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O PILEQUE DA MORTE

Rutinaldo Miranda Batista Júnior

Somos todos pré-defuntos

Personagens:
Rodolfo, dono do bar
Dona Filomena, sogra de Rodolfo.
A Morte
Um policial

Cenário: Um boteco com mesas, balcão e prateleira.


Rodolfo passa pano nos copos.
RODOLFO – Ai, ai! Mais um dia no batente. Serve daqui, arruma dali. Quer saber? Vou dar é uma olhada no
patrimônio. (pega uma garrafa, que segura, virada para si) Olha só. Encontrei uma recém-chegada. Que
maravilha! Muito prazer, meu amor. E aí, como você está? Seja muito bem-vinda ao boteco do titio. Agora é
hora de fazer amizade. Eu quero te conhecer melhor. (abrindo a garrafa e colocando uma dose) Seremos felizes
para sempre. Muito felizes. (bebe) Eu amo essa profissão! Agora vou atender os clientes (olha em torno, o bar
está vazio). Mas primeiro tenho de descobrir onde eles estão! Além de mim, não tem nenhuma alma viva. Hoje,
nem mosca tá entrando aqui.
FILOMENA - (apenas a voz) Ô, Rodoooooolfo!
RODOLFO - Ih, por falar em coisa ruim, lá vem a véa.
FILOMENA – (apenas a voz) Rodoooooolfoooooo!
Rápido, Rodolfo pega um spray bucal e usa. Filomena entra.
FILOMENA – Tu tá bebendo de novo?
RODOLFO – Eu?! Deus me livre, dona Filomena. Eu não bebo em serviço. Juro pela filha da avó da minha
mulher.
FILOMENA – Nem tenta me enrolar. A filha da avó da tua mulher sou eu.
RODOLFO – Então, eu dou a minha palavra.
FILOMENA – É, só dando mesmo. Porque, se fosse vender, não valeria um real. Agora, abre essa boca.
Rodolfo abre, Filomena cheira, olha pra ele, desconfiada.
RODOLFO – Se quiser pode cheirar de novo (abre a boca) tá com cheiro de menta.
FILOMENA – Eu vim buscar o leite dos meninos.
RODOLFO – Aqui no meu boteco? Olha só, eu sei que a senhora anda delirando um pouco, pensando que eu
sou um cachaceiro. Mas não tá certo querer que os meninos comecem a beber antes da hora.
FILOMENA – Você me entendeu muito bem, seu estrupício. Eu vim foi pegar o dinheiro do leite.
RODOLFO – Ah, o dinheiro do leite! E quanto é?
FILOMENA – Cinquenta reais.
RODOLFO – Quanto?!
FILOMENA – Cinqüenta.
RODOLFO – Arre diaxo! Mas a senhora vai comprar o leite ou a vaca?
FILOMENA – Não é da tua conta, meus netos merecem o melhor.
RODOLFO – (orgulhoso) Por isso que eles têm um pai como eu.
Abre a carteira, entrega o dinheiro.
FILOMENA – Tu, infeliz, é a pior coisa que aconteceu na vida da minha filha!
RODOLFO – Sabe que eu não sei por que a senhora implica tanto comigo?
FILOMENA – Por quê! Ah, eu conto! Minha filha tinha um futuro brilhan-te. Era a vida que pediu a Deus.
Sabe de quem ela era noiva?
RODOLFO – Ih, lá vem aquela história do Juvenal, né?
FILOMENA – Isso mesmo. O Juvenal Silva. Dono de banco, construtora e até shoping center. Tudo ia tão bem.
Mas foi aí que a tragédia apareceu na vida dela.
RODOLFO – Eu não me lembro dessa parte. Que tragédia foi essa?
FILOMENA – Tu, seu peste.
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RODOLFO – Ora essa! E por acaso, eu tenho culpa se ela gostou de mim? A senhora mesma aprovou o nosso
namoro.
FILOMENA – Claro que aprovei. Tu que me disse que era um grande empresário. Maior até que o Juvenal.
ROLDOFO – E é verdade. Eu tenho um metro e setenta e ele só tem um metro e cinqüenta. (mostrando a altura
com a mão) Baixinho, assim, igual um anão.
FILOMENA – Eu tô falando do tamanho da conta bancária, infeliz. O Juvenal é um grande empresário.
RODOLFO – Mas eu também sou.
FILOMENA – O quê! Tu só tem esse boteco e mora numa casa de aluguel!
RODOLFO – E daí? A gente começa por baixo. Eu também vou ter muito dinheiro.
FILOMENA – Ah, é? (procurando) E onde tá a arma?
RODOLFO – Arma?! Que arma?!
FILOMENA – A arma.
RODOLFO – Mas que arma é essa?!
FILOMENTA – Ora, tu não disse que vai ficar rico, de repente? Tem que ter uma pra roubar o banco.
RODOLFO – Que é isso, dona Filomena! Eu posso ser pobre, mas sou honesto. Se a senhora não gosta assim
de mim, bem que poderia ter acabado o meu namoro com a Jurema.
FILOMENA – Só que quando eu descobri que tu não tinha onde cair morto, já era tarde.
RODOLFO – Calma. A senhora tá nervosa. Assim, vai espantar os clientes.
FILOMENA - (olha ao redor, procurando) Que clientes?!... aqui não entra uma viva alma faz tempo.
RODOLFO – Mas é que ainda tá cedo.
FILOMENA – Ah, tá certo. Tinha me esquecido que seus (fazendo o sinal de aspas) “clientes” só chegam mais
tarde, depois de pedir esmola o dia todo.
RODOLFO – E daí? Dinheiro é dinheiro, cliente é cliente...
FILOMENA – E genro liso é genro liso.
RODOLFO – Será que a senhora não consegue ficar dois segundo sem falar em dinheiro?
FILOMENA - E quanto eu vou ganhar por isso? Sou apenas uma pobre idosa, que, todo mês, venho visitar a
minha filha. Eu merecia um genro de verdade. Que morasse numa casa decente e que tivesse do bom e do
melhor. Até por que eu sou sozinha. O meu marido morreu.
RODOLFO - Sorte dele!
FILOMENA - Como é?!
RODOLFO - Nada não. Mas já que a senhora não gosta de ficar lá em casa, bem poderia ir pra um hotel cinco
estrelas, com piscina, sauna, frigobar...
FILOMENA – É, tem razão. Eu bem que merecia e você vai pagar pra mim, não vai? Pode até ser uma viagem
para o litoral, com aquelas praias deslumbrante. Coisa simples.
RODOLFO – Ah, quem me dera! Se pudesse, eu mandava mesmo pra um hotel muito chique. Tão chique, mas
tão chique, que seria na Lua.
FILOMENA – Viu? Pois é essa tua pobreza que me estressa. Agora, põe uma dose.
RODOLFO – A senhora quer uma pinga?!
FILOMENA – E por acaso, nessa espelunca tem uísque doze anos, Champagne? Espumante?
RODOLFO – Não, mas na sua idade...
FILOMENA – Que é que tem a minha idade?! Tá me chamando de velha? Se tiver me chamando de velha, eu
vou chamar tua mãe de coisa bem pior!
RODOLFO – Não, não é isso. É que... esquece! (pega uma garrafa) Eu vou botar uma branquinha pra senhora.
FILOMENA – Branquinha? Eu gosto de cachaça de verdade. Cachaça temperada.
RODOLFO – Temperada? Como, assim, temperada? A senhora anda colocando alho e cebola na cachaça, é?
FILOMENA – Ora, seu ignorante. Nunca ouviu falar de cachaça com raiz, curtida com veneno de cobra?
RODOLFO – Mas, dona Filomena! Cachaça com raiz é pra pinguço que tá na pior!
FILOMENA – Olha pra minha cara e ver se estou na melhor. Já entendi que nessa espelunca não tem.
RODOLFO – Eu bem que queria lhe dar uma com raiz de estriquinina! Mas infelizmente, só tem da branquinha.
FILOMENA - Pois bota essa porcaria mesmo.
RODOLFO – Porcaria, não. (botando a dose) Essa é de primeira. (oferece) Prova só.
Filomena bebe.
RODOLFO - E aí?
FILOMENA - Muito fraca. Desceu macio demais. Quer saber? Isso é cachaça de frouxo.
RODOLFO – Que é isso! Assim a senhora tá me ofendendo!
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FILOMENA – E que culpa tenho eu, se é verdade? É muito fraquinha, sim (maliciosa) ou então... ah, entendi
tudo, seu safado!
ROLDOFO – Mas será que dá pra explicar do que se trata?
FILOMENA – Qual é, trapaceiro! Não vê que eu já descobri toda a pilantragem? Tu anda botando água na
cachaça. Bota mais uma pra eu confirmar (coloca e ela bebe).
RODOLFO – (conciliador) Olha só. Ao invés de ficar vindo aqui, a senhora bem que poderia não sair mais lá
de casa. Ficar brincando só com os seus netinhos. Afinal, eles não são uma gracinha?
FILOMENA – O quê?! Fala sério! Como aquelas criaturas podem ser uma gracinha, se são a tua cara?
RODOLFO – Alto lá! Gostando ou não de mim, eles são os seus netos.
FILOMENA – É, tem razão. Mas se pelo menos eles fossem filhos do Juvenal!
RODOLFO - Dona Filomena, agora a senhora me deixou muito chateado!
FILOMENA - Ah, foi?! Então pode perder a cabeça. Eu sou uma pobre velha indefesa. Se tocar em mim, eu te
enquadro no Estatuto do Idoso. E quer saber? Nem sei por que tô perdendo meu tempo contigo. Vou embora.
Filomena vai se afastando, enquanto Rodolfo dá o braço, faz mais gestos para que saia logo.
ODOLFO - Ah, véa miserável! Desaparece logo daqui. Tomara que a carrocinha te confunda com um pitbul
pelancudo e leve pra fazer sabão. Vejam só. A infeliz bebeu minha pinga, me chamou de bunda-mole, de ladrão,
e ainda desejou que eu fosse corno! Como é que eu aguento uma coisa dessas! Ah, mas ela me paga! Então,
quer dizer que achou minha cachaça ruim. Ora, não seja por isso. Eu mesmo vou fabricar uma pra ela. E vai ser
com ingredientes especiais. Vejamos, se a pinga tava fraca, tem que botar mais álcool. (pega um frasco) Esse
aqui é usado pra desinfetar hospital (despejando numa vasilha). Dona Filomena e as bactérias vão adorar. E pra
não dizer que ainda ficou fraca. (pega outro frasco) Vai também um pouquinho de gasolina. Agora o que mais?
Ah, tinha esquecido que desceu muito macio. Mas tudo bem, isso não é problema. (mostra um pedaço de vidro)
Esse vidro aqui resolve. (botando num saco de pano) Só que primeiro vamos dar um trato! (dando martelada no
saco) Vai descer macio que é uma beleza. (põe os cacos na vasilha) Também disse que gostava de uma cachaça
temperada, não foi? (procurando) Onde é que eu vou achar um tempero bacana? Ah, aqui. Achei. (mostra um
saquinho) Esse veneno de rato é sensacional. (despejando o veneno na vasilha) Os ratos nunca vieram se
queixar que não funciona. Vejamos, é só isso? Não. Nana-nina-não. (fica de costas. Vira-se, segurando pela
cauda um rato morto) Faltou o toque especial. (joga na vasilha) Pronto. (mexendo com uma colher grande)
Agora é só dar uma mexidinha.
FILOMENA – (apenas a voz) Rodoooolfoooo!
RODOLFO – Essa não! Melhor eu esconder isso daqui.
Esconde a vasilha. Filomena entra.
FILOMENA – Esqueci uma coisa importante
RODOLFO – Foi? E o quê?
FILOMENA - O iogurte dos meninos.
RODOLFO – Pois é só a senhora entrar naquele supermercado da esquina.
FILOMENA – Antes eu vim pegar o dinheiro.
RODOLFO - Mas eu já dei os cinquenta reais!
FILOMENA - Passa mais grana.
RODOLFO – (com as mãos ao alto) Mais eu já dei tudo o que tinha.
FILOMENA – Seu pai desnaturado. Eu não acredito!
RODOLFO – Eu juro pela filha da avó da minha mulher.
FILOMENA – (avançando no bolso de Rodolfo) Passa pra cá. (tira a carteira, olhando) Não é que o pé-rapado
tá liso mesmo! (retirando o talão de cheque) Mas tem esse talão.
RODOLFO – O quê! Eu só tenho uma folha de cheque e a senhora vai usar pra comprar iogurte?!
Filomena destaca a folha e estende pra Rodolfo.
FILOMENA - É pro bem dos teus filhos. Agora assina.
RODOLFO – (suspira. Pegando a folha, apalpando os bolsos) Tá certo. Mas eu não tenho caneta.
FILOMENA – (estende uma caneta) Não seja por isso!
RODOLFO – Então, quanto eu devo botar aqui? Dois reais?
FILOMENA – Cem reais.
RODOLFO - O quê?!
FILOMENA – Cem reais.
RODOLFO – Mas que iogurte caro é esse?!
FILOMENA – Não reclama e assina.
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RODOLFO – Quê?
FILOMENA – Assina.
RODOLFO – Mas eu...
FILOMENA – (gritando) A-go-ra!
Contrariado, Rodolfo assina, bota a caneta no bolso da camisa, entrega o cheque a Filomena. Ela abre um
sorriso vitorioso, sai vibrando.
RODOLFO – Que mulher desgraçada! Me assaltou com uma caneta. (pega a vasilha, que na verdade foi
trocada por outra só com líquido) Bem, vamos continuar o serviço. (mexe, tira a colher, que tem a extremidade
queimada) Está no ponto... Agora vamos embalar (com um funil, botando o líquido numa garrafa). Essa daqui
eu vou chamar de “sossega caninana”. E, se meus amigos casados souberem, não vai dar pra quem quer.
(colocando na ponta do balcão) Vou deixar aqui pra quando aquela véa aparecer. Agora, tá na hora de tirar o
grude.
Rodolfo passa pano no balcão. Vai para as mesas. Limpa uma delas, quando entra a Morte, indo em direção a
Rodolfo, que está de costas. Ele interrompe a limpeza, três vezes, desconfiado, olhando ao redor, mas não para
trás, instante em que a Morte pára. E vai se aproximando sorrateira, quando ele retorna a passar o pano.
Rodolfo se vira.
RODOLFO – Ai, meu Deus! (bota a mão no peito) Sai pra lá, coisa feia!
MORTE – Ei, relaxa. Tá todo arrepiado. Assim, você morre (consultando o relógio) antes da hora. Respira
fundo. Isso. De novo... Se assustou?
RODOLFO - Se eu me assustei?! Eu quase botei os bofes pra fora!
MORTE – Ah, desculpa. Foi sem querer.
RODOLFO - Tá bem, mas da próxima vez, não chega assim, de mansinho e fica atrás das pessoas com essa
roupa estranha. Eu sou cardíaco, sabia?
A Morte confirma, balançando a cabeça.
RODOLFO- Quê! Você sabia?!
MORTE – (balança a cabeça, confirmando) Pra mim, não é segredo.
RODOLFO – Ah, então, quer dizer, que essa vizinhança fofoqueira anda falando até pros desconhecidos que
meu coração tá fraco.
MORTE – Fraco? Fraco é elogio! Tô sabendo que ele tá chiando mais que fole velho.
RODOLFO – É mesmo?! (com a mão espalmada ao lado da boca) Ah, bando de linguarudos!
MORTE – Olha, você tem de se conformar. Notícia ruim é assim mesmo. Corre solta, ganha o mundo. Mas
ninguém precisou me contar, não.
RODOLFO – O quê! Tá me dizendo que soube que eu sofria do coração, só olhando pra mim? Fala sério! Nem
Mãe Siricora tinha esse poder.
MORTE – E não tinha mesmo. Nem adivinhou que ia morrer semana passada.
RODOLFO – Mãe Siricora morreu?!
MORTE – Glaucoma. Acho que de tanto ficar arregalando os olhos pra aquele aquário redondo que ela
chamava de bola de cristal.
RODOLFO – Não pode ser! Ela sabia curar mau-olhado, fazer reza forte. Trazia a pessoa amada em três dias.
MORTE – Três dias foi o que a ambulância do SUS demorou pra chegar na
casa dela.
RODOLFO – Mas aquela velha era tão forte. Eu pensava que ia viver cem anos.
MORTE – É, infelizmente as pessoas tão com essa mania de virar tartaruga. Querem durar oitenta, cem, cento e
vinte. Mas agora, ela tá mortinha. Mortinha da Silva. Bateu mesmo a caçuleta.
RODOLFO – Que coisa! Mas vocês se conheciam de longa data?
MORTE – Pra falar a verdade, ela nunca quis muita conversa comigo. Aliás, ninguém quer! Mas no fim,
ficamos grandes amigas.
RODOLFO – Amigas?! E eu que pensava que você era homem!
MORTE – Oh, lamento decepcionar. Ser homem não seria legal na minha profissão. Eu vivo de lá pra cá, de cá
pra lá. Ando tanto.
RODOLFO – Não, tudo bem. É até bom que você não seja mesmo homem. Eu queria diversificar a minha
clientela. Só que as mulheres não aparecem muito no meu bar.
MORTE - Ah, é! Deixa eu ver... só pinga na prateleira, torresmo frito de sete dias, teia de aranha. Por que será
que elas não entram aqui, hein?
RODOLFO – Pois, sabe que eu também não sei!
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MORTE – Dá pra ver que você entende as mulheres.
RODOLFO – Eu? Quem me dera! Mulher é um troço muito complicado.
MORTE – Um troço?!
RODOLFO – É verdade. Inventam de casar, mas não querem ter filhos. Dá pra acreditar que, até hoje, eu só
tenho dois? A minha avó teve dezoito e a minha mãe, dez.
MORTE – Nossa! E você pretendia, quer dizer, pretende ter quantos?
RODOLFO - Como a vida hoje não tá fácil, só meia dúzia. Por enquanto, só tem o São Francisco e o São José.
MORTE - Quem?!
RODOLFO – São Francisco e São José. Os meus filhos.
MORTE – Mas isso é nome de santo!
RODOLFO – Que nada! Vai me dizer que todo Chico e Zé que tu encontra é santo.
MORTE – Tá certo. Agora pra que esse “são” antes do nome?!
RODOLFO – Ora, como eu sou pobre, botei o “são” pra eles serem alguém na vida. Até os outros quatro
também vão ter. Mas a Jurema não quer mais nenhum.
MORTE – Clama! Não fica desse jeito. Não costumo fazer isso com quem eu visito, mas de novo, respira fundo.
Respira!
RODOLFO - Assim?
MORTE – Exatamente. Agora, já que estamos em pleno século XXI, será que, na tua cabeça, as mulheres só
servem pra ter filho?
RODOLFO – (dá uma risada maliciosa) Claro que não!
MORTE – E elas servem pra que mais? Pensa bem.
Rodolfo fica pensativo, coçando o queixo.
MORTE – Já entendi tudo. O seu problema é o romantismo. Você é um sujeito muito romântico.
RODOLFO – É, taí uma verdade. Pois sabe que todo ano eu dou um presente no aniversário dela?
MORTE – (sarcástica) Nossa, você dá mesmo um presente no aniversário dela! E só um, o ano todo?
RODOLFO - Ora, e precisa mais?
MORTE - Tem razão, considerando que só se nasce uma vez, não é?
RODOLFO - Eu confesso que, às vezes me dá pena de ver ela arrumando a casa o dia inteiro. Arrastando o sofá,
passando pano. A coitadinha não descansa. Então, todo ano, emocionado, eu dou um presente que eu sei que ela
vai amar.
MORTE – É mesmo? E o que você dá pra ela?
RODOLFO - Uma vassoura... Dizem por aí que o melhor amigo da mulher é o diamante. Dá pra acreditar? Por
acaso o diamante areia panela, enxágua roupa e ainda desentope cano? Pelo menos a vassoura (com uma
vassoura imaginária, imitando limpar o chão) limpa o chão, (imitando matar barata) mata barata e ainda (dando
estocadas pra frente) amansa o marido. E quando ganha a vassoura, ah, Jurema fica numa emoção tão grande!
Sai chorando e se tranca no quarto.
MORTE – Bem, olhando pelo lado bom. Pelo menos, ela não vai se sentir tão triste, quando ficar viúva.
RODOLFO – Viúva?! Credo! (bate na mesa) Vira essa boca pra lá! Eu tenho uma saúde de ferro. Não vivo
correndo por aí, como esses desocupados de crossfit, mas eu me cuido.
MORTE – Ah, é? E o que tu faz?
RODOLFO – Eu... eu... eu... eu me alimento bem.
MORTE – Come verduras e frutas?
RODOLTO – O quê?! Qual é! Vê se eu tenho cara de lagarta pra ficar comendo essas coisas. Sou homem,
preciso de uma dieta de macho. Que verdura e fruta que nada! De manhã, cedinho, um mocotó com sarapatel de
porco, só pra despertar. Meio-dia, pra tirar o fastio, uma pratada de panelada. E de noite, um feijão com pé de
porco dentro. É de morrer.
MORTE – Nossa, essa dieta é realmente o fim! E pra beber?
RODOLFO - (mostrando ao redor, feliz) Cachaça.
MORTE – Tu bebe só cachaça?
RODOLFO – Fazer o quê?! Ser dono de bar é padecer no paraíso. Eu sou patrão e cliente ao mesmo tempo.
Mas de vez em quando, infelizmente, pra destravar os rins, desinchar os pés, eu tomo água mesmo.
MORTE - Mas como tu consegue isso?!
RODOLFO – Fácil. Eu boto no copo e despejo na boca.
MORTE – Não, eu digo, como o teu fígado permite.
RODOLFO – (dando de ombros) Eu não sei. Eu nunca perguntei pra ele. E ele nunca reclamou
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MORTE – Realmente, é um milagre eu não ter te visitado antes.
RODOLFO – Tudo bem. A gente recupera o tempo perdido. De agora em diante, as portas do meu
estabelecimento tão sempre abertas pra você. Pode vir quantas vezes quiser.
MORTE - Eu só costumo vir uma vez.
RODOLFO - Que é isso! O meu boteco não é tão ruim assim. Eu sei que o torresminho tá um pouco passado,
que dizer, já anda meio verde, mas eu faço questão de atender todo mundo muito bem. (oferece uma coxinha)
Toma, é cortesia da casa.
MORTE - Que negócio é esse?
RODOLFO – Ora, é só uma coxinha.
A Morte pega a coxinha, com desconfiança.
MORTE – Mas azul?!
RODOLFO – Faz parte do nosso segredo culinário. A comida se mostrar pro cliente.
MORTE – Sei não! Coxinha azul, torresmo verde, (olhando os aperitivos) ovo de galinha cinza...
RODOLFO – Não precisa ficar com medo. Pode dar uma mordida. Essa daí mesmo tá fresquinha. Foi feita
semana passada.
MORTE – Semana passada?! Mas e ainda presta?
RODOLFO – Juro pela alma da filha da avó da minha mulher que meus salgadinhos não fazem mal a ninguém.
MORTE – Sério? E o recheio é de quê?
RODOLFO - Ah, não enrola! É de carne como uma coxinha qualquer. Agora prova.
MORTE – Mas é de carne, carne? Ou de frango?
RODOLFO – De um bicho que faz cocococococó.
MORTE – Tá bom, eu vou tirar um pedaço.
Escancaradamente, morde um pedaço minúsculo. Fica mastigando.
RODOLFO – E aí?
A Morte faz sinal com a mão, para esperar. Mastiga mais um pouco.
MORTE - Parece chiclete.
RODOLFO – Tem que mastigar mais forte.
MORTE – Eu tô mastigando, mas não desce. (de supetão, aponta pra trás de Roldolfo) O que é aquilo?
Rodolfo olha. A Morte aproveita pra cuspir a coxinha e jogar longe.
RODOLFO – (ainda olhando) O quê?
MORTE – Aquela garrafa verde.
RODOLFO – Ah, (pra Morte) é uma cachaça mineira. Envelhecida (mostrando três dedos) três anos. (olha pra
mão da Morte, procurando a esfirra) Ué, já comeu?
MORTE – Pois é, tava tão boa, que engoli de uma vez só.
RODOLFO - Ah, que bom, porque agora (se dirigindo aos salgados) eu vou te dar o torresmo.
MORTE - Não, não precisa! Eu tô fazendo dieta.
RODOLFO – É mesmo? Hoje em dia todo mundo faz dieta, né? Mas tá com algum problema de saúde?
MORTE – Que nada! É só vaidade.
RODOLFO – Pois já me passaram uma dieta esquisita. Uma tal de macroática... macro... macro... macrobática...
MORTE – Macrobiótica?
RODOLFO - Essa mesma. Ah, que coisa horrível! O médico falou que eu não podia mais comer carne, ou,
advinha só?, ia bater as botas. A Jurema, que tava do meu lado, coitadinha, ficou apavorada. Tremia feito uma
vara verde. Eu tive pena dela e jurei não ir atrás de carne. Só que a minha sogra quando soube, fez um bifão a
milanesa... pena que a Jurema não deixou eu comer. Aliás, ela deu a carne toda pra vizinhança.
MORTE – Então, você cumpriu a dieta.
RODOLFO – Até que agüentei dois dias. No terceiro, amanheci querendo roubar a ração do cachorro. Mas
como eu tinha jurado não ir atrás de carne, não fui. Mandei um motoboy na churrascaria e foi a carne que veio
até mim.
MORTE – Pelo visto, você não acreditou no médico.
RODOLFO – Eles não sabem de nada. Há cinco anos, vivem dizendo que meu coração vai pifar, que tenho de
tomar um monte de remédio. Eu é que não dou ouvido, tomo uma pilulazinha quando quero e olha só (bate no
peito) tô forte como uma rocha!
MORTE – Que bom! Se todo mundo pensasse como você, meu trabalho ia ser bem mais fácil.
RODOLFO – Quer dizer que você trabalha com a saúde.
MORTE – Pra falar a verdade, na falta dela.
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RODOLFO – Interessante. Só não me leve a mal, mas nessas profissões, assim, de maior responsabilidade, eu
confio mais nos homens.
MORTE – Tudo bem. Já deu pra notar que, pra você, a profissão ideal pras mulheres seria pilotar fogão. Você é
um homem à frente do seu tempo. Depois veio Pedro Álvares Cabral.
RODOLFO – (lisonjeado) Ora essa! Quem me dera ter descoberto o... o que ele descobriu mesmo?
MORTE – A Paraíba.
RODOLFO – Jura? Eu pensei que foi algo maior.
MORTE – Seus conhecimentos de Geografia me impressionam!
RODOLFO - Você também é uma mulher estudada. Sabe até quem descobriu a Paraíba.
MORTE – Ai, ai! As pessoas estão perdendo mesmo a consideração por mim! Nem me reconhecem mais. A
minha moral era bem mais alta no passado. Antigamente é que era uma maravilha. Nunca fui a Madona, mas eu
era poderosa. Bastava um dente mal tirado e eu já me fazia presente. Mas hoje... hoje virou uma esculhambação
total! Um comprimido já livra o sujeito da cova. Sem falar dos médicos que avacalham o meu trabalho, me
fazendo ir e voltar várias vezes. Muita gente, só porque tem um plano de saúde, até esquece que existo. Enche a
cara e sai dirigindo. Fuma como uma chaminé. Transa sem camisinha... E ainda tem aqueles que, de
madrugada, resolvem cheirar igual um aspirador de pó, me obrigando a fazer hora extra. Mas eu ainda vou virar
o jogo. Ah, se vou! Quero botar a mão na massa com uns brinquedinhos atômicos que existem por aí. Só falta
aqueles malucos apertarem o botão.
RODOLFO – Olha, eu não entendi esse teu papo, mas fica tranqüila. Só ainda não sei por que tá fazendo bico.
MORTE – Eu fazendo bico?!
RODOLFO – Justamente. Com essa foice na mão, tu só pode tá trabalhando de jardineiro. Quer dizer,
jardineira... Ah, já sei! Como eu não tinha pensado nisso antes! Mas é claro. Quer mudar o visual e agora saiu
atrás de uma graninha pra botar silicone.
A Morte o encara, sinistramente, com as mãos na cintura.
RODOLDO - Que foi? Por que essa cara? Olha, tudo bem, não precisa ficar constrangida. Botar silicone virou
moda.
MORTE – Eu juro que, se não fizesse parte do meu trabalho, eu te matava assim mesmo!
RODOLFO – Então esse é o teu grito de guerra. “Eu mato”. Pra arrasar corações, precisa de algo melhor. Que
tal (enquadrando com as mãos o slogan imaginário) “Eu mato. Mato de paixão”? É mais caliente. E se quiser,
ainda te dou outras dicas. Eu entendo disso. Antes de conhecer a Jurema, eu era fogo.
MORTE – Ah, é? Não me diga!
RODOLFO – Digo, sim. Em primeiro lugar, se livra desse camisolão. Tá horrível!
MORTE – Mas é meu uniforme de trabalho!
RODOLFO – Eu sei, só que o cliente quer ver o produto. Além do mais esse camisolão já tá desbotado, parece
ter uns quinhentos anos.
MORTE - Pra falar a verdade, seis mil.
RODOLFO – Taí, gostei da piada. Você tem senso de humor. Isso é importante. Não é possível que você
sempre usou esse camisolão!
MORTE – Eu sempre usei.
RODOLFO – Jura? Mas nenhum cliente nunca reclamou?
MORTE – Bem, eu comecei a trabalhar com Adão. Depois eles cresceram e se multiplicaram tanto, que eu já
perdi a conta.
RODOLFO – Pois hoje em dia, eu juro de pé junto, que tu vai ter que se reciclar.
MORTE - Não precisa. De pé junto, você vai ficar com certeza.
RODOLFO - Que é isso! Não me joga praga. Se foi por causa desse camisolão, não tá mais aqui quem falou.
Pensando bem, ele é até bonitinho. Olha, eu só queria ajudar.
MORTE – (consultando o relógio) Lamento dizer, mas o seu tempo acabou.
RODOLFO – (consultando o próprio relógio) Você se enganou. Eu só fecho o bar às doze.
MORTE – Eu disse que eu vou te levar.
RODOLFO – Não, esquece! Eu já sou casado. Com outra mulher, a Jurema pode até entender, mas se descobre
que larguei ela pra fugir com você ela me mata!
MORTE – Deixa de ser imbecil. Eu sou a Morte.
RODOLFO – Tu, a Morte? (dá uma gargalhada) Qual é, fala sério!
MORTE – Eu estou falando sério.

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RODOLFO – Ah, tá! (aponta pra Morte, dá uma gargalhada. Assopra algumas vezes, com a mão na barriga) Ai,
ai!
MORTE – (irritada) Posso saber qual é a graça?
RODOLFO – A graça?! Não é todo dia que entra aqui um maluco como tu, vestido com essa roupa esquisita.
Cara, eu vou acreditar que tu é a Morte mesmo. Tu me faz morrer de rir.
MORTE – (suspira) Tá bem, eu vou provar. Era só o que me faltava, ter que mostrar agora as minhas
credenciais.
RODOLFO – Beleza, vai em frente. Mostra aí, (rindo) a tua credencial do hospício!
A Morte olha pra Rodolfo, chateada. Pensativa, bota a mão no queixo.
MORTE – Lembra da tua avó Candola?
RODOLFO – Lembro, e daí? Saber o nome de minha avó não lá é grande coisa. É só procurar no cartório, que
tu também acha a minha tataravó.
MORTE – Mas tem algo sobre a Candola que só você sabe.
RODOLFO – Ah, qual é! Deixa disso. Não bota a minha avó nessa história, que ela morreu quando eu ainda era
menino.
MORTE – Justamente. E quando morreu, só você estava no quarto dela. E foi aí que ela te disse uma coisa no
ouvido.
RODOLFO – Ah, e foi?
MORTE – (assegurando) Foi.
RODOLFO – Tá certo. Então diz o que minha avó falou no leito de morte.
MORTE - Ela disse: “Rodolfinho, infeliz. Não me mata antes da hora. Vai escovar os dentes”.
RODOLFO – Isso não é possível!
MORTE – Claro que é. Eu também estava lá. Eu também ouvi.
RODOLFO – Quer dizer que tu é mesmo a Morte!
MORTE – A própria.
RODOLDO – A Morte em carne e osso!
MORTE – Não, só em osso mesmo.
RODOLDO – Ok, e o que tu veio fazer aqui?
MORTE – (dá uma risadinha maliciosa) Eu vim trabalhar.
RODOLFO – Desculpa, mas eu não preciso de nenhum funcionário.
MORTE – Você não entendeu. O meu trabalho é você. Chegou a tua hora, meu chapa.
RODOLFO – Não! Eu não quero morrer!
MORTE – Ah, vamos pular essa parte. Já tô cansada de ouvir isso.
RODOLFO – Mas e a Jurema e os meninos?
MORTE – Relaxa. Eles vão tocar a vida pra frente.
RODOLFO – E se não agüentarem viver sim mim?
MORTE – Se não agüentarem, podem te botar no formol.
RODOLFO – Ah, que é isso! Você não tem coração?
MORTE – (abrindo a parte superior do roupão e mostrando) Não.
RODOLFO – Mas olha pra mim, eu tô cheio de saúde!
MORTE – Estaria, se tomasse direitinho todos aqueles remédios que o médico te passa.
RODOLFO – Não pode me matar agora. Eu nem tenho cabelo branco!
MORTE - Eu sei, mas a vida, quer dizer, a morte é assim mesmo. Ontem um rapaz, embarcou com 17 anos.
Tadinho, nem aproveitou o lado bom da vida.
RODOLFO – Quer dizer que você não alivia mesmo?
MORTE – Não, eu mato todo mundo. Faço questão de ser profissional.
RODOLFO – Peraí! Então foi você que matou a minha mãe.
MORTE – E também o teu pai.
RODOLFO – Ah, sua miserável. Foi você!
MORTE – Claro, e quem mais?! Por acaso eu não sou a Morte?
RODOLFO – Pois eu vou te matar.
MORTE – Não, eu vou te matar.
Rodolfo levanta os braços com os punhos fechados e dá um faniquito, se estremecendo todo.
MORTE – Ei, rapaz. Relaxa. Respira fundo. Vai, respira. Isso, assim... Tá melhor?
Rodolfo confirma, balançando a cabeça.
8
MORTE - Agora, vem comigo.
RODOLFO - Mas pra onde?
MORTE - Não, sei. Só olhando no livro.
RODOLFO - Livro?! Que livro?!
MORTE - (tira um livro de dentro do capuz) Esse daqui. O Livro dos Mortos. Ele é que diz pra onde cada
presunto vai.
RODOLFO - Ah, é? E pra onde eu vou?
MORTE - Tem que assinar o livro primeiro.
RODOLFO - Eu não vou assinar isso nem morto.
MORTE - Você já está morto!
RODOLFO - Então, eu não assino nem vivo.
MORTE - Vai ter que assinar ou então vai ficar vagando pelo mundo, como uma alma penada.
RODOLFO - É? Até quando?
MORTE - Por toda a Eternidade.
RODOLFO – Bem, até que isso pode não ser tão ruim.
MORTE - E não é mesmo. Depois de um certo tempo como fantasma, tu se estrebucha todo e morre pra sempre.
RODOLFO - Tá, onde é que eu assino?
MORTE – (apontando a página) Aqui.
Rodolfo tira a caneta do bolso e assina.
RODOLDO - Agora, vê aí pra onde vai me levar.
MORTE - Bem, aqui diz: Rodolfo, o quinto.
RODOLFO - Oba, então, eu sou o quinto a subir ao paraíso, né?
MORTE – Não. O quinto aqui é o Quinto dos Infernos.
RODOLFO - Não, não pode ser! Deve ter um erro aí.
MORTE - Não tem erro nenhum.
RODOLDO - Mas eu não mereço ir pro inferno. Eu nunca matei ninguém.
MORTE - Aqui diz que você foi acusado de algo tão ruim quanto assassinato.
RODOLFO - Sério? E o que foi?
MORTE - Machismo.
RODOLFO - Tá brincando!
MORTE - Verdade. Lugar de machista é esse mesmo.
RODOLFO - Mas, eu não posso mais me regenerar?
MORTE - Tarde demais. Você já assinou o Livro dos Mortos. Quem tem o nome nele, já selou o seu destino.
Não pode mais voltar à vida.
RODOLFO – Mas foi você que me mandou assinar!
MORTE – Claro. Eu sou profissional. Se é pra matar, eu mato de uma vez só. Agora vem comigo que eu vou te
mostrar a tua nova casa. Mas vou logo avisando que lá embaixo faz um pouco de calor e não tem ar-
condicionado.
RODOLFO – Não, lá não serve pra mim. Eu não gosto de lugares quentes.
MORTE – Não gosta de lugar quente. Uma praga dessa, morando em Imperatriz. Não se preocupe. Quando
esfria, lá só faz mil graus.
RODOLFO – Mil graus!
MORTE – Eu te aconselho a levar um bronzeador, fator cinco mil.
RODOLFO – Mas eu vou virar carvão!
MORTE – Fica tranqüilo, que pra aliviar o calor, no inferno também chove.
RODOLFO – Como pode chover, se faz mil graus?!
MORTE – Canivete. Lá chove (mostrando o tamanho com as mãos) cada peixeira deste tamanho.
RODOLFO – Ai, minha nossa! Espera um pouco.
MORTE – O que foi?
RODOLFO – A gente tem de ir agora mesmo?
MORTE – Eu não tenho mais nada pra fazer aqui.
RODOLFO – Espera (olha ao redor, vê a cachaça envenenada) Que tal tomar uma cachacinha? É cortesia da
casa.
MORTE – Eu não costumo beber em serviço, mas vou fazer uma exceção.
A Morte senta, enquanto Rodolfo pega a garrafa.
9
RODOLFO – Essa daqui é especial (botando a dose) É uma edição limitada. Pronto. (entrega o copo pra Morte)
MORTE – Sabe que eu até que gostei de você? Um defunto assim, tão camarada, é difícil de encontrar.
Geralmente, eles só me dão aquela choradeira deprimente. (bebe, faz uma careta)
RODOLFO – E aí?
MORTE – (estala os dedos) Que maravilha! Essa é das boas.
RODOLFO – Tá falando sério?!
MORTE – Claro, tem um sabor encorpado. De que é feita?
RODOLFO – Infelizmente é um segredo de família. Mas posso garantir que os ingredientes são de primeira
qualidade.
MORTE – Então, é você quem faz?
RODOLFO – Modestamente, sim.
MORTE - Puxa, fazendo uma cachaça dessas, dá até pena te matar.
RODOLFO – Bem, se gostou tanto, fique à vontade.
MORTE – (apontando pra garrafa) Posso?
RODOLFO – Claro, vai fundo. Eu não deixo de agradar um cliente, nem morto mesmo.
A Morte põe uma dose e bebe. Tem sinais de embriaguez.
MORTE – Ui! Já tô me sentindo, ic!, mais leve.
RODOLFO – Por acaso, nós vamos pro inferno de carro?
MORTE – Que nada! É só dar, ic!, uns passinhos, que já chegamos lá.
RODOLFO – Só avisei pra gente não ser multado no meio do caminho.
A Morte põe uma dose e bebe.
MORTE – Sabe de uma coisa? Com essa, ic!, cachaça, tu vai fazer o maior, ic!, sucesso no inferno.
RODOLFO – E lá tem rato?
MORTE – Como é?!
RODOLFO – Eu digo, lá tem rato?, porque esses bichos podem derrubar as garrafas e me dar prejuízo.
MORTE – É uma pena, ic!, mas o inferno não é muito higiênico. Tem cada, ic!, ratazana... enorme!
RODOLFO – Bem, pelo menos lá eu vou ficar milionário.
MORTE – (pondo uma dose) Agora, a saideira.
A Morte bebe uma dose.
MORTE – Ah, que beleza!
RODOLFO – Mas você não tá sentindo nada diferente, não?
MORTE – Olha só. É... com qual dos dois eu tô falando?
Rodolfo levanta a mão.
MORTE – Ah, você! Pois, ic!, eu me sinto muito bem. Eu, ic!, tô tão leve!
RODOLFO – Tem certeza?! Essa cachaça é um pouco forte. E eu pensei que, quem sabe, você pudesse passar
mal. Muito mal. A ponto até de morrer, assim de repente. E não terminar o serviço que você veio fazer aqui.
MORTE – Tá brincando!,ic!, Eu morrer?! Deixa de ser burro. Como é que eu , ic!, vou morrer, seu eu sou a
Morte?! (com o dedo em riste) Eu sou, ic!... eu sou... imortal!
RODOLFO – Ah, tá! E só agora tu vem me dizer isso! (suspira, abana a cabeça) Lá se foi a minha última
esperança!
MORTE – (levantando-se) Pois é melhor a gente ir. Já, ic!, passou da hora, e o diabo é um sujeito, ic!, muito
impaciente.
RODOLFO – (conformado) É, que jeito! Vamos nessa.
MORTE – Espera.
RODOLFO - Que foi?
MORTE - (bota a mão no púbis) Tô, ic!, meio apertada. Aqui tem, ic!, banheiro pra senhoras?
RODOLFO – (apontando) Primeira porta à esquerda.
MORTE - Então espera, ic!, aqui, que eu já volto.
A Morte sai.
RODOLFO – Essa não! Dessa vez eu me encrenquei pra valer. Tô indo pro Quinto dos Infernos. E não tem
jeito de me livrar.
Entra um policial, trazendo Filomena algemada e cabisbaixa, enquanto Rodolfo observa aturdido.
POLICIAL – Com licença. O senhor conhece esta mulher?
Boquiaberto, Rodolfo balança afirmativamente a cabeça.
POLICIAL – Seu nome é Rodolfo Souza Pinto?
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Boquiaberto, Rodolfo balança afirmativamente a cabeça.
POLICIAL – Pois essa pilantra estelionatária tentou descontar um cheque seu de duzentos mil reais.
RODOLFO – Nossa, como o iogurte aumentou!
POLICIAL – Na verdade ela usou uma caneta que a tinta desaparece depois de um tempo, e com uma caneta
normal, escreveu essa quantia.
RODOLFO – Não me diga!
POLICIAL – Vai pegar três anos de cadeia. Mas precisamos de sua ajuda
RODOLFO – É, e pra quê?
POLICIAL – Apenas com o seu depoimento de que ela tentou lhe roubar é que podemos efetuar a prisão.
RODOLFO – Olha, seu policial, eu vou me ausentar por um bom tempo. E seria melhor se ela ficasse perto da
minha família.
POLICIAL – Como assim?
RODOLFO – Pensando bem, fui eu que bebi demais e acabei botando essa fortuna aí no cheque.
POLICIAL – Tem certeza?
RODOLFO – Absoluta.
POLICIAL – Bem, então eu vou lhe soltar. A senhora me desculpe. (tirando as algemas de Filomena) Foi um
grande mal-entendido.
FILOMENA – Ah, é?! E o constrangimento que eu passei? A humilhação?
RODOLFO - Não abuse da sorte Dona Filomena.
FILOMENA - Eu quero justiça.
RODOLFO - Dona Filomena.
FILOMENA - Pois eu deveria te denunciar por abuso de poder!
O policial, desconcertado, dá um sorriso sem graça.
FILOMENA - Agora some daqui.
POLICIAL – (saindo, preocupado) Me desculpe mesmo. (sai)
FILOMENA – Desculpa é o cacete. Se não fosse crime eu ia virar tua cara do avesso, para aprender a respeitar
as pessoas. Ainda mais uma senhora da minha idade. (olha pra Rodolfo, desconfiada) Por que fez isso? Lógico
que essa história da caneta foi mesmo um grande mal-entendido. Mas você, sacripanta, me ajudando?
RODOLFO – É que eu vou fazer uma viagem. E achei que seria melhor se a senhora ficasse fazendo
companhia pra Jurema e os meninos.
FILOMENA – O quê?! Então é isso, seu vagabundo imprestável?! Quer dizer que vai fazer turismo e eu viro
sua empregada?
RODOLFO – Não. Essa viagem é mesmo inevitável.
FILOMENA – (incrédula) Sei... E tu vai pra onde?
RODOLFO – Pro quinto.
FILOMENA – Eu sabia! Eu sabia! Seu cara-de-pau! Esse quinto só pode ser um hotel (mostra os dedos da mão)
cinco estrelas.
RODOLFO – Não! Lá faz muito calor.
FILOMENA - Então, além de ser um hotel cinco estrelas, ainda fica no Nordeste! Com aquelas praias
maravilhosas.
RODOLDO – A senhora não acredita em mim, não é? Mesmo depois que eu menti pra ajudar com essa história
(se dando conta) da caneta que a tinta desaparece! (olha no livro e aponta) Olha só! Sumiu!
FILOMENA – Sumiu o quê? E que livro é esse?
RODOLFO – Lembra da viagem? Esse é o Livro de Reservas. E o meu nome não tá mais aqui.
FILOMENA – Então, eu vou no teu lugar.
RODOLFO – Como é?!
FILOMENA – Isso é o mínimo que você pode fazer por mim. Depois de tantos anos sendo contrariada, eu bem
que mereço umas férias.
RODOLDO – A senhora tem certeza que quer ir pro Quinto?!
FILOMENA – Totalmente. E se você atrapalhar, eu conto pra Jurema que tá indo viajar pra se encontrar com a
tua amante.
RODOLFO – Mas eu não tenho nenhuma amante!
FILOMENA – Ora, se não tem, eu invento uma. Agora, onde é que eu assino?
RODOLDO – (apontando no livro) Aqui. Mas a senhora vai (tira a caneta do bolso) usar esta caneta?

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FILOMENA - Claro que não. Pensa que todo mundo é trouxa como tu? (mostra outra caneta) Essa daqui não
apaga! Agora me deixa assinar.
Filomena assina.
FILOMENA – Quando é que eu pego o avião?
RODOLFO – Primeiro, a senhora vai falar com a agente de viagens que foi ao banheiro.
A Morte aparece cambaleando. Pára um pouco distante, de vez em quando, dando alguns soluços.
FILOMENA – Aquela ali?
RODOLFO – Ela mesma.
FILOMENA – Nossa! Mas é feia como a Morte!
RODOLFO – Ela se empolgou um pouquinho e acabou bebendo demais. E isso vai ser bom pra gente. Pode
pensar que a senhora sou eu, e aí a viagem não vai ter problema.
FILOMENA - Tá, e o que eu faço?
RODOLFO - Bota esse bigode aqui e usa o meu boné.
Rodolfo, que tem bigode fino, coloca um bigodão em Filomena e também o boné.
RODOLFO – Pronto, tá a minha cara. Agora quando ela vier, a senhora segue junto, pra pegar a passagem.
Rodolfo se afasta, pega uma revista no balcão e abre em frente à cara. A Morte vai até Filomena.
MORTE – E aí, tá preparado, ic!, mesmo pra viajar?
FILOMENA – (engrossando a voz) Eu não vejo a hora!
MORTE – Ah, que bom! É assim, ic!, que se fala. Então, ic!, vamos nessa.
A Morte sai com Filomena. Rodolfo olha por cima da revista, pelos cantos.
Vibra, como se comemorasse um gol.
RODOLFO – Que beleza! Enganei a Morte. E, olha só (se apalpando). Estou vivo, vivinho da Silva! Ainda
mandei minha sogra pro inferno. Deve ter muito genro com inveja de mim! Ah, como eu sou sortudo!
(ponderando) Mas é bom não abusar. Tanta sorte, assim, é só uma vez na vida. E por falar em vida. Já que eu
vou continuar vivendo, tenho de aproveitar essa chance pra mudar o meu destino. Vou deixar de ser idiota.
Machista nunca mais. Nunca é tarde pra mudar. De agora em diante, (pega um buquê de flores atrás do balcão)
vou tratar a Jurema com respeito e carinho. Como toda mulher merece. Quem sabe, um dia, a gente não fique
juntinho no Paraíso? Agora é melhor eu ir, porque eu sei que ela tá me esperando. (vai saindo).
FILOMENA – (de fora) Rodolfooo, seu desgraçado.

FIM

Contato com o Autor:


rutinaldomiranda@hotmail.com
0(71)99057062

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