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DE HOJE NÃO PASSA!

Cler Oliveira

2015

Todos os direitos reservados.


Capitulo I ­ Pequenas Confissões

O lugar mais parecia um hotel do que uma clínica psiquiátrica. Pelo menos era assim que
Elisa se lembraria ao contar para os amigos e colegas de trabalho sempre que perguntassem. Tinha um
belo jardim, quartos individuais, aparelhos de ginástica e uma área comum bastante confortável para
assistir televisão.
Apenas um dos quatro lugares nos quais Ricardo prestava atendimento. De todos, o que mais
gostava e, talvez, o que menos pagava pelos seus serviços. Mas isso pouco ou nada importava já que
vinha de uma família na qual ganhar dinheiro com ativos era tão orgânico quanto respirar.
Parte dos pacientes eram trazidos pelo sistema público de saúde, o que não era o caso de
Elisa. A empresa para a qual trabalhava tinha um ótimo plano de saúde e, quando foi diagnosticada
com depressão, pagar pelo tratamento não estava entre as suas preocupações.
Os casos na São Lucas eram comuns. A maioria, problemas com drogas ou graus diferentes
de depressão. Grande parte dos pacientes pararam ali de maneira voluntária. Elisa, já havia estado na
clínica 10 meses antes e a conduta errada do profissional que a acompanhou depois da alta a levou de
volta aos cuidados de Ricardo.
Desta vez, Elisa parecia mais isolada. Passava longas horas sozinha, lendo ou escrevendo.
Pensando. Diferentemente da primeira vez em que esteve lá, não se aproximou de ninguém.
Nas consultas, falava pouco, apenas o básico. Da porta dos fundos da clínica ele enxergava o
amplo jardim no qual ela estava imóvel há 20 minutos. Muito mais do que a observar, Ricardo usava o
tempo para saber como começar a conversa. Ao descobrir, iniciou uma marcha serena até a paciente e
sentou ao seu lado.
­ Faz tempo que você está aí.
­ Eu sei, doutor ­ disse calmamente, sem alterar sua expressão.
Mesmo com os olhos fechados, Elisa sabia que aquela chegada sorrateira, acompanhada por
uma voz forte e terna, era de seu médico. O conhecia há menos de 1 ano e, quando lembrava do pouco
tempo de convivência, se espantava com o número de pequenas confissões que fizera para aquele
estranho conhecido.
O perfume dele, involuntariamente, a fazia desejar sua presença como quem deseja uma torta
de morangos ou um café apenas pelo aroma.
Sentada sobre a grama verde e bem aparada, como um indiozinho, ela observava, imóvel, os
últimos raios de sol por entre as palmeiras distantes. O céu, que antes era de um azul intenso, já
apresentava pinceladas de laranja, amarelo e cinza. O vento fraco e gélido que batia no rosto de Elisa
a fez fechar os olhos por alguns instantes, numa discreta satisfação.
Aos poucos, foi abrindo os olhos em silêncio até fitar os dele. O fio de luz que batia no rosto
do médico parecia não incomodar os pequenos olhos castanhos que estavam por de trás do óculos de
lentes finas e aros elegantes. Um homem com uma beleza acima da média e um sorriso acolhedor.
Seus cabelos castanhos eram milimetricamente alinhado e com alguns fios brancos que nasceram por
antecipação. Muito jovem para ser velho. Os grisalhos aumentavam seu charme.
Era bom vê­lo ali, disposto e com uma conexão, mesmo que por força do ofício, voltada
exclusivamente para ela. A senha para que continuasse algo que ninguém oficialmente havia
começado.
­ Sabe o que eu acho, doutor?
Ricardo se ajeitou na grama e tirou os sapatos. Ela tinha sua atenção.
­ Que é admirável o esforço de vocês, médicos. Mas algumas pessoas nasceram para ser feliz,
outras não. Existem pessoas que nasceram para viver intensamente e outras não. Existem pessoas que,
por mais que vocês lutem, tentem, mediquem, se dediquem, nunca serão curadas porque infelicidade,
doutor, não tem cura. Já disse Scliar: "Há muitas guerras e algumas se luta sozinho".
"Há muitas guerras e algumas se luta sozinho"​ . Contra um argumento tão forte era preciso
cuidado. Elisa era assustadoramente inteligente. Talvez, seu altíssimo Q. I. fosse a maior causa de sua
depressão. Sua percepção de mundo era admiravelmente lógica. Precisa. Certeira.
Seus grandes olhos azuis pareciam saídos da mesa de um desenhista de mangá. Emitiam uma
vida que morrera há alguns anos. O cabelo cuidadosamente amarrado em um rabo de cavalo
demonstrava que ainda havia um pouco de vaidade no mundo de Elisa. Algo que ela insistia em
esconder.
Não raras as vezes fazia perguntas a ele as quais nunca ninguém, nos seus seis anos de
medicina, havia feito. As respostas não encontraria em nenhuma aula da faculdade. Estar com ela era
uma espécie de trabalho de conclusão de curso. Elisa era surpreendente.
­ Como você conheceu a sua esposa?
­ Como eu o quê?! ­ perguntou sem esconder a surpresa.
­ Conheceu a sua esposa ­ repetiu calma e firme ­ . É casado, suponho.
Sim. Ele era. Infelizmente.
Capítulo II ­ Laura

Aos 32, Ricardo já acumulava dois casamentos de papel passado. Gostava de se envolver com
as pessoas. Simpático e inteligente, conseguia com quase todos de quem se aproximava. Infelizmente
isso não aconteceu com a sua primeira esposa e levou dois anos e seis meses para descobrir que nem
com a segunda: Laura.
Nem o fato de Laura ser fã de ​ Breaking Bad, saber preparar um ótimo sushi e, nos raros
momentos de bom humor, ser extremamente engraçada, poderia salvar o casamento que se arrastava
há três longos anos. Nos últimos seis meses, Ricardo ensaiou 24 tentativas de pedir o divórcio.
Desnecessário dizer que todas sem êxito.
Em voz alta, dizia que o seu maior medo, como psiquiatra, era de ela fazer um escândalo de
proporções estaduais e, com isso, perder boa parte de seus clientes. "Laura é impulsiva e sabe fazer
um bom barraco quando é contrariada".
Lembrou de quando o mecânico cobrou 30 reais para fazer algo que ela descobriu que
qualquer outro faria de graça, o pobre e salafrário se obrigou a deletar até a conta no Facebook!
Imagina o que ela poderia fazer com Ricardo.
Para si, não era capaz de admitir que morria de medo de sentir culpa. Lembrou de todas as
vezes que pegou uma revista de fofoca e criticou Fábio Jr. simplesmente por ele trocar de mulher com
mais frequência do que a toalha com a qual tomava banho.
Laura não era uma pessoa ruim, daquelas que seria fácil apontar os motivos para uma
separação. Era amável, adorava crianças e cedo descobriu uma forma de ganhar muito dinheiro com
elas tornando­se em uma importante pediatra.
Mas também era temperamental. Possessiva. Impulsiva. Se tornava fútil ao ler revistas
femininas em voz alta destacando um produto muito mais pelo preço do que pela utilidade. Fazia um
barulho estranho com o nariz quando gargalhava, sempre o arranhava com suas unhas quadradas
pintadas de vermelho.
Ricardo achava que tinha feito um ótimo trabalho na luta de reunir motivos que justificassem
o desejo da separação, porém, via que falhava miseravelmente ao não levar adiante a conclusão de
seus planos.
Até Elisa o surpreender com uma pergunta inicialmente sem cabimento ele nunca havia
parado para pensar como de fato conheceu Laura. Nunca ninguém havia perguntado isso.
Curiosamente, nem nas constrangedoras festas de família nas quais sempre inventava uma urgência
médica para sair antes mesmo de o jantar ser servido.
Era desconcertante e inapropriado falar sobre isso com sua paciente, mas havia algo naquela
atitude que ele não poderia ignorar. Elisa estava tão segura que, de alguma forma, ele decidiu jogar
seu jogo na esperança de a resposta os levar a algum processo terapêutico pelo qual nunca estivera
antes.
­ Foi em um seminário ­ lembrou.
E, imediatamente, lhe veio a imagem do maldito seminário no Ceará. Aquele para o qual
bateu pé e disse que não iria de jeito nenhum, simplesmente porque odiava seminários, simpósios ou
qualquer pretexto para reunir outros médicos psiquiatras. Na concepção de Ricardo, a maioria deles
não conseguia pensar um parágrafo além dos livros e, em grande parte do tempo, prestavam
desserviços.
Mas Henrique, colega de profissão e melhor amigo, foi bem convincente ao falar de um resort
no qual conseguiriam se hospedar em troca de pouquíssimos reais, benefício com o qual poderia
contar por ter sido amante da mulher do dono.
­ Ric, a gente passa a vida resolvendo problemas dos outros. Qual o erro de tirarmos um
tempo, com uma boa desculpa, para desopilarmos dos nossos? ­ Henrique usou um argumento
bastante raso mas que funcionou com Ricardo visto que, na época, não diferente de agora, ele estava
soterrado em problemas pessoais.
Maldito Henrique!
A primeira palestra, pelo cronograma, era com uma tal de Laura Gurgel, pessoa da qual nem
Ricardo, nem Henrique ouviram falar antes daquele dia. Ela e nem o assunto os interessavam já que
ela era pediatra e Ricardo nunca pensou em tratar de crianças.
Chamar a atenção de Laura não era algo que, nem de longe, estava nos seus planos para
aquele seminário, mas ele, sem muito esforço, costumava hipnotizava mulheres ­ e homens ­ aonde
estivesse. "Se tu ganhasse 1 real por cada pessoa que se apaixona por ti à primeira vista...".
Ricardo sabia que se a lógica de Henrique estivesse certa, transformar flertes em valor
monetário não seria um bom negócio já que, segundo suas contas, no máximo teria ganho uns 130
reais.
Enquanto outros homens tinham que pensar em estratégias e logísticas para terem êxito nas
conquistas, para Ricardo bastava um sorriso, um tom de voz mais baixo, um olhar e lá estava mais um
corpo em sua cama.
Seu sorriso era perfeito e sempre genuíno. Do alto dos seus 193 centímetros via o mundo se
render a seu corpo cuidadosamente esculpido na academia e nas corridas de fim de tarde nas quadras
próximo a sua majestosa casa.
Caso fosse famoso, os olhos castanhos (e que olhos!) seriam um convite para brotar escritores
fanfics ​
de ​ na velocidade da luz. Por conta de seu corpo e carisma, tivera toda a sorte de experiências
afetivas e sexuais. Discreto, muitas delas não eram de conhecimento nem de seu melhor amigo e
confidente. Embora homens e mulheres que, facilmente, seriam ícones dos padrões de beleza já
tivessem se relacionado com Ricardo, seu ponto fraco eram as gordinhas. Mulheres cheias de vida,
charme, inteligência, alegria. Porém, eram justamente as gordinhas que o evitava e tornava a
conquista mais difícil.
No dia em que viu Laura pela primeira vez, a bem da verdade, ele estava mais a fim de passar
o seu tempo conversando com Giovanna, a ruiva da recepção do resort, sobre séries de TV.
“Linda ela”. Pensou em voz alta.
­ Quem? A médica do cabelão crespo e cintura fina, aquela da palestra? ­ Henrique
visivelmente estava encantado com as medidas da médica pediatra.
­ Não, a menina da recepção.
­ A gordinha do cabelo vermelho?
­ Giovanna, é o nome dela.
­ Viu que a médica, a da palestra, tá ali, só olhando para nós?
­ Nem percebi. Só sei que estou com fome. A palestra dela foi muito entendiante. a mulher
não tem didática.
­ Mas tem um corpo maravilhoso.
Ricardo nem lembra como iniciou a conversa com Laura. Só que, no final daquela noite
estava jantando com ela no resort em uma mesa da qual conseguia enxergar a gordinha da recepção.
Em seis meses estava casado com a médica da palestra. E lá se foram três anos.
Três anos de sushis e gritos por tantos motivos fúteis que Ricardo já nem lembrava quando
começou a pensar em separação. Talvez, quando a secretária nova começou a trabalhar no consultório
de Henrique. Pelo menos uma vez por semana ele a via enquanto aguardava o amigo pra almoçar em
algum restaurante que servisse uma boa massa. Ela sempre sorria de maneira singela, mas logo
desviava o olhar. Típico de quem passou a vida sofrendo bullying por não ter um corpo padrão. Seus
seios eram fartos e muitas vezes impediam o botão da camisa de atravessar a casa. Que sorriso!
“Hoje eu termino tudo com a Laura. E quando eu fizer isso, no dia seguinte, convido essa
menina pra sair!” ​ Pequenas distrações que habitavam sua mente enquanto aguardava o amigo atender
o último paciente. “​Vou inventar uma briga. Qualquer briga na qual ela perca a cabeça, a razão e, na
falta de argumento termine tudo de uma vez. Vai querer voltar, dizendo que foi por impulso, mas…”
­ Vamos comer onde, Ric?
­ Tem que ser perto porque vou pra clínica mais cedo hoje.
­ Problemas?
­ Sim. Elisa.
Capítulo III ­ Incondicionalmente

Ricardo deu um longo suspiro como se esperasse algo surpreendente de Elisa. Afinal ele deu a
ela algo que jamais havia dado a outro paciente: uma parte de sua história. Ela sorriu discretamente e,
se sentindo dona da situação, disse:
­ Me coloco nesse seminário. Eu poderia ter cantado o Hino Nacional, dançado a dança do
ventre, ter sido assistente de microfone durante todo o momento de perguntas que eu jamais seria
notada. Poderia ter sentado ao seu lado e ter puxado um assunto qualquer. Eu nunca iria chamar a tua
atenção. Nem a de pessoa alguma. As minhas histórias são incompletas, doutor. Eu sou incompleta.
Nunca ninguém se interessa por mim. Sou o exemplo daquilo que deu errado. Daquela que ninguém
quer ser.
Fez uma breve pausa e continuou sua marcha em direção a um lugar totalmente desconhecido
para o médico.
­ Estivesse eu no circo ou na igreja ou num campo de concentração, a minha história seria a
mesma. E uso você como exemplo porque apenas quem está aqui é eu e você. Se estivesse em uma
feira livre, em um concerto de sopros ou em um show em Copacabana, eu poderia fazer essa mesma
pergunta para cada pessoa que ocupa o espaço. A resposta seria a mesma: eu não estaria na história de
ninguém.
Ricardo ficou em silêncio. Não sabia o que dizer. Não entendia aonde ela iria com aquela
afirmação. Ficou em silêncio, admirado com a força das palavras daquela guria.
Aos 28 anos era uma das jornalistas mais requisitadas por empresas do ramo alimentício.
Como seria sua vida caso aos 7 não tivesse sido abusada pelo padrasto? Era o que Ricardo se
perguntava sempre que abria seu prontuário. Seus grandes olhos azuis ficavam ainda maiores quando,
de maneira serena, olhava diretamente nos de Ricardo, como se quisesse confrontar toda experiência
do psiquiatra com a sua, de pessoa em constante sofrimento.
Era solteira, não tinha filhos e Ricardo a imaginava se maldizendo todas as vezes em que se
olhava no espelho. O mundo poderia ser um criadouro de idiotas mas Elisa jamais estaria entre eles.
Frequentadora de galerias de arte, era admiradora do período renascentista."quem dera fosse
pra sempre assim". Acalentava o sonho de ir a Paris, no Museu do Louvre, mas sua competência
profissional nunca refletiu na sua renda. Logo, mal tinha dinheiro para viver com muitas dívidas e
poucos desejos.
­ O que eu quero dizer é que é impossível ser feliz sozinho. Eu sou sozinha. Não tenho
conexão com ninguém. Por que eu deveria subverter a lógica de Jobim? Se não existe essa
possibilidade, por que diabos, você e suas pílulas iriam me trazer essa felicidade? Estamos perdendo
tempo aqui. É o que eu acho.
Sentado ao lado dela no jardim, ele pensava em uma boa resposta. Não queria se colocar em
um labirinto como sempre fazia quando iniciava uma conversa com Elisa. Era muito difícil sair dele.
­ As pessoas não são iguais. Acho que é isso que quer me dizer, Elisa. Que cada um tem a sua
sorte. Devo confessar que gosto da minha. Por isso estou sentado aqui, na grama, com medo de ser
picado por uma formiga, apenas para tentar te ajudar. É o que eu faço. É o que sei e gosto de fazer.
Ela sorriu discretamente.
­ Você não é obrigada a nada, mas antes de negar qualquer coisa, deve saber que depressão é
doença. É isso que você tem que ter bem claro na sua cabeça. E você é uma pessoa que, no momento,
está doente. Eu sou médico. Minha função é ajudar.
­ Se eu quiser ajuda. Mas eu não quero. Estou achando tudo isso uma perda de tempo.
­ O que é uma perda de tempo?
­ Eu estar aqui, tirando o lugar de uma outra pessoa que realmente quer se tratar. Estar aqui
pela segunda vez, em menos de um ano, ser taxada de depressiva, tomar remédios. Me diz, pra quê? É
isso que eu não entendo ­ ela voltou a fitar os olhos do médico carregando o mesmo ar de serenidade ­
PRA QUÊ?
­ Para que você se sinta bem.
O médico levantou e voltou a sentar no chão, desta vez, de frente pra ela, de maneira que, mesmo se
ela quisesse, não poderia desviar o olhar. A figura daquele homem, vestido elegantemente em uma
jaqueta de couro preta, ocupou toda a sua linha de visão. Pela primeira vez ele ficou sério.
­ Vou lhe contar um segredo.
­ Por que vais me contar um segredo? Se é segredo acho que não deveria me contar.
­ Porque quero fazer uma troca contigo: eu conto um segredo...
­ E…
­ ... você me deixa ajudar. Confia em mim. Incondicionalmente.
Ela sorriu como se não acreditasse no que acabara de ouvir. Era a proposta mais insana que
alguém já havia lhe feito. Nem a promessa de uma dieta em troca de um corpo menos voluptuoso
poderia ser tão insolente. No impulso, ela levantou e se afastou do médico que continuou sentado. Foi
até a mureta, que ficava há uns 5 metros, e de lá, com os braços abertos, gritou:
­ O que te faz acreditar que seu segredo seja tão bom a ponto de trocar pela minha confiança?
Levantando vagarosamente, o médico foi em direção à paciente, limpando a grama que havia
ficado grudada nas calças com uma mão e segurando os sapatos com a outra.
­ Nada. Posso estar blefando, mas gostaria de tentar.
Capítulo IV ­ Flores Roxas e Amarelas

­ OK, vamos lá! ­ disse no meio de um longo suspiro enquanto calçava os sapatos com
dificuldade ­ Eu escrevo. Sou escritor. Além de médico, tenho um livro de contos publicado. Já ganhei
prêmio por isso.
­ Esse é o seu segredo, doutor Jeckyll?
­ Nunca disse isso a paciente nenhum. Considere um privilégio. Mas não, esse não é o meu
segredo.
Ela o fitou.
­ Eu, assim como você, também me trato. Faço terapia uma vez por semana. Não porque é
aconselhável que psiquiatras façam terapia, mas porque sofri uma grande perda. Por causa disso, parei
de clinicar por 6 meses. E, se não acredita que tratamentos psiquiátricos podem ajudar a mais
desesperançosa criatura, bom, tenho que lhe dizer que tu estás falando com um fantasma porque eu já
deveria ter morrido há quatro anos.
Ricardo começava a conseguir, senão a confiança de Elisa, pelo menos, sua total e irrestrita
atenção.
"Há quatro anos eu atendi uma paciente. Ela era jovem, tinha uns 25 anos. Lembro do dia em
que entrou no meu consultório. Era a última da tarde. Eu estava cansado, mas precisava atendê­la. Fiz
a entrevista padrão e começamos um plano terapêutico.
­ Se não quiser falar a respeito, não precisa.
­ Você não quer mais ouvir? ­ perguntou ele em um tom carregado de sarcasmo.
­ Quero, claro que quero. Sou jornalista. Histórias me interessam. Mas você parece resistir ao
me contar.
­ Decidi fazer isso e vou fazer. Pode ser um erro que custe o meu registro no Conselho
Regional de Medicina, mas não quero voltar atrás ­ mais um longo suspiro ­ ela ia ao meu consultório
duas vezes por mês. Era uma pessoa interessante. Falava pouco e sempre escolhia os últimos horários
para se consultar. Isso dificultava a minha compreensão. As consultas eram de apenas 30 minutos e eu
estava sempre muito, mas muito cansado. Porém a atendia com atenção. A fazia se sentir bem. Pelo
menos tentava. Comecei a receitar medicamentos e indiquei psicoterapia, mas ela não podia pagar por
mais esse tratamento. Então aumentei o tempo de suas consultas para 45 minutos. Estivemos em
tratamento por quatro meses. Até que ela não veio em uma consulta. Eu tomei aquela falta como uma
falta normal, de uma paciente normal. Eu deveria ter desconfiado que…
­ Você não poderia saber. Ninguém pode.
­ Mas, Elisa, eu poderia. Na verdade, deveria... ­ uma longa pausa que a curiosidade de Elisa
não ousaria quebrar ­ Uma semana depois um senhor, de uns 60 anos, estava a minha espera na
recepção do meu consultório. Junto com ele, um menino de uns 10. Quando cheguei perto da porta ele
perguntou:
­ Doutor Ricardo?
­ Sim. Sou eu.
­ Posso falar dois minutos com o senhor?
­ É paciente novo?
­ Não. Sou o pai da... ­ e tirou uma foto da paciente do bolso.
­ Maria Clara. Ela está bem?
"Os olhos do velho ficaram marejados ao ponto de desaguar sobre a pele enrugada do rosto do
homem. Lembro que naquele momento recebi um soco imaginário no estômago o qual me tirou o ar
por alguns instantes. Por razões de ética, de moral, de humanidade eu me senti culpado.
Extremamente culpado.
"Lembro daquele senhor, emocionado, me entregando um envelope fechado com meu nome
no lugar do destinatário e o nome dela como remetente.
"Olhei para minha secretária e perguntei pelo próximo paciente. Ela disse que haveria um em
dez minutos. Então pedi para que ele e o garotinho entrassem.
­ O garoto era filho dela? ­ Elisa queria todos os detalhes.
"Eu supliquei a todas as forças do céu e do inferno para que não fosse, embora não tivesse
coragem de perguntar. O menino me olhava e eu, tão acostumado a lidar com os mais variados
comportamentos humano, não sabia se o encarava ou ignorava a sua presença. Até que ele, mais
corajoso do que eu, iniciou a conversa:
­ Era aqui que ela vinha...
­ Sim ­ respondi timidamente.
­ Reconheci pelo quadro na parede. Ela sempre me falava dele ­ ele disse no meio de um
sorriso inocente que apenas uma criança consegue ter ­ dizia que esse vaso com flores roxas e
amarelas era igual ao que ela tinha nos fundos da casa quando era pequena.
­ Você gosta?
­ Sim.
"Quando menos esperei, fomos interrompidos pelo senhor do envelope.
­ Eu não sei o que dizer ao senhor... ela nunca ouviu ninguém. Sempre achou que poderia
fazer o que queria. E fez.
­ O senhor quer falar a respeito?
­ Não, doutor. És um homem ocupado. Não quero lhe tirar seu tempo. Vi a moça lhe dizer que
o próximo paciente é as cinco. Já são quase cinco.
"Fiquei desconcertado com a simplicidade e educação do homem que não recusou a minha
ajuda pela culpa que eu pensei que ele havia depositado em mim mas pela minha falta de tempo.
­ O senhor tem razão. Mas se quiser conversar posso marcar um outro horário, de maneira
gratuita.
­ Não. Não precisa, doutor. Agradeço a gentileza. O senhor fez o que podia pela minha filha
mas ninguém poderia impedir. Vim apenas entregar o envelope para o senhor. Deve ser importante.
Não abri porque não era meu. Encontramos dentro da Bíblia dela.
­ Vou ler.
"E não disse mais nada. O homem, eu nunca mais encontrei. Nem a criança. Mas a lembrança
daquela tarde me visita a mente todos os dias. Todo santo dia!
­ É por isso que você faz tratamento? Para não se sentir culpado? Para esquecer o que
aconteceu?
­ Ninguém se trata para esquecer ­ respondeu de maneira surpreendentemente energética ­
Nos tratamos para lidar com as adversidades. Elas estão sempre conosco. Quer queira ou não! Nos
tratamos para poder conviver com isso já que não podemos nos livrar. Para poder sorrir, amar, desejar,
sonhar, odiar, sermos humanos independentemente de nossa vida ser ruim ou não. De nossos erros nos
fazer pensar que não merecemos mais viver. É por isso que nos tratamos. Para que o nosso
subconsciente vire nosso aliado e não nosso maior inimigo, Elisa!
Os dois ficaram em silêncio por um longo tempo. De maneira cuidadosa, Elisa continuou.
­ E a carta? O que tinha nela?
­ Eu não sei.
­ Como assim? Não leu?
­ Não.
­ Mas você disse que iria ler. Disse que…
­ Eu nunca tive coragem. Ela foi a primeira e única que perdi. Na hora seguinte eu atendi meu
paciente das cinco, mas não tive condições de atender os dos dias que se seguiram. Desta forma,
transferi todas as consultas para outro médico alegando estar doente. E eu não menti. Estava doente.
Muito doente. Não conseguia comer, nem dormir. Meu melhor amigo tinha receio de me perguntar o
que estava acontecendo e pediu para que um amigo em comum, também psiquiatra, fosse me visitar.
­ Mas você está se tratando para…
­ Aprender a viver com isso. Não para abrir cartas. Toda a vez que trato um paciente sempre
vejo o olhar daquela moça e me pergunto o que eu poderia ter feito para salvá­la. O que eu poderia ter
feito e não fiz. O que eu tenho que fazer para que isso não volte a acontecer. O que depende de mim.
O que não depende.
­ Deve ser difícil…
­ E é.
­ Então você não quer me salvar. Não quer me curar. Quer se livrar de uma culpa... isso é o
que te motiva.
­ Não. Como médico, quero sempre curar as pessoas. Quero o melhor para elas. Quero que
elas vivam bem. Como pessoa, quero me sentir bem por isso. Não cometer os mesmos erros e fazer o
que for possível para evitá­los. Mesmo que para isso eu tenha que me despir de toda a teoria e encarar
a minha fraqueza diante de alguém que está em dúvida se quer viver ou deixar de viver.
­ Eu.
­ É.
­ Esse é o seu segredo?
Ele riu um riso sincero.
­ Não.
­ Não?
­ Não.
Capítulo V ­ Jorge e Mateus

­ Chegou cedo.
­ É... Precisamos conversar, Laura.
­ Melhor ter chegado mais cedinho. Assim não pegamos engarrafamento.
­ Engarrafamento?!
­ Sim. Como vamos buscar a Cláudia e o Marcos na Onze de Julho, e lá sempre tem
congestionamento, não corremos o risco de chegarmos atrasados.
Acordado de um coma profundo. Assim Ricardo se sentia enquanto as palavras saíam do
bocão vermelho de Laura. Achou melhor olhar discretamente na agenda do iPhone. Se fosse
realidade, estaria lá registrado.
Show​ .
E estava.
Jorge e Mateus! Que diabos ele iria fazer em um show do Jorge e Mateus e quando havia
concordado com isso? Ainda mais com a Cláudia, sua ex namorada, casada com Marcos, ex­noivo de
Laura. Casal insuportável! Quando havia incluso esse compromisso sendo que nem sabe quem é…
­ Jorge e Mateus?! Ricardo, por favor! Lembra que aquele seu amigo da empresa de
engenharia, que vai reformar o meu consultório, nos ofereceu um dos shows que ele estava
patrocinando?
O envelope! Os ingressos estavam num maldito envelope prata o qual ele não abriu e que
gerou a conversa mais absurda que teve com alguém:
­ Vocês gostaram do show que selecionei? ­ perguntou o dono da empresa de engenharia cujo
nome Ricardo não lembraria nem que tivesse dez anos para isso. Aliás, Ricardo nem sabia que o tal
cara tinha acesso a ingressos para shows. Não fazia ideia como aquilo aconteceu já que dele tudo o
que sabia era que iria reformar o consultório de Laura.
­ Muito. Vamos. Com certeza.
­ É camarote. Dois dos melhores lugares.
­ Sim, sim... Eu vi. Muito obrigado.
­ Espero que goste do show que escolhi.
­ Sim. Adoro. A Laura é bastante fã também.
E foi assim que ele se viu ao tempo de um banho e uma troca de roupa do caminho para o
show de Jorge e Mateus. Justo na noite em que chegara mais cedo para por o ponto que faltava no
casamento com Laura.
­ Sabia que a Cláudia já foi a 17 shows de Jorge e Mateus?
­ Ah é? ­ gritou ele do banheiro, deixando um rastro de roupas do corredor até o box, pouco se
importando com o que Cláudia faz ou deixa de fazer.
­ Ela fez uma playlist no Spotify e compartilhou comigo. Acho que será uma noite como há
tempos não temos.
O silêncio de Ricardo era tudo o que Laura ouviu como resposta. Enquanto a névoa quente do
chuveiro embaçava todas as placas de espelho e vidro do banheiro, ele pensava. De dentro do box
entreaberto sentia o peso de cada gota d'água que percorria o caminho que começava nos seus cabelos
castanhos, passando pela boca, descendo os traços do pescoço, pelo peito, os músculos definidos do
abdômen, seu sexo até morrerem nos pés. Eram navalhas. Não lavavam a angústia de passar mais um
dia ao lado de Laura e não aliviavam o desastroso fato das frustrações do seu casamento desaguarem
em um show de Jorge e Mateus.
Enquanto esfregava a toalha branca nos cabelos pensou em dizer que não iria mais. Mas
lembrou que Laura não dirigia, Cláudia perdera a licença há dois anos e Marcos era um irresponsável
ao volante. Ele queria apenas se separar de Laura e não a ver estirada na beira de uma estrada por
imprudência.
­ Como você conheceu o Marcos, Laura?
Da varanda, ela não tinha certeza se entendera a pergunta.
­ Como eu o quê?
­ Conheceu o Marcos, marido da Cláudia, seu ex­noi…
­ Eu sei quem é o Marcos, Ricardo! Mas, por que essa pergunta agora? ­ dizia em um tom
mais alto que de costume enquanto colocava os complicados brincos, parada na porta aberta do
banheiro. Ricardo permanecia alheio a sua presença, nu, envolto pela névoa deixada pelo chuveiro
quente e pelo cheiro de sabonete de amêndoas.
­ Você nunca me contou como conheceu Marcos.
­ Ah, faz tanto tempo isso... Por que quer saber?
­ Estou tentando apenas conversar e, a bem da verdade, você nunca me contou... Talvez
porque eu nunca perguntei.
­ Sim, você nunca perguntou. Mas…
­ Como conheceu o Marcos?
­ Foi num evento da faculdade. Nem lembro qual. Eu estava segurando um livro que era um
exemplar único da biblioteca e ele precisava para um trabalho.
Ricardo ouvia enquanto limpava o bafo no espelho com uma das mãos antes de escovar os dentes.
­ Foi assim... nos vimos outras vezes até nos encontrarmos em uma festa. Anos depois,
quando terminamos, ele confessou que só ficou comigo porque eu era inteligente. Ele me achava feia.
­ Sério? ­ Ricardo começou a gargalhar ­ Quando eu te vi pela primeira vez, Laura, o
Henrique estava mais a fim de você do que eu. Em um primeiro momento, ele quem se encantou por
sua beleza. Você é linda.
­ Eu era alta e muito magra. Não sabia usar essas características a meu favor. Usava roupas
que não me favoreciam. Desajeitada. Não me maquiava... Mas feia eu não era. Tinha meu charme
geek​, quando ​geek ​nem ainda era uma palavra.
Os dois tiveram um momento de cumplicidade. Por alguns minutos, Ricardo se sentiu
novamente conectado à Laura. Que sorriso! Que mulher maravilhosa está aqui, parada, me vendo nu e
despido de qualquer bobagem.
­E por que terminaram?
­ Por que ele disse, da forma mais direta possível, que não me amava. Foi difícil. A definição
para “desastre”. Não consigo entender como recuperei do tombo. Não sei lidar com rejeição. Acho
que até hoje...
Ricardo passou a olhar ela de frente, enquanto ela procurava parte do passado no chão.
Finalmente entendera a pergunta de Elisa. Não era pela resposta. Pouco importaria à paciente se ele
estivesse falando a verdade ou inventando uma história. Era pela conexão. ​ É isso ...Elisa!
­ Quem é Elisa, Ricardo?
­ Uma paciente. Estou bastante preocupado com ela. Medo de estar sendo negligente ou muito
ousado ou…
­ Você é um ótimo psiquiatra. Vai achar um meio de resolver as coisas. Agora vamos! Coloca
uma roupa ou vamos chegar atrasados.
Do banheiro, Ricardo ouviu ao longe o telefone profissional tocar. Era quase como um
contato da Central de Polícia: quem quer que estivesse do outro lado da linha não teria algo bom ou
divertido para comunicar. Os dois apenas se olharam.
­ Deixa que eu alcanço o telefone.
Ricardo franziu a testa. Poderia ter ignorado ou retornado após o show, mas atendeu. E nada mais
seria como antes.
Capítulo VI ­ Erros

Para Ricardo, a pior contrapartida em ser psiquiatra era a falta de domínio sobre os próprios
compromissos. Algo que, se como médico ainda não havia se acostumado, como pessoa, já deveria.
Afinal, nasceu na noite de ano novo, 15 dias antes da previsão do obstetra. Quase que de improviso.
Não ter ido ao show de Jorge e Mateus certamente não entraria para a lista dos
ressentimentos. Pra ser honesto, ele não fazia nenhuma questão de estar lá. A vida já foi menos justa
quando o fez perder um jantar de Natal em um hotel­fazenda por conta de uma tentativa de suicídio de
um paciente.
Já eram tantas experiências que, de antemão já sabia: quando o telefone toca nunca, de
maneira alguma, é algo bom. "Se fosse boa coisa falariam pessoalmente". E de fato todas as
experiências que tivera serviram para comprovar a sua teoria.

As pessoas exageram situações. As pintam muito mais sensacionais para prender a


nossa atenção. A disputada atenção de um médico. De uma situação ruim, fazem um bom
filme com um bom roteiro e uma boa direção. Não sabem a diferença entre urgência e
emergência, prioridade de acontecimentos cotidiano. Nós, médicos, somos vítimas, na
maioria das vezes, do nosso próprio status. Queremos nos colocar diante da sociedade como
cópias rotas de Deus e, quando nos pedem para estarmos em toda parte, resolver os
problemas de todos, achamos ruim. Embora finjamos que aceitamos naturalmente o nosso
ofício, ao que alguns de nós chamam de "missão".
As pessoas tentam, a todo custo, se conectar a nós, afinal, invadimos seus anseios,
violamos seus corpos, curamos suas dores e sumimos de suas vidas. Todas nos chamam de
"meu médico" mas não somos de ninguém. Não pertencemos a ninguém, nem a nós mesmos.
Fingimos que a relação paciente e profissional existe, mas, a verdade é que, nós médicos,
não queremos perder o status de deus. Queremos curar sem amar. É o nosso ofício.
Quando as pessoas nos ligam para relatar uma emergência pedem desculpas, mas,
na verdade, se sentem felizes por achar que estão conectadas ao deus que fica atrás da mesa.
Nos tem além do consultório. Se sentem íntimas, nossos donos. A nossa missão.

A mente de Ricardo tentava achar sentido em ir à clínica em plena quarta­feira à noite.


Prometeu pra si mesmo que ligaria o foda­se. Resolveria o que tivesse que resolver de maneira rápida
e voltaria para casa a tempo de assistir tudo o que deixou pendente na Netflix antes mesmo de dormir.
Ao chegar na clínica o indiferente foda­se deu lugar à angústia. Sentiu medo. Havia sangue
por toda parte. Os móveis brancos, comprados depois da reforma na recepção, exibiam respingos
marrom e marcas de desespero misturadas ao cheiro inconfundível de dor.
A medida em que avançava pelo corredor vazio sentia estar mais perto do centro da situação
que o levou até lá. Ao longe, gritos raivosos de um homem fora de controle. Ao apontar na porta da
sala viu Jorge, seu paciente, cercado a uma distância respeitável de todos os funcionários da casa,
cinco policiais e dois ou três pacientes curiosos.
A enfermeira mais velha do local, ao vê­lo, veio a seu encontro com as mãos em súplica.
­ Graças a Deus o senhor chegou!
Em uma situação normal teria ficado irritado com a frase já que era ateu e odiava ser chamado
de "senhor". Mas aquilo não era uma situação normal. Caso fosse, as roupas imaculadas da equipe de
enfermagem não estariam sujas de sangue e de uma substância que não conseguia identificar.
Continuou parado.
Jorge urrava e transformava o medo dos policiais em gritos despreparados de autoridade.
­ Acalma! Pensa que tá lidando com quem?! ­ gritou o policial mais baixo de todos.
Ricardo continuava imóvel. A observação lhe dava elementos para tentar entender o que, aos
prantos, a velha enfermeira tentava explicar: o vidro quebrado e o sangue escorrendo nos restos de
cacos. A mão ensanguentada do profundo corte no antebraço de Jorge. O rastro de sangue
desordenado e as roupas sujas. Os olhos vidrados do paciente e o medo dos policiais. O grande pedaço
de vidro quebrado em uma das mãos.
Era hora de acabar com o espetáculo e mostrar porque ele era, dos presentes, o mais bem
remunerado. Sem alterar o tom de voz, alheio a Jorge, cumprimentou os policiais e pediu para que se
retirassem.
­ Se formos, não poderemos garantir a sua segurança, doutor, e nem das pessoas aqui.
­ Eu sei ­ disse sem perder a falsa calma que sentia ­ Não vou precisar de segurança.

Tenho que ser firme.

Os policiais foram se afastando, assim como a enfermeira e os técnicos de enfermagem.

Tenho que ser firme.

­ Ninguém no corredor! ­ ordenou.


Do quarto, Elisa ouviu a ordem. Nem respirava para que o som da respiração não a impedisse
de ouvir o que acontecia na sala de televisão.

Silêncio.
Um estrondo. Uma luta corporal.
Silêncio novamente.

Elisa não conseguia segurar a ansiedade e, contrariando a ordem, caminhou como se não
tocasse o chão, sem fazer barulho. Sua discrição passou despercebida por Jorge, mas não pelo médico
que fez um sinal com os olhos para ela cair fora.
Se escondeu na parede do corredor onde ficou por quase uma hora, sentada no chão.

Por quase UMA HORA.

­ Frio para ficar aqui.


O susto a fez arregalar os grandes olhos azuis e arremessar o corpo contra a parede em um
pulo. Ricardo sorriu. Exausto sentou ao lado dela sem falar nada. Arrumou o óculos e, sem querer,
expôs a mão suja do sangue de Jorge.
­ O que ele tinha?
­ Estava em surto. Agressivo.
­ E o sangue?
Ricardo suspirou fundo. Não queria conversar. Não depois de saber que parte do sangue
espalhado era do técnico de enfermagem mais inexperiente da equipe. Jorge quebrara a janela numa
tentativa desesperada de fuga e, com um dos cacos, feriu gravemente o negro magrinho de óculos que,
pela primeira vez, trabalhava na profissão na qual passou anos estudando.
Levantou e, só de imaginar a cena do pobre sendo retalhado pela fúria do homem, sentiu
tontura. A vulnerabilidade do médico a excitou. Pela primeira vez o viu como alguém frágil e, ao
mesmo tempo, viril. Elisa fez menção de ajudar mas, instintivamente, Ricardo a afastou, não por
dispensar a sua ajuda, mas por, em frações de segundos, ter visto, involuntariamente, Elisa não como
sua paciente, mas como mulher.
­ Vá para o seu quarto. Tenho que resolver as coisas por aqui. Amanhã teremos um dia cheio.
Elisa obedeceu. Saiu sem se despedir. Apenas foi para o quarto, fechou a porta e ficou
sentada, como um índio, sobre a cama, reavivando a imagem daquele homem na sua mente,
reacendendo e prolongando o desejo que sentira.
Parado no meio do corredor, Ricardo respirava fundo na esperança de expulsar o que sentira,
involuntariamente, por alguns segundos por Elisa.
­ O diretor da clínica quer falar com o senhor, doutor. Está ao telefone. ­ a velha não iria o
deixar em paz naquela noite.
Sem falar se dirigiu até o telefone para dar explicações do que aconteceu. O surto era a prova
da falha na medicação. “Erros acontecem. Mas esse, admito, quase custou a vida de um funcionário.”
A afirmação, embora compreendida pelo diretor, não o deixou dormir naquela noite.
De volta a sua casa, da sacada do quarto, observava a luz da lua bater nos lençóis brancos que
cobria delicadamente o contorno do corpo de Laura. Sentou de frente para aquela cena, e acendeu um
baseado. Sua cabeça construía um mosaico de problemas: Laura. Jorge. O diretor. Elisa.
E todo resto sumiu de seus pensamentos. Restou apenas Elisa.
­ Elisa ­ disse em voz alta ­ Elisa.
Capítulo VII ­ Let It Go

­ Cedo acordado. Gosto disso ­ a observação de Laura para Ricardo era pertinente. Desde
muito tempo quem primeiro circulava pela casa era ela. Preparava o café com status de editorial de
revista: queijo, ovos, torrada e geleia de morango. Não tinham empregados para isso. Dalva,
responsável pela limpeza da casa, chegava apenas as dez e meia e do café da manhã não tinha nem a
louça para lavar. Laura preparava o desjejum com a mesma habilidade que deixava tudo no lugar.
Fazia porque gostava. Único momento em que podia ser a dona de casa que, quando pequena, sonhou
ser.
­ Na verdade, não dormi ­ disse sem olhar para ela enquanto comia, com ares de desprezo, um
gomo de um cacho de uvas sobre a mesa.
­ Noite difícil?
Ele suspirou fundo. Definitivamente não queria lembrar que aquela noite existira em sua vida. Por
essa razão, ouvia no iPhone, repetidamente desde as quatro da manhã, James Bay, um menino que
descobriu por acaso e que, pelo mesmo acaso, se tornou em um dos seus cantores favoritos.
Ricardo fez o que, por ser psiquiatria, todos achavam que era sua especialidade: manipulou o
assunto.
­ Tudo certo ontem no show?
Laura se empolgou e, num salto, enquanto fechava o roupão e passava a mão pelos longos cabelos
desarrumados, se colocou a frente dele. Sentou sobre os joelhos, inclinou o corpo pra frente e abriu
um sorriso como há tempo Ricardo não via em seu rosto.
­ Siiiiim! A ideia de dar seu ingresso para Henrique foi ótima, embora eu não goste muito
dele. Ele adorou o show. Sabia todas as músicas. Espetáculo lindo. Muito bem produzido…
Enquanto ela falava, gesticulando sem parar, Ricardo, sem saber que sorria, tentava lembrar
por que motivo pensava em se separar daquela mulher linda, encantadora, envolta em uma aura de
inteligência e sensualidade. Fazia tempo que não a via tão feliz.
­... Você deveria ir um dia.
Ricardo continuou em silêncio, desta vez, esboçando um sorriso maior.
­ Tenho que trabalhar ­ disse já levantando da bancada da cozinha.
­ Você está bem? ­ ao retomar o ar sério, Laura se mostrou genuinamente preocupada com o
marido. Ele se manteve parado, no meio da cozinha ­ vou perguntar novamente: está tudo bem,
Ricardo?
Ele não sabia se começava pelo pedido de divórcio ou pela emergência na clínica, pela dor de
cabeça ou o cansaço físico que o consumia, pela falta da ração importada do cachorro ou por Elisa.
­ Não, não está. Mas vou ficar ­ sentiu os braços quentes e extremamente brancos de Laura
envolvendo seu tronco e os cabelos volumosos dela encostando em suas costas. Os lábios beijando a
camiseta branca e o cheiro bom que vinha do seu corpo.
Repentinamente se virou e colocou o rosto dela entre suas mãos. Foi para beija­lá, mas ao
encarar seus expressivos olhos não se sentiu a vontade em tocá­la. Foi como se tivesse perdido o jeito,
a intimidade. Olhando dentro dos olhos dele, Laura descobriu, por instinto, todas as 24 vezes que,
secretamente, Ricardo tentou pedir o divórcio.
É incrível como sabemos da falta de amor, mas nos negamos a perceber que ela é, de fato,
tão real quanto o amor recusado. Talvez exista outra mulher... Outro, quem sabe? Talvez exista
apenas eu.
A mente de Laura pensava enquanto tinha medo das conclusões as quais pudesse chegar.
­ Sabe que eu te amo mais do que tudo nessa vida. Mais do que a minha própria vida.
Ricardo se manteve em silêncio. No iPhone, James Bay falava por ele.

"If this is all we're living for


Why are we doing it, doing it, doing it anymore?"

­ Mais do que tudo, Ricardo. E eu faria qualquer coisa para provar isso, para mostrar o quanto
isso é real, o quanto…
­ PARA, Laura!
O grito de Ricardo ecoou nas paredes brancas da cozinha. Era um grito de culpa, daqueles que se
reconhece pelo tom mais alto e desafinado.
Ela parou.
­ Por que? ­ disse sem olhar nos olhos dela ­ Por que falar disso agora?
­ Porque você não quer falar. Por que você simplesmente não quer. De mim, parece que você
sempre quis o vazio e se contenta com o que eu te dou ­ Laura perdeu o controle de seus gestos, de
seus olhares, de seus acordos de educação recebidos das rígidas e caras escolas particulares.
­ Laura, agora não…
­ Então, quando, Ricardo? Quando finalmente vamos ter uma conversa de verdade? Quando
vamos ter a nossa conversa? Sua conversa?
Ele não era tão discreto quanto pensou que fosse. Nem Laura tão ingênua. De alguma forma
ela sabia que, mesmo sem motivo, ele queria partir. O momento finalmente havia chegado e Ricardo
não tinha tempo pra ele. Saiu exatamente como previra, como há seis meses desejava, mas na hora
errada. Assim como várias lacunas na sua vida, para aquela também não tinha tempo.
­ Tenho que trabalhar, Laura.
­ E quando você não tem? Quando? Quando vamos a um show você tem que trabalhar. Num
jantar, em um casamento, aniversário, você vive trabalhando, Ricardo. Você foge o tempo todo. Você
não aguenta. Você precisa fugir.
­ Você fala como se também não fosse médica! Você sabe que…
­ Não. Eu não sei. Eu só sei o que me falam. O que existe. O que pra mim é real. E não falo
como médica, falo como mulher, Ricardo. Mas você tem razão: eu sou médica, não uma fugitiva. Eu
passei os últimos meses pensando no que eu poderia fazer para ter você de verdade, por inteiro, da
mesma forma como teus pacientes. Você não os ama, mas está conectado a eles de uma maneira que
não consegue comigo. Pensei em largar a minha carreira apenas para…
­ Eu tenho que ir.
­ Quando você voltar eu não vou querer ter essa conversa.
­ Ótimo. Nem eu.
Ricardo saiu como se tivesse a situação sob controle. Não tinha. Levou consigo a culpa de não
ter sido honesto com Laura e deixou pra trás a mulher que talvez mais tenha o amado na vida, no meio
da cozinha, despenteada, sem saber o que fazer com tanto amor.
Era hora de ver Elisa.
Capítulo VIII ­ EPIC WIN

A chuva que caía, fina e insistente, fez Ricardo ir devagar no caminho até a clínica. A manhã
ao lado de Laura havia sido perturbadora. Exaustiva. Vazia e cheia de mágoas. ​ Como as coisas
chegaram a esse ponto?
Quando estacionou em frente à clínica viu alguns de seus pacientes jogando cartas na área
comum. Elisa estava sentada lendo um livro, alheia ao movimento do pátio.
O assunto na São Lucas não era outro além do que Ricardo chamou de "incidente". Alguns
respingos de sangue passaram desapercebidos pela equipe de higienização, o que o impedia de fingir
por muito tempo de que aquilo se tratava de um simples "incidente".
Estava vergonhosamente atrasado. Foi direto à sala na qual teria a tradicional reunião
interprofissional. Um nome pomposo que o obrigava a suportar pessoas como Carlos, o psicólogo, um
cara que de maneira absurda estava, permanentemente, fora da realidade. Jovem, tinha o cabelo liso,
até os ombros, com um corte hollywoodiano. As marcas do carro, tênis, celular e perfume mostravam
que ele passava mais tempo se preocupando em parecer feliz e bem sucedido do que sendo, de fato,
feliz e bem sucedido. Talvez tivesse a mesma idade que Ricardo, mas, como psicólogo, tinha um
currículo mais atraente. Passou 2 anos na Europa em cursos de especialização e havia trabalhado, por
conta disso, em uma das mais conceituadas clínicas do mundo.
Mesmo assim, Ricardo conquistou uma autoridade maior naquele grupo. Era, visivelmente, o
mais bem respeitado e o mais bem quisto entre os colegas e pacientes. Quando ria, gargalhava. Se
estivesse triste não deixava isso contaminar o mundo. Quando sua voz, doce e forte, invadia qualquer
ambiente, ele era ouvido.
Já Carlos era um imbecil. Um imbecil com dinheiro. Confundia obrigação realizada com
prova de competência, pontualidade com sacrifício e organização com dignidade. Elogiava as pessoas
com a determinação de quem forma um exército, caso apareça alguma causa pela qual lutar. Ah,
soubesse ele que o que motiva as pessoas não são elogios, mas sim, o sentido que elas encontram
naquilo que fazem, tudo seria mais fácil. Ricardo sabia disso e não entregaria essa obviedade de mão
beijada. Não para Carlos.
Da reunião também participaria duas psiquiatras, Cláudia e Marina, ambas extraídas da elite
paulistana. Beirando os 50 anos eram adeptas a métodos pouco eficazes, na opinião de Ricardo, de
tratar a dor física e psíquica de seus pacientes. Entravam, facilmente, na classe de pessoas que odeiam
ciclovias e qualquer investimento que tire o pseudo glamour do lugar onde vivem. Eram repugnantes.
Já Cristiane, a "nutri", estava sempre sorrindo. De origem italiana, tinha as bochechas
vermelhas contrastando com os olhos claros que escondiam tristeza. Era casada desde os 17 anos e,
aos 34, acalentava sonhos que o matrimônio podou, como viajar sozinha para Londres ou vestir
pijamas de algodão ao invés de acompanhar o marido nas requintadas reuniões semanais de uma
importante organização.
Ricardo a achava simpática. Ela e Simone, chefe da equipe de enfermagem. Devoradora de
literatura americana e inglesa, carregava em suas falas citação de Anne Rice e Edgar Allan Poe. Tinha
cabelo muito preto, com uma mecha branca ao longo do comprimento o que lhe rendeu entre os
funcionários o apelido de “vampira do X­Men” e, entre os menos modernos, “Mortiça”.
­ Queríamos um relato seu, doutor, sobre o que aconteceu ontem. Foi muito sério e bastante…
­ Eu sei o quão sério foi, o que não parece ser o caso de vocês, incluindo você, Carlos! ­ Sem
se dar conta, Ricardo mostrou sua sombra ­ O circo armado na sala foi algo fora de qualquer
protocolo.
­ Não, o senhor não estava aqui para saber o que aconteceu antes da sua chegada. Foi o
horror! Começou quando…
­... Eu e qualquer pessoa que ler a evolução do prontuário sabe como começou, Simone. A
grande questão é o que foi feito e de que forma. Primeiro, já falamos sobre estrutura de vidro em
clínica psiquiátrica. Segundo que…
­ Quando você vai admitir que houve erro na administração dos medicamentos, Ricardo? ­ A
arrogância de Carlos foi posta sobre a mesa com uma autoridade que não possuía, nem de fato, nem
de direito.
­ Quando você voltar para o faculdade e ser reconhecido como meu colega de medicina,
Carlos! Não estou me eximindo da culpa, apenas mostrando que, se todos seguirmos o protocolo, as
chances de tragédia como essa acontecer é zero. Entendem? ZERO!
Ricardo não costumava ser agressivo, mas, num dia como aquele, enfrentar Carlos daquela
forma seria um fator contributivo para descarregar toda a desgraça que arrastava como correntes desde
a noite anterior.
Epic win!
­ Olha, Ricardo, o paciente é seu, mas podemos ajudar se quiser. Temos percebido que,
ultimamente, você... como vamos dizer... pode estar passando por…
A voz de Marina foi desaparecendo a medida que Ricardo distanciava sua mente daquela sala.
Sua concentração foi fisgada pela cena que via pela janela: Elisa, sentada, lendo um livro.

Às vezes, não nos apegamos a alguém por medo de tê­lo perto porém, longe. Mal
comparando, é como quando deixamos o celular cair no vão entre a parede e a cama. Ele está perto,
mas, ao mesmo tempo, quase inacessível. Nos esticamos como contorcionistas, com os dedos abertos
e esticados para alcançá­lo e, quando achamos que o temos, tudo o que fazemos é empurrá­lo para
mais longe. O esforço é enorme. E o celular está lá, indiferente a nossa respiração ofegante, a dor de
ter que encaixar o braço em um lugar no qual, definitivamente, não é o seu lugar.
Pessoas não são celulares mas, caso se afastem por qualquer motivo, o esforço para
recuperá­las é humilhante, desumano e, graças ao livre arbítrio, pode ser em vão. Perdemos tempo e
energia pensando em como sermos perfeitos para alguém, imperfeito, nos aceitar.
Queremos ser bonitos, irresistíveis. Mudar o cabelo, os acessórios, emagrecer, engordar, ler
livros que jamais leríamos, ouvir canções que nunca ouviríamos e nos cercar de um mundo que
pertence a outra pessoa apenas para tê­la por perto. Sermos dignos de ter sua atenção pelo maior
tempo possível. Sermos humanos perfeitos... Ah, Elisa, por que quero tanto sua inacessível atenção?
Por que preciso disso? Logo eu, que nunca precisei de nada, me vejo tentando me esticar para te
alcançar, com um medo que me consome de te afastar ainda mais…
­ OK, Marina ­ disse Ricardo retomando as rédeas da reunião ­ podemos discutir isso de uma
maneira mais profissional. Ontem mesmo revi os medicamentos do Jorge. O prontuário está aqui.
Podes analisar e depois conversamos. ­ Marina pegou a pasta e passou, de relance, seus grandes olhos
castanhos, marcados por sessões dolorosas de maquiagem definitiva. ­ Aceito sua ajuda, mas, agora,
preciso atender meus pacientes. Já sugeri a troca do horário da reunião. Caso continue assim, terei não
mais que 15 minutos com vocês.
No meio de um sorriso carregado de ironia, Ricardo juntou suas coisas e saiu em direção à
sala de atendimento. Sentia­se mais leve enquanto atravessava o longo corredor de paredes claras.
Estava feliz.
Cumprimentou a técnica de enfermagem parada na porta com um inusitado e respeitoso beijo
na bochecha gorda e rosada da mulher. Em seguida, solicitou que chamasse Elisa. Antes que ela saísse
com a missão, percebeu um envelope junto com o prontuário.
­ O que é esse envelope?
­ Não sei, doutor. Alguma das meninas deve ter o colocado no turno da noite. Não faço ideia
do que seja.
A letra de Elisa era linda. Uma caligrafia antiga, perfeita. Carinhosa.
­ Devo chamá­la?
­ Não, ainda não.
Capítulo IX ­ A carta de Elisa

Dr. Ricardo,
Desculpe utilizar o meio escrito para conversar contigo. Sei que és um homem ocupado. Acho
que, se não encontrares tempo para ler, considerando os longos trajetos que fazes entre um trabalho
e outro, podes ler enquanto dirige. O código de trânsito não fala absolutamente nada sobre isso ser
proibido, então,fique a vontade.
Vejo que parte dos seus pacientes estão recebendo alta e, ao contrário do que seria óbvio, não
me sinto a vontade de estar me adaptando à medicação. Sei que terei que ir embora também quando,
na sua concepção, isso acontecer de fato, porém, não me sinto preparada.
Eu era uma pessoa que levava uma vida normal, cercada de pessoas que tinham como
principal habilidade esconder suas dores e frustrações. Quando vim para a clínica, não falei
absolutamente nada pra ninguém. Nem minha melhor amiga, Carol, soube. Minha mãe, quando vinha
me visitar, dizia que diversas pessoas a abordavam querendo notícias minhas. Na época, no meu
emprego, não falei para nenhum colega. As únicas pessoas que sabiam sobre a internação eram as
que, verdadeiramente, deveriam saber: a menina do Recursos Humanos e o pessoal que gerencia o
plano de saúde. Só.
Isso porque tenho vergonha de estar aqui. Tenho vergonha de não conseguir fingir ter a
habilidade de lidar com o que lá fora chamam de adversidade do dia a dia e aqui tu convencionou
chamar de "doença".
Na sociedade na qual eu vivo, doutor, se a pessoa faz terapia é desajustada. Se vai a um
psiquiatra, é louca e, se ficou internada em uma clínica, digna de ser evitada. Alguém completamente
inconstante, insegura, frágil, inconsequente e mentalmente não­confiável.
Não é coisa da minha imaginação. Foi exatamente dessa forma que eu fui vista quando vim
parar aqui da primeira vez. Se antes eu trabalhava cerca de dez horas por dia, dopada por doses
cavalares de Rivotril, quando voltei, meus colegas e chefes me ignoraram. Tinham medo de mim.
Medo de não saber lidar com a minha "doença", sendo que a única que deveria fazer isso era eu. Na
época, por inocência, chamei o comportamento dos meus colegas de “medo”. Hoje sei que era
preconceito e que esse tipo de preconceito tinha um nome: psicofobia.
Eu passava longas horas do meu dia sem fazer absolutamente nada. As pessoas se sentiam na
obrigação de compensar a pena que sentiam de mim com sorrisos falsos. Eu não era contrariada.
Não era incluída. Não era parte de nada. Não sabiam o que fazer com a "louca que voltou da
clínica", então, não faziam nada. Fui jogada no meio do nada e isso não foi legal.
Me sinto melhor. Bem melhor do que quando entrei aqui. Não sou profissional, mas, como
paciente, avalio que fizeste um excelente trabalho. Tive a sorte de ter você como médico novamente.
Uma sorte que eu mesma busquei. Sabia que no mundo todo, talvez você seria a única pessoa que me
entenderia. Não errei.
Quando eu estive fora, pesquisei sobre você. Isso pode assustar, mas eu já sabia que eras
escritor de contos reconhecido e que ganhou um bom prêmio em dinheiro até em outro estado.
Inclusive comprei um exemplar do teu livro. E­book, mas comprei. Descobri também que és expert em
estudos que ligam a obesidade a fatores psicológicos. Que fez especialização em Psicologia,
trabalhou em uma clínica de Psicologia na capital e até lecionou a matéria em uma universidade do
interior. Que atende em quatro lugares diferentes e tem uma vida muito corrida por conta disso. Que
fez dois concursos públicos e tirou o primeiro lugar em ambos. Um deles em Brasília a um alto
salário. Queria saber o que te prende aqui para não ter aceitado a oferta.
Mas nem tudo veio pela internet. Basta parar e observar por alguns minutos pra saber que, de
vez enquanto, usas as manhãs de quinta para pintar já que, nesses dias, às vezes, têm pingos de
aquarela nas roupas cuidadosamente alinhadas. Que admiras a nova safra de cantores britânicos,
sobretudo James Bay e George Ezra. O chaveiro que prende as chaves do seu carro denuncia que
torce para o Internacional de Porto Alegre, o que me faz acreditar que o sotaque ao dizer "Bom Dia.
Tudo bem?" vem do Rio Grande do Sul. Que tentas, há muitas semanas, ler o livro Quando Nietzsche
Chorou, mas o marcador diz que não conseguiu avançar mais que duas páginas nos últimos dias.
Tem um cachorro pequeno que...
Ricardo parou de ler. Tirou os óculos e ficou imóvel. Elisa sabia mais dele do que Laura jamais
saberia. Como psiquiatra deveria se preocupar, mas, como ser humano, foi tomado pela vaidade ao
ver o esforço de Elisa que buscava, carinhosamente, pela sua cumplicidade.
­ Sherlock Elisa.
­ Posso chamar a paciente, doutor?
Dobrou a carta com muito cuidado, repetindo as marcas papel, e colocou de volta no envelope.
Ajeitou o prontuário e autorizou a entrada de Elisa. Aquele seria um dos atendimentos mais
interessantes de sua carreira​
.
Capítulo X ­ Forte e Lento

Elisa entrou tão discreta que, se ele não a conhecesse há quase um ano poderia jurar que o
silêncio significava timidez. Sentou e, como sempre, aguardou pelo médico para o início da conversa.
­ Como você está, Elisa? ­ Seu sorriso era sincero.
­ Bem. Obrigada por perguntar ­ respondeu abrindo um sorriso sarcástico. O humor, mesmo
quando não proposital, era uma das características mais cativante em Elisa.
­ Já podemos pensar no processo de sua alta.
Ela suspirou desesperança. Olhou, involuntariamente, para a luminária amarela bem acima da
sua cabeça como se desejasse o auxílio dos céus para enfrentar o momento, até então, surpreendente.
Como Ricardo pode não ter lido a carta? Não existe plano B. Ele tinha que ter aberto a maldita
carta!
­ Então você não abriu o envelope… Começo a pensar que não abrir envelopes, “doutor”, é a
sua real especialidade.
Naquele momento Elisa descobriu que a real especialidade de Ricardo era ignorar ironias ou
qualquer tipo de provocações vinda de seus pacientes. ­ Não tive tempo, Elisa, infelizmente. Mas vou
ler. Quer me adiantar o que está aqui?
­ Não. Se quisesse, não teria escrito. Podes me devolver, por favor?
­ Como?
­ Me devolver. O envelope. Pode?
­ Por que? Eu vou ler.
­ Não quero mais que leia. Não faz sentido.
­ Não entendo.
­ Foi um erro. Vamos falar da alta.
­ Devolvo porque você está pedindo, mas saiba que eu gostaria de ter lido. A sua letra é muito
bonita.
­ Obrigada. Podemos falar da alta agora ou...
­ Ok. ­ Com Elisa não adianta relutar ­ Na quarta completa 15 dias que estás aqui. Você se
adaptou bem à medicação e acho que esse processo está bastante claro e seguro. Existem traços da sua
personalidade que fogem às prescrições e isso é ótimo. Estás muito melhor.
Os grandes olhos azuis de Elisa não conseguiam desgrudar do envelope em suas mãos. Ela
apenas ouvia.
­ Está bem assim, Elisa?
­ Sim.
­ Sim?
­ Sim. Por que o espanto?
­ Nada. Você tem uma personalidade contestadora e, aceitar de pronto o que proponho, pra
mim, é novidade. ­ Uma boa estratégia para uma ótima mentira, que dava a Elisa aspectos ainda mais
interessantes. Iria até o fim e, caso ela retrocedesse na mentira, cederia.
­ Tem conversado com o Carlos sobre como você se sente em relação à alta?
­ Com o gurizão psicólogo? Não muito.
­ Precisa conversar com ele.
­ Não quero. Acho ele um idiota ­ Ricardo mal conseguia esconder a satisfação sobre a
percepção de Elisa. Sim, Carlos era um total imbecil. ­ Tendo por base os dias que costumas dar alta,
isso vai acontecer na próxima quarta ou sexta, isso?
­ Sim. Pra dar tempo de você e sua família se organizarem.
­ Ok. É só isso? ­ a cadeira parecia pegar fogo. Ficar sentada mais um minuto seria uma tortura.
­ Calma. Por que a pressa? ­ Não era preciso ser médico para perceber que a revolta de Elisa em
relação à alta era pulsante ­ Você prefere ficar mais alguns dias na clínica?
­ Não! ­ já que havia chegado até aquele ponto, era necessário sustentar sua mentira até o fim. O
medo de ficar longe dos cuidados de Ricardo e da atenção que ele dispensava em troca do sentimento
que começava a despertar no médico, justificava qualquer falta de verdade. Ricardo era a única pessoa
que queria por perto. Sabia, de alguma forma que, de todos os pacientes, era com ela que ele gostaria
de passar mais tempo. Elisa nunca se conectou a ninguém antes. Talvez por isso tinha tanto desprezo
pelo que já conhecia lá fora.
Erroneamente passou a vida pensando que, se fosse rica, magra e o que o senso comum
considera bonita, seria mais fácil se relacionar com quem quer que fosse. Porém, com Ricardo, esse
pensamento era inexistente. Sua total falta de alinhamento no mundo era justamente o que, de alguma
forma, a aproximava do médico. E agora, perderia isso.
­ Posso fazer uma pergunta?
Ah,como ele gostava disso.
­ Você quer me dar alta?
­ Sim.
­ Não sei se entendeu, doutor. Não perguntei se "vai" mas sim se "quer". Se, genuinamente, é da
sua vontade me dar alta. Me ver longe daqui. Responda: Você quer me dar alta?
O coração de Ricardo bateu forte e lento. Dizer a verdade não estava nos seus planos. ​ Quem,
diabos, essa mulher pensa que é? Por que não ser apenas uma paciente como qualquer outra?
Aceitar a condição sugerida e não me desafiar? E, Deus, como eu gosto disso... Como essa sensação
me mantém vivo.
­ Eu preciso, Elisa. ­ tirou o óculos e esfregou os olhos em sinal de cansaço.
­ Hum... Ok.
­ Você está levando essa alta para o lado pessoal? Como se eu quisesse simplesmente me livrar
de você?
­ Agora não. Você não quer. Precisa.
Sim. Preciso. Mas não vou parar de te ver e nem de ser desafiado por ti. Não vou parar de me
sentir vivo cada vez que te encontro. Posso não seguir a linha freudiana mas, se Freud estivesse nesta
sala, me lembraria de sua célebre citação, a qual vou ignorar: "O homem é dono do que cala e
escravo do que fala". Porém, como uma criança birrenta, vou seguir o que acho certo, embora eu
tenha certeza do arrependimento.
­ Eu tenho um consultório bem próximo do jornal no qual trabalhas.
­ Aquele cuja consulta é um quarto do meu salário e não aceita convênios? É esse seu plano?
Me oferecer seus serviços particulares? Os que eu não conseguiria manter por dois meses? Falhou
miseravelmente, doutor.
"Dono do que cala"
­ Não. Quero oferecer a minha companhia. ­ "Escravo do que fala" ­ Acontece que, às terças, eu
costumo frequentar o café que fica ao lado da sua empresa. Ele é bem simpático.
­ Sei. Costumo ir lá.
­ Podemos conversar, tomar um café, no seu horário de intervalo. Não precisamos parar de nos
ver.
Elisa, sempre com uma resposta na ponta da língua, ficou muda. Era isso o que queria, mas
tinha medo. Por experiência sabia que nada na vida vinha de mão beijada. Não para ela. Mal sabia que
aquela proposta não era tão fácil. Não para Ricardo que, logo depois de falar sentiu como se o corpo
inteiro doesse. A mão se esticando para pegar o celular embaixo da cama. A ponta dos dedos o sentia.
Qualquer movimento o afastaria para mais longe.
­ Por que não?
O celular era seu. Ricardo, por dentro, respirava aliviado. Ofegante. Por fora, um discreto
sorriso retribuiu a sua proposta.
­ É. Por que não?
Capítulo XI ­ O Centro do Universo

Acordou cedo e, de imediato, abriu as duas grandes janelas antigas. Durante todo o dia, o sol
teria acesso livre ao quarto de Elisa, para ir e voltar quando quisesse. Isso, nem de longe, era comum.
Abrir as janelas não fazia parte do seu ritual matinal. Diferentemente das outras pessoas, não gostava e
nem sentia falta do sol. Mas aquele dia era diferente.
Ela cantava, como há muito não fazia. Quando pequena, adorava cantar, mesmo que as letras
fossem bem diferentes das que o compositor imaginou. Cantar errado era uma tradição. Por isso,
preferia as músicas em inglês. Isso a obrigava ouvir com atenção e, não raras as vezes, buscar a letra
na internet. ​
"By my side... By my side.... I wish you were... I wish you were..."
­ Essa aura de purpurina é porque vais embora daqui hoje, boniteza?
Por essas e outras que Elisa nunca entendeu como um cara tão espirituoso quanto Leonardo, ou
"enfermeiro Leo" para os íntimos, estava trancafiado em uma clínica. Era uma das figuras mais alegres
que conheceu. Um bom eufemismo para dizer que era gay até o talo e, unido ao carisma, uma das
pessoas mais queridas do lugar. A única da equipe de quem os pacientes sentiam falta nos dias da
folga.
­ Boniteza, não quero ser eu o causador do seu desânimo, Deus me Livre! Mas o doutor só vem
depois das 16 horas e, até onde sei, apenas para te dar a alta. Antes disso, nada feito. Falta meia
eternidade ainda.
­ Eu sei, mas quero deixar tudo pronto. Falando nisso, fica com meu livro.
As poesias de Carlos Drummond de Andrade foram um presente da mãe, que passava a diante
por gostar muito de Léo. Estava tão feliz que poderia deixar todos os seus pertences para trás, afinal,
desta vez, não teria que lidar com tudo sozinha. Ricardo também estaria a seu lado lá fora.
Léo deu um pulo rápido e, com a destreza de um bailarino, sentou na cama de Elisa.
­ Senta aqui do meu ladinho ­ ela prontamente largou tudo o que estava fazendo e obedeceu ­
Ontem o teu doutor estava conversando com a Simone, a vampira do X­Men. Eu não sou de fuxico
mas não consegui deixar de ouvir ele dizer que pensava seriamente em largar o trabalho na clínica.
­ Tem alguma relação com o caso do surto daquele paciente dele, o tal do Jorge?
­ Pelo visto, não. Quer dizer... Não sei. Pode ser. Mas ele falou em “organizar a vida”. Bem
nessas palavras.
­ E por que está me contando?
­ Eu não sei. Ele parece ser seu amigo. Faço essa fofoca santa porque não queria que ele fosse
embora. É a melhor pessoa daqui.
A afinidade entre ela e o médico. Até Leo, que não convivia com os pacientes e profissionais
todos os dias, percebeu o que parecia ser apenas uma projeção.
­ Adoraria ajudar, mas ele não me considera tanto assim. Acho ruim que ele queira sair, mas
vamos encarar a realidade: ele trabalha pra caral...
­ Eu seeeeeeeeeeeeeei. Fiquei apavorado quando uma vez ele me contou.
­ Não sei como consegue manter o bom humor.
­ Porque faz o que gosta, bonita, e não o que precisa. Dizem que dinheiro ele tem. Até mais que
o próprio dono desta clínica. E olha que o Fernando, chefão daqui, não é pouca coisa, não...
A porta do quarto foi aberta e surgiu Mara, a técnica de enfermagem dos seios fartos e olhos
puxadinhos. Apontou para Léo e pediu para que ele se aproximasse. A contrariedade produzia no
enfermeiro caras e bocas engraçadas o que tornava qualquer situação bastante séria em algo fácil de
contornar.
Pela porta que ficou aberta, Elisa observava. Não era preciso ser um profissional renomado para
saber que as notícias poderiam ser melhores. Léo entrou, já sem a mesma descontração, sentou ao lado
dela e, com a mão na coxa da moça, suspirou.
­ Olha, bonita, acho que a sua alta não vai sair hoje.
A notícia não a surpreendeu. Sempre ouvira a frase "cuidado com o que você deseja".
Inicialmente desejou ficar. Até fez por escrito. Se o médico não leu, o universo deve ter feito esse
favor.
­ Sua mãe ligou e disse que surgiu um problema, nada grave, mas que não poderá vir te buscar
hoje.
A família de Elisa dependia unicamente de ônibus. Qualquer contratempo, por menor que fosse,
não poderia ser resolvido rapidamente. Mas, para a própria surpresa de Elisa, ela ficou bastante
chateada.
­ Vou ligar para o doutor. Se sua mãe não pode buscar você, não tem como você sair. ​ Sad but
true. ​
Ele viria hoje, neste horário, especialmente para dar a alta. O mínimo que eu posso fazer é avisar.
Eu sinto muito.
O silêncio falou pelos dois.
Léo estava chateado por Elisa. Elisa, pela falta de Ricardo.

***

Dez minutos se passaram e Elisa continuava sentada, do mesmo jeito, sobre a cama.
­ Falei com ele.
­ E... ?
­ Disse que ok. Acho que estava bem atarefado. Falou com aquele vozeirão maravilhoso "OK.
Obrigado por avisar". Só. Geralmente ele conversa mais.
­Vai ver ele estava a fim de vir pra cá e cortamos o barato dele.
­ Bem provável ser isso mesmo. Somos o “Centro do Universo”, Léo. ­ A ironia veio
melancólica e carregada de mágoas, daquelas que só se tem quando se perde algo que teve entre os
dedos ­ o “Centro do Universo”.

Na impossibilidade da alta, foi atrás de um plano B. Algo que a faria resistir esse tempo de
prorrogação. Sentou na sala de TV e, por lá, ficou a tarde inteira.
Pela primeira vez, em 15 dias, não resistiu à interação vinda de outro paciente, Márcio, um
gerente de banco internacional. Tinha 42 anos e há 12, sérios problemas com o alcoolismo. Era
paciente de Marina e a imitava como poucos.
­Tu tens que sair do teeeeeeeeeu trabalho se é isso queeeeeeeeeee te deixa doente ­ Márcio,
reproduzia os trejeitos da médica com uma habilidade de um ator de ​ stand up​
. ­ como se isso fosse
fácil ­ disse ele em tom sério.
­ Imagino que não seja.
­ Abandonar meu trabalho significa abandonar minha condição de vida. Já pensei nisso,
diversas vezes, mas, com a idade que eu tenho, largar tudo e começar do zero não é opção. Tenho uma
vida financeiramente muito boa. Mesmo com todas as merdas que fiz na vida, perco dinheiro e ganho
na mesma proporção. Graças ao meu trabalho.
Márcio olhou para o que cobria seu corpo arredondado, como se estivesse hipnotizado pelas
peças.
­ A calça e o tênis, juntos, custam mais que um semana aqui. Tenho uma casa ótima, vou aos
mais caros restaurantes, o que não significa melhores. Sempre que quero vou à Europa, Estados
Unidos.
­ E, no entanto, estamos aqui, juntos. Isso não soa injusto para você?
­ Desculpa se pareci pretensioso.
­ Não. A vida é feita de escolhas. Você fez a sua: viver de aparências. O que, sinceramente, não
acho ruim ­ disse ela com calma pagã, características dos sarcásticos.
­ Não acho que vivo de aparência. Vivo bem. Só preciso me organizar de vez em quando. Meus
problemas com o álcool... Não quero parar de trabalhar para não ter problemas. Vou ter outros maiores
e...
Elisa transferiu a atenção de Márcio para o corredor. Ricardo apareceu sorrindo e, como de
costume, cumprimentando todos em seu caminho. Em um murmúrio de êxtase, as técnicas de
enfermagem e, sobretudo Léo, expressaram a surpresa de o ver ali.
­ Meu Jesus! Me desculpe, doutor, se eu não fui claro ao telefone e fiz o senhor vir até aqui a
toa. O que eu tentei dizer era que sua alta havia subido no telhado no exato momento em que a mãe da
Elisa não pode vir buscar ela.
O bom humor de Leo era contagiante. Mesmo diante das adversidades não perdia a
oportunidade de ser excêntrico e engraçado. Gostava de provocar sorrisos e o de Ricardo era
especialmente muito bonito.
­ Sim, eu entendi, Léo, mas mudei os planos. E talvez os de Elisa também. A propósito: boa
tarde, Elisa.
Ela continuou olhando fixo para ele. Quase não conseguia esconder o quão confortável ficava
apenas com aquela presença forte e inquietante. Ele se aproximou dela e se abaixou ao seu lado.
­ Tudo bem?
­ Não sei. Estava até ver você aqui, de surpresa. Tem algum motivo, doutor?
­ Você quer a alta hoje?
­ Minha mãe teve um problema com o transporte. Não reservou passagens e, diferentemente das
outras vezes nas quais o ônibus vinha quase vazio, não restaram lugares.
­ É, tem uma festa na cidade hoje.
­ Já estava me acostumando com a ideia de não sair daqui esta noite...
­ Se quiser, posso dar a alta.
­ "Aí sim, fomos surpreendidos novamente".
A ironia era a arma de defesa de Elisa. Rezava para que ela nunca se desfizesse disso.
­ Eu posso ser seu responsável. Vou trabalhar no hospital que fica na cidade passando a sua. Na
ida posso deixar você em casa. Salva e muito sã. Quer?
O medo da aproximação, da conexão, do erro era comum aos dois. Cada um lidava com isso do
seu jeito. Ricardo mostrava seu melhor sorriso e Elisa o brilho nos olhos de quem não havia sido
rejeitada.
­ Sim, pode ser.
De maneira imperativa, solicitou o telefone da responsável por Elisa e realizou a ligação do
próprio celular. Ao desligar, alguns olhares o cercavam. Olhos que o deixaram na dúvida se
expressavam reprovação ou curiosidade.
­ Isso não me parece possível, doutor Ricardo ­ lembrou a velha enfermeira ­ o senhor é
responsável pelo tratamento e não pela saída do paciente. Não é parente. É como se estivéssemos
entregando a um estranho.
­ Na minha concepção, não há nada de errado nisso.
­ O que diz o Código de Ética Médica? ­ insistiu.
­ Quanto a isso? A menos que eles tenham lançado uma versão atualizada há cerca de 2 horas,
não há nada sobre isso.
Ele conhecia o código como poucos. Para um psiquiatra, toda norma de conduta é prioridade.
Soube de casos de colegas, dentro e fora do país, que foram sentenciados não por má fé, mas pelos
bons argumentos dos advogados de acusação frente à margem que qualquer regra abre para
interpretações.
Se usasse um termo chulo para descrever o que achava de estar entre o certo e o inapropriado,
diria que estava "pouco se lixando" para o que pudesse acontecer. Conhecer os limites da ética
profissional não tornava a situação menos subjetiva. Queria ajudar Elisa, estar com ela, mais do que
qualquer coisa naquele dia.
Sabia que a falta de autoestima de Elisa não permitiria que, de imediato ela percebesse o quanto
estava se tornando relevante para ele. Poderia não ser tão bonita quanto Laura ou nem tão vaidosa
quanto as mulheres com as quais costumava cruzar em seu meio profissional, mas ela tinha algo que o
arrebatava, que o fazia querer arriscar planos imbecis apenas para desfrutar mais tempo na sua
companhia.
Hora de deixar a vida correr. De esquecer o "e se... " e agir com os pontos e vírgulas que
compõem o presente.
Em menos de 15 minutos, de malas prontas, ela aguardava na recepção o médico assinar os
últimos papéis. Pela porta de vidro que separava a iluminação luxuosa do interior da clínica do breu da
noite, via seu reflexo. Estava pronta, finalmente pronta, para enfrentar o mundo lá fora.
­ Me dê suas malas. Deixa que eu levo.
Elisa obedeceu e deixou pra trás os olhares julgadores das recepcionistas e da velha técnica de
enfermagem que sequer acenaram para os dois. A conduta de Ricardo, pela primeira vez, não era uma
unanimidade naquele lugar.
Capítulo XII ­ 20 Recomeços

O estofado de couro escuro denunciava que Ricardo era o tipo de pessoa que investia alto para
satisfazer sua sofisticação. O cheiro de gente rica e carro novo estavam em cada milimetro do
automóvel. O painel de luzes coloridas, os discretos sons que indicavam as portas destravadas e a falta
do cinto a fascinava. Faria parte do mundo dele, mesmo que por alguns quilômetros.
­ Bom, quando estivermos perto, me avise que caminho tenho que tomar ­ disse ligando o
rádio com uma mão e manobrando o carro com a outra. Os olhos azuis de Elisa não conseguiam
encarar o médico. O reflexo do vidro era bastante generoso oferecendo a ela cada movimento do rosto
de Ricardo.
­ Sua mãe ficou muito agradecida. Só estava preocupada se isso atrapalharia minha rotina.
­ E atrapalhou?
­ Não. Quando Léo me ligou eu passei a pensar nessa possibilidade. Tudo o que tive que fazer
foi me organizar. Aprendi a gerenciar meu tempo.
­ Poucos conseguem.
­ A maioria conseguiria se não investisse uma parte significativa da vida assistindo a vídeos de
filhotes de gatos no Facebook.
­ Um anti­Facebook.
­ Não. Eu tenho um perfil lá ­ disse enquanto a observava ­ só não acho necessário ter a rede
como um compromisso. O Facebook não é o reflexo da nossa sociedade, como muitos dizem. É a
projeção do que gostaríamos que a nossa sociedade fosse.
­ Vídeos de gatos?
­ Também. Nos conectamos somente aquilo que nos agrada, com universos compatíveis as
nossas ideias. Se a pessoa é religiosa vai contaminar o mundo com a sua convicção e procurar os seus
iguais. Isso acontece com o socialista, o capitalista, o homofóbico, o poeta. E nada disso reflete uma
geração. Não vemos a tal “sociedade” por inteiro. Essa é uma colcha de retalhos na qual um pedaço
não enxerga ou distorce a visão do outro.
Ricardo sorria todo o tempo mostrando uma genuína felicidade em estar ali, ao lado de Elisa,
mesmo que sua comunicação estivesse, excepcionalmente, monossilábica. Ela não estava a vontade.
Não reconhecia a mulher irônica e criativa que ela costumava ser. Estava fora de sua zona de
conforto.
­ Conversei com o médico que vai atender você fora da clínica. Sei que não tens direito a um
acompanhamento mais frequente, mas, por sorte, o doutor Marcus é um excelente profissional. Foi
meu colega no último ano de faculdade e trabalhamos juntos por dois anos.
­ Então, com isso, muda tudo.
­ O que seria esse "tudo", Elisa?
­ Lembra que quando conversamos sobre a alta, na semana passada, não havia o nome do
profissional que iria me acompanhar fora da clínica. Por isso, você propôs tomarmos um café para...
­ Lembro. Mas você está enganada sobre uma coisa: eu não sugeri o café porque não sabia
qual profissional ligado ao seu plano iria acompanhar você. Era porque eu queria ajudar. Vi na
informalidade um jeito de saber como você está. Sei que é importante para você também.
A noite não trazia uma estrela sequer. As únicas luzes que tornavam a estrada trafegável eram
as que vinham dos faróis do carro e das fracas lâmpadas amarelas na beira da estrada. Juntando isso
ao silêncio que tomou conta dos dois, o caminho se tornou mais longo do que, em uma situação
normal, seria. Milhares de palavras que queriam ganhar vida porém não existiam por força do medo.
Posso sentir a vontade quase sufocante que ela tem de me dizer alguma coisa. Sinto porque se
confunde com a minha. A garganta dói diante de tantas palavras trancadas. Tudo o que quero é ver
ela feliz e escondo esse querer bem como quem esconde um plano terrorista. Medo da rejeição, medo
da culpa e da incerteza de ter acertado ou não.

­ Dobre à direita ali naquela árvore.

Alguém que quer me ajudar. Seria muita ingenuidade minha pensar que não há nada mais
por trás disso. Seria burra, como fui a minha vida inteira se achasse que um cara tão ocupado quanto
um médico teria tempo na agenda apenas para me ajudar...

­ Sigo em frente ou faço o retorno, Elisa?


­ É alguma experiência científica?
­ O quê?
­ Você e o café.
­Como? Você acha que é uma cobaia porque eu... ­ Ricardo soltou uma gargalhada
surpreendente. Tanto quanto a pergunta de sua já ex­paciente. Não era a primeira vez que uma
pergunta partindo dela o surpreendia. Diminuiu a velocidade e parou próximo a um posto de gasolina.
Tirou o cinto e se virou totalmente pra ela.
­ Olha pra mim, por favor, Elisa ­ Ela mal conseguia levantar os olhos. ­ Você tem um
atestado de 15 dias. Esse serve para que você se adapte à medicação em casa. Nesses dias, qualquer
coisa que precisar, pode me ligar.
Elisa tomou coragem para obedecer a ordem e encará­lo nos olhos.
­ Nesse meio tempo você terá sua primeira consulta com Marcus, médico para o qual eu liguei
e atende pelo seu convênio. ​ ELE ​será seu médico. Você vai recomeçar sua vida. Não a partir de hoje,
mas todos os dias.
­ E você? Qual a sua função nisso?
­ "Alguém que estará por perto", caso precise de uma classificação ­ A voz de Ricardo era
firme, mas a insegurança vinha de seus olhos. ­ Podemos deixar marcado o nosso café?
Ela sorriu.
­ Daqui há 20 dias. ­ na mente de Elisa era um bom tempo para conseguir emagrecer uns três
quilos para o encontro. Para Ricardo, um período para pensar em algo e se ver livre de seus problemas
com Laura. Organizar a vida.
­ OK. Vinte dias! ­ Disse marcando no celular. Voltou a ligar o carro.
­ Vá até o semáforo e dobra à esquerda. Na esquina, vire à esquerda novamente.
­ Conheço aqui.
­ Eu moro naquela casa das margaridas.
A mãe de Elisa já a aguardava em frente. Ricardo desceu do carro e a abraçou forte. Caso
alguém os observasse, poderia jurar que era fraternalmente. Sentiu seu cheiro e a vontade de
destrancar tudo o que fazia a garganta doer. Foi covarde. Esperaria um novo recomeço para fazer o
que achava correto.
­ Nos vemos daqui há 20 dias.
­ Sim. Vinte dias. Vinte Recomeços, Elisa.
Capítulo XIII ­ Almas Perdidas

De madrugada, após o plantão, Ricardo estava exausto. Assim como ficam exaustos todos os
que tentam recuperar o controle da sua vida. Já estava consciente que, no trabalho, com a desculpa de
fazer o que achava correto, cometera um erro atrás do outro. Exatamente como as pessoas as quais
durante a faculdade, jocosamente, chamava de "almas perdidas. Pessoas para as quais seus serviços
eram a última opção na vida. "Em alguns casos, é tanta confusão que tenho vontade de prescrever o
suicídio três vezes ao dia". A célebre frase de Ricardo, da qual, pela imbecilidade, se arrependeu ter
dito em voz alta em uma mesa do bar universitário, parecia se aplicar a ele agora.
Tinha dinheiro, status e tudo o que os profissionais ainda buscam aos 45 anos, com apenas 32.
Mas se via tão perturbado quanto um personagem de Tarantino: sentindo prazer no perigo, criando
grandes problemas para resolver adversidades; prostrado enquanto a vida entrava em um mar de
insanidades. No interior do porta­luvas tinha uma mini garrafa de uísque a qual não demorou para
esvaziar.
Ricardo era demasiadamente humano ao ponto de sentir inveja de um rapaz que conhecia há
três anos: Mateus. Formado em Direito, nunca exerceu a profissão. Filho de um militar aposentado e
de uma professora primária, foi banido dos privilégios da família rica ao sair de férias por 15 dias no
Hawaii e voltar quatro anos depois, casado com uma cantora country.
Esse sabia viver a vida. Pelo menos era o que todos pensavam. Fez o que quis, quando quis, da
maneira que achou melhor. Nunca foi convencional. Seu maior orgulho era ser ​ stripper ​por opção.
Não perdia tempo achando desgraças para justificar algo que a sociedade classificava sujo, mas que,
pessoalmente, lhe dava muito prazer e dinheiro. "Faço porque gosto. Gosto porque sou livre".
Inicialmente era amigo de Henrique, mas bastaram algumas saídas para que se encontrassem
sem a necessidade de convidar o amigo em comum. E, numa dessas, Ricardo foi surpreendido ao se
ver atraído por ele. A primeira e única vez que se sentiu, verdadeiramente, atraído por um homem. O
médico nem cogitou a ideia de ser gay. Aliás, Mateus era o tipo de cara que atraía qualquer pessoa
que estivesse em seu radar. ​ Se eu me sentisse atraído pelo Ricky Martin não seria critério para ser
gay, afinal, ele é incrível. ​
E Mateus era uma espécie de popstar, extremamente carismático ainda que
com milhões de dólares a menos. Um dos melhores ouvintes que já teve. Estar com Mateus era
sinônimo de diversão e coerência. A alma mais livre que já conhecera.
Aquele era um momento de escuridão. Tudo estava errado. Não queria enfrentar Laura. Não
queria encontrar o moralismo franciscano de Henrique. Não queria ficar sozinho, tampouco expor a
sua fragilidade para ninguém. Queria apenas ser absorvido por qualquer sensação que o tirasse do
lugar de fracassado em que se colocou. Queria novos ares. Desejava ter de volta o exato momento em
que sua vida bateu em um iceberg. Queria muita coisa.
***
O som alto e abafado impediu Mateus de ouvir o celular. Em horário de trabalho, jamais
atenderia o telefone. Se atendesse, não conseguiria ouvir quem quer que estivesse do outro lado da
linha. Mal conseguia ouvir as pessoas que tentavam se comunicar com ele aos gritos. Se quisesse
entender qualquer recado teria que, no meio da agitação da casa, encostar seu ouvido o mais perto
possível da boca de quem pretendia escutar e, junto com as palavras, absorver o cheiro forte de uísque
e cigarro que era obrigado a inalar, caso a mensagem viesse de um dos bêbados frequentadores do
local.
Alheio às novas experiências que tentavam chegar pelo celular, Mateus exibia, por mais uma
noite, seu corpo perfeito em troca de alguns trocados. Apenas uma pequena sunga preta e uma gravata
borboleta cafona o impedia de estar completamente nu. Fazia isso tantas vezes que qualquer proposta
ousada por parte dos clientes poderia ser sumariamente ignorada ou levada até o fim das
consequências, dependendo do humor de Mateus ou do quanto queria ganhar em dinheiro.
A luz negra refletia em seu corpo, que balançava ao ritmo da música. Ele satisfazia corações
despedaçados que nunca se cansavam de seus movimentos e das fantasias que plantava em suas
mentes.
Ao descer do pequeno palco e sair do campo de visão das dezenas de pessoas ávidas por seus
músculos a mostra, Mateus, finalmente, deu a atenção que o seu smartphone implorava em silêncio.
11 chamadas. Todas de Ricardo.
Quando pensou em retornar, Ricardo tentou, pela décima segunda vez ser atendido.
­ Seu filho da mãe!
­ O quê? Fala mais alto!
­ Eu disse SEU FILHO DA MÃE!
­ Ricardo?
­ Sim. Estou ligando há quase uma hora.
Se não fosse o identificador de chamadas, Mateus não reconheceria a voz do médico, não
apenas pelo som alto que disputava sua atenção, mas por estar arrastada. Voz de quem jogou alto e
perdeu.
­ A que devo a honra de um psiquiatra renomado e bêbado me ligar?
­ Está trabalhando?
­ Sim. Quer vir até aqui?
­ Pode ser. Tens tempo?
­ Se pagar por ele, terei sim.
­ Pago. E bem. Aceita cartão?
Mateus deu uma gargalhada.
­ Ah, doutor ... Prefiro que fique me devendo uma. Pode vir.
Ricardo deu a volta no carro, ligou o rádio e rumou para o endereço no GPS. Os pneus emitiram
o som da derrota no asfalto. A multa por excesso de velocidade seria o menor dos problemas que teria
que lidar naquela noite. Ele mesmo era seu maior algoz. Um inimigo poderoso e conhecido com quem
teria que aprender a conviver ou seria facilmente destruído.
Capítulo XIV ­ Lupicínio
No canto do bar, jogado no sofá de couro vermelho, tentava assimilar as informações
enquanto mexia as pedras de gelo do uísque.
­ Deixa eu ver se eu entendi, Ricardo, já que não tenho a mesma formação que você: você,
mais do que qualquer pessoa, deve saber que esse lance de desviar foco não dá certo nem em filmes...
­ Na verdade não foi nisso que pensei quando liguei para você. Essa ideia surgiu agora. Nunca
tinha visto a Laura tão feliz como quando perguntei do show do não­sei­quem e Mateus.
­ Jorge e Mateus. ­ Mateus se inclinou e se aproximou o máximo que a mesa permitia de
Ricardo ­ Por que você não joga no time do simples como todo mundo? Ela é adulta. Médica. Não é
do tipo que vai te chamar em um programa da RedeTV para pedir explicação do divórcio ou contar
um grande segredo que vai colocar você em maus lençóis em rede nacional.
Mateus voltou a ficar à vontade. Enchia de vitalidade cada centímetro que seu corpo ocupava.
Na penumbra do bar, sua presença e a do médico passavam despercebido ao som de Louis Armstrong
e Ella Fitzgerald. Todos os demais frequentadores, na sua maioria homens desacompanhados, estavam
ocupados demais afogando as frustrações junto aos pedidos do barman.
­ OK. Minha ideia não é das melhores, Mateus...
­ É péssima. Péssima.
­ Tudo bem, é péssima, mas...
­ Tenta ouvir ela saindo da minha boca e considere que, um bom juiz além de achar ruim,
pode considerar crime.
­ Mateus, ela não vai me deixar ir. Seja como for, não vai me deixar e nem permitir que eu vá
sem transformar minha vida num inferno.
­ Como tem tanta certeza?
­ Ela é obcecada por mim. Sem exageros, acredito que seja patológico.
A risada de Mateus chamou, finalmente, a atenção do bar inteiro para a dupla.
­ Você se acha muito importante, Ricardo. Se leva muito a sério, doutor. Por acaso tem
doutorado?
­ Sim, tenho. Mas você não entende ­ disse quase surrando ­ há um tempo atrás eu encontrei
algumas anotações dela. Diários. Neles ela descrevia nossa relação como algo vital. Fiquei
preocupado. Havia muita obsessão. Muito desespero na missão de me agradar, muito...
­... Amor?
­ Amor doentio. Eu lido com isso não diariamente, mas tempo suficiente para entender
porque, diabos, eu fico na defensiva, por que....
­... Você transfere sua responsabilidade de encarar uma situação adulta de frente. Ricardo,
você sabe que odeia perder. Você sair, voluntariamente, desse relacionamento é uma perda. Eu lembro
quando você me contou do caso daquela paciente que se matou.
­ Sim. O que tem isso a ver?
­ Lembro que você ficou muito mal. Todos estavam preocupados contigo. Porém, você não
ficou mal porque perdeu a paciente, mas sim porque perdeu, simplesmente. A sua técnica perdeu para
o sofrimento dela. Você perdeu.
Mateus via o fogo nos olhos de Ricardo. Havia dado ao médico algo que nem ele mesmo sabia
que tinha. Algo do que se envergonhar.
­ Doutor… você tem absolutamente tudo na vida. Busca desafios constantemente sem se dar
conta. Estar comigo aqui, nesta noite, é um desafio. Eu posso sentir. Por que não procurou o
Henrique? Porque eu sou um desafio pra você.
­ Quem está se levando a sério agora, Mateus?
­ Eu lido com isso de quinta a domingo, esse olhar de desejo. Não é nenhuma novidade pra
mim. E você sabe que eu não me importo. Pelo contrário: me divirto, doutor. Já tivemos nossa cota de
diversão no passado e estar aqui comigo é uma prova de resistência pra você.
­ Não. Estar aqui com você é a melhor rota de fuga que eu poderia traçar para esta noite.
O silêncio beirou o constrangimento. Ricardo não precisava de mais isso naquela noite.
­ Agradeço por ter me recebido. Estou muito bêbado pra ficar e muito sóbrio para encarar o
que me espera em casa.
­ Assim como você, Ricardo, eu gosto de desafios. Mas você transforma um dia comum em
uma música do Lupicínio. Um drama musicado.
Ricardo levantou com dificuldade e deixou diversas notas de cem sobre a mesa.
­ O que é isso?
­ Os drinks e seu tempo.
­ Você me deu mais que dinheiro hoje. Quer saber? ­ Mateus chegou muito próximo do
ouvido de Ricardo e num tom baixo, confidenciou ­ eu topo.
Colocou todo o dinheiro dentro da comanda de couro e fez sinal para o garçom.
­Não vai aceitar o dinheiro?
­ Sabe que eu jamais aceitaria o dinheiro. Por isso me deu essa proposta simples e imbecil.
Quanto a essa grana, podemos dizer que é a noite de sorte do garçom. Me leva de volta para a boate.
Aguarde ligação minha.
Ao chegar em casa, o alívio relaxou todos os músculos de Ricardo. Laura dormia. Nos
cômodos, apenas o silêncio e as luzes decorativas que vinham do jardim. Sentou no sofá, ligou a TV e
viu seu livro no assento ao lado, marcado em uma página. Laura estivera lendo o único poema que
Ricardo escreveu sobre o amor. Releu. Seu conceito sobre o amor mudou bastante desde a última vez
que escreveu alguma coisa. Bastante.
Capítulo XV ­ Todo o Tempo do Mundo

O plano era ridiculamente simples: chegar 15 minutos antes do horário marcado. Mesmo assim,
Elisa falhou miseravelmente. Fez tudo de maneira cronometrada, desde a hora em que pulou da cama
de manhã. Tudo planejado: a roupa, o perfume, a discreta maquiagem. Até o modelo do óculos que
poderia realçar seus olhos na penumbra do café.
Há tempos Elisa não via razão para se arrumar. Nunca se viu como uma mulher atraente.
Porém, Ricardo era o seu motivo. A única pessoa que queria por perto, finalmente, estaria perto.
Fantasiava falas, gestos, expressões que só seriam possíveis se ignorasse o que chamou de
"fator Laura". Não a conhecia, mas a imaginava muito bonita, porém, ao mesmo tempo, sem atrativos
intelectuais. Desta forma, o encontro com Ricardo se tornaria mais fácil.
Do alto da janela do seu consultório, o médico observava atentamente a porta do café. Não
queria chegar antes de Elisa. Temia encontrar algum conhecido ou mesmo um paciente que pudesse
roubar parte do tempo que decidiu passar com ela. Isso sempre acontecia: no supermercado, no
cinema, no posto de combustível, em quase todos os lugares.
Embora não soubesse direito sobre o que conversariam, não queria ser interrompido. Não seria
uma consultam tampouco um passeio com um amigo. Elisa não era sua amiga. Era alguém que queria
por perto. Alguém que o fazia se sentir vivo.
Dois minutos depois da hora marcada viu Elisa entrar, quase correndo, na cafeteria. Era hora de
ir a seu encontro.
***
Ele não está aqui. Vai ver, se arrependeu. Não o culpo. Eu, no lugar dele, faria a mesma coisa.
Ah, eu não aprendo! Ele é um médico e, para piorar a situação, um escritor ­ e dos bons! ­ ​ não um
qualquer​ . Deve ter proposto o tal café apenas por educação e eu ­ ​burra​! ­ fui lá e aceitei. Não era
pra eu ter aceitado.... Já se passaram seis minutos da hora marcada. Ele deve estar pensando em uma
boa desculpa para não me ver. E até posso imaginar: vou passar a tarde aqui, sentada ouvindo esse
maldito Hozier e comendo quindim. Vai inventar uma emergência médica, talvez... Sou uma imbecil
de pai e mãe. As coisas boas da vida não são para pessoas como eu. Simples assim. Não custaria
nada eu aceitar que, com tanta mulher no mundo, ele...
­ Olá, Elisa, desculpe o atraso.
Forte e lento. O coração de Elisa bateu descompassado. Alheio a vergonha que ela sentiu ao
pensar nos motivos que o afastariam daquele lugar, Ricardo se ajeitava na cadeira e com rapidez, ia se
livrando do cachecol de lã verde e o pesado casaco marrom, úmido da garoa fria que caia.
­ Faz tempo que chegou? ­ ele sabia o exato momento em que ela chegara ali, mas a
possibilidade da mentira o entusiasmava.
­Não. Acho que uns cinco minutos ­ prometeu que as mentiras desnecessárias estariam fora da
conversa.
­ Já pediu alguma coisa?
­ Ainda não. Estava esperando você chegar.
Ricardo olhou dentro dos olhos dela e abriu uma largo sorriso, ainda se ajeitando na cadeira.
­ Então, podemos pedir ­ enquanto fazia sinal para a atendente, concluiu seu pensamento ­
Pensou que eu não viria?
­ Não! Não pensei isso... Quero dizer... Você é médico. Se não viesse seria compreensível...
­ Pensou que eu não viria. E no fundo ficaria aliviada se eu não viesse.
­ Por quê? Não! De jeito nenhum...
­ Porque estaria certa sobre uma teoria que, no fundo, só faz sentido pra você.
­ Isso é uma consulta? Está me analisando?
­ Não. Sou médico, não tarólogo. Não adivinho as coisas e nem analiso as pessoas. Apenas
cheguei a essa conclusão porque conheço você há um certo tempo e, também, porque ajo assim,
algumas vezes.
Ela riu um riso nervoso. Ainda não acreditava que ele estava ali, sentado, confortavelmente,
como costumava fazer em seu consultório: o corpo levemente inclinado para trás e a perna direita
sobre a esquerda, mostrando os sapatos caros que costuma usar. A mão esquerda, grande e bem
cuidada, apoiava o rosto. Por um rápido instante Elisa se concentrou nas mãos. A aliança. Ele estava
sem a aliança.
­ Você está sorrindo, Elisa. Bom te ver assim.
Foi pega de surpresa, no flagrante de sua sarcástica satisfação. Sem mentiras.
­ É. É estranho me sentir assim.
­ Feliz? Você está com vergonha de se sentir feliz? ­ Ricardo estava a vontade com ela ­ isso é
normal. As pessoas se sentem culpadas quando vivenciam essa sensação enquanto outras pessoas
estão morrendo, matando, passando fome.
­ Talvez seja isso mesmo ­ concluiu enquanto levava um delicado pedaço de croissant à boca ­
É como se sentir felicidade fizesse de você uma pessoa egoísta. Não raras as vezes nos nivelamos à
desgraça da maioria para nos convencermos de que somos bons.
­ Por definição, quem se acha bonito, inteligente, digno de ser amado, ser feliz, não merece essa
felicidade. Mas poucos entendem que o melhor não necessariamente tem que ser dado ao menos
provido de qualquer sentimento de autoafirmação.
Os dois pararam por um gole de espresso.
­ Eu, por exemplo, sei bem o que é isso porque nunca fui pobre. Minha família sempre teve
dinheiro para fazer o que queria, quando queria e quantas vezes desejasse. Falar assim, parece
pretensioso.
­ Não necessariamente. Essa é a tua realidade. Bem diferente da minha. Quer um exemplo? Eu
já saí a pé pelo estacionamento do shopping apenas para alguns colegas pensarem que eu tinha carro.
Ricardo deu uma deliciosa gargalhada.
­ Queria experimentar essa necessidade de ser criativo por questões sociais. Meu pai era filho do
fundador de uma importante fábrica de bolsas. Investiam cerca de 200 dólares em material e vendiam
por cinco mil.
­ Era? Não é mais?
­ Morreu, há três anos, sem esconder o desgosto por eu não querer levar a diante os negócios da
família.
­ Desculpa a indiscrição, mas quem cuida dos negócios?
­ Minha mãe e meu irmão mais velho, que largou a carreira de piloto de aeronaves para, sem
experiência alguma, ser administrador e satisfazer meu pai. Culpa da culpa. Eu quis ser médico.
Salvar pessoas. Queria ser cirurgião, mas acabei descobrindo a psiquiatria. Nunca paguei por nada.
Tive a sorte de descobrir cedo que para ser bom em qualquer profissão que eu escolhesse deveria
encontrar uma motivação que não fosse ter dinheiro para pagar contas ou realizar sonhos. Então, achei
sentido no desafio. Salvando as pessoas delas mesmas estaria me salvando todos os dias.
Sentou, cada vez mais a vontade. Dobrava um guardanapo enquanto falava.
­ Atendo pelo Sistema Público de Saúde e também tenho pacientes que pagam verdadeiras
fortunas pelo tratamento particular. Há outros que vão ao meu consultório e não pagam nada. Essa é a
vantagem de não precisar de dinheiro.
­ E por que não quis me atender nessa vibe ​pro bono​? Sabia que eu não podia pagar.
­ Você é diferente. Não precisa de nada por caridade. Eu estou aqui não porque não podes
pagar, mas porque eu quero estar aqui, neste momento, contigo.
Elisa se cobriu de medo. Medo de errar, de falar, de ficar calada, de perder o ​ timing​. Mesmo
quando imaginava longas conversas com o médico nunca fora tão longe.
A firmeza por trás do rosto bem desenhado de Ricardo escondia uma fragilidade juvenil. Sabia
que estava cruzando a tênue linha entre a insinuação e a certeza. Estava ilhado entre elas.
O hábito de alisar a aliança quando se via em uma situação atípica o fez lembrar do exato
momento em que tirou o acessório, sentado na mesa do consultório. Era preciso esquecer Laura. Era
preciso lembrar o motivo. Era hora de retomar a conversa.
­ Às vezes, em momentos como esse, penso sobre os caminhos que minha vida teria tomado
caso eu tivesse optado por ser músico.
­ Você? Músico? Não brinca!
­ Sério. Eu costumava tocar. Ainda tenho meu violão no consultório. Lembro que, entre um
paciente e outro ou quando um faltava, eu tocava.
­ E por que parou?
­ Parei porque... ­ Ricardo tomou um gole de café enquanto tentava lembrar o real motivo pelo
qual havia parado de tocar seu instrumento favorito ­ porque... Eu não sei. Parei porque a gente para
de fazer coisas que costuma fazer. Mas o violão ainda está lá.
­ Lá onde?
­ No consultório.
­ Quanto tempo ainda tens, doutor?
­ Ricardo, me chame de Ricardo. Hoje, tenho a tarde livre. Eu teria atendimento em outra cidade
mas lá é feriado municipal. Não marquei nenhum paciente para o consultório. Tenho todo o tempo do
mundo.
Alguém que tinha todo tempo do mundo. Isso, nem de longe, era algo comum na vida de Elisa.
Nem sua mãe teria todo o tempo mundo para ela. Seu dentista, sua terapeuta, o florista, o atendente da
farmácia, nem o padre tinha todo o tempo do mundo. Mas Ricardo dizia ter.
E como era bom estar com ela. Pela primeira vez na vida sentiu vontade de pesquisar na internet
e ver se capricórnio e touro combinavam. Queria a acompanhar até em casa ou no supermercado e em
todos os lugares aonde Elisa levasse seu sorriso.
Não queria ser lembrado por ela apenas como o cara que a tratou um par de vezes. Queria que
ela sorrisse toda vez que ouvisse seu nome. Queria ser o motivo das risadas furtivas de Elisa em frente
ao smartphone. Queria muito. E não se importaria em arriscar sua carreira por isso.
­ Preciso voltar a tocar violão. Acho que o que me falta é plateia.
­ Posso ser, se não se importar com a minha falta de conhecimento musical.
­ Que tal agora?
O arrependimento de cruzar a linha­limite do relacionamento duelava com o desejo de tê­la por
perto. Como criança birrenta, mais uma vez, fez o que achava certo. "Dono do que cala. Escravo do
que fala". ​
Ah, dane­se, Freud!
­ Agora? Mas e o violão?
­ Está no quinto andar do prédio em frente. Se quiser, será um prazer tocar pra você.
Todo tempo do mundo. Elisa estava conhecendo uma sensação nova, da qual já estava gostando
mais que qualquer outra: a de simplesmente não ser rejeitada e de se sentir genuinamente aceita no
pequeno universo de alguém.
Capítulo XVI ­ A serenidade da maré
Não era necessário andar muito tempo dentro do luxuoso prédio localizado em frente ao café
para saber que qualquer objeto dentro dele custava um dinheiro que o salário de Elisa jamais poderia
pagar.
Desde a bancada de madeira nobre, na qual ficava o negro educado e sorridente dentro de um
terno escuro, de tecido caro, até a provável cobertura faraônica, tudo exibia sofisticação.
Ela passou incontáveis vezes em frente aquele prédio, porém, nunca pensou em entrar. Não
havia nada que poderia despertar seu interesse. O lugar poderia ser resumido como um aglomerado de
consultórios e clínicas particulares, além de alguns prestadores de serviços como contadores e
advogados e outras especialidades das quais ela nunca ouvira falar.
Ricardo era extremamente cordial e, em troca, recebia sorrisos espontâneos por onde passava.
Foi assim com o porteiro e com o entregador para quem segurou a porta do elevador de paredes de
espelhos.
­ Já conhecia o prédio?
­ Não. É lindo.
­ Ele tem uma área comum na cobertura, um solar. Lá funciona uma cafeteria para os locatários
e clientes. Mas não tem o charme daquela na qual fomos.
Elisa entrou no elevador e viu sua imagem refletida ao lado daquele homem que, na sua
definição, era um dos mais interessantes com quem já estivera. "Não combina", pensou enquanto
desviava o olhar para não se encarar novamente. Se via como parte de um "casal sem liga", aqueles
cuja mulher ou homem era considerado bonito demais ou rico demais ou inteligente demais para a
outra pessoa. Ricardo a fazia se sentir a pior metade do casal sem liga.
Era óbvio, pelo menos na cabeça dela, que aquele momento não passava de um ​ insight ​
de
amizade o qual, talvez, nunca mais fosse se repetir. Então, o melhor a fazer era aproveitar. Capturar
cada momento para ter uma boa história. "Uma vez um cara me levou em prédio incrível e...". A partir
daí, deixar as pessoas pensarem que ela teve momentos invejáveis com o tal cara. O que não seria
verdade.
­ Chegamos.
Márcia, a moça que passava aspirador no longo corredor carpetado, mal conseguia esconder a
felicidade de ver o médico. Todos gostam de ser bem tratados. Elisa tinha a sua cota.
No consultório, poucos móveis, porém, todos de muito bom gosto. Passou rapidamente os olhos
pela estante branca. Não havia porta­retratos com fotos de família o que, talvez, significasse um
excesso de segurança do que falta de amor já que Ricardo lidava com todo tipo de mente.
De relance, algo brilhou aos olhos de Elisa. Sobre a mesa, a aliança, jogada sem cuidado em um
porta clipes.
­ Bem vindo a um dos meus seis lares.
Elisa não disse nada. Apenas quis perpetuar a sensação de ver seus pés afundando no carpete
alto e macio. De costas ouviu o som de algumas cordas sendo afinadas.
­ O que você costuma tocar?
­ O que eu gosto de ouvir... Há algum tempo tento Ed sheeran, Djvan, Elis… depende o humor,
a situação ­ continuou a dedilhar ­ mas tem um cara que eu não sei se tu conheces, Jon Secada, que
tem uma canção belíssima...
Sentado em um majestoso sofá branco, apenas fez sinal com os olhos para que ela sentasse ao
seu lado. Sua plateia estava formada e nada e nem ninguém importava.
Começou sem jeito, fingindo estar sozinho para não errar o tom.
I, I can't read the future
But I still wanna hold you close
Right now, I need that from you...

Assim como a serenidade da maré, a voz de Ricardo ia enchendo cada espaço vazio da sala. Aos
poucos. Intensa e tranquilamente. A timidez do médico permitiu que ele levantasse o rosto devagar e
desse uma rápida olhada no rosto de Elisa. Ela sorria e seus lábios acompanhavam a letra da música
sem emitir som.

And I, I didn't wanna tell you


Things I didn't wanna know myself
was afraid to show...

O som do violão foi ficando pra traz. Ricardo só tinha em mente a letra da canção, cada palavra,
cada significado. Cada sentido.

But you, you gave me a reason


A reason to face the truth, oh yes you did…

Os dedos já não tocavam mais as cordas do violão. Os olhos pararam em Elisa que,
subitamente, guardou o sorriso. Qualquer movimento que fizesse, como seu cuidador seria errado,
ultrapassaria as barreiras da ética. Como homem, sabia que o risco era válido.

And baby I, I've tried to forget you


But the light of your eyes
Still shines, shines, shines like an angel

Conexão. Nunca tivera com Laura, nem com a mulher que viera antes dela, mas com Elisa...
Com Elisa era diferente. Com Elisa não precisava fazer joguinhos. Não precisava mentir. Não queria
mentir. Saltaria no escuro do desconhecido apenas para saber do que aquele sentimento era feito. A
protegeria para sempre vê­la sorrir, exatamente daquele jeito para que, por meio da felicidade dela,
completasse o dia com a certeza de amar e ser amado. Verdadeiramente.
De olhos fechados pensava que não precisaria ser médico se o Conselho de Medicina achasse
que seu sentimento era inapropriado. Não precisaria adiar seu pedido de divórcio mais uma vez caso
desse pedido dependesse ver Elisa sorrir. Não precisaria nem mesmo morar no Brasil caso fosse
julgado pelos amigos e parentes. Não precisaria ser tão racional se essa racionalidade o impedisse de
fazer Elisa feliz.
Abriu os olhos. Eles estavam tão perto dos de Elisa que podia sentir o calor do desejo em seu
reflexo azul. Não era hora de resistir. Foi vencido por seus instintos. Ela não resistiu. Não podia. Não
queria. Forte e lento. Verdadeiro.
Capítulo XVII ­ Diferente
Se abrisse os olhos poderia dar de cara com um homem arrependido, pronto para criar uma frase
de efeito e justificar o erro de tê­la beijado. Se mantivesse os olhos fechados, nunca saberia.
Abriu os olhos.
Para sua surpresa, o reflexo dos seus estavam dentro dos olhos dele. Ele tinha todo tempo do
mundo e ela já não via vantagem nisso quando lembrou que alguém teria que dizer alguma coisa.
Todo tempo do mundo é tempo demais quando se quer chegar à última página de um livro e descobrir
o final. Muito tempo.
Ricardo sorriu. Um sorriso que não podia ser lido por Elisa. Não era de arrependimento. Não
era de ironia, nem de sarcasmo. Nenhuma dessas sensações que ela conhecia bem.
Nenhum dos dois sabia como iniciar a conversa. Passariam as próximas horas, talvez dias,
procurando as palavras certas para não levar embora o sentimento que, mesmo sem definição, era
comum.
Ricardo afastou o violão que separava o seu corpo do dela. Não fez movimentos bruscos. Tinha
Elisa como um filhote assustado. Qualquer falta de sutileza a levaria para longe.
­ Não sei o que dizer. Gostaria de te ouvir, Elisa ­ Silêncio ­ Sou médico. Psiquiatra. Passo a
maior parte do tempo ouvindo, muito mais do que falando. Por isso, quero te ouvir.
­ Sou jornalista, Ricardo. Passo a maior parte do tempo observando e não sendo observada. O
jeito que você me olha, é algo novo pra mim. O novo me assusta. Sentimentos que não me levam à
rejeição me assustam. Com a rejeição eu sei lidar. Com o amor, ainda não aprendi.
Ele havia entendido o recado. De maneira sutil, se colocou confortavelmente a seu lado e, como
se manipulasse uma peça bastante frágil, a posicionou, encostada a seu corpo.
­ Eu poderia ensinar, caso soubesse. Na verdade, são poucos os seres humanos que sabem lidar
com o amor. Há aqueles que escrevem sobre o amor, cantam o amor, fazem poemas sobre o amor, até
matam e morrem por amor. Mas, os que sabem absorver a grandeza desse sentimento? São poucos.
Silêncio. Ricardo continuou em seu raciocínio.
­ O amor é grande, intenso. Foge da racionalidade. Incontrolável. Um mar límpido e furioso.
Segue seu rumo, sem ligar para as curvas, as pedras. Destrói nossas defesas, faz cair as barragens.
Segue em fúria sem conhecer seu destino. Não tem como lidar com isso.
­ Ouvindo você falar, entendo o quão assustador isso é...
­ Você não faz ideia o quanto estar aqui com você é confuso e, ao mesmo tempo, bom. Você é
diferente, Elisa.
Num pulo inesperado, viu que era hora de colocar as coisas nos seus devidos lugares mesmo
que não soubesse o que seriam essas coisas e qual seria esse lugar.
­ Diferente como? Diferente quanto? Ou você é acostumado a fazer o que fez ou...
­ Dei a jogada mais alta da minha vida, colocando na mesa minha carreira profissional, minha
reputação como médico e, mesmo não sendo seu médico titular, seu tratamento. Quer a má notícia?
Eu não estou blefando. É tudo tão óbvio que não parece real.
Ele levantou e sentou no carpete, em frente aos pés de Elisa.
­ Você é diferente de qualquer mulher que conheci.
­ Até de Laura?
O sorriso no rosto do médico denunciou que essa já era uma observação esperada.
­ Estava demorando... Até de Laura, sim. Principalmente de Laura. Aliás ­ completou se
ajeitando no chão ­ com ela já não tenho um casamento. Tenho um problema para resolver.
­ Clichê.
­ Clichê. Mas é a vida real. Na vida real não posso resolver uma coisa de cada vez, já que,
diferentemente do cinema, todas as cenas acontecem ao mesmo tempo.
­ Se envolver com uma ex­paciente entra na lista de problemas ou solução?
­ Entra na lista da minha vida. Um problema que pode ser uma solução ou a solução de um
problema. Depende o que vamos fazer com isso a partir de agora.
­ Você minimiza a traição.
­ Não. Eu lido com pessoas que maximizam a fidelidade até o ponto de serem totalmente
engolidas por ela. Que maximizam suas convicções, anulam suas vontades, seus instintos. Deixam de
viver suas vidas para viver uma vida socialmente aceitável em nome da igreja, das normas de conduta
de uma pessoa “de família”, dos julgamentos subjetivos da sociedade. A consequência física disso é
responsável por grande parte dos sintomas que levam a maioria das pessoas aos meus consultórios.
Se colocando de joelhos, se aproximou ainda mais.
­ Você apareceu como uma chance de eu ser e, se me deixar, te fazer feliz. De maneira simples.
Verdadeira.
­ Por quanto tempo? Uma semana? Um mês?
­Todo o tempo do mundo. Do nosso mundo. Enquanto fizer sentido para os dois. Esse é tempo.
Nunca havia tomado nenhuma iniciativa na vida, exceto quando escolheu jornalismo na lista de
cursos para prestar vestibular. Mas seu corpo foi mais rápido que a razão. Se inclinou e iniciou um
longo beijo. Depois, calmamente, se levantou. Viu um raio tímido de sol quebrar as nuvens de garoa e
refletir a aliança do médico em cima da mesma. Ignorou a desvantagem.
­ Me leva pra casa. Você já conhece o caminho.
Capítulo XVIII ­ Entre chaleira e xícaras

Enquanto estacionava o carro na íngreme garagem, o médico relembrava cada sorriso e


microexpressões do rosto de Elisa. Um levantar de sobrancelhas, uma puxadinha na boca, meio de
canto. Desceu do carro, ligou o alarme e entrou pela porta dos fundos.
Largou as chaves perto da pequena escultura de cavalo em cristal ao lado da porta e revisou a
correspondência. Andava pela cozinha com o desprezo de um empregado.
Foi até o balcão preto e branco, na gaveta das tralhas comuns. Abriu o pequeno frasco plástico
e, sem medir, ficou com quatro, talvez cinco clonazepam na mão. Água filtrada, copo de cristal. O
ritual de engolir um pouco de paz já havia se tornado hábito, em quantidades maiores e mais
frequentes.
Da cozinha, avistou Laura sentada na sala. Um fantasma dela mesma. Pálida e com os cabelos
vermelhos mal amarrados, com o que as mulheres chamam de "rabicó", enrolada em um roupão
branco como se fosse a única coisa que tivesse restado da casa inteira.
Devagar ele se aproximou. Seu ofício, por obrigação e natureza, era cuidar, mas foi por
compaixão que ele se aproximou.
­ Hey...
Ela atendeu ao chamado direcionando o olhar. Com cuidado, ele tocou em seu rosto. Não estava
febril. Depois a garganta. Não havia nada que indicasse algo errado. Os olhos. Esses sim, estavam
fundos, exaustos, amparados por olheiras. Observou suas mãos. Discretamente trêmulas.
­ O que você está sentindo, Laura?
Ela esboçou um sorriso cansado.
­ Solidão ­ havia a missão de depositar toda culpa do seu corpo doente em Ricardo e, quanto ao
objetivo, obteve êxito. ­ Isso é um sentimento, não?
Fingiu ignorar a cruzada que ela começava a traçar em sua direção. Tudo o que sempre evitou
durante os três anos de casamento. O que mais temeu nos últimos seis meses.
­ Comeu alguma coisa?
­ Não sinto fome.
­ Fisicamente, o que você está sentindo? ­ fez mais uma tentativa. Sua voz era forte e suave.
Trazia parte do calor que Laura necessitava.
­ Apenas preciso descansar. Sou médica também. Saberia me diagnosticar se tivesse algo
verdadeiramente errado.
­ Médica de criança ­ essa era uma observação que Ricardo, sempre sorrindo, jamais deixaria de
fazer ­ Vou preparar um chá.
­ Você? Preparando chá? ­ Nada relacionado à cozinha era familiar a ele. Nem mesmo esquentar
uma água para fazer um chá ou apertar um botão para que a máquina fizesse sem o auxílio de seus
conhecimento, o café. Ela se viu em um lugar importante.
­ Vai fazer bem.
Não pelas propriedades medicinais contidas no saquinho. Era médico, não curandeiro. Foi
humilhante pensar que a única coisa que poderia fazer para que Laura se sentisse melhor a seu lado
era um chá. Um chá que também o ajudaria a se sentir menos culpado.
Entre chaleira e xícaras era Elisa que não saía da sua cabeça. O silêncio indecifrável na ida para
a casa dela. O longo beijo dado por ela antes de descer do carro. A falta de planos após o bater da
porta.
Elisa não havia dito o que queria e não abriu espaço para que Ricardo dissesse o que esperava.
Estavam em um limbo. Muito mais escuro para o médico que, além de lidar com Elisa teria que lidar
com Laura, o moralismo dos conhecidos, dos seus iguais.
A água fervente descia suavemente pela xícara decorada com rosas. Presente de casamento.
Uma coleção com quatro. Não era o melhor momento de fazer acordos consigo mesmo, mas decidiu:
de hoje não passa!
O vapor da bebida embaçava seu óculos. Duas gotas de adoçante pra ela. Chá amargo para ele.
Dispensou a bandeja. Esperou ela tomar o primeiro gole enquanto, na mão dele, o chá servia como
uma distração.
­ Laura...
­ Um rapaz chamado Mateus ligou.
­ Deixou recado?
­ Não. Disse que tentaria falar com você mais tarde. Tentou o seu celular a tarde inteira mas
você não atendeu.
­ Eu estava no consultório.
Laura voltou a se aninhar no roupão e a olhá­lo dentro dos olhos.
­ Que achas de irmos a Europa, Ricardo? Ou se não quiser viajar muito longe, podemos ir
para... sei lá, Serra Gaúcha. Podíamos levar algum casal de amigos.
O rosto de Ricardo se iluminou. A ideia que compartilhou com Mateus já não era tão insensata.
Precisava de uma oportunidade e ela estava ali, bem na sua frente.
­ Mateus.
­ Esse que ligou?
­ Sim. Ele é advogado. Um amigo que tenho certeza que iria conosco.
A cor voltava aos poucos ao rosto da Laura. Ricardo conhecia esse processo. Tratava tantas
pessoas com o mesmo sintoma mas não sabia como ajudar a própria esposa. Deixou o assunto para
depois. Largou a xícara em cima do móvel de madeira nobre não se importando com as marcas que o
calor poderia deixar no caro balcão. Sentou a seu lado no sofá que só acolheria um. Abraçou Laura
fraternalmente. Ela não precisava de um marido: precisava de um amigo. Sua amizade ele ainda
poderia oferecer. Ela se aconchegou. A mente de Ricardo entrou em looping de ideias que só tinha
quando escrevia seus livros.

Não sentir. Não querer o mal e não querer mais nada enquanto o outro ainda espera algo de
você. O espaço, antes preenchido por risos, apelidos, pequenas atenções, cheiros e fluidos, hoje é um
imenso e desconfortante vazio. No lugar daquela sensação mágica de amor retribuído, apenas
protocolos de educação. Ao invés de um novo dia, um período de 24 horas que se inicia com o
despertador e seu insistente barulho a cada três minutos. Era hora de ser prático.

Do casaco sentiu o celular vibrar. Ignorou. Nova vibração. Enfiou a mão esquerda no bolso e
olhou a tela. Abriu um largo sorriso. Elisa quebrou a barreira do silêncio. Passou a mão nos
volumosos cabelos de Laura e levantou sem muita cerimônia.

Já te ligo.
Enviar mensagem.
Mensagem enviada.
Capítulo XIX ­ Parque Dos Dinossauros
Ricardo ajudou Laura a subir os dois lances de escadas vazadas e a colocou na cama. A cobriu
com um bom cobertor e se certificou que ela não precisaria de mais nada. Apagou a luz principal.
Aceso, apenas o abajur em forma de tulipa, do lado esquerdo da cama. Com cuidado, fechou a porta.
Imediatamente começou a desabotoar a camisa, se livrar do cinto e de tudo que o deixava
desconfortável, inclusive da culpa. Ser prático. Essa era a meta. Embora lidasse com a mente humana
todos os dias, pra ele, a subjetividade era a responsável pela humanidade andar em círculos cada vez
mais complexos. Não, não era hora de pensar demais. Era hora de agir.
Procurou rapidamente o número de Elisa e retornou a ligação.
Chamou uma.
Duas.
Três.
­ Elisa?
­ Pensei que não iria retornar. Fico feliz que tenha ligado. Podemos conversar?
­ Já estamos conversando. Eu queria que me ouvisse ­ Capricórnio com ascendente em touro.
Prático.
­ OK, Ricardo. Sou toda ouvidos.
­ Reconheço que coloquei você em uma situação bastante inesperada. Foi inesperada pra mim
também. Acredite.
Do outro lado da linha, Elisa se mantinha quieta, deitada de barriga pra cima sob a colcha verde
escuro, envolta pela modesta decoração do quarto. Seus pés traduziam a ansiedade da conversa sendo
esfregado um no outro desordenadamente. O hábito de roer unhas, que havia ficado na adolescência,
voltou para ajudar a conter o nervosismo.
­ Porém, quero que saibas que eu tenho um desejo quase incontrolável de estar contigo. Eu acho
que estou fazendo a coisa certa desta vez. Não quero voltar atrás. Só preciso seguir o plano que é sair
pela porta da frente deste casamento, sem levar comigo, arrastando como correntes, mágoas e
desafetos.
­ Eu não liguei pra cobrar absolutamente nada, Ricardo. ­ Uma mentira sincera. A única coisa
que poderia oferecer.
­ Eu sei. Eu quero deixar a situação bem clara pra mim e, consequentemente, pra você. Não
quero me sentir Chris Pratt em Parque dos dinossauros: fugindo e tendo que enfrentar algo que vai
além dos meus limites... ­ Ricardo riu com Elisa. Um psiquiatra, escritor, doutor... Parque dos
Dinossauros.
­ Liguei porque quero que tu saibas que, não importa o que tu decidires: eu estou contigo. Não
importa, de verdade.
Ela mentia. Era lógico que importava. Estava completamente entregue ao charme e a
inteligência daquele que parecia inacessível. Não queria perdê­lo para Laura, para a ética médica, para
qualquer arrependimento.
Do outro lado da linha, ele se sentiu confortável. Uma sensação que há tempo não sentia. Por
alguns momentos deixou de ser o apoio para se sentir apoiado. O amor era sentido na sua forma mais
simples: de maneira incondicional. Pela primeira vez, achava que tinha a permissão de errar porque
alguém o apoiaria, mesmo se tudo desse errado. Mesmo se os planos mudassem. Mesmo se não
houvesse plano algum.
Todo o peso que carregou nas costas ao longo de seus 32 anos vieram com o desejo da
perfeição. De acertar. De não decepcionar. De atender a uma expectativa que nem sempre foi a sua.
Na maioria das vezes não era.
Foi assim quando escolheu cursar técnico em contabilidade no Ensino Médio. Seu pai,
ignorando o desejo de Ricardo, fez dele o pior técnico de contabilidade para quem o Ministério da
Educação já atestou um certificado de conclusão.
Foi assim quando decidiu cursar medicina. Queria ser motivo de orgulho, alguém que faria do
pai o centro das atenções nas rodas de conversas da enorme família e de amigos: "Sabe o meu filho,
Ricardo? É médico". Era a sua vontade. E não viu nada de mal nisso. Mas, contrariando a expectativa,
o pai não o apoiou. Ironia do destino, sem o conhecimento médico de Ricardo, o câncer teria o
castigado muito mais do que fez com o velho ao longo de três longos anos.
­ Não importa se você quer estar comigo uma noite ou a vida inteira. Que queira dividir o seu
tempo comigo e com Laura ou apenas comigo. Que esteja perto ou longe... Vou respeitar ­ sua
mentira era perfeita. Ou quase.
­ Essa condição é insana.
­ Essa condição é muito mais do que tive minha vida inteira. Você me faz bem. Seja como for.
Não posso te pressionar. Nem quero. Estou sendo egoísta ao dizer que essa condição é o meu presente
em troca do que me tu me entrega: a sensação de me sentir viva.
A luz da rua que entrava pela enorme janela de vidro dispensou Ricardo de ligar o interruptor.
Aquelas palavras traziam mais conforto que a garrafa de uísque ao lado da cama no quarto de
hóspedes.
­ E se não der? E se não der certo?
­ Faz parte do jogo. Está incluso no pacote "eu estou contigo". ­ uma gota de verdade num
oceano de omissões.
Um longo suspiro. Segurança.
­ Por mim, eu ficaria ouvindo tua voz a noite toda, mas preciso dar um telefonema ainda, Elisa.
Gostaria de te ver, materializada na minha frente. Mas, eu ligo pra você amanhã.
­ Vou aguardar.
Descansou o celular no peito ao mesmo tempo em que dele saiu um longo suspiro aliviado.
Ainda faltava um telefonema: Mateus
Chamou uma.
Duas.
Três.
­ Estava querendo falar contigo, doutor.
­ Eu sei.
­ Quer colocar sua péssima ideia em ação?
­ Não é tão ruim. Encontrei a oportunidade. Laura não está bem. Se eu estivesse mergulhado em
um esforço tão grande para manter uma relação, certamente, eu estaria pior do que ela.
­ Você sabe que não quero o seu dinheiro.
­ Sei. Não sei ainda o que queres mas posso te dar. Vamos fazer uma viagem nos próximos dias
e ela sugeriu levarmos um casal de amigos.
­ Eu não estou mais casado... Sabe disso.
­ Eu sei. Detalhe. Quero que vá. Tudo pago.
­ OK. Me avise a data. Se não der certo, ninguém perde nada.
­ Posso contar, com você?
­ Estou contigo, Ricardo.
A vida, aos poucos, parecia voltar para o seu eixo.
Capítulo XX ­ Freud explica, Jung justifica

As toalhas brancas sobre as mesas redondas sustentavam louças que eram muito mais caras do
que bonitas. Mesmo com toda sofisticação, pano de fundo para reunião­almoço de grandes
empresários, Henrique e Ricardo achavam o restaurante aconchegante.
Perto do trabalho dos dois, era um ponto de encontro no qual, no mínimo uma vez por semana,
deixavam de lado as características comum da profissão para exercer a amizade que se orgulhavam ter
desde o primeiro ano de faculdade.
Uma música agradável e o burburinho de pessoas ricas se vangloriando em voz baixa era o que
tornava ambiente mais propício a pequenas confissões entre amigos. Em um restaurante classe A
jamais seriam interrompidos por paciente algum. Os ricos querem ostentar conhecer cirurgiões
plástico, não psiquiatras. Um preconceito que dava aos dois, no mínimo, uma hora de sossego.
Exceto se o assunto fosse perturbador, como de fato pareceu a Henrique nos primeiros minutos
de conversa com Ricardo.
­ Você enlouqueceu de vez, Ricardo? Isso é falta de algum tipo de vitamina? Não esquece que
eu também sou médico.
Cara de paisagem. Isso era tudo o que ele poderia oferecer diante dos comentários do melhor
amigo. Definitivamente, ignorar Henrique era um bom plano.
­ A Elisa é sua paciente...
­ Era. Até quase um mês atrás. Ou seja, não é mais. Quem atende ela é o Ferrari.
­ O Marcus? Por conta do plano de saúde?
­ Sim. Acho ele um bom profissional também. Experiente.
­ Um psiquiatra que também tem formação em psicologia. Muito conveniente. Um Jungiano.
Mais conveniente ainda.
­ Nem lembrava disso...
­ Ricardo, eu já te vi mal por várias vezes nesta vida. Para você ter uma ideia de como você está
se superando, nem quando eu pensei que você estava na linha do suicídio eu fiquei tão preocupado
contigo quanto estou agora.
Ele parecia não ouvir as palavras de Henrique. Pelo menos fingia não reagir a elas como ele
esperava. Henrique, assim como Ricardo, mal havia tocado no belo prato de massa que pediram. Em
uma situação normal, ambos devorariam seus almoços como se estivessem no corredor da morte e
aquela fosse a última refeição das suas conturbadas vidas. Mas, definitivamente, nada estava certo
naquele dia.
­ Você sabe que, a paciente se sentir atraída pelo psi, seja ele psiquiatra ou psicólogo, pode fazer
parte do processo. Porém, Ric, o contrário não rola, simplesmente porque não pode rolar. Está lá,
escrito pelo Freud.
­ Mas, pra sua informação, não me sinto culpado. A vida não segue regras. Não escolhi isso.
Aconteceu. Se Freud explica, Jung justifica.
A calma de Ricardo era justificada pelas doses cavalares de Clonazepam que tomou pela
manhã, antes de ir para a clínica. A prática de chegar no trabalho com cerca de 20mg do medicamento
correndo nas veias se tornou frequente. Henrique reconhecia os sinais: os movimentos lentos, as
reações, porém sabia que fingir não saber era a melhor estratégia para ajudar o amigo.
­ E Laura?
­ O que tem ela?
­ Como o que tem ela? Cara, estou muito preocupado. Não consigo fingir que não me importo.
­ Ela está bastante cansada. Sugeriu uma viagem. Vamos fazer nos próximos dias, mas, pra
mim, será para me libertar. Já está tudo apontando pra isso. Tenho, inclusive, ajuda.
­ De quem? Meu Deus, só piora...
Os olhos verdes de Henrique condenavam cada nova frase de Ricardo. Por mais libertino que
pudesse parecer, tinha uma natureza julgadora, que facilmente se confundia com preconceituosa.
Herança do pai. Se o machismo tivesse uma bandeira, certamente, estamparia o rosto do velho
Giancarlo. Descendente de italianos, suas opiniões eram bastante forte, movimentavam a mesa do
jantar. Os temas versavam não apenas sobre a presença da mulher na sociedade mas, principalmente,
contra tudo que pudesse parecer anticristão ou ideias que entrariam em um plano de governo de
esquerda.
Henrique era o reflexo desse homem, embora muito mais flexível pela insistência das minorias
em ocupar seus espaços no século XXI. Henrique não era exemplo para ninguém. Prova disso é que
seu nome já havia sido escrito em um processo envolvendo o Conselho de Medicina e em diários
secretos de mulheres casadas.
Ricardo limpou a boca no guardanapo de seda, se reencostou na luxuosa cadeira e passou a
observar o calmo vai e vem de pessoas que via através do vidro do restaurante. De longe, avistou uma
adolescente andando de bicicleta. Por ela, um casal passeava com um filhote de uma raça cara de
cachorro. No banco da praça em frente, um homem jovem, vestindo uma boina, lia um livro.
­ Como as pessoas aproveitam de maneira diferente o dia...
­ Você ouviu minha pergunta?
­ Sim, estou. ­ Não tirou os olhos da paisagem que mudava lentamente sob as árvores frondosas
da praça.
­ Olha, eu,t que assim como você, ajudo tanta gente, não sei como te ajudar. Falei com o
insuportável do teu terapeuta. Ele relutou em me dizer se você estava indo ou não na terapia. Logo,
suponho que abandonou ele também.
­ Isso é invasão de privacidade, Henrique.
­ Isso é saber por onde começar. Você é meu amigo e não posso deixar você afundar a sua vida,
a de Laura, a da tal Elisa e de um mundo de gente que depende da sua sanidade, sem que eu faça nada.
­ Você está sendo dramático. Não sou vítima. Ninguém é. O que estou fazendo é ter o domínio
da minha vida. Não estou me importando com regras, com Freud, com Jung e, tampouco, com você!
A irritação era real. O calmo restaurante parecia ter aberto uma brecha para o caos. Ele era
discreto, mas a sua raiva, não.
­ Tudo está entrando nos eixos, Henrique.
­ Então por que vejo você na defensiva, como Chris Pratt em Parque dos Dinossauros?
Ricardo acenou para Antônio, o garçom de quase dois metros que trabalhava no restaurante há
mais de 15 anos, e solicitou a conta.
­ Para de agir com uma criança de 12 anos, Ric.
Ele não ouvia. Jogou duas nota de cem dentro da comanda e ao sair entregou a luxuosa carteira
de couro ao velho servidor de mesas.
­ Pode ficar com o troco.
Numa marcha alheia a todos, Ricardo saiu do restaurante e acenou para um táxi deixando seu
melhor e, talvez, único amigo para trás.
­ Dia difícil, doutor? ­ perguntou o conhecido e intrometido taxista.
Olhou para o relógio viu que ainda tinha 40 minutos até o próximo paciente.
­ Qual é a floricultura mais próxima?
­ Depende para que lado o senhor pretende ir.
Para o lado de Elisa.
Capítulo XXI ­ Vulnerável
No curto trajeto que percorreu entre a floricultura e a empresa de Elisa, como um adolescente
inseguro, Ricardo ensaiava qual seria a maneira menos formal de entregar o belo arranjo de gérberas e
lírios tigrados. Demonstrar sentimentos seria mostrar­se vulnerável. A última coisa que um adulto
formado em medicina poderia querer.
Fingindo não se importar, entrou no imenso hall, pela majestosa porta de vidro. No fundo,
quatro recepcionistas, vaidosamente uniformizadas, pareciam fabricadas em série. Em vestidos
azul­marinho, atrás do balcão branco em forma de meia­lua, elas combinavam perfeitamente com a
imponente logomarca da empresa ostentada na parede ao ponto de dar a impressão que eram uma
coisa só.
Talvez esse tenha sido o exato momento no qual Ricardo se deu conta conta que, não sendo um
entregador, com flores nas mãos, lhe sobraria apenas o papel de um homem perdidamente
apaixonado. Sentiu­se ridículo.
­ Por gentileza, gostaria de falar com Elisa. Elisa Bueno.
O médico fingia não perceber as outras três mulheres imersas em discretos códigos femininos,
ao mesmo tempo em que apontavam para a sua presença. Secretamente, sempre se divertiu por
chamar atenção nos locais mais inusitados. Sentiu­se invencível.
­ Tem hora marcada? ­ perguntou a moça ruiva, numa mistura de educação e flerte.
­ Não, não...
­ Seu nome, por favor.
­ Ricardo.
­ Da onde?
A incrível capacidade que as recepcionistas têm de promover o arrependimento de qualquer
aproximação com uma empresa, emendando uma pergunta atrás da outra. Detalhes extremamente
irritantes. Quanto mais conectados, menos sociais.
­ Pode dizer apenas Ricardo que ela saberá quem é.
­ Como devo anunciá­lo?
"Papa Francisco", pensou enquanto emitia um sorriso de canto o qual não foi suficiente para
esconder a irritação.
­ Apenas Ricardo.
­ Um instante, por favor.
De maneira mecânica, pegou o telefone e, balbuciando algumas palavras, tomou posse do
veredito.
­ O senhor pode aguardar aqui que ela já vem lhe atender.
Virou de costas para o balcão e, pelas paredes de vidro, visualizou o café no qual tivera o
primeiro encontro com Elisa. A bonita decoração da empresa, além de uma bela paisagem, oferecia
aos visitantes TVs estrategicamente colocadas na paredes laterais. Passavam, o dia inteiro, notícias do
ramo alimentício, intercaladas com a previsão do tempo.
­ Oi Ricardo ­ A missão de Elisa era levar o médico para o mais longe que pudesse dos quatro
pares de ouvidos mais indiscretos da empresa que tinha um pouco menos de 200 funcionários. O
coração batia forte. Nunca alguém havia se mostrado interessado por ela ao ponto de a procurar no
trabalho. ­ Você disse que ligaria. O que aconteceu? ­ tentava ser discreta ao arrumar os cabelos os
quais a estrutura de vidro denunciava estarem desalinhados.
­ Pensei em trazer isso ­ da mesma parede Elisa viu o pequeno alvoroço que a entrega das flores
causou em suas colegas. Havia sido silenciosamente discriminada por muitos anos na empresa por não
ter posses, roupas de marca e nem um par que a acompanhasse na festa de final de ano da firma. Por
vezes, a rádio­corredor tratou de levantar teorias humilhantes sobre sua vida pessoal que, para muitos,
era inexistente. Infelizmente, nesse ponto, todos tinham razão.
Mas agora o jogo parecia ter virado. Recebeu flores não de um entregador, mas de um homem
cuja elegância e beleza seriam comentadas por vários dias quando as mulheres que o viram se
reunissem próximo à máquina de café.
Por outro lado, se alguém o reconhecesse, como de fato não seria difícil, saberiam que ela
poderia ser "a outra", algo que não iria ajudar em nada sua reputação na empresa fundada por uma
tradicional e pouco tolerante família alemã.
­ Duas das minhas flores favoritas.
Ricardo olhou para uma das TVs que, além de informações sobre comida, tinha a hora no canto
esquerdo do vídeo ­ É visita de médico, Elisa. Preciso ir.
O sorriso durou menos tempo do que o estampado no rosto da jornalista. Sua expressão
descontraída deu lugar a um ar preocupado.
­ Em breve vou a sair em férias com Laura.
As linhas no rosto de Elisa também mudaram. Bastou lembrar que teria que manter sua mentira,
caso quisesse manter Ricardo por perto, para ter um sorriso falso orbitando em seu rosto.
­ Para onde?
­ Ela falou em Serra Gaúcha, mas penso em um hotel­fazenda, mais para o interior.
Silêncio.
­ Eu quero muito fazer essa viagem porque vou dar um ponto final na minha história com a
Laura lá.
­ E por que lá?
­ Porque é assim que tem que ser. Não quero me envolver com problemas agora. Quero curtir os
poucos momentos contigo em paz. Atender meus pacientes sem pensar que tenho algo para resolver.
Quero sair pra jantar com você hoje à noite sem pensar que o mundo perfeito que eu vou viver vai
terminar assim que eu abrir a porta de casa.
­ Hoje à noite? Isso foi um convite?
­ Sim, foi. ­ As palavras saíram no meio de um sorriso emoldurado por um olhar de cobiça.
Lógico que Elisa não o encarava. Não era possível se ver como merecedora de tamanha atenção. Se
sentia feia, desengonçada, mal arrumada e, estar com alguém disposto a sair com ela era assustador.
­ O que eu devo vestir?
­O que você quiser. Não vai fazer diferença. Pra mim, você fica linda vestindo qualquer peça de
roupa. Provavelmente, sem nenhuma também.
O rosto de Elisa ficou quente e vermelho. Procurou sua ingenuidade e no lugar dela, assim
como Adão e Eva após comerem o fruto proibido, não a encontrou. Em seu lugar, a vergonha.
­ Preciso saber onde vamos para...
­ Não se preocupe com isso. Eu prometo que você não vai precisar se preocupar. Vista o quiser.
Agora preciso ir. Busco você em casa. Oito horas.
Antes que ela pudesse responder qualquer coisa entre o sim e o não, ele roubou um beijo rápido
e saiu, não sem antes jogar um aceno irônico para a recepcionista interrogativa. Vingou o desprezo
daquelas mulheres direcionados à Elisa por durante anos. Sentiu­se heroico.
Elisa ficou ali, parada com as flores na mão. Sorria e poderia voltar ao trabalho saltitando como
um Smurf. Ao invés disso se muniu de soberba e arrogância para passar, pela primeira vez, pela
recepção de cabeça erguida. O jogo virou.
E ela não sabia jogar.
Capítulo XXII ­ Arvores centenárias
O dia não havia sido fácil para ninguém. Mesmo para quem, na cidade, tinha suas vidas no eixo,
a natureza trouxe de graça, com a forte chuva repentina do final da tarde, diversos problemas para
lidar. Ventos fortes e alagamentos tomaram o lugar de uma bela tarde ensolarada, pegando, senão
todos, a maioria das pessoas desprevenida.
Nas ruas, árvores caídas e pequenos rios ao invés de asfaltos faziam circular carros da Defesa
Civil por toda a cidade. No interior de algumas edificações, os furos nas telhas, causados pelo
desgaste natural ou oriundos de outras chuvas, conduziam as águas diretamente para dentro de baldes
improvisados.
Sem energia elétrica, nem os semáforos podiam realizar o seu trabalho. A empresa de Elisa
operava por geradores que alimentavam as luzes de emergência. Da sua estação de trabalho via o
corre­corre de editores para, por meio de três ou quatro computadores, entregarem trabalhos
prioritários.
A calma de Elisa contrastava com o caos. No fundo, era isso o que ela queria: não precisar
encarar Ricardo em um ambiente que pudesse ser intimidador para alguém com a estima tão baixa.
Era lógico que, morando na mesma cidade, ele estaria vivendo os mesmos problemas. Se ligasse
desmarcando, compreenderia.
Mensagem recebida.
Vou atrasar em uma hora hoje à noite. Beijos.
Whatsapp: visualizado.
Messenger: visualizado.

Impossível Elisa ignorar.


OK.
OK.
OK.
A chuva forte, em um pouco mais de duas horas, virou garoa fina. De sua passagem, apenas os
estragos ao longo do caminho. Elisa foi para casa e durante o trajeto, falar do tempo não era pauta. A
roupa que vestiria à noite sim poderia ser. Sua segunda maior preocupação.
Em casa, após um demorado banho, era hora de duelar com o que havia no guarda­roupa.
Vestidos apertados, os quais não teve coragem de se desfazer na esperança de, depois de uma dieta,
poder usá­los como fazia há três anos. Camisas de tecidos inferiores. Blusas com muito brilho (ah,
como odiava brilho), calças que transformavam a gordura do abdômen em anéis de Saturno orbitando
em sua cintura. Não tinha roupa. Simplesmente não tinha. Lembrou que cresceu ouvindo a frase
"preto sempre é preto" que, associada às qualidades emagrecedoras da cor, poderia salvar a noite.
Juntou uma camiseta preta, decote V, a uma calça preta de elanca. Uma bota preta de cano
comprido, um casaco de malha preto. No pescoço, uma discreta gargantilha. Nas orelhas, brincos
pequenos. A maquiagem, essa sim, tinha que caprichar. Lápis de olho, delineador, rímel. Sombra
discreta. Batom vermelho. Não possuía muitos perfumes, mas os poucos que tinha eram agradáveis. O
dilema de usar o cabelo solto ou preso foi resolvido quando se imaginou libertando as madeixas, de
maneira sensual, igual às modelos em comercial de shampoo. Estariam preso por algo fácil de soltar.
Bota echarpe, tira echarpe, troca de cor. Toca o telefone.
­ Já estou aqui, mas leve o tempo que for necessário.
Quinze minutos mais cedo do que o novo acordo. Pensou em deixá­lo esperando, mas não
conseguiria.
­ Dois minutos.
Abriu a porta e lá estava ele, em seu carro preto que, por nunca ter se interessado em aprender a
dirigir, não sabia sequer precisar a marca. Os faróis ligados a impediu de ver o motorista.
Gentilmente, ele desligou as luzes, saiu do automóvel e se escorou no capô.
Ficou a contemplando. ​ Bom te ver. Sempre é.
O beijo ignorou a curiosidade da vizinha que chegava depois do passeio vespertino com os
cachorros. Abriu a porta do carro e rumaram pela avenida que ainda tinham as marcas do temporal do
final da tarde.
­ Vou levar você a um lugar que gosto muito.
­ Um restaurante?
­ Tem comida, mas não é restaurante.
Ricardo sentiu a tensão emanar de Elisa. A conhecia como paciente, que não era muito diferente
da mulher. Era preciso devolver a sua confiança.
­ Mas, não se preocupe. Não escolheria nada que você não fosse gostar. O que gostaria de
ouvir?
­ Da última vez que o assunto foi música, você me surpreendeu ao ponto de eu estar aqui, indo
pra um lugar para o qual não faço ideia. Confio no seu gosto musical.
Ele sorriu e balançou a cabeça. Quanta ironia. Apertou alguns botões.
­ James Bay. Você gosta mesmo desse menino.
­ Você não?
­ Gosto, claro. Ele é ótimo.
­ Ele, assim como muitos jovens cantores ingleses, está demonstrando uma maturidade
emocional que é difícil encontrar. Fazem boa música sem se preocupar com o sucesso e esse os
alcançam porque tocam as pessoas.
­ Ed Sheeran e ​Thinking out loud​.
­ Sim. Uma molecada que fala de amor da maneira mais nobre, bonita e respeitosa que um ser
humano consegue definir. Não tenho nada contra cantores como Luan Santana. Bem pelo contrário.
Acho que têm uma forma diferente de versar sobre o mesmo tema, mas não imagino Ed Sheeran
dizendo que estaria esperando a garota mesmo que ela esteja "velhinha gagá".
Eles riram em uma cumplicidade.
­ Dizem que ele, o Luan, assim como o Sheeran, é muito querido. Gosto de artistas que
reconhecem que não chegaram lá sozinhos e devolvem esse reconhecimento em amor.
­ Nada na vida faz sentido sem amor. É o amor que faz você levantar pela manhã e ir trabalhar.
Se não é o amor pelo trabalho é pela família que depende desse dinheiro para ser mantida com
dignidade. É o amor que faz você economizar seu dinheiro como garantia de subsídio para um tempo
difícil.
­ O especialista em amor.
­ Não. Apenas questiono os motivos que não me fizeram sair de casa se não sinto nada por
Laura.
­ Sente amor.
­ Amor na forma mais pura. O mesmo amor que eu tenho quando preencho um receituário com
uma caligrafia legível. Quando percebo que passei dez, às vezes vinte minutos do meu horário, com
um paciente.
Ricardo parou em frente a um prédio muito mais luxuoso do que o seu já luxuoso consultório.
Haviam percorrido alguns poucos quilômetros, Vinte minutos os levaram a um bairro nobre, afastado
da agitação do centro da cidade grande. Se não fossem as pequenas poças no chão, pareceria que a
chuva de algumas horas atrás não havia passado por ali. As árvores centenárias, deixaram suas folhas
no chão, mas, diferentemente dos bairros da periferia, não seus galhos. As casas não exibiam qualquer
sinal de transtorno. Muros altos cercavam os imóveis cujos impostos certamente custavam pequenas
fortunas.
Ricardo pegou o controle remoto do portão. Passou pelo segurança que o cumprimento como se
já tivesse feito isso inúmeras vezes. De fato, já tinha.
O carro preto subiu em uma rampa e parou na vaga 221B.
Capítulo XXIII ­ 50%

­ Chegamos ­ anunciou enquanto desligava os faróis.


­ Que lugar é esse? Sua casa?
­ Não! Quer dizer.. Sim.
­ Sim ou não?
­ Não é onde moro, mas o apartamento é meu ­ tirou o cinto de segurança e ficou a vontade para
conversar ­ quando meu pai faleceu, deixou diversas propriedades para partilha. Em testamento, me
deu o apartamento mais valioso.
­ Por quê?
Ricardo ficou desconcertado.
­ Vamos subir. Conversamos lá em cima.
Nem na fértil imaginação de Elisa poderia imaginar que haveria um lugar tão refinado dentro da
própria cidade. Tudo parecia saído de um roteiro de cinema. Pilares em vidro, com delicadas
lâmpadas internas, tornavam o caminho entre a garagem e o hall de entrada mais harmonioso. O fino
carpete verde escuro não apresentava um único ponto de qualquer resíduo. A pintura cor de gelo das
paredes, nenhuma dica de quanto tempo se passou desde a construção do prédio.
O elevador era o mais surpreendente. Enorme, estava preparado para receber um concerto de
uma orquestra de sopros de 30 componentes, caso alguém quisesse. Os espelhos refletiam os dois,
multiplicando seus corpos. O casal sem liga. "Foda­se a liga", pensou corajosa.
Fingiu não estar deslumbrada, mas como não ficar? Era tudo tão bonito, perfeito, sofisticado e
ao mesmo tempo tão misterioso quanto a página seguinte de um livro de Allan Poe, apenas pelo fato
de não saber sequer onde estavam e o que, precisamente, fariam ali.
Ricardo colocou sua mão ao redor da cintura de Elisa, que por um instante hesitou, lembrando
das gordurinhas. Atravessaram o longo e requintado corredor. Para a sua curiosidade, Ricardo tocou a
campainha do 221, aquele que ela supunha ser o próprio apartamento dele. Atendeu um moço negro
de uns 25 anos vestido com roupas de chef.
­ Olá Márcio.
Ricardo indicou com o braço esticado e a mão estendida em direção à porta que Elisa poderia
entrar na frente.
­ Bem­vinda ao meu refúgio.
­ O jantar está pronto ­ disse o chef ­ Vais querer que eu fique?
­ Não. Apenas me tire algumas dúvidas e depois você pode ir.
A alguns metros da porta, Elisa viu uma imensa sala com uma parede de vidro, como um
observatório. A paisagem mostrava, do alto a cidade, rastros das luzes dos carros, postes e
apartamentos que ignoravam toda sua tensão. A vida seguia suas próprias regras.
Enquanto o chef dava algumas instruções sobre o jantar, ela andava pela casa. Plantas e
esculturas escolhidas por alguém de muito bom gosto. A decoração moderna exibia livros, CDS, vinis,
quadros e toda sorte de arte. Do lado da janela, a obra em bronze de uma mulher gorda e seminua, por
alguma razão, parecia a mais valiosa. Ficou a admirando por um tempo. Não havia um resíduo de
poeira. Certamente era uma casa com uma manutenção rotineira. Lugar onde Ricardo viria talvez uma
ou duas vezes por semana.
­ Somos só eu e você.
­ Você tem um chef?
­ Contrato os serviços do Márcio sempre que quero comer sushi sem sair de casa. Ele é ótimo.
Ela sentou em um confortável sofá enquanto ele, do bar, tentava dar conta de ser um bom
anfitrião.
­ Quer beber alguma coisa?
Ela não ouviu. Apenas sabia que, o que quer que acontecesse naquela noite seria muito mais do
que poderia pedir. Era hora de ser segura. Hora do show que, se não acontecesse de maneira perfeita,
poderia colocar toda sua história com Ricardo a perder.
***
Embora Ricardo e Elisa pensassem estar presos dentro do mesmo exato minuto em que
entraram no apartamento, os restos de shoyo e a sobra de alguns sushis, assim como o caro relógio na
parede, denunciavam que já havia se passado cerca de uma hora e meia.
Ambos estavam sentados no chão, de frente para a imponente janela. Ela, aninhada no peito do
médico. Dali, observavam a cidade se aquietando aos poucos.
­ Lembra, quando você estava na clínica, que eu disse ter um segredo?
­ Sim. Foi muito ousado aquilo. Você me surpreendeu. A história da Maria Clara foi um golpe
de misericórdia.
­ É, mas não era apenas isso.
­ Lembro disso também. Não perguntei porque não quis ser indiscreta. Achava que já tinha ido
longe demais em diversas consultas.
­ Pois a história envolve esse apartamento.
Elisa ficou em silêncio. Deixou sua presença invisível para que Ricardo, diferentemente do que
costumava fazer, pudesse se abrir.
­ Ganhei esse apartamento do meu pai. Foi uma surpresa pra mim. Nunca trouxe Laura aqui.
Casamos em separação total de bens e ela só tem conhecimento desse imóvel porque, na época, ele foi
motivo de uma guerra na família. Na minha família.
"Meu pai estava com câncer há três anos. Foi o pior sofrimento que eu já vi um ser humano
passar. Nem mesmo durante a faculdade, período no qual eu acompanhei alguns pacientes terminais,
presenciei tamanha agonia. Ele não conseguia comer e sentia fome. Não conseguia beber e sentia
sede. Mal conseguia respirar sem a ajuda de respiradores. E eu, médico, me sentia a pessoa mais inútil
de todo universo.
A angústia viajava na voz forte e suave do médico sem sua permissão. Nas poucas pausas, o
silêncio era tão grande que, se quisesse, poderiam ouvir o pensamento de cada escultura da sala.
"Precisava fazer algo para ajudá­lo. Eu estava tentando superar a perda da minha paciente.
Passava os dias tentando reencontrar a minha vida. As noites, convivendo com o cheiro forte da morte
que morava dentro do pai mas não o deixava partir.
"E foi numa dessas noites que ele confessou que queria morrer. Mais do que isso: que ​precisava
morrer. Disse que chamaria o testamenteiro no dia seguinte e resolveria a vida da família. Deixaria
tudo pronto.
"Eu ignorei aquela súplica. Era demais pra mim. Duas noites depois ele me contou que o
testamento estava encaminhado, sem me dar detalhes dele, e me pediu a pior tarefa que um ser
humano pode pedir a um médico, a um filho: que o ajudasse a morrer com dignidade.
­ Eutanásia.
­ Sim. O plano dele era perfeito. Perfeito. Só precisaria de alguém para executar. Queria que eu
fosse essa pessoa. Inicialmente eu entrei em pânico. Não poderia falar daquilo para ninguém e não
poderia ignorar. Foi a pior noite da minha vida. Disse que jamais atenderia esse pedido. E ele se calou.
"Cuidei dele e de seu sofrimento durante aquela noite toda e, na noite seguinte retornei. Eu
estava cansado, não havia dormido um único minuto. Esgotado. Vi ele na cama e parecia ter passado
pelo mesmo esgotamento que eu nas últimas horas.
"Quando me viu, não sei como, mas ele sabia que eu havia mudado de ideia sobre tudo aquilo.
Mesmo que eu não tivesse dito uma palavra. Ele sorriu e disse "obrigado, meu filho".
Antecipadamente, agradeceu o fato de eu ser responsável pelo seu assassinato.
­O descanso dele.
­ Não. Pela morte. ASSASSINATO. Isso foi contra tudo o que eu pensava sobre ser médico.
Médicos salvam, não matam.
"Quando abriram o testamento, lembro dos demais parentes, inclusive minha mãe, querendo
saber por que, diabos, esse apartamento e 50% dos bens, havia sido dado pra mim. Para minha mãe e
os meus dois irmãos, os outro 50 %.
"Logo eu, que sempre me rebelei quanto aos anseios que ele queria pra mim. Logo eu... Jamais
poderia dizer que era porque, de alguma forma, ele sabia que eu iria atender ao seu pedido no dia
seguinte.
O sorriso, de maneira saudosa e triste, tomou o rosto de Ricardo.
"Minha mãe pensou que eu, sendo um psiquiatra, tinha manipulado os desejos do velho. Meu
irmão mais novo foi o único que achou justo. No seu desapego adolescente disse que eu fui o que
mais o ajudou a enfrentar a doença.
Elisa novamente quebrou o silêncio.
­ Quando você começou a história, na clínica, estava disposto a me contar essa também. Por
quê?
­ Porque eu queria que você soubesse que eu iria fazer absolutamente tudo o que estava ao meu
alcance para não ter mais uma morte nas mãos. Médicos salvam. E eu precisava te salvar.
­ E por que desistiu de me contar?
­ Estava passando dos limites terapêuticos. Já havia cruzado a linha ao falar de Laura, depois de
Maria Clara... Não iria ajudar em absolutamente nada contar essa história na época.
Ela entrou dentro dos olhos do médico e não sabia mais se era o homem ou o profissional que
estava a sua frente.
­ Mesmo que você não tivesse dito coisa alguma, já tinha me salvado no momento em que
decidiu cuidar de mim. Eu sabia que não importava se eu queria viver ou não, você faria tudo pra ser a
rede de segurança. Inicialmente por ofício...
­ Depois por amor ­ Ele encheu uma taça de vinho para ela e fez o mesmo para ele ­ Você
significou uma nova fase, Elisa.
Ricardo intercalava beijos rápidos com suas meias palavras.
­ Cada um de nós forma 50% dessa história ­ e, se livrando das taças a beijou longamente.
Elisa soltou os cabelos e, como um toureiro que se apropria da capa, pronto para o que quer que
fosse, mostrou estar disposta a receber Ricardo como homem. Como seu amante. Alguém capaz de
lhe dar o que se negou a receber por grande parte da sua vida: amor puro e simples.
Hipnotizado pela paixão que sentia em cada poro de Elisa, em cada movimento que seu corpo
fazia para controlar o respiração, no som alto e forte que seu coração fazia a cada movimento. Não era
preciso dizer coisa alguma. Em um mundo de cerca de sete bilhões de pessoas, tudo o que precisavam
era apenas um do outro. E, pela primeira vez, teriam um ao outro, verdadeiramente, por toda a noite.
Capitulo XXIV ­ Amor­Perfeito
O táxi parando em frente à casa foi o único acontecimento capaz de roubar a atenção a qual Laura
dedicava ao jardim nas últimas duas horas. Suas mãos, levemente sujas de terra, ainda tinham espaço
limpo para secar as gotas de suor que, suaves, escorriam pelo seu rosto protegido pelo delicado
chapéu praiano.
Era prazeroso, porém, bastante incomum ver Ricardo chegando em casa um pouco antes do pôr
do sol. Ela já havia se acostumado à solidão e dela, não reclamava. Nos últimos três meses o número
cada vez menor de explicações que o marido dava após horas longe de casa a fazia a aceitar a
condição irrelevante que ocupava na vida de Ricardo.
As flores do enorme jardim, quando não estava envolvida com seus pequenos pacientes, eram as
únicas companhias com as quais Laura poderia contar. Cuidava de rosas brancas, vermelhas e
amarelas, além de margaridas, gérberas, lírios e plantas ornamentais que não dependiam de nenhum
conhecimento botânico do cuidador para se manterem vivas.
Agachada próximo às margaridas, seu longo vestido de crepe amarelo formava uma bela
composição com a grama que cercava os trilhos de pedra do pátio. Ricardo chegou devagar. Escorado
no portão se limitava a sorrir e observar aquela cena. Em troca, Laura lhe deu seu melhor sorriso.
E como era lindo! O cabelo vermelho e encaracolado contrastava com a pele extremamente clara.
Seu decote, discreto, emoldurado por fitas finas de cetim, transformava aquela mulher que costumava
ser tão técnica, em uma encantadora princesa Disney.
­ Que foi, Ricardo? Parece que nunca me viu.
Ele nada respondeu. Ela estava certa. Nunca havia visto Laura como a via naquele momento. Um
alívio para sua alma esgotada por doses cada vez mais inaceitáveis de clonazepam. Trafegou 15
quilômetro de táxi apenas por estar totalmente dominado pelo medicamento.
­ Problemas com o carro?
Ele manteve o silêncio. Se aproximou e sentou no chão ao lado dela. Largou a elegante pasta de
couro sem muito cuidado. Pegou uma muda de flores.
­ Isso é violeta? ­ Perguntou sem tirar os olhos da planta, cujas raízes estavam imersas em um
pouco de terra, amparadas por um saco preto.
­ Não. Amor­perfeito.
­ "Amor­perfeito" ­ repetiu.
­ Por conta das três cores, alguns chamam de "Erva da Trindade".
­ É mais adequado, Sissi.
Em meio a uma discreta risada, ela o olhou de canto. Há quanto tempo não a chamava assim.
"Sissi". Ele observava cada detalhe da flor. Desajeitado, fez um pequeno buraco em uma sequência
óbvia na qual ela seria plantada e, com as mãos, a colocou na terra. Uma terapia. Um momento de
paz.
Os últimos três meses, que deveriam ser os mais felizes, se tornaram nos mais conturbados.
Seguir o que achava correto, de maneira impulsiva, trouxe consequências para as quais, na época, não
estava preparado e agora, não disposto a lidar.
Dividir seus dias entre o compromisso com os pacientes, os frequentes encontros com Elisa e o
pouco de respeito que ainda restava por Laura eram tarefas árduas, que lhe roubavam a paz a qual só
lhe era devolvida pelos pequenos e, cada dia menos eficientes, comprimidos. A decisão do divórcio
não poderia ser adiada por muito mais tempo.
Mas a vendo ali, no jardim, esse desejo pareceu distante. Afinal, Laura nunca perguntou
absolutamente nada sobre com quem ele conversava no WhatsApp ou em quem pensava quando fazia
amor de forma mais vigorosa ou mesmo, por que, diabos, ele chegava depois das duas horas da manhã
nos dias em que não estava de plantão no hospital. Nunca perguntou. Apenas o deixava em paz,
andando pela casa, lendo seus livros e dormindo do lado esquerdo da cama como um completo
estranho.
Ela nunca quis saber porque talvez já soubesse. Não tinha nomes, nem rostos. Não precisava e
nem poderia ter, afinal, mesmo não tomando nenhum cuidado adicional para a traição não ser
descoberta, ele era, acima de tudo, discreto.
Laura simplesmente deixava o tempo correr como se esse, igual a um curandeiro charlatão,
pudesse trazer Ricardo de volta, senão por amor, por compaixão. Por vezes, quando Ricardo chegava
e, no caminho até o chuveiro, trocava duas, três palavras, pensou em iniciar uma conversa. Desistia
sempre que lembrava que isso daria a ela o risco de perdê­lo para alguém sem rosto e sem nome.
Deixava­o livre.
Mas, por algum motivo que não conseguiria explicar, sabia que aquele era o momento certo.
Esperou três longos meses de indiferença disfarçada de compromissos para aquele único instante.
Subitamente, Laura largou a planta que, mesmo sendo tratada com carinho, murchava ao sol. Era hora
de agir, como quem espera a melhor oportunidade para abordar o seu amor platônico: antes de ele
virar a esquina e o perder para sempre.
Segurou as mãos macias do médico, sujas pelo plantio improvisado, e entrelaçou os dedos junto
aos dele. Foi correspondida pelo olhar que, antes perdido, era exclusivamente dela. Pela primeira vez,
em meses, o sentiu presente. Mente e coração. Perto. Pegou a pasta, a única gentileza ao seu alcance,
levantou e o puxou pela mão.
Pela primeira vez, ao estar com Laura, não pensou em Elisa. Esqueceu a discussão inútil que
tivera com ela na noite anterior por conta da viagem que faria com a esposa na semana seguinte. Das
vezes que quis largar tudo para morar com Elisa em uma cidade longe da vida que levavam. De
quando ela, sem a mínima cerimônia, devolveu uma gargantilha de ouro branco e diamante por não ter
roupas adequadas para usar a joia. De todos os minutos que ensaiou dizer que a amava, mas por medo
de perdê­la, se calou. Esqueceu que quase perdeu o interesse pela ex­paciente quando, tentando
demonstrar indiferença, Elisa não respondia a seus telefonemas ou simplesmente ignorava suas
mensagens, o deixando com raiva. Confuso. Arrependido. Apaixonado.
Esqueceu de tudo isso. Dos últimos 90 dias. Apenas seguiu Laura até o interior da casa. Estava
completamente entregue ao que quer que ela propusesse. Passaram pela sala de móveis pálidos. Pela
varanda. Pela sala de TV. Depois de jantar. Subiram as escadas. O chuveiro era o destino.
Capítulo XXV ­ Códigos Sociais
Sob os lençóis brancos e macios o casal se cobria de silêncio. A janela aberta servia de passagem
para a brisa gélida que conduzia o aroma dos lírios do jardim para o interior do quarto naquele início
de noite.
­ Distante, Ricardo?
­ Não. Muito pelo contrário ­ suspirou. Demorou cerca de um minuto para concluir seu raciocínio
­ Estou bem aqui. Pensando na próxima semana, a viagem. Quero muito ir para esse hotel­fazenda
com você. Precisamos disso.
Ela deu um discreto sorriso. Com o rosto encostado no peito nu de Ricardo e protegido pelos
volumosos cabelos seria impossível que ele visse seu semblante de satisfação. Ela estava em
vantagem pois, mesmo que não pudesse ver o rosto dele, podia ouvir as batidas do coração: forte e
acelerado.
Viu recompensado o esforço de ter, secretamente, pensado em cada detalhe. Tinha carta branca
para gastar como e quanto quisesse nesse plano de viagem, desde que não passasse de quatro dias, o
destino fosse relativamente perto e ­ o que a deixava um pouco contrariada ­ fosse compatível para
mais um casal.
Um casal que Ricardo sabia, desde o começo, que se resumiria a uma única pessoa: Mateus. Mas,
diante do cheiro de Laura, descobriu o quanto a ideia de ter o eventual confidente na viagem para
ajudá­lo no plano de separação era estúpida.
Simplesmente estúpida.
Por um longo instante pensou em deixar toda a história de pedir o divórcio para trás.
Simplesmente esquecer isso e recomeçar a vida ao lado de Laura. Desta vez, do jeito certo! Aceitando
os defeitos, exaltando as qualidades. Sairiam mais para jantar ou simplesmente ficariam sentados mais
tempo no tapete da sala, improvisando um sarau ou tomando vinho.
Tudo poderia ser diferente desta vez. Não trabalharia tanto. Logo, poderia auxiliá­la nos casos
mais complexos dos pacientezinhos a quem Laura dedicava tanto tempo. Também teria com quem
confidenciar as histórias malucas das quais as patologias de alguns pacientes seus os faziam
personagens principais.
Poderia organizar com mais antecedência os compromissos de final de ano e passar os tão
adiados 30 dias de férias no Uruguai. Visitariam a mãe de Laura, dona Dalza, em Minas Gerais, mais
vezes ao ano e se divertiriam com os causos mal contados de seu Sebastião, o marido.
Ririam mais.
Se olhariam mais.
Fariam amor mais vezes.
Talvez, até tivessem filhos.
Porém, em meio a tantas e novas possibilidades, Elisa ainda habitava, de maneira viva e intensa,
os pensamento de Ricardo. Enquanto fazia planos que incluíam, depois de muito tempo, a esposa, a
imagem dos grandes olhos azuis de Elisa não o deixava em paz.
E eram sentimentos igualmente fortes, porém diferentes. E nenhum dos dois eram errados. O
amor sempre encontra sua barragem na moral e nos códigos sociais. Amar uma pessoa por vez nada
mais é do que desamar, o que, para Ricardo, parecia egoísta. Injusto.
Duas mulheres fortes que, por maior que fosse o sacrifício, viveriam dentro das regras, dos
códigos sociais. Nos últimos dias, Elisa já não era tão tolerante enquanto Laura fingia não se importar
com o que quer ele estivesse fazendo fora de casa. Alías, fingia muito mal.
Era preciso ser justo. E a única forma que teria para fazer isso seria ignorando seus sentimentos
por uma delas e seguindo sua vida com a outra. No momento, estava com Laura e, naquela específica
hora, era nos braços dela que queria viver.
Devagar, Laura foi se desvincilhando dos braços de Ricardo. Como uma modelo saindo das
águas, livrou­se dos alvos lençóis. E, para ele, como era linda a cena que via se formar a partir do
contorno do corpo dela sob a luz pálida que vinha do jardim. Delicada, cobriu o corpo com o roupão
branco que ficara ao lado da cama e foi para o banheiro. Ligou o chuveiro.
Ricardo, subitamente, voltou à realidade. Pegou o iPhone do lado da cama e viu três chamadas
não atendidas. Nenhuma que valesse o retorno. Precisava falar com Mateus.
Chamou uma.
Chamou duas.
Chamou...
­ Ricardo. Tudo certo para semana que vem?
­ É sobre isso que quero falar com você. Mudança de planos.
­ Desistiu?
­ Sim. Você tinha razão. A ideia é estúpida. Perigosa.
Mateus finalmente soltou a risada guardada há três meses. Mais precisamente, desde a noite em
que conversaram sobre o assunto ­ Vai sair do casamento pela porta da frente, como fazem os adultos?
­ Não sei. Não sei, Mateus... Não faço a mínima ideia.
­ Uau! Esse seu "não sei" me diz que você sabe. E muito. O que mudou?
­ Eu amo Laura.
Tanto Mateus quanto Ricardo ficaram em silêncio. Aquilo era forte demais para qualquer
comentário ou justificativa.
­ A "menina­paciente" era apenas uma aventura e vai...
­ Não, não é! ­ Ricardo foi enfático, como há tempo não conseguia ser ­ e seja lá como irias
completar essa frase, por favor, não continues, Mateus. Quero estar com Elisa na mesma intensidade
com que quero estar com Laura. O novo dilema, se é que posso chamar de novo, é esse.
­ OK. Não sei seus motivos para deixar de ser uma música do Lupicínio e se tornar uma de
Guilherme e Santiago de uma hora para outra, mas já que dispensou os meus serviços, te desejo sorte.
Você está por sua conta e risco, doutor.
­ Eu sei... Mas eu precisava lhe dizer isso.
Do banheiro, enquanto a água da torneira caía sob a solene cuba branca, Laura, parada em frente
ao enorme espelho, apenas repetia baixinho para seu reflexo:
­ Elisa.
Capítulo XXVI ­ Lacunas
De alguma forma, Elisa sabia que algo estava acontecendo entre Ricardo e Laura. Não a
conhecia, mas conhecia ele tempo suficiente para saber que algumas atitudes poderiam estar
relacionadas à esposa do médico.
Antes, bastava Elisa dizer que talvez, por algum compromisso na empresa, não pudesse
encontrá­lo para que Ricardo lhe apresentasse uma lista de bons motivos para que ela passasse mais
tempo ao lado dele. Hoje, disse que não iria ao seu apartamento de pilastras iluminadas ao que ele
respondeu "tudo bem."
Tudo bem.
Não. Nada estava bem. Não como Elisa queria. O jogo virou, porém, por não conhecer a sua
adversária, não poderia saber quem estava ganhando ou perdendo. Sua insatisfação com o
relacionamento com Ricardo a dominava a ponto de se tornar em uma insatisfação ainda maior por ela
mesma.
Passava horas na frente do espelho analisando tudo o que achava inadequado em seu corpo.
Analisava seu cabelo e comparava com os da esposa imaginária que criou para representar Laura. Até
sua personalidade, seu modo de sorrir e de olhar foram questionados. Sentia­se imprestável.
A viagem com Laura seria no dia seguinte. Seja lá para onde fossem ou o que fizessem, a
sensação de perdê­lo para sempre era iminente. Precisava jogar alto. Jogar limpo. Arriscar.
Não mandou mensagem via aplicativo nenhum. Simplesmente ligou. Queria ouvir a voz dele e
fazer ele ouvir a sua. Do outro lado da linha, o telefone gritava em silêncio. Ricardo, alheio ao
chamado, atendia a um novo paciente.
Ligou uma vez. Duas. Três.
A insistência foi tamanha que os olhos do médico se voltaram para a tela mesmo sem dela ter
sido emitido um único som. Discretamente o colocou na gaveta. Mesmo assim, a concentração de
Ricardo se foi junto com as três chamadas perdidas.
Elisa não estava exclusivamente na cabeça de Ricardo. Enquanto arrumava cuidadosamente o
conjunto de malas para a viagem do dia seguinte, Laura pensava na mulher com quem dividia a
atenção do marido enquanto via cada peça de roupa, separada por cores em cima da cama, tudo ao
lado do folder do belo hotel, em meio a uma imensidão verde.
Sentia­se feliz por antecipação, porém, nos momentos em que a felicidade de passar um tempo ao
lado do médico dava uma trégua para que os pensamentos racionais de Laura viessem à tona, tentava
imaginar como Elisa seria. Seus olhos, sua boca. "Seu corpo, como seria seu corpo?". Teria o tempo
sido mais generoso com ela do que com Laura? Imaginava o tom da voz que teria seduzido Ricardo,
um homem tão sensato e inteligente. O que a fazia especial? Mais especial do que ela? Ele não cederia
a qualquer uma. E, por esse motivo, tudo o que sabia apenas era que Elisa não era uma qualquer.
A alguns quilômetros dali, Ricardo contava os minutos para ver o paciente saindo porta afora. Era
horrível esse desejo, mas a mais pura verdade. Enquanto isso não acontecia, dava a ele parte de sua
atenção e o seu mais cordial sorriso para compensar a grande quantidade de dinheiro que ele havia
investido em troca de 40 minutos do seu tempo. Quando finalmente apertou a mão do paciente e o
conduziu até a porta, se sentiu livre para pedir à recepcionista que aguardasse a ordem para chamar o
próximo agendado.
Três chamadas não atendida. Nenhuma mensagem. Não lhe passava nada pela cabeça que
justificasse o que de tão urgente Elisa teria para compartilhar. Nunca fizera isso. Sempre respeitou
seus horários de trabalho e o tempo entre a ligação e o retorno que, muitas vezes, poderia demorar até
duas horas.
­ Elisa.
­ Ricardo.
As lacunas entre as poucas palavras que trocavam, falavam muito mais do que os dois entre si.
Mais dia, menos dia, Elisa iria entregar que toda aquela conversar de deixar o médico livre era apenas
uma maneira de mantê­lo perto. Mais dia, menos dia, ele enfrentaria isso. O dia era aquele.
­ Precisamos conversar.
­ Agora?
­ Você está atendendo. Eu, trabalhando. Amanhã.
­ Amanhã é o dia em que... você sabe.
­ Sim. Eu sei, Ricardo. Mas sei também que você precisa estar no aeroporto por volta das nove da
noite. O aeroporto não fica muito longe. Podemos conversar antes.
Sim. Ela, conhecedora de todos os compromissos regulares dele, sabia que, se Ricardo quisesse,
poderia conversar com ela. Daria tempo para fazer amor, caso ele estivesse a fim, tomar um café e
ainda levá­la para casa.
­ OK. Você tem razão. Temos tempo. Todo o tempo do mundo. Até ás 21 horas.
Do outro lado da linha, ela sorriu. Ainda tinha sua relevância na vida de Ricardo. Ainda poderia
jogar.
­ Posso esperar no café, em frente ao seu apartamento secreto.
Depois de muito tempo, Elisa ouviu novamente a risada de Ricardo.
­ Elisa, não é um apartamento secreto, mas sim, pode ser lá. Apenas ligue para o taxista de
sempre. Pago ele depois, tudo bem?
Agora tudo parecia estar bem novamente. Absolutamente tudo. Mal sabia ela que poderia ficar
ainda melhor.
­ Eu te amo, Elisa.
Não havia mais como voltar. Qualquer que fosse a direção a tomar, seria a definitiva.
Capítulo Final ­ Cinza
O dia amanheceu cinza. Daqueles em que nem as crianças conseguem colorir as ruas com suas
roupinhas esquisitas. Nem os cachorros das madames tiveram quem os levassem para passear. Nas
esquinas, apenas pessoas que não tinham outra alternativa a não ser ir para o trabalho, a consulta, o
compromisso que não poderiam adiar. Se algo era certo é que, em dias assim, os colegas de Elisa
ficavam mais calados. Os bebês, atendidos por Laura, mais inquietos, enjoadinhos. Os pacientes de
Ricardo, mais retraídos. A vida se encolhia à espera do primeiro raio de sol para voltar a viver.
E seria estranho se Ricardo contasse para algum amigo que nesse dia, feito a nanquim, foi o dia
em que mais tempo dedicou para se arrumar. No enorme closet, pulou as portas que abrigavam as
peças casuais e foi direto a uma meia dúzia de ternos que mantinha para ocasiões as quais sempre
inventava uma boa desculpa para não ir. Por isso, usou algumas peças pouquíssimas vezes. Antes de
combinar o conjunto com a camisa e a gravata, foi necessário cheirar para ver se o mofo não fazia dos
trajes moradia.
Queria algo especial. O preço era enfrentar os olhos curiosos dos colegas que dariam seus extras
dos plantões para saber de onde Ricardo vinha ou para aonde iria tão alinhado. Logo Ricardo! Um
cara que não se preocupava com roupas. Era casualmente bem vestido, algo que conseguia
escolhendo, de maneira aleatória, as camisas e calças que usava. Mas naquele dia, ele dedicou tempo
para se vestir.
Achava que assim estava dando a devida importância para o dia que teria que mudar tudo o que
vinha vivendo nos últimos meses. Iria trabalhar, atender da mesma forma cordial como atendia seus
pacientes, depois, encontraria Elisa. Seja lá o que acontecesse, queria que fosse definitivo. Não
aguentaria muito tempo aquela situação. Enquanto arrumava a gravata, reconhecia que não era
homem de duas mulheres. Não sabia fazer isso. Nem queria. Não achava justo. Sua índole, seu
caráter, sua total falta de planejamento pessoal, excesso de compromissos, pré­disposição de ser
afetado por julgamentos faziam de Ricardo um candidato em potencial à fidelidade. Não por opção,
mas por falta dela.
Já Elisa, que até a manhã do dia anterior achava que não teria nada a perder exceto o único
homem que a viu com carinho, respeito e, quem sabe, um pouco de amor, substituiu o brilho que
carregava no rosto por ares de preocupação. Mal conversava com as pessoas, o que as faziam acreditar
que, talvez, estivesse entrando novamente em depressão. Talvez estivesse mesmo. No rosto, já não
tinha cor. Nem da maquiagem e nem do sangue que parecia ter desistido de correr pelas bochechas,
cada dia mais pálidas.
Sabia, com toda a certeza, que carregava no coração, já apertado, que a conversa com Ricardo
seria definitiva. Porém, o mais difícil era pensar em como começar o assunto e não perdê­lo nos
primeiros 10 minutos. Não seria nada fácil. Ele era inteligente, mas, como homem, só entenderia o
que ela realmente tinha a dizer depois que ela dissesse com todas as letras. E não era uma tarefa pela
qual gostaria de passar. Mesmo assim, se preparou. Dedicou alguns minutos a mais do que o habitual
para se arrumar. Apostou mais no perfume do que nas peças que ele já conhecia. Em um acessório no
cabelo que prendesse os fios finos e escorregadios. Uma bolsa fácil de lidar.
Diferentemente de Laura que, naquele dia, decidiu desmarcar suas consultas e se dedicar
somente à viagem. A viagem era a esperança de prolongar a sensação de estar onde deveria na vida de
Ricardo. Na imaginação quase infantil de Laura, a chance que teria para que o nome de Elisa jamais
fosse pronunciado novamente pelo marido. Se arrumou de maneira mais social que nos demais dias.
Queria que ele a percebesse dentro de umas das melhores combinações de roupas que tinha, envolta
pelo seu melhor perfume e humor.
Estava deslumbrante, pronta para cumprir o que prometera a Ricardo: levar suas malas ao
aeroporto para que tudo com que ele precisasse se preocupar fosse em estar lá a tempo de entrar no
avião. Para isso, não media sacrifícios e, diferentemente de outras ocasiões, criou seus próprios
desafios, como chegar três horas mais cedo para que absolutamente nada desse errado. Como se
organização fosse um ato de bravura, ao chegar no aeroporto ­ três horas mais cedo do que o
necessário ­ mandou uma mensagem a Ricardo.
"Pode parecer loucura, mas, para garantir que tudo dará certo, já estou no aeroporto. Caso tenha
condições de vir mais cedo do que combinamos, me encontrarás a sua espera. Te amo".
Depois do trabalho cumprido, Ricardo se arrependeu de ter visualizado o iPhone e visto a
mensagem de Laura. Se sentiu um merda ao saber que, no mesmo horário, duas mulheres esperavam
pela mesma pessoa ­ e essa era ele! Embora tivesse tempo de honrar os dois compromissos, estava,
cada vez mais, tentado fazer a coisa certa da maneira errada: encontrar Elisa ou Laura. OU.
Considerar apenas seus sentimentos e não todo o envolvimento que fizeram para lhe esperar.
­ De hoje não passa! ­ disse em voz alta enquanto afrouxava a gravata preta que apertara seu
pescoço o dia inteiro. Decidiu seguir seu plano, disposto a resolver sua vida da pior maneira possível.
Igual a um moleque, ser impulsivo, com argumentos rasos da razão. Magoaria para sempre uma.
Faria, pelo tempo que pudesse, a outra feliz.
Enquanto trafegava pela avenida, seus olhos encontraram um outdoor. Três segundos foram
insuficientes para identificar o produto mas o bastante para refletir sobre os motivos que fizeram
daquele filhinho­de­papai um médico. A imagem, sobre o fundo verde, de um profissional de saúde,
talvez um clínico­geral ou enfermeiro (psiquiatras nunca são retratados em outdoors, assim como
proctologistas. Classe injustiçada pela publicidade), ao lado de uma mulher gorda e negra com um
sorriso de agradecimento não sairia, pelos próximos quilômetros de sua cabeça.
"Salvar as pessoas delas mesmas", era tudo o que desejava quando optou pela psiquiatria, dando
a si uma autoridade divina a qual, hoje, não conseguia levar a diante. Nem o fato de, ao entrar no
carro, ter ingerido a mais alta dose de tranquilizante que já tomara em sua vida foi capaz de o livrar de
um coração acelerado quando assumiu, secretamente, que tudo o que fez nos últimos meses foi
desaguar suas frustrações em mulheres que, de amantes, passaram a ser vítimas da sua incapacidade
de lidar com os próprios problemas.
Lembrou de Maria Clara e esse pensamento lhe tirou o fôlego.
Talvez Elisa tivesse razão: não tinha como saber que Maria Clara, sua paciente, se suicidaria.
Mas, e se tivesse? Não tinha prestado atenção aos detalhes. Como profissional foi negligente.
Inconsequente. Como homem, egoísta. Na época, estava envolvido demais com seus próprios
problemas para perceber o quão relevante eram os problemas dela para ela mesma.
Diminuiu a velocidade. Enquanto com uma mão segurava o volante, com a outra remexia no
porta luvas. Quanta coisa inútil tinha lá dentro. Deu um sorriso de canto quando concluiu que o
porta­luvas de um homem reflete a desorganização de seu coração. Tickets de cartão de crédito, notas
de supermercado, um caderno de couro preto no qual, sempre que tinha ideia para um novo conto,
escrevia. Alguns panfletos. O envelope de Maria Clara dentro de seu estimado caderno de couro preto.
Desde que ela morreu, há quatro anos, trocou de carro duas, talvez três vezes. Mas, o caderno de
couro preto sempre ficava no porta luvas e, dentro dele, o envelope, exatamente como recebera das
mãos do velho naquele final de tarde o qual não conseguiu esquecer. As pontas amassadas
denunciavam o tempo que Ricardo passou mergulhado em sua fraqueza, com medo do conteúdo dele.
­ Eu sou um imbecil ­ e não se referia apenas pela sua capacidade de fugir dos problema, mas
sim de tentar resolver todos ao mesmo tempo em hora e lugar errado. Conduzia o carro pela rodovia
tentando lembrar do exato momento em que havia se colocado no cruzamento no qual onde ­
literalmente ­ estava. A placa pela qual, em poucos metros o ostentado automóvel preto passaria,
indicava que estava há poucos quilômetros do aeroporto, onde Laura já o esperava. Não por
coincidência, a mesma distância, do lado oposto da cidade, onde Elisa dispensava a cordialidade do
garçom dizendo que não consumiria nada até sua companhia chegar.
E, ali, no cruzamento, tomou a decisão. Não sentiu remorso pela mulher que, de forma pouco
sensível, chamou de "a que sobraria". A quantidade de tranquilizante em sua corrente sanguínea
evitava sentir­se mal por isso. Era preciso recomeçar. E recomeçar também significava ter coragem.
Enquanto dirigia, retirou a carta de Maria Clara que ficara encerrada no envelope nos últimos quatro
anos, da qual sua covardia foi guardiã.
A letra delicada e firme, escrita com caneta azul, mostrava que ela estava bastante segura de sua
decisão. Diferentemente de Elisa que o aguardava no café sem saber se ficaria ali para lhe dizer o
quanto estava confusa por ter descoberto que teria que contar que agora tinha algo a perder ou por
quem lutar caso ele decidisse viver com Laura.
Diferentemente de Laura que, mesmo revisando todos os motivos, começou a cogitar a ideia de
que Ricardo não viria. Por algum motivo que talvez apenas ele pudesse saber. Por algum motivo que
ela saberia quando fosse tarde para pegar o avião ou fazer valer as reservas no hotel­fazenda.
Os movimentos lentos e descompassados fizeram Ricardo diminuir ainda mais a velocidade.
Diminuindo ao ponto de ter a impressão que os demais carros trafegavam em uma velocidade muito
acima do permitido. De ver, pela janela, carros comuns virarem borrão em meio às poucas luzes na
rodovia.
E se pudesse ser questionado pelos paramédicos que tentavam encontrar um sopro de vida
dentro do corpo que jazia, sobre do que se lembrava para elucidar o que aconteceu, talvez Ricardo
teria na memória apenas a lembrança de estar parado, no meio do cruzamento, quando viu os faróis
de um enorme veículo engolindo seu carro como um predador determinado e implacável.
Ou talvez respondesse que, um pouco antes, se deu conta que era hora de dar um basta nos
tranquilizantes. Que poderia começar sua vida por ai: se livrando deles tão logo esses saíssem do seu
corpo.
Ou ainda, se tivesse uma única oportunidade para falar com a pessoa que o tirou das ferragens
em uma luta perdida contra a morte, diria que lembrava de ter achado na carta de Maria Clara o único
minutos no qual seu coração encontrou alivio e foi absolvido de ter conduzido seu pai à morte e Elisa
e Laura ao meio do nada. Da letra delicada e firme, escrita de caneta azul, a qual ele pulou direto para
algumas linhas antes da assinatura, seus olhos viram a frase: "Obrigada, doutor, pela seu incondicional
carinho e cuidado ao qual sempre serei grata, mas nenhuma alma pode salvar outra alma dela mesma".
­­­ FIM ­­­

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