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“Noite de gala”

De Jô Bilac

Personagens:

Marielle Moon

Nina Kovac

Joshua Scot

Comentarista

Dublador de Nina

Dublador de Joshua

(Premiação tipo Oscar. Luzes, música alta. Entram Nina Kovac e Joshua Scot, vestidos de gala.
Nina com um envelope na mão)

(Nina e Joshua falam um dialeto qualquer. Vozes dublam os dois, simultaneamente, como
acontece na transmissão do Oscar para o Brasil)

Comentarista: (enquanto fala o casal vai entrando) E voltamos com a premiação do Urso de
Berlin, aí vemos a ex atriz pornô Nina Kovac, que foi presa ano passado por contrabando de
êxtase e ao seu lado o galã adolescente Joshua Scot, campeão de bilheteria com “Prepúcio” e
“Nua negra” . Eles vão anunciar o prêmio de melhor documentário existencialista
independente com baixo orçamento e subjetividade lírica, latino americano.

Dublador de Joshua: Quando me disseram que Nina Kovac estaria ao meu lado nessa noite de
premiação, logo pensei: meu deus, por que eu não trouxe a minha câmera? Sim, a minha
câmera! Eu poderia mesmo filmar um documentário sobre a vida dessa mulher que tem muita
história pra contar. Certamente eu ganharia esse prêmio. Sim. Eu ganharia sim. Com certeza.
Ganharia sim. É. Ganharia.

Dubladora de Nina: Ah, Joshua, a melhor parte do filme seria censurada certamente.

(risos e aplausos efusivos do público)

Dubladora de Nina: Bom, vamos aos indicados de melhor Documentário existencialista


independente com baixo orçamento e subjetividade lírica, latino americano. E os indicados
são: “Eu matei a fome dos meus filhos e fui presa” de Juan Molina.

Comentarista: Filme lindo, da Venezuela, muito cruel, um soco no estômago. Um


documentário precioso sobre essa sem teto que foi presa roubando tomates, e foi surrada,
jogada na cadeia, rasparam a cabeça dela, uma coisa horrível. Muito forte a história.

Dublador de Joshua: “Koko loko” de Mercedes Buban.

Comentarista: Documentário mexicano, sobre essa dança que vem ganhando fama nas noites
do México. Koko Loko, a polêmica dança que divide opiniões. Algumas acham que é uma
insinuação ao sexo oral, outras acham que é apenas uma dança típica e popular. Bom filme.
Um pouco superficial, mas interessante. A volta de Mercedes Buban ao cinema.

Dubladora de Nina: “Curto pacas” de Pedro Daniel Rondante.


Comentarista: “Curto pacas” Documentário muito bem realizado sobre a extinção das pacas no
médio litoral argentino. O preferido da noite, sem dúvida. Deve levar o Urso, ao que tudo
indica. Pedro Daniel Rondante é o queridinho de Berlin, fez muito sucesso com “A marcha dos
sacis”, filme muito premiado pelo mundo. Enfim, deverá ser dele o urso desse ano.

Dublador de Joshua: “Irene” de Marielle Moon.

Comentarista: E por fim, “Irene” Documentário Brasileiro realizado pela socialaite Marielle
Moon , que nunca fez nada em cinema mas ficou impressionada com a história de vida da
Irene, mulher muda e surda, sem braços e sem pernas, que só se comunica piscando os olhos.
Desenvolveu o alfabeto do piscar de olhos e hoje é faxineira e já deu depoimento no final da
novela das oito que se passa no Leblon. “Irene” É o nosso representante brasileiro, mas duvido
que ganhe de “Curto pacas”, não sei, acho difícil. Vamos ver.

Dublador de Joshua: Quer anunciar o vencedor, Nina?

Dubladora de Nina: Eu acho melhor não Joshua. Leia você, eu posso confundir as letras, estou
muito em êxtase, se é que você me entende!

(risos e aplausos do público)

Comentarista: Taí a brincadeira de Nina Kovac referindo-se a sua prisão no ano passado.

Dublador de Joshua: E o prêmio vai para...

(Joshua abre o envelope)

Comentarista: Suspense... Vamos ver... Grande expectativa...

Dublador de Joshua: “Irene” de Marielle Moon!

(música alta, Marielle emocionadíssima saindo da platéia com sua taça de prosecco na mão,
chorando, abraçando os atores, mandando beijo, presepada total.)

Comentarista: Olha só! Para a nossa surpresa! “Curto pacas” não levou dessa vez, deixando o
Urso de ouro para o documentário brasileiro. Realmente é uma história tocante, comovente.
Mereceu de fato. A zebra da noite, com certeza. Taí : “Irene” de Marielle Moon, documentário
sobre a faxineira surda e muda, sem braços e sem pernas. Quem diria. Marielle que nunca fez
nada em cinema, aliás, nunca fez nada na vida, tirou do próprio bolso o dinheiro do filme.
Moradora do Alto Leblon, aristocrata zona sul. Que surpresa. Marielle Moon com
“Irene”. Muito emocionada. Com a fitinha do nosso senhor do Bonfim no pulso.

Marielle: (com o urso na mão, emocionadíssima. Tentando controlar o choro. Fala em


portugês) É muito significante estar aqui, ser reconhecida, com esse prêmio, nessa noite linda,
cheia de gente linda e bem vestida. Eu fico muito emocionada e realmente se eu soubesse que
iria ganhar teria comprado um vestido mais caro ou até mesmo teria feito uma redução de
estômago, enfim. Obrigada Berlin, obrigada Brasil, obrigada Mandela, obrigada Madonna,
obrigada a toda equipe que tornou possível a realização desse filme: papai, mamãe, tia
Rosane, tio Sérgio, banco Santander, meu terceiro ex marido Carlos, Regina minha analista,
devo estar esquecendo alguém com certeza... ah! Roleci minha amiga transexual que faz meu
cabelo a mais de vinte anos... Quem mais...? Ah! Obrigada ao doutor Décio, que cuida dos
meus hormônios, sem ele eu não poderia estar aqui... Quem mais...? Estou tão nervosa! Um
minuto! Não posso esquecer ninguém! Ah! Ludmila, minha guia espiritual, que fez meu mapa
astral. Ah! O Paulo, que emprestou a casa na Turquia para comemorar meu aniversário ano
passado. A Cecille, minha amiga francesa que me dá dicas de beleza. Quem mais...? Ah! Sim!
Como eu poderia esquecer? Gente! Que cabeça a minha! É claro, não poderia deixar de
agradecer a esse ser muito, muito, muito especial, que é o verdadeiro responsável por isso
tudo e que merecia estar aqui nesta festa, mas infelizmente não pôde, por puro preconceito,
porque sim, ainda contamos com esses moralistas tacanhos que não passam de orangotangos
de smoking... Bom, mas eu queria agradecer a ela que me inspirou a entrar nessa batalha, que
sem ela nada disso seria possível, esse ser que me enche de vida e esperança, com ela percebo
a maravilha que é estar viva em comunhão com o mundo, obrigada, esse urso é pra você: Lupi
minha cadelinha basset. Mamãe ganhou ursinho, Lupinha! Ursinho pra você brincar! Mamãe
deixa! Mamãe deixa! Lupinha linda, que foi injustiçada, barrada nessa festa, um absurdo! Pois
tem muita gente aqui que não chega às patinhas da minha Lupi. Minha Lupi que já fez
participação especial em “Thelma e Louise”, dividia camarim com Geena Davis ! Lupi, minha
filhinha, esse ursinho é pra você!!!

(música sobe, aplausos)

(Marielle volta)

Marielle: (desesperada, pede mais um momento para falar. Baixam a música) Ah! Desculpe,
desculpe, serei breve, juro! Sú um minutinho! É que esqueci de falar da Irene, olha que cabeça
a minha! A Irene que dá nome o filme, a mocinha do documentário. Que gafe, meu Deus! Que
gafe! Preciso falar da Irene! Aliás, preciso falar com a Irene! Irene, meu amor, pode tirar
aquela folga que estou te devendo há anos, mas não abusa, hein! A faxina da terça eu quero
sem falta! E não se faz de surda não, que eu sei bem que passa aquilo aqui em baixo, aquela
legendinha... Como é...? Aquele negócio... Close caption! Isso, o close caption tá aqui em baixo
que eu sei... Então, aproveita, e já coloca as cortinas do meu salão de jogos no varal, mas não
vai misturar com as toalhas de mesa da minha switte hall. Olha lá, hein Irene, é tudo da França,
nem 10 anos do seu salário paga, então toma cuidado! Ah, e não se esqueça de passar um
paninho no meu piano de calda Luis XV, por favor... Porque segunda recebo o desembargador
e sua esposa e a gente deve fazer uma farrinha, e você sabe que quando a Astrid se empolga,
quer porque quer tocar piano! E depois chega o Luis Felipe, a Angélica, o Cardoso e aquela
amante dele sebosa, Enfim! Vira festa! É isso Irene, preciso muito de você na terça! Não
esquece, tá?! (canto de boca) A Irene é ótima, mas às vezes gosta de dar uma de João sem
braço. Tem que ficar em cima, né... Empregada é fogo!

(música alta)

(fim)

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