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FUI NO MOINHO BUSCAR...

Dramatização de um conto russo, em um ato e cinco cenas

Texto:
GABRIELA RABELO

PERSONAGENS:
MÃE DE LAURO – uma senhora simples, da roça (como todas as outras personagens),
amorosa.
LAURO – um garoto que vive no mundo da lua. O que tem de sonhador, tem de cordial.
Na sua dificuldade de viver num mundo em que os sonhos não tem lugar, procura aceitar,
sem discutir, as ordens dos outros. E lógico que se dá mal.
LAVRADOR – roceiro típico.
DONO DA CASA – o pequeno proprietário padrão.
MULHER – já de meia idade. Nela há alguma coisa de duro, de seco. Não tem a doçura
da mãe de Lauro.
MOLEIRO – homem simpático e amoroso, consegue entender o drama de Lauro e lhe
dá apoio.

CENÁRIO: Na realidade todos os espaços são indefinidos. Há uma indicação de onde se


passaria a cena, mas não há necessidade de que se caracterizem os ambientes.

Esta peça é de montagem simplíssima. O mais importante nela é criar tipos


interessantes, personagens que extrapolem o texto e lhe aumentem a dimensão.
Neste sentido, as indicações acima podem ser totalmente transformadas. Elas
são uma das possibilidades. Mas podem-se explorar muitas outras.
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CENA I
Espaço indefinido
Palco nu. Entra a mãe de Lauro, procurando por ele.
MÃE – (Grita.) Lauro! Lauro! (Silêncio.) Lauro! Lauro!
A mãe vai andando. De repente, se depara com Lauro num canto, completamente absorto,
demonstrando estar ouvindo alguma coisa.
MÃE – Lauro, você não me ouviu te chamando?
LAURO – Ouvi.
MÃE – E por que não respondeu?
LAURO – Eu esqueci de responder, mãe. Estava ouvindo também um passarinho.
MÃE – (Apreensiva.) Lauro, Lauro. Às vezes eu fico tão preocupada com você. Você
está sempre no mundo da lua, sonhando. E neste nosso mundo não tem muito lugar pro
sonho, Lauro. Deixa de ser tão desligado... Escuta, filho, eu preciso que você vá até o
moinho e me traga dois quilos de fubá.
LAURO – Tá bom, mãe. Eu vou lá.
MÃE – Mas pra você não esquecer, meu filho, durante todo o caminho vá repetindo:
"dois quilos de fubá, dois quilos de fubá"... Assim, quando você chegar lá, você não vai
se esquecer do que foi que eu lhe pedi.
LAURO – Tá certo, mãe. Pode ficar tranquila.
MÃE – Toma o dinheiro. E não se esqueça: dois quilos de fubá.
LAURO – (Pega o dinheiro e sai, falando alto.) Dois quilos de fubá, dois quilos de fubá...
A mãe fica olhando Lauro que saiu, com um olhar cheio de carinho. Um tempo. Ela sai
de cena.

CENA II
Na estrada
Do lado oposto ao que ela saiu entra um lavrador. Parece desorientado e fica andando
de um lado para o outro.
LAVRADOR – Não... não é possível... Cinco alqueires de milho plantados... cuidados
todo dia, com o maior carinho... E agora, quase tudo destruído. Os gafanhotos comeram
quase tudo... Tanto trabalho, tanto esforço pra que? O que vou conseguir, com todo esse
milho que plantei? Me digam: o que vou conseguir? O que? O que?
O lavrador está realmente desesperado. Entra Lauro que, sem ver o homem, continua
falando alto.
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LAURO – Dois quilos de fubá, dois quilos de fubá, dois quilos de fubá...
LAVRADOR – O que você está dizendo?
LAURO – (Sem querer parar de falar.) Dois quilos de fubá, dois quilos de fubá...
LAVRADOR – Não precisa repetir, seu gozador de meia tigela. Como tem coragem de
se divertir com a desgraça dos outros? Quer dizer que e só isto que eu vou conseguir com
o meu milho? Pois você vai aprender.
O lavrador pega um porrete para bater em Lauro.
LAURO – Mas o que foi que eu fiz? Eu só estava dizendo...
LAVRADOR – (Ameaçador.) Nunca mais repita o que você estava dizendo.
LAURO – (Assustado.) Está bem. Eu não digo. Mas o que devo dizer então?
LAVRADOR – Que Deus lhe dê cem vezes mais.
LAURO – Mas minha mãe...
LAVRADOR – (lnterrompendo Lauro, categórico.) Não tem mas, nem meio mas.
Repita, vamos: que Deus lhe dê cem vezes mais.
LAURO – (Conformado.) Está bem. Que Deus lhe dê cem vezes mais.
LAVRADOR – lsto. Muito bem. Agora, vá embora e repita isso sem parar.
LAURO – Que Deus lhe dê cem vezes mais. Que Deus lhe dê cem vezes mais.
O lavrador sai por um lado. Lauro, assustado, por outro.

CENA III
Em frente a um casarão
Entra em cena um senhor, que é o dono da casa.
DONO DA CASA – Ou eu acabo com os ratos ou os ratos acabam comigo. Cheguei a
um ponto em que declarei guerra total a esses bichos. (Ele está bastante alucinado com o
seu problema.) Abro uma gaveta, e o que vejo? Ratos. Abro o armário da cozinha, e o
que vejo? Ratos!!! Olho para o chão e o que vejo? RATOS!!!!!! Ratos, ratos, ratos por
toda parte. Já não aguento mais.
Entra Lauro, sempre na sua e que, mais uma vez, não vê o homem.
LAURO – Que Deus lhe dê cem vezes mais, que Deus lhe dê cem vezes mais...
DONO DA CASA – O que você disse?
LAURO – Que Deus lhe dê cem vezes mais.
DONO DA CASA – Pois que ele me dê cem vezes mais força para acabar com você, seu
moleque atrevido!
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LAURO – (Fugindo do homem.) Mas o que foi que eu fiz?


DONO DA CASA – E ainda pergunta?
LAURO – Me desculpe, eu não sei o que eu fiz de errado, mas prometo não fazer mais.
DONO DA CASA – Você nunca mais deve repetir o que você estava dizendo, senão há
de se haver comigo.
LAURO – Mas o que devo dizer então?
DONO DA CASA – Você deve dizer: Que o diabo os carregue. Entendeu?
LAURO – Entendi.
DONO DA CASA – Então, repita. Que o diabo os carregue.
LAURO – Que o diabo os carregue, que o diabo os carregue...
DONO DA CASA – Assim está melhor. Agora, vá embora.
LAURO – (Vai saindo e falando.) Que o diabo os carregue, que o diabo os carregue.
O homem sai, balançando a cabeça, satisfeito por Lauro ter aprendido a lição.

CENA IV
Numa estrada
Entra uma mulher. Ela agita um lenço, num gesto de despedida, como se as pessoas de
quem se despede ainda pudessem ouvi-la.
MULHER – Adeus, minha filha. Adeus, meus netinhos. Ah, que crianças lindas. Como
vou sentir saudades de vocês. Não sei o que será da minha vida aqui, sem vocês... Vocês
são a luz da minha vida... (Chora.) Adeus, voltem sempre...
Entra Lauro. Mesmo jogo de sempre.
LAURO – Que o diabo os carregue, que o diabo os carregue...
MULHER – O que? Que o diabo carregue você, seu moleque! Grosseirão! (Puxa a
orelha de Lauro) E mais respeito comigo, ouviu? Não se pode debochar assim do
sentimento dos outros!
LAURO – Mas, o que foi que eu fiz?
MULHER – Nunca mais repita o que você me disse.
LAURO – Mas, então, o que devo dizer?
MULHER – Que Deus os traga logo de volta... Entendeu?
LAURO – Entendi, sim, senhora.
MULHER – Então, repita. Que Deus os traga...
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LAURO – (Já falando junto com a mulher.) Que Deus os traga logo de volta.
MULHER – Isto mesmo. Agora, vá.
LAURO – (Saindo, já cansado.) Que Deus os traga logo de volta, que Deus os traga logo
de volta...
A mulher também sai.

CENA V
No moinho
Entra o Moleiro.
MOLEIRO – O vento e a tempestade acabaram com as pás de meu moinho. Ô vida! E
agora? O que é que eu faço? Por que Deus tinha que me mandar uma tragédia dessas?
Como vou moer o milho que está aí pra ser moído?
LAURO – (Entra, mesmo jogo de sempre.) Que Deus os traga logo de volta, que Deus...
MOLEIRO – Que praga você está me rogando, moleque safado? (Avança para Lauro.)
LAURO – (Já muito cansado de tanta incompreensão, começa a chorar, assustado.)
Mas eu não estou rogando praga nenhuma!...
MOLEIRO – Mas o que você estava dizendo?
LAURO – Que Deus os traga de volta.
MOLEIRO – E por que você quer que Deus me mande de novo aquele vendaval e aquela
tempestade?
LAURO – Mas eu não quero nada disso.
MOLEIRO – E o que você quer então?
LAURO – Eu quero... eu quero... (Chora.) Ai, tá vendo? Eu já nem sei mais o que eu
quero...
MOLEIRO – (Tocado pelo desespero do garoto.) Espera aí. Fica calmo. Vamos começar
do começo... Você estava dizendo que quer ia que Deus os trouxesse de volta. Por que?
LAURO – Foi aquela mulher que me mandou dizer isto, aquela mulher que eu encontrei...
MOLEIRO – Que mulher?
LAURO – Uma que me puxou a orelha.
MOLEIRO – E por que ela puxou a orelha?
LAURO – Foi porque eu estava dizendo... eu estava dizendo... ah, que o diabo os
carregue!
MOLEIRO – E por que você estava dizendo isto?
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LAURO – Porque o homem dos ratos mandou.


MOLEIRO – E por que o homem dos ratos mandou?
LAURO – Não sei... não sei... Ele queria me bater. E tudo isto só porque eu estava
dizendo: Que Deus lhe dê cem vezes mais.
MOLEIRO – E por que você estava dizendo que Deus lhe de cem vezes mais?
LAURO – Porque uma pessoa mandou.
MOLEIRO – Quem?
LAURO – Ah, eu não me lembro!...
MOLEIRO – Tente se lembrar.
LAURO – Espera aí, já sei! Foi aquele fazendeiro que queria me bater.
MOLEIRO – E por que ele queria te bater?
LAURO – Porque eu estava falando dois quilos de fubá. (Adiantando-se ao moleiro, todo
contente por ter se lembrado de tudo.) E eu estava falando isto porque minha mãe mandou
eu vir aqui comprar dois quilos de fubá.
MOLEIRO – Pobre garoto. Tudo isto por dois quilos de fubá.
LAURO – E o pior é que nem o fubá eu vou poder levar pra minha mãe. O moinho está
quebrado, né?
MOLEIRO – Está. Mas eu tenho aí um pouco de fubá, que já tinha sido moído. Acho
que dá pra te arranjar uns dois quilos. Venha, vamos lá dentro. Mas, lembre-se de uma
coisa, garoto. Quem repete sem pensar é papagaio. A gente tem que saber o que diz, e por
que diz.
LAURO – Que sorte o senhor ter o fubá, não? (O moleiro sorri.) E que sorte o senhor
ter me ouvido. Senão eu nunca ia me lembrar... Parece que eu vivo no mundo da lua...
(Se entristece.)
MOLEIRO – (Reparando no sentimento de Lauro.) Você está triste?
LAURO – Pra dizer a verdade, estou sim.
MOLEIRO – Eu sei por que. Você tem um temperamento sonhador, Lauro, e é duro ter
que deixar os sonhos, não? (Pausa.) E neste nosso mundo a gente dificilmente encontra
pessoas dispostas a ouvir e respeitar os sonhos alheios. (Abraça Lauro.) Vem. Vamos
pegar o fubá.
Os dois saem de cena.

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