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NATAL DOS EXCLUÍDOS

Espetáculo Natalino para Bufões

Texto de:
JULIO CARRARA

Escrita em 2002
Julio Carrara Natal dos Excluídos 1

PERSONAGENS:
JOSEFA, apresentadora de telejornal mulher de
JACINTO, apresentador do telejornal, alcoólatra.
ROSEMEIRE, repórter do telejornal, metida à modelo.
BETE BOQUETE, prostituta.
CASTANHOLA, mendigo
QUEBRA-NOZES, mendigo.
PROFETA, a serviço de Deus.
ANÃO, bem-dotado.

ÉPOCA: Atual. Véspera de Natal.

CENÁRIO: Um lixão. A cidade de Bufonaria é pequeno município entre São


Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em meio a esse lixão, há um estúdio
onde se passam um telejornal e os comerciais. Também se encontram neste
ambiente, o Terminal Suburbano Jean Solto por Enquanto e o Auditório
Bufanesco. Nas últimas cenas, forma-se um presépio em meio à sujeira.

OBSERVAÇÃO: Qualquer semelhança entre nomes, pessoas ou


acontecimentos reais não terá sido mera coincidência.
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PRÓLOGO
(Os bufões estão no palco dando os últimos retoques na maquiagem, nos figurinos e
nas extensões. Ao toque do terceiro sinal, caminham para seu canto e congelam. A
atriz que interpreta o profeta aproxima-se do centro e inicia o “Manifesto dos Bufões”,
de Jorge Didaco.)

ATRIZ
Senhoras e senhores, bem-vindos. Nós do grupo (Nome da companhia.)
vamos apresentar para vocês os bufões. Também conhecidos como bobos,
loucos, tolos, histriões, saltimbancos, palhaços, menestreis, charlatães,
vagabundos, desavergonhados, fanfarrões... O bufão aponta para aquilo que
muitas vezes nos recusamos a ver. Ele obriga-nos a confrontar nossas próprias
mazelas, nossa miséria social e afetiva, nossa hipocrisia em relação aos
excluídos e marginalizados, nossa religiosidade e vinculação com o
transcendente e nossa sexualidade. Eles não apenas nos revelam grandes
verdades através de um espelho distorcido e deformado. Eles bufam, expelem,
fumegam com a agitação e sentido de urgência, sempre de um ponto de vista
crítico e consciente e não complacente e auto-piedoso... e sem perder o humor.
Quando o bufão entra em ação, chama o riso, a poesia, o palavrão, a
indignação. Para o bufão não existe o decoro, o pudor, a conciliação... Tudo
aparece em estado bruto, inacabado, associal. O bufão é a prostituta e a
mama, é o sagrado e o profano, o escracho e a sensualidade, o demoníaco e o
poético, a vida e a morte, o princípio e o fim, a loucura e a devoção... E agora,
com vocês, o “Natal dos Excluídos”...

(A atriz coloca sua extensão e os bufões saem de seus lugares, desfilando cada um à sua
maneira. Um a um se aproxima do centro do palco e faz sua apresentação. Quando
todos se apresentam.)

BUFÃO 1
Gente, ônibus de graça!!!!
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(Todos os bufões felizes e entram no ônibus. O veículo fica lotado e as pessoas


espremidas lá dentro demonstram uma grande satisfação através do sorriso banguela.)

CENA 1
(Atores montam uma mesa e duas cadeiras para o telejornal. Jacinto e Josefa, criaturas
mirradas, sentam-se à mesa. Jacinto bebe um gole de cachaça e um anão se arrasta no
chão com as “dálias” para os apresentadores, enquanto os outros se sentam nas
cadeiras ao fundo do palco.)

JACINTO
Boa noite. Sou Jacinto Preto.

JOSEFA
Boa noite. Sou Josefa Pinto do Rêgo Preto.

JACINTO
E agora as notícias do dia no Telejornal do Bufão... Nossa repórter
Rosemeire está no Terminal Suburbano Jean Solto Por Enquanto, na Avenida
Newton da Farmácia, avenida esta que futuramente irá mudar de nome para
Juvenar, Juvenar Vem Tirar o Leite. Não é a música do Karnak, não. Vai se
chamar assim, porque o Juvenar, Juvenar Vem tirar o Leite só tem um braço, e
a marginal, tem mão única... (Ri, histericamente.) É com você, Rosemeire...

ROSEMEIRE
Estamos aqui, no Terminal Suburbano Jean Solto Por Enquanto, onde
está havendo uma agitação tremenda, pois o ônibus está circulando de graça...
O povo aproveita a ocasião para fazer um tour pela cidade, visitando todos os
bairros. Muita gente deixou de trabalhar hoje, para passar o dia passeando de
ônibus... Vou entrevistar agora a Bete Boquete, essa puta cidadã que está do
meu lado... Oi Bete, o que você acha disso?
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BETE
Eu acho ótimo... Como sou puta da Praça do Canhão, não preciso gastar
nada... Vou lá, faço meu programinha, pego o ônibus de graça e ainda sobra
um dinheirinho pra eu tomar meu coquetel... Não é coquetel de frutas, não. É
o coquetel para AIDS mesmo.

ROSEMEIRE
Quer deixar um recado para os telespectadores? Dar telefone, e-mail,
RG, CPF, Carteira de Habilitação, Número da Conta Corrente...

BETE
Claro. Meu telefone é 69696969, e o meu e-mail é
beteboquete@fodona.com.br, me mandem e-mail ou me liguem, viu? Comigo,
não tem frescura, eu faço de tudo. Me alugo, me dou, me vendo, deixo que me
algemem na cama, pinguem vela, raspem minha xoxota com navalha, o que
quiserem fazer, menos enfiar crucifixo no cu, que aí é pecado... Agora, os
preços: Programinha básico, que é um boquete, R$ 10,00. Programa completo
varia, se for só pra dar a buceta por uma hora, é R$ 50,00. Se tiver que dar o cu,
é R$ 100,00, porque dói muito, e se for pra ficar a noite inteira com o bofe, é R$
150,00, porque vou sair muito ardida... Aceito todos os tipos de cartão de
crédito ou débito, inclusive ticket refeição e vale transporte. Mas se eu
simpatizar com o freguês eu não cobro nada...

ROSEMEIRE
É isso aí... É com você, Jacinto...

(Volta para Jacinto e Josefa.)

JACINTO
E agora as notícias do dia no Telejornal do Bufão... Nossa repórter
Rosemeire está no Terminal Suburbano Jean Solto Por Enquanto, na Avenida
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Newton da Farmácia... Não, isso aí eu já li... (Anão vira a placa.) Ah... Lê você
agora, Josefa...

JOSEFA
Teatro Bufanesco...

JACINTO
Auditório.

JOSEFA
Auditório é coisa do programa do Sílvio Santos.

JACINTO
Não discuta...

JOSEFA
Auditório Bufanesco é entregue reformado e foi reinaugurado
recentemente...

JACINTO
O Teatro, ou melhor, Auditório, passou por uma grande reforma:
aumentaram o palco, fizeram novos camarins, trocaram a fiação, que na última
apresentação que teve, pegou fogo e fez churrasco dos técnicos, puseram um
telhado de Eternit em cima do telhado de folha de zinco, que quando chovia
fazia um grande barulho... Mas que porra de arquiteto é esse que projeta um
Teatro, quer dizer, Auditório com teto de folha de zinco?... No ano passado,
durante a estréia da peça “A Cantora Rouca”, desta mesma Companhia, caiu
um toró do caralho prejudicando a peça, além de outros eventos, onde o
público era sempre atingido por goteiras colossais... Não só o público, mas os
artistas... Imaginem que durante a apresentação da Orquestra Bufônica, uma
enorme cascata caía bem dentro da tuba de um músico. Pasmem!... Rosemeire
foi conferir o evento...
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ROSEMEIRE
Estamos aqui no coquetel de inauguração do Teatro...

JACINTO
Auditório...

ROSEMEIRE
Desculpa... do Auditório Bufanesco ... (Aproxima-se de uma mesa, onde
todos os bufões estão em torno dela, devorando as torradas, o vinho e o refrigerante.) O
público, ao que parece, não jantou antes de vir pra cá... Vou entrevistar esse
sujeito...

(Pega Castanhola e Quebra-Nozes, que estão com muitas torradas numa mão e um
copo de vinho na outra.)

ROSEMEIRE
Meu senhor... qual a sua opinião sobre o espetáculo que acabou de
assistir?

(O sujeito faz o “joia” com a mão, pois não consegue falar.)

CASTANHOLA
(Após engolir a torrada.) Eu achei ótimo...

ROSEMEIRE
Por quê?

CASTANHOLA
Eu sei lá. Não vim aqui por causa do teatrinho, não. Pra falar a verdade
eu não gosto de teatrinho. Vim aqui pra comer... Sempre que tem alguma
coisa, algum coquetel, boca livre, eu venho... Eu passo muita fome, fico sem
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comer o dia inteiro, e quando tem esse tipo de coisa, tem que aproveitar,
comer bastante até estourar... Isso aqui tá uma delícia. (Arrota.)

ROSEMEIRE
Bem, é com você, Jacinto... Agora é minha vez de aproveitar o coquetel e
fazer uma boquinha...

(Vai para a mesa comer. Foco em Jacinto.)

JACINTO
E agora as notícias do dia no Telejornal do Bufão... Nossa repórter
Rosemeire está no Auditório Bufanesco... Tira essa porra daí... Já li essa
merda... Ah... Alegria de pobre dura pouco. Os ônibus voltaram a circular
sem os cobradores... É um absurdo. Mandaram mais de 150 cobradores
embora para instalarem catraca eletrônica e bilhete unitário, como os de
metrô... Querem imitar São Paulo... Lá, o preço da passagem de ônibus é mais
barato: por um preço bem baixo, você atravessa a cidade. Aqui, não... Para vir
da Vila dos Bufões para o Terminal, que não dá três minutos a pé, o povo tem
que pagar R$ 1,60... E se vai para a cidade vizinha, mais R$ 1,75... É só fazer as
contas: R$ 1,60 mais R$ 1,75, dá R$ 7,50... Um roubo... Têm que mandar esses
filhos da puta tomarem no cu... Vão pra puta que o pariu. Um dia vou jogar
uma bomba nessa bosta de Terminal.

JOSEFA
Calma, Jacinto... E aqui vai a relação dos postos de venda dos bilhetes
unitários dos ônibus – essas bostas da São Tonhão...

(Jacinto lê com Josefa a relação dos postos de venda.)


UM DE CADA VEZ
Armazém do Felisberto, Caldo de Cana do Tenório, Puteiro da Madame
Clessi, Hotel Lancaster, Igreja Universal, Armarinhos da Judith, Bar da Chitú...
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JOSEFA
Vamos agora para os nossos comerciais...

CENA 2
(Comercial. Castanhola e Quebra-Nozes entram. Fazem um comercial de leite.)

CASTANHOLA
Olá, Quebra-Nozes...

QUEBRA-NOZES
Olá, Castanhola...

CASTANHOLA
Você já bebeu o Leite Vida Longa, Longa Vida, extraído da teta da vaca
da fazenda do Juvenar, Juvenar Vem tirar o Leite?

QUEBRA-NOZES
Não, e é bom?

CASTANHOLA
Muito bom. Nunca mais vou precisar mamar no peito da sua mãe.

(E em seguida, cantam “Filho Mamador”, de Caju e Castanha.)

AMBOS
(Refrão)
Eu já mamei no peito da tua mãe.
Eu sou o filho que mamou na tua mãe
A minha mãe era muito magricela
Não tinha leite pra ela
Pra poder me alimentar...
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Quando eu nasci a minha mãe ficou doente


E não sabia como iria me tratar
Não tinha leite, não tinha o que comer
Pra me sobreviver eu tive até que me virar
(Refrão)
Na minha casa, quando eu era pequeno
Era cinco barrigudinho tentando sobreviver
Tinha João, Pedro, Paulo e Manuela
Fora mãe, tinha a Estela e eu
Chorando pra comer
(Refrão)

(Quando a música cessa, a dupla faz um apelo sobre os retirantes nordestinos.


finalizam com um trecho de “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto.)

Esta cova em que estás,


Com palmos medida,
É a cota menor
que tiraste em vida
Não é cova grande
É cova medida,
É a terra que querias
Ver dividida
É uma cova grande
Para tua carne pouca
Mas a terra dada
Não se abre a boca

(Cantam mais um trecho de “Filho Mamador” e saem.)


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CENA 3
(Foco em Jacinto e Josefa.)

JACINTO
(Bebe a cachaça.) E agora as notícias do dia no Telejornal do Bufão...
Nossa repórter Rosemeire está no Terminal Suburbano Jean Solto Por
Enquanto, na Avenida Newton da Farmácia... Ô buceta, isso já li...(Põe a mão no
ponto.) O quê, diretor? Ah... (Para Josefa.) Leia sobre os postos de venda do
bilhete unitário...

(Josefa e Jacinto leem sobre os postos de venda.)

AMBOS
Pastelaria da Nilza Azambuja, Bar do China, Sorveteria Duas Bolas,
Boteco do Irmo, Cemitério Sinistro, INSS, Posto de Saúde, entre outros...

JOSEFA
Vamos voltar para o Terminal Suburbano Jean Solto por Enquanto, onde
Rosemeire está do lado de Bete Boquete, que parece furiosa... O que houve,
Rose?

ROSEMEIRE
Nossa amicíssima Bete Boquete está fodida...

BETE BOQUETE
Fodida em todos os sentidos... Que porra é essa desses ônibus voltarem
a circular com o preço pela hora da morte? Nem fui pro ponto hoje. Vou ter
que me virar neste buraco mesmo. Nem raspei as pernas e o sovaco. Eles estão
pior que os meus pentelhos... Quem vai me comer desse jeito? (Pega o microfone
e fala pra câmera.) Olha aqui seu prefeito de bosta, o que você tá fazendo, hein,
seu filho da puta? Tá fodendo com todo mundo, é? Só porque aquela loira
aguada da tua mulher não cavalga mais neste teu pinto mole, você quer foder
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o povo? Se enxerga, mané. Vou comprar uma charrete e atrelar em você pra eu
ir até a Praça do Canhão, seu burro xucro...

ROSEMEIRE
A coisa tá feia... Mas ninguém pode nos censurar, né, Jacinto e Josefa?
Aqui o povo tem a sua vez e a sua voz... É com vocês.

(Volta para o telejornal.)

JACINTO
(Bebe cachaça.) Pois é... Olha, Bete Boquete, a nossa produção descolou
pra você um bico aqui na TVBuf para um comercial... Venha até aqui... É um
comercial que só você pode fazer, ocá?

JOSEFA
Vamos para os comerciais.

CENA 4
(Comercial. Entra Bete Boquete, toda feliz e o anão das “dálias”.)

BETE BOQUETE
Obrigado pela chance, gente... (Imposta a voz.) Se você, homem, ouviu
coisas grotescas de uma mulher quando te viu pelado, como: “Eu já fumei um
charuto mais grosso que isso”, “Posso desenhar uma carinha feliz? Ele parece estar tão
tristonho.”, “Você trouxe incenso? Que bonzinho.”, “Se eu apertar, ele faz barulho
como um patinho de brinquedo?”, “As camisinhas que você trouxe não vão ficar
grandes?”, “Me empresta a lupa, por favor?”, “O que é isso? Um bichinho de
goiaba?”, “Precisa encher antes de usar?”, “Pra sentir cócegas com isso, é melhor
ouvir uma piada” – seus problemas terminaram com o Big Dick. É um aparelho
que vai fazer seu pau ficar grandão e grossão. Quando as mulheres dizem:
“Não importa o tamanho e sim o prazer que ele proporciona”, elas mentem. Toda
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mulher gosta de um pau grande e grosso, sim... Junto com o Big Dick, você
leva de brinde a Régua Pintômetro, para você medir sua piroca... Onde você se
enquadra, bonitão? De 0 a 02 cm – erro lamentável, devia ter sido menina; de
03 a 04 cm – nada mais que um brinquedo; de 05 a 06 cm – curto, porém
utiliza-se com gosto; de 07 a 08 cm – delícia das secretárias; de 09 a 10 cm –
ideal para todas as damas; de 11 a 12 cm – para depravadas e bichas loucas; de
13 a 14 cm – rompe tudo; de 15 a 16 cm– para exibições públicas; de 17 a 18
cm – delírio de grandezas; de 19 a 20 cm – para você que sorriu ou não. Vamos
amor, ligue agora para 0800696969 e peça já o seu. (Para o anão.) Esse anão aqui
é maior deitado do que em pé, sabe por quê? Porque ele usou o Big Dick... Use
Big Dick e tenha fodas sensacionais... Um Feliz Natal, gente...

(Joga o anão no chão e transa com ele.)

CENA 5
(Volta para o telejornal. Josefa e Jacinto fazem um apelo sobre a sua condição social.)

JACINTO
(Bebe cachaça.) É, tá foda... Agora, gente eu queria falar sobre um assunto
bem sério... Minha mulher Josefa tá prenha de nove meses, mas ela não tem
força pra parir a criança. (Ouve o ponto.) Vá se foder, diretor. Eu vou falar... A
gente tá praticamente trabalhando de graça. Essa porcaria de emissora ainda
não pagou o salário da gente... Onde já se viu, ficar trabalhando três meses
sem receber para no quarto mês receber o salário todo descontado? Um salário
de merda. E não é só a gente que tá assim. Qualquer funcionário público passa
por isso quando começa a trabalhar. Os professores, que educam seus filhos,
muitas vezes passam fome, porque o salário só chega – quando chega – no
quarto mês de trabalho. E as contas pra pagar, hein? Você ainda tem que pagar
com multa, porque ninguém ouve você, e não interessa o que te aconteceu, e
se falta um dia, descontam seu salário. Que país é esse, porra? A que ponto
chegamos? Por que tanta injustiça? Eu já não aguento mais viver assim. O que
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será dessa criança que vai nascer? Mais um pobre fodido? Pelo amor de Deus,
nos ajudem... Algum restaurante pode, por favor, nos oferecer comida? Quem
sabe assim, depois que a Josefa comer, ela tenha força pra dar a luz ao meu
filho.

PROFETA
(Entra trazendo duas marmitas com arroz, feijão e ovo frito.) Olha, o
Restaurante Boa Xepa mandou entregar isso pra vocês.

JACINTO
Obrigado... (Profeta estende a mão.) O que foi?

PROFETA
Dinheiro pra caixinha da Igreja...

JACINTO
Mas não tenho dinheiro...

PROFETA
É para a primeira prestação pra compra do seu terreno no céu...

JACINTO
E quem disse que vou pro céu, caralho? Vou pro inferno direto sem
passar pelo purgatório e ainda é capaz do capeta me expulsar de lá. Vá
embora, vá... Vá pra puta que lhe pariu, sua escrota. (Profeta sai.) Muito
obrigado pela comida, seu dono do restaurante. Que Deus abençoe você e
toda a sua família.

(Ambos devoram com as mãos a comida.)

JACINTO
Tenham todos, uma boa noite.
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(Eles arrumam os papeis depois de comer e vão saindo. No meio do percurso Josefa
para, sentindo as contrações. Jacinto pede ajuda e todos os bufões entram em cena para
fazer o parto dela, até o momento que nasce uma criança raquítica – um bonequinho
bem pequeno. Todos começam a cantar embalando o recém-nascido numa procissão,
que termina num presépio. Cantam “Tutu Marambá”, “Dorme Nenê” e “Boi da Cara
Preta”. Chegam os três bufões magos, trazendo o incenso, o ouro e a mirra, e os
pastores. Ouve-se no áudio as doze badaladas. Todos cantam “Noite Feliz”. Após o
término da música congelam, num tableaux-vivant.)

EPÍLOGO
(Atriz que faz o profeta tira um elemento que caracteriza seu bufão e vem para o
proscênio, enquanto os bufões permanecem em tableaux-vivant.)

ATRIZ
A gente tá tão sem paciência, né? Ninguém mais tá feliz. Ninguém mais
sorri... Também só pontapé, agressão, chute na canela... Você vai numa loja, a
balconista te trata mal... Vai num restaurante, jogam os pratos em cima de
você... Pede uma informação para a telefonista? Pumba! Batem o telefone na
sua cara... Liga a televisão, é só desgraça. Vai comprar um docinho para o seu
filho, já vem com cocaína... Experimenta estacionar o seu carro na rua? Se você
não der dinheiro, eles vem, riscam todo o seu carro e ainda furam os quatro
pneus. No trânsito, um quer matar o outro. Se anda na rua, é assaltado. Se fica
em casa é assaltado também... Todo mundo querendo ganhar dinheiro, mas
sem saber o que fazer com ele: se deixa em casa, o ladrão leva; se põe no
banco, pode desaparecer... É uma agonia que Deus me livre. Não tem mais
“por favor”, “dá licença”, “pode passar na frente”... O que é isso? Onde é que a
gente foi parar? Quem é que gosta de viver assim? (Pausa.) Vamos aproveitar
essa energia linda que tá pintando no Natal e no Ano Novo, porque só a gente
se unindo, só a gente se harmonizando, só a gente se amando, é que a gente
vai conseguir ter dias melhores...
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(Música “Dias Melhores Virão”, de Rita Lee e Roberto de Carvalho. Os bufões


desfazem o tableaux-vivant do presépio e dançam e cantam, tirando a extensão de seu
bufão, indo em seguida para os agradecimentos.)

FIM

Novembro/2002

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