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“É o jeito”

De Jô Bilac

Personagens:

Mulher

Flanelinha

Funcionário

(Bossa nova no fundo. Tudo lindo. Dona de casa com um neném no colo. Ela está no
supermercado, fazendo compras. Empurra um carrinho de compras, tem uma caixa de cereal
na mão, confere o preço.)

Flanelinha: (aparece do nada) Esquerda, esquerda... Isso, vem vindo, manobra, manobra!

( A mulher sem entender)

Flanelinha: Pode dar ré, dá ré. Isso! Contorna pela esquerda! Isso! Vem que dá, vem que dá!
Isso. (estende a mão) Três pratas.

Mulher: (sem entender) Oi?

Flanelinha: Três pratas.

Mulher: Do que você está falando?

Flanelinha: Estou falando de Dindin, aqué, mango, faz me rir, bufunfa, moeda, gaita, merréis,
ducados, dólares, euros, reais! Três!

Mulher: Eu não vou te pagar.

Flanelinha: Qual é tia?

Mulher: Eu não te pedi pra fazer nada.

Flanelinha: Na moral tia...

Mulher: Eu não sou sua tia!

Flanelinha: Ajuda o trabalhador.

Mulher: Trabalhador...?

Flanelinha: Trabalhador sim, claro! (muito malandro) Essa é a minha área. Eu fico aqui olhando
o carrinho da senhora, enquanto a senhora vai buscar o peitipoá, o leite em pó, a sardinha em
lata, as paradas todas... Então: não deixo ninguém mexer nas compras da senhora, não deixo
ninguém roubar nada, não deixo os funcionários rebocarem seu carrinho, e ainda por cima, se
ficar pesado: eu dou uma ajuda pra empurrar! E tudo isso só por três pratas!

Mulher: Não, obrigada. Realmente eu não quero.

Flanelinha: (com cara de pena) Três pratas, moça. A senhora não vai ficar mais rica nem mais
pobre por causa de três pratas.

Mulher: Não quero. Obrigada.


Flanelinha: Três pratas, moça! Não custa nem esse creme aí que a senhora compra! Deixa de
ser canguinha.

Mulher: Eu já disse que não. Por favor.

Flanelinha: Eu não estou pedindo esmola não, viu? Eu só estou pedindo uma colaboração para
um trabalhador independente, que assim como a senhora tem seu direitos e merece respeito!

Mulher: Meu querido, sito muito, eu também sou trabalhadora e valorizo o meu dinheiro, não
sou obrigada a pagar por um serviço que eu não pedi! Tenho esse direito. Posso?

Flanelinha: Poder pode, né... Poder pode. (de canto de boca) Mas depois a gente faz besteira,
aí não vai reclamar...

Mulher: O que?

Flanelinha: O que o que?

Mulher: O que foi que você disse?

Flanelinha: oi?

Mulher: Isso que você acabou de dizer... Repete.

Flanelinha: Eu não disse nada!

Mulher: Disse sim.

Flanelinha: Não disse.

Mulher: Disse: “depois a gente faz besteira, aí não vai reclamar...” Eu ouvi!

Flanelinha: Então se ouviu por que perguntou?

Mulher: Eu quis ter certeza.

Flanelinha: De que?

Mulher: De que você está me ameaçando!

Flanelinha: (cínico) Eu não estou ameaçando a senhora!

Mulher: Está sim!

Flanelinha: Eu te amecei?!

Mulher: Me coagiu ! Disse que vai fazer besteira e isso significa que você vai se vingar de mim
só porque não te dei três pratas!

Flanelinha: (mais cínico) Eu não disse nada...

Mulher: Disse sim!

Flanelinha: A senhora é que está colocando palavras na minha boca.

Mulher: (exaltada) Disse sim! Vai se vingar de mim porque “não colaborei” com o “trabalhador
independente”.

Flanelinha: Eu falei essas palavras “ se vingar”?


Mulher: Você não vai me intimidar! Não pode!

Flanelinha: Eu disse que ia me vingar?

Mulher: Você disse que vai fazer besteira! Eu ouvi!

Flanelinha: Não coloque palavras na minha boca!

Mulher: Não estou colocando palavras na sua boca! Eu ouvi! Vai fazer besteira e eu não vou
poder reclamar!

Flanelinha: A senhora entenda como quiser!

Mulher: Então eu posso entender tudo isso como uma ameaça?

Flanelinha: Se assim preferir!

Mulher: Vai zonear as minhas compras, sumir com o meu carrinho!

Flanelinha: (perigoso) Pode ser que ele suma mesmo, aqui nesse supermercado vive sumindo
carrinhos... Assim, do nada! Quando menos se espera: eles somem! Mas é como mandei a
letra: se a senhora me pagar três pratas, evita a dor de cabeça! Eu fico aqui vigiando o carrinho
da senhora e não deixo nenhum malandro se aproveitar... Mas se não pagar, não vou poder
garantir nada...

Mulher: Está me chantageando...

Flanelinha: Entenda como quiser.

Mulher: Eu entendo isso como uma intimidação baixa e cruel para uma mulher que paga os
seus impostos em dia.

Flanelinha: Mas é isso mesmo... Essa é a minha área e se a senhora não colaborar comigo eu
não me responsabilizo por suas compras nesse carrinho!!!!

Mulher: (satisfeita) Era exatamente o que eu queria ouvir!

Flanelinha: Oi?

Mulher: O senhor está preso por uma cidadã! (a mulher saca um apito e toca alto, surgem
policiais por todos os lados cercando o homem)

Flanelinha: O que isso?

Mulher: (firme) Cana, cadeia, xadrez, prisão, xilindró, sol quadrado, cela, buraco, pavilhão, pai
de todos, fura bolo, mata piolho! Fim da linha, meu chapa. Você rodou malandro! Se meteu
com a cidadã errada!

Flanelinha: (sendo algemado pelos policiais) Eu sou trabalhador! Eu sou trabalhador!!!

Mulher: Levem esse patife daqui! Ele agora vai manobrar pano de chão dentro do vaso!!

Flanelinha: (sai arrastado) Não! Eu só quero trabalhar! Não!!!!!!

Mulher: Obrigada rapazes! Bom contar com a eficácia da segurança pública. (sorri. Com a caixa
de cereal na mão, recuperando a tranqüilidade, beijando a testa do seu neném. Volta a bossa
nova.)
(entra um funcionário do supermercado)

Funcionário: Senhora...

Mulher: Sim?

Funcionário: Aqui está a sua guia para estacionar o carrinho da senhora no corredor.

Mulher: O que?

Funcionário: São cinco pratas, deverão ser pagas diretas no caixa.

Mulher: Guia? Mas o corredor do supermercado não é livre? Eu não posso simplesmente parar
o meu carrinho sem precisar pagar nada a ninguém?

Funcionário: Não. (sorri)

Mulher: Mas não é possível! Agora tudo é pago?

Funcionário: Sim. (sorrindo com águia estendida)

Mulher: Isso é um serviço independente de um trabalhador autônomo?

Funcionário: Não. Isso é um trabalho regulamentado com carteira assinada promovido por
grandes estatais. (estende a guia num gesto mais impositivo)

Mulher: E se eu não pagar? O que vai fazer?

Funcionário: (sorrindo) Irei contar com a eficácia da segurança pública.

(entram os mesmo policiais olhando para ela, ameaçadores)

Mulher: ( pega a guia constrangida) Cinco pratas, né...

Funcionário: Por quatro horas, se ultrapassar o limite do tempo, sobe para oito.

Mulher: Oito??? Poxa, isso não pode ser assim e... (policiais avançam) Aceita cartão? (sorri)

Funcionários: Sim senhora. Alguma dúvida mais?

Mulher: (sorri amarelo) Não obrigada.

Funcionário: Por nada. Tenha um bom dia. (sai)

Mulher: (olha para o cereal e olha para a guia. Desiste do cereal e o devolve para a prateleira.
Sai de fininho)

Fim.

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