no Brasil. Ao falar do tênis em Porto
Alegre, destaca-se sua forte ligação com a comunidade germânica e ainda as
peculiaridades do desenvolvimento da cidade e sua relação com a constituição
dos clubes esportivos.
O que vem a seguir refere-se àquilo que o autor estabeleceu como sua pergun-
ta de trabalho. Afinal, o que aconteceu para fazer dos anos 1970 um momento
especial na história do tênis? Estive lá e vivi esse momento. Gostei da objeti-
vidade como o período foi tratado. Claro e objetivo, sem detalhes excessivos.
Por fim, o que poderíamos considerar como efetivamente a história que se quis
contar, servindo as seções anteriores como suporte, é a história da Nery&Beck. O
autor justifica a inclusão do Bohrer para entender de onde saiu “a loja de cima”. Assim
como o Petersen inaugurou “a loja de baixo”. Ambos merecem aparecer no livro.
Nesse sobe e desce pelas ruas de Porto Alegre, conhecemos a história da
Nery&Beck entre 1972 e 1986. Janela de tempo justificada adiante pelo autor.
Nessa história do varejo do tênis em Porto Alegre, é importante reconhecer
o protagonismo desses empreendedores, os quais fizeram suas apostas, assumi-
ram seus riscos e colheram os frutos. Nessa sucessão, podemos traçar uma linha
que inicia com o Petersen, passa pelo Nery e termina (por enquanto) no Renato.
Foi uma das linhas escolhidas para contar essa história.
Reconheço que a esta altura do campeonato, em termos profissionais, já fiz
quase tudo relacionado ao tênis. E percebo no fundo que minha motivação e
| 12 |
| Apresentação |
paixão pelo meio tenístico esteve, e ainda está, ligada aos valores e às pesso-
as que fizeram parte da minha formação como jogador, como empreendedor
e, sobretudo, como um apaixonado. Como homenagem e reconhecimento a
todos aqueles que me influenciaram, me motivaram e, de uma maneira ou de
outra, me ajudaram a chegar até aqui, é que escrevo a apresentação desse livro.
| 13 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
No vestiário
O título dessa introdução também poderia ser: “Na casa da minha avó co-
mendo bife com arroz e salada”. Isso porque minha avó morava, e mora até
hoje, na Av. Getúlio Vargas, perto do Clube do Comércio. Quando havia cam-
peonatos aí, eu e meu irmão almoçávamos na casa dela e depois seguíamos a pé
até o clube. O invariável cardápio era composto de bifes (naquela frigideira de
ferro que toda avó tem em casa e suspeito que mesmo nesses dias ela usava ba-
nha para fritá-los), arroz e salada. Naquele tempo, uma receita de refeição frugal
para os meninos tenistas da família. A casa da vó ficava ao lado do armazém
do Seu Fin (grafia?), o pai do Calígula, craque do Clube do Comércio na época.
Esse primeiro parágrafo já revela do que trata esse livro. Sim, é um livro de história
e histórias do tênis. É um livro para quem gosta do tênis, portanto não recomendá-
vel ao Andre Agassi, de quem ainda sou fã. Como disse Jimmy Connors: “Quando
gostamos do tênis, gostamos até dos calos que temos nas mãos!”.
É um livro composto de uma revisão bibliográfica, que considero útil, na qual
identifiquei aqueles assuntos recorrentes, alguns que talvez não necessitem ser
retomados e, ao mesmo tempo, algumas lacunas a serem preenchidas.
Também é um livro limitado em seu escopo temporal, pois restrito aos anos
70 e 80. Na verdade, a janela abrange desde 1972 até 1986. Adiante ficará clara
essa delimitação.
Claro que não pretende ser um relato do tipo biográfico, não há essa preten-
são, muito menos a densidade de fatos e memórias a serem narradas. Entretan-
to, a motivação do livro é o registro de uma memória que considero coletiva.
Muitos dos que jogaram tênis e viveram naquele ambiente dos anos 70 têm o
tênis entranhado em si como o pó de tijolo nas meias brancas de algodão (mi-
nha mãe fala disso até hoje!). Sim, é uma memória coletiva. Apesar de um relato
produzido individualmente, o que dá estrutura a ele são os demais personagens
envolvidos nessas memórias, nem sempre citados nominalmente, mas igual-
mente protagonistas do relato.
Como historiador, executei, no doutorado, pesquisas sobre a história de em-
presas. Essa área específica da história se dedica à análise de empresas em seus
respectivos contextos sociais, econômicos e tecnológicos. Nesse período, tive
a oportunidade de conversar com os Srs. Eduardo Hofmeister, Fernando Oli-
| 14 |
| No vestiário |
Além disso, a Nery&Beck era, no final das contas, a artéria que alimentava
o mercado porto-alegrense e gaúcho dos materiais necessários à prática do
esporte. Naquela época, apesar da onda de expansão do poder aquisitivo da
classe média, as viagens ao exterior e o acesso ao material importado eram
para poucos. Era aí, na N&B, que nos abastecíamos, nos encontrávamos e
apreendíamos mais sobre o esporte. Por isso, tenho a certeza de que, como
eu, muitos compartilham essas lembranças em relação à Nery&Beck. O Adal-
berto, o Arnaldo e o Renato nos forneciam tudo o que era necessário para
entrar na quadra. Depois o que acontecia dentro das linhas não era respon-
sabilidade deles. Bolas isoladas, raquetes quebradas, xingamentos e gateadas
ficam na conta pessoal de cada um.
Sob a inspiração da história, esse trabalho tenta contextualizar a vivência da-
quele momento em relação aos acontecimentos locais e globais. O Brasil vivia
ainda sob a ditadura militar e distante alguns anos da abertura lenta, gradual e
segura. A classe média brasileira, em parte, experimentava a renovação e am-
pliação de seus hábitos de consumo, como acontece novamente nos dias de
hoje. E no cenário internacional, vivia-se uma grande explosão do processo de
internacionalização econômica e financeira do qual a Era Aberta, talvez, seja um
precioso e preciso exemplo.
Aliás, o impulso decisivo para executar este projeto veio justamente de uma
pergunta que sempre me fiz: Por que os anos 70 haviam proporcionado aquele
boom do tênis no Brasil? Essa resposta começou a ser respondida ao ler o li-
vro do Connors. A descrição daquele momento vertiginoso que representou o
início da Era Aberta, a partir de 1968, e a acelerada popularização do tênis em
nível mundial começaram a encaixar as peças para a resposta que eu procurava.
No momento em que comecei a compreender o processo ocorrido, me senti
parte de algo maior. Algo que merecia ser registrado.
Claro, a televisão, os grandes patrocinadores corporativos e a delirante pre-
miação em dinheiro adicionaram os temperos necessários à explosão mundial
do esporte.
Ainda assim, hoje, ao passar pelos clubes com quadras vazias numa tarde de
sol, não deixo de pensar que naquela época havia algo especial. Naquela épo-
ca, uma quadra de tênis vazia era ficção! O sinal que tocava a cada 45 minutos
sempre provocava algum tipo de desavença. A estratégia de lotar a quadra com
a turma para ficar nela o dia todo era praticada à miúde. Os veteranos também
gostavam dessa estratégia.
| 16 |
| No vestiário |
| 17 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
das oportunidades de negócios, sem uma percepção de que se faz parte da histó-
ria. Essa dimensão do histórico, do processo mais amplo deve ser introduzida no
cotidiano. Ou, ao contrário, o cotidiano acaba sendo colado no mural da história
como aquele evento que comprova a racional que o historiador busca defender,
como um evento que decorre das forças determinantes de um processo mais
amplo (histórico) para além da percepção do indivíduo que simplesmente viveu
sua vida. Assim, tomando como referências essas duas possibilidades de compre-
ensão da história que se pretende contar, seguimos em frente.
Antes de entrar na quadra e começar o bate-bola, já que considero esse tra-
balho uma construção coletiva, gostaria de lembrar a parceria. De forma geral,
a chave da Copa RS de 1976, publicada mais adiante, já traz os nomes de muita
gente boa, especialmente dos parceiros que não jogavam no Grêmio Náutico
União. Ainda assim preciso citar alguns parceiros indissociáveis dessas lembran-
ças. Lá vão: o Sapo e o Caná, o Tico, o Gaio, o Chagas, o Edu, o Celso, o Duio,
o Tochetto, o Siqueirão, o Gabriel, o Fridman, o Krebs, o Geoder, o Serginho,
o Guilherme, o Migão, o Caburro, o Cesar Machado, o Betinho, os irmãos Ro-
cha – Paulo e André Coutinho, o Günther e o Pujol. E as gurias: a Cristina, a
Cristiane, a Cupim, a Elenice, a Silvana, a Mariana, a Bigu, a Letícia, a Heloísa e
a Andréia. Sei que ficou gente de fora.
Aliás, aos nossos grandes mestres Jorge Hocevar e Prata Dias um imenso obri-
gado. Ao José Luiz Flores, um abnegado pelo departamento de tênis do União
(basta ver as notas oficiais da FGT – o Gerulaitis de bolso não faltava a nenhuma
reunião). Com seu Fusca amarelo, estava sempre pronto para encarar qualquer
roubada para levar a gurizada aos campeonatos. Valeu Zé!
Na verdade, em todos os clubes havia as mesmas turmas, mestres, diretores,
encarregados e ecônomos. Saúdo a todos! Todos fazem parte desse mundo e
dessas memórias.
Finalizo lembrando que o amálgama desse texto são memórias e lembran-
ças. Por certo, equívocos e omissões poderão surgir nesse trabalho (espero que
poucos) e já me desculpo antecipadamente. Claro que não pretendo descrever
nenhuma campanha na qual tenha vencido o Roese na semifinal e o Petry na fi-
nal... o placar vocês podem imaginar... Na verdade nunca enfrentei nenhum dos
dois e duvido que tivesse conseguido um game sequer. Os eventuais equívocos
serão mais leves. Mas creio que podem nos dar uma ótima oportunidade para
tirar da gaveta outros projetos, outras histórias e ótimas lembranças. Desejo a
todos uma boa e nostálgica leitura.
| 18 |
Bate-bola
N ão sei quando tive o primeiro contato com o tênis. Lembro que, no início
dos anos 70, meu pai começou a praticar o esporte. Apareceu em casa com uma
raquete Bohrer Top Model e uma caixinha de papelão com seis bolas Mercur
brancas. Naquela época, as bolas vinham em caixas ou tubos de papelão que
não eram pressurizadas.
As roupas e o tênis Rainha de couro, igualmente brancos, sugeriam elegância.
Meu pai começou a jogar tênis no União, do qual éramos vizinhos, com um
dos meus tios. Tenho certeza de que esse tio sempre sentiu saudade do saibro
das quadras de tênis, especialmente quando se mudou para Rondônia, tendo
que atolar-se no barro para entrar e sair de casa no período das chuvas, como
pioneiro nos projetos do INCRA. Outro tio, morando em Santa Cruz do Sul,
também jogou tênis. Observávamos no clube os craques locais, o Kist, os Dias,
o Iarte Adam, entre outros. Logo, o tênis não era estranho na família. Depois de
praticarmos natação por anos, meu irmão e eu começamos a jogar sob a orien-
tação do grande Prata Dias. Mestre de estilo leve, clássico, imaculado...
Falando em inícios, é importante falar das bases do esporte. Não creio que falar
das bolas de couro estufadas com cabelos humanos ou pelo de cachorro faça algum
sentido. Afinal de contas, nossa época é a da transição da bola branca para as ama-
relas sob os auspícios da transmissão dos jogos pela TV.
Porém é fascinante lembrar, a partir dos estudos culturais, sobretudo o de
Gillmeister2, que o tênis, assim como os demais esportes de bola, tem suas
origens perdidas no tempo, a exemplo do que acontece com os jogos de cartas.
Os esportes em geral, nas suas origens, simulam situações de conflito e
competição sem o recurso da violência (em tese). Porém, o objetivo é a con-
quista territorial ou de riquezas. Essa perspectiva faz com que pensemos num
jogo de tênis mais parecido com uma partida de futebol americano do que
com o esporte que praticamos hoje. Na versão original, uma equipe atacava
tentando marcar um goal representado por um alvo na parede. A equipe de-
fensora buscava devolver a bola sempre o mais fundo possível para evitar a
aproximação dos atacantes, os quais buscavam aproximar-se da barreira que
limitava seu campo, uma corda, rede ou grade baixa, e dali tentar o tiro certei-
ro. Essa lógica de um time atacante e outro defensor sobreviveu alguns anos
2 Gillmeister, Heiner. Tennis – a cultural history. Leicester University Press, 1997.
| 19 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
nas regras do tênis moderno3, que inicialmente era praticado com a virada de
lado apenas a cada set.
Através da história, o esporte tanto funcionava como um passatempo em
tempos de paz, como era também um preparativo e adestramento das habilida-
des físicas para os tempos de guerra. Na Alemanha, a prática da ginástica, idea-
lizada por seu fundador Vater Jahn, uniu-se ao espírito nacionalista da época em
virtude do avanço francês nas Guerras Napoleônicas. Segundo Silva4:
Por sua vez, na França, após a derrota na Guerra franco-prussiana de 1870, Pierre
de Fredy, o Barão de Coubertin, acreditava que a dedicação aos esportes seria o
caminho para restaurar o moral dos franceses. Mais adiante, na Primeira Guerra
Mundial, veremos ao lado de um recrutamento em massa de esportistas também a
utilização da técnica esportiva em ações de combate. Vários esportistas deixaram a
vida nos campos de batalha da Grande Guerra de 1914. Numericamente as equipes
de rúgbi francesas foram as que deram a maior contribuição aos pelotões da pátria.
Mas certamente o esportista mais famoso vitimado nesse conflito foi Roland Gar-
ros. Às da aviação francesa, que morreu três semanas antes do final da guerra, foi
um multiesportista que, conforme a fonte consultada, pode ou não ter praticado o
tênis. De toda a forma, sendo mais lembrado como exímio ciclista.
Desde o século V a.C. os gregos já praticavam esportes com bola nas cha-
madas Spheristerias, nome que depois será tomado de empréstimo pelo Major
Wingfield no lançamento do seu Sphairistikè ou Lawn Tennis. De forma siste-
4 Silva, Haike Roselaine Kleber da. Sogipa: Uma trajetória de 130 anos. Porto alegre, Gráfica Editora Palotti, Edito-
res Associados Ltda, 1997.
| 20 |
| Bate bola |
mática, a alusão ao tênis surge nos mosteiros franceses a partir do século XIII,
ao Jeu de Paume, que era um jogo praticado batendo-se numa bola com a palma
da mão. A posterior utilização de luvas e outros objetos que ampliavam a área
da mão acabaram dando origem à raquete. Esta, desde um bastão ou simples
tamborete, evoluiu para as peças de tecnologia avançada que conhecemos hoje.
Ainda com relação ao Jeu de Paume com sua origem atribuída ao oriente,
possivelmente ao Egito, podemos afirmar que jogos de bola utilizando-se ins-
trumentos ou os membros do corpo para a rebatida se disseminaram por todo
o mundo. Do Oriente à Europa, da Pérsia à Ásia e às Américas, diversas civili-
zações apresentavam diferentes manifestações dos jogos de bola.
Essa disseminação geográfica do jogo também permite observar que, ao con-
trário do que o tênis moderno sugere, já na Europa Medieval e Moderna sua
prática ocorria tanto entre as elites quanto entre as classes populares. Nessa
época havia os chamados jogos de raquetes. Uma variada gama de jogos que
utilizavam bolas e rebatedores (as raquetes com encordoamento vêm mais tar-
de) regidos por diversos conjuntos de regras.
Por sua vez, a prática do Royal Tennis de fato pertencia à realeza e às cortes.
Sua prática em espaços fechados exigia recursos para a construção e manuten-
ção das courts. Nossa imaginação divaga ao lermos sobre um relato do ano
1522 dando conta de uma partida de duplas, tendo de um lado da quadra Hen-
rique VIII, um excelente jogador inspirado por seu pai Henrique VII, que havia
consolidado o tênis na Inglaterra, e o Imperador Carlos V contra o Príncipe de
Orange e o Marques de Brandemburgo. Claro que a tecnologia das bolas nessa
época criava um problema de etiqueta, uma vez que com frequência as bolas
deixavam de quicar e rolavam pelo chão. Impensável que essas altezas pudessem
se abaixar para juntar as bolas. A solução foi fazer um jogo de duplas com trios,
atuando Lorde Edmund e o Conde de Devonshire como stoppers, que paravam
a rolagem da bola e a recolhiam do chão para serem recolocadas em jogo.
Pela sua popularidade, o tênis aparece em diversas obras literárias ao longo da
história. Erasmo de Roterdã diz preferir jogar com a mão a utilizar a raquete com
cordas (net) e sugere deixar as redes para os pescadores. O tênis também será citado
por Shakespeare, Rabelais e Chaucer em suas obras literárias.
O tênis moderno surgiu em 1874 como Lawn Tennis, com a grande sacada co-
mercial de Walter Clopton Wingfield, Major do Exército Britânico, o qual, a partir de
1874, passou a vender kits de quadras de tênis portáteis, que podiam ser montados
em qualquer lugar ao ar livre. Segundo ele, até mesmo sobre o gelo. O Major tem o
| 21 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
| 23 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
9 Hofmeister Filho, Carlos. Sogipa – 120 anos: doze décadas de história. Porto Alegre: Gráfica Editora Palotti, 1987.
11 Gans, Magda Roswita. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX (1850-1889). Porto Alegre, 1996. Disserta-
ção de mestrado em História – UFRGS.
| 25 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
12 Pesavento, Sandra J. Espaço, sociedade e cultura: o cotidiano da cidade de Porto Alegre. In: República Velha
(1889-1930) Tomo II, Volume 3. Passo Fundo: Méritos, 2007. Coleção História Geral do Rio Grande do Sul.
14 Em relação ao Club Walhalla, observamos pequena divergência entre as fontes. Duas apontam sua fundação no
ano de 1896 e uma no ano de 1898.
15 Ver Mazo, Janice Z. e Cunha, Maria L.O. da. A criação dos clubs nas praças públicas da cidade de Porto Alegre
(1920-1940) In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32892010000200009 disponível em
22/09/2015.
| 26 |
| Bate bola |
| 27 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
O tênis, até os dias de hoje, convive com uma imagem de elitismo que não
lhe faz justiça completamente. Por um lado, como qualquer esporte que exige o
domínio da técnica, disciplina e habilidade, os seus praticantes, assim como os de
qualquer esporte, compartilham entre si esse sentimento de elitismo que diferen-
cia aqueles que praticam o esporte de forma sistemática dos que não o praticam.
Apelidos pejorativos são atribuídos aos “outros” – caçador de borboleta, atrofia-
do, morto e, o típico, naba (termo conhecido para quem é de Porto Alegre).
Além dessa conotação, o tênis, que historicamente era praticado dentre outros
esportes de raquetes, também era jogado nas classes populares. Contudo, na
medida em que o tênis se diferencia e passa a ser praticado na quadra fechada,
16 www.tenisintegrado.com.br/perfil2/sobre/4301 disponível em 09/10/2015
| 28 |
| Bate bola |
17 Tenista, empresário, dirigente do tênis gaúcho e presidente da FGT, que esteve à frente da organização da dis-
puta da Copa Davis de 1966 em Porto Alegre.
18 Tenista e empresário, hoje à frente do aprazível Chalet Gourmand – bistrô e hospedaria em Nova Petrópolis/RS.
19 Carta, Gianni e Marcher, Roberto. O tênis no Brasil: De Maria Esther Bueno a Gustavo Kuerten. São Paulo: Códex,
2004.
20 Faço a ressalva de que para nós brasileiros o termo cavalheiro não carrega o mesmo peso simbólico do termo
gentleman para os britânicos.
| 29 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
22 Os trechos consultados foram reproduzidos no livro The Right Set – A tennis anthology. Editado por Caryl Phil-
lips. Random House, New York: 1999.
| 30 |
Primeiro SET
O início de toda pesquisa é uma pergunta. O mérito dessa pergunta pode es-
tar associado ao problema ou questão a que ela procura responder, mas também
ao estímulo que ela fornece àquele que procura a resposta.
Afirmei que, intuitivamente, percebia os anos 1970 como diferenciados.
Obviamente quando se está na transição da infância para a adolescência, o
mundo todo parece empolgante e rico. Todos os games ainda estão por se-
rem jogados. Contudo, como fenômeno coletivo, o boom do tênis naquela
época, no Brasil e no mundo, realmente parecia alguma coisa especial. Mes-
mo conhecendo a história do esporte, o início da Era Aberta (1968), a greve
dos jogadores em favor de Pilic (1973) e outros assuntos das revistas da
época, a verdadeira dimensão do que tornou os anos 70 tão distintos ficou
clara ao ler o livro do Jimmy Connors23.
Com o início da Era Aberta, a organização dos circuitos profissionais e os jogos
exibição ingressaram noutro patamar. Através de indivíduos com Bill Riordan,
Lamar Hunt, Jack Kramer, Mark McCormack e outros promoters do tênis, as pre-
miações milionárias, as transmissões pela TV e a publicidade tornam-se elemen-
tos permanentes e de crescente importância. Inovações foram introduzidas no
esporte: a adoção do tie-break foi importante para adequar a duração das partidas
ao tempo das transmissões televisivas e, ao mesmo tempo, manter o interesse da
plateia e espectadores; a publicidade em torno do esporte e a presença dos patro-
cinadores corporativos permitiram que o tênis se tornasse um grande negócio.
Fabricantes de material esportivo, clubes, resorts, agências de turismo, patro-
cinadores corporativos, grifes, academias, técnicos e os jogadores fazem parte
de um grande negócio global.
A grande transformação começou em 1968. Nessa época ainda existiam qua-
tro tipos de jogadores:
• Os amadores, que não podiam aceitar premiações em dinheiro;
• Os instrutores profissionais, que podiam competir com os amadores so-
mente em eventos abertos;
23 CONNORS, Jimmy. Jimmy Connors: minha vida dentro e fora das quadras. São Paulo: Benvirá, 2015.
| 31 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
| 32 |
| Primeiro Set |
| 33 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
Rod Laver foi o homem do ano em 1969. Ele conquistou seu segundo Grand
Slam. Foi também o ano no qual Donald Dell, capitão da equipe norte-americana
da Davis, diante da confusão ainda reinante entre jogadores profissionais com con-
trato, sem contrato ou mais ou menos..., juntamente com seus colegas de equipe,
decidiu não participar de torneios que oferecessem ressarcimento de despesas e
garantias ao invés de prêmios em dinheiro. Dell organizou um protótipo de torneio,
patrocinado comercialmente, disputado num parque público com uma premiação
de US$ 25,000. E era isso, sem honorários, despesas pagas ou garantias.
A duração dos jogos era um problema para as transmissões televisivas e para o
público em geral. Para a TV, partidas intermináveis dificultavam a organização da
programação, ocupavam um tempo caro na programação com retornos duvidosos.
Para o público, jogos intermináveis eram tediosos. A inovação de 1970 foi a introdu-
ção do tie-break. Na sua primeira versão, quando o set chegava ao placar de 6-6, era
disputado o desempate numa melhor de nove pontos com morte súbita. Ou seja,
quando cada jogador tivesse conquistado quatro pontos, o quinto era decisivo. Os
jogadores reagiram com reserva, comparando o novo sistema a um jogo de dados.
Negociações à parte, foi adotado um sistema de 12 pontos, mais conservador, ven-
cido com dois pontos em caso de empate. O público, os organizadores dos torneios
e as redes de televisão adoraram. Nesse ano, as cores em tons pastel passaram a ser
admitidas, acabando com o monopólio das roupas brancas.
A paz regressa ao mundo de tênis em 1972. No ano anterior, numa recaída
autoritária e conservadora, a ILTF havia banido os jogadores contratados do cir-
cuito e de todas as instalações controladas por esta instituição. A ILTF e o WCT
(World Circuit Tennis) conseguem harmonizar seus interesses novamente.
Nesse ano, a vitória de Stan Smith sobre Nastase ocorre numa segunda-feira,
pela primeira vez na história de Wimbledon.
Também é desse ano a formação da ATP (Associação dos tenistas profissionais).
Durante o U. S. Open, 50 jogadores, pagando uma taxa de US$ 400.00, que junta-
mente com Donald Dell, agora agente de parte desses profissionais, escolhem Jack
Kramer para o cargo de diretor executivo e Cliff Drysdale para presidente.
Em meados dos anos 70, o tênis havia se firmado claramente como um esporte po-
pular. Florescia a venda de equipamentos, roupas e pacotes de férias. Dois eventos vão
destacar-se no ano de 1973, a chamada Batalha dos Sexos e o conhecido Pilic Affair.
O já veterano Bobby Riggs (55 anos), autointitulado “o Rei dos Machos Por-
cos Chauvinistas”, havia desafiado e vencido por 6-2, 6-1 Margareth Smith
| 34 |
| Primeiro Set |
Court. Proclamava que mesmo a melhor tenista profissional não poderia vencê
-lo. Ele, um velho com o pé na cova.
Billie Jean King, a campeã dos equal rights do tênis feminino, topa a parada.
O jogo é um sucesso de mídia, atrai um público de 30 mil pessoas pagando
até US$ 100.00 pelo ingresso. King venceu, e foi mais um passo importante na
evolução do tênis feminino.
Ainda nesse ano, Nick Pilic, tenista iugoslavo, declina de participar de um
compromisso da Davis Cup em favor do circuito profissional. A federação
do seu país o suspende, no que é seguida pela ILTF com uma punição de três
meses. Pilic, membro da ATP, será o pivô de uma crise, na qual a ATP vem
reivindicar o direito exclusivo de penalizar seus membros. A ILTF recua, re-
duz a suspensão para um mês. A ATP mantém-se firme. Organiza um boicote
a Wimbledon naquele ano. Nastase, Borg e Connors são alguns dos jogadores
independentes beneficiados no affair.
Uma pesquisa da A.C. Nielsen nos permite dimensionar a explosão do tênis nos
Estados Unidos nessa época. Em 1970, a pesquisa estima que 10,3 milhões de norte
-americanos pratiquem o esporte ocasionalmente; projeta que esse número crescerá
para 15 milhões por volta de 1980. Um segundo levantamento, em 1973, indica que
o número de jogadores cresceu para 20,2 milhões. E um terceiro estudo, divulgado
em setembro de 1974, indicava que 33,9 milhões de norte-americanos jogavam tê-
nis, sendo que 23,4 milhões jogavam pelo menos três vezes por semana26.
No ano de 1974, a Copa Davis sofre com a política internacional. Pela primei-
ra vez um país leva a taça por W.O. A Índia, por conta do apartheid sul-africa-
no, recusa-se a disputar a final. No ano seguinte, Jimmy Connors introduz um
padrão de comportamento entre os top players, que daí em diante raramente
jogarão duplas, dedicando-se de forma especializada às simples. McEnroe será
uma exceção. Considera as duplas um excelente treinamento.
Em Roland Garros, o tenista brasileiro Thomaz Koch conquista, ao lado da
uruguaia Fiorella Bonicelli, o título das duplas mistas. Superam na final Pan
Teerguardan e Jaime Fillol.
Ainda em 1975, o torneio sediado em Forest Hills passará a adotar o tie-break
de 12 pontos, troca a grama pelo Har-Tru e, com os jogos sendo realizados à
noite, atrai um público recorde de 216 mil pessoas.
26 Para efeito meramente comparativo, em 2007 a Revista Tênis publicava estatística da ITF dando conta de que
1,5 milhão de pessoas praticavam o esporte no Brasil. Para os anos 70, não encontrei qualquer tipo de estatística.
| 35 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
27 Para quem gosta de cinema, ver o filme de Spike Lee – O verão de Sam. De quebra ainda podemos ver neste filme
referências ao cenário punk de NY em torno do CBGB.
| 36 |
| Primeiro Set |
no ano seguinte irá se aposentar no auge da sua carreira, aos 26 anos de idade,
surpreendendo a todos.
Também neste ano, mesmo tendo vencido em Wimbledon, McEnroe não será
admitido como sócio honorário do clube. Ted Tinling irá explicar, elegantemente,
ao tenista que não se trata de um processo automático, mas sim eletivo. Nesse ano,
nem as taças McEnroe levará para casa. Somente virá buscá-las no ano seguinte.
É primordial destacar que no Aberto da França, em Roland Garros, o Brasil
escreveu seu nome novamente. Cláudia Monteiro e Cássio Mota sagraram-se
vice-campeões de duplas mistas, derrotados por Wendy Turnbull e John Lloyd.
Em meados dos anos 1980, ainda vale destacar que (em 1985) o mundo do
tênis foi tomado de assalto pelos adolescentes. Boris Becker faria sua entrada
triunfal vencendo em Wimbledon aos 17 anos de idade. Junto com ele, Stefan
Edberg, com 18 anos, ganharia seu primeiro título na Austrália. E, ao lado dos
já “veteranos” Wilander e Lendl, eles marcaram o primeiro ano na história do
tênis que teve a conquista dos four majors exclusivamente por europeus.. As ado-
lescentes também brilharam no tênis feminino, Steffi Graff, Gabriela Sabatini,
Katerina Maleeva e Mary Joe Fernandez se apresentaram ao mundo do tênis
profissional.
1986 é um ano de destaque nessa história que escrevo. Nesse ano, o Aberto
da Austrália não foi disputado, procurando-se ajustar sua posição no calendário.
Foram introduzidas as bolas amarelas em Wimbledon. E os Estados Unidos,
privados das performances de McEnroe e Connors, testemunharam o verão
de Praga, nas palavras de Collins, quando a final masculina e a feminina do
U.S.Open foram protagonizadas por Lendl, Mecir, Navratilova e Mandlikova.
Esse também foi um ano de profunda mudança na história da Nery&Beck. O
Nery decidiu vender a loja para o Sr. Velasco, que resolveu inaugurar novas lojas
nos principais shoppings da cidade, abandonando o tradicional endereço na Rua
24 de Outubro. Essa mudança representou um ponto de ruptura importante na
história da Nery&Beck, por isso também encerro a crônica tenística nesse ano.
Ainda, por dever de ofício, creio que essa história necessita de um suporte
material. Ou seja, a Era Aberta, tendo passado por um período de acelerada
popularização do tênis, no mundo e também no Brasil, precisaria encontrar aqui
um mercado consumidor que justificasse o interesse da televisão, dos patrocina-
dores dos torneios, empresas de promoção esportiva, das editoras de revistas e
| 37 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
28 www.ibge.gov.br em 25/11/2015.
Ano e Variação do PIB em %: 1967 (4,20); 1968 (9,80); 1969 (9,50); 1970 (10,40); 1971 (11,30); 1972 (11,90); 1973
(14,00); 1974 (8,20); 1975 (5,20); 1976 (10,30); 1977 (14,90); 1978 (5,00); 1979 (6,80); 1980 (9,20).
29 Capitalismo tardio e sociabilidade brasileira. Mello, João Manuel Cardoso de & Novais, Fernando A. In: História
da vida privada no Brasil. Vol. 4. Cia das Letras, 1998.
| 38 |
| Primeiro Set |
| 39 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
levisão. Esta veio para o Brasil ainda nos anos 50 pela mão de Assis Chateau-
briand e, de 1972 a 1979, a TV de 21 polegadas, colorida, vendeu cerca de 4,5
milhões de unidades. Mesmo considerando o baixo número de transmissões de
tênis na TV brasileira, como destacaram Carta e Marcher, também será através
dela que o tênis se modernizará no Brasil na década de 1970. Indiscutivelmente,
a TV é o instrumento mais eficiente na propagação dos valores e padrões da
chamada indústria cultural. No caso brasileiro, desde o governo JK, fortemente
matizado pelo american way of life, definitivamente entronizado a partir de
64. Nesse sentido, as transmissões de tênis, com seus deuces, advantages e tie
breaks, de fato criavam ilhas de cultura alienígena. Imagino que um desavisado
sequer pudesse compreender o interesse naquela tela de TV na qual nem se
conseguia enxergar a bolinha. Muito menos entender a contagem exótica da-
quele esporte. De aparência elegante, sem dúvida.
Quando a Rede Globo transmitia as finais de Wimbledon no domingo pela ma-
nhã, entrávamos na quadra central junto com os ídolos, nos esbaldávamos imagi-
nariamente nos morangos com chantili, compartilhávamos todos os maneirismos
da partida e do comportamento dos jogadores30, árbitros e dos pegadores de bola.
Era um pé no primeiro mundo. A presença da realeza no Royal Box e na ceri-
monia de premiação fazia uma ponte entre a modernidade e a tradição. So fancy!
Cobiçávamos aquelas raquetes, tênis e uniformes que a substituição de im-
portações colocava longe. Sonhos de classe média. Nesse universo em mutação,
corríamos para os clubes em busca de um espaço nas quadras. Todos os com-
panheiros estavam lá.
| 40 |
| Primeiro Set |
| 41 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
| 42 |
Segundo SET
| 43 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
| 44 |
| Segundo Set |
| 45 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
| 46 |
| Segundo Set |
| 47 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
| 48 |
| Segundo Set |
Dos pais, Israel e Julieta, conserva terna lembrança e recorda, com admiração,
do espírito inventivo e da inteligência prática do seu pai.
Tendo concluído somente a escola primária, aos 18 anos, Adalberto Viera
Nery vai para o exército. Faz curso de formação de cabo e assume a função de
cabo do rancho. É o responsável pela compra dos mantimentos do Batalhão
Rodoviário, em Vacaria. Depois da baixa no serviço militar, ainda permaneceu,
como civil, por mais quatro anos nessa ocupação.
Em 1957, Nery vem para Porto Alegre. Inicialmente irá trabalhar na Glitz S/A,
empresa de importação e exportação. Recorda que a exportação era predominan-
temente de cereais e a importação era de máquinas e ferramentas. Na Glitz S/A,
Nery desempenha a função de encarregado pela recepção e expedição de mate-
riais. Com orgulho, conta que nada entrava ou saía da empresa sem passar por ele.
Nesse período, enquanto trabalhava na Glitz S/A, em 1962, casou-se com
Anne Mary Beck, filha do Sr. Arnaldo Beck. Dessa união, além dos dois filhos,
surgiria a oportunidade que o levou a ingressar no mundo do tênis.
Naturalmente, o caminho na vida do empreendedor não é uma linha reta.
Antes de chegar à Nery & Beck, Adalberto fez seu debut no comércio varejista
como feirante. Em 1965, comprou um caminhão Chevrolet e passou a fazer o
circuito das férias livres de Porto Alegre. De terça a domingo, participava das
feiras organizadas pela prefeitura. Nery lembra que a feira de domingo era
realizada em Belém Novo. Em geral, seu caminhão abastecido de produtos de
limpeza e higiene pessoal ficava estacionado no final da feira. Recorda que seu
principal fornecedor era, ainda com a denominação da época, a Gessy Lever.
Com o crescimento e a modernização de Porto Alegre, foi construída a nova
rodoviária da cidade. Em 1970, localizada no Largo Vespasiano Júlio Veppo, é
inaugurada a nova Estação Rodoviária de Porto Alegre. Novamente o empre-
endedor enxerga a oportunidade. Em sociedade com o Sr. Elói Beck, irmão do
Arnaldo, Nery decidiu arrendar uma loja e constituiu a firma Nery&Beck.
Pausa. Aqui é que caem os butiás do bolso! Sempre surpreende saber que o
Beck no nome da firma não se refere ao Arnaldo, o Sr. Beck, com quem topáva-
mos frequentemente na loja, mas ao seu irmão Elói. Este, por sua vez, nunca se
envolveu com o tênis, exceto, obviamente, como sócio da empresa administrada
pelo Nery. Já explico.
Na rodoviária, a Nery&Beck, sob o nome fantasia de Tabacaria Cacique,
dedicava-se à venda de eletrônicos, rádios, relógios, discos de vinil, fitas casse-
| 49 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
32 Com relação ao Sr. Petersen, agradeço às informações obtidas no contato com a Sra. Agda Silva do site Tenis-
Bahia.com. Infelizmente não consegui apurar maiores informações sobre o período da loja em Porto Alegre.
| 50 |
| Segundo Set |
artigos para a prática do tênis: desde o prego para fixar a marcação da quadra
(fita) até a bolinha.
Nesse período, ainda épico do tênis, vale lembrar que as indústrias ainda não
haviam despertado para esse mercado. Redes, fitas, pregos, postes eram feitos
sob encomenda. Calções e coletes também. Não havia opções e as novidades
importadas eram escassas. Nery ainda recorda que comprava nylon da Cordo-
aria São Leopoldo e entregava para um grupo de rendeiras fazer as redes, que
depois precisavam ser esticadas, na garagem de casa, na vertical e na horizontal,
até ficarem com seus nós apertados.
Na loja da Galeria Hoffman, o Nery e a Sra. Anne se revezavam. Ele abria
a loja e ficava lá pela manhã; ela, depois de pegar os guris no Colégio Batista
e dar o almoço, ficava na loja de tarde. Nessa época, o Waldemar Sigalis era o
encordoador da loja e também ajudava no atendimento..
Em 1976, os negócios se expandiram. Nesse ano, o Bohrer oferece a loja
Thomaz Koch, localizada na Galeria Champs Élysées, para o Nery. Na verdade,
desde 1966, quando o Thomaz passou a se dedicar de forma mais intensa a sua
carreira internacional, o Bohrer passou a ter mais dificuldade em tomar conta
de todas as suas atividades profissionais.
Em virtude do relevo porto-alegrense, a loja da Rua 24 de Outubro passa a ser
referida como a loja de cima e a da Hoffman como a de baixo.
Na loja de cima vem trabalhar com Nery o Seu Beck, que deixa a Sogipa, e o
Renato, que já trabalhava com o Bohrer, passa um tempo fora e depois retorna.
Na loja de baixo fica o o Waldemar. O Waldemar e a Sra. Anne sobem definiti-
vamente quando foi comprada a segunda loja na Galeria Champs Élysées.
Outra característica da loja de cima foi o projeto inovador dos móveis da loja,
nos quais o Nery se esqueceu de projetar as gavetas. Grande parte das mercadorias
precisava ser organizada em grandes caixas brancas de papelão. A Sra. Anne ri disso
até hoje e lembra que contratou a funcionária Marlene Justino, que ajudava na venda
e organização das mercadorias nas caixas.
Ainda em meados dos anos 70, a oferta de mercadorias era restrita. As raque-
tes eram a Sulina, a Procópio e Bohrer; em seguida veio a Metalplas. Até hoje
me lembro da minha primeira Metalplas Netmaster vermelha, encordoada com
nylon seda. Também se conseguia importar a Dunlop Maxply, a Wilson Jack
Kramer e a T2000. Depois vieram as Head e as Donnay.
| 51 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
Na época, as raquetes Dunlop Maxply, na faixa dos US$ 60.00, eram impor-
tadas pela Comercial Luce. O Nery costumava comprar todo o estoque das
raquetes com grips 4 e 5, deixando apenas os grips 3 e 6, os menos procurados.
Isso muitas vezes deixou os concorrentes Thomaz e Bohrer sem mercadoria.
O Procópio (Alcides), que fabricava raquetes com seu nome desde 1953, foi um
grande parceiro do Nery. Fornecia raquetes e fazia a importação de cordas por
São Paulo. Aqui em Porto Alegre só eram produzidas as cordas de tripa natural
pelo chileno Bráulio Pinto, em sua casa/atelier na Rua das Camélias.
Os tênis também eram poucos. Os modelos da Rainha de couro e de lona, o
Bamba, o modelo Thomaz Koch da Puma e depois o Topper e os Adidas.
A oferta de roupas era igualmente restrita. Usavam-se as camisetas da Hering
ou no máximo uma camisa polo da mesma marca. Branca com detalhes, em
azul e vermelho, na gola e nas mangas. A polo da Lacoste já era um artigo sofis-
ticado e caro. Eram fabricadas em São Paulo, na época. Com seu hábito de arre-
matar grandes lotes de mercadoria, o Nery lembra que, num determinado ano,
ao fazer seu pedido junto ao representante da marca, este informou que aquele
lote correspondia à cota de vendas de todo o ano para o Estado do Rio Grande
do Sul. Ao que o Nery respondeu: - Não faz mal. Pode me entregar aos poucos!
O grande volume do pedido justificava-se, era o produto mais vendido da loja.
Os calções eram mandados fazer em costureiras. Meias, munhequeiras, testei-
ras e todo o resto foram aparecendo aos poucos.
Em meados dos anos 70, quase nos 80, surgiram as fábricas nacionais de con-
fecções para o tênis. A Chimpa, a Grand Smash e a Bona foram algumas marcas
pioneiras nesse mercado. Chamava a atenção o estilo e a qualidade das roupas
da Chimpa, em referência direta aos uniformes da Fila usados pelo Borg e pelo
Vilas, numa época na qual sob o guarda-chuva da substituição de importações e
da nacionalização de mercadorias importadas, a questão da propriedade industrial
era uma preocupação menor.
O ano de 1976 é um marco na história do tênis. As tradicionais raquetes de ma-
deira entram em processo de extinção diante da nova geração de raquetes. Desde
a introdução, em meados dos anos 60, da raquete de aço Lacoste/Wilson T2000
nada radicalmente novo havia surgido. Agora, contudo, eram raquetes de alumí-
nio, compostos sintéticos, ligas metálicas, componentes até então reservados à
indústria aeroespacial, e várias outras novidades. Os ganchos da Nery&Beck se
encheram de raquetes Head, Spalding e Wilson. Entre as nacionais, foi a Metalplas
| 52 |
| Segundo Set |
que ainda conseguiu acompanhar a nova tecnologia com suas raquetes de alumí-
nio e também com a Super Century, já na era das raquetes oversize inaugurada
pela Prince. Aliás, os raquetões da Prince demoraram um pouco mais para chegar.
Nery lembra que foi feito um evento para o lançamento, exibição e test drive das
Princes em Novo Hamburgo. E que, posteriormente, ele fez um curso de encordo-
amento da Prince no Plaza São Rafael. Tudo em grande estilo.
e a viagem foi feita num Fusca 1975. Mas nessa época só havia quatro máquinas
de encordoar em Porto Alegre. A máquina era uma peça fundamental para po-
der atender a clientela e ainda concorrer com o Bohrer e o Koch.
O ano de 1986 é novamente um ano de mudança. Talvez já um pouco cansado
do negócio, talvez com o desejo de dedicar-se à outra atividade e a um antigo so-
nho de criação pecuária ou ainda pressionado pela moda dos shoppings centers,
o Nery decide vender o negócio. Naquela época, como em todo o modismo,
anunciava-se que não haveria possibilidade de vida comercial fora dos shoppings.
O Sr. Velasco adquire a Nery&Beck, o estoque remanescente e o direito de utilizar
o nome por dez anos, com o impedimento do Sr. Nery ou seus familiares dedica-
rem-se ao comércio de artigos para tênis de qualquer forma a oferecer-lhe concor-
rência. Ressalva feita a André Nery – FI, que manteria o comércio de material para
a construção e manutenção de quadras de tênis.
Nesse período, a Nery&Beck torna-se extremamente conhecida. A campanha
publicitária liderada pelo Júlio Fürst, na Rádio Itapema FM, foi um sucesso. As lojas
localizadas nos principais shoppings de Porto Alegre eram espaços bonitos, mo-
dernos e bem projetados. Premiadas no exterior em salões de arquitetura, inclusive.
Nessa época, a condução da loja do Shopping Praia de Belas fica sob a res-
ponsabilidade da Angélica, que posteriormente passará a supervisionar toda a
rede. Competente e simpática, ela havia participado da transição das lojas da
Florêncio para os shoppings. Conhecia os materiais, as raquetes, as cordas e
ainda vivia o tênis, como seus clientes.
Paradoxalmente, para atender à demanda do novo público frequentador dos sho-
ppings, a Nery&Beck gradualmente vai se convertendo numa loja de material es-
portivo. Seu mix de produtos se transforma. Começa a vender camisas dos times de
futebol europeu. As minibolas de futebol americano foram o golpe de misericórdia.
Pouco após a saída da Angélica, como se essa personificasse a ligação da
Nery&Beck com o mundo do tênis, o processo de mudança se consolida. Nesse
momento, os vendedores pouco entendiam de tênis, e a Nery&Beck definitiva-
mente abandona seu nicho.
Em termos de estratégia empresarial, utilizando as ideias de Michael Porter,
ao abandonar o nicho, a Nery&Beck perdeu sua vantagem competitiva. En-
quanto manteve uma identidade forte, vinculada ao tênis e cativando sua clien-
tela de praticantes do esporte, sobreviveu e expandiu seu negócio. Nos anos 70
| 54 |
| Segundo Set |
e 80, conseguiu repelir com sucesso o assédio imposto pela concorrência. Aliás,
na época, empresas tradicionais como a Ughini e a Couro Esporte tentaram
entrar no mercado do tênis sem sucesso.
No entanto, no mercado de material esportivo, a Nery&Beck não tinha escala
para concorrer com empresas do tamanho da Paquetá Esportes, World Tennis
e outras. Acabou.
Durante muitos anos, uma loja dedicada ao tênis fez falta aos adeptos do
esporte. O refluxo daquele boom dos anos 70 também não animava novos
empreendimentos. Mas, aos poucos, o Renato vai retomando o espaço. Começa
com a loja de São Leopoldo e, há alguns anos, abriu sua loja em Porto Alegre.
Mas a história do nosso Cabo do Rancho não acabou aí. Empreendedor in-
quieto, o Nery vai, lá em Glorinha, instalar seu projeto de pecuária numa área de
11 hectares. Em essência, um projeto de confinamento de gado para a produção
de novilhos de qualidade.
Nery lembra que em um ano, depois de concluída a instalação do projeto, já era
assediado pelos vizinhos querendo comprar seu estabelecimento. Talvez por falta
de experiência e também em virtude de problemas de doença de alguns animais,
o início da produção foi muito difícil, o que o levou a encerrar o projeto.
A vida de empreendedor ainda o faria voltar aos seus tempos de cabo do
rancho, mas isso o André vai contar mais adiante.
Em agosto desse ano (2015), quando fui visitar o Nery para nossa primeira entre-
vista, deparei-me com uma galeria de troféus e diplomas conquistados nas mesas de
sinuca. Boa parte de suas tardes de aposentado são desfrutadas sobre o pano verde
das mesas do Clube do Comércio. Refere-se orgulhoso ao diploma conquistado
com uma tacada perfeita, de 100 pontos. Lembram-se daquele guri que subia no
caixote?
| 56 |
| Segundo Set |
zada na Galeria do Rosário. Depois do serviço militar, vai para a loja de artigos
para tênis montada pelo Bohrer em parceria com o Thomaz Koch, localizada
na Galeria Champs Élysées. Aí, na loja, o Renato é o encordoador e também
atende o público.
Nessa época, início dos anos 1970, faz uma investida no varejo calçadista. Atua
como preposto de uma representação da Puma e depois assume a gerência de
uma loja de calçados. Desse período lembra que a Puma tinha o modelo Thomaz
Koch, o qual ele vendia para o Nery, que nessa época já era lojista. Ainda vai dar
uma sondada no mercado de São Paulo. Acha que o melhor é ficar por aqui.
Em 1976, acaba aceitando uma proposta do Nery e volta para a loja da Galeria
Champs Élysées, que o Bohrer havia vendido. O Renato já era conhecido dos
clientes, manjava de raquetes e cordas e fazia um encordoamento caprichado
que mantinha a pressão nas cordas por mais tempo. Explica a manha: “Quando
a máquina puxa a corda, costumo dar uma deslizada na corda, fazendo com a
máquina produza uma tensão adicional. Isso faz diferença...”. Os clientes pe-
diam que as raquetes fossem encordoadas pelo Renato.
Na loja, os produtos importados encantavam pelo design e pela qualidade.
Eram poucos, muitas vezes trazidos por pessoas ou jogadores que viajavam ao ex-
terior. Os calções precisavam ser feitos em costureiras, assim como os pulôveres e
coletes. Os tênis eram o Bamba da Alpargatas, imitação de um modelo da Dunlop
de lona, os modelos da Rainha de lona e de couro e o Puma Thomaz Koch.
Com o tempo, a indústria nacional vai melhorando, incentivada também pela
demanda dos anos 70, e novas marcas vão surgindo. Na Nery&Beck, juntamen-
te com Seu Beck, orientavam-se os clientes quanto às raquetes.
No início havia as raquetes nacionais (Sulina, Procópio, Bohrer e Metalplas);
e se conseguia, em menor número, as Dunlop Maxply, as Wilson Jack Kramer
e as T2000.
Em meados dos anos 70, ocorre a inovação do alumínio. Processo de produção
em escala, mais simples e barato, liderado pela Spalding e pela Head, que ameaça
o modelo de negócio artesanal das raquetes de madeira.
De forma didática, o Renato explica a evolução das raquetes e suas sucessivas
gerações. A 1ª geração é a dos aros ovalados de madeira, as raquetes antigas; a 2ª
geração são as raquetes de madeira com um acabamento mais refinado, represen-
tadas pelas nacionais e pelas Dunlops e Jack Kramers; a 3ª geração é o alumínio;
a 4ª geração introduz o grafite e o carbono, produzindo raquetes mais leves com
| 57 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
360 grs.; a 5ª geração é de raquetes mais finas, mais leves e resistentes. Abre-se um
novo leque de opções para variar e deslocar o peso ao longo do corpo da raquete e
obter mais ou menos flexibilidade. As configurações possíveis acabam abrangendo
a maioria dos perfis dos jogadores, de amadores a profissionais, tornando o jogo
mais acessível e confortável. Menos lesões e mais atrativo aos leigos. A 6ª geração
de raquetes incorpora a nanotecnologia, o grafeno e outros materiais, obtendo-se
leveza e resistência. Em resumo, segundo Renato: “Hoje, é fácil jogar tênis!”.
Falando também do peso das raquetes, o Renato me explicou que a raquete de
12 a 12,5 onças corresponde à light, a de 13 onças é a light medium, a de 13,5
onças é a medium e a de 14 onças é a heavy ou top. As raquetes antigas eram
pesadas e tinham o cabo grosso. A empunhadura 5 era comum. A transição
da empunhadura continental e do jogo chapado para o jogo com efeito tem
relação direta com o afinamento do grip. Essa mutação no estilo do jogo vai ser
consolidada com a redução do peso das raquetes.
Ainda falando das raquetes, que é a praia do Renato, aprendi sobre a política
de nacionalização das raquetes de tênis nas fábricas instaladas na Zona Fran-
ca de Manaus. A legislação previa a possibilidade da importação de raquetes
que recebessem 20% de conteúdo nacional. Ou seja, se fazia uma espécie de
CKD34 com as raquetes. Importavam-se os aros de madeira, que aqui no Brasil
recebiam a pintura, a adesivagem, o encordoamento e a colocação do grip. No
caso das raquetes de alumínio, além da corda e do couro, aqui eram montadas
as partes plásticas. Por e-mail, fiz contato com o atencioso Jairo Garbi, da Tênis
Pro Shop, de São Paulo, que me contou ter sido funcionário da Impar Sports da
Amazônia, ex Procópio Sports da Amazônia, que beneficiava as marcas Don-
nay, Prince, Wilson, Tretorn e Procópio (parcial). A outra empresa, a Inbrima,
posteriormente adquirida pela Trol do ex-ministro Dílson Funaro, beneficiava
as marcas Head e ProKennex.
Nessa época de promoção do conteúdo nacional das manufaturas, expediente
recorrente da política econômica dos governos nacionalistas com o intuito de
proteger a indústria e o trabalho nacionais, o Renato também atuava como for-
necedor de grips para essas fábricas. Um ano antes de sua saída da Nery&Beck,
já iniciara a fabricação de couros. Aprendeu na fábrica do Bohrer e aperfeiçoou
a absorção e a aderência com a ajuda do Prof. Figueiredo, da UFRGS, especialis-
ta na curtição e tratamento de couros. Nessa fase inicial, o Nery fazia o papel de
34 CKD – Complete Knock-Down: é a montagem de um produto a partir de peças e componentes produzidos pela
empresa matriz ou fabricante, no exterior. Prática geralmente realizada pela indústria automobilística.
| 58 |
| Segundo Set |
| 59 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
36 São Leopoldo.
37 Novo Hamburgo.
| 60 |
| Segundo Set |
Quando começou a não dar conta dos pedidos de couro, por volta de 1980,
o Nery o aconselhou a dedicar-se exclusivamente ao negócio. Ali estava seu
futuro. Renato foi, viu e venceu!
Em 1986, antes de comprar a N&B, o Velasco veio conversar com ele. O Renato
garante que o negócio é bom. Treina alguns encordoares para o Velasco. Alguns dias
depois, o Nery liga para o Renato dizendo que um interessado irá ligar para ele, etc.
e tal. Este responde ao Nery que a loja já está vendida.
Hoje, acredita que o tênis está se popularizando novamente. Um grande nú-
mero de condomínios com quadra de tênis tem incentivado novos praticantes.
Tem suas lojas em São Leopoldo e Porto Alegre, consolidou seu espaço como
referência no comércio de artigos para o tênis e, aos poucos, com a ajuda do
Piva, está retomando o negócio dos couros.
Ele finaliza dizendo que foi um tempo mágico... uma escola... lidar com as
pessoas... o carinho com as pessoas de Porto Alegre... são pessoas diferentes de
qualquer outro lugar do Brasil.
No fim da conversa, percebi a quantidade de vezes que havia escutado as pala-
vras educação, prosperidade e dignidade. Durante a hora e meia de entrevista, a
conversa foi leve e tranquila. Confirmei, de fato o Renato é uma pessoa especial.
Além disso, é o melhor encordoador do Brasil!
| 61 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
enxurrada de clientes que antecedia o Natal. Era o caos. Eram tantos que o
Waldemar precisava trancar a porta a chave para regular o entra e sai de gente. O
André até desconfia que alguns clientes poderiam matar por uma camisa Grand
Smash naquela época do ano. Esse grande volume de vendas levou o Nery a
alugar mais duas lojas.
Em 1983, em seu primeiro ano da faculdade de Engenharia Civil na UFRGS,
o André lembra que a família que morava no Lindoia, para reduzir a correria, se
muda para as Três Figueiras. Faz parte do negócio uma loja no 5ª Avenida Cen-
ter, que o Nery havia comprado pensando em ampliar seus negócios na região.
Mas em 1985, o Nery já pensava em vender a loja. Um empresário da região
de Lajeado se interessou pelo negócio, porém recuou ao ver na carteira de com-
pras da Nery&Beck o pedido “gigante” de camisas Lacoste. Como a tratativa já
estava formalizada, a desistência implicava pagamento de multa. O Nery declina
da multa, dizendo que não queria o dinheiro de alguém que não teve coragem
de fechar um negócio como aquele. Na verdade, usou uma expressão menos
elegante, porém não de todo estranha no ambiente dos negócios.
A participação do André nas lojas, além do frenesi de Natal, se deu pelo caminho
dos materiais para a construção, reforma e manutenção das quadras.
Em 1986, com a venda da Nery&Beck para o Velasco, a parte de materiais de
quadra ficou com a André Nery – FI, sob a marca Nery Tennis. Nessa época, o
André precisou ser emancipado para poder constituir essa empresa, que mante-
ve o endereço tradicional na Rua 24 de Outubro. Além disso, a bela fotografia
do catálogo da empresa já prenunciava outro talento do André que aprofunda-
ria por mais algum tempo seu vínculo como tênis.
O negócio dos materiais tinha uma dificuldade de escala. Como os materiais
eram quase todos feitos sob encomenda, muitas vezes para fornecedor indus-
trial, o lote econômico era inviável para o revendedor varejista. O André lem-
bra que, sob encomenda, a Gerdau produziu cinco toneladas de pregos para
quadras... cada quadra consumia cinco quilos de pregos... foi preciso pregar
muita fita no chão. As redes eram feitas a mão por renderias de São Leopol-
do, os postes em serralheria, e assim por diante. Passou a comprar as redes
em Santa Catarina. O fornecedor já envia as redes com as etiquetas e com os
reforços necessários. A introdução da fita plástica resolveu o problema de
corte da manta asfáltica, condenada por deixar em suspensão componentes
cancerígenos.
| 63 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
| 64 |
| Segundo Set |
Nery&Beck não pôde ser atendida. Segundo o André, o envelope sequer foi
aberto.
A manutenção daquela máquina sempre deu trabalho. Era uma correria atrás
de oficinas mecânicas que pudessem fazer os reparos, que pudessem fabricar as
peças para substituição.
No final da conversa, fico com a impressão de que surge uma das lembran-
ças mais queridas ao André. Ele me conta que, com certo senso de privilégio e
orgulho, usar o armário do avô na escada que descia para o vestiário do tênis lá
na Sogipa sempre teve um sentido especial. Na parte superior do armário, tipo
vitrine, ficavam alguns itens para venda. Coisas para primeiros socorros para
tenistas. Testeiras, munhequeiras, meias, viseiras e tubos de bolas. A parte de
baixo, fechada, era usada por ele para guardar suas coisas do tênis e do futebol.
Naqueles dias, seu avô fazia reparos à mão nos encordoamentos. Numa época
em que trocávamos duas ou três cordas apenas.
| 66 |
Match Point
E sse projeto ficou encubado por uns dois anos. Ao reencontrar o Renato já
com a loja em Porto Alegre, resolvi tirá-lo do papel. Pedi para ele o telefone do
Nery e começamos a conversar. Fizemos a primeira reunião na sua loja.
Em termos do calendário tenístico, o projeto começou a tomar forma em
Roland Garros e está sendo finalizado na semana de Indian Wells e da Copa
Gerdau. O Murray já quebrou a maldição de Fred Perry, mas lembrem-se, ele
votou pela independência da Escócia.
Nesse período, mergulhei na história do tênis. Li trabalhos acadêmicos, traba-
lhos jornalísticos, anedotas e encontrei muita informação dispersa de diversos
sites interessantes. Acredito que esse livro pode ser o primeiro de uma coleção
de trabalhos que venham a recuperar e registrar a história do tênis gaúcho. Te-
mos muitos clubes, empresários, dirigentes e jogadores que “fizeram história”.
A distância entre a lembrança e o esquecimento pode ser medida por uma folha
de papel.
No plano pessoal e profissional, como historiador, a experiência em realizar
esta pesquisa, colher os depoimentos e depois ordená-los buscando uma or-
ganização orientada pelo processo econômico, tecnológico e sóciopolítico da
época representou a oportunidade de conectar a inocência alienada das quadras
de tênis com os acontecimentos do núcleo duro do materialismo e da política
na história.
Encerro este trabalho já tendo o próximo projeto alinhavado. Há muito mais
a ser contado; outros personagens a serem iluminados e reconhecidos pelo tan-
to que realizaram pelo tênis.
| 67 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
Bibliografia
| 68 |
| Bibliografia |
Eletrônicas/Sites da WEB
www.vetorial.net/~tenisrg/historia.html
Santucci, Natália de Noronha www.snh2015.anpuh.org/resources/
anais/39/1439856941_ARQUIVO_Final-ClubesdeCiclismo.pdf disponível em
22/09/2015.
Mazo, Janice Z. e Cunha, Maria L.O. da. A criação dos clubs nas praças públicas da ci-
dade de Porto Alegre (1920-1940) in: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0101-32892010000200009 disponível em 22/09/2015.
www.tenisintegrado.com.br/perfil2/sobre/4301 disponível em 09/10/2015
www.ibge.gov.br em 25/11/2015
www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=783292 em 13/11/2015
www.gosen-eng.jp/eng/company/history.html disponível em 23/10/2015.
| 69 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
Recordações
em fotografias
| 70 |
Diferentes etiquetas utilizados desde os tempos da thomaz koch;
acervo Família Nery.
| 71 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
| 72 |
Beck e seus
companheiros de
tênis, na Sogipa.
Acervo Nilo A.
Beck.
Galeria de troféus
em homenagem ao
casal Luiza e Ernes-
to Petersen, orga-
nizada pelo Costa
Verde Tennis Clube,
Salvador/Bahia.
Foto cedida por
Agda Silva.
| 73 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
O atleta Arnaldo
Pedro Beck.
Acervo Nilo
A.Beck.
Acervo Nilo A.
Beck Seu Beck e o neto André na lendária
viagem à Bahia em busca da máquina de
encordoar.
Acervo Família Nery.
| 74 |
A Nery&Beck Ltda.
na rodoviária de
Porto Alegre sob o
nome fantasia de
Tabacaria e Lancheria
Cacique. Em detalhe,
o Nery presente
em ambas as fotos.
Vendendo discos de
vinil na tabacaria e
certamente, pastéis
na lancheira;
Acervo Família Nery.
| 75 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
| 76 |
Após a venda da N&B
em 1986, a Nery Tennis
mantém a comercia-
lização de produtos e
serviços para a cons-
trução e manutenção
de quadras de tênis.
Acervo Família Nery.
| 77 |
| NERY&BECK - Encordoando histórias do tênis |
Registros fotográficos
do André Nery.
Acima, o sempre
polêmico Marcelo Rios,
no Desafio da América
frente ao Guga. E ao
lado, Guga e Oncins
contra a Nova Zelândia.
Acervo Família Nery.
| 78 |
Timeless heroes – André
Nery registrou os
grandes Thomaz Koch e
Guillermo Vilas em Porto
Alegre pelo Campeonato
Intl. Dado Bier de
Veteranos.
Acervo Família Nery.
| 79 |
© Silvio Romero Martins Machado
Direitos reservados à Escritos Editora
1a edição, 2016
Catalogação na Fonte
M149N
80 p.: 21 cm.
CDD 796.342
Bibliotecária Responsável
Ginamara de Oliveira Lima
CRB 10/1204
Escritos Editora
www.escritos.com.br
www.facebook.com/escritoseditora