Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Personagens:
Rodolfo, dono do bar
Dona Filomena, sogra de Rodolfo.
A Morte
Um policial
7
RODOLFO – Ah, tá! (aponta pra Morte, dá uma gargalhada. Assopra algumas vezes, com a mão na barriga) Ai,
ai!
MORTE – (irritada) Posso saber qual é a graça?
RODOLFO – A graça?! Não é todo dia que entra aqui um maluco como tu, vestido com essa roupa esquisita.
Cara, eu vou acreditar que tu é a Morte mesmo. Tu me faz morrer de rir.
MORTE – (suspira) Tá bem, eu vou provar. Era só o que me faltava, ter que mostrar agora as minhas
credenciais.
RODOLFO – Beleza, vai em frente. Mostra aí, (rindo) a tua credencial do hospício!
A Morte olha pra Rodolfo, chateada. Pensativa, bota a mão no queixo.
MORTE – Lembra da tua avó Candola?
RODOLFO – Lembro, e daí? Saber o nome de minha avó não lá é grande coisa. É só procurar no cartório, que
tu também acha a minha tataravó.
MORTE – Mas tem algo sobre a Candola que só você sabe.
RODOLFO – Ah, qual é! Deixa disso. Não bota a minha avó nessa história, que ela morreu quando eu ainda era
menino.
MORTE – Justamente. E quando morreu, só você estava no quarto dela. E foi aí que ela te disse uma coisa no
ouvido.
RODOLFO – Ah, e foi?
MORTE – (assegurando) Foi.
RODOLFO – Tá certo. Então diz o que minha avó falou no leito de morte.
MORTE - Ela disse: “Rodolfinho, infeliz. Não me mata antes da hora. Vai escovar os dentes”.
RODOLFO – Isso não é possível!
MORTE – Claro que é. Eu também estava lá. Eu também ouvi.
RODOLFO – Quer dizer que tu é mesmo a Morte!
MORTE – A própria.
RODOLDO – A Morte em carne e osso!
MORTE – Não, só em osso mesmo.
RODOLDO – Ok, e o que tu veio fazer aqui?
MORTE – (dá uma risadinha maliciosa) Eu vim trabalhar.
RODOLFO – Desculpa, mas eu não preciso de nenhum funcionário.
MORTE – Você não entendeu. O meu trabalho é você. Chegou a tua hora, meu chapa.
RODOLFO – Não! Eu não quero morrer!
MORTE – Ah, vamos pular essa parte. Já tô cansada de ouvir isso.
RODOLFO – Mas e a Jurema e os meninos?
MORTE – Relaxa. Eles vão tocar a vida pra frente.
RODOLFO – E se não agüentarem viver sim mim?
MORTE – Se não agüentarem, podem te botar no formol.
RODOLFO – Ah, que é isso! Você não tem coração?
MORTE – (abrindo a parte superior do roupão e mostrando) Não.
RODOLFO – Mas olha pra mim, eu tô cheio de saúde!
MORTE – Estaria, se tomasse direitinho todos aqueles remédios que o médico te passa.
RODOLFO – Não pode me matar agora. Eu nem tenho cabelo branco!
MORTE - Eu sei, mas a vida, quer dizer, a morte é assim mesmo. Ontem um rapaz, embarcou com 17 anos.
Tadinho, nem aproveitou o lado bom da vida.
RODOLFO – Quer dizer que você não alivia mesmo?
MORTE – Não, eu mato todo mundo. Faço questão de ser profissional.
RODOLFO – Peraí! Então foi você que matou a minha mãe.
MORTE – E também o teu pai.
RODOLFO – Ah, sua miserável. Foi você!
MORTE – Claro, e quem mais?! Por acaso eu não sou a Morte?
RODOLFO – Pois eu vou te matar.
MORTE – Não, eu vou te matar.
Rodolfo levanta os braços com os punhos fechados e dá um faniquito, se estremecendo todo.
MORTE – Ei, rapaz. Relaxa. Respira fundo. Vai, respira. Isso, assim... Tá melhor?
Rodolfo confirma, balançando a cabeça.
8
MORTE - Agora, vem comigo.
RODOLFO - Mas pra onde?
MORTE - Não, sei. Só olhando no livro.
RODOLFO - Livro?! Que livro?!
MORTE - (tira um livro de dentro do capuz) Esse daqui. O Livro dos Mortos. Ele é que diz pra onde cada
presunto vai.
RODOLFO - Ah, é? E pra onde eu vou?
MORTE - Tem que assinar o livro primeiro.
RODOLFO - Eu não vou assinar isso nem morto.
MORTE - Você já está morto!
RODOLFO - Então, eu não assino nem vivo.
MORTE - Vai ter que assinar ou então vai ficar vagando pelo mundo, como uma alma penada.
RODOLFO - É? Até quando?
MORTE - Por toda a Eternidade.
RODOLFO – Bem, até que isso pode não ser tão ruim.
MORTE - E não é mesmo. Depois de um certo tempo como fantasma, tu se estrebucha todo e morre pra sempre.
RODOLFO - Tá, onde é que eu assino?
MORTE – (apontando a página) Aqui.
Rodolfo tira a caneta do bolso e assina.
RODOLDO - Agora, vê aí pra onde vai me levar.
MORTE - Bem, aqui diz: Rodolfo, o quinto.
RODOLFO - Oba, então, eu sou o quinto a subir ao paraíso, né?
MORTE – Não. O quinto aqui é o Quinto dos Infernos.
RODOLFO - Não, não pode ser! Deve ter um erro aí.
MORTE - Não tem erro nenhum.
RODOLDO - Mas eu não mereço ir pro inferno. Eu nunca matei ninguém.
MORTE - Aqui diz que você foi acusado de algo tão ruim quanto assassinato.
RODOLFO - Sério? E o que foi?
MORTE - Machismo.
RODOLFO - Tá brincando!
MORTE - Verdade. Lugar de machista é esse mesmo.
RODOLFO - Mas, eu não posso mais me regenerar?
MORTE - Tarde demais. Você já assinou o Livro dos Mortos. Quem tem o nome nele, já selou o seu destino.
Não pode mais voltar à vida.
RODOLFO – Mas foi você que me mandou assinar!
MORTE – Claro. Eu sou profissional. Se é pra matar, eu mato de uma vez só. Agora vem comigo que eu vou te
mostrar a tua nova casa. Mas vou logo avisando que lá embaixo faz um pouco de calor e não tem ar-
condicionado.
RODOLFO – Não, lá não serve pra mim. Eu não gosto de lugares quentes.
MORTE – Não gosta de lugar quente. Uma praga dessa, morando em Imperatriz. Não se preocupe. Quando
esfria, lá só faz mil graus.
RODOLFO – Mil graus!
MORTE – Eu te aconselho a levar um bronzeador, fator cinco mil.
RODOLFO – Mas eu vou virar carvão!
MORTE – Fica tranqüilo, que pra aliviar o calor, no inferno também chove.
RODOLFO – Como pode chover, se faz mil graus?!
MORTE – Canivete. Lá chove (mostrando o tamanho com as mãos) cada peixeira deste tamanho.
RODOLFO – Ai, minha nossa! Espera um pouco.
MORTE – O que foi?
RODOLFO – A gente tem de ir agora mesmo?
MORTE – Eu não tenho mais nada pra fazer aqui.
RODOLFO – Espera (olha ao redor, vê a cachaça envenenada) Que tal tomar uma cachacinha? É cortesia da
casa.
MORTE – Eu não costumo beber em serviço, mas vou fazer uma exceção.
A Morte senta, enquanto Rodolfo pega a garrafa.
9
RODOLFO – Essa daqui é especial (botando a dose) É uma edição limitada. Pronto. (entrega o copo pra Morte)
MORTE – Sabe que eu até que gostei de você? Um defunto assim, tão camarada, é difícil de encontrar.
Geralmente, eles só me dão aquela choradeira deprimente. (bebe, faz uma careta)
RODOLFO – E aí?
MORTE – (estala os dedos) Que maravilha! Essa é das boas.
RODOLFO – Tá falando sério?!
MORTE – Claro, tem um sabor encorpado. De que é feita?
RODOLFO – Infelizmente é um segredo de família. Mas posso garantir que os ingredientes são de primeira
qualidade.
MORTE – Então, é você quem faz?
RODOLFO – Modestamente, sim.
MORTE - Puxa, fazendo uma cachaça dessas, dá até pena te matar.
RODOLFO – Bem, se gostou tanto, fique à vontade.
MORTE – (apontando pra garrafa) Posso?
RODOLFO – Claro, vai fundo. Eu não deixo de agradar um cliente, nem morto mesmo.
A Morte põe uma dose e bebe. Tem sinais de embriaguez.
MORTE – Ui! Já tô me sentindo, ic!, mais leve.
RODOLFO – Por acaso, nós vamos pro inferno de carro?
MORTE – Que nada! É só dar, ic!, uns passinhos, que já chegamos lá.
RODOLFO – Só avisei pra gente não ser multado no meio do caminho.
A Morte põe uma dose e bebe.
MORTE – Sabe de uma coisa? Com essa, ic!, cachaça, tu vai fazer o maior, ic!, sucesso no inferno.
RODOLFO – E lá tem rato?
MORTE – Como é?!
RODOLFO – Eu digo, lá tem rato?, porque esses bichos podem derrubar as garrafas e me dar prejuízo.
MORTE – É uma pena, ic!, mas o inferno não é muito higiênico. Tem cada, ic!, ratazana... enorme!
RODOLFO – Bem, pelo menos lá eu vou ficar milionário.
MORTE – (pondo uma dose) Agora, a saideira.
A Morte bebe uma dose.
MORTE – Ah, que beleza!
RODOLFO – Mas você não tá sentindo nada diferente, não?
MORTE – Olha só. É... com qual dos dois eu tô falando?
Rodolfo levanta a mão.
MORTE – Ah, você! Pois, ic!, eu me sinto muito bem. Eu, ic!, tô tão leve!
RODOLFO – Tem certeza?! Essa cachaça é um pouco forte. E eu pensei que, quem sabe, você pudesse passar
mal. Muito mal. A ponto até de morrer, assim de repente. E não terminar o serviço que você veio fazer aqui.
MORTE – Tá brincando!,ic!, Eu morrer?! Deixa de ser burro. Como é que eu , ic!, vou morrer, seu eu sou a
Morte?! (com o dedo em riste) Eu sou, ic!... eu sou... imortal!
RODOLFO – Ah, tá! E só agora tu vem me dizer isso! (suspira, abana a cabeça) Lá se foi a minha última
esperança!
MORTE – (levantando-se) Pois é melhor a gente ir. Já, ic!, passou da hora, e o diabo é um sujeito, ic!, muito
impaciente.
RODOLFO – (conformado) É, que jeito! Vamos nessa.
MORTE – Espera.
RODOLFO - Que foi?
MORTE - (bota a mão no púbis) Tô, ic!, meio apertada. Aqui tem, ic!, banheiro pra senhoras?
RODOLFO – (apontando) Primeira porta à esquerda.
MORTE - Então espera, ic!, aqui, que eu já volto.
A Morte sai.
RODOLFO – Essa não! Dessa vez eu me encrenquei pra valer. Tô indo pro Quinto dos Infernos. E não tem
jeito de me livrar.
Entra um policial, trazendo Filomena algemada e cabisbaixa, enquanto Rodolfo observa aturdido.
POLICIAL – Com licença. O senhor conhece esta mulher?
Boquiaberto, Rodolfo balança afirmativamente a cabeça.
POLICIAL – Seu nome é Rodolfo Souza Pinto?
10
Boquiaberto, Rodolfo balança afirmativamente a cabeça.
POLICIAL – Pois essa pilantra estelionatária tentou descontar um cheque seu de duzentos mil reais.
RODOLFO – Nossa, como o iogurte aumentou!
POLICIAL – Na verdade ela usou uma caneta que a tinta desaparece depois de um tempo, e com uma caneta
normal, escreveu essa quantia.
RODOLFO – Não me diga!
POLICIAL – Vai pegar três anos de cadeia. Mas precisamos de sua ajuda
RODOLFO – É, e pra quê?
POLICIAL – Apenas com o seu depoimento de que ela tentou lhe roubar é que podemos efetuar a prisão.
RODOLFO – Olha, seu policial, eu vou me ausentar por um bom tempo. E seria melhor se ela ficasse perto da
minha família.
POLICIAL – Como assim?
RODOLFO – Pensando bem, fui eu que bebi demais e acabei botando essa fortuna aí no cheque.
POLICIAL – Tem certeza?
RODOLFO – Absoluta.
POLICIAL – Bem, então eu vou lhe soltar. A senhora me desculpe. (tirando as algemas de Filomena) Foi um
grande mal-entendido.
FILOMENA – Ah, é?! E o constrangimento que eu passei? A humilhação?
RODOLFO - Não abuse da sorte Dona Filomena.
FILOMENA - Eu quero justiça.
RODOLFO - Dona Filomena.
FILOMENA - Pois eu deveria te denunciar por abuso de poder!
O policial, desconcertado, dá um sorriso sem graça.
FILOMENA - Agora some daqui.
POLICIAL – (saindo, preocupado) Me desculpe mesmo. (sai)
FILOMENA – Desculpa é o cacete. Se não fosse crime eu ia virar tua cara do avesso, para aprender a respeitar
as pessoas. Ainda mais uma senhora da minha idade. (olha pra Rodolfo, desconfiada) Por que fez isso? Lógico
que essa história da caneta foi mesmo um grande mal-entendido. Mas você, sacripanta, me ajudando?
RODOLFO – É que eu vou fazer uma viagem. E achei que seria melhor se a senhora ficasse fazendo
companhia pra Jurema e os meninos.
FILOMENA – O quê?! Então é isso, seu vagabundo imprestável?! Quer dizer que vai fazer turismo e eu viro
sua empregada?
RODOLFO – Não. Essa viagem é mesmo inevitável.
FILOMENA – (incrédula) Sei... E tu vai pra onde?
RODOLFO – Pro quinto.
FILOMENA – Eu sabia! Eu sabia! Seu cara-de-pau! Esse quinto só pode ser um hotel (mostra os dedos da mão)
cinco estrelas.
RODOLFO – Não! Lá faz muito calor.
FILOMENA - Então, além de ser um hotel cinco estrelas, ainda fica no Nordeste! Com aquelas praias
maravilhosas.
RODOLDO – A senhora não acredita em mim, não é? Mesmo depois que eu menti pra ajudar com essa história
(se dando conta) da caneta que a tinta desaparece! (olha no livro e aponta) Olha só! Sumiu!
FILOMENA – Sumiu o quê? E que livro é esse?
RODOLFO – Lembra da viagem? Esse é o Livro de Reservas. E o meu nome não tá mais aqui.
FILOMENA – Então, eu vou no teu lugar.
RODOLFO – Como é?!
FILOMENA – Isso é o mínimo que você pode fazer por mim. Depois de tantos anos sendo contrariada, eu bem
que mereço umas férias.
RODOLDO – A senhora tem certeza que quer ir pro Quinto?!
FILOMENA – Totalmente. E se você atrapalhar, eu conto pra Jurema que tá indo viajar pra se encontrar com a
tua amante.
RODOLFO – Mas eu não tenho nenhuma amante!
FILOMENA – Ora, se não tem, eu invento uma. Agora, onde é que eu assino?
RODOLDO – (apontando no livro) Aqui. Mas a senhora vai (tira a caneta do bolso) usar esta caneta?
11
FILOMENA - Claro que não. Pensa que todo mundo é trouxa como tu? (mostra outra caneta) Essa daqui não
apaga! Agora me deixa assinar.
Filomena assina.
FILOMENA – Quando é que eu pego o avião?
RODOLFO – Primeiro, a senhora vai falar com a agente de viagens que foi ao banheiro.
A Morte aparece cambaleando. Pára um pouco distante, de vez em quando, dando alguns soluços.
FILOMENA – Aquela ali?
RODOLFO – Ela mesma.
FILOMENA – Nossa! Mas é feia como a Morte!
RODOLFO – Ela se empolgou um pouquinho e acabou bebendo demais. E isso vai ser bom pra gente. Pode
pensar que a senhora sou eu, e aí a viagem não vai ter problema.
FILOMENA - Tá, e o que eu faço?
RODOLFO - Bota esse bigode aqui e usa o meu boné.
Rodolfo, que tem bigode fino, coloca um bigodão em Filomena e também o boné.
RODOLFO – Pronto, tá a minha cara. Agora quando ela vier, a senhora segue junto, pra pegar a passagem.
Rodolfo se afasta, pega uma revista no balcão e abre em frente à cara. A Morte vai até Filomena.
MORTE – E aí, tá preparado, ic!, mesmo pra viajar?
FILOMENA – (engrossando a voz) Eu não vejo a hora!
MORTE – Ah, que bom! É assim, ic!, que se fala. Então, ic!, vamos nessa.
A Morte sai com Filomena. Rodolfo olha por cima da revista, pelos cantos.
Vibra, como se comemorasse um gol.
RODOLFO – Que beleza! Enganei a Morte. E, olha só (se apalpando). Estou vivo, vivinho da Silva! Ainda
mandei minha sogra pro inferno. Deve ter muito genro com inveja de mim! Ah, como eu sou sortudo!
(ponderando) Mas é bom não abusar. Tanta sorte, assim, é só uma vez na vida. E por falar em vida. Já que eu
vou continuar vivendo, tenho de aproveitar essa chance pra mudar o meu destino. Vou deixar de ser idiota.
Machista nunca mais. Nunca é tarde pra mudar. De agora em diante, (pega um buquê de flores atrás do balcão)
vou tratar a Jurema com respeito e carinho. Como toda mulher merece. Quem sabe, um dia, a gente não fique
juntinho no Paraíso? Agora é melhor eu ir, porque eu sei que ela tá me esperando. (vai saindo).
FILOMENA – (de fora) Rodolfooo, seu desgraçado.
FIM
12