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Copyright © 2020 Atila Guilherme

Todos os direitos reservados.

Criado no Brasil.

Capa: KNS Design

Revisão: T.S Dantas

Diagramação digital: K.M Stephen Esta é uma obra de


ficção. Seu intuito é entreter as pessoas.

Nomes, personagens, lugares e acontecimentos

descritos
são

produtos da imaginação da autora.

Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos


reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.

São proibidos o armazenamento

e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de


quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.

Criado no Brasil. A violação dos direitos

autorais

crime

estabelecido na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do


Código Penal.

Prólogo
Parte 1

Ian- Dia 1

Lily- Semanas antes

Ian- Dia 3

Lily- Semanas antes

Ian- Dia 4

Lily- Semanas antes

Ian- Dia 5

Lily- Semanas antes

Ian- Dia 5

Lily- Semanas antes

Ian- Dia 8

Parte 2

Lily- Semanas antes

Ian- Dia 15

Lily- Semanas antes

Ian- Dia 17

Lily- Semanas antes

Ian- Dia 18

Lily- Semanas antes


Ian- Dia 18

Lily- Semanas antes

Ian- Dia 18

Lily- Duas semanas antes

Ian- Dia 18

Lily- Duas semanas antes

Ian- Dia 21

Lily- Uma semana antes

Ian- Dia 21

Lily- Uma semana antes

Ian- Dia 29

Parte Final

Lily- O dia

Ian- Dia 29

Lily- O dia

Ian- Dia 29

Lily- O dia

Ian- Dia 29

Lily- O dia

Ian- Dia 30
Lily- O dia

Ian- Dia 30

Lily- O dia

Ian- Dia 30

Lily- O dia

Ian- Dia 30

Lily- O dia

Ian- Dia 45

Ian- Dia 47

2 anos depois

Epílogo

Agradecimentos

Você que está lendo esse livro.

Obrigado pela oportunidade de conhecer

a história de Lily e Ian.


Estou sem fôlego, mas não posso parar de correr. Ouço seus
passos atrás de mim e sei que minha sobrevivência

depende

da

velocidade que minhas pernas podem alcançar. A chuva cai


forte e os fios pretos de meu cabelo grudam

na

minha

bochecha,

atrapalhando minha visão. O lado direito da minha barriga


dói e eu não aguento mais correr, mas não posso parar.
Tenho que continuar.

As ruas estão vazias. Acho que agora deve ser por volta de
meia-noite e fico desesperada. Bairro residencial é assim,
normalmente, nesse horário não tem ninguém nas ruas. Com
essa chuva, então.
Ninguém pode me ajudar. Preciso ir para algum lugar
movimentado, mas a avenida principal fica a quase dois
quilômetros daqui.

Não posso acreditar que isso esteja

acontecendo

comigo.

Enquanto

corro,

lembro

das

palavras de meu pai que me diziam que eu nunca deveria


confiar 100%

em alguém. Hoje, esse conselho se mostrou uma das


maiores verdades

da minha vida e sinto um desespero crescendo em meu


peito.

Ninguém sabe onde estou. Saí sem documentos, sem


celular, sem nada. De pijama, sem calcinha e sem sutiã por
baixo. Oras, eu achava

que

ia

dormir,

que
conseguiria ter uma noite tranquila.

Doce ilusão! O dia de hoje foi tudo, menos tranquilo. Depois


das coisas que descobri, obviamente que eu não conseguiria
pregar os olhos.

Mas, mesmo com todas as

descobertas, nunca imaginei que agora eu estaria assim:


lutando pela vida. Meu pensamento divaga e começo a
chorar. De raiva. De

desespero. Por que eu tenho que passar por isso? Nunca fiz


mal a ninguém. Por que estou sendo castigada dessa forma?

De repente, tropeço em algo que estava na calçada e caio


ouvindo sua gargalhada.

— CAIU, SUA VACA? — Escuto

sua

voz

descontrolada

aproximando-se rapidamente de mim.

Levanto-me depressa e continuo correndo, mas agora meus


joelhos também doem, esfolados pela queda. Viro em uma
rua que não conheço e percebo a besteira que fiz. Estou em
um beco sem saída, abandonado,

com

casas
deterioradas. Ninguém que possa me ajudar deve morar
nelas, no máximo terá algum morador de rua provavelmente
tão chapado que não conseguiria levantar nem um dedo
para me socorrer. A lua brilha em cima de minha cabeça
entre as nuvens carregadas de grossas gotas de chuva.
Estou ferrada.

— Parece que a princesinha está encurralada, não é mesmo?


— Sua voz me causa arrepios e percebo que está na entrada
do beco.

Vislumbro a faca em sua mão.

Não tenho para onde fugir.

— Não, não, por favor, não —

imploro, cheia de desespero.

Sua mão se levanta e a faca corta

minhas bochechas, uma marca em cada lado. Sinto o sangue


escorrer e grito de dor. A chuva está muito forte e, ao olhar
para baixo, vejo em meus pés o sangue que está pingando
da minha face.

— Por favor... eu te imploro —

choro. — Você prometeu que me protegeria... que sempre


estaria ao meu lado.

— Mas quem mandou você ser uma vadia? Você poderia ter
ficado na sua, Lilian, quietinha e calada.

Mas não. A perfeitinha Lily tinha que arruinar TUDO. Tinha


que me destruir, que acabar comigo.

— MAS EU NÃO FIZ NADA!


— grito desesperada.

— Isso é o que você diz, sua cadela. Não acredito em você.


E, mesmo que não tenha feito nada, é só uma questão de
tempo. Eu diria que você AINDA não fez nada! Eu te
conheço. Você vai fazer e eu não vou permitir isso. — Sua
saliva voa em meu rosto. — E você não acha realmente que
vai sair novinha em folha daqui, né?

O shortinho do meu pijama é cortado com a faca e depois cai


no chão. Estou exposta, nua da cintura para baixo. Tento
lutar com todas as minhas forças, mas não tenho chances.

— Por favor... — peço.

— É melhor você ficar quietinha,

Lily!

A faca vem em minha direção e coloco a mão na frente do


meu rosto, mas de nada adianta. Sua mão segura meu braço
com força, machucando-me. Em seguida sou invadida pela
pior dor que já senti na vida quando a lâmina atinge meus
dedos.

Minha mão arde e parece em chamas, mesmo com todas as


gotas de

chuva

que

molham

insistentemente.
Dois dos dedos da minha mão esquerda estão no chão. Eu
berro de dor, uma dor que nunca imaginei que pudesse
sentir. Caio sem forças e fico ajoelhada no solo áspero.

Tento pegar meus dedos, mas eles escorrem com a pequena


correnteza que se formou e caem dentro do bueiro à minha
esquerda.

Tento me levantar, mas sou esbofeteada. Caio deitada com o


rosto no asfalto. É o meu fim. Não vou sobreviver. E o mais
irônico de tudo isso é que eu realmente não fiz nada.

“Se eu tivesse feito, não estaria nessa situação”, penso.

Estou fraca. Sinto o sangue escorrer por onde deveriam estar


meus dedos indicador e médio. Sou virada de frente e meus
braços vão sendo amarrados pelo pano do shortinho que foi
rasgado. Estou

atada, humilhada e exposta.

— E agora, o que a Lily perfeitinha vai ganhar?

— Por favor... — Começo a dizer sem forças. — Eu já te disse


que eu não fiz nada. Eu não vou falar nada.

Eu... Eu te amo.

— Amor? VOCÊ me AMA? Lily,

se toca. — Sinto o ódio em sua voz enquanto continua


berrando: — Eu nunca te amei. Você só entrou na minha vida
para me destruir.

— Eu não entendo — digo

confusa. — Você disse que me amava... Por que está me


fazendo passar por isso?
— Falei que te amava por idiotice minha. Medo. Falta do que

fazer. Sei lá.

— Por favor, eu te imploro... —

Minha visão escurece aos poucos.

— Olha só, a cadelinha está implorando

por

uma

chance!

CADELA!

Cachorra!

VAGABUNDA!

Começo a me urinar toda. Estou desesperada, não consigo


segurar.

O medo do que vai acontecer domina todo o meu ser.

Sua risada doentia preenche meus ouvidos.

— Você está se mijando, SUA PORCA NOJENTA?

— Você está fora de si —

sussurro. — Está descontrol...

Recebo outro tapa, desta vez

mais forte. Em seguida, um soco estoura meus lábios,


fazendo um dente meu voar longe.

CADELA!

CACHORRA!

CADELA.

E é aí que sinto algo estranho em mim. Não tenho coragem


de olhar.

Não consigo levantar meu pescoço.

Estou quebrada, dolorida. Só sei que alguma coisa está


sendo esfregada em mim, na minha intimidade. Algo...
melado.

— Sabe o que estou fazendo, Lily? — Sua voz me assusta. —

Sabe o quê, meu amor? É assim que você gosta de ser


chamada, não é?

É cocô de cachorro! Hahaha! Cocô de cachorro!

Tento me levantar, mas levo outro soco. Desisto. Decido que


quero morrer. Não quero mais viver. Esse mundo é cruel. Por
que eu fui escolhida para passar por isso? Só quero que tudo
acabe e que eu tenha paz. Os fantasmas das provações do
que tive que passar no dia de hoje me assombram e lembro
de uma frase muito famosa que ouvi muitas vezes no
decorrer da minha vida: “Cada um carrega a cruz que pode
suportar”. Pura mentira. Eu não posso, não consigo.

A cruz que me foi dada é pesada demais e eu imploro para


que toda essa dor e sofrimento terminem logo.

— Me mate — imploro baixinho.


— Acaba comigo. Me mata!

— Matar? Você acha que eu vou viver com o peso na


consciência de ter te matado? HAHAHAHA,

ESTOU POUCO ME FODENDO!

O cheiro do seu hálito fétido está bem perto de mim, mas


meus olhos permanecem fechados. Não consigo abri-los. De
repente, sinto um beijo em minha bochecha. Sua língua
lambe minhas lágrimas e as feridas que me fez, e mais uma
vez a vontade de vomitar aparece com forças.

— Você já sabe o que vou fazer, não é mesmo?

— Não... — choro. — Por

favor... não faz isso, não...

A ponta metálica de alguma coisa está na minha vagina. Eu


quero desmaiar, quero sair de mim, não quero passar por
isso, não quero!

— EU QUERO MORRER! —

grito. — EU NÃO QUERO ISSO, NÃO. POR FAVOR, NÃO FAÇA

ISSO. POR FAVOR, POR FAVOR.

— Você já está bem lubrificada, meu amor... DE MERDA!

Sinto seu dedo passando na minha vagina melada de bosta


de cachorro. Em seguida, o mesmo dedo é colocado sobre
meu nariz para que eu possa sentir o cheiro, e as náuseas
ressurgem com mais forças.

— Não se preocupe, Lily. Vai ser... RÁPIDO.


A faca entra em mim e me rasga por inteiro. Tudo! De uma
vez! Eu grito e sinto minha alma saindo do meu corpo ao
mesmo tempo que perco minha consciência, torcendo para
que a morte finalmente tenha vindo me buscar.

Respiro fundo e visto o meu melhor terno. Preto. Combina


com meu cabelo.

Hoje é um dia especial e dou muito valor a tudo o que está


acontecendo. Um recomeço. Uma chance de dar a volta por
cima e vencer na vida.

Olho para o espelho e gosto do que vejo. Exceto por alguns


fios levantados,
meu

cabelo

está

perfeito. Pego um pouco de gel e

penteio novamente tudo para trás.

Pronto! Cabelo impecável.

Digito uma mensagem para o celular de minha mãe.

Guardo o celular e abro a porta do meu Celta Preto. Olho


para o espelho retrovisor só para me certificar de que esteja
tudo alinhado.

Cabelo para trás? OK.

Barba desenhada? OK.

Lente verde nos olhos? OK.

Dou a partida no carro e,

enquanto dirijo, penso no quanto sou sortudo em ter


conseguido emprego

na

melhor
clínica

psiquiátrica da cidade. Depois do meu último trabalho, achei


que eu poderia desistir de vez da minha carreira, mas aí
recebi a ligação do Júlio.

Júlio

estudou

comigo

na

faculdade de Psicologia. Enquanto eu me especializei


efetivamente em ser um psicólogo, Júlio decidiu que gostava
mais da parte de gestão administrativa. Ele sempre foi muito
esforçado e, após alguns cursos, conseguiu uma vaga como
diretor da Clínica Geral de Saúde Mental da minha cidade.
Ainda que

tenhamos tomado rumos diferentes, Júlio e eu sempre


mantivemos contato e até uma certa amizade, mesmo
depois do que aconteceu no ano passado.

Quando

recebi

sua

ligação

dizendo que um de seus psicólogos havia tirado um ano


sabático para cuidar da família e perguntando se eu gostaria
de assumir a vaga por esse período, obviamente, aceitei.
Precisava criar uma nova reputação e, com certeza, esse
emprego me ajudaria.

Estaciono o carro na garagem da clínica e em seguida me


dirijo à entrada principal, observando o quanto o prédio é
bonito. Um muro

altíssimo cerca a construção, na certa para impedir que


algum paciente fuja, e após o portão, também imenso, tem
um jardim muito bem cuidado com algumas pessoas
sentadas tomando sol.

Diversos pacientes são observados por alguns cuidadores e


sinto uma leveza na expressão deles, o que traduzo como
felicidade.

A Clínica Geral de Saúde Mental é uma instituição muito


conceituada aqui na cidade. Nela, vários pacientes

com

problemas

psicológicos e psiquiátricos são internados e passam por um


tratamento intensivo para que possam voltar a ter uma
rotina de

vida saudável. O objetivo, claro, é que todos possam um dia


sair da clínica e voltar às suas vidas com seus familiares.
Mas, infelizmente, sabemos que alguns dos pacientes nunca
conseguirão sair daqui.

Respiro fundo, pisando para dentro do local. Logo na


recepção, a atendente pede meu documento e me entrega
um crachá. Após receber

as
boas-vindas,

sou

encaminhado para a sala de Júlio, a qual encontro sem


dificuldade, pois fica próxima da recepção. Bato na porta
fechada e entro na sala em seguida.

— Que alegria te ver aqui, Ian.

— Eu digo o mesmo, Júlio.

Aliás, chefe, né?

— Sem formalidades, Ian.

— Imagine. Sou muito grato por essa oportunidade que está


me dando, chefe. Estava difícil de conseguir um emprego. —
Engulo em seco. Não quero tocar naquele assunto. — Bom,
onde é a minha sala?

Ele

me

passa

todas

as

coordenadas acerca das minhas atribuições e diz que ficarei


com os poucos

pacientes

do

médico
anterior, usando sua sala. Pego os prontuários e, em
seguida, sou apresentado ao meu novo ambiente de
trabalho. Júlio fala que tem alguns compromissos e que
depois

conversamos um pouco mais.

Agradeço e, quando ele sai, sento à minha nova mesa. Abro


um largo sorriso. Tudo deu certo. Estou empregado. Terei
uma chance de redenção e de mostrar o grande profissional
que eu sei que sou.

Olho a pilha de prontuários que está na minha frente e pego


o do meu próximo paciente. Nem tenho tempo de analisar
direito e escuto uma batida na porta.

— Pode entrar — digo.

Uma moça de cabelos pretos, bagunçados e ressecados abre


a porta devagar, como se estivesse com medo de
incomodar. Ela olha em meus olhos, demonstrando estar

amedrontada por estar aqui, e diz:

— En-entrar? Hora... agora!

Ela não consegue falar direito. É

uma garota bem nova, deve ter no máximo dezoito anos. É a


minha primeira paciente. Checo o relógio e vejo que ela está
dez minutos adiantada. Minha primeira sessão seria às nove.
Mas, tudo bem.

— Claro, pode entrar!

Ela fecha a porta delicadamente e, ao se virar, observo


melhor suas feições. Vejo que a jovem possui cicatrizes em
suas bochechas e que anda arrastando os pés. Uma cicatriz
horizontal na bochecha direita e uma levemente inclinada na
vertical na esquerda.

Pego seu prontuário e me arrepio.

Não pode ser.

Esse nome.

— Seu nome é Lilian, certo? —

questiono, recompondo-me.

— Lily... Lily... Lily...

— Certo. Só um instantinho, Lily.

Pego seu prontuário e saio rapidamente

da

sala.

Preciso

respirar. Lilian é o nome dela. É

muita coincidência. Tenho que manter a calma.

Inspiro.

Expiro.

Inspiro

novamente, começando a ficar mais tranquilo.

Para atender Lily, preciso saber suas informações. Acho


antiético ler o diagnóstico de qualquer
paciente na sua frente, afinal, posso demonstrar alguma
emoção que desperte crise na pessoa que está consultando-
se comigo.

Vejo que Lilian, ou Lily, como parece gostar de ser chamada,


foi vítima de um abuso violento. A moça sofreu demais nas
mãos de quem quer que tenha feito isso com ela. O culpado
pelo crime não foi encontrado. Ela foi achada quase morta
em um beco por um morador de rua. Toda a região íntima da
menina

estava

lacerada

e,

inclusive, com sinais de infecção, mas hoje, após algumas


cirurgias, está melhor. A garota perdera muito sangue

teve

dois

dedos

decepados.

— Puta que pariu — sussurro para mim mesmo. — Você


sofreu, Lily.

A garota ficou muitos dias internada em um hospital e depois


foi direcionada para cá. Olho a foto que aparece em sua
ficha médica e vejo que em nada se parece com a moça que
está na minha sala. Na foto, Lily esbanjava alegria com seu
sorriso angelical. Os cabelos pretos brilhavam em contraste
com sua pele branca. A pessoa que está na minha sala tem
um olhar que passa a sensação de que está morta por
dentro. Ela parece ser cheia de tristeza e medo.

O prontuário diz também que Lily não consegue expressar


muitas palavras. Decorrência de seu trauma. Sua capacidade
de fala retrocedeu e ela conversa como se fosse uma criança
de três anos.

Nunca vi um caso desses, mas já estudei sobre traumas


profundos e sei que a reação do cérebro a situações

delicadas

pode

ser

inimaginável. Algumas pessoas têm surtos violentos, outras


se fecham em uma concha que ninguém consegue penetrar.

Faço uma anotação mental sobre a limitação da garota e


decido voltar para a sala.

Abro a porta e, ao olhar em

direção à minha mesa, passo mal com o que vejo. Lily está
desacordada no chão e, quando passo a vista por suas mãos,
vejo que seus pulsos estão cortados. O

cortador de papel sobre minha mesa está ensanguentado.


Seguro no batente da porta e me sinto fraco. Lily tentou se
matar. E acho que conseguiu.
Estão todos dormindo. Respiro aliviada. Meu pai ficaria louco
se me visse chegando a essa hora da noite em casa. Subo
pé ante pé as escadas que dão para o meu quarto, entro e
relaxo.

Sorrio e me jogo na cama. Minha noite foi perfeita e não


consigo parar de lembrar do quanto Kevin foi carinhoso
comigo.

Preciso contar para alguém sobre hoje, então pego meu


celular e

envio uma mensagem para Jéssica:


Respiro

fundo
antes

de

responder. Não estou assada e muito menos gozei. Pelo


menos, acho que não. Não senti aquela magia toda da qual a
Jéssica fala que sente quando transa. Mas também

não

foi

ruim.

Pelo

contrário,

foi

ótimo.

Porém,

preciso confessar que gostei mais do erotismo e tesão do


que do ato sexual em si. Doeu muito no começo, mas Kevin
foi super carinhoso enquanto colocava e me

beijou bastante. Enquanto me penetrava, ele disse que eu


era bem apertada. Eu amava Kevin e estava com ele ali,
entrando em mim. Isso era o que importava.

Saio do meu transe e volto para a realidade. Jéssica é a


minha melhor amiga, mas ela não precisa saber que Kevin só
deu 5 bombadas e gozou.

Ele
deve

ter

ficado

emocionado,

ansioso,

sei

lá.

Decido

continuar

mentindo

respondo a mensagem:
Estou tão feliz que nem percebo que não estou mais sozinha.
Levo um susto ao notar meu pai parado na porta do quarto,
olhando-me carrancudo.

— Isso são horas de chegar, Lily?

— Ele pergunta sem sair do lugar.

— Pai! Você me assustou.

Custava dar uma batidinha na porta para avisar que estava


aí?

— E agora eu preciso de
permissão para falar com a minha própria filha?

— Claro, senhor Laerte — digo sarcasticamente. — Já pensou


se eu estivesse sem roupa?

— Eu ouvi você chegando, Lily.

Sei que acabou de entrar em casa.

“Droga, ele me pegou no pulo”, penso.

— Então, a mocinha vai me contar onde estava?

— Eu... estava com a Jéssica —

minto.

Hoje estou uma mentirosa de mão cheia.

Hum...

entendo.

Fico

preocupado com você até tarde na rua, filha. Melhor você se


trocar e dormir. Já passou da meia-noite.

— Está bem, pai. Não vai

acontecer de novo!

Meu pai entra no meu quarto, para à minha frente e segura


meu rosto com as duas mãos.

— Eu te amo, minha filha! Mas não minta para mim.


Está doendo, ele segura com firmeza demais. Sustento o
olhar.

Preciso manter essa mentira, afinal, minha família é muito


protetora, principalmente meu pai. Ainda não está na hora
de nenhum deles saber sobre Kevin. Na verdade, o único que
sabe sobre meu namoro, é meu irmão, afinal ele e Kevin
jogam no mesmo time de futebol.

Pai,

você

está

me

machucando! — digo.

— Me perdoa, querida. Durma bem.

Meu pai beija minha bochecha lentamente.

Ele demora e seu beijo é molhado.

Sinto arrepios, mas penso que ele deve estar sonolento,


afinal, já é tarde.

— Boa noite, pai.

Ele sai do meu quarto e

instintivamente

limpo

minha
bochecha com a coberta. Estou inquieta e meu coração está
batendo acelerado. Esses carinhos excessivos dele me
incomodam.

O que eu sei é que a atitude dele não vai atrapalhar minha


felicidade

diante da noite maravilhosa que tive.

Tiro a roupa, coloco o pijama e mando uma mensagem para


Kevin antes de dormir:

Respiro fundo e aperto o celular junto ao peito. Mais uma


vez, falei que

amava

ele

não

correspondeu na resposta.
Lily está na ala hospitalar da clínica. Temos uma área
específica para casos leves. Após a garota ser tratada em
um hospital por causa dos cortes nos pulsos, ela foi
transferida de volta para cá e, agora, está sedada.

Um segurança a vigia vinte e quatro horas por dia. Seus


pulsos estão enfaixados e ela dorme como um anjo. Quem
vê essa garota

dormindo tão tranquilamente, nem imagina a provação que


ela teve que passar.

E eu estou aqui: no quarto, observando seu sono profundo.


Sou totalmente responsável pelo que aconteceu e não quero
sair de seu lado.

A poltrona em que estou sentado foi colocada próximo da


cama de Lily e já estou aqui há tanto tempo que parece que
ela já tem o formato do meu corpo. Olho para os braços da
menina. Por sorte, Lily foi resgatada a tempo e conseguimos
salvá-la do pior.

Obviamente, levei uma bronca de Júlio assim que ele soube


do

ocorrido.
— Como você pôde deixá-la sozinha, Ian? — Júlio berrava. —

Essa menina está em um estado profundo de depressão. E


você a largou na sala com um objeto perigoso.

— Foi uma falha minha, chefe.

Eu saí rapidamente para ler o prontuário dela e não me


toquei que havia um cortador de papel na sala.

— Se você não está preparado para atender um paciente,


peça para que aguarde do lado de fora.

Temos seguranças nos corredores que estão prontos para


impedir situações

como

essa.

Agora,

dentro de seu consultório, é só você e a paciente. Você é


responsável por quem está ali!

Você e mais ninguém.

— Eu sei, chefe. Peço desculpas pelo ocorrido.

— Ian... não me faça achar que foi um erro te contratar.

Levantei meus olhos e o encarei.

— Erro? — questionei surpreso.

— Sim. — Júlio abaixou o tom de voz, decerto ao perceber


que não deveria ter tocado naquele assunto. — Ainda mais
depois do que aconteceu com aquele seu ex-paciente.
Robson, não?

Fiquei quieto.

— Ian... você está realmente

pronto para voltar ao trabalho?

— Chefe, eu estou mais do que pronto. O que aconteceu


com o Robson foi um erro e não voltará a acontecer. Agora,
se o senhor não se sente à vontade com meu trabalho,

não

precisa

fazer

rodeios para me dispensar —

desafiei.

— Eu confio em você, Ian. Quero confiar. Mas espero que


incidentes como esse não se repitam. Minha corda também
está no pescoço.

Olho para Lily que continua dormindo. Sinto-me assustado


em pensar por tudo o quanto essa garota

passou.

Como

alguém

poderia ser tão cruel a ponto de


violentá-la com uma faca afiada e passar dejetos de
cachorro em sua intimidade? A menina certamente carregará
esse trauma pelo resto de sua vida e, mesmo que recupere
100% de sua capacidade mental, o que duvido muito que
aconteça, dificilmente se sentirá totalmente segura para
relacionar-se com alguém.

Uma garota entra de repente no quarto. Ela é muito bonita e


esbanja sensualidade, de uma forma que chega a ser vulgar.

— Ah, Lily! — diz a intrusa com lágrimas em seus olhos cor


de amêndoa ao ver a outra sedada.

Ela se joga na cama e abraça

Lily, que continua dormindo como se nada estivesse


acontecendo.

Lágrimas rolam pelo seu rosto enquanto ela diz lamentar


que a amiga tenha tentado tirar a própria vida e que não
seria nada sem ela.

Os

cabelos

castanhos

ondulados da garota cobrem todo o rosto de Lily e,


momentaneamente, fico imaginando se a minha paciente
não teria dificuldade em respirar com aquele amontoado de
fios em seu nariz.

Analiso a visitante. Seu choro é muito desesperado e penso


que é o tipo de garota que gosta de chamar a atenção. Ela
com certeza viu que eu estava ali no quarto, sentado ao
lado de Lily, e mesmo assim me ignorou

completamente.

Um

showzinho. Sim. É isso o que ela está fazendo. Essa menina


gosta de ser o centro de tudo.

Pigarreio e digo:

— Olá. Prazer, sou o novo psicólogo de Lily. Você é...?

— Eu? — A jovem olha para mim como se só agora tivesse


percebido minha presença. — Sou Jéssica, a MELHOR amiga
da Lily.

Qual seu nome?

— Prazer, Jéssica. Sou Ian. —

Estendo a mão em sua direção.

A garota sai de perto de Lily e pega em minha mão. Em


seguida, digo:

— Imagino que seja muito triste para você ver sua amiga
nessa situação.

— É péssimo! Ainda fico

arrepiada só de lembrar tudo que ela teve que passar. Lily


sempre foi tão boa, tão amável. Eu não imagino... — Ela seca
uma lágrima.

— Não imagino como alguém poderia fazer isso com ela.


Sinto uma certa hesitação na voz de Jéssica. Ela está
mentindo em alguma coisa, mas continuo a conversa:

— Olha, Jéssica, não sou nenhum detetive,

mas,

analisando

circunstância toda, certamente a pessoa que fez isso


detestava sua

amiga com todas as forças ou então queria silenciá-la de


algum modo.

Peraí.

Jéssica

milagrosamente para de chorar. —

Você acha que foi alguém próximo da Lily que fez isso?

— Claro! Duvido muito que uma pessoa que não a


conhecesse a torturaria dessa forma. As vítimas femininas
de abuso e violência sexual que sofrem nas mãos de
desconhecidos são torturadas com muita crueldade, mas o
caso de Lily é bem peculiar.

— Como assim? — Jéssica

pergunta desconfiada.
— Analise comigo: essa menina foi torturada e espancada,
certo?

Só que os exames preliminares indicam que Lily correu


muito antes de ser efetivamente espancada e torturada.

Inclusive,

ela

caiu

durante sua corrida. Seus joelhos estavam ralados.

— Oras! E o que isso tem a ver?

— Jéssica diz nervosa. — Ela pode ter corrido do bandido que


fez isso com ela... Ela pode... Ah, sei lá!

— Os exames dizem que ela correu cerca de três


quilômetros.

— O que isso quer dizer? —

Percebo que a garota se retrai.

— A distância do local de onde Lily foi encontrada para a


casa dela é

de

aproximadamente

três

quilômetros.

Lily
estava

sem

documentos. Sem celular. Sem nada. Se Lily tivesse sido


atacada no meio da rua por um marginal qualquer, ela não
estaria de pijama e muito menos sem documentos.

Jéssica me fita abismada. Seus olhos estão arregalados e


atentos a todas as palavras que profiro, então continuo:

— Na minha opinião, é óbvio o que aconteceu. Tudo leva a


crer que a pessoa que fez isso com Lily estava na casa dela,
junto com ela, e que Lily fugiu correndo dessa pessoa,
deixando tudo para trás.

A amiga de Lily está tão branca que acho que vai desmaiar.
Porém,

rapidamente ela pega sua bolsa e diz:

— Eu... eu preciso ir.

— Você está bem, Jéssica?

— Estou um pouco tonta... deve ser por causa de algo que


comi. Eu preciso ir mesmo.

— Te acompanho até a porta da clínica.

— Não precisa, não precisa. É...

Tchau, Ian. Foi ótimo te conhecer.

A garota sai depressa, deixando Lily e eu sozinhos. Sorrio.


Ela sabe de alguma coisa e ficou assustada com nossa
conversa. Mas o quê?
Escuto um barulho de celular e vejo que Jéssica esqueceu o
aparelho na cama de Lily. Na certa,

quando a abraçou, ele escorregou do bolso de sua jaqueta e


ela nem percebeu.

O telefone está bloqueado, mas consigo ver uma notificação


na tela de bloqueio. É uma mensagem do WhatsApp, cujo
remetente é um tal de Kevin.

Reconheço esse nome, eu o vi nos documentos de Lily. Torno


a checar as anotações no prontuário dela até encontrá-lo. Aí
está! Na ficha está escrito que Kevin é namorado de Lily.

Pego novamente o celular de Jéssica e vejo a última


notificação.

A mensagem diz:
Acordo e pego meu celular. Há várias

mensagens

de

Kevin

desejando-me bom dia, falando que está com saudades e


que quer ficar sozinho comigo de novo. Meu coração acelera
e sorrio igual a uma boba.

Há também uma mensagem de Jéssica

pedindo

que

nos

encontremos mais tarde para que eu possa lhe contar todos


os detalhes de minha noite com Kevin.

Respondo, sugerindo que podemos nos encontrar na casa de


Jaime, nosso amigo. Assim, posso contar os detalhes para os
dois de uma só vez. Jéssica concorda e marcamos às 15
horas.

Levanto-me da cama e pego a foto que está na mesinha de


cabeceira. Olho o retrato com carinho e nele estamos nós
três quando éramos crianças: Jéssica, Jaime e eu.
Inseparáveis desde a infância.

Jéssica estava com aquele olhar de superioridade que nunca


sai de seu rosto. Sorrio. Minha amiga sempre foi assim,
chamativa.

Jéssica
sabe

se

impor

dificilmente passa despercebida, onde quer que ela vá.


Nunca me importei com isso. Sou o tipo de garota que
detesta chamar a atenção e encontro um equilíbrio em
minha relação com ela. Eu fico na minha e Jéssica pega os
holofotes todos para si.

Em seguida, vejo Jaime no canto do retrato. Desde pequeno,


ele é extravagante. Na foto, suas roupas de marca chamam
mais atenção do que a beleza de Jéssica, e olha que para
isso precisa de muito. Os dentes dele são tão brancos que
reluzem na fotografia e seu cabelo preto cortado bem
curtinho o deixava parecendo uma versão

infantil do Will Smith. Meu amigo riquinho!

Abraço a foto e agradeço por ter amigos tão sensacionais ao


meu lado. Nossa amizade sobreviveu aos anos e sinto que
está muito mais forte, mesmo com cada um de nós trilhando
caminhos cada vez mais distintos. Isso nunca importou para
a gente. Podíamos ficar dias sem nos vermos, mas, quando
nos encontrávamos, parecia que nunca havíamos nos
separado.

Deixo a foto em cima da mesinha de cabeceira e decido ir


até a cozinha para tomar o café da manhã. Desço as
escadas e vejo que minha mãe e Manu já estão à

mesa. Minha mãe está com o semblante cansado ao qual já


estou acostumada e Manu está impecável como sempre.
Meu irmão, Manuel, é dois anos mais velho do que eu e é
muito vaidoso. Acho que seu pior medo é que alguém o veja
desalinhado ou mal apresentável.

— Bom dia, família! — digo ao me sentar à mesa.

— A Bela Adormecida decidiu acordar,

é?

diz

Manu

provocando-me.

— Pois é. Foi difícil dormir com o barulho do seu ronco no


quarto ao lado!

— Ah! Não foram mais altos que

os seus peidos.

Manu pega um pouco de geleia e passa no meu nariz. Bufo e


taco um pouco de sal nele.

— MANUEL! LILIAN! Chega

dessa bagunça! — diz minha mãe.

Sorrimos levadamente um para o outro e a obedecemos.


Olho para ela e vejo que está com umas olheiras bem
profundas. Fico preocupada.

Está
tudo

bem,

dona

Theodora? — digo provocando-a.

Desde pequena, sei que para chamar a atenção de meus


pais, basta chamá-los pelos seus nomes, Theodora e Laerte,
em vez de mãe e pai.

— Por que a pergunta? — Minha mãe

devolve,

demonstrando

nervosismo.

— Nada, nada. A senhora parece cansada.

Minha mãe me observa e desvia o olhar. Fico sem resposta.


Ela se levanta da mesa, vai até a pia e começa a lavar a
louça. Manu e eu nos entreolhamos e damos de ombro. Após
tomar o café da manhã, vamos até a varanda para jogar
conversa fora.

— Parece que mamãe dormiu de calça jeans — diz meu


irmão.

— Manu! Isso é jeito de falar?

— Ué, mas você não reparou?

Esses últimos dias, meses, sei lá,


ela está estressadíssima. Papai não deve estar dando no
couro.

— Ahhh, seu nojento!

Dou risada de seu comentário mesmo assim.

— E o que você vai fazer hoje?

— pergunta ele, olhando-se na janela e ajustando os fios de


seu cabelo castanho.

— Vou na casa do Jaime. Jéssica vai comigo.

— O veadinho? — Manu

pergunta dando risada.

— MANUEL, já falei para você não falar assim dele. É ridículo


esse seu preconceito.

Uma mensagem chega no celular do meu irmão e ele olha


para a tela,

escondendo-a bem rápido de mim.

— Droga... — sussurra.

— Está tudo bem? — pergunto.

— Sim, sim. Só adiantaram o treino de hoje e eu não estava


esperando. Vou ter que ir correndo para o campo.

Manu beija minha testa e vai para a rua. Amo meu irmão,
mas ultimamente sinto que ele está cheio de segredinhos
comigo.
Desde que Manu foi selecionado para jogar no time da
cidade, sinto que nos distanciamos totalmente.

Ele sempre está ocupado. Quando não está com alguma


garota, está jogando futebol. Por outro lado, não posso
reclamar. Foi graças ao

trabalho dele que conheci Kevin.

Os dois jogam no mesmo time e são jogadores promissores.


Segundo ouço falar, ambos possuem chances de

crescimento

de

serem

contratados por um time grande.

Pensando

bem,

não

posso

reclamar do afastamento do meu irmão; também não conto


muito sobre minha vida a ele. É triste que isso tenha
acontecido, porque antes éramos tão amigos e agora nem
sei se podemos contar um com o outro.

Eu me ergo para entrar em casa a fim de me arrumar, mas,


antes disso, meu instinto me faz olhar para cima, rumo à
janela do quarto dos meus pais. Meu pai está ali a
me observar, a me encarar, com o semblante estranho. Uma
cara de...

Será que essa expressão é de desejo?

Chego na clínica e vou direto para

meu

consultório.

Nele,

encontro

um

recado

da

recepcionista em cima da mesa avisando que Jéssica veio


buscar o celular que deixei aos seus cuidados antes de ir
embora e que agradece à minha boa ação. Tenho que
perguntar à Lily sobre Jéssica assim que ela estiver
consciente.
Leio mais uma vez todo o prontuário

da

garota

fico

intrigado. Não é minha função ser detetive ou policial, mas


fico curioso para saber quem faria isso com ela. Talvez seja o
meu subconsciente tentando agir de modo diferente da
forma com a qual agi no caso do meu ex-paciente, Robson.
Fico arrepiado.

Mudo rapidamente a minha linha de pensamento.

Nada tira de minha cabeça que não foi um criminoso


qualquer que atacou a menina. A forma com que tudo foi
feito, o ódio, o fato de a garota estar sem documentos e sem
celular no meio da noite, todos esses

pontos

reforçam

desconfiança

que

insiste

em

dominar meus pensamentos.


Observo com atenção o histórico feito pelo psicólogo
anterior. Ele fez um resumo de todos os que possuem

algum

grau

de

envolvimento com Lily, mas noto que todas as suas


percepções são baseadas em momentos posteriores ao
crime. Preciso saber do antes.

Tenho que entender a mente de cada uma das pessoas que


conhecem Lily e saber quem teria motivos para cometer um
crime tão cruel contra essa garota.

Além disso, longe de mim

criticar meus companheiros de trabalho, mas lendo o


prontuário concluo que Lily foi negligenciada

pelo psicólogo anterior. Talvez, por isso,

ela

ainda

não

tenha

apresentado qualquer avanço e continue agindo como um


gatinho medroso.

Guardo minhas anotações dentro da gaveta e decido ver


como Lily está. Preciso saber se ela já acordou e,
principalmente, se está melhor.
Chego no quarto dela e, ao entrar, deparo-me com um rapaz
sentado ao seu lado. Lily ainda dorme, mas seu

acompanhante

está

bem

acordado, olhando-a fixamente e com uma expressão difícil


de ser decifrada. Eu o observo por alguns instantes. Apesar
de transmitir

sofrimento no semblante, vejo que o garoto faz questão de


manter a aparência em dia. Ele está bem-vestido,

bem

penteado

obviamente com o corpo em forma.

Dou um passo à frente e ele me nota.

— Ah, olá, Doutor — diz ele desanimado.

— Prazer. Sou Ian, psicólogo da Lily. Ela acordou? — pergunto


da porta do quarto.

— Até o momento, não. Estou aqui fazendo companhia para


ela.

— Que bom. Ela precisa de bastante amor nesse momento.



Faço uma pausa para que o rapaz absorva minhas palavras.
— Qual

seu nome?

— Manuel. Mas pode me chamar

de Manu. — O garoto se levanta e aperta minha mão.

Esse é o irmão de Lily.

Curiosamente,

histórico

do

psicólogo anterior não dizia nada muito relevante sobre ele.


Manuel está com os olhos vermelhos; parece que chorou.

— Sinto muito por tudo o que a Lily passou — digo


transmitindo-lhe meus mais profundos pesares.

— Eu também, Doutor! Minha irmã sempre foi uma pessoa


muito boa. Dói muito imaginar tudo o que ela sofreu.

— Você era próximo de sua

irmã?

— Ah, era sim. Nos últimos tempos estávamos um pouco


mais afastados, mas coisas da vida, sabe?

Faculdade,

namoradas,
trabalho. Eu sou jogador titular do time de futebol da cidade.
Treino bastante

durante

semana.

Confesso que negligenciei um pouco

Lily.

Talvez...

se

estivéssemos juntos no dia em que fizeram isso com ela...

Manuel não consegue concluir a frase e começa a chorar. Eu


o observo com muita atenção.

O rapaz está abalado e parece sincero. Mas, ainda assim,


acho estranho. Já se passaram mais de

dois meses desde o atentado que fizera Lily ser internada


nesta clínica e o garoto age como se tudo houvesse
acontecido ontem.

— Como estão as investigações sobre o caso dela, Manu? —

questiono, curioso para saber qual será sua reação.

— Ah, você sabe. Declararam que

provavelmente
foi

um

estuprador ou algo do tipo. Um qualquer. Nem vão dar muita


bola para o que aconteceu com ela. Vai ser mais um
daqueles casos que serão arquivados sem conclusão.

O rapaz quer me dizer alguma coisa. O tom de voz de


deboche ao falar da investigação do caso de

Lily diz algo mais.

— E como você se sente com isso?

Com

polícia,

possivelmente, arquivando o caso?

— Ah, vontade de mandar todos irem se foder.

— Por quê?

— Olha, Doutor... não precisa ser nenhum gênio para ver que
essa história está muito estranha.

— O que você acha que está estranho, Manu?

— Ora... que estuprador é esse que não deixa vestígio


nenhum de DNA na minha irmã?

— Como assim?

— Doutor, analisaram a região íntima da minha irmã. Além


da
vagina dela ter sido toda rasgada pela faca que foi utilizada,
só encontraram mais um vestígio nela: bosta de cachorro.
Ou seja, não há nenhum vestígio humano. Quem fez isso não
encostou nem um dedo na região sexual dela. Que
estuprador faria isso? Violentar a vítima sem sentir “prazer”
algum? Se é que pode ser chamado de prazer o que um ser
que faz isso sente...

— É difícil, Manu, mas há alguns seres humanos que sentem


prazer na dor, em ver o outro sofrer e não necessariamente
no ato sexual em si.

— Pode até ser, Doutor, mas não faz sentido minha irmã
estar no

meio de uma tempestade forte sem sequer um guarda-


chuva. — Manu abaixa o tom de voz para que ninguém ouça.
Estranho, pois só tem eu aqui, e Lily, claro, que continua
dormindo. — Se ela, como diz a polícia, estivesse na rua no
meio da madrugada quando cruzou com o caminho de um
criminoso,

duvido

muito

que

estaria

sem

um

guarda-chuva

sequer. Além disso, Lily sempre foi muito precavida, ela não
sairia sem um documento e sem o celular.
Tudo isso ficou em casa.

Manu olha com pena para a menina que dorme o sono dos
anjos e diz:

— A polícia dessa cidade é muito

incompetente.

Eles

funcionam na base do dinheiro.

Não entendo por que meu pai não paga

logo

delegado

para

priorizar o caso da Lily. Tudo nessa merda de país, e ainda


mais nessa cidade minúscula, funciona na base da
corrupção. Sabe o que eles alegaram, Doutor?

— Não, Manu. O quê?

— Na cidade vizinha estava tendo um festival no dia em que


Lily foi atacada, um arraial dos grandes. Os policiais
alegaram que quem fez isso estava de passagem por aqui e
Lily foi azarada de cruzar o caminho da pessoa. É

claro que só deram essa desculpa esfarrapada para acalmar


o povo da cidade que estava em pânico por ter um maníaco
à solta por aí.

Confirmo com a cabeça, saio da porta do quarto e me sento


na poltrona que estive ontem durante o dia inteiro.

— Quem fez isso a conhecia Doutor. — Manu continua. — E


eu tenho certeza de que quem fez isso estava com ela em
casa no dia do crime. Minha irmã fugiu da pessoa que fez
isso, Doutor. Minha irmã sabe quem fez isso com ela!

— E você, Manu? Você sabe quem fez isso? Ou desconfia?


Você também estava em casa no dia do

crime?

Manu se levanta bruscamente e me olha aterrorizado.

— Eu... eu... eu não estava. Eu estava... na casa de uma


garota.

— Entendo!

Vou até o lado de Lily e tiro um dos fios de cabelo da frente


de seu rosto. Olho as marcas na bochecha dela e uma dor se
aprofunda em meu coração ao saber que alguém pôde ser
tão cruel com essa menina.

Olho para o lado e vejo que Manu desapareceu. Ele foi


embora e nem se despediu. Saiu corrido e fugido. Pego o
meu celular e anoto tudo o que conversamos hoje para

que possa escrever no histórico de Lily quando voltar para o


meu consultório.

Manu também sabe de alguma coisa. E, assim como Jéssica,


está escondendo.
Jéssica e eu chegamos no

condomínio onde se localiza a casa de Jaime e somos


recepcionadas pelo porteiro. Na verdade, não sei se
podemos chamar de casa. Está mais para “mansão”.

— Vieram visitar o senhor Jaime, né, meninas? — sorri o


homem abrindo o portão para Jéssica e eu.

— Isso mesmo — respondo,

retribuindo o sorriso.

— Podem entrar. O senhor Jaime

já me avisou que, sempre que vocês vierem fazer uma visita,


nem preciso interfonar. Vocês estão autorizadas a entrar
direto.

— Ai, que tudo! — Jéssica diz eufórica. — Estou me sentindo


a Beyoncé: convidada VIP, MON

AMOUR!

Sorrimos, passamos pelo portão principal e entramos. A casa


de Jaime fica um pouco mais à frente e temos que passar
pelo jardim para chegar lá. Aqui é uma espécie de
condomínio

fechado

com

“mansões” para todos os lados e ouso dizer que a casa de


nosso amigo é a mais chique de todas.

Jaime é o mais velho de nós e o

primeiro a estar com a vida feita na questão

financeira.

Quando

completou dezoito anos, ele perdeu os pais em um acidente


de avião e ficou órfão. É claro que meu amigo sofreu muito,
porém não ficou desamparado financeiramente. Os pais dele
sempre foram muito precavidos e deixaram uma ótima
herança para o filho. Além disso, a companhia aérea pagou
um bom dinheiro de indenização, fora o valor do seguro de
vida da mãe e do pai. Resultado: Jaime ficou podre de rico.

Hoje, com dezenove anos, meu amigo

vive

em

uma

casa

maravilhosa,
tem

uma

hamburgueria gourmet

que

conhecida por ter a carne mais saborosa da região e tem um


namorado lindo. E, como se não bastasse tudo isso, Jaime
tem um lema: “Não adianta nada ter todo esse dinheiro se
não pode fazer nada de útil com ele”. Por isso, ele abriu uma
ONG que cuida de animais

abandonados

os

encaminha para novos lares.

Jéssica e eu chegamos na porta da casa de Jaime, entramos


e somos recepcionadas por aquele jeito carinhoso que só ele
sabe ter.

— AHHH, eu não acredito que minhas meninas


superpoderosas chegaram!

— Que saudades de você, Jaime!

— digo e o abraço.

— Mas você está um arraso, hein, mona — diz Jéssica. —


Esse platinado ficou TUDO em você.
— Ai, menina, o Tico detestou.

— Jaime revira os olhos. — O

bofe disse que prefere meu cabelo pretinho. Mas quem paga
as contas e, principalmente, o cabeleireiro sou eu e só acho
que ele tem que ficar caladinho.

— Isso aí, mana! — diz Jéssica animada.

Nós nos sentamos no sofá

caríssimo da casa de Jaime e começamos a colocar a fofoca


em dia.

Jaime conta tudo sobre sua relação com Tico, deixando


Jéssica e eu com uma pontinha de inveja.

Pelo que nosso amigo fala, Tico é o homem dos sonhos. Um


príncipe encantando, que faz todas as suas vontades e o
trata com muita delicadeza

amor.

Somos

apaixonadas pelo relacionamento deles.

— Mas me conta, menina — diz Jaime animado. — Como foi


a primeira vez com o Kevin?

Fico vermelha como um pimentão e conto como foi a nossa


noite dos sonhos. Claro que dou uma enfeitada ali e outra
acolá, e não conto que Kevin não aguentou nem
por um minuto antes de gozar. Falo somente o lado bonito e
romântico de

tudo

como

se

estivesse

reproduzindo a cena de um daqueles romances clichês que


eu tanto adoro.

— Ai, menina! — Jaime diz. —

Se eu não fosse namorado do Tico, eu sentaria HORRORES


no Kevin.

Seu namorado é muito gostosinho.

— Ah, cala a boca, Jaime — diz Jéssica de forma sarcástica.


— Até parece que o Kevin ia ficar excitado

com

essa

bundinha

murcha.

— Ahhh! Vagabunda! — Jaime finge indignação ao mesmo


tempo que abre um largo sorriso.

Ele e Jéssica começam a tacar almofadas um no outro e dou


risada. Sentia falta disso; saudades de estar com meus
amigos.
Crescemos e a vida fez com que trilhássemos caminhos
diferentes, mas sinto muita falta dessas nossas brincadeiras
e de como éramos na infância. Estou compenetrada nas
minhas lembranças quando uma almofada bate com tudo na
minha cara.

— GUERRA DE ALMOFADAS!

— diz Jaime ansioso.

E começamos a pior (ou melhor) guerra de almofadas que já


tivemos em nossas vidas. Depois de muita risada, caímos
exaustos no sofá e

sorrimos

— Eu amo vocês, sabia? — digo.

— Ihhh, está sentimental, é, Lily?

— Jaime sorri. — Também te amo, gatinha. Amo vocês duas.

— Eu também amo vocês! — diz

Jéssica empolgada.

Nós nos abraçamos e fico

emocionada de tanta felicidade.

Tudo está indo tão bem na minha vida.

Tenho

um

namorado
maravilhoso; amigos incríveis; e, este ano, termino a escola.
Enfim poderei ir para a faculdade e, consequentemente, ser
um pouco mais independente de meus pais.

Tudo está correndo bem.

E eu não tenho do que reclamar.

Lily acordou. Fui avisado pelo enfermeiro-chefe responsável


por ela.

Sorrio,

agradeço

pela

informação e desligo o telefone.

Guardo minhas anotações e vou até o quarto dela.

Quando entro no cômodo, vejo que a garota está


parcialmente sentada e com o olhar vago. Sinto pena. Se
somente com a leitura do histórico de Lily eu já me senti
mal, imagino como ela mesma deve se

sentir revivendo a todo momento o trauma pelo qual passou.


— Oi, Lily.

Ela levanta a cabeça e me olha.

— Oi.

— Você está bem?

A garota balança a cabeça afirmativamente.

— Sinto muito por toda essa carga que você está passando,
Lily.

Saiba que tem um amigo aqui. Eu estou do seu lado.

Coloco a mão sobre seu ombro e sinto que a garota se retrai.


Medo ao toque. Compreensível. Guardo na minha mente que
devo evitar o contato físico com ela. Dirijo-me até a poltrona
que fiquei durante os

últimos dias, sento-me enquanto Lily me observa e continuo


a conversa:

— Conheci sua amiga Jéssica e seu irmão, Manu. Eles estão


bastante preocupados com você.

— Não... ruins. Eles ruins.

Respiro fundo. Apesar de não conseguir falar direito, é claro


que a garota está bem magoada tanto com Jéssica quanto
com Manu.

— Lily, sei que não é o momento para falarmos disso, mas


quero que você saiba a minha opinião. Eu acho que a polícia
está errada!

Ela olha desconfiada para mim.


— Não foi um desconhecido que fez isso com você, não é,
Lily? Foi

alguém que você conhece!

A garota arregala os olhos e vejo no aparelho que monitora


seu coração que o seu batimento cardíaco está acelerado.

— Não... não... sei! Não lembrar.

— Calma, Lily, calma! Não precisa me falar nada agora.

Estarei preparado para te ouvir no momento certo. Só estou


falando isso para que você saiba que tem um amigo aqui!
Que pode contar comigo. Que pode me falar toda a verdade.
Eu só vou conseguir te resgatar,

te

salvar,

se

você

conseguir me explicar tudo o que está acontecendo, tudo o


que aconteceu e tudo o que pode

acontecer, certo?

A garota balança a cabeça.

— Lembrar... não lembrar. Não quer lembrar. Lily não quer


lembrar.

A menina começa a chorar e eu a tranquilizo. Pego um copo


de água e lhe entrego, o qual ela segura entre as duas mãos
trêmulas, dando um pequeno gole.
— Isso. Fique mais calma.

Respire fundo. Não precisa ter medo.

A garota vai parando aos poucos de chorar.

— Muito bem. Expire. Inspire.

Expire. Inspire.

Lily

acompanha

meus

movimentos respiratórios e, aos poucos, para de chorar.


Sorrio para ela.

— Muito bem, garota! É isso aí.

Você é uma vencedora.

— Lily... vencer... vencerdora.

Sorrio mais uma vez, ignorando o erro dela.

— QUEM É VOCÊ? — Ouço

alguém gritando da entrada do quarto.

Olho para a porta e vejo um homem na casa dos cinquenta


anos.

Ele está arrumado, elegante e parece ser aquele típico cara


charmoso que conquista o coração das mulheres. Um
Richard Gere da vida real.

— Olá — digo calmamente. —


Sou o psicólogo de Lilian. Meu nome é Ian.

— Então você é o irresponsável que deixou minha menina na


sala sozinha? — Ele cospe as palavras com ódio ao entrar no
quarto. —

Foi graças a você que ela veio parar neste quarto, não é
mesmo?

Sei quem está na minha frente. É

Laerte, o pai de Lilian.

— Cheguei! — grito ao entrar em casa para avisar meus


pais.

Olho para o relógio. São quase dez da noite.

Vou até a cozinha e abro a geladeira. Não tem nada que me


agrade, mas pego uma garrafa de Coca-Cola e coloco um
pouco no copo que está sobre a pia. Tomo tudo em um gole
só. Lavo o copo e o guardo, mas, ao olhar para trás, vejo que
minha mãe está ali

observando-me.
— MÃE! — digo assustada.

— Isso são horas, Lily?

— Mãe, ainda são dez horas.

Ela respira fundo. Noto sua irritação e prefiro não discutir;


apenas me aproximo e a abraço.

— Não precisa se preocupar comigo, mãe. Sou grandinha e


não estou fazendo nada de errado.

— Seu pai tem falado coisas não muito boas sobre você,
Lilian. Você tem chegado tarde em casa quase todos os dias
e isso tem irritado ele.

— Pois mande ele falar direto comigo, oras! — Solto o


abraço.

— Ele não tem que ir falar

besteiras para você.

— Ele é seu pai, Lilian.

— Olha, mãe, eu estou bem e, como disse, não estou


fazendo nada de errado. Só estou aproveitando minha vida.
Ano que vem tem faculdade,

depois

começo

trabalhar, e aí acabou. Quer saber?

Vou deitar.
Subo nervosa para meu quarto.

Estou

prestes

atingir

maioridade e ainda me sinto totalmente presa à minha


família.

Tenho vontade de contar para meus pais sobre Kevin, mas


tenho certeza de que serei julgada e ouvirei um monte de
porcarias sobre meu namoro. De meu pai,

principalmente.

Não sou tão próxima dele. Não sei explicar o motivo, mas
não consigo me abrir com meu pai. Eu sei que o amo, mas é
um amor diferente. Não é a mesma coisa que sinto por
minha mãe ou por Manu.

Meu pai nunca deixou faltar nada em casa e sempre foi


presente.

Lembro-me dele falando para minha

mãe

alguns

anos:
“Família

minha

não

passa

necessidade, ou não me chamo Laerte. Eu posso passar


fome, mas filhos meus e mulher minha não”.

Sim, meu pai sempre foi muito batalhador e, graças a ele,


hoje temos uma vida confortável e com

bastantes regalias.

O fato é que o meu santo simplesmente não “casa” com o


do meu pai. Além disso, desconfio que ele tenha um caso
com outra mulher. Acho que minha mãe desconfia também.
E o pior é que, pelo que conheço dela, sei que ela nunca vai
se separar dele.

Minha mãe, Theodora, foi criada naquele modelo de cultura


em que a mulher tem que ser leal e fiel ao homem até o
último minuto de sua vida. Ou seja, ela pode até desconfiar
de que meu pai a traia, mas continuará em casa sendo a fiel
esposa e mantendo a aparência de que possui o casamento
perfeito

para os vizinhos e familiares.

Acho essa atitude patética.

Vejo uma das fotos que está pendurada em um quadro na


parede do meu quarto. Nela estamos nós quatro: meu pai,
minha mãe, Manu e eu; na época em que eu não enxergava
as coisas como são e achava que éramos uma família
perfeita e feliz.
Decido parar de pensar nos problemas da minha casa e
envio uma mensagem para Kevin:

Espero, mas a resposta não vem.

Kevin deve estar ocupado. Respiro fundo e envio uma


mensagem para Jéssica:

Segundos

depois,

chega

resposta dela:
Fico muda e olho para as palavras que ela me enviou. Há
alguns anos, na festa de catorze anos de Jéssica, minha
amiga comentou que meu pai estava olhando estranho para
ela. Não levei muito a sério, afinal, desde jovem, Jéssica
tinha a síndrome de

“Eu

sou

gostosa”.

Todos

cobiçavam, a desejavam e a achavam


maravilhosa.

Jéssica

achava que era o sonho de consumo de todos os garotos da


escola. Por mais que minha amiga sempre tenha sido linda,
nem todos viviam em

função de cortejar sua beleza. E eu, sinceramente,

achei

que

essa

história de que meu pai estava olhando diferente para ela


era mais uma das suas neuras.

Atualmente, não tenho tanta certeza. Desde que Jéssica


falou isso, comecei a reparar, e hoje realmente acho meu pai
estranho.

Não sei se ele olhou com desejo para ela, mas uma coisa é
certa: bastou eu começar a observá-lo melhor para notar
que ele não ama minha mãe. Ele não a deseja e não a trata
com o carinho e o respeito que os casais costumam se tratar.
E

foi a partir daí que comecei a desconfiar que ele a traía.

Além disso, as atitudes de meu pai e seus olhares para mim


me causam arrepios. Depois que meu corpo começou a se
desenvolver, senti que ele passou a me olhar de uma

maneira

diferente.
Mas,

sempre que penso em algo do tipo, tiro rapidamente esses


pensamentos da minha cabeça, pois, no fundo, sinto que
essas coisas passam pela minha mente por influência do que
Jéssica me disse. Só pode ser isso.

Mas... E se Jéssica estiver certa e meu pai realmente tiver


olhado com desejo para ela? E se esses olhares dele para
mim também significarem isso? Desejo. Obsessão.

Não. Sinto ânsia. Não confio

muito nele e me sinto estranha com os carinhos excessivos e


seus beijos demorados em meu rosto, mas pensar isso já é
demais. Eu preciso parar de pensar besteiras.

Ele é meu pai! Tenho que confiar nele.

Volto a atenção para o celular e respondo à Jéssica:


Viro de lado e coloco o celular para carregar.

Gozar. Jéssica fala com tanto gosto essa palavra e eu ainda


nem sei direito o que é isso. Achei que depois da minha
primeira vez com Kevin as coisas melhorariam, mas não.
Kevin não consegue segurar muito tempo quando está
comigo e sempre diz que é porque sou muito

gostosa. Toda vez que ele diz isso eu sorrio e até me sinto
lisonjeada, mas, no fundo, sei que eu gostaria de saber como
é a sensação de ter um orgasmo.

Levo minha mão até lá embaixo, no entanto logo a retiro. Já


me toquei algumas vezes, mas fiquei morrendo de medo de
alguém aqui em casa chegar na hora exata e me pegar no
flagra, então nunca consegui concluir o ato. E, para ser bem
sincera, eu queria que minha primeira gozada fosse com o
meu príncipe dos sonhos. Bom, eu sei que, mais cedo ou
mais tarde, Kevin vai conseguir me fazer chegar lá.

Quando estou quase pegando no sono,

recebo

resposta

da

mensagem que mandei para Kevin.

Duas palavras simples e secas:


O pai de Lily me expulsou do quarto dela. Ele não quer me
ver nem pintado de ouro e gritou para Deus e o Mundo que
pediria para que a diretoria da clínica trocasse o psicólogo
responsável por ela, ou seja, eu.

Vou para meu consultório, sento-me na cadeira e analiso


mais uma vez a ficha de Lily. Essa paciente me fascina de
uma forma incrível.

Afinal, é muita coincidência...

Lilian.

Lily me lembra vagamente de Robson. Eles têm alguns


traços em comum. Será que sinto essa necessidade de
salvá-la para compensar o estrago que causei em Robson?

Passo a mão em meus cabelos e respiro fundo. Preciso tirar o


que aconteceu com Robson da cabeça, senão

acabarei

perdendo

a
oportunidade que estou tendo de recomeçar aqui na clínica.

Pego meu celular e decido mandar uma mensagem para


minha mãe:

Olho a tela esperando uma resposta, mas sei que ela não
virá.

Não sei nem porque ainda faço isso. Fico pensando no que
minha mãe diria se soubesse que estou ficando novamente
obcecado por um paciente. Não, ela nunca vai saber disso,
nem sequer desconfiar!

Eu não posso deixar esse interesse em Lily ir tão longe como


foi com Robson.

Pego a ficha de Lily e leio os nomes

de

todas

as

pessoas

próximas. Theodora é a mãe dela.

Ainda não a conheci. Preciso dar a


sorte de encontrá-la aqui na clínica e ver o que acha sobre o
que aconteceu com a filha. Não há muitas

anotações

sobre

ela.

Estranho. O psicólogo anterior de Lily realmente foi bem


relapso.

Laerte é o pai da garota.

Arrogante, boa pinta e se sente o dono do Mundo. É o típico


homem que parece não gostar de si e, consequentemente,
não consegue gostar de ninguém.

Manuel, ou Manu, é o irmão de Lily. Assustado, esconde


alguma coisa. O que me incomoda é o fato de ele ter ido
embora sem ter se despedido.

que

será

que

aconteceu?

Jaime é o melhor amigo de Lily.

Vejo que o garoto é podre de rico e possui uma ONG que


cuida de animais abandonados. Ao lado de seu nome está
escrito “Tico –
companheiro”. Talvez, Jaime e esse tal de Tico sejam
casados.

Jéssica eu já conheci. É a garota exibida que adora chamar


atenção.

“Melhor amiga de Lily e atual namorada de Kevin”,


acrescento.

Kevin era o namorado de Lily na época em que a garota foi


violentada. Vejo que ele a visitou algumas vezes, mas não
sei em que momento começou a se envolver com Jéssica.

Todas essas pessoas possuem

algum grau de envolvimento com Lily e tenho certeza de que


uma delas foi responsável pelo que aconteceu com a garota.

Eu preciso descobrir qual delas.

Lily precisa de mim e eu não vou falhar com ela.

Meu celular apita. Observo a tela e no remetente aparece


“Mãe”.

Vejo a foto dela. Sorrio.


Hoje é o dia! Nem acredito que esta data chegou. Levanto
radiante da cama e me olho no espelho. Por fora, sou a
mesma garota da noite passada, mas algo muito importante
mudou: agora tenho dezoito anos.

Sou efetivamente maior de idade e tecnicamente dona do


meu próprio nariz.

Desço para tomar café da manhã e encontro toda a minha


família reunida. Meus pais e Manu me

abraçam e me desejam toda a felicidade do mundo. Meu pai


me abraça

forte

demais

me

desvencilho

dele

rapidamente.
Acabo não conversando muito com nenhum deles, pois
preciso ir ao salão onde vou me arrumar para a festa que
terei mais tarde.

Quando completei quinze anos, não quis fazer festa de


debutante e pedi para meus pais, na época, guardarem o
dinheiro que gastariam com ela para comemorar com
glamour os meus dezoito anos.

Nenhuma garota na minha escola fez festa de debutante e


eu, sinceramente, acho isso muito brega. Prefiro a festa de
dezoito!

Minha mãe não ligou muito e meu pai se mostrou


decepcionado. Ele disse que queria muito me ver em um
vestido de gala como a mais bela das princesas.

Chego no salão e cumprimento todos os funcionários.


Começamos a fofocar e as horas passam voando. Quando
dou por mim, já estou linda e deslumbrante. Uau! Se fosse
lésbica, eu me beijaria agora mesmo.

Volto para casa e corro direto para o banheiro. Tomo uma


ducha rápida, cuidando para não arruinar o penteado e a
maquiagem, e retorno ao meu quarto; coloco o vestido

azul-royal,

sexy

poderoso, que comprei exatamente para esse momento, e o


batom vermelho dá o toque final aos meus lábios, deixando-
me com um ar ainda mais maduro. Tiro uma selfie e envio
para Kevin.
Em seguida, peço um Uber e coloco o endereço do salão de
festas. Não vejo a hora de encontrar todas as pessoas que
amo e comemorar esse momento tão especial.

Ao chegar na entrada do local, vejo que seu interior está


enfeitado de forma divina. Diversas flores prateadas e
douradas enfeitam as mesas que estão cobertas por toalhas
mais brancas que a neve.

Meus

pais

capricharam

na

decoração e, pelo que estou ouvindo, a música está incrível.

Assim que coloco os pés na entrada, encontro Jaime e Tico.

— Jaime — digo quando o vejo em um terno azul apertadinho


que ressalta seus músculos. — Você está um arraso de lindo!

— Obrigado, miga! — Ele

responde. — Você está divina também! Gisele Bündchen


chora perto dessa beleza. — Jaime diz de forma escandalosa.

— Você realmente está linda, Lily. — Tico diz,


cumprimentando-me com educação. Ele está lindo.

Seus cabelos castanhos arrepiados

combinam perfeitamente com o terno preto e reparo que


seus olhos azuis fazem par com a gravata que está vestindo.
— Um gentleman como sempre, né, Tico? E aí, me contem,
como está a festa?

— Ah, está incrível. Tirando o mala do Manu — implica Jaime.

— Não começa, amor — diz Tico para Jaime. — É o irmão


dela.

— Oxe, e ela sabe que acho ele UÓ! Ele é preconceituoso


com as monas, amorzinho. E não pense que,

por

você

ser

todo

engomadinho, ele vá ser seu amigo, não, viu. — Jaime faz


um biquinho ao finalizar a frase.

Não tenho o que falar. Realmente Manu tem um certo


preconceito com gays e não sei o que fazer para mudar isso.
Tico abraça Jaime, pedindo licença, e os dois entram no

salão

enquanto

olho

deslumbrada para tudo.

— MIGAAAAA! — Escuto

Jéssica gritar do outro lado da festa.

Vou até ela e a vejo com um grupo de garotas da escola.


— Vagabunda, você está incrível.

Esse vestidinho ficou demais e valorizou MUITO as suas


curvas.

Jéssica levanta meu braço e me faz dar um giro completo.


Em seguida, dá um tapa na minha

bunda.

— Sem calcinha, né, safada? —

Ela sussurra no meu ouvido.

Fico

vermelha

dou

um

sorrisinho

tímido.

Hoje

vim

preparada

para

apimentar

a
relação. De hoje ele não escapa: Kevin vai me fazer gozar.
Quero sair daqui e transar com ele em qualquer lugar que
seja. Pode ser no banheiro, na rua, atrás de uma árvore ou
no carro dele. Preciso sentir o perigo, a emoção. Eu o
imagino me pegando em um canto escondido e metendo em
mim de uma vez. Fico excitada na hora.

Estou esperançosa de que hoje eu consiga chegar ao tal


orgasmo do

qual tanto ouço falar.

— Vocês viram meus pais? —

pergunto para as garotas.

— Estão perto da banda com o gato do seu irmão — diz uma


delas.

— Ai, Lily, seu irmão é muito gato mesmo — fala outra


menina.

— Não que eu seja maria chuteira, mas ele é o mais lindo do


time.

— Quem disse que você é maria chuteira, miga? — diz


Jéssica de forma sarcástica para a garota. —

Só porque você já ficou com seis caras do time de futebol?


Que calúnia, gata!

— Ih, meninas, podem tirar os olhos, viu — rebato com


ciúmes, afinal, Manu é meu irmão e quero

protegê-lo dessas meninas que parecem

águias
prontas

para

atacarem uma presa.

Peço licença e saio de perto delas dando risada. Em seguida,


vou até onde as garotas falaram que minha família está, mas
sou puxada no meio do caminho pelo loiro mais lindo da
festa.

— Você está maravilhosa, meu amor

murmura

Kevin

abraçando-me.

— Amor... — Tento me fazer de difícil e me soltar de seus


braços fortes, mas sou uma safadinha e na verdade me
esfrego ainda mais em seu corpo másculo. — Meus pais
podem ver.

— E daí? Está na hora de eles saberem sobre nós. Agora


você já tem dezoito anos e não precisa mais ficar dando
satisfação de quem namora ou deixa de namorar.

— Kevin... não é bem assim.

— Shhh. Cala essa sua boquinha e me beija, vai.

Eu me rendo aos beijos de Kevin e me sinto nas nuvens. Sua


língua invade minha boca com pressa e desejo. Ele morde
meus lábios e dá um sorrisinho.
A banda toca ao fundo uma versão da música “I say a Little
Prayer for You” da Aretha Franklin e, sinceramente, a trilha
não poderia ser melhor. Sinto que estou

flutuando com os beijos de Kevin.

Saio do chão enquanto ele passa as mãos por minhas costas


e passa sua língua sobre a minha. Sinto seu membro duro
encostar em meu ventre e fico molhada. Em seguida, suas

mãos

acariciam

minhas

bochechas e ele coloca alguns fios de meu cabelo atrás de


minha orelha. Sinto o cheiro do perfume amadeirado de
Kevin enquanto ele não para de me beijar e me fazer a
mulher mais feliz desse Mundo.

— LILIAN! QUE PORRA É

ESSA? — Ouço o berro.

Nós nos afastamos rapidamente e meu pai voa em cima de


Kevin. Ele dá um soco na bochecha de meu

namorado

que

cai

no

chão
atordoado

enquanto

grito

desesperadamente.

O pai de Kevin logo parte em defesa do filho e empurra meu


pai, que tomba em cima de uma tia distante da qual nem
lembro o nome. A confusão está instaurada.

Minha mãe olha assustada para a cena ao mesmo tempo


que Kevin tenta se levantar.

QUE

VOCÊ

ESTÁ

PENSANDO, LILIAN? — grita

meu pai. — SE ESFREGANDO

IGUAL A UMA VAGABUNDA NA

FRENTE DA SUA FAMÍLIA...

— Eu não estava me esfregando, pai. Kevin é meu


NAMORADO!

— O-o quê? Você não namora enquanto viver embaixo do


meu teto, mocinha!
— EU JÁ TENHO DEZOITO

ANOS, PAPAI!

— Pois vá trabalhar. — Meu pai abaixa o tom de voz, ao ver


que a festa inteira parou para olhar o barraco que armou. —
Arranje um trabalho, saia de casa e aí pode ficar com os
machos que bem entender. Enquanto viver sob o meu teto,
comendo a comida que eu coloco na mesa, vai seguir as
regras que eu colocar, entendeu?

— Calma aí, sogrão — diz Kevin para meu pai.

— E você, seu playboyzinho de

merda — meu pai vocifera —, mantenha esse pau bem longe


da minha filha, está entendendo? Não ache

que,

porque

um

jogadorzinho de futebol fuleiro, vou receber você de braços


abertos. Você e sua família podem ir embora! Não são mais
bem-vindos aqui.

Kevin sorri.

— Eu só quero ver se ela vai conseguir ficar longe do papai


aqui

retruca
meu

namorado,

provocando meu pai antes de sair.

Meu pai avança para Kevin, mas Manu o segura enquanto


meu namorado e a família saem da festa.

Meu rosto está molhado e percebo

que estou chorando. Olho para minha

família;

Manu

está

assustado; meu pai enfurecido; e minha

mãe

demonstra

estar

aterrorizada com a reação de meu pai, tão encolhida que


parece uma anã.

— Filha...

— Tira a mão de mim, pai —

digo entre lágrimas. — Você... você estragou tudo. Essa noite


era para ser a melhor noite da minha vida.

Graças a você, foi a pior de todas.


Corro para o fundo do salão, tranco-me no banheiro, e choro!
Sei que terei que ficar aqui até o fim da festa, por causa dos
convidados que vieram, mas minha vontade é ir

embora e fugir de tudo.

Hoje é o último dia da internação de Lily na ala hospitalar da


clínica.

Amanhã ela estará de alta e poderá voltar às suas


instalações de praxe.

Não voltei ao seu quarto desde que Laerte, seu pai, me


expulsou, mas também fiquei sabendo por Júlio que ele não
pediu meu afastamento.

Talvez o homem tenha explodido quando me viu, mas sabe


que, no fundo, nada do que aconteceu foi minha culpa.

Vou até o quarto de Lily e a encontro sentada com um livro


de pintura entre os braços. Ao lado dela se encontra um
potinho com alguns lápis de cor, todos com as pontas bem
arredondadas. Lily pinta tranquilamente os desenhos do livro
e nem se dá conta de que estou na porta do quarto.
A minha surpresa é quando noto dois rapazes também no
cômodo, os

quais

Lily

ignora

completamente. Um deles é bem afeminado e veste


algumas roupas chamativas, o outro demonstra ser sério e
retraído. Devem ser Jaime e Tico.

— Olá — digo entrando com

calma no quarto.

— Meu Deus do Céu, o Senhor ouviu minhas preces e


mandou um anjo ao meu encontro, é isso mesmo? — fala o
jovem mais espalhafatoso.

— Jaime! — repreende o garoto mais sério.

— Prazer, rapazes. Meu nome é Ian e sou o terapeuta de Lily


sorrio calorosamente para eles. Se pretendo descobrir o que


aconteceu com Lily, preciso ser amigo das pessoas próximas
dela. — Vocês são...?

— Sou o Tiago, Doutor. Mas pode me chamar de Tico.

— E eu sou o Jaime, mas pode

me chamar de “meu amor”.

Sorrio com a piada de Jaime e me sento perto deles.


— Vocês são amigos da Lily? —

pergunto como se não soubesse de nada.

— Eu sou O MELHOR AMIGO

dela, Doutor. — Jaime tira um lenço do bolso e seca algumas


lágrimas imaginárias de seus olhos.

— Mas ela não quer falar comigo, deve estar irritadinha.

— Eu não sou tão íntimo dela, mas vim acompanhar o Jaime.

Estava com saudades de Lily e queria saber se... Enfim, se


ela está bem — responde Tico.

— Compreendo. Me desculpe a

pergunta, mas vocês são um casal?

— Ex-casal, Doutor. — Jaime diz. — Terminamos um pouco


depois da tragédia que aconteceu com Lily, mas
continuamos, como posso te dizer... amigos.

— Sim — Tico fala olhando no fundo dos olhos de Jaime —...

MUITO AMIGOS.

Esses dois não estão normais.

Tenho a impressão de que algo muito grave aconteceu entre


eles.

Ambos tentam demonstrar que estão bem um com o outro,


mas a tensão entre eles é gritante.

— Mas, e aí, gostosão? — Jaime questiona. — Quando você


vai dar um jeito na cabecinha da Lily?
Estou com saudades de contar as coisas para ela e de
receber respostas

com

frases

que

contenham mais de três palavras.

Lily olha para ele.

— Cachorro... Contar cachorro.

Au-au!

— Isso mesmo, gatinha. Você lembra

que

eu

tenho

uma

organização

que

cuida

dos

cachorrinhos abandonados, não é mesmo? — Jaime


demonstra ficar emotivo com a recordação da garota.

Lily olha em seguida para mim.


— Hambu... Hambulguer. Carne.

— O que será que ela quis dizer?

— pergunto.

— Ela está te contando sobre mim, bobinho — fala Jaime


emocionado. — Eu sou o dono da melhor hamburgueria da
cidade.

Todos

dizem

que

meus

hambúrgueres são incríveis e com um precinho super em


conta.

— Isso é verdade, Lily? Você está me contando coisas sobre


o seu amigo? — pergunto para a garota.

Lily

balança

cabeça

afirmativamente.

você
gosta

dos

hambúrgueres do Jaime, Lily? —

indago.

A garota sacode a cabeça

negativamente com força e faz cara

de brava.

— RUIM! CARNE MUITO

RUIM!

— LILY! — Jaime se mostra indignado. — Pensei que você


gostasse dos lanches do meu restaurante, sua diabinha! Não
ligue para ela, Doutor. Aqui está o cartão de minha
lanchonete, apareça qualquer dia desses por lá.

Pego o cartão e agradeço. A garota fecha a cara para o


amigo, faz um bico imenso e, em seguida, olha para Tico.

— Tico... cachorrinho... Manu!

— Ah, Lily, você se lembra? —

Tico a interrompe e abre um sorriso.

— Do que ela se lembra? —

questiono curioso.

— Um pouco antes dessa tragédia acontecer com ela, o


irmão da Lily, Manu,
achou

um

cachorrinho

abandonado. Eu estava com Lily nesse dia e ele acabou


deixando o animalzinho

comigo

para

eu

entregá-lo na ONG de Jaime. A Lily acabou se apegando


muito a ele.

— Engraçado... — digo.

— O que é engraçado, Doutor?

— pergunta Tico.

— Nada. Pensei alto demais.

Mas acho realmente estranho.

Lily possui memórias recentes do que

aconteceu,

lembra-se

do

cachorro que Manu entregou para Tico e de que não gosta


dos hambúrgueres de Jaime, mas não consegue se recordar
do que aconteceu no fatídico dia da violência que sofreu.
Sei

que

muitas

pessoas

desenvolvem um trauma que as faz esquecerem do que


aconteceu quando sofrem alguma tragédia muito grande,
mas esse não é o perfil que enxergo em Lily.

De repente, me dou conta de tudo: Lily está mentindo. Ela se


lembra do que aconteceu, sabe quem

lhe

fez

isso

está

escondendo

culpado

provavelmente por medo. Mais

uma vez, minha teoria de que a pessoa que fez isso com Lily
foi alguém de seu convívio se mostra mais forte do que
nunca. Sinto que preciso agir rápido, pois a pessoa pode
tentar atacar de novo.
Desde aquele vexame na minha festa de dezoito anos, não
falo com meu pai direito. Ele tentou puxar assunto comigo,
mas eu sequer lhe dei atenção. Minha mãe também não
dirigiu uma palavra a mim. Na verdade, ela nem saiu do
quarto.

Manu disse que ouviu os dois discutindo logo que chegaram


em casa naquela noite e que mamãe falava

algo

sobre

“ciúmes”
enquanto meu pai repetia que ela

estava louca.

Durante os dias que se seguiram, fiquei trancada em meu


quarto e só saí para me alimentar ou ir ao banheiro. E, claro,
para dar o fora de casa. Continuei a me encontrar com Kevin
e pouco me importei com a opinião de meu pai.

Infelizmente, se pensei que as coisas iam melhorar entre


nós, só pioraram. Em uma das últimas vezes que transamos,
Kevin gozou logo que me penetrou. Tentei argumentar para
buscarmos ajuda psicológica, mas ele disse que o problema
não era com ele e sim comigo, pois eu era muito apertada.

É, deve ser isso mesmo.

Enquanto estou deitada ouvindo uma música do Nirvana que


não lembro o nome e pensando na vida, recebo uma
mensagem de Tico chamando-me para ir ao shopping.

Ele quer comprar o presente de aniversário do Jaime e


precisa de minha ajuda.

Coloco

uma

roupa

bem

confortável, aviso Manu que vou sair com Tico (meu irmão
faz cara feia ao ouvir o nome dele e eu, obviamente, taco
uma almofada em sua cabeça) e encontro o namorado de
meu amigo no meio do caminho.
Conversamos várias amenidades e acabo esquecendo dos
meus problemas. Tico consegue me

distrair e tem um papo muito cabeça. Ele me pergunta sobre


a escola e eu digo que estou louca para que esse ano letivo
acabe logo. As aulas estão maçantes e a única matéria que
faço com gosto é Libras.

Gosto de Tico. Jaime escolheu muito bem seu namorado e,


na minha opinião, o rapaz está aprovado.

Depois de mais de duas horas no shopping, Tico acaba


comprando um relógio lindo para o Jaime, que, é claro,
ajudei a escolher. Tenho certeza de que ele vai adorar.

Tomamos um sorvete e quando estamos quase saindo do


shopping,

vejo Kevin de mãos dadas com alguém, provavelmente uma


garota.

Ele está com um moletom preto que acaba por camuflá-lo no


meio da multidão. Não consigo enxergar muito bem a
garota, pois logo os dois somem de vista.

— Lily, o que foi? Você está meio pálida.

— Tico, me segue! — Levanto-me abruptamente e vou na


direção em que vi Kevin.

Driblo o mar de gente que está no shopping enquanto tento


ir para o lugar em que o vi com a sirigaita, mas não consigo
encontrá-los. Olho para todos os lados e nem sinal deles.
Pego o celular e o

desbloqueio.

— O que foi, Lily, está tudo bem?


— diz Tico angustiado.

Kevin

respondo

discando os números do telefone dele. — Tenho certeza de


que o vi aqui, de mãos dadas com uma menina.

— Que filho da...

O celular de Kevin chama, mas ele não atende. Ligo


novamente, dá três toques e cai na caixa postal.

Maldição. Tenho certeza de que ele desligou de propósito.

Nervosa, começo a chorar e Tico me abraça.

— Calma, Lily — diz ele

calmamente. — Tenho certeza de

que tem uma explicação.

— Lily? — Ouço a voz de Kevin atrás de mim.

Eu me viro e o encontro. Com Jéssica.

Por

que
vocês

estão

abraçados?

pergunta

ele,

olhando de mim para Tico.

— Eu que te pergunto, seu idiota!

Quem era aquela garota de mãos dadas com você?

Jéssica toma a frente e diz:

— Lily, não tem nenhuma outra garota com ele aqui. Só eu.

Olho para os dois sem entender.

— Eu já sei o que aconteceu —

acrescenta Kevin olhando para Jéssica. — Foi naquela hora


em

que você estava entrando na loja errada, Jé. Eu te puxei pelo


pulso.

Lily deve ter visto de longe e achou que peguei você pelas
mãos.

Respiro aliviada. É óbvio que foi isso o que aconteceu. Foi


tudo um grande

engano.
Como

pude

desconfiar de Kevin? Eu confio no meu namorado e, se ele


está aqui com a minha melhor amiga que é uma das pessoas
em quem eu mais confio nesse mundo, não há motivos para
neuras.

— Mas o que vocês dois estão fazendo aqui no shopping


juntos?

— pergunto.

Eles ficam embaraçados e eu vejo uma sacola na mão de


Jéssica,

a qual Kevin pega.

— Não era para você descobrir assim, Lily. Mas, enfim, vim
aqui para Jéssica me ajudar a escolher um vestido... para
você. Sou péssimo para escolher roupas e ela te conhece
melhor do que ninguém.

Eu a chamei e acabamos de comprar esse vestido lindo.


Toma!

Kevin me entrega a sacola e eu fico toda derretida. Abro o


presente e dentro da embalagem está o vestido verde mais
bonito que eu já vi em toda a minha vida.

— Ah, que lindo, meu amor!

Vou até ele e dou um beijo em seus lábios.

— Você gostou, Lily? — pergunta


Jéssica.

— Eu amei! Você só errou na cor, né, amiga? Verde é a sua


cor favorita. A minha é azul, lembra?

Saímos do shopping e Tico se oferece para me deixar em


casa; Kevin foi se encontrar com uns rapazes do time e
Jéssica disse que sairia com um cara.

Ao estacionarmos em frente ao portão, encontramos Manu


sentado na calçada de casa com o cachorrinho mais lindo
que eu já vi na vida.

— Manu, que cachorrinho lindo é esse? — pergunto, indo até


ele.

— Oi, Lily. Oi, Tico — diz meu irmão secamente. — Encontrei


ele aqui na rua de casa. Fiquei com dó, maninha. Ele está
com fome. Dei um pouco de comida, de água. Ele ficou mais
animado, mas não podemos ficar com ele. Sabe como o
papai é.

— Pior que nem estou falando com ele, senão tentaria


convencê-lo a deixar o bichinho ficar.

— Deixem comigo, pessoal —

intervém Tico. — Eu fico com o cachorrinho.

— Sério, Tico? — digo animada.

— Ah, é! Quase me esqueci. A ONG do Jaime!


— Sim, sim. Eu levo o doguinho

para casa hoje. Jaime deve ir para a ONG só na semana que


vem, mas, enquanto isso, esse sapequinha fica com a gente
lá em casa. Depois levamos ele para a associação.

Certo, rapazinho?

O cachorrinho parece entender e vai direto para os braços de


Tico.

Manu olha para o rapaz de uma forma estranha, parece


desprezo, mas não diz nada. Sinto que, se meu irmão tivesse
escolha, tiraria o cachorrinho de Tico e o entregaria para
qualquer outra pessoa. Mas não temos o que fazer e Manu
vai ter que engolir esse preconceito bobo dele.

— Bom, gente, vou indo. Tchau,

Lily. E obrigado pela ajuda.

— Obrigado você pelo passeio, Tico! Amei!

— Falou, Manu.

— Falou. — Meu irmão responde grosseiramente.

Tico liga o carro e vai embora.

— Você poderia ter sido um pouquinho menos babaca com o


Tico, né, Manu?

— Não gosto de veado, Lily. Já te disse! Acho que são


péssimas companhias, e é pecado!

— E desde quando você é


religioso, Manu? Levar uma menina diferente por dia para
transar escondido no seu quarto como você fazia
antigamente não é pecado

também?

Manu não me responde e eu acrescento:

— Você precisa abrir essa sua cabecinha, Manu!

Entro nervosa em casa, deixando-o para fora, e dou de cara


com meu pai. Ele me mede dos pés à cabeça e um arrepio
sobe pela minha espinha. Corro escada acima para o meu
quarto sentindo seu olhar penetrante em minhas costas.

Hoje completam duas semanas que iniciei nesse trabalho.


Conheci novos pacientes, novas histórias e sinto que
consegui me renovar como profissional. Júlio, meu chefe, me
deu parabéns pelo progresso e eu agradeci. Mas,
sinceramente, não sinto que fiz muitos avanços com a minha
principal paciente. O incidente com Lily no meu primeiro dia
de trabalho ainda me assombra.

Nenhum dos outros casos dessa clínica me atormenta tanto


quanto o dessa garota. Sonho com ela e com a tragédia que
a acometeu quase todas as noites. Vejo em meus sonhos um
homem mascarado

correndo atrás dela e revivo a cena da forma como acho que


aconteceu.

terrível.

máscara

do

perseguidor demonstra nojo, medo e inveja; ele a odeia e a


quer ver morta. Não posso deixar meus sonhos interferirem
na cura de Lily.

Não tivemos muitas consultas desde que ela saiu da


internação. A garota continua falando como um bebê e, por
isso decidi ir mais devagar

para

não

assustá-la.

Preciso ter Lily do meu lado, não contra mim. E, mais uma
vez, lembro-me de Robson. Tiro a imagem dele da cabeça.
Lily não é Robson,

eles

são
pacientes

diferentes!

Decido mandar uma mensagem para minha mãe:

Respiro fundo olhando a foto de minha mãe, gravada no


número de telefone em meu celular, e meu coração aperta.
Faz tanto tempo que não sinto seu abraço, seu cheiro, sua
voz.

Desde o incidente com Robson.

Sei que, no fundo, minha mãe me culpa pelo que aconteceu,


por mais que, obviamente, ela nunca tenha dito isso. Mas
não tive culpa. Meu único crime foi tentar ajudá-lo.

Tentei mais do que poderia.

Afasto o assunto da mente, pois

não posso ficar remoendo isso para sempre, e checo o


relógio. Já são 10h10min, Lily está atrasada em dez minutos
para a nossa consulta.

Saio da sala, tranco a porta e procuro o cuidador responsável


por levá-la até mim. Eu o encontro rapidamente e pergunto
pela garota.
— Dr. Ian, desculpe. Esqueci de avisar que Lily recebeu uma
visita de última hora. Ele disse que não poderia voltar em
outro horário e, como faz muito tempo que não vem aqui,
deixamos ele falar com ela...

Lily também não estava muito disposta a ir para a consulta...


o diretor autorizou e...

Dispenso o cuidador com uma

mão e vou até a sala de visitas.

Vejo um belo garoto sentado de frente para Lily. Ele segura


suas mãos e as acaricia. Lily chora silenciosamente. Sei que
é errado, mas me aproximo o máximo

possível da porta entreaberta e começo a ouvir o monólogo


do rapaz:

— … não tenho culpa nenhuma, Lily. Você sabe, não é?

A garota faz que sim com a cabeça.

— Eu sei que deveria ter te contado, Lily. Eu errei nesse


ponto.

Mas eu não esperava que isso pudesse acontecer com você


antes de conversarmos com calma.

Lily cruza os braços e esconde as mãos,

como

se

quisesse

se
proteger.

Reconheço o garoto, a foto dele estava no arquivo de Lily. É


Kevin, o namorado da garota. “Ex-namorado”,

corrijo-me

mentalmente. Pela mensagem que vi no celular de Jéssica,


acho que ele trocou de parceira rapidinho.

— Lily, eu sempre vou te amar. É

difícil para mim te ver nessa situação. Jéssica... Ela tem me


ajudado. Peço mil desculpas! Não fique brava comigo.

A garota sorri timidamente para o jovem. Parece que ela


entende o que está acontecendo. Faço mais

uma anotação mental: Lily está consciente de tudo ao seu


redor.

Pelo visto, seu único problema é com a fala.

— Lily... eu preciso ir embora, mas, antes disso... preciso te


perguntar se...

Ela o olha intrigada.

— … você... você não contou para ninguém sobre... sobre


aquilo, né...? Você sabe... O motivo da nossa última briga. Se
as pessoas souberem, elas podem achar que eu tenho

alguma

culpa

no
que

aconteceu contigo e você sabe que isso não é verdade, não


é mesmo?

Lily se levanta abruptamente e começa a se balançar para


frente e

para trás. A garota está tendo uma crise nervosa.

— Lily? — diz Kevin assustado.

Chega!

Entro

na

sala

interrompo a visita. Tomo Lily em meus braços e a abraço


com força.

Percebo que ela não se retrai com o meu toque. Passo as


mãos em sua cabeça para que ela se acalme enquanto

os

seguranças

se

aproximam.

— Eu-eu não sei o que

aconteceu... — balbucia Kevin. —


Ela começou a tremer do nada e...

eu não fiz nada.

— Meu nome é Ian, rapaz. Sou o psicólogo de Lily. O que


você disse para ela? Algo que você

disse a deixou assim.

— E-eu só perguntei... Eu só perguntei se ela sentia


saudades de casa. — Kevin diz.

Ele mente, não sabe que ouvi a conversa dos dois. Aceno
com a cabeça como se acreditasse na ladainha que ele está
me contando.

Entendo.

Lily

está

se

recuperando,

mas

assuntos

delicados

podem

afetá-la

psicologicamente.
Essa

menina

sofreu grandes traumas, garoto. Eu acho melhor você voltar


em um outro momento. Ela não vai conseguir conversar
mais com você hoje.

— Sim, sim, entendo. Prazer, Ian.

Por favor, cuide da minha Lily. Ela é muito especial para


mim.

Kevin se levanta, pega suas coisas e vai embora. Olho para


Lily, que já demonstra estar mais calma, e digo:

— Respire fundo, Lily. Já passou.

— Ke... Kevin!

— Sim, eu sei, garota. Ele é o Kevin. Seu namorado, certo? —

arrisco.

Lily

balança

cabeça

negativamente com força.

— Ex-namorado? — pergunto.

Ela se cala e faz um sim tímido com a cabeça.


— Entendo. Venha. Vou te levar ao seu quarto. Hoje você
escapou

da consulta, mas da próxima a senhora

não

vai

fugir,

está

entendendo?

Lily entrelaça o braço no meu e vamos até seu lugar de


repouso.

Mais um sinal de sua confiança em mim. Ela me toca sem


medo.

Repasso em minha mente o que Kevin lhe perguntou. Ele


quis saber se Lily contou “algo” para alguém.

que

será

que

ele

está

escondendo?
Não sei qual o segredo de Kevin, mas percebo que, assim
como ele, muitas pessoas ao redor dessa garota

têm

inúmeras

coisas

escondidas. Uma dessas coisas, tenho certeza, foi a


responsável

pela tragédia que acometeu a vida dessa jovem. E eu vou


descobrir o que é, ou não me chamo Ian!

Jéssica e eu entramos na casa de Jaime e, enquanto minha


amiga caminha na direção do sofá, sou recebida

pelas

lambidas

do

cachorrinho que deixei com Tico, pois Jaime ainda não o


levou para sua ONG.
O bichinho sobe no meu colo e dá vários “lambeijos” em
meu rosto.

Ele parece feliz em me ver. Passo as mãos em suas orelhas e


o cachorrinho late de satisfação.

— Esse pulguento gosta mesmo de você, hein, Lily — diz


Jéssica sorrindo.

— Haha, gostei desse nome. Vou chamá-lo de Pulguento —


sorrio e faço carinho em seu focinho.

Pulguento late e abana o rabinho, parecendo aprovar seu


novo nome, ao mesmo tempo que um Jaime saltitante desce
as escadas.

— Mas veja se não são as meninas mais LINDAS desse

bairro — diz Jaime animado. —

Depois de mim, claro.

— Seu falso — rebate Jéssica dando um empurrãozinho no


ombro dele. — Esses dias você disse que éramos as mais
lindas da cidade.

Agora já fomos rebaixadas ao bairro?

— Ai, mona, não me tomba não, hein! A que eu devo a


visita?

— Lily queria ver o Pulguento —

diz Jéssica ironicamente.

— Quem?
— Pulguento. É o nome que acabei de dar ao cachorrinho
que deixei com Tico — explico para meu amigo. — Queria
saber se ele estava bem e se já tinha ido para a ONG. Sabe
como é, me apeguei demais a ele.

— Ai, gata, ele é uma graça mesmo, né? Mas não se apegue
demais. Nos próximos dias não vou conseguir levá-lo, mas
semana que

vem sem falta ele vai para lá.

Sabichão do jeito que ele é, tenho certeza de que logo uma


família vai adotá-lo.

— Eu vou sentir falta dele. Faz três dias que o conheci, mas
parece que faz anos — digo.

— Lindas — Jaime interrompe

—, vocês chegaram em uma

péssima hora. Hoje é a inauguração de

um

lanche

novo

na

hamburgueria e já é quase meio-dia. Ou seja, hora do


almoço.

Tenho que ir lá para ver a reação dos clientes. Querem ir


comigo?
— Vai ter lanche de graça para nós? — sorri Jéssica.

— Assim você vai me levar à

falência, sua capivara — brinca Jaime. — Não sei como a


senhora consegue manter esse corpinho de miss comendo
igual a uma draga.

— Você me respeite! — Jéssica sorri e bate com a bolsa nele.

Jaime nos leva em seu carro novo até a hamburgueria. Ele


põe a música nova do BTS para tocar e nós três cantamos
em alto e bom tom.

Chegamos na hamburgueria de Jaime e a fila está imensa.


Os lanches de meu amigo fazem muito sucesso na região e
não há quem não goste; fora que os preços são bem
acessíveis. Jaime diz que é muito melhor ter mais clientes
por

um preço menor, pois assim ele ganha

muito

mais

dinheiro.

Segundo ele, não vale a pena colocar os preços nas alturas e


quase ninguém vir comer.

Jéssica e eu nos sentamos perto da janela e os clientes


começam a entrar alvoroçados pelo novo lanche do
restaurante. Claro que nós pedimos a novidade também.

— Mas, e aí, Lily? Como está o namoro com Kevin? — Minha


amiga pergunta.
— Está tudo ótimo, amiga. Desde o dia do shopping que não
o vejo, mas estamos trocando mensagens quase toda hora.

— Fico feliz. Kevin é um cara

legal.

Jéssica

parece

um

pouco

incomodada.

— O que foi, amiga? — pergunto.

— Tem algo que você quer me contar?

— Não, não... Eu só estou com fome mesmo!

O lanche chega e o devoramos em poucas mordidas. Não sei


qual o tempero que Jaime usa nesses lanches, mas —
caramba! — na certa

um

dos

melhores

hambúrgueres que já comi.

Lambo os beiços e estou quase pedindo um segundo


sanduíche quando recebo uma mensagem de minha mãe.
Pego o celular para lê-

la:

Minha consulta com Lily não tem muitos avanços. A garota


fala com palavras difíceis de decifrar e se recusa

responder

algumas

perguntas. Decido arriscar um pouco e ver como será sua


reação.

— Lily, você lembra do que aconteceu naquela noite?

— Não... lembrar... Lily não lembrar.


— Entendo. Você não lembra de absolutamente nada?

Ela fica quieta e olha para baixo.

— Lily, eu já te disse que sou seu melhor amigo aqui. Você


pode confiar em mim. Pode me contar tudo o que quiser.
Nada vai sair desta sala.

A garota levanta a cabeça e olha no fundo dos meus olhos.


Sinto que estamos criando uma conexão. É

aquele momento mágico em que paciente e terapeuta se


tornam um só. Eu sou Lily. Lily sou eu. Não posso deixar essa
chance passar.

— Lily, você quer me dizer alguma coisa?

A garota timidamente diz que sim.

— Lily, eu sei que você sabe quem te fez isso. Você sabe,
não é?

Você conhece quem foi o monstro que te causou isso.

Ela fica parada e desvia o olhar.

Conheço essa reação. É medo. A garota não está à vontade e


confirma isso ao cruzar os braços.

— Eu posso te ajudar, Lily. Eu vou te ajudar, mas preciso que


você me ajude a entender o que aconteceu.

Lily volta a me olhar nos olhos.

Vejo que ela está séria e confiante.

Com medo, mas confiante.


— Vamos, Lily. Confie em mim.

Sento-me de forma ereta e olho no fundo de seus olhos.

— Você quer me contar, certo, Lily? Você quer me dizer. Eu


sei

que você quer.

— Lily quer... Lily quer...

A garota tropeça nas palavras.

Vejo uma gota de suor escorrer de sua testa.

Ela fecha a boca. Respira.

Inspira. Expira.

Eu aguardo o seu tempo. Não a forço. Sinto que ela está


quase falando.

— Lily quer.. LILY...

A garota começa a se balançar.

— LILY QUER... MAMÃE! LILY

QUER...

MAMÃE.

MAMÃE!

MAMÃE! LILY-QUER-MAMÃE!

LILY-QUER-MAMÃE!

LILY-
QUER-MAMÃE!

Ela

começa

berrar

desesperadamente e eu me levanto assustado. Ultrapassei


uma linha muito tênue e ela está tendo um ataque de
pânico. Abro a porta e grito por um dos cuidadores, que
entra rapidamente com uma seringa na mão e a espeta no
braço da garota enquanto a seguro.

MAMÃE,

MAMÃE,

MAMÃE,

MAMÃE...

QUER...

MAMÃE, LILY QUER... MAMÃE.

MAMÃE, ma-mamãe... mamãe.

O calmante faz efeito imediato e Lily dorme em meus


braços.

Droga! Eu estava tão perto. Ela estava quase falando.

Mas a sessão de hoje ajudou em um


ponto:

preciso

falar

urgentemente com a mãe de Lily.

Chego em casa esbaforida e vou ao encontro de minha mãe


que está chorando desolada no sofá da sala, sozinha. Eu a
observo e vejo o quanto ela envelheceu nesses dias; seu
cabelo preto possui vários fios grisalhos e vive preso em um
coque no topo da cabeça; as rugas dominam a beirada de
seus olhos e a fazem parecer mais velha do que realmente é.

— Mamãe. — Sento-me ao seu

lado. — Vamos, dona Theodora, me conta o que aconteceu.

— Ah, Lily — funga ela. — É o seu pai. Eu peguei uma


mensagem dele falando com outra mulher, minha filha.

— O-o quê? Como assim? —

finjo surpresa, abraçando-a.


Ela chora em meus braços e eu me sinto estranha, pois
minha mãe nunca foi muito carinhosa, sempre foi mais
calada e na dela. Foram poucas as vezes nas quais ela falou
que me amava, e sempre respeitei esse jeito dela. Vê-la
agora tão desprotegida e precisando de um abraço me causa
certo desconforto.

Ao mesmo tempo que a consolo,

sinto-me

uma

traidora.

Eu

desconfiava, sim, de que meu pai tivesse um caso com outra


mulher, mas sempre achei que minha mãe também tivesse
essa suspeita e aceitasse a situação para manter as
aparências. Pelo visto, eu me enganei.

— Como foi, mãe? Como isso aconteceu?

— Fui falar com seu pai —

funga. — Sobre você... e seu namorado.

— Mãe, não precisava ter ido.

Você sabe como o pai é.

— Precisava, sim, minha filha.

Você já é uma moça. Seu pai a sufoca demais. Parece que


tem

ciúme
de

você,

um

ciúme

irracional. Ele precisava tirar os olhos de você e entender


que você não é propriedade dele.

Uma fagulha desperta dentro de mim. Lembro-me de quando


Jéssica disse que meu pai a olhou de forma estranha em sua
festa. Lembro-me das próprias olhadas que ele me deu; de
seus beijos longos; das vezes em que apareceu no meu
quarto sem bater na porta. Fico arrepiada.

— Ele começou a gritar, minha filha. Me chamou de louca.


Disse que temos que cuidar de você, que você é a
menininha dele. E aí... a mensagem chegou. O celular estava

na cama, ao meu lado.

Minha mãe seca as lágrimas e continua contando o ocorrido:

— Você sabe que temos o mesmo modelo de aparelho


celular, né? Eu achei que era o meu e o peguei para olhar a
notificação na tela. A mensagem dizia: “Saudades de você
dentro de mim. Quando vou ter de novo? Beijos”.

— Você viu quem era?

— O número não estava salvo.

Devia ser uma vagabunda qualquer, Lily, o que torna tudo


ainda pior. Se fosse alguma conhecida, eu poderia pensar
que, sei lá, seu pai havia se apaixonado por alguém do seu
convívio. Acontece, ué. Mas não.
Na certa, é uma puta qualquer que ele pagou para comer.

— Mamãe, eu nem sei o que dizer.

— Quando ele percebeu que o celular em minhas mãos era o


dele, ficou possesso. Ele começou a gritar, disse que eu não
tinha o direito de mexer nas coisas dele, e saiu de casa. Foi
então que eu liguei para você.

— Mamãe, não vamos admitir mais esse homem dentro de


casa.

Eu já desconfiava de algo assim. E

ultimamente papai tem me dado arrepios.

— Como assim, Lily?

— Minha amiga, Jéssica. Ela me

contou há um tempo que o papai olhou de um jeito meio


estranho para ela.

— Há um tempo? Essa garota não tem a mesma idade que


você?

— Pois é. E eu mesma, mamãe.

— Tomo cuidado com as palavras que direi a seguir. — Eu...


sinto o papai meio estranho.

Minha mãe fica vermelha de raiva.

— Lily... o que seu pai fez com você?

— Ele nunca fez nada, mamãe —


tranquilizo-a. — Mas os olhares dele, a forma como ele fala
comigo, os beijos, sei lá, tudo me causa estranheza. E agora
eu me

lembro... lembro que, quando eu era mais nova, você não


gostava de me deixar sozinha com ele. Agora tudo faz
sentido. Você já sabia, não é, mamãe?

— Filha, eu nunca confiei 100%

no seu pai e nem em homem nenhum. Minha mãe, sua


falecida avó, sempre me disse que temos que ter os olhos
sempre abertos com os homens. Não pense que não o amo,
porque amo sim. Mas confiar, eu só confio em mim mesma,
e olhe lá. Eu nunca quis deixar ele sozinho com você,
porque... Ah, minha filha... instinto de mãe.

— Por isso, mãe... Por isso que

você sempre dizia para mim que se o papai ou qualquer


outro homem fizesse algum carinho “lá embaixo”

era para eu te contar em segredo, não é? Meu Deus, agora


tudo faz sentido.

— Filha, eu não quero que você conte para o seu pai tudo o
que te contei. Apesar de tudo, ele é seu pai.

— Mãe, não tem como eu ficar quieta diante disso. Ele é um


escroto!

— Lily, eu preciso da sua ajuda.

Preciso descobrir quem é a vagabunda. Tenho que saber se


ela é a única. E, para isso, você tem que ficar quieta.

— Mãe, peraí. — Começo a perceber em que lugar dona


Theodora quer chegar. — Você está me dizendo que vai
continuar vivendo normalmente com o papai como

se

nada

estivesse

acontecendo? E quer que eu finja isso também?

— Lily, há coisas que você não é capaz de entender.

Encaro minha mãe. Theodora!

Um nome tão forte para uma mulher nem tão poderosa


assim. No fim, acho que eu estava certa. Ela faria de tudo
para segurar meu pai dentro de casa. Essa história de que
precisa descobrir quem é a amante dele é pura balela, ela
não me

engana.

Mamãe

precisava

desabafar, mas o que ela vai fazer mesmo é tentar


reconquistá-lo e perdoá-lo. Minha mãe vai passar por cima
do seu orgulho para manter o homem dentro de casa.
Chego ao consultório e coloco minha bolsa sobre a mesa.
Logo em seguida, eu me jogo na cadeira e passo as mãos
pelos fios de meu cabelo.

Sonhei novamente com Lily essa noite. A imagem da garota


correndo enquanto mascarado a persegue não sai da minha
cabeça. Parece tão real, como se eu mesmo estivesse ali,
vendo tudo; como se eu fizesse parte daquilo.

Hoje não tenho consulta com Lily e acho até melhor ser
assim. A garota precisa de um momento de folga depois da
conversa que tivemos ontem. Não posso forçá-la, senão o
que aconteceu com Robson também pode acontecer com
ela.

Não! Preciso parar de pensar em Robson.

Sinto-me

mal

por

não

ter
conseguido grandes avanços com Lily e começo a questionar
se realmente sou a pessoa certa para cuidar dela. Sei que o
processo terapêutico costuma ser lento, mas, ainda assim,
penso que já poderia ter progredido com a garota.

O telefone da minha mesa começa

a tocar. Atendo. É a recepcionista.

— Dr. Ian?

— Sim! Pode falar.

— Doutor, tem um senhor aqui querendo vê-lo. O nome dele


é Laerte. Posso autorizar a entrada?

Uma sensação ruim invade meu peito. É o pai de Lily. O que


será que ele quer conversar comigo?

Lembro dele expulsando-me do quarto de Lily há alguns dias


e minha vontade é de mandar esse homem “para o raio que
o parta”.

Mas, se quero descobrir o que houve com a menina, preciso


conversar com todas as pessoas que faziam parte de sua
rotina, mesmo que sejam desagradáveis.

— Claro — digo. — Peça para ele entrar.

Tenho pouco tempo. Da recepção para minha sala são menos


de três minutos. Guardo todas as minhas anotações e o
prontuário de Lily que estão sobre minha mesa. Não posso
passar a imagem de um médico desleixado para o pai da
minha principal paciente. Preciso mostrar que sou um
psicólogo apto.

Respiro fundo, mas a sensação de angústia não passa. Será


que Laerte soube da crise nervosa que Lily teve
ontem

enquanto

conversávamos

veio

me

repreender pela intromissão?

Escuto uma batida na porta e,

antes que possa autorizar, Laerte entra. Invasivo. Este


homem se sente o dono do mundo. Memorizo as
características do pai de Lily para que possa escrever em
minhas anotações assim que ele for embora.

— Doutor — diz ele me olhando com superioridade.

Seja

bem-vindo,

senhor

Laerte.

Queira

sentar-se,

por
gentileza.

Aponto a cadeira e Laerte senta-se como se fosse o dono do


local.

Ele observa toda a minha sala calmamente. Seu olhar


rastreia tudo em busca de qualquer vestígio que possa usar
contra mim. Sou a presa

e ele é o caçador.

— Vejo que o senhor é muito organizado,

Doutor

Ian.

Sem

cortador de papéis ou objetos afiados à vista? — diz Laerte


sarcasticamente.

— Senhor Laerte... — começo.

— Entendo perfeitamente que o senhor possa ter uma


péssima primeira impressão minha. Mas, em minha

justificativa,

eu

havia

acabado de chegar nesta sala. Nem tive tempo de arrumá-la


e sua filha foi

apresentada

a
mim.

Obviamente, fui descuidado, mas em situações normais isso


jamais teria acontecido. Peço mais uma vez desculpas pelo
ocorrido.

Laerte sorri. Parece que fui contemplado e caí nas graças do


homem.

— Você disse as palavras certas, Doutor.

Laerte se levanta e vai até o bebedouro. Pega um copo de


plástico e enche calmamente de água. Bebe tudo em um
gole só e volta ao seu lugar. Parece mais tranquilo.

— Eu vim até aqui para saber mais sobre você, afinal, é o


psicólogo responsável por minha filha. Gosto de ter todas as
informações, Doutor. O Júlio, seu chefe, pode te confirmar
isso. Tive essa mesma conversa com o

psiquiatra que hoje é responsável por Lilian.

— E você está certíssimo, senhor Laerte. Ela é sua filha e o


senhor tem que ter o máximo de cuidado com ela, ainda
mais depois de tudo o que aconteceu.

— Também peço desculpas por minha explosão em nosso


primeiro encontro, Doutor. Mas o senhor deve imaginar que
eu estava transtornado com o fato de meu bebê ter cortado
os pulsos aqui, nesta clínica, onde ela deveria ser
supervisionada vinte e quatro horas por dia. Lily poderia ter
morrido.

— Entendo. O senhor quer

conversar sobre isso?


— Não banque o psicólogo para cima de mim, rapaz. —
Laerte fecha a cara. — Saiba que, enquanto

você

tirava

seu

diploma, eu já dava entrada na minha casa própria. Não


preciso de suas avaliações premeditadas.

— Fique tranquilo, senhor Laerte.

Bom, o que deseja saber?

— Como disse, vim me desculpar e entender mais sobre


você.

Pesquisei bastante na internet sobre o seu nome. — Laerte


me olha e dá um sorrisinho maldoso. — Ian Martins, certo?
Há muitas notícias sobre você, Doutor. Algumas bem
interessantes.

Engulo em seco, mas não deixo

Laerte perceber o meu desespero.

Ele vai falar. Ele sabe de Robson.

— Senhor Laerte, não entendo onde quer chegar.

— Eu li tudo o que aconteceu com seu ex-paciente. Qual o


nome dele mesmo? Robson? — Ele dá um risinho sarcástico.
— Ora! Uma morte daquelas seria noticiada em todo lugar,
certo? E muitos meios jornalísticos acusam o senhor de ter
sido, digamos... relapso com seu paciente.

— As circunstâncias do ocorrido já foram esclarecidas na


justiça, senhor Laerte.

— Será mesmo, Doutor Ian?

Laerte se levanta e se aproxima

de mim. Consigo sentir o seu hálito com cheiro de cigarro


dentro de mim, seu nariz quase encosta no meu. O homem
está me testando.

Ele quer saber qual o limite do psicólogo de sua filha. Não


vou deixá-lo me intimidar.

— Como eu acabei de dizer, o caso já foi solucionado, senhor


Laerte. Caso tenha alguma dúvida, sugiro que procure a
justiça local e faça seus questionamentos. Eu não tive nada
a ver com o ocorrido, foi uma fatalidade e não falo mais
sobre esse assunto. Meu foco agora é a cura de Lilian e de
todos os outros pacientes que estão sob minha
responsabilidade.

Laerte sorri e se afasta de mim.

— Mais uma vez, as palavras certas, Doutor. Mas eu não


poderia esperar menos de um psicólogo, não é mesmo?

— Eu ainda não entendi muito bem onde o senhor quer


chegar.

— Sua única obrigação é cuidar da saúde mental de minha


filha, Doutor. Fiquei sabendo que o senhor conversou com
meu filho, Manuel. Jaime e Tico também responderam
algumas perguntas suas, não? Já teve gente demais
bisbilhotando a tragédia da Lily.
Limite-se à cura dela e não meta o bedelho onde não foi
chamado.

Não quero ser obrigado a solicitar

a troca do psicólogo de Lily.

Afinal, pelo que fiquei sabendo, ela gosta muito de você.

— O senhor está me ameaçando?

— Eu? — Laerte dá um sorriso falso. — Claro que não! Só


quero o melhor para minha filha. Agora, me responda, Ian:
você é o melhor para ela?

Garanto

que

não

profissional mais capacitado para ajudá-la.

— Assim espero, Doutor. Bom, nossa

conversa

foi

muito

proveitosa. Mas preciso ir embora.

Como está Lily? Não vou conseguir vê-la hoje.


— Ela está bem. Estamos tendo

pequenos avanços — minto.

— Fico feliz. Minha filha é meu tesouro mais precioso, Doutor.

Ficaria extremamente irritado se algo

acontecesse

com

minha

garotinha. Ela já sofreu o suficiente nessa vida. E pensar que


naquele dia...

— O que houve naquele dia, senhor Laerte?

— Minha filha e eu nos

desentendemos, Doutor. Ela saiu correndo de casa e eu


tentei ir atrás dela, mas não a alcancei. Foi a última vez que
a vi saudável. Horas depois, recebi a notícia de que ela havia
sido encontrada quase sem vida.

por

que

vocês

se

desentenderam?
Laerte se levanta, pondo fim ao assunto, e joga o copo
plástico no lixo.

— Até mais, Doutor.

— Espere — digo antes que o pai de Lily cruze a porta.

— Sim? — Ele me olha como se

eu fosse um inseto bem asqueroso.

— Ontem Lily demonstrou uma certa aflição. Desde que


comecei aqui na clínica, não lembro de tê-la visto dessa
forma. Ela ficou muito agitada, descontrolada; chorou.

— E o que tenho a ver com isso?

É seu trabalho acalmá-la, não?

— Pensei que o senhor pudesse

falar com sua esposa. O nome dela é Theodora, certo?

— Desculpe, Doutor... não estou entendendo. — Laerte diz.

— Ora bolas! — Perco a

paciência. — A mãe de Lily não veio visitá-la desde que


cheguei aqui. A garota sente a falta dela.

Ontem ela chorou falando que queria a mãe. Obviamente,


gostaria que o senhor falasse com sua esposa para que
viesse visitar Lily.

Laerte solta uma bela gargalhada.

— Ainda bem que você é

psicólogo, Doutor, pois seria um péssimo investigador.


Olho intrigado para o pai de Lily.

— Como assim? — pergunto.

— Muito me estranha que o senhor não tenha entendido o


porquê de Theodora não vir visitar Lily. Minha mulher está
morta, Ian!

A mãe de Lily foi assassinada.

— O velho fez o quê?

— Shhh, Manu. Fala baixo! —

digo irritada.

Fecho a porta de meu quarto, pois meu irmão fala muito alto
e tenho medo de que meus pais ouçam nossa conversa. Fiz o
que minha mãe pediu e não comentei nada com meu pai
sobre a mensagem de traição. Mas guardar esse segredo
comigo estava me corroendo. Logo, chamei para conversar a
única

pessoa que também deve ser envolvida nessa história:


Manu.
— Ou você diminui essa sua voz de merda ou eu não te
conto mais nada — decreto nervosa. — O

assunto é sério, poxa.

— Desculpa, Lily, mas eu estou muito irritado com o que


você falou. Como assim, o velho traiu a mamãe?

— Foi o que ela me disse, Manu.

Eu estou arrasada.

— Eu vou conversar com ela agora mesmo.

— Manu, NÃO! A mamãe me fez

prometer que não falaria nada sobre o assunto. Ela quer


descobrir quem é a amante do pai.

— Para quê?

— Vai saber. A mulher dele é ela, se ela quer isso, devemos


respeitar.

— Mas é difícil de acreditar, Lily. O velho age como se nada


tivesse acontecido. Nem parece que a mamãe pegou uma
mensagem no celular dele.

— Ele é muito dissimulado, mas você não vai fazer nada,


Manu. Eu só te contei porque precisava desabafar

com

alguém.

Não

aguentava
mais

guardar

isso

comigo.

São

tantos

problemas,

maninha. Sinto falta de quando éramos crianças e não


tínhamos com o que nos preocuparmos.

— Eu também.

Meu celular começa a tocar. É

Jaime pedindo uma chamada de vídeo. Atendo.

— Oi, Jaime! — sorrio como se nada estivesse acontecendo.

— Gatíssima! Vou colocar a Jéssica na ligação também.

Manu olha com nojo para mim e sai do quarto irritado.


Preciso conversar com meu irmão sobre esse seu
preconceito idiota com homossexuais.

— Chegueeei! — diz Jéssica exageradamente.

— Aêêê! — celebra Jaime. —

As meninas superpoderosas estão todas juntinhas. Já aviso


que sou a
Lindinha.

— Quero saber qual o motivo dessa

reunião

virtual,

senhor

Jaime? Eu preciso ir à manicure, minha unha está a treva —


diz Jéssica.

— Pois é, Jaime — concordo com Jéssica. — O que aconteceu


para você ligar assim de repente?

Vejo Pulguento ao fundo do vídeo de Jaime e começo a


chamar a atenção do cachorro, ignorando totalmente meu
amigo. Jaime bufa e foca a câmera do celular em sua cara.

— Meninas, TICO E EU VAMOS

CASAR.

— Quê? Como assim? —

pergunto curiosa.

— Ai, gatas, sabem como que é.

Já moramos juntos há uns meses, mas no papel não somos


casados. E

eu fiquei sabendo por uma fonte SEGURA que Tico vai me


pedir em casamento REAL esta noite.

— E eu posso saber que “fonte segura” é essa? — pergunto.


— Fucei na carteira dele e vi o recibo da compra das alianças

sorri Jaime.

— Arrasou, mona! — fala

Jéssica.

— Ahhh, eu quero ser madrinha!

— digo animada.

— Nem vem, Lily. A madrinha vai ser eu — interrompe


Jéssica.

— Jaime, diz para ela que eu sou mais gostosa e vou ficar
estonteante nas fotos do seu álbum de casamento.

— Como é que é, sua vaca? —

falo sorrindo.

— Fiquem quietas, meninas. —

Jaime diz de modo imponente. —

Vocês parecem duas matracas.

Obviamente que, no cartório, as duas serão minhas


madrinhas. Um casamento gay merece um casal de
madrinhas diferente. As duas vão fazer um par lindinho nas
fotos.

— Adooooooooro! — Dou um

gritinho animado.

— Ai, meninas, vou ser uma senhora casada em breve!


— Você merece, amigo —

acrescenta Jéssica. — Agora tenho que ir à cabeleireira.

— Ué, não era na manicure? —

assinalo.

— É... vou nas duas. Beijos, minhas meninas — diz Jéssica.

Encerramos a ligação e fico com o coração quentinho com as


boas novas. Acho incrível a relação de Jaime e Tico; eles são
amigos e se completam. Fora que são tão lindos. Realmente
amo esse casal.

Decido mandar uma mensagem para Kevin:

Ele me responde rapidamente:

Respondo para Kevin que não tem problema e desço até a


cozinha, onde nem minha mãe nem meu pai se encontram.
Manu está no celular, mas rapidamente o esconde de mim.

— Cadê os dois? — pergunto, referindo-me aos nossos pais.


— Papai saiu faz uns cinco minutos, disse que tinha uma
reunião. Mamãe foi para cama, está trancada no quarto e
pediu para ninguém incomodá-la.

— Espero que ela fique bem e não entre em um estado


depressivo

de novo.

— Não sei, estou achando tudo isso muito estranho. Bom,


vou sair, Lily. Se cuida. E qualquer coisa me manda
mensagem.

Manu me dá um beijo na testa e sai de casa. Vejo que ele


esqueceu um papel onde estava sentado e tento chamá-lo
de volta, mas ele já está longe e não me ouve.

Pego o bilhete para guardá-lo, mas, como quem não quer


nada, abro para ver de quem é.

Leio, e fico assustada.

O bilhete contém a seguinte frase escrita em letras


garrafais:

“SE VOCÊ CONTAR PARA

ALGUÉM,

PRINCIPALMENTE

PARA A LILY, EU ACABO

CONTIGO. MANTENHA ESSA

SUA BOQUINHA FECHADA”.

Guardo o papel em minha


carteira com o coração acelerado e subo correndo para o
meu quarto.

Em que confusão Manu se meteu?

— Morta? Como assim? —

pergunto assustado. — Aqui no prontuário de Lily consta que


a mãe dela a visitou logo após ela ser encontrada e...

— Ela a visitou, Doutor —

Laerte me interrompe —, e nunca mais voltou para casa.

— Eu... eu não entendo —

murmuro.

— É melhor você não entender mesmo, Doutor. Passar bem.

O pai de Lily sai de minha sala e me deixa aqui, parado, sem


nenhuma informação relevante.

Como assim, Theodora está

morta? Por isso Lily estava pedindo pela mãe?


Provavelmente, sim.
Sinto-me arrasado e mais uma vez

lembro

de

Robson.

impossível não recordar do que aconteceu com meu ex-


paciente. A mãe de Lily está morta. Mais uma coincidência.
Um aperto domina meu peito e decido pegar o celular.

Preciso mandar uma mensagem para minha mãe.

“Caramba”, penso chocado. Não entra na minha cabeça que


ela

esteja morta.

Guardo o celular, sei que não serei respondido. E, mesmo


que eu obtenha alguma resposta, não será da forma que eu
desejo.

Dito e feito. Instantes depois escuto meu celular apitar. Leio


na tela o remetente: “Mãe”. Olho a foto dela. Meu coração
aperta e já até imagino o que estará escrito.
Tudo isso é culpa de Robson. Se ele... Se nós não tivéssemos
cruzado o caminho um do outro, hoje eu não estaria nessa
situação.

Quebrado por dentro, sem minha mãe ao meu lado e


envolvido com uma paciente totalmente misteriosa de
passado traumático.

Deixo a mensagem de lado e ligo meu computador. Preciso


entender o que aconteceu com Theodora.

Entro em um buscador qualquer e digito o nome da mãe de


Lily.

Várias matérias aparecem e eu clico na primeira delas.

MÃE

DESAPARECE

APÓS

VISITAR FILHA NA CLÍNICA

A senhora Theodora Sampaio, 49

anos,

foi

dada
como

desaparecida pela polícia local. O

caso surpreende e choca os habitantes da cidade, pois a


mulher é mãe de Lilian Sampaio, a garota que foi encontrada
quase morta quinze dias atrás em um beco perigoso na
região central da cidade.

Segundo o marido da vítima, o empresário Laerte Sampaio,


após receber a notícia de que a filha havia acordado do
trauma que sofrera, Theodora fez questão de ir até o
hospital em que Lilian

estava

internada

no

mesmo

momento.

A mulher visitou a filha e ambas conversaram

muito

pouco,

segundo relatos dos enfermeiros.

“A garota não consegue falar. O

pouco que fala, lembra um bebê. A mãe estava sem reação,


parecia alienada de tudo o que estava acontecendo. A
menina falou algumas palavras para a mãe, mas nenhum de
nós conseguiu entender o que havia sido dito. Acreditamos
que ela tenha contado algo importante

sobre

que

aconteceu”, relatou o chefe da enfermaria.

Após visitar a filha, as câmeras

do

estacionamento

viram

senhora Theodora entrar em seu carro e sair do hospital.


Depois disso, nunca mais foi vista. O

carro da mulher desaparecida foi encontrado horas depois


sem a dona, com uma quantidade muito grande de sangue.
Os exames preliminares apontaram que o sangue
encontrado no veículo é de Theodora Sampaio”.

Então, Theodora visitou Lily. A garota disse alguma coisa


para a mãe que, segundo relatos, a deixou

“sem reação”. Em seguida, a mulher desapareceu. Seu carro


foi abandonado, o que descarta a hipótese de roubo. Muito
sangue foi

encontrado no lugar.
Não é preciso ser um gênio para ligar os pontos. Lily contou
tudo para a mãe. A garota sabe o que aconteceu e quem fez
isso com ela.

Theodora também ficou sabendo e, de alguma forma, o ou a


marginal descobriu que a mulher sabia a verdade e decidiu
dar um fim nela.

Mas como essa pessoa descobriu tão rápido que Theodora


sabia de tudo?

Olho para o meu celular.

“Telefone”, é óbvio. Theodora deve

ter

ligado

para

quem

violentou sua filha e revelado o que Lily falou. Será que a


mãe da garota

ameaçou

denunciar

indivíduo responsável pelo crime?

E essa pessoa, desesperada, deve ter marcado de encontrá-


la para esclarecer as coisas e, então, tudo aconteceu. É isso.
Tem que ser isso.
Toda a chave desse mistério deve estar no celular de
Theodora. A última pessoa para quem ela ligou tem grandes
chances de ser quem fez isso à Lily. Leio mais algumas
notícias e vejo que o aparelho não foi

encontrado.

Os

policiais

responsáveis

investigaram

ocorrido, mas não descobriram nada.

Alguns investigadores tentaram falar com Lily, mas a garota


não

conseguiu responder às perguntas.

Leio nas notícias que, quando indagada sobre quem poderia


ter feito isso com sua mãe, Lily desmaiou.

Em

uma

outra

oportunidade, a garota começou a chorar.

Vejo uma matéria mais recente, do final do mês anterior.

MÃE
DESAPARECIDA

PROVAVELMENTE ESTÁ MORTA, CONFORME MÉDICO LOCAL.

O desaparecimento de Theodora Sampaio continua


intrigante e, infelizmente, as notícias não são boas.

Um

morador

de

rua

encontrou um pedaço de braço em estado de putrefação no


mesmo

lugar em que Lilian, filha de Theodora, foi encontrada quase


sem vida no mês passado.

membro

estava

em

decomposição avançada e foi levado pelos peritos para


análise.

Após exames de DNA feitos em cima

de

vestígios

humanos
encontrados de Theodora Sampaio foi confirmado que o
braço lhe pertencia

e,

segundo

os

investigadores, ele fora decepado há mais de um mês, época


que bate com a data em que a mulher desaparecera. O que
chama a atenção, segundo os médicos, é que a ponta do
braço apresenta sinais de queimaduras graves, o

que os leva a acreditar que a vítima tenha sido carbonizada


e teve

braço

cruelmente

arrancado como prova de que foi assassinada.

A polícia continuará procurando pelo corpo, mas, na opinião


pessoal do delegado responsável pelo caso, não há mais
esperanças de encontrar a mulher com vida, dada

perda

do

membro,
quantidade de sangue encontrada no carro da vítima e
marcas de queimaduras que indicam que a vítima

foi

exposta

uma

temperatura elevadíssima.

Fico enojado com tanta ruindade.

Como alguém teria coragem de

fazer isso com um ser humano?

Arrancar o braço? Queimar? Sinto vontade de vomitar, mas


me recomponho. A pessoa que fez isso com Lily e agora com
Theodora não tem limites para a crueldade.

É engraçado como o destino de mãe e filha tomaram o


mesmo rumo. Ambas sofreram de forma violenta nas mãos
de um psicopata cruel, a diferença é que uma conseguiu
sobreviver.

Como o braço decepado de

Theodora foi parar no mesmo lugar em que Lily foi


encontrada quase morta? Releio a parte da notícia que diz
que o membro estava em decomposição. Quem fez isso com

a mulher deve ter guardado o braço dela consigo durante


todo esse tempo.
Agora, mais do que nunca, preciso conversar com Lily, mas,
ao mesmo tempo, sei que preciso dar um espaço para a
garota. Vou esperar para falar com ela amanhã.

Enquanto isso, posso fazer outra coisa.

Ligo para Júlio e informo que vou precisar me ausentar por


alguns instantes. Ele não vê problemas, minha próxima
consulta é só à tarde.

Vou até o estacionamento e entro no meu carro. Pego minha


carteira e a abro. Vejo o cartão que recebi

de Jaime e coloco o endereço no GPS. Preciso saber mais


sobre Lily,

então

dirijo

para

hamburgueria de seu amigo.


O casamento de Jaime e Tico vai acontecer mais rápido do
que imaginei. Já é amanhã!

Durante os últimos dias, ainda não tive coragem de falar


com Manu sobre o bilhete que ele recebeu.

Sempre

que

nos

encontramos, ele está de saída, e, nas

poucas

vezes

em

que

poderíamos conversar, eu fraquejei e não puxei o assunto.

Mas,

excepcionalmente

hoje,

decido deixar esse assunto de lado e passo o dia com Jéssica


no shopping em busca das nossas roupas de madrinha.
Sinto-me totalmente

animada

com

o
casamento dos meninos.

Nesses últimos dias, também não conversei muito com Kevin


e estou morrendo de saudades. Quando estou saindo do
shopping, envio uma mensagem dizendo que vou passar
rapidinho em casa e que em seguida vou para a casa dele.

Chego em casa, entro para deixar minhas sacolas e dou de


cara com meu pai.

— Não dá mais boa noite, Lily?

— Boa noite, pai!

— Vem aqui dar um beijo no seu pai.

Sinto uma raiva imensa dentro do meu peito, mas lembro da


promessa que fiz para minha mãe e vou até ele. Encosto
rapidamente meus lábios em sua bochecha e me afasto.

— Calma, filhota, vem aqui.

Ele me abraça e encosta sua boca em minha bochecha. Um,


dois, três, quatro, cinco segundos. O beijo é molhado, tenho
vontade de esfregar minha cara para tirar qualquer resquício
de saliva que esteja ali, mas me seguro.

— Onde está mamãe? —

pergunto.

— Sua mãe está deitada, Lily. Ela não está muito bem
ultimamente.

Receio que ela tenha que voltar com os antidepressivos.

“Óbvio”, penso. Meu pai acabou com a vida dela com essa
traição ridícula. Cerro meus punhos. Por dentro, quero dar na
cara dele, mas, por fora, sorrio.

— Pai, preciso subir, deixar as coisas e sair de novo. Sabe


como é, amanhã é o casamento do Jaime...

— Não volte tarde, filha. Eu não quero que nada de ruim


aconteça com você.

— Nada vai acontecer, pai. Fique tranquilo!

Subo correndo e fecho a porta do

meu quarto. Estou tremendo e ofegando, e nem sei por quê.


Tomo um pouco de água da garrafa que fica na minha
escrivaninha e respiro fundo.

Não posso me sentir assim toda vez que ficar perto de meu
próprio pai. Não quero me sentir assim. Às vezes, penso que
preferia não saber das coisas que Jéssica e minha mãe me
disseram. Devo estar vendo coisas onde não têm.

Pego o celular e envio mais uma mensagem para Kevin


avisando que estou indo encontrá-lo.

Ao descer as escadas de casa, encontro com meu pai


novamente.

— Tome cuidado, Lily. Você é

muito preciosa para mim. Não deixe ninguém te enganar.

— Já sou crescida, pai. Já disse que você pode ficar tranquilo.

— Mesmo crescida, você sempre será meu bebê, Lily. — Ele


se aproxima. — Lembro de quando te colocava em meu colo
até dormir.

Você se lembra?
— Pai, eu preciso ir e...

— Cadê o meu beijinho de boa noite?

Beijo rapidamente sua bochecha e tento sair quando ele


segura em meus pulsos.

— Lembre-se, minha filha, o mundo está cheio de pessoas


maldosas.

Nunca

confie

em

ninguém. Tenha sempre a sua própria opinião e percepção.

Meu pai beija minha bochecha demoradamente e me abraça


muito forte. Assim que ele me solta, saio correndo.

Kevin me beija e tira meu sutiã.

Estou tão excitada que os bicos dos meus seios estão duros.
Ele os chupa com uma ferocidade incrível e eu desço minha
mão até minha intimidade, que está molhadíssima.

Kevin fica louco ao ver que estou me tocando, então, pego


meus dedos, passo em minha boca e, em seguida, o puxo
para um beijo.

— Amor — começo —... sabe do que eu tenho vontade?


— Do quê, minha gostosa?

— De sentir sua boca lá embaixo.

— Amor, eu já te disse... Eu tenho nojo.

— Mas eu chupo o seu...

— Porque é normal a mulher chupar o homem, minha deusa.


O

contrário,

não.

Mas

não

se

preocupe que eu vou te compensar de outras formas. E eu


tenho certeza de que você vai gostar. —

Kevin diz enquanto coloca a camisinha.

Sinto-me devastada com ele falando que sente nojo de me


chupar, mas guardo para mim. Esse

não é o momento. Depois a gente conversa. Agora, eu só


quero saber quais são essas “formas” de ele me compensar.

— Abre as pernas para mim, amor — pede Kevin.

Seu membro duro vai entrando em mim e começo a me


sentir preenchida. Ele está botando bem devagarzinho e eu
vejo sua cara de prazer à medida que coloca mais um
pouquinho. Devagar. Está entrando. Hmmm, como é grosso.
Ah, pronto! Entrou tudo. Agora vai!

— Ah, amor! Gozei muito! —

fala ele em seguida.

— Quê…? JÁ?

— Eu não consegui segurar,

amor. Já falei, você é muito apertadinha.

— Mas você acabou de colocar.

— E que culpa eu tenho, porra?

Quem manda você ser tão apertada assim?

— Você... Você é um babaca, Kevin!

Visto minhas roupas, sentindo-me humilhada. Já estou cheia


de tudo o que está acontecendo. Primeiro meu pai e agora
isso?

Cansei de entender o Kevin, cansei de ser a responsável por


tudo o que acontece na nossa relação sexual. Ele pode ser
maravilhoso como homem, mas é péssimo no sexo. Posso
não ter

muita experiência, mas eu sei que um homem deve


aguentar mais que dez segundos.

— Lily... calma, amor.

— Eu já falei, Kevin: ou vamos fazer uma terapia juntos para


tentar resolver esse seu problema ou não dá mais.
Pego minhas coisas e, antes de sair do quarto, grito bem
alto:

— E SAIBA QUE NÃO É

MINHA CULPA QUE ESSE SEU

PINTO NÃO AGUENTE NEM

CINCO SEGUNDOS!

Dirijo-me até a saída da casa de Kevin e vejo seus pais na


sala, olhando-me constrangidos. Estou tão irritada que nem
ligo se

ouviram meus gritos e saio sem me despedir de ninguém,


bufando como uma locomotiva.

Decido ir para a casa de Jéssica e, ao chegar, bato irritada na


porta até ela abri-la.

— Ei! Não quer derrubar a porta logo? — Jéssica diz ao me


ver na entrada de sua casa.

Preciso

conversar!

respondo.

Entro na casa dela e, em seguida, vamos para o seu quarto.


Ao me deitar na cama, desabafo e conto tudo para ela.
Explico que menti, que nunca gozei com Kevin e que ele não
consegue segurar o orgasmo nem por tempo suficiente
para eu dar uma respirada mais profunda.

— Você não devia ter mentido, Lily. Mas que cachorro!


Homens são todos iguais, a culpa sempre é da mulher, até
quando eles não conseguem deixar o pau meia bomba em
pé tempo suficiente para nos dar prazer.

— Nem me fale. Eu tentei ser compreensiva. Tentei uma,


duas, três, dez vezes. Sugeri terapia.

Tentei de tudo. Mas não importa o que eu fale, sempre volta


para mim.

“Você é apertada”. “Eu não tenho culpa que não consigo


segurar”.

Será que realmente sou a culpada?

— Amiga, relaxe, você não tem

culpa nenhuma. Tire essa ideia da cabeça. Se tem um


culpado, esse alguém é ele por não conseguir retribuir o
prazer que você dá.

— Jéssica, não vai falar nada para o Kevin que eu te disse


isso, pelo amor de Deus.

— Claro que não, amiga. Confia em mim.

Conversamos mais um pouco e, quando dou por mim, já são


quase dez horas. Preciso ir para casa, pois amanhã
acordamos cedo para o casamento dos meninos. Antes de
sair, vejo um casaco cinza claro na cadeira de Jéssica.

— Jéssica, esse moletom...

Pego a peça cinza e a reconheço.


É a blusa de Kevin. Eu dei para ele logo que começamos a
namorar.

— Isso é do Kevin — digo.

— É... É sim, amiga. Ele me emprestou naquele dia em que


fomos ao shopping. Eu estava um pouco gripada e o ar-
condicionado estava muito forte. Como eu não parava de
espirrar, ele acabou me oferecendo o casaco. Aí, sabe como
é, eu nunca mais o vi e acabei não conseguindo devolver.

Se você quiser levar para ele, inclusive, fique à vontade.

— Ah, entendi — digo, ao compreender a situação. — Claro,


levo sim. Obrigada por me ouvir, amiga. Nos vemos amanhã,
então?

— Claro! Amanhã estaremos belíssimas

naquele

casamento,

mais que o noivo!

— Haha, deixa o Jaime ouvir você falando isso que ele te


mata.

Saio da casa de Jéssica e vou para a minha. Seguro o


moletom cinza de Kevin e sinto seu cheiro.

Lágrimas enchem os meus olhos.

Eu o amo, mas essa situação não pode continuar assim.

Lembro do dia em que encontrei Jéssica e ele no shopping. O


mais engraçado de tudo é que eu poderia jurar que, naquele
dia, Kevin estava com um moletom preto.
A hamburgueria de Jaime possui um aspecto bem
aconchegante. Não chega a ser um lugar imenso, mas
também não é pequeno. Acredito que deva caber cerca de
cem pessoas.

Escolho um lugar próximo ao balcão e me sento em uma


cadeira muito confortável. O movimento ainda está fraco.
Olho para o relógio e ainda são 11h15min; o restaurante
deve começar a encher

por volta do meio-dia.

Um garçom vem me atender e eu peço uma xícara de café.


Vejo Jaime cruzar a porta de entrada falando ao celular e
aceno para ele.

O rapaz sorri e vem em minha direção.

— Mas veja só se não é o Doutor Delícia que veio me visitar.


Jaime diz, sentando-se na minha frente.

— Pois é, Jaime. Vim conhecer seu restaurante e falar com


você.
— Não me diga que com essa barriga retinha você veio aqui
comer hambúrguer? Ou será que veio comer uma coisa mais
gostosa? — O rapaz pergunta com

uma cara de safado.

Engasgo com meu café.

— Não, não. — Dou um sorriso para ele. — Jaime, estou


muito preocupado com Lily e gostaria de trocar uma
palavrinha com você.

— Não tenho sorte mesmo.

Pensei que o bofe tinha vindo atrás de mim, mas veio saber
de rabo de saia — sorri ele. — Vamos comigo para o meu
escritório. Tenho um tempinho antes do restaurante começar
a lotar e lá a gente tem mais privacidade. O pessoal daqui
da equipe é tudo fifi. Ah, e esse café é por conta da casa.

Nós nos levantamos e eu o acompanho. Jaime rebola de


modo

excessivo à minha frente enquanto subimos uma pequena


escada que dá de frente para uma porta de madeira. Ele
deve estar tentando me provocar e eu, claro, preciso dançar
conforme a música para obter as informações de que
preciso.

— Pode se sentar, Doutor Delícia

— diz ele, logo que entramos no espaço.

A sala de Jaime é bem organizada e, ao contrário do dono,


bem discreta. Poucos móveis a decoram e todos possuem
cores neutras que combinam com o ambiente rústico do
restaurante. Sento-me na cadeira que fica em frente à mesa
de Jaime,
mas, em vez de o rapaz sentar-se do outro lado, puxa um
banquinho e se acomoda rente a mim, com a perna bem
encostada na minha.

— No que posso te ajudar? —

Ele pergunta.

— Jaime, preciso saber se a Lily comentou alguma coisa com


você, em uma das vezes em que você a visitou, sobre quem
possa ter feito isso com ela?

Direto e reto. Jaime se afasta e, pelo visto, decide que é


melhor se sentar do outro lado da mesa. Acho que
finalmente percebeu que não estou aqui para brincadeiras.

— A Lily nem fala direito, Doutor. Ela ficou retardada depois

do ataque.

— Não acho que ela possua retardo mental algum, Jaime. Ela
ficou

traumatizada

sim,

mas

entende tudo o que acontece ao seu redor. E tenho minhas


crenças de que ela se lembra de tudo o que aconteceu.

— Que seja! De nada adianta se ela não consegue formar


frases completas.

— Com o tratamento certo, ela vai falar. Eu tenho esperança


nisso.
— Assim espero. — Jaime passa os dedos por seus olhos,
como se estivesse secando lágrimas. —

Sinto muita falta daquela vadia.

Somos amigos desde criança.

— Eu fiquei sabendo. Ela parece gostar muito de você.

— Ah, a Lily me adora! Aliás, ela me ama. Ela já me falou


isso tantas vezes. Ela foi a madrinha do meu casamento com
o traste do meu ex.

— O Tico?

— O próprio.

— E, desculpe a pergunta, mas por que vocês se separaram?

— Isso não é da sua conta, Doutor Delícia. E acho que não


tem nada a ver com o caso da Lily.

Tem

razão.

Foi

pura

curiosidade.

Abro o sorriso mais sensual para Jaime e percebo que ele se

desarma. O rapaz está encantado novamente.


— Mas me conte, Jaime, como era a mãe de Lily, a
Theodora?

— Ah, Doutor, que Deus a tenha.

Aquela mulher era maravilhosa. Só ela mesmo para poder


aguentar aquele marido. A Jéssica me contou umas histórias
horrorosas sobre ele.

— Que histórias? — pergunto mostrando desinteresse, mas,


na verdade,

estou

morrendo

de

curiosidade.

— Ah, faz muito tempo. A Jéssica tinha uns catorze anos e


ela me jurou de pé junto que o pai da Lily tinha dado em
cima dela. Não só

para mim, na verdade. Quando ela me contou essa história,


a Lily também estava. Bom, eu nunca gostei muito desse
Laerte. A Lily não acreditou muito na Jé, mas eu acredito.
Esse homem tem um jeito de pedófilo.

— E qual seria o jeito de pedófilo?

— Ah, sei lá, Doutor Delícia.

Isso você que tem que me dizer.

Você é o psicólogo, eu sou só um rapaz doido para dar um


apertão nesse seu bíceps enorme.

Pedófilos

não

têm

estereótipos, Jaime. Se tivessem, seria muito mais fácil de


identificá-los e muitas crianças não seriam

vítimas de seus abusos. É muito arriscado estereotipar um


certo tipo de pessoa como “pedófila”, pois podemos fazer
uma acusação indevida. O que devemos fazer é prestar
atenção no comportamento do indivíduo. Isso, sim, pode nos
dar dicas se ele possui ou não um comportamento
inadequado.

— Uau, além de gostoso é inteligente? — Jaime sorri. — É

realmente o homem perfeito para mim.

Percebo que não vou arrancar muita coisa dele. É capaz de


ele arrancar minha calça e me atacar, se eu continuar mais
cinco minutos dentro desta sala.

— Acho que não consegui te ajudar muito, não é, Doutor?

Na verdade, a informação de que Jéssica foi “cantada” por


Laerte é muito interessante, mas não posso demonstrar isso
para ele.

— Não se preocupe, Jaime. O

que você pode me falar de Lily, sendo um dos melhores


amigos dela?
— Lily é uma menina doce e até inocente, Doutor. Não vê
maldade em nada. Ela acredita muito nas pessoas e no lado
bom de cada uma delas. Pena que nem todo mundo é tão
bonzinho assim.

— Inclusive você, Jaime?

— Inclusive eu, Doutor. — Jaime

abaixa o olhar.

A porta de seu escritório é aberta com tudo.

— Jaime, eu preciso falar com você AGORA! — Escuto uma


voz feminina gritando ao entrar na sala.

E aqui está ela, a pessoa com quem eu mais precisava falar.


Nem precisei

sondar

Jaime

para

descobrir seu contato, Jéssica estava aqui, parada à minha


frente.
Jéssica e eu chegamos juntas ao cartório para o casamento
de Jaime. Minha amiga está linda no vestido verde musgo
que escolheu para a cerimônia. Porque tínhamos de vir
combinando — afinal, somos um casal de madrinhas —,
acabei comprando um vestido da mesma cor, mas em outro
modelo.

Tico já chegou e está ansioso aguardando o noivo. Óbvio que


Jaime ia encarnar a personagem da

noiva e se atrasar.

— Está nervoso, Tico? —

pergunto.

— Bastante! Espero que ele não me abandone justo agora.

— Claro que não. O Jaime é apaixonado por você — diz


Jéssica.

Finalmente, Jaime chega em uma limusine

branca

chiquérrima.

Quando as portas se abrem, Jéssica e eu ficamos


boquiabertas. Nosso amigo veste um terno branco que o
deixa deslumbrante. Tico sorri ao ver o noivo.

— Você está lindo, meu amor —

fala Tico.

— Calma aí, garanhão. Beijar a

noiva é só depois do sim — brinca Jaime.


Os dois dão as mãos e entram no cartório; Jéssica e eu
vamos logo atrás.

Fico bastante emocionada com o relacionamento deles e


sinto uma pontinha de inveja por não ter um parceiro assim.
Desde ontem que não falo com Kevin e nem sei se quero.
Cada minuto que passo longe

dele

me

deixa

mais

convencida de que não devo mais olhar para a sua fuça. Ao


mesmo tempo penso que posso estar descontando em Kevin
todos os problemas que venho passando em minha casa e
deveria, sim, ser um

pouco mais paciente com ele.

A cerimônia começa e o juiz de paz inicia o falatório daquele


monte

de

baboseiras

que

geralmente

são

ditas
nos

casamentos.

Estou

de

braços

cruzados com Jéssica, que está quase

dormindo.

Dou

uma

cotovelada em sua costela que a desperta. Em seguida, ela


sorri para mim e sussurra:

— Acho que nunca vou me casar.

Pelo menos como madrinha fico mais distante e posso


bocejar e disfarçar o meu tédio. Imagine só, eu, na frente do
juiz, tendo que manter a aparência intacta como se tudo
estivesse interessante. Deus

me livre.

— Cala a boca e presta atenção, Jé — murmuro.

Tico tira um par de alianças do bolso de seu terno e coloca


uma delas no dedo anelar de Jaime.

Meu amigo chora ao mesmo tempo que lamenta, para o juiz


e para a equipe de filmagem a qual registra a cerimônia, que
vai borrar a maquiagem. Ele não tem jeito.
Em seguida, Jaime pega a outra aliança, abre a calça de Tico
e a joga rapidamente dentro de sua cueca.

— Mais tarde eu pego essa aliança com a boca e coloco no


seu dedo, meu amor.

O juiz fica embaraçado e decide encerrar a cerimônia


rapidamente.

Os noivos assinam o livro de registro e são declarados


casados.

Tiramos algumas fotos e eu não paro de chorar.

— Meninas — diz o assistente do juiz —, não esqueçam de


assinar como testemunhas.

Jéssica vai na frente enquanto eu converso com Tico e Jaime.


No fim da tarde os dois vão viajar em lua de mel e ficarão
alguns dias nas Bahamas.

Pergunto sobre o Pulguento e Jaime diz que ele está muito


levado. Ele ainda não teve tempo de levá-lo para a ONG,
mas fará

assim que voltar da lua de mel.

Digo que quero visitá-lo uma última vez, antes disso, para
me despedir.

— Lilian Sampaio? — ouço a voz do juiz.

Chegou a minha vez. Vou até o livro e registro minha


assinatura.

Mas, então, fico chocada com o que vejo logo acima na


folha. Não pode ser.
Disfarçadamente,

abro

minha

carteira e pego o bilhete que estava dentro dela. Olho o que


está escrito nele e comparo com o que está no livro de
registro. É a mesma letra.

O bilhete de ameaça que meu irmão recebeu foi enviado por

Tico.

Aguardo

enquanto

Jéssica

conversa com Jaime. Parece que ela precisa de umas roupas


que ficaram com Tico por algum motivo e Jaime fala que vai
entrar em contato com ele, mas somente mais tarde. A
garota fica irritada dizendo que precisa das roupas com
urgência e Jaime rebate que, se está com tanta pressa, ela
mesma ligue para Tico.
Jéssica fica nervosa e deixamos a sala de Jaime juntos, indo
em

direção à saída da lanchonete.

— Esse menino me irrita às vezes

— resmunga ela. — Nem sei como consigo ser amiga dele há


tanto tempo.

— Amigos são assim mesmo.

Nem tudo são flores. Quer uma carona?

— Ah, eu vou adorar.

Chegamos na frente do meu carro e abro a porta para


Jéssica, que entra e se acomoda no banco do carona. Dou a
volta e me sento ao seu lado.

— Onde te deixo? — pergunto

— Pode me levar para a clínica.

Aproveito e faço uma visita para Lily.

— OK.

Dou partida no carro e, enquanto dirijo, coloco uma música.


Algo mais clássico e erudito sempre é uma boa pedida para
deixar as pessoas mais relaxadas. Espero que Jéssica goste
de Ludovico Einaudi.

— Ian, certo? — pergunta ela. —

O que você estava fazendo no escritório do Jaime? Não me


diga que está a fim dele.
— Não, não. Minha praia é outra.

Enfim,

estou

trabalhando

na

recuperação de Lily e precisava saber de algumas coisas


sobre ela.

Conhecendo melhor sua vida, acredito que posso me


aproximar e

trabalhar em sua recuperação.

— Ah, mas então você deveria ter falado comigo. Eu sou a


best friend da Lily.

— Jaime me disse o mesmo —

digo sorrindo.

— Na verdade, nós três sempre fomos muito unidos. Mas,


nos últimos tempos, Jaime estava mais preocupado

com

namoro/casamento fracassado dele com o Tico do que com


os meus problemas. Ou os de Lily.

— Casamento fracassado? —

Faço-me de desentendido. — Ele e Tico não estão juntos?


— Ele não contou para você?

— Não — minto. — Os dois

foram visitar Lily juntos e achei que eram um casal. Não


entendo.

— Que estranho... Enfim, eles se separaram logo após o


ocorrido com a Lily. Não ficaram nem um mês casados.

— E por quê? — Uso minha tática de demonstrar


desinteresse no tom de voz, para, quem sabe assim, Jéssica
soltar algo achando que não é importante para mim.

— Ah, Ian — começa Jéssica —, acho melhor você perguntar


isso direto ao Jaime. Ele é meu amigo e não gosto de fofocas.

Droga, tática errada! Esqueci que Jéssica gosta de ser o


centro das atenções. Deveria ter mostrado

muito interesse no que ela estava falando, tenho certeza de


que dessa forma ela iria se sentir importante e me contar o
que ocorreu.

— Mas, mudando de assunto — a garota começa —, o que


você gostaria de saber sobre Lily? Sou um livro aberto para
você.

Essa garota está dando em cima de mim. Não posso negar


que ela seja muito gostosa e meu corpo esteja reagindo com
sinais de excitação, mas tento me controlar.

— Conte-me mais sobre a Lily.

Como ela era antes do ocorrido? O

que você pode me dizer sobre ela?


— Ah, a Lily era sensacional.

Nós nos falávamos TODOS OS

DIAS, sabe? Eu contava todos os meus segredos para Lily,


ela estava a par de tudo o que acontecia comigo.

— E acredito que ela também te contava tudo.

— Ora, é óbvio! Best friends são para isso.

— Conte-me mais sobre Kevin

— provoco, lembrando-me da mensagem que vi no celular


dela.

Jéssica me olha assustada.

— Como assim? O que você ouviu dizer?

— Ué, ele é o namorado de Lily, certo? — digo com ar


inocente de quem não sabe de nada. — Imagino que você,
como best friend dela,

deva saber muita coisa sobre ele.

— Kevin... Ele era um namorado maravilhoso para Lily.

— “Era”?

— Sabe, Doutor, o senhor é curioso demais, não acha? — diz


Jéssica sorrindo maliciosamente para mim.

Meu membro acorda de vez e fica duraço.

— Hmmm, parece que alguém está acordadinho — diz a


garota apertando minhas partes baixas.
Porra! Faz meses que não transo com ninguém e não sou de
ferro.

Jéssica não é minha paciente e já tem dezoito anos. Não tem


nada errado se eu me relacionar com ela.

Mas preciso me concentrar, não posso ceder à tentação.


Decido ser mais invasivo.

— Sabe, Jéssica, eu que achei seu celular. E vi a mensagem


que Kevin te mandou, te chamando de

“namorada”.

Jéssica retira sua mão de mim e me olha enfurecida.

— Com que direito...

— Não te julgo, Jéssica —

interrompo.

Você

estava

sozinha.

Sua

amiga

estava

internada. Jaime estava com os problemas com o marido


dele.
Você precisava de atenção.

A garota fica muda e eu continuo:

— Você naturalmente precisa de

pessoas ao seu redor. Você pode ter essa beleza toda, mas é
carente, necessita de alguém a todo momento perto de
você. Acho que por isso você e Lily se davam tão bem. Ela
estava sempre disponível para quando você precisasse,
certo?

A garota permanece calada e olha fixamente para a frente


do carro.

— Vamos, Jéssica, eu sei que você sabe que não foi um


bandido qualquer que fez isso com a Lily.

Eu sei que você deve pelo menos desconfiar de quem fez


isso com a sua amiga.

A garota me olha intrigada.

— O-o quê? Você acha que

alguém que a Lily conhece faria isso com ela?

— Você não acha?

— Eu nunca pensei nisso. — Ela reflete por alguns segundos.


Não, isso não é possível. A Lily era muito boa, não acredito
que alguém teria coragem de feri-la dessa forma.

— E o pai da Lily?

— O que tem o Laerte? —


Jéssica se mostra irritada.

— Fiquei sabendo que ele

assediou você quando era menor de idade

que

você

ficou

visivelmente incomodada.

— Olha, esquece essa história, tá? Eu conversei com a Lily


na

época e estava brava com o pai dela por uma coisa que ele
não fez, daí inventei tudo. Esquece isso.

— Jéssica, confie em mim!

Precisamos ajudar a Lily. Eu sei que você quer isso. Você


precisa do perdão dela, não é?

— Perdão?

— Sim. Por estar apaixonada pelo ex-namorado dela.

Jéssica fica paralisada.

— Ela... ela nunca vai me perdoar.

— Você não sabe, Jéssica.

Precisamos fazer o possível para ajudá-la a se recuperar.


— Eu falei com ela, Doutor. — A garota está enfurecida. — Eu
contei

tudo para ela assim que ela acordou. Ela sabe muito bem
com quem estou saindo. E sabe qual foi a reação dela? Ela
simplesmente não fala mais comigo. Nada. Eu sei que ela
consegue falar. Poucas palavras, mas consegue. Mas, agora,
ela sequer olha nos meus olhos. Me despreza totalmente.

Você acha realmente que ela consegue me perdoar?

— Dê tempo a ela, Jéssica. Lily está com muitos problemas.


Com o tempo ela vai acabar entendendo que vocês se
aproximaram depois que tudo aconteceu e...

— Eu quero descer — diz ela interrompendo-me.

— Jéssica, estamos no meio do nada e...

ME

DEIXA

DESCER,

PORRA! EU QUERO DESCER

DA MERDA DESSE CARRO.

Fico assustado com sua reação e peço que ela aguarde eu


estacionar para

que

possa
descer

em

segurança na calçada. Encontro uma vaga em frente a um


pequeno bar e paro o carro.

— Jéssica, me desculpe se eu fui longe demais, mas eu


precisava...

— Sabe, Doutor Ian — ela me corta e me encara —, eu


entendo que você esteja tentando salvar a Lily, mas eu me
pergunto — a garota começa a chorar — a que

custo para o restante de nós. Você pode nos destruir.

— Jéssica...

— Eu poderia ter te dado um boquete, mas você não


merece.

Você

um

filho

da

puta

intrometido.

A garota abre a porta do meu carro e sai nervosa. Ela bate a


porta do carro e dá sinal para o primeiro táxi que passa na
rua.
Respiro fundo. Sua reação foi mais exagerada do que
imaginei.

Alguma coisa que eu disse a deixou dessa forma. Arisca.


Irritadiça.

Mas o quê?

Dou descarga no vaso sanitário do cartório e em seguida


jogo água no

meu

rosto.

Dane-se

maquiagem.

Após descobrir que o bilhete ameaçando meu irmão foi


enviada por Tico, corri para o banheiro alegando que
precisava muito utilizá-lo. Já se passaram quinze minutos e
agora estou mais calma.

Saio do toalete e vejo que não tem mais ninguém na sala de


cerimônias. Vou até a entrada do local e encontro Jéssica
mexendo no celular.

— Cadê o Tico e o Jaime? —

digo esbaforida.

— Eles acabaram de entrar no carro e foram embora. Parece


que o Jaime vai levar o Tico para almoçar em algum
restaurante chiquérrimo. Sabe como é, né?

Eles

não

quiseram

nenhuma

comemoração e...

— Sei, sei — interrompo minha amiga.

Estou aflita. Por algum motivo, Tico está ameaçando Manu e


eu preciso saber qual é. O que será que meu irmão sabe
sobre Tico e

que deve ficar em segredo?

— Jéssica, eu preciso ir embora.

— O que houve, Lily? Parece que você vai vomitar.

— Acho que vou mesmo! Alguma

coisa que eu comi não deve ter feito muito bem ao meu
estômago

— minto.
— Ai que horrooor! Vai, vai.

Quer que eu peça um Uber?

— Não, obrigada. Deixa que eu peço. Tchau, miga. Te amo!

— Também te amo, vaca. E

melhoras.

Pego o Uber e, durante todo o trajeto para minha casa, vou


assustada e afobada. Não queria que Manu soubesse que sei
dos

seus problemas, mas vou ter que confrontá-lo.

— MANU? MANU? — chamo

ao entrar em casa.

— Que é, Lily? Estou aqui no meu quarto. — Ouço a voz de


meu irmão.

Subo a escada de dois em dois degraus e entro no quarto


dele sem bater.

Ei,

que

invasão

de

privacidade é essa? — diz ele.

— Manu, você precisa me...


ECA! O que tem aqui dentro desse quarto? Um gambá
morto?

Abro a janela do cômodo e tomo um ar, porque senão


vomitarei de verdade. Por que os quartos dos

garotos costumam ser tão nojentos?

— A dondoca vai me explicar por que invadiu meu quarto


dessa forma ou vai ficar aí se fazendo de sensível

por

causa

de

um

pouquinho de chulé?

— Pouquinho? Garoto, nem toda a coleção da Chanel pode


acabar com esse chulé todo que tem aqui dentro.

Tiro o bilhete de minha carteira e o mostro para Manu.

— Manuel, o que é isso?

Meu irmão fica arrepiado.

— Onde você achou isso, Lily?

— Você deixou na cozinha um dia desses. Eu achei que era


uma notinha qualquer e fui olhar para

ver se era algo importante antes de jogar fora. E aí me


deparei com um bilhete de ameaça. Você vai me explicar ou
vou ter que contar aos nossos pais?
— Não ouse abrir essa sua boca grande, Lily. Eu nunca contei
seus segredos, não contei que você continua

saindo

com

seu

namoradinho, então não se meta nos meus problemas e


cuida da sua vida!

Manu pega o bilhete de minha mão e o amassa. Em seguida,


o guarda.

— Manu, eu me preocupo com você! Você vai me contar o


que significa isso, ou não?

— Não é nada, Lily. É um idiota do time de futebol que me


ameaçou porque comi a mina dele, nada sério.

— Não mente para mim, Manuel!

Eu sei que esse bilhete veio do Tico!

Manu

ficou

branco,

parece

prestes a desmaiar na minha frente.

— Como... como...

— Eu vi a letra de Tico hoje. É


exatamente a mesma desse bilhete.

Olha, eu sei que você é meio homofóbico, então, se você fez


alguma coisa ruim que ele esteja usando para te ameaçar,
eu posso conversar com o Jaime e...

— NÃO SE METE! — Ele me

interrompe.

Manu se levanta e me prensa contra a parede, segurando


meu pescoço com uma só mão. Começo a perder o ar.

— Não se mete, entendeu? Isso não é para o seu bico. Isso


não tem nada a ver com você.

Manu me solta e vai em direção à porta do quarto.

— E só para você saber: eu não sou homofóbico!

Meu irmão pega seu celular e bate a porta do quarto. Em


seguida, escuto a porta da sala bater com força. Ele saiu e
me deixou aqui, mais perdida do que nunca.

Minhas consultas com Lily não avançam. A garota não me dá


abertura para falar sobre assuntos mais pesados e suas
frases continuam deficientes e, algumas vezes, sem sentido.
Depois da sessão de hoje, ela saiu de minha sala e foi direto
para uma visita do irmão.

Peço

para

enfermeiro

responsável avisar Manu que quero falar com ele assim que
a visita

terminar. Tenho um tempo antes de minha próxima consulta.


Alguma peça fundamental está faltando nessa história e eu
não consigo encontrar qual é.

Lily é um mistério para mim. Não consigo me controlar; sua


história, seu sofrimento, seu passado me atormentam. Fora
o fato de... Não!

Isso é só uma coincidência.

Pego uma caneta e abro minha caderneta. Começo


escrevendo: “O

que sei de Lily?”

De acordo com as informações que colhi, a garota sempre foi


muito querida por todos. Ninguém ousou falar um “A” dela.
Não sei muito sobre sua relação familiar,

mas sei que seu pai é um homem bem autoritário.

Laerte. O pai de Lily. Sente-se dono de tudo e de todos, mas


eu tenho
certeza

de

que

sua

agressividade

esconde

alguma

coisa.

ele

falou

muito

naturalmente sobre a morte de sua esposa, parece que não


sentiu nada com o falecimento da mulher.

Abro o site e releio a notícia sobre a morte da mãe de Lily.

Theodora. A mulher desapareceu após visitar Lily.


Assassinada!

Uma grande quantidade de sangue foi encontrada e também


um pedaço de seu braço. Ela devia saber alguma coisa e por
isso foi

silenciada. O que aconteceu com Theodora? Como ela foi


morta?
Sinto que, se eu consegui ligar todos os pontos do caso de
Lily, conseguirei solucionar inclusive o mistério da morte da
mãe dela.

Anoto o nome de Jéssica. Ela me fascina. A garota esconde


alguma coisa. Pelo que percebo, ela realmente gosta de Lily,
mas como se iniciou esse relacionamento com o namorado
da amiga?

Logo abaixo, escrevo o nome de Kevin. Não tive muito


contato com ele. Troquei poucas palavras no dia em que veio
visitar Lily, mas sei que ele queria descobrir alguma coisa
dela, alguma coisa que a

deixou muito agitada.

Lembro também de escrever o nome do casal, ou ex-casal,


Tico e Jaime. Eles pareciam amigos quando vieram visitá-la,
mas, quando fui até a hamburgueria de Jaime, percebi que a
relação entre os dois não estava mais tão amigável assim. O
que será que aconteceu que fez com que eles se
separassem? Será que isso tinha algo a ver com o que
aconteceu com Lily?

E, é claro, Manu. Manuel é uma incógnita. O irmão de Lily, de


todos, foi o que demonstrou estar mais abalado com o que
aconteceu com a irmã. Parece que, mesmo

depois desses meses, o rapaz ainda não superou o ocorrido.


Na única vez em que o vi, percebi o sofrimento em seus
olhos. E ele fugiu. Manu não quis conversar comigo. Aliás,
cadê esse garoto?

Será que o enfermeiro responsável não o informou de que eu


gostaria de conversar com ele?
Levanto-me de minha cadeira e vou até o quarto de Lily. A
porta está encostada e eu entro.

Encontro Lily sentada na cama, lendo um livro cheio de


gravuras.

— Lily? Você está sozinha?

A garota me olha e balança a cabeça afirmativamente.

— Eu achei que seu irmão

estivesse aqui com você. Me informaram

que

você

tinha

recebido a visita dele.

— Embora... Manu... embora.

— OK, Lily. Com licença — digo apressadamente.

Saio correndo do quarto e vou atrás de Manu até chegar à


recepção.

Com

licença

digo
esbaforido. — O irmão da Lily, a minha paciente... ele passou
por aqui?

— Eu não vi, Doutor Ian. Acabei de voltar do banheiro —


responde a recepcionista.

Questiono o segurança, mas ele não sabe me responder; diz


apenas

que hoje é dia de visitas e diversas pessoas saíram ao


mesmo tempo.

Olho para fora e não vejo Manu.

Droga. Ele escapou mais uma vez.

Volto derrotado para minha sala.

Entro e tranco a porta.

Pego o meu caderno para fazer uma anotação no nome de


Manu e vejo um bilhete em cima dele.

Abro.

Escrita em uma folha sulfite amassada, vejo uma mensagem


que arrepia todos os pelos do meu corpo:

“DEIXE A INVESTIGAÇÃO DO

CASO DA LILY EM PAZ. FAÇA SEU

TRABALHO

CUIDE

SOMENTE DA SAÚDE MENTAL


DELA. OU VAI ACABAR COMO

THEODORA”.

— Mãe? — digo abrindo a porta do quarto dela.

— Oi, Lily.

Eu me surpreendo ao vê-la.

Minha mãe parece outra mulher.

Renovada, maquiada e perfumada.

Seu cabelo está escovado e ela está com uma roupa linda.
Acho que os antidepressivos, os quais meu pai disse que ela
está tomando, estão fazendo efeito.

— Uau! Onde a senhora vai linda

desse jeito?

— Ué! Preciso estar maravilhosa para quando seu pai


chegar, não é?

— Mãe, mas, e aquilo que conversamos?


— O quê, Lily? — Minha mãe assume um tom mais sério.

— A mensagem, mãe. O fato de meu pai estar saindo com


outra mulher.

— Shhh, Lily. Seu irmão pode ouvir isso. Pois saiba que seu
pai e eu nos acertamos. Decidimos passar uma borracha por
cima dessa história e vamos tocar nosso casamento

da

melhor

forma

possível.

— O quê? Não acredito que você

vai se sujeitar a isso — digo indignada.

— Você não entende, Lily.

— O que eu não entendo, mãe?

Que a senhora tem medo de ficar sozinha e vai acabar


engolindo as merdas do papai? E quanto a mim, mãe?

— O que tem você, Lily?

— Ele... Ele me dá arrepios! Ele me beija demoradamente no


rosto.

Ele me olha de cima abaixo de um jeito estranho. Você


nunca o deixou sozinho comigo. Ele deu EM CIMA da minha
melhor amiga. Você quer mais motivos?

Minha mãe dá um tapa na minha cara.


— Nunca mais fale isso do seu pai, ouviu? Seu pai é um
homem bom! Trabalhador. Ele... Ele não deu em cima de sua
amiga. Aquela oferecida deve ter achado isso.

Você sabe como ela é.

— Você... Você me bateu. —

Meus olhos enchem de água.

— Não vou permitir que você fale mal de seu pai, Lilian. Ele
coloca comida dentro dessa casa, é um homem digno e
honrado. — A voz de minha mãe falha. Parece que ela fala
mais para si do que para mim — E tire essas besteiras da
sua cabeça. Ele nunca te olharia da forma que você está
pensando. Seu pai é um homem direito!

— Você... Você me bateu! —

repito.

você

quer

quê?

Desculpas?

Saio correndo do quarto de minha mãe e vou para o meu. Eu


me jogo na cama e choro. Meus pais nunca me bateram e eu
não acredito que o primeiro tapa que levei de minha mãe foi
por tentar defendê-la.

Queria protegê-la do homem que a trai, que a trata como


nada e que diz que ela é louca. Eu só queria ver a mulher
que me deu a vida, que me amamentou, ser feliz.

De repente me vem à mente a lembrança dela contando a


história da Branca de Neve para mim

quando eu era criança. Eu amava ouvir essa fábula que


minha mãe sempre me contava. Tempos bons que não
voltam mais.

Mas que se exploda. Se ela quer ser enganada pelo meu pai,
não serei eu quem vai tentar abrir os olhos dela.

Pego meu celular e decido mandar

uma

mensagem

para

Jéssica, mas, no meio do caminho, desisto.

O que eu quero mesmo é resolver uma outra situação que


está me afligindo. Preciso ver Kevin e esclarecer de uma vez
por todas nossa história.

Pego o moletom cinza dele que

estava com Jéssica e saio decidida a conversar com meu


namorado.
Guardo o bilhete ameaçador dentro

do

meu

caderno

de

anotações. Alguém teve acesso à minha sala no curto


espaço de tempo que me ausentei e deixou aquela nota ali.
Minha mente remete à Manu, mas não pode ser.

Seria lógico demais. Ou será que essa é justamente a


intenção dele?

Tentar fazer com que a ameaça seja tão óbvia que


consequentemente eu pensaria em outros suspeitos?

O telefone toca de repente e me assusta.

— Alô? — digo.

— Doutor Ian? É da recepção. O


senhor tem um horário vago? Tem um rapaz aqui querendo
falar sobre a Lily.

— Qual o nome dele? Manu?

— Não, Doutor. É Kevin.

Surpreendo-me. Não esperava que Kevin viesse falar


comigo.

— Pode mandá-lo entrar — digo.

— Minha próxima consulta é só daqui a quarenta minutos.


Tenho um tempo para ele.

— OK.

Arrumo minha mesa e escondo o meu caderno, afinal,


alguém sabe

que estou muito mais interessado no caso de Lily do que o


normal e desconfia de que quero descobrir quem fez isso
com ela. Prefiro manter o cuidado.

Ouço três batidas na porta. Deve ser ele.

— Pode entrar — digo.

A porta se abre e o rapaz loiro e forte entra na minha sala.


Em seguida, ele fecha a porta e fica parado na frente da
mesa, como se não soubesse o que fazer.

— Kevin, certo?

Ele faz que sim com a cabeça.

— Pode se sentar.
O rapaz puxa a cadeira e toma assento

cruzando

as
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mãos.

Nervoso. Ansioso. Assustado?

— No que posso te ajudar, Kevin?

— Eu vim para a visita de Lily.

Me disseram que eu não poderia entrar.

— Pois é. Parece que o irmão dela veio visitá-la e como você


sabe só é permitida uma visita no horário da manhã.

— Manu?

— Ela tem outro irmão? —

respondo sem paciência.

Kevin me olha assustado. Preciso me controlar e deixar


minhas impressões pessoais de lado. Não posso afastar esse
garoto.

— Desculpe a pergunta, Doutor.

É que não cruzei com Manu e nem vi o carro dele. Achei que
quem estivesse aqui fosse o Tico. Vi um EcoSport vermelho
igualzinho ao dele lá fora, mas deve ter sido coincidência.

— Sou eu quem lhe deve

desculpas, Kevin. Não deveria ter sido tão grosso, mas estou
tendo um dia muito turbulento e agitado.

Claro que isso não justifica, peço que perdoe minha


grosseria.

— Tudo bem. Eu fiquei lá fora, sabe?


Todo

esse

tempo.

recepcionista disse que me avisaria se a pessoa que estava


visitando Lily saísse antes, mas parece que ela esqueceu de
me avisar. E

também não vi Manu saindo.

Kevin está enrolando. Ele quer dizer algo, mas não


consegue.

— E por que decidiu falar comigo, Kevin?

— Vi o senhor indo lá fora, parecia procurar alguém.

— Entendo. Estive tão atordoado buscando Manu que não


reparei em mais ninguém ali fora. Não vi você.

— E o que o senhor queria com ele? — pergunta Kevin.

— Falar sobre a evolução de Lily

— minto. — Uma pena que não consegui encontrá-lo.

Kevin concorda com a cabeça.

— Mas, então — pergunto pela terceira vez —, o que deseja

comigo, Kevin?

— A Jéssica me disse que o senhor

está
fazendo

algumas

perguntas. O que quer com isso, Doutor?

— Não é óbvio, Kevin? Entender melhor a Lily, sua namorada


provoco.

— Ex-namorada. — Ele me

corrige demonstrando uma leve irritação.

— É claro! Que cabeça a minha.

Ex-namorada.

— E por que você não me procurou? Namorei com Lily, sei


bastante coisa dela.

— Não há uma razão específica.

Talvez ainda não tenhamos tido

oportunidade de conversar, rapaz.

— Bom, estamos aqui agora, não? Ou... Ou a Lily te contou


algo?

— Kevin me pergunta assustado.

— O que ela teria para me contar?

— Mentiras! Mentiras e mais mentiras. Olha, não me leve a


mal.

Eu não quero falar mal da Lily...


“Sei”, penso.

— … mas Lily às vezes contava umas mentiras, sabe.

— Não, não sei. Me explique, Kevin.

— Ela... acho que ela espalhou umas coisas de mim para a


Jéssica que não eram verdadeiras... e eu...

eu preciso garantir que isso não vai

sair daqui.

— Que coisas, Kevin?

— Intimidades... — O garoto soa frio. — Besteira, ela nem


deve se lembrar. Desculpe por ter vindo até aqui tomar seu
tempo, Doutor.

O garoto se levanta abruptamente e vai rumo à saída.

— Espere, Kevin. Eu tenho uma pergunta para você.

O rapaz me olha antes de sair da sala.

— Pois pergunte.

— Quem você acha que fez isso com a Lily?

— É óbvio que foi algum

bandido.

— Não, Kevin. A polícia pode

dizer isso, mas a forma como esse crime foi cometido me faz
pensar o oposto. Alguém próximo fez isso com a Lily. Alguém
em quem a garota
confiava,

confiava

demais.

— Impossível. Todos amamos a Lily. Desculpe, Doutor,


preciso ir.

O rapaz sai apressado da sala.

Mais uma vez recebi a mesma resposta: “Todos amamos


Lily”;

“Lily é muito querida”; “Ninguém próximo faria isso com


ela”.

Ninguém quer se comprometer e colocar a mão no fogo.

Pego o celular e abro o contato em que está escrito “Mãe”.

Aperto enviar, mas a mensagem retorna na mesma hora. Ela


bloqueou meu número de telefone.
De repente, estou aqui, parada na porta da casa de Kevin.
Seguro seu moletom com força e toco a campainha. Aguardo
um, dois, três segundos. Ninguém atende. Toco novamente.
Estou quase desistindo quando ele abre a porta. Está lindo,
como

sempre.

Seus

cabelos

arrepiados balançam levemente com a brisa que sopra entre


nós.

— Oi — digo timidamente.

— Oi, Lily.

— Não vai me convidar para entrar?

Kevin me olha por alguns

segundos e em seguida me dá passagem. Ele não fala nada


e eu compreendo que está magoado.
Entro em sua casa e Kevin fecha a porta, cruza os braços e
me encara.

— Você já foi para o treino do time hoje? — pergunto como


quem não quer nada, sentando-me no sofá da sala.

— Não, vou mais tarde. Hoje eu treino com seu irmão. — Ele
responde.

Concordo com a cabeça e fico quieta.

— E, então? — Ele diz.

— Seus pais estão em casa?

— Não, estão fora. Devem voltar bem mais tarde.

— Entendo.

O silêncio paira sobre nós. Não sei lidar com isso. Além de
um namorado, vejo que perdi um amigo. Eu amo Kevin, amo
demais, e por isso sinto medo de, além de não darmos certo
como namorados, não conseguirmos manter sequer uma
amizade.

— Kevin, eu vim pedir desculpas

— começo. — Eu não deveria ter saído igual a uma louca da


sua casa, mas eu realmente me senti mal.

— Lily, você gritou para quem

quisesse

ouvir

que
eu

não

conseguia segurar muito tempo.

Você tem noção de como eu me senti humilhado quando


meus pais subiram para conversar comigo?

— Eu sinto muito, agi sem pensar.

De repente, percebo que ainda estou segurando o moletom


de Kevin. Estendo a peça de roupa para ele.

— Tome.

— O que é isso?

— Sua blusa. Estava com

Jéssica. Ela disse que você acabou deixando com ela no dia
em que encontrei vocês no shopping e me pediu para te
entregar.

Kevin arregala os olhos e pega rapidamente a blusa. Ele vira


de costas e a coloca no cabideiro que está próximo da porta.
Em seguida, ele senta ao meu lado, vira-se para mim e diz:

— Eu também preciso te pedir desculpas, Lily. Fui um idiota


em jogar a culpa do meu problema em cima de você. Eu
conversei com meus pais e eles mostraram que eu fui um
ignorante. Nada disso é sua culpa, entendeu?

— Sim, Kevin. Obrigado pelas palavras.

Nós nos olhamos.

— E, então, Lily? Como ficamos?


— Eu te amo, Kevin. Eu te amo

muito, mas não podemos continuar nosso namoro do jeito


que está.

Você entende que eu também preciso sentir prazer?

— Lily, mas eu te dou prazer, meu amor. Lembra da primeira


vez quando você me disse que amou o jeito que eu te
penetrei?

— E eu amei, Kevin. Mas não pude amar por tempo


suficiente, porque, quando comecei a sentir alguma coisa,
tudo acabou. Kevin, em uma relação os dois têm que sentir
prazer completo.

— Mas o que eu posso fazer, Lily? Me ajude.

— Nós podemos resolver isso juntos, meu amor — digo. —

Procurar

um

médico.

Um

psicólogo. É normal isso acontecer, Kevin. Você não é o


primeiro homem que tem ejaculação precoce e...

— Não posso ir ao médico, Lily.

Você sabe que essa cidade é pequena e tudo se espalha com


muita rapidez. Se o pessoal do meu time descobrir, serei
motivo de chacota para sempre e posso perder grandes
oportunidades. Esse mundo do futebol é muito machista.
Na mídia não se vê escândalos do tipo com o nome dos
grandes jogadores de futebol e eu estou sendo sondado por
um time grande.

— Kevin, isso tudo é desculpa.

Eu preciso saber se você está disposto a fazer isso por mim.


Não adianta só eu querer fazer esse relacionamento dar
certo, você também precisa querer.

Kevin fica calado e encara seus sapatos.

— Você quer, Kevin? Você quer que esse relacionamento dê


certo?

— Eu... Lily, eu quero. Mas eu tenho medo.

Sorrio por dentro. Vai dar certo.

Nós vamos conseguir passar por esse problema juntos, como


um casal tem que ser. Sem traições, sem mentiras, sem
brigas. Eu vou ajudar

meu

namorado.

Serei

diferente da minha mãe.

— Eu te amo tanto, Kevin.

— Eu também te amo, Lily.

Ele me beija. Nossas línguas se encontram e explodem em


um misto de
sentimentos.

As

lágrimas

escorrem de meus olhos e percebo que ele também chora.


Suas mãos descem por meu corpo e apertam minha bunda,
fazendo-me gemer.

Já estou excitada. Kevin abaixa minhas

calças

enquanto

continuamos a nos beijar. Arranco minha blusa e ele tira meu


sutiã.

Kevin passa a mão na minha calcinha e percebe que ela está


úmida.

— Eu quero você — sussurro.

Ele abaixa minha calcinha, beija

meus seios e desce seus lábios até minha barriga. Kevin


morde minha coxa — mas percebo que sua boca não chega
lá —, lambe seus dedos e coloca um dentro em mim. Eu
gemo.

Gosto disso. Ele coloca mais um dedo e o vai e vem dos dois
começa a ficar frenético; sinto como se estivessem me
rasgando.

Isso é muito bom. É gostoso. Ele me penetra assim por um


certo tempo e eu fico cada vez mais ofegante.
Quando coloca um terceiro dedo, eu arfo. Que sensação
gostosa é essa? Isso que estou sentindo é muito bom.

— Kevin, estou sentindo.

— Está sentindo, meu amor?

— Estou. Não para! Não para!

Olho para o membro dele e vejo que já está encapado. Em


que momento ele colocou a camisinha?

Estou tão perdida com seus dedos me penetrando que perdi


totalmente a razão. Passo minha mão em torno de meus
mamilos, que estão rijos.

Enquanto isso, Kevin continua a me penetrar com seus


dedos.

— Kevin... KEVIN... KEVIIIN!

— grito.

Sinto a explosão, as estrelas.

Perco o ar e não consigo definir onde estou. Só sei que o


misto de emoções que domina meu corpo é

intenso e forte. Estou chegando lá no momento em que


Kevin coloca seu membro em mim. Ele bomba por alguns
segundos e gozamos violentamente. Gritamos juntos,
finalmente encontrando o prazer.

Caímos lado a lado, suados, e ele me beija.

— Uau! Isso foi demais — digo.

— Fiz minha gata gozar?


— Sim. Eu nunca havia sentido isso antes.

Kevin me beija de novo.

— Nós vamos procurar ajuda juntos, Lily. Eu preciso de você


ao meu lado para superar esse problema. Eu quero mudar,
quero resolver

esse

problema

da

ejaculação precoce.

— Promete que não vamos deixar isso para lá?

— Claro, Lily. Você não confia em mim?

Observo Lily. A garota está montando

um

quebra-cabeças.
Apesar da leve dificuldade que tem em encaixar as peças,
ela está indo muito bem. Isso só prova que sua capacidade
motora não foi afetada drasticamente

Realmente, o problema mais aparente,

além

da

falta

de

confiança em si mesma, medo e insegurança, é a fala.

Também não acredito em sua

suposta falta de memória com o que aconteceu na noite em


que foi violentada. Das duas uma: ou a garota não quer
contar para encobertar alguém, o que duvido muito, ou está
com medo de falar por causa do que aconteceu com sua
mãe, o que é compreensível.

Ela passou por um grande trauma e a primeira pessoa para


quem contou o ocorrido foi morta de forma violenta. Até eu
sentiria medo de falar algo.

— Fim — diz ela feliz, batendo palmas.

Olho para a mesa e vejo que o brinquedo

foi

montado

corretamente.
— Muito bem, Lily. Muito bem.

Você conseguiu!

A garota demonstra satisfação consigo mesma e abre um


sorriso.

Suas bochechas esticam e noto suas cicatrizes se


repuxarem. É a primeira vez que vejo Lily sorrir e não posso
negar que é um grande avanço.

Sinto-me

confiante

decido que posso ir um pouco além. Está na hora de tocar


em um ponto delicado do caso.

— Lily, não podemos postergar mais o que aconteceu com


você.

A garota me olha intrigada.

— Eu conversei com as pessoas mais próximas de você. Falei


com seu pai, com seus amigos, com seu

namorado. Apesar de brevemente, falei com seu irmão


também.

Lily continua calada. Talvez ela não tenha percebido onde


quero chegar.

— Eu tenho uma suspeita do que aconteceu contigo, mas


preciso que você

me
ajude.

Precisamos

explorar sua memória juntos.

Vamos comigo, Lily. Vamos voltar juntos naquele dia. Confie


em mim, vai dar tudo certo.

Pego na mão da garota e ela se levanta. Atravessamos o


espaço e a coloco no sofá que possuo no canto da minha
sala.

— Eu preciso que você relaxe, Lily. Vou te contar uma


história.

Ela

assente

demonstra

desconforto no início, mas eu vou acalmando-a e percebo


que seus braços vão ficando mais leves.

— Relaxe, Lily. Feche os olhos e ouça somente a minha voz.


Não pense em nada.

Ótimo.

Ela

está

reagindo

exatamente da forma que preciso.


Diminuo a intensidade da luz e prossigo:

— Siga a minha voz, Lily. Venha comigo. Você está


pensando... Você está se lembrando.

Reduzo o tom da minha voz e mudo a frequência dela. Lily


está relaxada e entra no meu jogo.

Vou

aplicar

técnica

de

regressão nela, mesmo que ela não saiba disso.

“Robson”, penso.

Não. Repito pela milésima vez para a minha mente que não
cometerei os mesmos erros que cometi com ele. Concentro-
me em Lily.

— Estava escuro, Lily. Era noite.

Se não me engano, por volta da meia-noite.

— Noite. — Os olhos da garota tremem sob suas pálpebras e


ela ameaça abri-los.

— Mantenha os olhos fechados, Lily — ordeno. — Preciso que


você volte comigo para aquele dia.

O que você está vendo?

— Noite... Es-es- esculo.


— Sim, está muito escuro. Você está sozinha, Lily?

A garota sacode levemente a cabeça. Entendo que é um


não.

— Atrás... corre... pega Lily.

— Sim, você não está sozinha.

Afinal, tem alguém atrás de você. E

o que você está sentindo, Lily?

— Mo-lha-da... Lily é molhada.

Havia

me

esquecido

desse

detalhe. A ficha de Lily disse que no dia em que ela foi


violentada estava

chovendo.

Sorrio

disfarçadamente. Ela conseguiu regressar comigo para


aquele dia e está

mostrando-me

que
aconteceu.

— Muito bem, Lily. Muito bem.

A chuva está caindo.

— Chuva... caindo.

— Agora eu preciso que você olhe para trás, Lily. Olhe com
sua mente e mantenha seus olhos fechados. Devagar. Bem
devagar.

— De...vagar.

— Isso. Você sabe quem está atrás de você, Lily?

A garota começa a chorar, mas não posso parar agora.


Robson. Eu deveria interromper a regressão nesse exato
momento. Isso está fazendo mal para ela. Robson. Não,
preciso continuar. Vai dar certo. Só mais um pouco. Eu só
preciso ir um pouco mais fundo.

— Olhe bem, Lily. Você sabe quem está atrás de você? —


repito.

Lily afirma que sim com a cabeça.

— Você conhece a pessoa que está te perseguindo, Lily?

— Sabe. Lily sabe.

— Me diz, Lily... quem é?

As

lágrimas

descem
descontroladamente dos olhos dela.

A garota aperta as mãos e os pelos de seus braços estão


arrepiados.

Não deve ser fácil para ela revisitar aquele dia, mas eu
preciso descobrir, por ela. Lily acabou de afirmar que
conhece quem lhe fez isso. É alguém de seu convívio.

Alguém que está visitando a garota

nesta clínica. Alguém que pode tentar terminar a qualquer


momento o que começou.

— Vamos, Lily. Quem é? Quem está atrás de você? Você quer


me dizer... eu sei que quer...

De repente, o telefone da minha sala começa a tocar. Lily


desperta bruscamente da regressão e tomba para a frente,
de tão grande que foi o baque.

— MAMÃE!! LILY QUER...

MAMÃE! LILY QUER... MAMÃE!

garota

começa

gritar

estressada, implorando pela mãe.

Eu tiro o telefone do gancho.


Maldito aparelho! Cometi um erro gravíssimo. Fui um idiota
em não

desligar tudo o que pudesse nos atrapalhar. A regressão não


deve ser interrompida em hipótese alguma.

Quando

um

paciente

em

regressão é interrompido, ele volta para a realidade com a


mesma carga de sentimentos da época que estava visitando.
Ou seja, Lily está sentindo novamente tudo o que passou
naquela noite.

Eu a abraço com força e ela começa a me socar enquanto


chora.

Droga. Que porcaria de psicólogo eu

sou?

Como

deixei

isso

acontecer? A regressão não pode ser quebrada dessa forma,


sem trabalhar corretamente a “volta” do

paciente para o seu estado normal.


— Lily, você sabe que sua mãe não está mais aqui. Eu sinto
muito tudo o que aconteceu com ela, mas posso chamar seu
pai se você quiser...

— NÃO! — Ela grita. — PAPAI NÃO. NÃO. PAPAI NÃO. NÃO!

QUER MAMÃE! MAMÃE.

Os cuidadores entram na sala após escutarem os gritos de


Lily.

Um deles já está com a injeção em mãos e, em segundos,


espeta o braço dela. A garota é dopada e rapidamente
começa a ficar mais calma.

— MAMÃE... Ian.

É a primeira vez que Lily diz meu

nome. Ela está falando comigo.

— Lily... quer... mamãe. Papai...

não! Não... papai! Mamãe...

E, de repente, entendo tudo. A conversa que tive com Jéssica


no carro quando citei o que aconteceu em sua festa de
catorze anos. O

desespero de Lily quando citei seu pai agora pouco. Os


sumiços de Manu para acobertar alguém de sua família.

Foi Laerte.

Ele fez isso com Lily, por isso a garota não quer vê-lo de jeito
nenhum.
Mas, porra, como vou provar isso? Não posso simplesmente
acusá-lo sem nada.

Lily

não

tem

condições

psicológicas de depor contra o pai, e nem sei se ela


realmente se lembra de tudo o que aconteceu naquela noite.
Tenho quase certeza de que o trauma foi tão grande que a
garota preferiu guardá-lo dentro de sua mente.

Os cuidadores levam Lily, que já está bem mais calma


apesar de continuar chorando, para o quarto.

Merda. Preciso resolver isso. Não posso permitir que Laerte


pise novamente na clínica, pois Lily corre risco de vida com o
pai vindo aqui. Preciso pensar no bem-estar dela.

Assim que fico sozinho no

consultório, coloco o telefone no gancho e ele começa a


tocar de novo.

— Alô — digo.

— Ian? — Escuto a voz de Júlio.

— Diga, chefe.

— Têm dois oficiais de justiça aqui, querendo ver você.

— Me ver? O que aconteceu?


— Eles não me falaram, Ian. O

assunto é particular. Mas eu os ouvi conversando entre si.


Ian, eles falaram em ordem de prisão. Acho que você será
preso!

Hoje é o primeiro dia de Kevin na terapia e eu vou


acompanhá-lo.

Fiquei surpresa por conseguirmos marcar uma consulta tão


rápido.

Levanto-me da cama e olho para o relógio que fica em cima


da minha escrivaninha;
ainda

tenho

um

tempinho até a hora da consulta.

Decido mandar uma mensagem para Jéssica, mas assim que


pego no celular recebo um recado de Jaime.
Guardo o celular. Se Jaime retornou, então Tico também está
de volta. Lembro do bilhete que encontrei nas coisas de
Manu e que meu irmão pediu para deixar para lá. Aquilo
ainda me incomoda.

Olho novamente para o relógio.

Ainda faltam duas horas para a consulta.

Vou ao quarto de Manu, no entanto meu irmão não está.

Estranho. Ele não é de sair cedo assim. Deve ter ido treinar.

Não quero me meter em seus problemas, mas, ao mesmo


tempo, sinto que preciso protegê-lo. Os anos nos afastaram,
mas eu o amo com todas as minhas forças e farei tudo para
vê-lo feliz. Não vou permitir que ninguém faça mal a ele,
mesmo que essa pessoa seja o marido do meu melhor
amigo.

Manu vai me odiar quando

souber que estou fazendo isso, mas sei que depois ele vai
me agradecer. Pego as chaves e dou uma última olhada no
espelho.

Retoco o batom e guardo meu celular.

Desço as escadas, tranco a porta e respiro fundo.

Peço um Uber e, no campo

“Destino”, digito o endereço da casa

de

Jaime
para

poder

esclarecer as coisas de uma vez por todas com Tico.

Droga. O que esses oficiais de justiça querem? Júlio disse


que os ouviu conversando entre si e falando de “prisão”. Por
que viriam até aqui para me prender? E

será que eles podem fazer isso?

Encerro a ligação de Júlio e informo que em cinco minutos


estarei em sua sala. Lá é o melhor lugar

para

conversarmos

esclarecermos as coisas. Pois aqui, sob os olhares curiosos


dos

cuidadores

e
seguranças

que

passam toda hora pelo corredor, não

conseguiríamos

ter

uma

conversa em paz.

Guardo

todas

as

minhas

anotações do caso de Lily. Sinto que a visita dos oficiais tem


a ver com isso. Será que Laerte fez uma denúncia sobre a
mini-investigação que ando fazendo sobre o caso da garota?
Faz sentido. Preciso ter uma defesa. Não há nenhum
problema

em

fazer

umas

perguntinhas ali e outras aqui, certo? Tudo o que faço é pelo


bem da paciente e para entender sua mente mais a fundo.

Preciso trabalhar com a hipótese


de que, talvez, o pai de Lily tenha inventado alguma coisa.
Eu sei que ele sabe de Robson, mas não há nada sobre o
meu ex-paciente que Laerte possa usar contra mim. Esse
caso já foi esclarecido.

Saio do meu consultório e tranco a porta. Um dos cuidadores


que levou Lily ao quarto agora há pouco após a tentativa de
regressão fracassada me aborda.

— Já está indo embora, Doutor?

— Não. Estou indo até a sala do diretor Júlio. Por quê?

— A garota pediu para entregar isso para o senhor. Ela


estava bem grogue.

O enfermeiro me entrega uma foto

amassada. Agradeço e me afasto.

Longe dos olhares do funcionário curioso, olho para a foto.


Nela, vejo Lily e uma mulher que não conheci, mas que sei
quem é pelas fotos dos sites: Theodora, mãe de Lily. No
retrato, as duas estão em uma praia muito bonita. Felizes.

A garota está bem mais nova, mas seus traços são


inconfundíveis. Lily me entregou uma das fotos que possui
da mãe. Quem sabe a única?

É provável que ela queira que eu saiba o quanto sente falta


da mãe.

Observo a beleza de Theodora e o sorriso da garota.


Embaixo, na borda da imagem, está escrito

“Primeira vez na praia de Ebelesa

– 01/07”.
Mas não são só as duas que estão ali. Ao fundo, vejo um
garoto sério olhando de soslaio para a câmera.

Acredito

que

quem

tirou

fotografia pretendia pegar somente as duas, o menino saiu


de intruso e, se não prestamos bastante atenção, nem
percebemos que está na foto.

Ele está bem diferente, mas sei que é Manu.

Será que existe algum motivo para Lily ter me dado essa
foto?

Chego na frente da sala do diretor e a guardo dentro do


bolso. Bato na porta e Júlio a abre com o semblante bem
sério.

— Ian. Muito bem. Queira entrar,

por gentileza.

Entro na sala e, além de Júlio, têm outros dois homens


dentro dela,

provavelmente

os

tais
oficiais. Eles estão de pé ao lado da mesa do meu chefe. Eu
os cumprimento com a cabeça e eles acenam de volta.

— Eu posso saber o que está acontecendo? — pergunto.

— Ian, fique calmo. É melhor você se sentar. — Júlio diz,


apontando para uma cadeira.

— Ficar calmo? — pergunto, começando a ficar assustado. —


O

senhor me disse que não sabia por que esses caras estavam
aqui, diretor.

— Eles me pediram para falar isso, Ian. — Júlio fala em um


tom de voz baixo, porém firme. — O

que temos para te falar é muito delicado e é melhor ser dito


pessoalmente.

Respiro fundo e me sento na cadeira que Júlio indicou.

— Bom, vamos lá. O que está acontecendo?

— Primeiramente, quero que conheça os oficiais Alex e


Marco.

— Júlio aponta para os dois homenzarrões que estão parados


ao lado da mesa. — Eles estão de muita boa vontade aqui,
diga-se de passagem, para conversar com você sobre um
incidente bem

desagradável.

— Realmente, diretor — começo

—, é bem desagradável ser interrompido no meu horário de


trabalho para tratar de assuntos jurídicos. Eu sou um
cidadão do bem, pago meus impostos em dia, não fiz nada
fora da lei. Não vejo motivos para...

— Ian — o diretor me interrompe

—, temos que falar sobre sua mãe.

Eu fico calado.

— Mi-minha mãe? — gaguejo.

— Sim, Ian — diz Júlio. — Eu preciso que você mantenha a


calma.

— O que vocês têm para falar da minha mãe? — Olho para


os

oficiais parados ao lado da mesa do diretor. — Eu... não


entendo.

Júlio, por favor, queira me explicar o que está acontecendo.

— Senhor Ian — o rapaz que atende pelo nome de Alex


começa a falar —, você conhece esse número de telefone?

Alex faz um sinal de positivo para o outro homem, Marco,


com a cabeça. Ele coloca um papel na minha frente com um
número anotado. É claro que conheço. É o número da minha
mãe. Respiro fundo e respondo:

— Sim.

— Pois bem — Alex começa a falar —, recebemos uma


denúncia

da proprietária deste número alegando que o senhor vem a


incomodando
com

repetidas

mensagens.

— Eu... — começo, mas Alex me interrompe.

— Questionamos à dona do

número se ela chegou a pedir que o senhor parasse de


importuná-la e ela nos mostrou as mais de duzentas
mensagens enviadas pelo senhor. Esse é o seu número de
telefone, correto?

O oficial de justiça Marco me mostra um outro número de


telefone que reconheço como sendo meu.

— Sim, senhor — afirmo.

— E esse? — Marco coloca um

papel com outro número de telefone na minha frente.

— É meu número antigo.

— Senhor, Ian — continua Alex.

— A proprietária do número entrou com um pedido de ação


judicial e temos aqui uma ordem de restrição telefônica para
que o senhor não a perturbe mais. A partir de agora, o
senhor está proibido de acioná-la, sob pena de multa.

Olho para o papel que o oficial me mostra. Ele continua


falando:

— É importante ressaltar que ela quis entrar também com


um processo judicial contra o senhor.
Conversamos

com

ela

e,

sinceramente, ela só quer esquecer

de tudo isso. Segundo a mulher, ela já bloqueou seu número


de contato diversas vezes, mas o senhor sempre

volta

importuná-la

através de um número diferente.

Aconselhamos a vítima a fazer um boletim de ocorrência. Ela


o fez e nos disse que só quer seguir a vida dela em paz. A
dona do número alega que suas mensagens a assustam

e,

inclusive,

desencadearam nela algumas crises de ansiedade. Ela disse


que pensou até em mudar de número de telefone, mas como
o usa para fins comerciais não seria viável.

— Esse é o valor da multa se eu continuar mandando


mensagens? —

digo olhando para o papel com aquele monte de zeros.

— Sim.
— Eu não tenho esse dinheiro.

Nem se trabalhar por um ano seguido aqui na clínica consigo


juntar esse valor.

— Então sugiro que o senhor pare de mandar mensagens a


ela.

— O oficial Marco diz de forma impaciente.

Júlio me olha e eu começo a chorar.

— Ian — começa Júlio —,

pesquisei no cadastro que você preencheu conosco há


alguns anos ao se candidatar para trabalhar aqui. Na época
eu nem pensava em

ser diretor da clínica e você havia acabado seu primeiro


estágio como psicólogo. Esse número de telefone para o qual
você está mandando mensagens consta no seu cadastro.

Você o cadastrou como número de recados e informou que o


telefone era de sua mãe.

Suo frio, sei onde essa conversa vai chegar.

— Ian... depois de tudo o que aconteceu, por que você


continua mandando mensagens para esse número? — Júlio
me pergunta.

As lágrimas começam a rolar fortemente por meus olhos.

— Eu sinto tanta falta dela, Júlio.

Tanta falta.

Eu choro e soluço desesperado.


— Nós já demos o nosso recado

— diz o oficial Alex. — Aqui está a sua proibição. Esperamos


que o senhor cumpra o mandado, senhor Ian. Não leve esse
problema adiante.

Eles deixam o documento da ordem de restrição sobre a


mesa do diretor e se despedem. Antes de sair da sala, Marco
fala baixinho no meu ouvido, de uma forma que só eu
consigo ouvir:

— Você mexeu com a mulher errada, Doutor. Ela é cheia do


dinheiro. Se ela pagar bem, a gente pode até prender o
senhor. Espero que tenha entendido o recado.

oficial

se

retira.

Estou

assustado, mas mesmo assim não paro de chorar.

— Eu não entendo, Ian. Por quê?

— Eu sinto falta dela demais, Júlio... Demais... É difícil para


mim.

— Ian, esse número de telefone já não pertence à sua mãe


há um bom tempo.

Eu o encaro e as lágrimas continuam escorrendo. Não quero


ouvir o que ele vai dizer em seguida. Não quero. Não.
— Ian — Júlio começa a falar delicadamente

—,

você

tem

consciência de que sua mãe morreu há mais de um ano,


certo?

O Uber me pega na frente da minha casa e eu confirmo com


o motorista o endereço da casa de Jaime. Em seguida,
partimos rumo ao meu destino.

Meu coração bate acelerado com a possibilidade de afrontar


Tico.

Lembro de que ele está sozinho em casa, afinal Jaime me


disse nas mensagens

que

resolveria

os
problemas da hamburgueria. Penso em mandar uma
mensagem para

Jéssica e pedir que ela venha comigo, mas desisto. Não


quero envolvê-la nos problemas do meu irmão. Também não
quero que Jaime esteja nessa discussão, acredito que ele vai
acabar ficando do lado do marido, independente se ele
estiver certo ou errado.

Tento pensar em motivos que fariam Tico ameaçar Manu,


mas nada vem à minha mente. Envio uma mensagem para
meu irmão e pergunto onde ele está. Ele me responde
rapidamente dizendo que acabou de chegar no campo para
treinar futebol.

Durante todo o percurso, penso em desistir várias vezes e


em

resolver essa história diretamente com Manu, mas aí lembro


do quanto meu irmão ficou irritado e foi agressivo quando
questionei o que estava acontecendo. Essa é minha
motivação para levar esse caso até o fim.

Chego na porta da mansão de Jaime, pago o Uber e


agradeço pela corrida. Viro-me para a entrada e o porteiro
me reconhece.

— Olá, dona Lily. Veio falar com o senhor Jaime?

— Oi, bom dia. Na verdade, não.

Eu...

Não posso contar a verdade.

— Eu soube que Jaime e Tico voltaram ontem de lua de mel


e vim
fazer uma surpresa para meu amigo.

Ele me mandou uma mensagem dizendo que ia levar o


cachorrinho que deixei com ele para a associação e que era
para eu esperá-lo aqui que ele já voltava

— minto.

Tiro o celular do bolso e mostro ao porteiro a parte da


conversa de WhatsApp em que Jaime escreveu que voltou
ontem e que ia levar o Pulguento embora, mas não mostro o
restante da conversa.

Ele acredita em mim. Ótimo.

— A senhora é de casa, dona Lily. Já te disse que o senhor


Jaime me avisou que, quando a senhora ou a dona Jéssica
aparecessem por

aqui, eu nem precisava anunciar.

Sorrio acanhada. Não achei que seria tão fácil.

— Bom, como a senhora mesma disse, o senhor Jaime saiu.


A senhora só vai ter que esperar ele voltar — diz ele
inocentemente.

— Claro, claro. Tico está em casa? — pergunto como quem


não quer nada.

— Está sim. Ele já deve ter acordado. Faz uns dez minutos
que chegou uma encomenda para ele. A senhora, inclusive,
deve cruzar com o entregador no caminho. Ele ainda não
saiu.

Agradeço e tomo o caminho do jardim que leva até a


entrada da
mansão

de

Jaime,

mas,

estranhamente, não vejo nenhum entregador. Será que ele


já saiu e o porteiro esqueceu?

Chego na entrada da mansão e a porta está encostada, mas


não fechada. Pego na maçaneta e a empurro levemente. Tico
deve ter esquecido de batê-la quando pegou a tal
encomenda.

Entro na casa de Jaime e, mesmo já tendo vindo aqui


algumas vezes, não consigo deixar de me encantar com
tamanha beleza e riqueza. O

lugar é realmente lindo. Mas não vim aqui para isso.

Não vejo Tico em lugar algum. É

claro que o ideal seria pegá-lo de

surpresa, para que ele não tenha como

escapar

das

minhas

perguntas, mas, ao mesmo tempo, me sinto mal de invadir a


casa deles.

Onde será que Tico está? No quarto?


Subo as escadas, pronta para chamar seu nome, e de
repente escuto

um

barulho

estranho,

abafado. Vem do quarto de Jaime e Tico.

Continuo subindo os degraus, mas dessa vez, devagar.


Aquele barulho me deixou intrigada e quero saber qual a
origem dele.

Chego ao andar de cima e vejo que, no final do corredor, a


porta

do quarto de Jaime e Tico está entreaberta. Parece que Tico


estava com pressa e esqueceu de encostar as portas da
casa.

O barulho se repete.

É a voz de Tico. Sua voz parece abafada e sussurrada.

Sigo pé ante pé pelo corredor, passo pelo quarto de


hóspedes, pelo banheiro de visitantes, até que finalmente
chego à porta do quarto do meu amigo e de Tico.

Estico meu pescoço levemente para a porta e não consigo


acreditar no que meus olhos veem.

Tico está de costas para mim na cama, transando com outro


rapaz.

Eles não podem ver que estou


observando-os. O rapaz está de quatro enquanto Tico o
penetra por trás.

— Isso, isso — diz o rapaz que está por baixo, forçando a voz
de uma forma bem feminina.

— Seu putinho. Geme para mim de quatro, geme. Isso, você


está de quatro para mim igual a um cachorrinho, não é? —
diz Tico.

— Sim, seu cachorrinho. Só seu.

Au-au. — A voz do rapaz de baixo é bem estridente.

— Cachorrinho gostoso. — Tico diz.

— Agora cala a boca e me come, vai — fala o rapaz que está


fazendo a voz fina.

Fico vermelha com a cena. Tiro delicadamente o celular de


meu bolso e começo a gravar para mostrar ao Jaime. Sei o
quanto meu amigo é apaixonado por Tico e tenho certeza de
que será um baque quando descobrir que seu esposo está o
traindo.

Gravo uns 15 segundos de cena e paro a gravação. Quando


vou fechar o aplicativo da câmera, o celular trava. Aperto
todos os botões para que o aplicativo seja finalizado e, sem
querer, acabo acionando o Spotify que está no volume
máximo. Uma música

começa a tocar de forma bem escandalosa e Tico olha no


mesmo

momento na minha direção.

— Lily? — diz ele assustado. —


Lily, o que você está fazendo aqui?

Olha, não é o que você está pensando...

Mas eu me perco nos meus pensamentos e não consigo me


concentrar em mais nada do que Tico está dizendo. O rapaz
que está na cama com ele vira de frente para mim

eu

reconheço

imediatamente. Meu mundo desaba.

Não pode ser.

— Lily? — Ouço sua voz

horrorizada.

— Manu. — O som do nome dele

sai bem baixinho de meus lábios O rapaz com quem Tico


está

traindo Jaime não é ninguém mais ninguém menos do que


meu próprio irmão.
— Ian, eu te fiz uma pergunta. —

Júlio diz.

— Eu... Eu preciso ir ao banheiro.

— Pode usar o meu. — Ele aponta para o banheiro às suas


costas.

— Obrigado, chefe.

Entro no banheiro da sala de Júlio e tranco a porta. Estou


hiperventilando e preciso me controlar.

Sento-me

no

vaso

sanitário. Inspira, expira. Inspira, expira. Meus pensamentos


viajam até aquele fatídico dia. O dia que marcou a minha
vida para todo o sempre.

— Olá Robson. Como está hoje?

— disse, quando o vi entrando em meu consultório.

— Eu estou muito bem, Doutor Inhame — respondeu ele.

— É Ian, Robson. E fico feliz em saber que você está bem.

Já fazia algum tempo que eu atendia o Robson. Ele era um


paciente muito especial, afinal, foi o primeiro caso grave que
peguei.

Robson era um garoto de dezesseis anos que possuía


esquizofrenia severa. Quando não estava em suas manias e
delírios, o rapaz era doce e carinhoso. Ele vivia
presenteando-me com desenhos e coisas

que

encontrava

pela

clínica; eu tinha todos guardados.

Eu ia duas vezes por semana para a clínica e, nas duas


vezes, atendia Robson. Tentava fazer o melhor por ele e
pelos outros pacientes,

mas

confesso

que

achava o atendimento de lá muito precário.


Eu já tentara falar com a diretora sobre melhorias que
poderiam ajudar o local a crescer

e que seriam boas para os pacientes residentes nele, mas


ela não me deu muita atenção.

Os olhos castanhos de Robson mostravam que algo não


estava normal. Aquele, pelo visto, era um mau

dia.

Sua

visão

estava

desfocada e ele sorridente demais.

Na certa, o jovem estava entrando em crise, isso se já não


estava.

Anotei em minha agenda que deverei

avisar

psiquiatra

responsável por ele para que pudesse verificar a


possibilidade de ajustar a medicação.

Robson estava internado na clínica psiquiátrica desde que eu


chegara. Na verdade, chegamos

basicamente juntos, afinal, ele foi internado poucos dias


antes da minha admissão.
Eu não sabia muito sobre o passado dele e isso atrapalhava
meu trabalho. Robson não gostava de falar sobre e eu não
tinha contato com seus parentes. O

pouco que eu sabia era: Robson foi responsável pelo


assassinato da própria mãe. Como? Eu não fazia ideia.

Sabia também que a família dele pagava a mensalidade do


lugar para que ele fosse cuidado e examinado com zelo, mas
nunca vira ninguém visitá-lo. Ele era o único paciente que
nunca recebia

uma

carta

ou

sequer

um

telefonema.

rapaz

estava

sozinho no mundo no momento em que o que mais


precisava era de alguém ao seu lado.

E eu assumi o papel desse alguém.

Sim, eu sabia que era seu psicólogo. Sabia que ele cometera
um crime. Mas sabia também que ele era humano.
Eu tinha plena consciência de que deveria saber separar o
dever da vida pessoal e de que não poderia

me

envolver

emocionalmente com a história de nenhum

paciente,

pois

isso

poderia trazer danos severos ao

tratamento e, inclusive, à minha capacidade de avaliar como


estava sua saúde mental. Só que, quando Robson estava em
seus bons dias, ele era maravilhoso.

Chegava a ser divertido, era quase como se ele fosse um


amigo.

Mas aquele não era um desses dias.

— Como está se sentindo, Robson — perguntei cauteloso.

— Estou ótimo, Doutor Ilhado. E

você? Trouxe alguma coisa para mim hoje?

Sim, acostumei mal Robson, afinal,

sempre

que

ele
me

entregava algum presente, eu costumava trazer alguma


coisa

para ele na próxima consulta. Ele me dera um presente na


sessão anterior e eu deveria ter levado alguma coisinha para
ele. Porém, era o aniversário da minha mãe naquele dia.
Antes de ir para a clínica corri para o shopping para comprar
o presente dela e acabei esquecendo

completamente

de

levar algo para ele.

Aquele foi o meu primeiro erro.

— É Ian, não ilhado — corrigi.

— Me perdoe, Robson. Eu não lembrei.

— VOCÊ ESQUECEU DE MIM?

— gritou ele.

— Robson, calma. Hoje é o aniversário da minha mãe.


Acabei

trazendo só o presente dela.

Droga! Falei sobre a minha vida pessoal com um paciente.

Aquele foi o meu segundo erro.

— DÁ O PRESENTE DELA PARA MIM,

UÉ.
EU

SOU

MAIS

IMPORTANTE. — Robson gritou de forma agitada e


descontrolada.

— Claro que você é muito importante, Robson. Mas acho que


você não vai gostar de um vestido, não é mesmo? — disse
eu, acalmando a fera.

— Não. — Ele abaixou o tom de voz e falou olhando para


seus dedos: — Eu não sou mulher. Eu não gosto de vestidos.

— Claro que não gosta. Eu sei

disso. Mas fique tranquilo, na próxima vez que nos vermos


vou te trazer DOIS presentes.

Robson me lançou um olhar desconfiado.

— Você mente, Iglu. Igual minha mãe.

— É Ian, Robson. E não, eu NUNCA menti para você.

— Hunf. Sei. Jura que nunca mentiu e nunca vai mentir para
mim?

— Claro que juro, Robson.

Ele pareceu ficar mais calmo e, de repente, perguntou:

— Você é meu amigo, Ivan?

— Sim, Robson. Eu sou seu amigo! Mas acho que você não é
meu amigo — brinquei. — Já faz tempo que sou seu
psicólogo e você nunca acerta meu nome.

— EU SOU SEU AMIGO. — Ele berrou

descontroladamente

gotas de saliva voaram nos papéis que estão na mesa à sua


frente.

Calma,

Robson.

Estou

brincando.

NINGUÉM

BRINCA

COMIGO. NINGUÉM ME FAZ DE

IDIOTA. EU NÃO SOU LOUCO

NEM IDIOTA.

Aquele era um dia difícil, mas eu o acalmei como sempre fiz.


Eu sabia que Robson tinha uma doença e, por mais que
tivesse cometido um crime cruel, ele
também era uma vítima da situação. Uma vítima de seu
próprio cérebro que travava uma batalha impiedosa consigo
mesmo.

restante

da

consulta

aconteceu de forma conturbada.

Robson estava em um dos seus piores momentos. Eu não


sabia o que ocorrera com ele para deixá-lo

assim.

Algo

devia

tê-lo

estressado.

Quando finalmente a consulta acabou, despedi-me dele:

— Até a próxima sessão, Robson.

Ele se levantou e me olhou.

— Você é meu melhor amigo, Iago — disse de forma séria,


como

se contasse o maior segredo da sua vida.

— Obrigado, Robson.
— Você nunca deve mentir para mim. NUNCA.

Levantei e abri a porta do escritório

Robson

passou

correndo para fora como se estivesse fugindo de algo.

Estranho.

Fechei a porta e fiz um mini prontuário da consulta para


entregar ao psiquiatra, mas, só então, percebi que o
presente da minha mãe sumira. Droga. Robson deve ter
pegado o presente sem que eu tenha visto e por isso saiu
correndo da consulta.

E o pior foi que combinei com minha mãe que ela deveria
passar aqui para me buscar e irmos ao restaurante que
reservei para comemorar seu dia.

“Droga, droga, droga, Robson”, pensei.

Olhei para o relógio. Faltavam quarenta minutos para o


horário que combinara com ela. Daria tempo de ir ao
shopping e voltar antes de ela chegar.

Saí da sala e encostei a porta.

Quando estava a caminho do shopping, dei-me conta de que


me esquecera de conversar com o psiquiatra de Robson.
Pensei em voltar, mas acabei deixando para

lá. Quando eu retornasse ao consultório, conversaria com


ele.
Aquele foi o meu terceiro erro.

Acabei atrasando-me um pouco no shopping e, após


comprar os novos presentes da aniversariante que eu mais
amava na vida, voltei correndo para a clínica. Ao passar pela
entrada, a recepcionista me abordou.

— Doutor Ian, olá. Sua mãe está te esperando.

— Obrigado. Onde ela está?

— Eu pedi que ela aguardasse na sua sala. Espero que não


tenha problema.

— Perfeito. Não tem problema nenhum.

Passei rapidamente no banheiro e senti um incômodo dentro


de mim. Algo estava errado, mas eu não sabia o que era.
Joguei uma água no rosto e respirei fundo.

Olhei para o celular e tinha uma mensagem da minha mãe.

Sorri. Minha mãe era a melhor pessoa que eu já conhecera.

Desde sempre, fomos só ela e eu.

Meu pai nos abandonara quando eu ainda era pequeno e


minha mãe me criara sozinha com muita garra. Ela se
desdobrara para que nada faltasse em casa e para que eu
sempre tivesse tudo do bom e do melhor. Minha mãe me
apoiara em todas as fases da vida, desde a decepção com
minha primeira namorada até o momento em que não passei
no primeiro vestibular

que prestei. Nunca senti a falta de um

pai,

pois

ela

cumprira

majestosamente o seu papel. Eu nunca quis conhecê-lo,


aliás.

Nunca tive curiosidade.

Abri a porta do banheiro e fui até meu consultório. A sala


estava escura. Estranho. A enfermeira havia dito que minha
mãe estaria ali me esperando. Ela devia ter se enganado.

Decidido a entrar rapidamente só para pegar o mini


prontuário do Robson e deixar com o psiquiatra, acendi a
luz, e vi a cena que marcaria o resto dos meus dias.

Minha mãe estava sentada na

cadeira dos pacientes e com a cabeça caída. Sangue


escorria por seu pescoço.

— Mãe? — Eu disse.

Ela parecia desacordada. De repente,

vi
que

alguém

se

levantava da cadeira que eu costumava me sentar. Era


Robson, segurando

um

martelo

que

pingava sangue.

— Robson...o que... o que você fez? — indaguei confuso.

— Você é MEU AMIGO, IAN!

MEU AMIGO.

Ele acertou meu nome pela primeira vez. Será que


significava que ele estava finalmente lúcido?

— Mãe... — disse eu, dirigindo-

me até ela.

— NÃO SE APROXIMA! NÃO

CHEGA PERTO DE MIM. —

Robson me interrompeu aos gritos.

Ele aproximou o martelo da cabeça dela e eu fiquei parado


onde estava. Não sabia se minha mãe estava morta, mas, se
não estivesse, não colocaria a vida dela em risco daquela
maneira.

Pensei em sair correndo e chamar algum enfermeiro, mas


Robson poderia reagir mal. Eu estava em suas mãos, então
decidi usar o que eu tinha de melhor para vencer aquela
batalha: a psicologia.

Calma,

Robson.

Vamos

conversar.

— FECHA A PORTA, IAN!

Fechei a porta atrás de mim delicadamente. Todos os meus


movimentos precisavam ser feitos em câmera lenta para
que Robson conseguisse acompanhá-los e não fazer o pior.

— Robson...

EU

NÃO

QUERO

CONVERSAR COM VOCÊ, IAN.

VOCÊ É UM FILHO DA PUTA MENTIROSO.

Ele gritava, o que era ótimo.


Alguém ouviria o barulho e em breve verificaria o que estava
acontecendo. Olhei para o relógio na parede: 17h01min.
Porra.

Horário da troca de turno dos empregados. Ou seja, aquele


era o momento do dia em que tínhamos menos funcionários
andando para lá e para cá.

— Por que você está falando isso, Robson? Por que sou um
mentiroso? — questionei sem entender.

Você

disse

que

tinha

comprado um vestido para ela...

Você mentiu.

Robson pegou a embalagem do presente e jogou na minha


direção. Ele abrira a caixa que roubara

de

minha

sala

descobrira que dentro dela havia um livro e chocolates.


— Por que mentiu para mim, Ian? Você não é mais meu
amigo?

Eu amo livros e chocolates.

— Não, Robson, não. Eu só não quis deixar você nervoso. Sei


o quanto você gosta de ler e o quanto ama chocolates, mas
era uma surpresa. — Peguei os presentes que havia acabado
de comprar para minha mãe no shopping.

Toma!

Esses

presentes são para você.

Pus os presentes no chão e os empurrei em sua direção. Ele


os pegou.

— MENTIROSO. NÃO É MEU

NOME

QUE

ESTÁ

NA

EMBALAGEM.

— Fi-filho? — Minha mãe disse ao acordar e levantar a


cabeça.

DO
QUE

VOCÊ

ME

CHAMOU? — fala Robson.

— Robson, ela está falando comigo... Não é com você —

afirmei.

— Filho... me ajuda. — Minha mãe choramingou ao ouvir


minha voz.

— EU NÃO SOU SEU FILHO!

— Robson gritou. — EU NÃO

TENHO MÃE.

— Mãe... — Eu quis dizer para ela

ficar

quieta,

mas

não

consegui.

— Filho — minha mãe disse para mim —... minha cabeça dói.

Me ajuda.

— EU NÃO TENHO MÃE,


PORRA. — Robson berrou para ela.

E foi tudo muito rápido.

A mão dele que segurava o martelo

se

levantou

instrumento afundou na cabeça da minha mãe. O sangue


esguichou na parede e no rosto do Robson.

Entrei em choque.

— Eu não tenho mãe. —

Martelada. — Ela me batia aqui na cabeça, ela me mordia. —

Martelada. — Ela me queimava porque eu não entendia as


coisas.

— Martelada. — Ela me xingava porque eu não era igual às


outras

pessoas. — Martelada. — EU

NÃO TENHO MÃE. VOCÊ NÃO É

MINHA MÃE.

Os miolos dela escorriam de sua cabeça. Nem sei se podia


mais chamar aquilo de cabeça. Ela não tinha mais olhos. O
nariz estava amassado. O formato da cabeça lembra de uma
cumbuca.
— Irã, você ainda é meu amigo?

— perguntou Robson com os olhos desfocados, derrubando o


martelo no chão.

Quando ele se dirigiu a mim, saí do meu estado de torpor, e


gritei.

Gritei como se não houvesse amanhã e ao mesmo tempo


chorei.

Eu queria arrancar meus cabelos,

estava tão desesperado que não conseguia sair do lugar.

E eu não parava de berrar.

E eu não parava de chorar.

E meu coração não parava de doer.

Não sei por quanto tempo eu gritei.

Dez

segundos?

Dez

minutos?

As cenas seguintes aconteceram de forma muito rápida.

Vi os seguranças entrando na minha sala e dopando Robson.

O corpo da minha mãe foi coberto.

Tomei uma injeção.


Não adiantou. Eu estava muito agitado.

— Eu preciso ver minha mãe —

falei. — Eu nem respondi a mensagem dela. Ela está me


esperando.

Minha mente estava confusa.

“Foi tudo um sonho, não?” Eles me deram mais uma dose de


injeção. “Será que uma não foi suficiente? E para que estou
tomando isso?”

Tudo começou a ficar nebuloso, mas a minha mente


continuava repetindo

as

cenas

das

marteladas. Uma após a outra.

Minha

mãe

morrendo.

Uma

mulher que nunca fez mal a ninguém, que criou o próprio


filho sozinha e tirando forças sabe-se

de onde, brutalmente assassinada pelo paciente surtado do


filho. A culpa era minha.

Minha visão começou a ficar embaçada.


— De onde ele tirou um martelo?

O uvi

um

dos

seguranças dizer.

— Parece que o cara dos serviços gerais foi descuidado com


as ferramentas. A diretora está furiosa. — Escutei uma outra
voz.

“Descuidado?

Minha

mãe

morreu por um descuido de alguém?”

Na verdade, eu não podia colocar a culpa em ninguém, se eu

mesmo fora descuidado. Fui muito leve com Robson. Criei


um vínculo de amizade e de cumplicidade que não
deveríamos ter. Ele se sentiu no direito de invadir minha
vida, de destruí-la.

Eu causei isso a ela.

Mamãe.

Nunca vou me perdoar pelo que aconteceu.

Adeus mamãe. Adeus, dona Lilian.


— Lily, isso não é o que você está pensando — diz Manu.

— Não estou pensando nada, Manuel, estou VENDO!

Saio da porta e falo:

— E você, Tico? O Jaime sabe dessa safadeza?

— Lily, você não pode contar nada — fala ele. — Você e eu


somos amigos, não?

— Eu sou amiga do Jaime, não sua. Você, para mim, é só o


esposo

dele.

— Lily, ele vai me colocar na rua. Vou ficar sem dinheiro —


diz Tico. — Ele... Ele não vai entender. Mas sente-se aqui,
vamos conversar e...

— NÃO ENCOSTA EM MIM —

grito. — Eu tenho nojo de vocês dois.

— Lily... — começa Manu.


— CALA A SUA BOCA — falo gritando. — Eu vim aqui tirar
uma satisfação com ele — aponto para Tico — por causa da
merda daquele bilhete. E encontro vocês dois transando.
Que porra é essa, Manuel?

Manu e Tico trocam alguns

olhares, mas ficam calados.

— Vocês dois me enojam.

— Lilian, você não pode contar nada. — Manu diz. — Se o


time de futebol ficar sabendo, eu posso perder a minha
oportunidade e...

Não ouço o resto do que Manu está dizendo. Saio esbaforida


do quarto de Tico. Agora entendi tudo.

Entregador uma ova. Manu deve ter falado ao porteiro que


tinha uma encomenda para Tico para que o funcionário não
desconfiasse de nada. Sei bem o que ele veio

“entregar”.

Caminho furiosamente para a saída enquanto peço um Uber.


Meu destino? O restaurante de Jaime.

— Oi — falo com a primeira atendente que encontro depois


de entrar

como

uma
fera

no

estabelecimento. — Queria falar com o Jaime. Ele está?

— Oi, Lily — diz uma das garçonetes,

uma

moça

bem

simpática que sempre me atende quando venho aqui. — Ele


acabou de dar uma passada aqui e foi para a fábrica.

— Fábrica? — digo.

Sim,

fábrica

dos

hambúrgueres.

Lembro que Jaime comentou algo comigo sobre o problema


com o

fornecimento de carne.

— Você sabe onde fica? —

pergunto.
— Eu tenho o endereço anotado, peraí.

A garçonete sai rapidamente e volta com um pedaço de


papel.

— Toma, Lily. Fica nesse

endereço. Nunca fui lá, mas uma vez o seu Jaime falou para
eu fazer um pedido de condimentos para o restaurante e o
endereço de entrega foi aí.

— Obrigada.

Ligo para Jaime, mas o celular cai na caixa postal. Droga.


Preciso falar com meu amigo antes que Tico converse com
ele.

Saio do restaurante e peço mais um Uber. Assim que o


motorista chega, confirmo que ele deve me levar até o
endereço da tal fábrica.

O lugar é perto. Em menos de dez minutos chegamos ao


destino, mas acho estranho quando o carro para na frente do
local, que não tem cara de fábrica de hambúrguer e parece
mais uma casa antiga sem sequer uma portaria.

— É aqui mesmo, moça?

— Acho que n...

Escuto um latido muito parecido com o de Pulguento. Olho


na direção do som e vejo nos fundos da casa o cabelo
platinado de Jaime. Ele logo desaparece atrás

da casa.

— É. É aqui mesmo, moço.


Obrigada.

Pago o Uber e analiso a entrada da fábrica. O portão está


fechado com duas correntes, mas o cadeado que as trava
está aberto. Fácil demais. Ninguém deve vir aqui, mas é
muito pouca segurança para ser uma fábrica.

Abro o portão tentando fazer o mínimo de barulho possível e


sigo bem devagar, pé ante pé, na direção em que vi Jaime.
Preciso descobrir o que ele está fazendo aqui com o
cachorrinho.

No fundo da casa há um jardim bem grande e é de lá que


vem um

som que parece ser de alguma máquina.

barulho

ensurdecedor. Escuto o choro de um cachorro, que deve ser


do Pulguento, e em seguida uma batida violenta. O cachorro
para de latir e eu engulo em seco.

Sinto que deveria me virar e sair correndo, mas continuo


andando com cuidado para que Jaime não desconfie que
estou aqui. Ouço o barulho de algo rasgando-se.

— Entra logo aí, seu restinho de vira-lata fedido — diz Jaime


baixinho.

Eu me aproximo e consigo ver a máquina que emite aquele


barulho infernal. Ela é quase do tamanho de
Jaime e na parte superior há um bocal bem largo. Várias
tubulações saem desse bocal e terminam na parte de baixo
em um tubo bem mais fino que possui vários buraquinhos
em sua saída como se fosse um chuveiro.

A máquina parece estar ligada, pois, além do barulho, treme


bastante. Chego no exato momento em que Jaime joga um
pedaço de carne na abertura superior do equipamento.

— Jaime? O que é isso? —

pergunto e o assusto.

— O que você está fazendo aqui?

— Jaime rebate assustado.

Olho para o chão e vejo a pele e

os pelos de Pulguento. O animal foi escalpelado. Em cima da


mesa, próximo de um cutelo, vejo metade do corpo do
bichinho e alguns ossos. Mais ao fundo, vejo a pele e os
pelos de outros cachorros e várias gaiolas vazias.

— PULGUENTO! Desliga isso, Jaime

grito

para

ele

desesperada. — O que é isso, o que está acontecendo?

De repente a máquina para de fazer barulho.


— Lily... — diz Jaime com um olhar bem ameaçador.

Um novo barulho começa. Dessa vez, lembra um zunido. A


parte de baixo da máquina, onde acredito

que fica o motor, começa a tremer mais ainda. Olho para a


abertura do tubo inferior e vejo sangue gotejando dali. E de
repente, filetes de carne moída começam a

escorrer dos buraquinhos. Carne picotada e triturada.

Compreendo

que

está

acontecendo.

A carne ali, sendo moída e triturada, é a carne do Pulguento.

Desperto de minhas lembranças com o som das batidas na


porta do banheiro; Júlio está esmurrando-a.

— Ian? Você está bem? — Ele diz do lado de fora.


— Estou, chefe. Já estou saindo.

Levanto-me do vaso sanitário, abro a torneira e jogo um


pouco de água no meu rosto. As memórias do assassinato de
minha mãe, Lilian, perduram em minha mente. Robson.

As marteladas. Os meus erros.

Não tive pulso firme com ele e isso acabou levando à morte
de minha mãe.

Destranco a porta do banheiro e volto para a mesa de Júlio.

— Ian, você me deve uma

explicação

para

que

está

acontecendo. Não podemos ter oficiais de justiça entrando e


saindo daqui da clínica por problemas pessoais de nossos
funcionários. Essa é uma entidade de respeito e...

— Eu não pude respondê-la, chefe — digo.

— O... Do que você está falando, Ian?

— Aquele dia. Era aniversário

dela, o senhor sabia?

Júlio me olha com pesar e sei que ele entende de quem eu


estou falando.
— Minha mãe se chamava Lilian, igual a paciente. Elas são
tão parecidas. Almas boas que todo mundo fala bem,
amadas, nunca fizeram nada de mal a ninguém. E

as duas foram arregaçadas pela vida por estarem na hora e


lugar errados. Sabe, Júlio, quando vi o nome de Lily naquele
prontuário, eu senti. Senti que foi minha mãe que fez nossos
caminhos se cruzarem. Foi muita coincidência o nome da
minha primeira paciente ser o nome da minha mãe. Só que

eu não acredito em coincidência.

Eu sei que foi minha mãe quem colocou Lily no meu


caminho. E

vou ajudar essa garota, custe o que custar. Quem sabe


assim posso me perdoar por não ter conseguido ajudar
minha mãe.

— Ian...

— Eu mandei as mensagens sim, chefe

interrompo.

respondendo à sua pergunta: sim, eu sei que minha mãe


está morta.

Mas a mente humana é muito difícil de entender.

O silêncio paira na sala. Júlio não diz nada e eu sinto que


devo continuar falando.
— Eu demorei quase três meses

para sair do meu estado de luto, Júlio. E um ano para


conseguir me realocar no trabalho. Você deve saber disso,
tenho certeza de que investigou tudo sobre o ocorrido antes
de me contratar.

Dou um sorriso amarelo e

continuo falando:

— Quando cheguei em casa, logo depois da morte da minha


mãe, vi que as panelas ainda estavam sobre o fogão. O
avental dela estava ali, pendurado na parede. Nada na
cozinha da minha casa dizia que ela nunca mais voltaria.

Respiro fundo.

É difícil relembrar de tudo e uma dor aflige o fundo do meu


coração.

— Em seguida, fui até a sala.

Sabe o que estava dentro do aparelho de DVD, chefe? —


Júlio me olha intrigado e eu prossigo: —

O filme favorito dela. Sim, chefe,

“Grease,

nos

Tempos

da

Brilhantina".
Ela

deve

ter

colocado o filme para assistir, afinal era o dia dela. Será que
minha mãe sabia ou pelo menos sentiu que seria a última
vez que assistiria àquele filme?

As lágrimas começam a escorrer novamente por meus olhos.

— Minha mãe sempre foi tão vaidosa. Quando fui ao


banheiro, senti a leve fragrância do perfume dela. O perfume
que ela passou

para me encontrar. O perfume que ela passou para a morte.

— Ian...

— Eu preciso falar, Júlio. Isso está engasgado aqui dentro de


mim.

Eu tive que superar sozinho. Sabe aquele ditado: “Casa de


ferreiro, espeto de pau”? Pois é, eu, um psicólogo formado,
tive vergonha de procurar um profissional para me ajudar. É
a primeira vez que estou falando sobre o assunto.

O silêncio paira sobre a sala.

Crio forças e continuo:

— Nos primeiros dias naquela casa, mal tomei banho. Não


queria que o cheiro do perfume dela saísse do banheiro.
Minha mente

dizia que, se seu cheiro sumisse, ela nunca mais voltaria.


Engraçado, né? O cheiro do perfume dela, estando ali ou
não, era indiferente.

Ela não entraria mais naquela casa, porque um filho da puta


doente tirou a vida da minha mãe.

Respiro fundo e enxugo as minhas lágrimas.

— E tudo isso aconteceu por uma mentira boba minha,


chefe. Eu nem sei porque menti para aquele doente. Eu
deveria ter sido mais firme.

— Ian, você não está bem. —

Júlio me interrompe. — Você precisa ir para casa. Tire o dia


de repouso,

amanhã

conversamos

melhor.

— Sabe qual foi a última mensagem que ela me enviou,


chefe?

Pego o celular e entro na conversa SMS que eu mantinha


com a minha mãe. Sim, SMS. Ela não gostava de WhatsApp e
desses aplicativos de conversa instantânea que saíram nos
últimos anos.

Talvez por ser uma mulher mais velha não tenha se


acostumado com essa tecnologia. Acho a mensagem e
mostro para Júlio.

— Está vendo, chefe? Ela disse que me amava e pediu que


eu a respondesse. Mas eu não a respondi. Eu não respondi
minha
mãe. E quando entrei naquela sala e vi aquela cena — as
lágrimas não param de rolar por meus olhos —...

o martelo... o sangue... Eu não pude fazer nada para ajudá-


la.

Júlio levanta da mesa para me abraçar

eu

choro

desesperadamente em seu ombro.

— Eu sei que errei mandando mensagem para o número


dessa mulher que nem conheço, Júlio. E, sim, eu sabia que o
número não pertencia mais à minha mãe. Mas toda vez que
essa mulher me respondia, no meu celular, aparecia a
palavra “mãe”. O contato estava salvo com a foto da minha
mãe vinculada ao número. Era como se

ela estivesse me respondendo.

Como se ela ainda estivesse aqui.

— Ian...

— Eu tenho consciência dos meus atos, Júlio. Eu sei que


minha mãe se foi. Mas, toda vez que eu recebia um SMS, era
como se minha própria mãe estivesse me respondendo,

mesmo

que

ela
estivesse me xingando. Talvez não faça sentido para
ninguém, mas para mim fazia. Funcionava como um placebo.
Me acalmava. Foi assim que eu consegui viver nesse último
ano.

Eu me levanto.

— E agora, acabou — digo.

Eu sei que fui longe demais.

Nunca esteve nos meus planos assustar a nova dona do


número de celular que foi da minha mãe. Eu fui egoísta e só
pensei no meu bem-estar. Por mais que eu soubesse que não
era ela quem respondia e por mais que nunca tivesse
recebido uma resposta positiva às mensagens que enviava,
só o fato de ver meu celular apitar e aparecer a foto e o
nome dela já me acalentava.

Mas Júlio e os oficiais têm razão.

Eu não posso continuar assim.

Desta vez acabou. Eu não posso ser preso e jogar o resto de


honra que tenho no lixo. Parece que essa intimação da
justiça é a motivação que eu precisava para sair desse

pesadelo que vivo desde a morte dela.

Pego

meu

celular,

em

um
momento de fúria, e o jogo na parede. Ele cai estraçalhado
no chão. Em seguida, eu vou até o aparelho caído e o
pisoteio. Tenho que colocar um ponto final a essa ilusão. É o
fim. Acabou.

— Eu preciso ir para casa, chefe.

Prometo

que

amanhã

estarei

melhor. Eu sei que traí sua confiança, mas peço que não
desista de mim.

— Tire o resto do dia de folga, Ian.

fique

bem.

Amanhã

continuaremos essa conversa.

Aceno com a cabeça e saio da

sala. Vou até o estacionamento com Júlio, mas ele não


permite que eu pegue meu carro e pede um Uber para mim.
Quando me dou conta, já estou na porta de casa.

Respiro fundo. Abro a porta e, em seguida, tranco-me dentro


de casa. Subo até o meu quarto, tomo um remédio e me
deito na cama.

Estou em frangalhos, mas sei que o calmante fará efeito em


breve e ficarei melhor.

Falo para mim mesmo: “Acabou, Ian”.

E choro.

— Lily, não era para você descobrir assim — diz Jaime


tentando me acalmar.

Eu me sinto tonta com a cena nojenta e vomito aos seus


pés. A carne finalmente para de sair do tubo menor.

— Ai, que nojooo! — diz ele.

— Nojo? — retruco limpando a boca. — Jaime, nojento é isso.

Você... Como você tem coragem?

— Lily, você não pode contar

isso para ninguém, tá me ouvindo?

— O Pulguento, Jaime... —
Começo a chorar. — Por que você fez isso com ele?

— Ele era só mais um, Lily. A carne

do

restaurante

estava

acabando e...

— O QUÊ??? — grito. —

VOCÊ...

VOCÊ

ME

FALANDO QUE... ESSA CARNE

É A QUE VOCÊ VENDE NO SEU

RESTAURANTE? ESSA É A

CARNE QUE EU COMI?

— Você é burra, é? Achei que já tinha se tocado quando viu o


vira-latinha virando hambúrguer.

— Eu não acredito que eu comi a carne daquele lugar.

E
lambeu

os

beiços,

queridinha. — Jaime sorri.

— Você é doente — digo

enojada.

A ânsia sobe novamente pela minha garganta, mas eu não


consigo mais vomitar. Não tenho palavras para descrever o
que sinto com o que Jaime está me contando.

— Jaime... existiu, em algum momento, alguma associação


de defesa aos cachorrinhos?

— Lily, você é muito ingênua.

Minha querida, você sabe quantos cachorros são


abandonados todos os dias na rua? E sabe que ninguém
quer

adotar

esses

vira-latas

pulguentos? As pessoas só querem

animais de raça, pedigree, enquanto esses coitadinhos


passam fome.

— Então você...
— Eu os pego e trago para cá, Lily. — Jaime aponta para as
gaiolas vazias e, em seguida, seu olhar desvia para um
monte de carne moída que está em cima da mesa. — E eles
não passam mais fome, pelo contrário, vão matar a fome
dos outros.

Pela terceira vez, sinto uma vontade imensa de vomitar, mas


não consigo. E não quero.

— Você me decepcionou, Jaime.

Como pôde?

— Como eu pude? Como eu pude

o quê, Lilian? Eu faço o que eu

posso para sobreviver e...

— Você é podre de rico, Jaime.

Seus pais te deixaram dinheiro e...

— E o dinheiro acaba, Lilian.

Não pense que eu estou passando por alguma necessidade,


porque não estou, mas eu precisava arranjar alguma forma
de fazer a grana render ainda mais. Tico só gasta e não quer
saber de trabalhar.

Se eu pude unir o útil ao agradável, não vejo problema. Eu


limpo as ruas dos animais que estão vagando por aí em uma
vida de sofrimento enquanto abasteço meu restaurante com
a carne mais saborosa do mercado.

ninguém
nunca

reclamou.

— Se as pessoas souberem, ninguém nunca mais entra


naquela espelunca.

Jaime age rapidamente e me prensa contra a parede às


minhas costas.

— Ninguém nunca vai saber, entendeu, Lily? Você fala


alguma coisa e eu espalho para todo mundo que o seu irmão
é um veadinho que gosta de dar a bunda.

— O-o quê? — Lembro-me do motivo que me trouxe até


aqui. —

Você já sabia?

— Claro que sim, Lily. Já comi ele diversas vezes.

Jaime não sabe que Tico e Manu estão tendo um caso. O que
ele

sabe é que meu irmão gosta de homens, porque já transou


com ele.

Minha cabeça roda e eu sinto que vou cair. Jaime me larga.

— Então a gente fica desse jeito, certo, Lily? — Ele diz


sorrindo. —

Fica todo mundo de bico bem fechadinho. Você não conta


nada sobre a carne do meu restaurante e teu irmão continua
vivendo a vidinha dele de macho escroto por aí e tem um
futuro como jogador de futebol. Afinal, você sabe que esse
meio é bem preconceituoso e se eu falar alguma coisa a
carreira dele está acabada.
— Eu nunca mais quero te ver, Jaime. Você é um escroto.

Saio

correndo

desse

lugar

asqueroso enquanto as lágrimas rolam por meus olhos. Corro


desesperadamente até não poder mais. Boa parte das
pessoas que eu amo e em quem confio possuíam segredos,
alguns tenebrosos, e os escondiam de mim. Manu, Tico,
Jaime. Como pude me enganar tanto assim?

Pego meu celular de dentro da minha bolsa a fim de mandar


uma mensagem para Kevin e de repente me lembro da
consulta.

No meio dessa correria toda, acabei esquecendo da nossa


sessão com o terapeuta e acabei perdendo o horário. Assim
que começo a

discar o número de Kevin, a bateria

acaba

celular

descarrega. Bosta de dia. Será que nada vai dar certo hoje?
Vejo um táxi passando e dou sinal. O carro para e eu entro.

— Para onde, moça? — O taxista pergunta.


Passo o endereço da casa de Kevin. Ele deve estar chateado
comigo, mas vai entender. Contarei tudo o que aconteceu e
ele, com certeza, vai me ajudar a decidir o que fazer. Kevin
vai saber me aconselhar, já que é do mesmo time de futebol
de Manu e os dois estão sendo visados por grandes times.

As lágrimas continuam caindo

quando me lembro da carne do Pulguento sendo jogada


dentro daquela máquina asquerosa. Os latidos dele. Como
deve ter doído quando Jaime o decapitou, tadinho.

E não só ele deve ter sofrido como também todos os outros


cachorros que já passaram por aquelas gaiolas. Não consigo
acreditar que me enganei tanto com meu “amigo”.

O táxi estaciona na frente da casa de Kevin e eu pago pela


corrida.

Desço do carro e, logo na entrada, encontro a mãe do meu


namorado.

— Olá, Lily. — Ela diz

sorridente, mas então percebe as lágrimas nos meus olhos.


— O que foi, minha menina?

— Nada, não. Preciso falar com o Kevin.

— Ele deve estar no quarto dele, aquela sua amiga chegou


agora há pouco e...

— Amiga?

— Sim, a Jéssica. Parece que ele a chamou porque você não


atendia o celular e...

— Tudo bem. Pode deixar que vou me explicar com ele.


Agradeço à mãe de Kevin e digo que já conheço o caminho
do quarto.

Vou até a porta do quarto dele, decidindo deixar a educação


de lado, e entro rapidamente. Estou totalmente sem forças.
Preciso do

abraço do meu namorado.

Mas a cena que encontro é tudo o que eu não precisava ver.

Kevin está deitado em sua cama.

Pelado.

E,

em

cima

dele,

cavalgando

rapidamente,

está

Jéssica.
Acordo com a luz do dia entrando pela janela do quarto.
Estou com a boca seca e usando a mesma a roupa que fui
trabalhar ontem na clínica. O remédio realmente fez efeito e
eu capotei.

Decido me levantar e tomar um banho. Terminando, seco


meu corpo e visto uma roupa para ir ao trabalho. Lembro-me
de Lily.

Preciso saber como ela está. A menina é minha


responsabilidade e

se tem uma coisa que fui ontem, ao fazer

uma

regressão

sem

consentimento dela ou de alguém que pudesse responder


por ela, foi irresponsável. Mas, pelo menos, a ação serviu
para reafirmar minhas suspeitas sobre Laerte. Só não sei
como farei para provar que ele é o culpado pelo crime.
Saio de casa e, antes de ir para a clínica, passo em uma loja
de celular para comprar um aparelho novo. Aproveito e
compro um chip também. Adiciono vários números na lista
de contatos, menos aquele que era de minha mãe. A
tentação é grande, confesso, mas resisto.

Preciso lutar contra isso.

Peço um Uber, pois deixei meu carro na clínica, e em alguns


minutos já estou na porta dela.

— Olá, Doutor Ian. Bom dia —

diz a recepcionista.

— Oi, bom dia — retribuo o cumprimento.

— O diretor Júlio pediu para o senhor se dirigir à sala dele


assim que chegasse. Parece que é urgente.

— OK. Obrigado.

Pego um café na máquina que fica na entrada da clínica e


vou até a sala de Júlio. Bato duas vezes na porta.

— Pode entrar. — Ouço a voz do diretor.

Entro na sala.

— Olá, chefe.

— Ah, Ian! Está melhor?

— Sim, chefe. Peço desculpas por ontem. Prometo que...

— Ian — Júlio me interrompe —, chegaram até mim


informações gravíssimas sobre sua conduta aqui dentro.
— Quê? Como assim? — Pelo visto o dia não será tão
tranquilo quanto imaginei.

— Só um instante.

O diretor pega o telefone, disca alguns números


rapidamente e diz quando o atendem do outro lado:

— Ele chegou. Pode vir até aqui, por gentileza?

Júlio desliga o telefone e pede

que eu aguarde um instante.

— Chefe, eu gostaria que o senhor me explicasse o que está


acontecendo e...

— Só um instante, Ian.

Espero alguns minutos, que parecem horas, e escuto alguém


bater à porta. Um rapaz que conheço de algum lugar entra.

— Ian — diz Júlio —, esse é um dos cuidadores que


trabalham aqui.

O nome dele é Hugo.

— Eu o conheço — digo,

lembrando-me dele. — Ele me ajudou ontem com a crise de


Lily.

— Certo. — Júlio diz. — O que aconteceu ontem com Lily,


Ian? Por que ela teve uma crise?

Engulo em seco.

— Ela... Ela teve uma crise enquanto eu a atendia e...


— Hugo — Júlio me interrompe de forma seca —, por favor,
explique o que você me disse.

O rapaz começa a falar de forma nervosa e desconfortável:

— Senhor Ian, primeiramente, me perdoe. Eu não queria


colocá-lo em maus lençóis. Mas a garota estava muito
agitada. Eu tive que ajudar.

— Como assim? — questiono.

— Eu trabalho nas horas vagas com terapia alternativa. —


Ele se explica. — ThetaHealing. E uma das táticas que
costumo aplicar nas minhas consultas é a da regressão.

Começo a entender e Hugo continua:

— Ontem, a agitação da Lily, a forma como ela tentava falar


sobre o fatídico dia, o desespero dela...

tudo me levou a crer que foi o resultado

de

uma

regressão

interrompida. Eu tive que falar com o diretor e pedir


permissão para poder ajudá-la a ficar mais calma assim que
acordou e...

— É o suficiente, Hugo. — Júlio o corta. — Pode nos deixar a


sós novamente, por favor.

— Sim, senhor. E me desculpe mais uma vez, Doutor Ian.

— Não precisa se desculpar, Hugo — digo. — Você só estava


fazendo o melhor pela Lily.

Ele sai da sala e fico a sós com Júlio.

— E então, Ian? — O diretor pergunta.

— Ele não mentiu, Júlio. Eu realmente apliquei a técnica de


regressão com a Lily.

— PORRA, IAN! — Júlio grita dando um tapa na mesa. — Você


sabe que somos totalmente contra a utilização desse tipo de
técnica aqui nesta clínica. Ela é muito controversa e divide a
opinião de muitos especialistas.

— Eu sei, chefe, mas eu tive minhas razões.

— E quais são essas razões, Ian?

— Chefe, não foi um delinquente qualquer que fez aquilo


com a Lilian. Foi o pai dela.

— Como é que é? — Júlio me olha intrigado.

— Chefe, pensa comigo, a

menina não foi violentada pelo método que possamos


chamar de

“mais comum”. Não houve nenhum vestígio

de

DNA

humano

encontrado na região íntima dela.

Nem sêmen, nem pelo, nem pele e...


— Isso não quer dizer nada.

— Chefe, eu trabalho com

psicologia humana e sei que, se fosse alguém com o perfil


de um estuprador que tivesse feito aquilo, ele teria usado do
próprio corpo

para violentá-la. A faca poderia ser utilizada, claro, mas o


estuprador também usaria seu corpo. Só que isso não
aconteceu nesse caso. A menina foi violada com requintes
de crueldade, como se quisessem que ela sofresse. Quem
fez isso com ela tinha um motivo muito forte. Ódio. Raiva.
Ou seja, essa pessoa a conhecia.

— Não pode ser. A polícia...

— A polícia não sabe de nada, chefe — insisto. — Nem a faca


com a qual ela foi violentada foi encontrada. Você quer mais
um motivo? A mãe da garota. Por que a mãe dela foi
assassinada de forma tão brutal após sair do hospital em

que a Lily estava internada?

PORQUE

MÃE

DELA

DESCOBRIU A VERDADE, chefe.

A Lily falou tudo para a Theodora.

Do jeito dela, mas falou. A Theodora entendeu tudo. E eu


tenho certeza de que ela ia contar para a polícia, só que foi
silenciada antes.

— Por mais que sua linha de pensamento absurda faça


sentido, Ian, nada liga o pai da menina aos crimes.

— É aí que o senhor se engana.

Laerte era quem tinha melhor acesso à Theodora. Laerte


quis me proibir de fazer perguntas. Por que um pai iria
querer impedir a investigação do crime acometido

contra a própria filha? Além disso, tanto o amigo da Lilian


como a melhor amiga dela me forneceram informações
importantes. Ambos afirmaram que o pai da garota pode ser
pedófilo. Inclusive, ele deu em cima da Jéssica quando ela
tinha catorze anos.

Júlio me olha assustado.

— Chefe, a gente precisa parar esse homem. Eu fiz sim a


técnica da regressão na Lily, mas foi por uma causa maior.
Eu precisava que ela se lembrasse de quem fez aquilo.

Ela precisava me dar um nome e...

— Ian, eu te contratei para ser psicólogo da Lilian, não para


ser detetive particular.

— Chefe...

— Isso foi longe demais, Ian.

Você imaginou coisas muito sérias.

Não entendo essa sua ligação tão feroz com a paciente e


sinto que as coisas aqui estão começando a se tornar muito
íntimas entre vocês, assim como foi com Robson.
— Chefe, eu não...

— Você abusou da minha

confiança, Ian. Investigou algo que não lhe diz respeito e fez
o que não foi contratado para fazer. Perturbou os familiares
da paciente. Está fazendo acusações gravíssimas sem prova
alguma. E o pior de tudo: utilizou uma técnica que é proibida
por esta clínica em uma paciente e

sem autorização.

— Eu...

— Na minha visão, você está descontrolado e precisa de


ajuda, Ian. Sua função aqui deveria ser ajudar e não ser
ajudado. Eu não posso permitir que isso vá tão longe.

— Chefe, eu preciso que você acredite em mim. A Lily corre


perigo e nós temos que fazer alguma coisa.

— E eu vou fazer, pelo bem dela.

Júlio fica de pé na minha frente e decreta:

— Você está despedido, Ian, não faz mais parte da equipe


desta clínica.
Eles não notam que entrei, estão compenetrados. Fico
observando tudo

enquanto

choro

silenciosamente.

Foram

tantos

baques no dia de hoje que estou sem forças para lutar. Para
gritar.

Eu queria ir até ali e tirá-la de cima dele, mas fico parada.


Vendo.

— Isso, sua gostosa. Eu acho que vou gozar — diz Kevin.

— Não! — Ela para de cavalgar.

— Isso, segura. Não goza, não. Me

fode, vai. Me fode todinha.


Ele dá um tapa de leve na cara dela que a faz gemer.
Observo enquanto Jéssica está sentada nele.

Não consigo ver tudo, pois as costas dela encobrem a cena,


mas, pelos movimentos do braço de Kevin, percebo que ele a
está masturbando. Diferente de como aconteceu comigo,
tudo parece ir bem na transa deles. Será que o problema de
tudo era realmente eu?

Não, não é isso. Ela está sentada nele sem se mexer, por
isso ele não goza.

Por que eu não pensei nisso? Eu que não consegui seduzi-lo


de uma forma que o fizesse demorar para

gozar? Tiro a ideia da minha cabeça. Eu não posso pensar


nisso.

Ele que foi o filho da puta da história.

É aí que somo todas as fichas: eles no shopping; o moletom;


Jéssica a defendê-lo.

— Já é a terceira vez que transamos e você quer chegar logo


no prazer. Você precisa aprender a segurar essa porra.

— Eu não consigo, gata — diz Kevin. — Se você rebolar mais


um pouco, eu vou esporrar tudinho dentro de você.

Terceira vez? Isso já deve estar acontecendo há muito


tempo. O

homem que mais amei neste mundo

está me traindo com a minha melhor amiga. Eu não consigo


acreditar.

— Eu estou quase lá, Kevin. Vou gozar!


— Eu também, porra!

Jéssica

volta

cavalgar

ferozmente como uma tigresa no cio. O ritmo deles fica mais


frenético até os dois explodirem em um orgasmo tão intenso
que consigo sentir daqui. Jéssica abaixa seu corpo e o beija.

— Eu amei! Foi demais. — Ele diz.

— É assim que você tem que fazer com ela. — Jéssica fala.

Ela sai de cima dele e deita ao

seu lado. Ao fazer isso, a visão deles fica livre e ambos me


veem.

— Lily? — Ela diz se cobrindo.

Caio de joelhos no chão e Kevin se levanta, correndo até


mim sem roupa para me ajudar.

— TIRA A MÃO DE MIM! NÃO

ENCOSTA EM MIM! — grito.

— O que está acontecendo? Que gritos são esses? — Ouço a


mãe de Kevin antes de ela entrar no quarto e colocar a mão
na boca chocada com o que vê.

— Mãe, deixa a gente a sós. Eu resolvo isso — diz Kevin.


— Depois nós vamos conversar, viu, mocinho. — A mãe dele
fala e fecha a porta.

— Por quê, Jéssica? — soluço.

— Nós sempre fomos como irmãs.

Eu confiei tanto em você.

— Lily... — Jéssica se levanta e para na minha frente. — A


gente ia te contar, mas...

— E você? — digo olhando raivosa para Kevin. — Fez eu me


sentir a pior mulher do mundo, achando que o problema era
eu, que eu não tinha capacidade de fazer você segurar a
porra do seu pau. Mas você só estava me usando, não é?
Você não estava nem aí para o meu prazer. Só para o dela.

— Lily, não foi isso.

— O que foi então, Kevin?

— Depois da nossa primeira vez, eu fiquei com vergonha do


que aconteceu. Eu sabia que não era normal um cara gozar
tão rápido assim. Eu procurei a Jéssica, que tem me ajudado
e...

— Há quanto tempo essa

palhaçada acontece? — questiono me levantando do chão e


encaro Jéssica. — Me fala!

— Aquele dia em que você nos viu no shopping foi a primeira


vez

— diz ela. — E a segunda vez foi quando ele deixou o


moletom dele lá em casa.
Esbofeteio o rosto dela.

— Você é louca? — Jéssica grita.

— Nunca mais me procurem,


nenhum de vocês dois. Eu odeio vocês — digo, dirigindo-me
à porta do quarto.

— Isso mesmo, Lily. Corre. Sabe por que ele quis me


procurar?

Porque ele queria uma mulher de verdade do lado dele que o


ensinasse a ser homem, não uma criancinha igual a você. O
que você fez com o problema do seu namorado? Ao invés de
tentar ajudá-lo, foi correndo contar para os amigos.

— Mentirosa. Só contei para você. E eu tentei ajudá-lo. A


gente ia para uma consulta hoje, inclusive

— refuto.

— Essa ajuda pelo visto não foi

suficiente, já que você nem apareceu, não é mesmo? Kevin


me ligou desesperado para saber notícias suas, porque você
não passou aqui para irem juntos à consulta. Se alguém
ajudou o Kevin, esse alguém fui eu. Eu tive que sair com ele
para ensiná-lo a controlar esse pinto dele. —

Jéssica olha pra Kevin. — E está difícil, viu — finaliza


revirando os olhos.

— De homem você entende bem,

né, Jéssica? — digo.

— Do que você está falando, sua louca?

— Oras, digamos que você não seja conhecida por ser muito

“santinha”, não é mesmo? Acho que o bairro inteiro já


transou com você.
— E isso é um problema meu, Lily. Gosto de transar mesmo,
e daí? E o Kevin é muito gostosinho, adorei ajudá-lo. Quer
saber? Você, além de tudo, é uma mal-agradecida. A gente
só estava transando para que ele conseguisse te fazer gozar.
Quer saber de outra coisa? Ele goza rápido mesmo, mas,
pelo menos, eu consegui controlá-lo. Talvez o problema seja
mesmo você.

As palavras de Jéssica ferem o fundo do meu âmago.

— Eu não sou obrigada a ficar

aqui ouvindo você me chamar de mal-agradecida. Foi você


quem não conseguiu manter as suas pernas fechadas perto
do meu namorado e ainda vem com essa desculpinha de que
queria me ajudar. Eu nunca pedi sua ajuda nesse sentido. E

você — aponto para Kevin — é tão culpado quanto ela.

— Lily, não conta para ninguém.

— Ele pede. — Isso pode acabar com a minha reputação e...

— Reputação? — Começo a rir descontroladamente. Manu e


ele são iguaizinhos, só se preocupam com a maldita carreira.
— Tudo isso acontecendo na porra da minha vida e o que te
preocupa é a sua

bendita reputação?

— Sabe como é, Lily, seu irmão e eu estamos sendo


escalados para um time grande. Não posso ter nenhuma
notícia negativa sobre mim rolando por aí. Muito menos que
eu não consigo segurar muito em uma relação. Jogador de
futebol tem que passar a impressão de ser másculo, fodão.

— Kevin... — Eu me aproximo dele, dou um sorrisinho com


lágrimas nos olhos e digo aquelas palavras que venho
querendo dizer desde que entrei nesse quarto: —

Vai se foder!

Saio furiosa de sua casa e caminho até a minha. Já é noite.

Que dia péssimo. Descobri que todos ao meu redor me


enganaram em algum momento. Confiei demais nessas
pessoas. Acreditei em todos e nunca desconfiei que
guardavam tantos segredos.

Não sei o que fazer. Não sei o que pensar da enxurrada de


informações que foi despejada na minha cabeça. Tico e
Manu. Jaime e sua fabricação de carne ilegal.

Kevin e Jéssica. Lembro das palavras dela dizendo que no dia


em que os vi no shopping foi a primeira

vez

que

transaram.

Lembro que Jéssica estava com um presente. Agora tudo faz


sentido. O

vestido era para ela. Um presente

de Kevin para ela. Talvez tenha sido a forma que ele usou
para convencê-la a ajudá-lo com seu probleminha. E eu
achando que eles haviam se confundido quanto à minha cor
favorita.

Chego em casa e respiro fundo pegando as chaves da porta


que estão na minha bolsa. Entro e, pelo visto, ninguém está
aqui. Manu não voltou e não vejo nem sinal de meu pai e de
minha mãe. Ótimo. Preciso tomar um banho para lavar meu
corpo e minha alma. Pego roupas limpas no meu quarto e
vou até o banheiro com a certeza de que, pelo menos, esse
dia não poderá ficar pior do que já está.

Dou uma última olhada em meu consultório enquanto


termino de guardar minhas coisas pessoais.

Após recolher tudo e guardar em algumas caixas que Júlio


me forneceu, dou adeus mentalmente ao lugar que tanta
esperança me trouxe neste último mês.

Um dos guardas da clínica me observa

da

porta,

como

se

estivesse atento para que não levasse embora algo que não
é

meu. Tenho noção de que mereço esse tratamento. Joguei


fora a chance que a vida deu de me redimir de meus
pecados. Porém, o que mais me dói é saber que não vou
poder mais ajudar a garota que tem o mesmo nome da
minha mãe.

Ninguém é capaz de entender a conexão que Lily e eu


temos, talvez nem eu mesmo consiga decifrá-la.

Desde que li o nome dela no prontuário, no meu primeiro dia


de trabalho, senti que o destino me colocara em seu
caminho para ajudá-la e, quanto mais conhecia sua história,
mais semelhanças encontrava com a minha mãe.

A vida é engraçada e nos prega

peças que, a princípio, não entendemos o sentido. Quem


diria que ao chegar aqui eu encontraria uma paciente com o
mesmo nome da mulher que mais amei na vida e que era
tão boa e amável quanto ela? Lembro do sorriso que Lily deu
em nossa última consulta. Sei que ela também sente essa
força que sinto.

Pedi permissão para me despedir de Lily, mas Júlio não


concedeu.

Ele disse que já causei mal demais a essa menina. Eu


concordo em parte.

Talvez a psicologia não seja para mim. Robson, Lily. Todos


eles acabaram sofrendo em minhas

mãos e eu não consegui ajudá-los.

Despeço-me dos enfermeiros e vou para a porta da clínica. A


tristeza domina meu peito por ter que dizer adeus a este
lugar que me acolheu quando achei que não teria mais
nenhuma oportunidade.

Acabou.
Caminho até meu carro no

estacionamento, abro o porta-malas e guardo as caixas com


meus pertences. Antes de fechá-lo, vejo a foto que Lily me
dera.

Pego

retrato

novamente.

Theodora e Lily na foto, Manu ao fundo. Por que a garota me


deu isso? Cada vez mais eu sentia que ela queria me dizer
algo, mas tinha

medo.

Posso

ter

perdido

meu

emprego, mas não perdi a vontade de ajudar essa garota.


Ela precisa de mim, assim como minha mãe precisou. A
diferença é que não pude ajudar minha mãe, mas posso
ajudar Lily.

Manu

no
fundo

da

foto.

Observando. Ele sabia que a foto seria tirada e mesmo assim


estava ali.

Olhando.

Espreitando

Leio novamente o que está escrito embaixo do retrato:


“Primeira vez na praia de Ebelesa – 01/07”.

Pego meu celular e jogo o nome

dessa praia no Google, mas não encontro nenhum resultado.


Olho melhor a foto e vejo que o nome da praia de “Ebelesa”,
assim como a data, está escrito com a mesma cor de tinta
do restante da frase, mas um pouco mais forte. Essas
informações

foram

escritas

recentemente. Minha mente começa a raciocinar.

Manu está na foto, e é o único que demonstra nunca ter se


recuperado

do

trauma

que
aconteceu com Lily.

Manu fugiu quando eu quis conversar com ele.

Lily me deu essa foto porque queria me dizer algo.


Finalmente

consigo entender o quê.

A foto demonstra que Manu estava presente em um


momento que não deveria estar e está datada com 01/07.

Porra, como não percebi isso antes?

Checo minhas anotações e aqui está: 01/07, dia em que Lily


foi violentada. É isso!

Manu. Ele é a chave para decifrar esse enigma.

Era isso o que Lily queria me dizer.

Ela

queria

que

eu

conversasse com Manu.

Ao olhar novamente o nome da praia, eu me dou conta de


que aquele não é o seu nome, e sim um

anagrama.

As

letras
estão

embaralhadas.

O que Lily tentou me dizer está claro. Não foi Ebelesa.

E, sim, “Ele sabe”.

Relaxo debaixo do chuveiro.

Passa-se uma, duas horas. A água escorre pelo meu corpo e


o tempo voa enquanto as gotas batem em minha pele e
varrem toda a sujeira que está encrostada no meu ser.

Minhas lágrimas se misturam à água do chuveiro enquanto


recordo das decepções que vivi no dia de hoje.

Todos

me

enganaram,

mentiram para mim. Eu confiei, me entreguei e acreditei nas


farsas que

as
pessoas

ao

meu

redor

inventaram e me sinto uma idiota por não ter enxergado as


coisas como são.

Ouço a porta da sala sendo aberta e fechada. Alguém deve


ter chegado. Pego o celular que está no porta-xampu e vejo
que já são 23h01min. Droga. Meus pais vão encher o saco.
Pudera, fiquei mais de três horas no banho. Mas ainda não
me sinto totalmente limpa.

Desligo o chuveiro, pego a toalha e seco meu cabelo. Eu me


olho no espelho e não reconheço a Lily que está ali. Enxergo
uma garota ferida, quebrada, destruída. Fui pisoteada por
todos em quem confiei e que

acreditei que me amavam.

Manu mentiu para mim. Não foi sincero. Ele nunca me disse
que sentia atração por outros homens.

Ele foi agressivo e escroto quando o afrontei sobre o bilhete


de ameaça. E, o que é pior, ele tem um caso com Tico, o
marido do meu melhor amigo e a pessoa que o estava
ameaçando, sabe-se lá por qual motivo.

Falando em amigo, penso em Jaime.

Aliás,

ex-amigo.
Não

consigo mais encará-lo sabendo tudo o que faz. Minha moral


está dividida e, sinceramente, não sei o que fazer. Tenho
noção de que o que ele faz com aqueles animais

inocentes, além de ser repulsivo, é crime, mas meu coração


se aperta em denunciá-lo e imaginar que ele pode ser preso
por seus atos. Jaime não aguentaria a prisão e não quero
nem imaginar como eu me sentiria se ele morresse lá
dentro. Ainda tenho um carinho por ele, afinal foram anos de
convivência. Preciso resolver isso amanhã com calma, não

posso

deixá-lo

continuar

matando os animais.

E tem Jéssica. Junto com Jaime, foi a minha pior decepção.


Desde que me entendo por gente, somos um trio inseparável
de amigos.

Jaime tem a vida dele e Jéssica sempre foi um pouco mais


próxima

de mim. Contei tudo sobre mim para

ela.

Compartilhei

meus

momentos e minhas angústias. Eu não entendo a atitude


dela. Ela sempre teve tudo; era a mais bonita, a mais
paquerada, a mais simpática. Por que quis ter justo o que
não podia?

Kevin. Lembro-me de todas as vezes em que tentamos


transar e que ele gozou rapidamente sem ao menos se
esforçar em me dar o mínimo de prazer. Tirando a nossa
última vez, é claro. Por outro lado, não paro de lembrar dele
transando ferozmente com Jéssica. Segurando o prazer.
Fazendo-a sentir-se mulher. Por que ele me tratou dessa

forma, como se eu fosse uma boneca inflável que estivesse


ali pronta para lhe dar prazer quando ele quisesse?

Meu pai. Sinto medo do seu toque, mas não consigo


entender o motivo. Às vezes penso que estou sendo
influenciada por Jéssica.

Será que ele realmente é um homem tão asqueroso a ponto


de desejar a própria filha?

Escuto outro barulho na porta da sala. Mais alguém deve ter


chegado. Ouço os degraus da escada rangerem. Em seguida,
passos, desta vez no corredor, aproximando-se. E, então,
tudo fica em silêncio. Alguém está parado na

porta do banheiro. Seguro a respiração. A maçaneta gira,


mas a porta não se abre, pois está trancada.

— Tem gente aqui dentro — digo.

Não há resposta.

Termino de secar o meu cabelo.

Enrolo a toalha pelo meu corpo e abro a porta do banheiro.


As luzes do corredor estão apagadas e eu as acendo. Não há
ninguém no corredor.
Vejo a porta do quarto de Manu encostada.

Ela

estava

aberta

quando cheguei. Deve ter sido ele quem veio até o banheiro,
e, quando percebeu que eu estava lá dentro, foi para o seu
quarto com

vergonha de me encarar.

Amanhã conversarei com ele e tentarei entendê-lo melhor.


Sei que Manu tem muito a perder se a notícia de que ele
gosta de homens vazar. O time de futebol que ele joga

excessivamente

preconceituoso e meu irmão está começando a construir sua


imagem.

Fora, é claro, a oportunidade que Kevin e ele receberam para


ir para um time grande.

Respiro fundo e me dirijo até meu quarto. Acendo a luz,


deixo a toalha cair e me olho no espelho do guarda-roupa.
Não sou uma garota feia. Posso não ser linda como Jéssica,
mas também não sou uma

mulher de se jogar fora. Meu ego está ferido pela traição de


Kevin e minha autoestima está no chão.

Pego meu pijama, que é bem simples, por sinal — uma


blusinha de alcinha e um shortinho —, e o visto sem
nenhuma peça íntima por baixo. Um look perfeito para uma
noite

que

espero

ser

bem

confortável.

De repente, escuto um barulho no quarto dos meus pais.


Será que minha mãe chegou? Tento ignorar, mas escuto
novamente. Parecem gemidos de dor. Eu claramente escuto
um “Ai!” e em seguida uma voz feminina dizendo: “Você está
me machucando”.

Penso por um instante e, por fim, decido ir até lá ver o que


está acontecendo. Tenho medo de meu pai estar fazendo
algo com minha mãe, a única dentre todos que ainda não
me decepcionou. Apesar do seu jeito seco e sério, é a única
com quem posso contar neste momento.

Saio do meu quarto e me dirijo até a porta do quarto dos


meus pais. Mas, quando abro a porta, não é minha mãe que
encontro. Grito, horrorizada com o que vejo.
Estaciono na frente da casa de Lily, do outro lado da rua.

Agradeço por ter tirado uma cópia da ficha médica dela e


guardado nas minhas anotações pessoais. Se não fosse isso,
nunca saberia onde ela morava.

Desço do carro e vou até a porta da casa. Quase toco a


campainha, mas penso o que farei se for Laerte quem
atender. Não posso me dar ao luxo de que meu principal
suspeito

desconfie de que estou em seu encalço.

Olho para dentro da casa pela janela da sala e não consigo


ver nem Manu, nem Laerte. Parece que não há ninguém.
Escuto um carro se aproximando

me

escondo

rapidamente atrás de uma das árvores que ficam na frente


da residência.
É

um

EcoSport

vermelho.

Alguém me falou sobre esse carro.

Tento resgatar na memória e me lembro da minha conversa


com Kevin dias atrás: “Desculpe a pergunta, Doutor. É que
não cruzei com Manu e nem vi o carro dele.

Achei que quem estivesse aqui

fosse o Tico. Vi um EcoSport vermelho igualzinho ao dele lá


fora,

mas

deve

ter

sido

coincidência”.

Continuo escondido e o carro estaciona quase na porta da


casa de Lily. Olho para dentro do veículo e vejo Tico no
volante e Manu no banco do passageiro. Kevin estava certo.
Este é o carro de Tico.

Os

dois

olham
ao

redor

rapidamente e, como veem que não tem ninguém na rua,


beijam-se. O

QUÊ? Tico era marido de Jaime até alguns dias atrás. Alguma
coisa está muito estranha. Pego meu celular e bato uma foto
do beijo dos pombinhos.

Manu desce do carro, Tico dá a partida e vai embora. O


irmão de Lily vai em direção à porta de sua casa e então
decido abordá-lo.

— Manu! — digo.

— Dou-doutor. — O rapaz

gagueja de nervoso ao me ver.

— Preciso falar com você. Sua irmã quer que você me ajude.

— Lily? — Ele diz. — Lily pediu minha ajuda?

— Indiretamente. Olha, podemos conversar em algum lugar?


Não podemos nos falar aqui na porta da sua casa, seu pai
pode aparecer e...

— Relaxa, Doutor. Meu pai só chega à noite, isso quando


vem para casa. Têm dias em que ele

dorme no próprio escritório. Enfim, quer entrar?

Não me sinto seguro, mas essa é minha única chance.

— Claro.
Entramos na casa de Manu e ele me aponta a poltrona.
Sento-me nela e observo a estrutura da residência para que
eu possa saber qual a minha rota de fuga caso aconteça o
pior. Manu se dirige até o sofá, que fica na frente de onde
estou acomodado, e diz:

— Achei que o meu pai tinha dito para você parar de fazer
perguntas por aí.

— Manu, sua irmã corre perigo

— digo sem rodeios. — Você quer

ajudá-la ou não?

— Perigo?

— Você sabe, Manu. Você sabe que quem fez isso é alguém
que era próximo de Lily. E eu tenho a impressão de que você
sabe muito mais do que está falando. O que está
escondendo, Manu?

— Eu não estou escondendo nada, você está louco. Olha,


vou pedir para se retirar da minha casa e...

— Eu sei sobre você e Tico. —

Jogo na cara dele.

— O quê?

— Eu sei que você e Tico estão tendo um caso. Eu vi vocês


dois juntos.

Mostro a foto do meu celular para Manu. Apreensivo,


observo sua reação. Ela determinará o rumo desta conversa.
De repente, o garoto desaba de volta no sofá. Sinto-me mais
tranquilo. Se fosse um rapaz violento, na certa Manu tentaria
tirar o celular das minhas mãos e me ameaçaria. Mas ele
não faz isso.

— Você me pegou, Doutor. —

Ele diz derrotado.

— Manu, eu sei que você é inocente, mas desconfio de que


você saiba bem mais do que demonstra. Olhe, a Lily me deu
esta foto.

Mostro-lhe a fotografia e os olhos de Manu se enchem de


água ao ver o retrato em minhas mãos.

Em seguida, ele diz:

— Nós éramos uma família feliz, Doutor. Me pergunto em


que ponto foi que tudo desandou. Agora, aqui estou, sem
mãe, sem irmã e prestes a ter meu pai preso.

— Por que seu pai seria preso, Manu?

O garoto arregala os olhos e me observa assustado.

— Você me pegou de novo, Doutor.

— Vamos, Manu. Me conte. Por que seu pai seria preso?

— Porque foi ele, Doutor. Ele fez

aquilo com Lily. E foi ele quem matou minha mãe.


— Pai? — digo. — Que porra é essa?

Lilian?

rebate

ele

assustado.

Ele tenta desligar a televisão, mas já é tarde demais. Vejo


que ele reproduzia na tela uma gravação dele e Jéssica
transando. No vídeo, meu pai bate com força em Jéssica, que
reclama da dor e ao mesmo tempo

pede

por

mais.

Ele
finalmente consegue desligar o

aparelho.

— É ela — afirmo entendendo tudo. — Jéssica é a sua


amante.

— Filha, eu posso explicar.

— Não tem porra de explicação nenhuma! Você está


transando com a Jéssica.

Minha mente gira e eu me pergunto como Jéssica pode ser


tão vaca. Não bastasse meu namorado, a garota também
tinha que dar em cima do meu pai?

— Quando isso começou? —

indago.

— Lilian... — Ele diz se levantando.

— AHHH! Se cobre! Eu não sou

obrigada a ver você pelado.

Meu pai se cobre com o edredom da cama.

— Filha, me deixa explicar.

— Ah, mas você vai se explicar mesmo. O que é isso, pai?


Quando essa palhaçada começou?

— Faz pouco tempo, Lily. Foi quando você completou dezoito


anos.

— MENTIROSO — grito. —
Jéssica me contou que você olhou estranho para ela na festa
de catorze anos dela.

— Quê? Isso é mentira, minha filha. Foi ela quem deu em


cima de mim.

— O quê?

— Lilian, nessa festa que você

está falando, Jéssica se aproveitou enquanto sua mãe tinha


ido ao banheiro e me abordou. Ela tentou me beijar. Eu achei
que ela havia bebido alguma coisa mais forte, pois estava
fora de si. Segurei seus punhos e disse que ela era uma
criança e que procurasse alguém da idade dela. Mas ela não
quis saber.

Ela

meu

pai

demonstra

constrangimento —... Ela pegou no meu pau. Eu saí dali


antes que ela fizesse alguma besteira maior.

Lilian, eu sou seu pai e peço que confie em mim. Eu nunca


teria um caso com uma garota de catorze anos.

— Ah, claro. E como o senhor

me explica o fato de vocês estarem juntos agora?


— Sua amiga se tornou uma mulher linda, Lilian. E ela
sempre me provocou. Nas últimas vezes em que dormiu
aqui, ela fazia questão de desfilar com aquele shortinho para
cima e para baixo.

Sua mãe também notou e isso foi, inclusive, motivo de


brigas. Graças a Deus você parou de chamá-la para passar
as noites aqui, mas já era tarde demais. Eu já estava
encantado pela mulher que ela tinha se tornado.

Ele respira fundo, passa as mãos no cabelo e volta a falar:

— Porra, Lilian. A garota estava

ali, se oferecendo para mim, e eu não podia deixar de notar.


Um dia ela me mandou uma mensagem no celular e eu
ignorei. Mas ela insistiu e me mandou a segunda, a terceira,
a quarta. Decidi encontrá-la e pedir que parasse com aquele
assédio, sou um homem casado.

Meu pai pega o celular e me mostra

todo

histórico

de

mensagens que tinha com Jéssica.

Vejo que em uma das primeiras mensagens ela dizia:


— Nosso primeiro encontro foi quando ela já tinha dezessete
anos.

Eu fui decidido a pedir que ela parasse com aquilo. Eu queria


ser fiel à Theodora, Lily, mesmo com ela dificultando tudo.
Sua mãe tem os problemas psicológicos dela e nos últimos
anos estava mais depressiva ainda. Sua mãe não se
recuperou desde que ficou grávida de Manu. As mudanças
no corpo mexeram muito com ela e as crises passaram a vir
cada vez com mais frequência.

— Já fazia um tempo que eu não reparava... — Paro de falar.

Será que estava tão compenetrada com meus problemas


que fui negligente com minha mãe?

— Pois é, filha. Sempre preferi enfrentar os problemas de sua


mãe sozinho. Você e seu irmão tem outras coisas para se
preocupar, como a sua escola e o time do Manu. Por isso sua
mãe ficava tanto tempo presa dentro do quarto.

Mas,

enfim,

nesse

primeiro
encontro conversei muito com Jéssica. Ela era uma garota
encantadora, tinha bastante assunto, entendia de várias
coisas, nem parecia

que

tinha

somente

dezessete anos. Foi ali que demos nosso primeiro beijo.

Demonstro nojo.

— Sua amiga queria que eu a possuísse no meio da rua, mas


eu disse que não. Disse que ela estava confusa, eu também
estava confuso.

Paramos de nos ver.

— Se vocês pararam de se ver, eu

não

entendo

como

isso

aconteceu. — Aponto para a televisão que passava o vídeo


agora há pouco.

— Foi na sua festa de dezoito anos, Lilian. Jéssica estava ali,


linda para cacete. Sua mãe e eu já não transávamos há mais
de seis meses, e quando fui ao banheiro,
depois de pegar aquele moleque te beijando, ela me
empurrou para dentro.

Nos

beijamos

apaixonadamente e ali aconteceu nossa primeira vez.

— Eu tenho nojo de vocês... —

digo sentindo pena de minha mãe.

— Filha, me perdoa. Eu não queria que isso chegasse tão


longe.

Mas sua mãe e eu simplesmente não damos mais certo. Não


sinto mais prazer nenhum com ela. Fora que os surtos
depressivos dela são demais para mim. Já suporto isso há
vinte anos e ela não quer se tratar. Ela toma os remédios
que uma amiga usa e consegue para ela, mas não procura
um especialista.

Eu não aguento mais. Aguentei por muito tempo, mas hoje


não quero mais. Eu quero ser livre, Lily, quero ser feliz.

— O que você deveria fazer, pai, era terminar com a minha


mãe e deixá-la livre para cuidar da vida dela. Aí o senhor
poderia transar com as vadias que quisesse.

— Eu tentei, mas sua mãe ameaçou se matar, Lilian. Você


não sabe, mas eu propus o divórcio, porém Theodora disse
que, se me separasse dela, ia tomar remédios e se matar. Eu
fiquei com medo, porra! Fui covarde, sim. Mas não queria

ser

responsável
por

qualquer tipo de mal que pudesse

acometer sua mãe e muito menos queria deixar você e seu


irmão órfãos do lado materno. Por isso aceitei continuar
vivendo nessa mentira.

— Muito nobre de sua parte, pai.

Mas você sabe que está errado.

— Eu sei, minha filha. Mas dentre todos os erros que cometi,


esse me pareceu ser o que causaria menos mal a vocês. Eu
posso ser um marido filho da puta, posso ser um esposo
ridículo, mas eu amo você e Manu mais do que tudo, Lilian.

— O vídeo...

— Foi Jéssica quem gravou. Ela me enviou para que eu


pudesse

lembrar dela quando estivesse sozinho. Cheguei em casa


havia um tempo e vi que você estava no banheiro, no
chuveiro. Logo em seguida ouvi o barulho da porta da sala e
achei que você tivesse saído.

Tirei um cochilo de uns minutinhos e,

quando

acordei,

vi

tudo
silencioso. Acabei colocando o vídeo, achando que não tinha
ninguém em casa.

— Na porta da sala, devia ser o Manu. Ele está no quarto


dele. E

outra, pai, a mãe poderia chegar a qualquer momento.

— Sua mãe só chega meia-noite.

Ela me mandou mensagem avisando que está na casa de


uma amiga.

Quando coloquei o vídeo, ainda eram 23h35min. Eu tinha um


tempinho.

Lilian,

estou

tão

envergonhado

por

você

ter

presenciado essa cena.

Começo a chorar e lembro de todos os medos e receios que


senti com o toque de meu pai. Estou sensível e com medo
de estar pensando coisas erradas, mas será que meu pai
realmente é o homem que imaginei ser ou fui influenciada
pela opinião de outras pessoas?
Lembro de minha mãe me

protegendo em excesso de meu pai, mesmo ele nunca tendo


feito nada contra mim. Será que ela realmente tinha medo
de que ele fizesse algo

comigo ou usou de uma psicologia doentia para que eu


ficasse ao lado dela e contra meu pai? Acho que minha mãe
sabia que meu pai tinha amantes. Afinal, ele a traiu com
Jéssica e ela o perdoou. Quem me garante que isso já não
aconteceu antes? Será que esse foi o modo que ela
encontrou para que eu ficasse do lado dela e a defendesse
dele de todos os jeitos possíveis?

Para juntar tudo, ainda teve a história de Jéssica sobre meu


pai dar em cima dela quando tinha catorze anos. Foi tudo
uma mentira.

Jéssica que deu em cima dele e as mensagens

que

ela

enviou

comprovam isso.

Meu pai nunca encostou em mim.

Ele sempre foi muito afetuoso e sempre me deu muitos


beijos e abraços calorosos, mas será que esse não é
somente o jeito carinhoso dele?

Senti sinceridade e verdade em sua fala e seu olhar.

Começo a lembrar dos momentos em que meu pai me levou


para as festas da escola. O quanto ele ficou feliz quando lhe
dei o primeiro desenho que fiz de Dia dos Pais.

Lembro do dia no qual descobri que o Papai Noel que


aparecia no meu quarto para deixar um presente para mim
era ele disfarçado.

Chorei muito quando descobri, mas

ele me pegou no colo e começou a me fazer cócegas


dizendo que melhor do que um Papai Noel, que aparece
somente uma vez por ano, é um pai presente, que está
todos os dias na vida de seus filhos e não deixa faltar nada
em casa.

Logo depois disso começou a superproteção de minha mãe.


Ela não me deixava sozinha com ele e vivia me falando que
se ele encostasse em mim eu deveria falar para ela. E eu
fiquei com medo.

Comecei a me afastar dele e nos tornamos estranhos.

Por fim, veio a festa de Jéssica que, graças a uma mentira,


enterrou de vez toda e qualquer confiança

que eu tinha neste homem.

Hoje, vê-lo assim, acuado e me pedindo um voto de


confiança, faz meu coração disparar. Será que eu errei tanto
com meu pai?

Sei que ele está errado. Sei que ele deveria ter terminado
com minha mãe apesar de tudo. Sei também que não
deveria ter se envolvido com Jéssica, mesmo que esse

relacionamento

tenha
começado após ela completar dezoito anos. Mas será que, se
estivesse em seu lugar, eu não teria feito o mesmo. E se o
que ele sente por Jéssica for realmente verdade?

Quem é capaz de mandar nesse sentimento tão forte e


profundo

chamado amor?

— Pai, eu...

— Lily, minha filha, eu vou contar para sua mãe. Vou resolver
isso, fique tranquila.

— CONTAR O QUÊ? — Ouço

os gritos de minha mãe.

Olho para trás e a vejo parada na porta, indignada. Eu estou


de pé ao lado da cama de meu pai e lembro que ele está
embaixo das cobertas, nu.

— Contar o quê? O que vocês dois estão escondendo?

Minha mãe vai até a cama e puxa a coberta de meu pai. Ao


vê-lo pelado, ela me olha com fúria nos olhos.

— Que diabos está acontecendo?


— Você tem certeza disso, Manu?

— pergunto, pois são acusações muito sérias.

— Eu preciso te contar tudo desde o princípio, Doutor Ian.


Você tem um tempo?

— Claro. Eu tenho todo o tempo do mundo.

Manu se levanta, pega um pouco de água na cozinha e volta.

— Quer água?

— Não, obrigado.

O rapaz dá um gole, senta-se e continua.

— Minha mãe, Theodora, sempre teve problemas


psicológicos. Baixa autoestima. Depressão. E meu pai deixou
de amá-la há muito tempo.

Ele foi um babaca. Quando mais ela precisava, ele se


afastou.

— Muitas pessoas acabam não aguentando a barra de estar


ao lado de
alguém

com

problemas

psiquiátricos. Os dois deveriam ter procurado ajuda.

— A ajuda que meu pai procurou foi enfiar o pau dele em


outras mulheres, Doutor. Era muito mais fácil e mais
prazeroso. Ele mantinha o casamento, mantinha a

imagem de fachada de homem perfeito e, enquanto isso,


traía minha mãe a torto e a direito. Ela, iludida, acreditava
que a cada pedido de perdão ele voltava um homem melhor.
Coitada. Só se fosse melhor em enganá-la.

Manu toma mais água.

— Lily descobriu a traição mais recente. Aliás, Lily descobriu


muitas

coisas.

Ela

descobriu

inclusive sobre Tico e eu.

— Como? — questiono.

— Você não precisa saber dos detalhes, Ian, só precisa saber


que quando ela disse na clínica:

“Tico... cachorrinho... Manu”, ela não estava falando do


cachorro que
encontramos na rua. Você já deve imaginar, por essa fala,
em que posição ela nos encontrou, não é mesmo?

Fico envergonhado por ele.

— Como você sabe que ela disse isso?

— Tico me contou. Fiquei

sabendo que ele foi à clínica com Jaime. Aliás, não pense que
todas as pessoas que estavam indo ali visitá-la era por amor,
não. Todos só

queriam

saber

se

Lilian

guardaria seus segredos mais profundos. Acho que, de


todos, o único que realmente se preocupou com ela fui eu.

Realmente, faz sentido. Sempre

me perguntei por que Manu mostrava-se tão sensível com o


que havia acontecido com Lily, sendo que todos já haviam
superado.

Hoje vejo que talvez ele tenha sido o que tivera a reação
mais natural.

Ele a amava e sofreu por ela.

Todos iam visitá-la por interesse e por

isso
acabavam

não

demonstrando tanta tristeza em vê-la naquela situação.

— Tico e Jaime se separaram logo depois do ataque que Lily


sofreu. Jaime chegou possesso em casa e Tico achou que era
porque Lily havia contado tudo sobre o nosso caso e acabou
se explicando equivocadamente.

Na

verdade,

Jaime não sabia de nada. Quando Tico contou tudo, Jaime


pediu divórcio no mesmo instante e o acusou de estar com
ele somente por causa do dinheiro. E, para ser bem sincero,
Jaime acertou. No começo do namoro dos dois, pode até ser
que Tico gostasse dele, mas, depois que o conheci, o amor
entre nós floresceu. Mas Tico não queria perder a vida boa e
eu não via problema nisso, precisava manter minha
aparência.

— Preciso que foque no que é importante, Manu. Você estava


falando sobre Laerte e...

— Mas tudo é importante, Ian.

Tudo é importante. Você que não

está prestando atenção.

Manu bebe mais água.

— Tico foi o primeiro cara que eu realmente amei, Doutor. Já


me envolvi sexualmente com outros, inclusive com Jaime,
mas era só isso, saca? Sexo. Só que com Tico era diferente.
Eu sinto algo mais forte por esse filho da puta.

— Você é assumido, Manu?

— Tá louco? Eu faço parte do time de futebol da cidade. Um


escândalo desses poderia acabar com a minha carreira.
Inclusive mantenho a imagem de que detesto gays para que
ninguém desconfie.

Saio com umas meninas de vez em quando para disfarçar.


Claro que

para conseguir transar com elas preciso de um “remedinho”.

— E como é que o Jaime não contou para ninguém sobre


você e o Tico?

— Você não sabe? O Tico me falou que a Lily também te


disse isso.

— Ela disse?

— “Hambúrguer ruim”, não foi?

O negócio do Jaime é ilegal, Ian.

As carnes dele são todas de procedência bem duvidosa. Não


são bovinas nem suínas.

Engulo em seco e agradeço por não ter experimentado os


lanches de Jaime quando fui ao seu restaurante.

— Tico me protegeu. Ele ameaçou Jaime e disse que, se ele


falasse uma palavra sobre o nosso caso, iria expor provas do
abate ilegal dele. Engraçado, né? O Tico já tinha usado esse
mesmo trunfo comigo.
— Como assim?

— Logo que eu comecei a sair com Tico, percebi que alguma


coisa não estava normal com esse casal. Jaime dizia que
tinha uma ONG de animais, mas eu nunca achei nada sobre
essa organização na internet. Um dia, eu decidi segui-lo, e
descobri que a tal ONG

era de fachada. Na verdade, nem existia. Os animais de rua


que ele

encontrava

viravam

todos

hambúrgueres. Gato, cachorro, até rato. Era nojento demais.

— Isso é crime — digo

nauseado.

— Pois é. Filmei tudo e fui ao encontro de Tico. Eu queria


denunciar o Jaime. Confesso que essa era a prova que eu
precisava para que os dois se separassem, pois eu comecei
a sentir ciúmes de vê-los juntos. Lily achava que eu era
homofóbico e que tinha raiva de gays, mas, na verdade, meu
ódio era saber que os dois estavam juntos. Mas o Tico,
apesar de me amar, amava mais ainda o dinheiro do Jaime.
Tico sabia de tudo,

apesar de não concordar, mas, para não perder a vida boa,


tapou os olhos para o que o namorado fazia e mandou eu
ficar de bico calado.

— Senão...
— Senão ele ia espalhar que tínhamos um caso. Diz ele que
tinha algumas fotos nossas. No começo eu fiquei irritado e
acabei me afastando dele. Mesmo assim, Tico fez questão de
lembrar que eu deveria ficar de bico calado, me mandando
um bilhetinho nada agradável. Mas eu amo esse filho da
puta, não consegui ficar muito longe e acabei ligando para
ele pedindo para conversar. No dia em que nos
reencontramos, Tico pediu

perdão pelo bilhete. Ele disse que nunca conseguiria me


prejudicar e que agiu impulsionado pelo medo de ficar
pobre. Eu também pedi perdão por não ter coragem de
assumi-lo. Ele disse que não aguentava ficar longe de mim e
que ia se separar de Jaime.

— E você acreditou?

— Não só acreditei como

aconteceu. Estamos juntos agora, não é? Tico já tinha feito


uma boa poupança com tudo o que havia tirado do Jaime
durante todos esses anos. Jaime dava uma mesada bem
gorda para ele. O que Tico guardou era o suficiente para
viver o resto dos seus dias.

— Mas eu não entendo... Qual a relação disso com...

— Calma, Doutor. Você é muito apressado.

Manu toma mais um pouco de água.

— Enfim, Jaime e Tico têm uma espécie de parceria


estranha. Jaime fica calado sobre mim e ainda paga uma
pensão generosa para o Tico; e Tico não fala nada sobre a
procedência da carne do Jaime.

Todos saem ganhando.


— Entendo.

— Depois da visita à clínica, quando você os conheceu, Tico


foi ousado e pediu mais dinheiro ao Jaime. Ele ficou puto e
disse que o

que dava já era bom demais. Eles tiveram uma briga feia e
não se falam mais desde então. As conversas entre eles hoje
são puramente “comerciais”.

— E como você se sente com isso, Manu?

— Eu nem ligo. Tenho meu trabalho. Jogo com meu time. E

tenho ao meu lado o cara que amo, mesmo

que

esse

seja

um

relacionamento que tenhamos que viver escondido. Só te


disse isso para você entender o porquê de esses dois irem
visitar a Lily. Puro interesse, Ian. Assim como Kevin.

— Kevin?

— Sim. Ouvi uma conversa de

Jéssica com meu pai esses dias.

Parece que o babaquinha tem ou teve

problema

de
ejaculação

precoce com a Lily. Não sei direito. Jéssica estava o ajudando


a resolver seu probleminha.

— Como assim “ajudando”?

— Ela transou com ele para exercitar, Doutor, para que ele
aprendesse a segurar o gozo. Ele queria treinar com ela para
satisfazer a Lily. Na boa? Por mais estranho que pareça, acho
que ele gostava realmente da Lily e ficava muito

emocionado

nervoso

quando estava com ela. Ele acabava não conseguindo


segurar.

Kevin precisava de um tratamento

psicológico, e não sexual.

— E Jéssica contou tudo isso ao seu pai? Sem mais nem


menos?

— Contou. O velho nunca gostou do fato de ela sair com


outros caras, mas, como ele não se separava da minha mãe,
Jéssica continuou aproveitando a vida. E

ela fazia questão de contar para ele sobre todos os homens


com quem saía. De vez em quando ela gosta de relembrá-lo
disso, talvez para deixar claro que é uma mulher que tem o
homem que quiser na palma da mão dela. Foi em uma
dessas conversas que ouvi ela falando sobre Kevin. Meu pai
ficou puto porque ele era namorado da Lily,
mas ele está hipnotizado pela Jéssica e acabou a perdoando.

Vagabunda. Bom, mas agora parece que ela é fiel ao meu


pai. Eles estão em um relacionamento bem sério. Não confio
100% nela, mas não sou eu quem está comendo, então fico
na minha.

E não deveria confiar mesmo.

Lembro de Jéssica oferecendo-me um boquete um dia


desses. Aliás, agora entendo o porquê de Jéssica ficar tão
nervosa naquele dia no carro. Foi porque toquei no nome de
seu homem: Laerte. Ela estava com medo de que eu
descobrisse tudo sobre eles.

Mas alguma coisa não bate. A

mensagem que vi no celular de Kevin: “Me avisa quando sair


da clínica que eu vou te pegar, gata.

Tenho jogo hoje e você, como minha namorada, não pode


faltar na torcida. Beijos”.

— Mas, peraí, Manu. Jéssica e Kevin não estão juntos? Eu vi


uma mensagem dele pedindo que ela fosse a um jogo com
ele.

— Só de aparências. No dia em que Lily foi atacada, ela


também pegou Jéssica e Kevin na cama. Os vizinhos ouviram
o escândalo e, mais uma vez, por causa da reputação como
jogador de futebol que estava prestes a ser contratado por
um time grande, Kevin teve de

pedir para Jéssica fingir que era sua namorada, pelo menos
por um tempo. Eles pintaram Lily de ex-namorada ciumenta
que pegou o antigo namorado na cama com a atual. Jéssica
aceitou, talvez por remorso do que fez com Kevin. Sei lá. O
importante é que isso serviu aos propósitos do meu pai
também.

Ninguém sabe que ele está com Jéssica. Ele só pretende


assumi-la depois que passar o período de luto por minha
mãe.

— O que você quis dizer com remorso?

— Jéssica não é uma garota má, Doutor, só é muito “sexual”.


Eu mesmo já comi ela, na época que

ainda não havia me descoberto.

Claro que meu pai nem sonha com isso. Mas, pelo que
conheço dela, ela realmente era amiga da minha irmã. Só
que sua vontade de transar com todos falou mais alto. Essa
mulher só pensa em sexo. Não acho que ela realmente tenha
transado com Kevin só para “ajudá-lo”. Ela precisava suprir o
fogo íntimo dela e colocar mais uma figurinha no seu
catálogo de machos.

— Talvez ela seja ninfomaníaca, não sei. Teria que consultá-


la.

— Talvez, Doutor. Mas agora ela está com meu pai. E


também, acho que ela o ama, apesar de seus desejos
lascivos. Jéssica transa dia

e noite com ele. Claro que às escondidas,

afinal,

precisa

sustentar pelo menos por mais um tempo a imagem de


namoradinha do Kevin, mas, toda vez que ela vem aqui em
casa, os dois transam desesperadamente.
— Aqui? Eles não respeitam a memória da sua mãe?

— Meu pai não está nem aí para a memória dela, só para as


aparências. E por que estaria? Ele deu cabo dela, não é
mesmo? Ah, acho que isso pode te interessar.

Manu pega seu celular e pede para eu ligar o Bluetooth. Ligo


e aceito o arquivo que ele me envia.

É um vídeo que foi filmado em

01/07, dia do ataque à Lily. Nele, a garota aparece correndo


para fora de casa vestindo um pijama, o mesmo

que

foi

encontrado

destruído junto dela.

No vídeo, Lily está desesperada e

Laerte

corre

atrás

dela,

parecendo nervoso. O vídeo acaba.

— Isso é uma prova das grandes, Manu. Por que não mostrou
antes?

— Meu pai sabe de mim, Ian. Ele sabe que eu estava em


casa naquele dia. Ele disse para eu ficar com o bico calado,
senão todo mundo saberia da minha sexualidade. Não posso
perder a oportunidade de crescimento

que

estão

me

oferecendo. Não posso desistir do

meu sonho. Por isso eu disse para todos que não estava em
casa quando

tragédia

de

Lily

aconteceu.

Manu começa a chorar.

— Gravei esse vídeo da porta do meu quarto com meu


celular.

Ninguém sabe que eu o tenho. Nem ele. Só você, e Lily.

Ele olha em meus olhos.

— Todas as vezes que fui à clínica, pedi perdão à Lily, Doutor.

Perdão por ser tão covarde. Ah, aliás, me perdoe pelo bilhete
que deixei na sua sala.

— Foi você?
— Sim. Eu estava com medo de que, se continuasse
investigando,

você descobrisse sobre meu pai e a verdade sobre mim


acabasse vindo à tona. Mais uma vez fui covarde e egoísta.

— Mas como você...

— Naquele dia, Tico me levou até a clínica e ficou me


esperando do lado de fora. Eu ia deixar o bilhete no meio do
caderno de desenhos de Lily, mas aí o cuidador me disse que
você queria me ver.

Saí um pouco antes da visita de Lily e fiquei escondido em


um corredor que fica perto da sua sala.

Eu sabia que se você visse que eu estava demorando para ir


falar com você, iria atrás de mim no quarto de Lily. Foi dito e
feito. Assim que

você saiu de seu consultório, falei para o segurança que


estava ali que havia alguém passando mal no banheiro.
Quando ele foi até lá, entrei no seu consultório e deixei o
bilhete. Estava quase indo embora quando vi o Kevin vindo
na minha direção. Me escondi e, por sorte, ele não me viu. Vi
que o Kevin entrou na sua sala e achei que você pensaria
que foi ele.

— Realmente fiquei com a pulga atrás da orelha. Mas por


que agora, Manu? Por que você decidiu falar justo agora?

— Eu cansei de guardar tudo para mim, Ian. Não estou


pronto para enfrentar meu destino, mas

tenho consciência de que Lilian sofreu muito mais do que eu.


Eu preciso me libertar disso. E você me mostrar essa foto...
significa que ela tem consciência de tudo o que está
acontecendo. Lily sabe que eu estava em casa naquele dia.
Ela confiou em mim para te contar a verdade e eu... eu
preciso fazer isso. Por ela. O meu sofrimento não será nada
comparado ao dela.

— Eu agradeço, Manu. Você sabe que terei de denunciar seu


pai com a prova que tenho nesse vídeo, certo? E que, com
isso, ele pode falar sobre você?

— Estou preparado, Ian. Tenho Tico, ele vai ficar do meu


lado. Sei

que posso contar com você para me ajudar nas consultas


psicológicas, certo?

— Claro que sim — sorrio. —

Conte comigo.

Dou a mão para Manu e me despeço do rapaz. Dirijo até a


delegacia mais próxima e entro.

Está tudo acabado. Lily poderá respirar em paz e ter um


tratamento adequado sem sentir medo de ser atacada a
qualquer momento. O

delegado vem falar comigo e, em seguida, entrego-lhe o


vídeo.
Minha mãe olha primeiro para meu pai sem roupas e em
seguida para mim. Seu olhar de fúria e decepção me deixa
assustada.

— Vocês dois — ela diz —... na minha cama?

— Mãe, isso não é o que você está pensando.

— Me explique então, Lilian. —

Ela exige com a voz cheia de rancor.

— Ele te trai. — Aponto para

meu pai e em seguida para a televisão, que agora está


desligada.

— Te trai com a Jéssica.

Meu pai me olha assustado e diz:

— Lilian, fique quieta. Deixa que eu me resolvo com ela.

Não,
pai!

grito

desesperada. — Chega de mentiras nessa casa. Eu não


aguento mais.

Hoje foi um dia horroroso para mim e eu não aguento mais


segredos.

— Deixe-me conversar com sua mãe. Vai para o seu quarto.


— Meu pai diz.

— Mamãe, não acredita nele. Ele pode ser um ótimo pai e eu


não tenho do que reclamar, mas você

merece um homem melhor — falo com toda a sororidade do


mundo.

— Vocês... Você me enganou.

Mais uma vez. E com ela — diz ela olhando para meu pai.

O som de trovão ribomba e escuto grossas gotas de chuvas


caírem no telhado de casa. Eu choro. O céu chora. Minha
vida virou de cabeça para baixo hoje e eu não estava
preparada para esse baque.

— Você me enganou. — Minha mãe está fora de si.

Ela sai correndo do quarto, desce as escadas e vai para a rua


na chuva.

— Mãe — grito.
Saio do quarto dela e esbarro com Manu saindo de seu
quarto.

Ele está filmando com o celular e pergunta:

— O que está acontecendo?

Estava gravando um vídeo para o time e...

— Segura o pai aqui dentro de casa — interrompo. — Vou


atrás dela.

Desço as escadas correndo e vou para a varanda. Não


peguei celular.

Nem carteira. Nem nada. Está chovendo forte e eu olho para


os dois lados da rua, mas não a enxergo em lugar nenhum.

— LILIAN! LILIAN! — Escuto a

voz de meu pai ensandecida atrás

de mim.

Saio correndo. Ele não pode me encontrar.

Vou para a rua e olho para trás.

Meu pai está atrás de mim, correndo e gritando pelo meu


nome. Continuo a correr. Preciso fugir dele. Preciso encontrar
minha mãe.
O julgamento de Laerte aconteceu de forma bem rápida.
Cidade pequena, poucos casos, logo foi marcada

uma

sessão

para

determinar se ele era culpado ou não. Com a prova do vídeo


que Manu me transferiu, a polícia conseguiu intimá-lo. Além
disso, uma testemunha decidiu falar sobre o caso. Um
vizinho que preferiu não se identificar disse que, no dia em
que o atentado de Lily

aconteceu, viu uma cena estranha da janela: Laerte


correndo atrás da garota. Foi expedida uma ordem de prisão
no mesmo dia e o pai da minha paciente foi levado para a
cadeia.

Para completar, a faca utilizada no crime foi encontrada no


quarto de Laerte, escondida no meio de suas roupas. A
polícia achou estranho, pois já havia vasculhado o local de
cima abaixo antes e não havia encontrado nada. Outro fato
curioso é que nela continha também o sangue de Theodora,
além das digitas de Laerte. Ou seja, ele usou a mesma arma
na mãe e na filha.

Será que foi com ela que ele

decepou o braço da mulher? Fiz questão de vir ao tribunal


para ver o julgamento. Quando os juízes declararam que o
homem era culpado, senti um alívio por Lily.

Eu consegui. Salvei aquela garota.

Por mais que a sentença ainda possa ser recorrida e que o


encerramento definitivo do caso leve anos, pelo menos, por
ora, a menina está a salvo. E com todas as provas
encontradas, duvido que a sentença final seja outra.

Olhei para o lado e não tinha ninguém, mas senti que ela
estava ali.

— Você agiu bem, meu filho.

Estou orgulhosa de você. — Ela

diria.

Eu sorri. Não salvei minha mãe.

Não consegui ajudar Robson. Mas consegui salvar Lily. A


garota não corre mais riscos.

Laerte foi condenado a vinte anos de prisão e sei que,


provavelmente, vai morrer dentro da cadeia.

Quando foi declarado culpado, vi Jéssica, que também


assistia ao julgamento, espernear:

— ELE NUNCA FARIA ISSO!


ELE AMAVA LILIAN.

— Meu amor... — Laerte disse para Jéssica.

— Me soltem! — Jéssica gritou quando o policial a agarrou


para tirá-la do tribunal. — Vocês estão

cometendo um erro e prendendo o homem errado. Ele nunca


faria isso. Isso é uma armação.

Jéssica teve de ser retirada da corte por alguns agentes, não


sem antes dizer que amava Laerte. A menina estava
descontrolada.

Outros policiais pegaram nos braços de Laerte e o


levantaram.

Eu sabia que ele seria levado para o seu destino e novo lar: a
prisão.

Ao passar ao meu lado, ele olhou em meus olhos. Laerte


parecia ter envelhecido dez anos naqueles últimos dias, o
homem charmoso que conheci não existia mais. O que vi foi
um senhor assustado, com medo do que o futuro lhe

reservava. De repente, ele parou e eu disse que estava tudo


bem aos guardas. Queria trocar as minhas últimas

palavras

com

aquele

homem.

— Você não sabe o erro que está cometendo, doutorzinho —


disse ele.
— Você vai pagar pelos seus crimes, Laerte. Agora sua filha
está segura e não precisa ter medo de você. Você tentou
impedir que eu descobrisse a verdade, mas eu descobri.

— Eu tentei te impedir para evitar que minha filha sofresse.

Ela já passou por muita coisa nesses

últimos

dias,

não

precisávamos de você fuçando em um assunto que já estava


morto e enterrado. — Laerte falou em tom de súplica.

— Vamos — disseram os tiras.

— Esperem! — Laerte pediu. —

Só quero dizer uma última coisa a ele.

Olhei no fundo de seus olhos e, curiosamente, vi verdade ali.


O

homem era muito bom em enganar as pessoas.

— Eu não matei minha mulher.

Eu não fiz aquilo com Lilian. Eu nunca encostei nela. Não sei


como aquela faca foi parar no meio das minhas coisas, mas,
já que esse é o meu destino e não tenho como

fugir dele — os olhos de Laerte estavam marejados —, quero


te pedir algo: cuide da minha menina. Cuide de Manu
também.
Eles são os bens mais preciosos que eu tenho nesta vida.
Não deixe nada de mal acontecer com eles.

Os policiais o levaram embora e eu me senti arrepiado.


Aquele homem falou com tanta segurança que a fagulha da
dúvida despertou em minha mente.

Será que estou errado? Não, não pode ser.

Olhei para o lado e notei que a mídia estava presente no


tribunal, filmando tudo. No fundo, ele devia estar fazendo
um showzinho para

as câmeras.

Ao sair do tribunal, encontro com Manu e Tico. Os dois estão


lado a lado e quem vê de fora pode pensar que são apenas
amigos, mas eu percebo os sinais, vejo que estão muito
próximos um do outro. Suas mãos de vez em quando se
encostam.

— No fim deu tudo certo, né? —

diz Manu.

— Pois é. E seu pai não falou um pio sobre sua sexualidade


— digo.

— Por alguns momentos eu até desconfiei se ele realmente


sabia de algo sobre você.

— Sabia sim — fala Manu apressadamente. — Mas acho que


ele ficou com peso na consciência de contar e ferrar a vida
de mais um filho. Fico feliz que a ameaça que ele fez para
mim foi só da boca para fora.

— Entendo — digo. — E o que vai fazer agora, Manu?

— Tico e eu vamos viajar. Tirei uns dias de férias do clube.


Em seguida, vou para São Paulo. Fui contratado pelo time
que estava me sondado.

— Que ótimo, Manu — assinalo feliz.

Olho para os dois e percebo que Manu não contou para Tico
que sei

do segredinho de Jaime.

— Tico, você pode me esperar no carro? — Manu diz.

— Claro.

Tico se afasta e o vejo entrar no carro.

— Liga seu Bluetooth. — Manu murmura rapidamente.

Eu ligo e ele compartilha um arquivo comigo.

— Esse é o vídeo que te falei de quando gravei as provas do


negócio ilegal de Jaime. Aí tem o endereço e como ele mata
os animais e os transforma em carne moída. Eu não posso
denunciá-lo, pois prometi ao Tico que não faria nada. Mas
não posso simplesmente

ignorar o que Jaime vem fazendo com os bichinhos.

— Eu estava aflito com isso.

Tentei
buscar

provas

para

denunciá-lo, mas não consegui.

Com esse vídeo, poderei fazer a denúncia.

— Doutor, faça isso daqui a uns dois dias, quando estivermos


longe.

Tico vai ficar bem. Como disse, ele já tem dinheiro suficiente
e, agora que estou em um time grande, conseguirei
sustentá-lo. Só te peço que não conte na denúncia que fui eu
quem te mandou o vídeo. Diga que foi você quem gravou.

— Fique tranquilo, Manu. Mas, agora que irá para um time


grande e

terá dinheiro suficiente para bancar sua vida e a de Tico,


você não tem medo de que ele faça com você o mesmo que
fez com Jaime?

— Isso nunca passou pela minha cabeça, Doutor. Tico e eu


nos amamos de verdade. Bom tenho que ir. Obrigado por
tudo.

— OK, Manu. Boa viagem, então.

— Adeus, Ian. E obrigado.


O rapaz vira de costas e parte em busca de seus sonhos.
Conheço o perfil de Tico e sei que, mais cedo ou mais tarde,
a história se repetirá, mas não cabe a mim impedir que
Manu sofra. Ele vai ter

que aprender com a vida e, quando precisar de um psicólogo


para ajudá-lo a superar, ele sabe que estarei aqui.

— Seja bem-vindo de volta, Ian.

Júlio me recebe na porta da clínica.

— Eu estou muito feliz por você ter me dado mais essa


chance, Júlio. Prometo não te decepcionar.

— Bom, no fim você provou que estava certo, não é? Mas


vou deixar bem claro que você está proibido de usar
qualquer técnica polêmica sem o consentimento do paciente
ou da direção.

— Pode deixar. E como ela está?

— pergunto ansioso.

— Está querendo muito te ver.


Ela não sossegou enquanto não prometemos que você
voltaria para cuidar dela. Parece que ela gosta mesmo de
você.

— Lily é muito especial para mim, Júlio. Sinto como se ela


fosse uma filha. Não sei explicar.

— Vá vê-la. Ela está com um rapaz na visita.

— Eu já vou. Mas, antes... como vai ficar a situação dela?

— O pai, antes de ser preso, determinou que seus bens,


como casa e carro, fossem utilizados para sobrevivência de
Manu. Mas a

surpresa é que Laerte tinha uma boa quantia na poupança.


Esse valor será usado para pagar a estadia da Lily aqui na
clínica e deve durar por uns cinco anos. Manu, mesmo
distante,

se

comprometeu

de

administrar

pagamento

da

mensalidade.

Além
disso,

esperanças de que, nesse prazo de cinco anos, a justiça


finalize o caso da morte da mãe da garota. Com isso, a
garota e o irmão receberão o seguro da falecida. Calculo que
a menina consiga viver o resto de seus dias na clínica. Isso,
claro, se ela não se recuperar.

— Espero que ela se recupere até lá — digo. — Bom, vou


encontrá-

la.

— Ian — Júlio me chama antes de sair da sala —, você sabe


que não posso permitir que você continue a atendendo, não
é?

— Fique tranquilo, chefe, meu envolvimento com Lily sempre


foi extremamente profissional. Quebrei regras, pois senti que
ela corria perigo e eu tinha de protegê-la.

Intimamente, também senti que minha mãe iria querer isso.


Não acho que meu caminho e o de Lily se cruzaram à toa,
mas, no fim, não posso negar que acabei criando um vínculo
com ela. Sei que por isso não poderei mais atendê-la, mas só
de estar aqui, sei que serei um bom

amigo para a menina. Ela precisa de um amigo de verdade


próximo dela depois de tantas decepções.

Júlio sorri e eu também. Saio de seu escritório, passo em


minha sala para deixar minhas coisas e me emociono.
Consegui. Minha vida agora vai recomeçar de verdade e tudo
vai dar certo.
Decido ir até o quarto de Lily e, ao chegar na frente dele,
bato na porta e entro.

— IAN! IAAAAN! — Ela grita com alegria.

A garota dá um pulo da cama, vem até minha direção e se


atira no meu pescoço, abraçando-me.

— Saudades, Ian. Ian cui-cuida

Lily muito bem! — Ela diz emocionada.

— Eu também estava morrendo de saudades de você, Lily.

— Nunca mais deixar Lily.

Nunca! Lily adola Ian.

— Sim, Lily. Eu adoro sua companhia e, se depender de mim,


ainda seremos amigos por muito tempo.

— Lily gosta Ian. IAN BOM!

A garota começa a cantar:

— Ian bom, Ian bom, Ian bom!

Fico tocado com as palavras da garota e passo a mão em


sua cabeça, notando Kevin ao seu lado.

— Olá, Kevin.

— Olá, Doutor. Vim me despedir

da Lily.

— Despedir?
— Sim. Recebi uma oportunidade para jogar fora do país. É
um time pequeno, mas acho que preciso fugir de todas essas
polêmicas e sair do Brasil. Recomeçar me fará bem.

— Que ótima notícia, Kevin —

digo.

— Bom, estou indo. Lily, adeus minha pequena. — Kevin se


despede. — E, mais uma vez, me perdoe por todo o mal que
te causei.

— Kevin... mentiu pala Lily. —

Ela diz.

— Sim, Lily. E eu vou me

arrepender disso pelo resto dos meus dias. Me arrependo de


não ter realizado seus desejos e não ter feito as suas
vontades por puro nojo e preconceito bobo. Fui um imbecil
mimado que só queria saber do meu prazer. O que mais me
dói é que eu te perdi, menina.

Você foi a mulher que eu mais amei. Te perdi porque fui um


imbecil, não soube te entender.

Quero que saiba que te amei de verdade, Lilian, mas me


deixei levar pelo medo do que as pessoas poderiam falar de
mim.

Lágrimas escorrem dos olhos de Kevin e ele prossegue:

— Você é uma menina muito

especial, Lily. Aprendi muito contigo. Seu maior defeito foi


confiar demais nos outros. Mas quem pode te julgar por ser
uma pessoa tão pura e com tanta bondade no coração? Eu
amei te conhecer, Lily. Saiba que, mesmo com meus erros,
espero que um dia você possa me perdoar. E, se puder fazer
isso, eu volto correndo para o seu lado.

Lily o encara e põe sua mão sobre a dele.

— Kevin mentiu. Lily perdoa.

Mas Kevin com Lily NÃO!

A garota faz cara de emburrada e Kevin ri.

— Seu perdão já é suficiente,

Lily. Bom, estou indo nessa. Cuida bem dela, tá, Ian?

— Pode deixar. Lily foi minha paciente número um e agora é


minha grande amiga.

— Adeus, Lily. Adeus, Ian — diz Kevin saindo do quarto.

Minha vida continua a mesma, mas agora cheia de cor. Fui


efetivado; meu contrato que era apenas de um ano foi
renovado.

Trabalho cada vez com mais pacientes, mas sem nunca


deixar Lily de lado. A garota gostou muito do seu novo
psicólogo e fico feliz com isso. Gostaria de falar que ela teve
algum avanço na fala, mas, neste ponto, Lily continua a
mesma desde que chegou aqui.

Ela não quer falar sobre o pai ou sobre a morte da mãe e,


como amigo, eu respeito seu espaço.

Todas

as

vezes

em

que

conversamos sobre o ataque, Lily garantiu que não se


lembrava de nada. A última recordação que consegui extrair
dela daquele dia foi do momento em que ela saiu de casa
para falar com a mãe enquanto o pai corria atrás dela. Acho
que nunca vou saber realmente porque Laerte fez aquilo
com ela.

Toda vez que digo que seu pai foi preso, Lily abaixa a
cabeça.

Pergunto se ela quer me falar alguma coisa e ela sempre me


responde pedindo pela mãe.

— LILY QUER... MAMÃE.

E chora.

O trauma pelo que sofreu afetou profundamente sua fala,


mas ela tem conseguido, aos poucos, voltar a

fazer
suas

atividades.

Acompanhei de longe alguns de seus exercícios e vi que seus


desenhos começaram a ficar mais firmes, assim como seus
apertos de mão. A escrita dela está fantástica.

Apesar de escrever da mesma forma que fala, Lily escreve


bem.

Talvez um dia a garota possa sair daqui, caso seu irmão


Manu assuma a responsabilidade por ela. Mas não sei se ele
vai querer. Pelo que acompanho, ele está fazendo uma

grande carreira como jogador de futebol. Até hoje sigo suas


redes sociais e em algumas fotos vejo Tico ao fundo. Parece
que as coisas não mudaram entre os dois. Talvez eu tenha
me enganado em relação a eles. Ou, talvez, Manu só não
tenha descoberto ainda.

Nunca mais ouvi falar de Jéssica.

Ela não veio visitar Lily e desapareceu do mapa. Suas redes


sociais são bloqueadas e não tenho um pingo de vontade de
segui-la.

Mas, pelas fotos de perfil do seu Instagram

Facebook

(sim,

confesso que sempre dou uma fuçada), vejo que a garota


está sempre
viajando

para

praias

paradisíacas. Em sua foto mais recente, ela está abraçada a


um homem bem mais velho que ela, e parece feliz.

Final feliz foi algo que Jaime não teve. O vídeo que usei para
denunciá-lo vazou para a imprensa e viralizou não só em
nossa cidade.

Da última vez que vi, a filmagem tinha mais de vinte e cinco


milhões de visualizações no Youtube. As pessoas queriam
linchá-lo e seu estabelecimento foi depredado e fechado
pela vigilância sanitária.

Com o dinheiro que tinha, Jaime respondeu

em

liberdade,

obviamente. A justiça de nosso país é triste. Os ricos


conseguem

realmente tudo. Mas ele teve o que mereceu, ficou tachado


por todo lugar como “o garoto que vendia carne de cachorro
para as pessoas comerem”. As últimas notícias que tive dele
eram bem tristes. O rapaz começou a se afundar nas drogas,
acredito que para esquecer seus problemas. Depois disso,
não soube mais nada dele. Talvez tenha mudado de cidade
ou até de país.

Rolam fortes boatos de que ele foi encontrado morto, vítima


de uma overdose. Não busquei saber a verdade e, para ser
sincero, não me interesso.
Quanto

Lily,

não

tenho

esperanças de que ela volte a ser

uma mulher totalmente saudável.

Sei

que

isso

dificilmente

acontecerá. Mas eu posso dar 100% de certeza que estarei


ao lado dela, custe o que custar.

Vou até o jardim após a consulta de

um

paciente

vejo

conversando com Lucas por sinais.


O rapaz é um dos meus pacientes e tem deficiência auditiva;
está internado aqui por depressão. Os dois têm feito um bem
danado um ao outro. Lily sabe falar Libras, o que foi uma
surpresa para mim e acho que foi ótimo para ela, já que não
consegue se expressar tão bem pela linguagem verbal.
Sempre que a vejo com Lucas, ela está

sorrindo. E os olhos do rapaz ganharam um brilho ao


conhecê-la.

Claro que Lucas continua tendo seus momentos depressivos,


mas eles têm sido cada vez menos frequentes.

Eles estão sentados lado a lado.

Lily não deixa Lucas encostar nela, pois ainda tem uma certa
aversão ao toque, o que é normal. Mas hoje a vi dar um beijo
rápido na bochecha dele. O garoto ficou vermelho e ela
também.

Dou risada.

Agora preciso cuidar de algo que já deveria ter resolvido há


três anos.

Vou até o estacionamento, pego

meu carro e dirijo até aquele local.

Chego na recepção e cumprimento a diretora da antiga


clínica que trabalhei. Ela fica feliz em me ver e sabe o
porquê de eu estar aqui, já havia

mandado

um

e-mail
avisando-lhe que viria.

Sou levado até uma sala e ela abre a porta. Ele está ali e
nem parece notar minha presença.

Sento-me de frente para ele e percebo que a diretora não vai


nos deixar sozinhos. Melhor assim.

— Robson? — digo.

— Iguana? Você veio me ver! —

Ele diz. — Senti saudades. Você não é mais meu amigo?

Ele se balança para frente e para

trás. A diretora me avisou que as crises esquizofrênicas


acabaram gerando demência nele, mas, ainda assim, sinto
uma certa dor em vê-lo dessa forma. Graças ao ataque à
minha mãe e ao aumento das crises, Robson é mantido na
ala de segurança máxima da clínica.

— Eu precisava te ver, Robson.

Precisava falar algo para você que está entalado em minha


garganta e que não me deixa prosseguir com minha vida.

— Ninguém fala com Robson, aqui. Todos odeiam Robson.

Ele se balança para frente e para trás.

— Mas diga, Ibama — prossegue


ele —, o que você quer falar para Robson?

— Robson, eu preciso seguir minha vida, não posso mais


viver com essa angústia dentro de mim.

Preciso me responsabilizar pelos meus erros e parar de


culpar os outros.

Pego nas mãos dele e falo:

— Eu te perdoo, Robson.

(para Ian e Lily)


“Espelho, espelho meu. Existe alguém nesse mercado mais
bela do que eu?”

Dou risada para o espelho que está na sessão de cosméticos


e continuo andando rumo à parte de hortifrúti. É um saco ter
que vir ao supermercado. Isso é algo que meses atrás eu
fazia normalmente, e agora, graças a esse pedaço de braço
inválido, não consigo mais fazer direito.

Pego algumas maçãs com a mão boa e as coloco na cesta.


Vou até o caixa rápido e pago com cartão de crédito.

— A senhora pode nos mostrar um documento, dona


Carmen? — A moça que está no caixa pergunta ao analisar o
cartão de crédito que lhe entreguei.

— Claro. Só um instante.

Demonstro de forma exagerada a dificuldade que é abrir a


bolsa com um braço só. A caixa fica com pena e

acaba

dispensando

apresentação do RG, afinal, é óbvio que uma senhora de


quase cinquenta anos com um braço só não seria alguém
que praticaria

fraudes, não é mesmo?

Imbecil. Ainda bem que ela achou que não precisava ver
meu documento. Essas meninas que são caixas

de
supermercado

são

experts em perceber documentos falsificados.

Após pagar a compra, guardo o cartão e saio do


estabelecimento. E

dou risada. Sabe, sempre quis me chamar Carmen. Acho um


nome lindo,

forte

que

esbanja

inteligência. Agora, nessa nova vida, adotei esse nome, pena


que por pouco tempo. Até hoje não me conformo que minha
mãe tenha escolhido o nome de Theodora para mim. Eu o
detesto e, graças a

Deus, não preciso mais utilizá-lo.

O que foi, leitor(a)? Você está surpreso(a) que estou viva?


Está com dúvidas? Ah, não se preocupe.

Eu vou te explicar tudo direitinho.

Vamos começar pelo fatídico dia em que minha “querida”


filha sofreu aquele grave atentado?

Naquele maldito dia, eu estava visitando uma amiga. Um


porre.
Ela não parava de falar, mas eu prometi que faria companhia
a ela até a meia-noite, hora em que seu marido chegaria do
trabalho. Minha amiga sofria de crises de pânico e não
gostava de ficar sozinha. A enfermeira que cuidava dela
estava doente e ela não tinha filhos para

lhe fazer companhia. Sorte a dela!

Bom, não me importei em ficar com ela, pois entendia muito


bem o que era ter uma crise. Fora que ela me arranjava

os

remedinhos

antidepressivos que eu tomava.

Não podia lhe dizer não.

Preciso voltar um pouquinho mais no passado e explicar algo


para você, leitor(a). Eu também tive

algumas

crises.

Minha

primeira crise nervosa aconteceu quando fiquei grávida do


Manu. Eu nunca quis ter filhos e, no fundo, desejava que ele
morresse na minha barriga. Mas não pense que tive coragem
de fazer algo contra esse bebê. Laerte sempre sonhou

em seu pai. Aguentei firme e forte para segurar o homem


que amava.

Com esse filho, seríamos uma família linda e feliz. Dane-se


que ia ter que limpar a bunda daquele pirralho e aguentar
seu choro de merda na madrugada. Laerte estaria ao meu
lado e, com ele, seria capaz de suportar tudo. Mas como
desgraça pouca é bobagem, depois de dois anos, veio outro
baque.

Estava grávida novamente, dessa vez de uma menina.

Você que está lendo já deve ter ouvido falar que os filhos
mudam a vida de uma mulher, não é mesmo?

Pois saiba que é tudo uma puta de uma mentira. Nunca senti
aquela

magia toda que as mães dizem sentir quando têm seus


filhos. Para mim, Manuel e Lilian eram duas moscas que me
incomodavam e muito.

Obviamente, eu dizia que os amava. Demonstrava ser a mãe


perfeita. Tudo pelo meu homem.

Ele sim eu amava e queria ao meu lado.

Confesso que nunca fui uma mãe muito afetuosa, nunca


gostei de abraços e beijos. Não conseguia fingir tanto assim.
Já Laerte era puro carinho, inclusive, até demais.

Ele distribuía afeto por nós dois para aqueles pirralhos.

Com o tempo, percebi que ele

tinha um xodó muito grande pela menina, a Lilian. Que nome


horrível, consegue ser pior que Theodora. Mas ele insistiu em
batizá-la com esse nome em homenagem à sua falecida
mãe. Ao longo dos anos, comecei a me sentir insegura, pois
a menina crescia e ficava bonita. Mais bonita do que eu.
Onde já se viu isso? Ela não podia ser mais bela do que eu.
Comecei a meter caraminholas na cabeça dela quando ainda
era criança. “Tome cuidado com seu pai”. “Não é normal um
homem te beijar tanto assim”. “Se ele encostar em você, me
avisa”. E a patinha caiu como uma tola. Idiota.

Laerte amava os filhos e nunca faria nada com nenhum


deles. Mas, pelo menos, percebi que deu certo e a vaquinha
começou a ficar longe do pai.

Você precisa saber também, leitor(a), que algumas vezes


minha mente entrava em um mundo sombrio do qual
ninguém podia me tirar. Laerte sempre esteve ali, ao meu
lado, ajudando-me a encontrar o caminho da luz.

Até que, um dia, descobri a primeira traição. Manuel não


tinha nem dez anos. Laerte me pediu perdão, disse que não
ia mais acontecer e ao mesmo tempo falou que minhas
crises depressivas eram

as culpadas. Eu respondi que só tinha essas crises por causa


das duas pestes que haviam nascido.

Ele insistia em dizer que eu não tinha noção do que estava


dizendo e que era a depressão falando por mim. Dei-me por
vencida e voltei a fingir que amava aqueles pirralhos
asquerosos.

Desde então, senti que nossa vida foi um loop: ele me traía,
eu ficava depressiva e, para recuperá-lo, aproximava-me de
meus filhos. Eu não queria perder o homem que tanto amava
e que tanto prazer me dava. No fundo, se tivesse escolha,
preferiria

que

meus
filhos

morressem.

Agora que você já sabe do meu passado, vamos voltar para


o fatídico dia, aquele em que voltei da casa de minha amiga
e, ao chegar no meu quarto, peguei a maldita da Lilian com
meu marido.

Como eu estava contando, um pouco antes de sair da casa


da amiga que eu estava cuidando, tive um contratempo. Ela
teve uma pequena crise de ansiedade e só se acalmou
quando me entregou uma faca, enquanto dizia que podia ser
paranoia das crises, mas que eu não deveria andar na rua à
noite sem estar armada. Ela me explicou que muitas
mulheres eram violentadas e que eu tinha de ter algo para
me

proteger. A princípio, recusei a faca. Mas ela insistiu que eu a


levasse, pois só assim ficaria tranquila, e acabei aceitando
para não deixá-la nervosa, guardando-a na minha bolsa que
levava a tiracolo.

É evidente que nada aconteceu no caminho de volta, afinal,


minha casa ficava bem próxima da sua, fora que estava
chovendo demais.

Cheguei no meu não tão querido lar, subi para o meu quarto
e vi aquela cena asquerosa: Lilian de pé ao lado da cama
com um pijama curtíssimo e ele, Laerte, pelado.

Coberto, mas pelado.

Ninguém tira da minha cabeça

que ela estava o provocando. Ela o desejava, eu sei disso.


Ela queria me passar para trás e roubar meu homem de
mim.

Enquanto discutíamos, senti a faca em minha bolsa. Olhei


novamente para os dois ali no quarto e tive uma ideia. Uma
ideia maluca? Pode ser. Mas ia funcionar e

resolver

todos

os

meus

problemas. Saí correndo, fingindo estar desesperada. Chovia


muito e eu sabia que a vadiazinha era toda afetuosa e viria
atrás de mim para esclarecer a situação.

Corri alguns quarteirões e me escondi em um parque entre


as moitas.

Esperei

ela

passar

correndo e a chamei. Ela veio até mim e me lembro de lhe


dizer:

— Shhh, abaixa aqui. Não deixe seu pai nos ver.

A idiotinha se escondeu comigo ali no parque no meio da


chuva e eu tampei sua boca para que ela não fizesse
barulho. Vi Laerte passar correndo atrás da filha, mas ele a
tinha perdido de vista. A chuva forte e o som dos trovões
dificultavam ainda mais que ele nos encontrasse. Laerte faz
o caminho de volta para casa, derrotado.
Eu sei que você, leitor(a), que chegou até este ponto da
história, está querendo saber como foi o nosso diálogo, não
é? Pois bem,

lembro-me que foi assim:

— Mamãe — ela disse depois que a soltei —, não é o que


você está pensando. O papai estava pelado porque ele
estava batendo punheta...

— BATENDO PUNHETA PARA VOCÊ — gritei. — Fala, sua


vaquinha, ele estava batendo para você, não é mesmo?

— O quê? Claro que não. — Ela se mostrou surpresa.

Segurei seu braço.

— Eu já me cansei de ter você atrapalhando minha vida,


Lilian.

Seu pai cismou que eu tenho ciúmes e inveja de você, e quer


saber? Tenho mesmo. Não dá mais

para você ficar morando lá conosco e provocando o meu


homem.

— Mãe, você está fora de si.

Você não sabe o que está falando

— disse ela. — Vem comigo, vamos para casa para que você
possa se acalmar.

Segurei o braço dela mais forte.

— Só eu vou voltar para casa hoje, Lilian. E sem você.

Peguei a faca de minha bolsa e apontei para ela.


— MÃE, NÃO. — Ela grita quando tentei dar uma facada nela.

Lilian me chutou e saiu correndo desesperada. A burra, em


vez de ir

na direção de casa, foi na direção contrária. Não a julgo. Para


voltar para casa, ela teria uma grande subida pela frente,
enquanto para chegar na avenida principal era tudo reto.
Levantei-me e corri atrás dela. Achei que não iria alcançá-la,
mas aí a bobinha caiu com tudo no chão. Mais uma vez, o
destino me ajudava a cumprir meus objetivos.

Bom o resto, você já sabe né?

Depois que a deixei quase sem vida naquele beco


abandonado, escondi a faca dentro da minha bolsa e voltei
para casa. Laerte perguntou se eu havia visto Lilian e eu lhe
dissera que a última vez que a vira fora no quarto com ele. O

safado tentou conversar comigo, mas eu não quis ouvir um


“A”. A partir dali foi fácil fingir tudo.

Quando recebemos a notícia de que a vaquinha estava


internada entre a vida e a morte, fiquei desesperada, afinal,
a menina devia ter morrido.

Senti muito medo de ela contar algo.

Claro

que,

por

fora,

demonstrava ser a mãe abalada. A mulher que precisava de


ajuda.
O meu plano era que Lilian morresse. Com isso, Laerte
ficaria ao meu lado com a tragédia da perda da filha e, de
quebra, eu ainda me livraria dela insinuando-se para ele
dentro de casa. Só que deu tudo errado.

Lilian sobreviveu e ele ficou ainda mais perto de sua amante,


aquela vadiazinha da Jéssica.

Ah, essa foi mais uma mentirinha que contei para a minha
filha tão inocente. Quando encontrei a mensagem de Jéssica
no celular do Laerte, eu disse para a Lily que não sabia quem
a havia mandado. Pura lorota. O número da Jéssica estava
gravado no celular dele e ainda com um coração ao lado do
nome.

E eu contei mais uma mentirinha inocente: Laerte não sabia


que eu vira a mensagem. Inventei toda aquela lorota. Eu
testei a Lily para ver se ela sabia de alguma coisa, mas,
quanto a isso, acho que a

vaquinha não sabia de nada. Pedi que ela ficasse quieta e


não contasse nada para o pai; a panaca caiu igual a uma
pata. Como ela não estranhou que o pai continuava tendo
atitudes normais depois que inventei a tal descoberta? Essa
menina sempre foi muito bobinha.

Quando conversei com Lilian, a idiotinha

ainda

demonstrou

surpresa com o fato de o pai ter uma amante e depois veio


me dizer que tinha medo das atitudes dele.

Na hora, até acreditei na garota, mas, depois que a peguei


no quarto com Laerte, vi que era tudo mentira. Ela queria
roubar meu homem de mim.

O fato é que eu tinha de dar cabo da Jéssica também. Do


jeito que as coisas estavam caminhando, Laerte acabaria
pedindo o divórcio para ficar com ela e eu não permitiria
isso. Mas eu tinha de resolver um problema de cada vez.

Bem, leitor(a), o papo está muito bom, mas eu preciso ir ao


meu destino.

Pego as maçãs que comprei no mercado e as coloco em uma


sacola. Em seguida, peço um Uber e ponho o endereço da
prisão em que ele está detido. Ele terá uma surpresinha das
boas.

O quê? Você ainda tem dúvidas, leitor(a)? Óbvio que Laerte é

culpado, mas não pelo crime do qual foi acusado. Isso não.
Ele nunca encostou um dedo em Lily para machucá-la. Mas
ele é culpado por ter me enganado e ferido meu coração. Por
ter me enganado com minha própria filha.

Por ter me traído.

Ah, deixe-me contar uma parte bem divertida da história


para você. A parte em que Lily acordou no hospital após ser
encontrada quase sem vida.

Você deve estar se perguntando por que não a matei quando


a ataquei. Pois saiba que, por mais vontade que tenha tido,
não consegui matá-la. Talvez seja o tal

instinto maternal que eu tenho guardado lá no fundo. Porém,


prefiro acreditar que agi assim por uma simples razão: dava-
me muito mais

prazer
saber

que

ela

provavelmente definharia até a morte,

abandona,

largada

sofrendo. Imaginar o sofrimento da minha filha era


combustível para a minha

felicidade.

Naquele

momento, jamais imaginei que alguém iria encontrá-la no


meio da tempestade. O fato é que cometi um grande erro.
Se tivesse dado cabo dela no momento do ataque, hoje não
estaria nesta situação. Eu a deixei à mercê do destino crente
de que ela seria fraca e seu corpo

desistiria de lutar. Eu estava certa de que ela morreria em


algumas horas. É como diz aquele ditado:

“Nunca diga nunca”.

Alguns dias depois que Lily foi encontrada, recebemos a


notícia de que ela estava despertando. Fui a primeira a
querer ir ao hospital, afinal, eu era a mãe e tinha esse direito
de querer vê-la na frente de todos, certo? Pelo menos uma
vez na vida usufruí bem do fato de ser mãe.
Era eu quem estava ao seu lado quando

ela

definitivamente

acordou. Eu precisava garantir que ela ficasse quietinha.


Lembro-me do nosso diálogo como se tivesse

ocorrido ontem.

— Você? — Ela disse.

— Lembra de mim, filhinha querida?

olhar

dela

estava

desesperado.

— É bom você ficar bem quietinha, entendeu, Lily? Se você


falar alguma coisa sobre o que aconteceu, eu acabo com a
sua vida.

— Acabá... vida... Não.

— Por que você está falando igual a uma retardada, hein?

— Mãe... por que... mãe...

Parece
que

você

não

consegue

falar

direito,

né,

vadiazinha? Melhor assim.

Olhei para os lados e vi que não tinha nenhum médico ali.


Dei um tapa na cara de Lily, e foi na hora certa, porque logo
depois um enfermeiro entrou no quarto e foi para o banheiro
de Lily. Fingi que estava atordoada com a situação de minha
filha.

— Já me vinguei de você —

cochichei em seu ouvido. — Agora é seu pai que vai me


pagar. Eu sempre perdoei tudo dele, mas ele com você? Isso
nunca. Você vai ouvir por aí que eu morri, Lilian.

Mas eu não morri, sua vadiazinha.

Ouviu bem? Estarei bem viva. Se você abrir essa sua boca
para falar alguma coisa, eu te encontro

e termino o que comecei. E você sabe muito bem que eu sou


capaz disso. Eu estarei sempre por perto, Lilian. Sempre!

Dei um beijo na testa de Lily e saí do quarto.


Como assim, você está me

achando asquerosa? Se estou arrependida? Claro que não.


Por que estaria?

É evidente que, depois do que fiz com Lily, precisava de um


bode expiatório para levar a culpa em meu lugar. E ninguém
melhor do que Laerte, que tanto me fez sofrer.

Não adianta fazer essa cara de nojo, leitor(a). Eu era uma


mulher que estava defendendo a sua honra.

Não podia permitir que aqueles dois me enganassem


embaixo do meu próprio teto. Eu podia aceitar que meu
marido seduzisse qualquer vagabunda. Eu não tinha vínculo
com elas e eu sabia que, no fim do dia, ele acabaria voltando
para mim. Mas Lily? Eu odiei ela e aquele Manuel desde que
saíram de mim. Aquela menina ficava mais bonita à medida
que eu ficava mais velha. Não permitiria que Laerte me
trocasse por ela. Isso nunca!

Só para você saber, leitor(a), acabei de chegar na prisão e


tenho que esperar um tempinho para o horário

de

visitas.

Enquanto

espero, acho que você deve querer

saber como fiz para Laerte vir parar aqui, né? Você vai
adorar essa parte.

Eu estava decidida a matar a Jéssica, mas quando o médico


disse que Lily tinha grandes chances de sobreviver, eu
precisei mudar o que estava traçado em minha mente. Eu
teria que fugir. Por mais que eu a tivesse ameaçado, não
podia viver com o medo de que ela fosse contar tudo.

Mesmo que um dia Lilian

decidisse contar, eu teria que estar preparada.

única

solução

plausível seria “sumir”, afinal, se ela abrisse a boca grande,


eu estaria morta e ninguém me

procuraria. A vaquinha mais uma vez estragaria minha vida.


Mas já que eu tinha de ir embora e me privar da minha
felicidade, Laerte também pagaria.

O plano estava todo formado na minha cabeça. Após sair da


visita que fiz à Lily no hospital, entrei no meu carro. Ali, ao
meu lado, estavam várias garrafinhas com meu sangue.
Todos os dias desde que o médico confirmou que Lily
sobreviveria, tirei cerca de 150 ml de sangue do meu corpo a
cada 72

horas. Eu os armazenei em uma caixa de isopor com gelo


que mantive no meu carro. Nos dias em que tirei meu
próprio sangue, fiquei

fraca e abatida. Foi perfeito para o meu teatrinho de “mãe


abalada com a violência que a filha sofreu”.

Dei partida no carro, liguei para Laerte e fiquei muda. Claro


que isso foi só para deixar o número salvo, caso alguém
fosse puxar o registro telefônico do meu celular após eu
desaparecer. A polícia veria que a última pessoa para quem
liguei foi Laerte e somaria um mais um.

Após

dirigir

por

algumas

quadras, parei o carro em uma rua bem vazia e despejei na


parte interna dele todo o sangue que havia retirado de mim
e que estava guardado. Quem visse aquela cena,

acharia que eu havia sofrido um massacre. Aproveitei e me


cortei.

Deixei cair mais um pouquinho de sangue

fresco,

misturado

aos

demais. Larguei meu celular no carro de propósito para que


vissem que liguei para Laerte e que ele foi a última pessoa
com quem falei.

Fiquei escondida por um tempo, recuperando-me do corte


que fiz, e olhei uma última vez para o carro.

Mas nem tudo saiu como planejei, um morador de rua


encontrou o carro abandonado antes da polícia e o vi
levando o celular que eu havia deixado.
Mas não teve problema. A parte dois do plano ainda estava
por vir

e daria certo. Para isso, eu precisaria de Manu.

Sim, meu filhinho querido me ajudaria. Claro que ele


precisava sofrer uma chantagem para isso, né?

Calma, leitor(a). Já vou te contar tudo direitinho.

Dias depois que fugi e abandonei o carro com aquele monte


de sangue, marquei um encontro com Manu em uma cidade
vizinha.

Obviamente,

mandei

ele

não

comentar

com

ninguém.

Ele,

medroso, foi me encontrar. Daí bastou eu mostrar um certo


vídeo que tinha em minha posse de meu filho sendo traçado
igual a uma

cadelinha por Tico. No final da gravação, parecia que o


celular que filmava tudo havia travado. A filmagem
terminava com Tico saindo de cima de Manu e a câmera
focando na cara dos dois.
Ele ficou horrorizado ao saber que eu tinha atacado Lilian e a
princípio não quis me ajudar. Mas, quando ameacei espalhar
o vídeo dele, meu filhinho querido não teve escolha. Alguns
dias depois nos encontramos novamente. Lembro-me
exatamente de como foi.

— Mãe.

— Você trouxe o que te pedi?

— Mãe, o que a senhora vai fazer com isso?

— Me entrega logo, Manuel.

Ele me deu a serra e os documentos falsos que pedi que


conseguisse para mim.

— Escute aqui, garoto, você não vai abrir esse seu bico,
ouviu?

Senão já sabe...

— Eu ainda não entendi como a senhora conseguiu esse meu


vídeo com Tico.

— Simples. Quando voltei para casa depois de largar sua


irmã naquele beco, fui fuçar no celular dela para ver se ela
tinha mandado alguma mensagem que pudesse me
incriminar. Achei que seria

difícil

desbloquear

aparelho, mas ela é tão idiota que


colocou

minha

data

de

aniversário como senha. Vê se pode. O vídeo estava no


celular dela.

— Ela não é idiota. Ela te amava. — Manu diz.

Ahhh,

vai

defender

irmãzinha

agora?

Qual

é,

veadinho ? Também comia ela igual ao seu pai?

— Você está surtada. Olha, mãe, podemos ir juntos procurar


um médico e...

— EU NÃO PRECISO DE
MÉDICO NENHUM.

Dei um tapa na cara de Manu.

— Vamos, me ajuda aqui, seu inútil. Amarra meu braço. Não

consigo fazer isso sozinha.

— Eu ainda não entendo.

— Você não precisa entender, bichinha. VEADINHO. Só


amarra a porra do meu braço.

Manu obedeceu e amarrou meu braço à pilastra da casa com


uma corda, um pouco abaixo do ombro, próximo do
cotovelo, e deu um nó.

Quando

senti

que

minha

circulação não estava correndo pelas veias como deveria,


tirei da bolsa a faca ensanguentada que usei para violentar
Lily.

— Essa faca é...? — Manu deixou a pergunta no ar.

— É sim. Quer sentir o cheiro dela? — Passei a faca próximo


do

nariz dele.

— Mãe...

— Me espera lá fora, Manu.


Você é veadinho demais para ver isso. E esteja pronto para
me levar ao hospital.

— Mas por que aqui, nesse hospital que nem conhecemos? O

da nossa cidade é excelente e...

— Você é burro, Manuel? O que tem de bonito tem de burro,


é? Eu estou desaparecida e todo mundo me conhece
naquele ovo de cidade. Se eu aparecer por lá, mesmo que
com um documento falso,

todo

mundo

vai

me

reconhecer. Aqui, ninguém sabe quem sou. Agora anda. Vai


lá para

fora.

Manu saiu cabisbaixo, fechando a porta, e eu me endireitei


para que meu braço esquerdo ficasse esticado. Aquela seria
a prova final de que realmente eu fora

“assassinada”. Coloquei um pano em minha boca para


abafar meus gritos, peguei a serra que Manu trouxera a meu
pedido e a posicionei

sobre

meu

braço,
deixando a faca de prontidão para que pudesse lambuzá-la
com o meu

sangue.

Quando

encontrassem aquela faca com o sangue de Lily e o meu, os


policiais deduziriam o óbvio: a faca usada em Lily foi a
mesma

utilizada para “matar” sua mãe.

Sorri e comecei a serrar meu braço. A dor era intensa, mas o


sorriso da vitória não saía de meus lábios.

Peraí,

leitor(a),

você

não

acredita que tive coragem de fazer isso? Você não me


conhece mesmo.

Saiba que o restante do plano correu conforme o planejado.


Manu me levou até o hospital e disse para os atendentes
que havia me encontrado na rua com o braço decepado.
Para os médicos, ele contou que não me conhecia e que teve
a sorte de me encontrar naquela

situação.

Ninguém

desconfiou que aquela praga havia


saído de meu ventre.

Fui atendida e fiquei uns dias internada. Quando me


perguntaram sobre o ocorrido, disse que fui assaltada e não
me lembrava de muita coisa. Quando perguntaram sobre
meus parentes, disse que era sozinha no mundo. Ao ser
liberada do hospital, saí com um braço a menos e uma
realização a mais.

Minha vingança por Laerte ter me traído com minha própria


filha estava cada vez mais perto de ser concluída.

E você acredita, leitor(a), que, quando cheguei na minha


nova casa, encontrei Manu mexendo nas minhas coisas? Na
certa, ele queria

achar o vídeo que copiei do celular de Lily para o meu


aparelho descartável. Mal sabia ele que o celular esteve todo
o tempo comigo e que ele nunca iria encontrá-lo.

Esse moleque sempre foi um maricas.

Durante todo o tempo em que me ajudou, tentou dar para


trás várias vezes. Desistir. Ele até ameaçou me denunciar.
Mas bastava eu lembrá-lo que, se eu fosse presa, eu o
levaria como meu cúmplice que ele voltava a me ajudar.
Claro que sempre sob a ameaça de eu vazar na mídia o
vídeo dele com Tico.

Apesar de viver chorando e com medo de ter sua carreira


destruída

por mim, Manu foi um bom ajudante,

mesmo

contra
sua

vontade. Acho que por isso que ele me trazia informações


quentinhas sobre Lily: para mostrar que estava do meu lado
e ganhar minha confiança. Foi ele que me contou em qual
hospício ela estava internada. Sim, hospício. Clínica é um
nome chique para descrever aquele lugar que só tem loucos.

Enfim, já haviam se passado alguns dias e eu precisava dar


continuidade ao meu plano. Peguei o pedaço de braço que
serrei e que estava dentro do freezer que comprei
exclusivamente para isso.

Tive a ideia de queimar as beiradas

do membro para que achassem que eu tinha sido


carbonizada. Sou muito esperta, não sou? Enrolei ele em um
pano e o entreguei para Manu. Orientei que ele deveria
deixá-lo no mesmo lugar em que Lily fora encontrada. O
veadinho pegou o braço com nojo, mas cumpriu

com

combinado

direitinho.

Depois disso, tudo aconteceu de forma muito fácil. Parece


que o destino

realmente

estava

me
ajudando.

Manu me contou que um novo psicólogo estava atendendo


Lily e que ele estava fascinado pela história

dela.

Obviamente,

expliquei para Manu que ele deveria despertar a


desconfiança nesse doutorzinho. O psicólogo precisava achar
que quem fez aquilo com Lily foi alguém conhecido dela e
não um marginal qualquer

como

polícia

incompetente deduziu.

E o moleque fez direitinho. Ele visitou Lily e depois me disse


que o psicólogo conversou com ele.

Segundo Manu, o Doutor já tinha deduzido sozinho que foi


alguém do convívio de Lily que havia feito aquilo com ela.
Mas é claro que Manu também plantou “ideias” na cabeça
dele.

Expliquei para o inútil do meu

filho que ele deveria fugir o máximo possível do doutorzinho


de quinta categoria para que o homem achasse que Manu
sabia de algo que tentava esconder.

O bilhete de ameaça que ele deixou na sala do médico? Ideia


minha.
Ah,

você

deve

estar

se

perguntando sobre a foto, né?

Obviamente que não foi Lily quem escreveu aquela dica no


retrato. A grande sacada também foi minha.

Era uma foto de nossa primeira viagem à praia. A legenda da


foto dizia “Primeira vez na praia”.

Acrescentei “de Ebelesa” e a data em que Lily foi violentada.


Quem

olhasse a foto sem muita atenção, nem perceberia que a


legenda fora alterada.

Mas

psicólogo

perceberia, tive certeza de que ele sacaria que a palavra


Ebelesa estava embaralhada. Ele veria Manu ao fundo na
foto e ligaria os pontos. Manu achou o plano arriscado, mas,
como sempre, topou. Orientei que ele entregasse a foto para
a retardada da Lily e a convencesse a entregar para o
psicólogo. A menina, claro, não sabia das verdadeiras
intenções de Manu. Ele disse para ela que o psicólogo
gostaria de ver aquela foto. Lily, mesmo despedaçada, não
perdia aquele ar inocente e acabou

entregando o retrato.

E para fechar o meu plano com chave de ouro, após entregar


a foto, entreguei também a faca do crime para Manu. Disse
que ele deveria deixá-la escondida em suas coisas até que o
Doutor descobrisse tudo e denunciasse Laerte à polícia. É

claro que disse para Manu colocar um calmantezinho na


bebida de seu pai antes de dormir. Com ele apagado na
cama, seria fácil Manu pegar os dedos de Laerte e fazer com
que as digitais dele ficassem na faca.

Laerte me pagaria por tudo. Eu aguentei

demais.

Suportei

as

traições, o desprezo. Mas ele me

trair com a própria filha? Isso nunca. Você pode achar que eu
tinha inveja de Lily, pois eu estava envelhecendo e vendo a
garota crescer e ficar uma mulher bonita.

Talvez. Mas eu a odiava com todas as minhas forças, por


mais que Manu tentasse colocar na minha cabeça que a
menina não tinha nada com o pai e que eu estava enganada
com a cena que vira. Eu não dava bola para ele, minha
mente dizia que ela tinha tentado roubar meu homem e
minha mente não mente.

Hahaha, gostou do trocadilho?


Manu? Depois da prisão de Laerte,

eu

dispensei

aquele

moleque inútil. Não precisava mais

dele.

Ele

fugiu

com

aquele

namoradinho dele. Manu serviu ao meu propósito e espero


nunca mais encontrá-lo.

Tenho certeza de que Lily dava em cima do pai e sei que os


dois estavam

tramando

para

me

derrubar. Mas fui mais esperta do que eles. Ah, eu fui!

Agora

você

vai
ficar

quietinho(a), leitor(a), porque a recepcionista falou que o


horário de visitas da prisão vai começar.

Entro em uma sala e sou

revistada. Mostro as maçãs que trouxe para Laerte; o guarda


as inspeciona e me deixa passar.

Estou ansiosa por nosso encontro.

A parte final do plano tem que dar certo. Agora estou


sozinha.

Estou na sala de visitas com os outros

visitantes.

Os

presos

começam a entrar e ir ao encontro das pessoas que vieram


encontrá-los.

ele

finalmente

aparece.

Acabado. Nem parece aquele homem bonito pelo qual me


apaixonei. Quando me vê, ele se mostra totalmente
assustado.

— Não esperava me ver, meu amor? — digo.


— Theodora? Não... Não é

possível! Você morreu.

— Morri mesmo. Agora sou

Carmem del Ruiz. Aquela mulher

fraca que você conheceu ficou para trás. Mas sente-se, meu
amor.

Trouxe maçãs. Ou você acha que eu esqueci que é a sua


fruta favorita?

Laerte senta à minha frente como se estivesse cara a cara


com um fantasma. Por essa, ele não esperava.

— Me explique tudo. — Ele diz.

— Theodora, você pode me ajudar a sair daqui. Eles me


prenderam injustamente, acham que eu matei você e que fiz
aquilo com a Lilian.

Você pode me ajudar.

— Claro, meu amor, claro. Coma as maçãs que eu te trouxe.

Ele dá uma mordida na fruta.

— Você está diferente, Theodora.

Seu cabelo...

— Pintei o cabelo — digo baixinho para ele. — Cortei. Pus


lente de contato. Como disse, agora sou uma nova mulher.

— Mas como? Por que você se escondeu durante todo esse


tempo?
— pergunta ele, dando mais uma mordida na maçã. — E o
que houve com o seu braço?

— Ah, é uma longa história, querido. Você vai ficar tonto só


de ouvi-la.

— Eu estou muito feliz em saber que você está viva. Eu


nunca entendi direito como minha vida chegou neste ponto.
De repente, tudo começou a dar errado e... —

Laerte se cala de repente.

— O que foi, meu amor? Está tudo

bem?

pergunto

inocentemente

— Eu... estou me sentindo um pouco tonto. Deve ser


fraqueza. Faz tempo que não como uma comida de verdade.
A comida daqui é péssima. — Ele morde mais uma vez a
maçã.

— E nem vai comer, queridinho.

Laerte termina de comer a fruta e vejo que está suando frio.

— Como assim, Theodora?

— Eu sei que naquele dia em que encontrei você e Lily em


casa vocês estavam se preparando para transar. Por isso
você estava

pelado, não é mesmo? Ela era sua amante.


— Do que você está falando?

Theodora, eu estou passando um pouco mal e acho que


estou confundindo as coisas que você está dizendo.

— Você não está confundindo nada — digo baixinho perto do


ouvido dele. — Você pode me chamar de louca, ou do que
você quiser, mas eu sei de tudo. EU FIZ

AQUILO COM LILY.

— Você...

Ele desaba na mesa. O miolo da maçã cai no chão e eu o


recolho rapidamente.

Laerte

está

espumando pela boca.

— Guardas! Guardas! Ajudem aqui! Ele está passando mal!


grito.

Os guardas se aglomeram ao redor de Laerte que começa a


convulsionar. Saio sorrateiramente.

Com a confusão, os guardas acabam não me revistando.


Sorte a minha. Pego o documento que deixei na entrada da
prisão e vou embora. Peço um Uber e solicito que ele me
deixe alguns quarteirões mais à frente. O sorriso não sai de
meu rosto.

Desço do carro em frente a uma farmácia,


onde

compro

uma

embalagem pequena de álcool. Em seguida, caminho um


pouco até

encontrar uma rua vazia. Paro em frente a uma lixeira na


qual atiro meus documentos falsos, cartões de crédito e as
duas maçãs restantes.

Jogo também a peruca escura que cobre os meus cabelos


loiros e compridos que foram pintados recentemente, e as
lentes de contato

— as quais substituo por óculos sem lentes, perfeitos para


meu novo disfarce. Por último, pego o celular registrado em
nome de Carmem Del Ruiz, limpo minhas impressões digitais
e o destruo, antes de juntá-lo aos itens na lixeira. Jogo álcool
em tudo, pego um isqueiro que tinha na minha bolsa e, em
seguida, coloco fogo dentro do lixo.

Deixo queimar o que me ligava à Carmem Del Ruiz. Ando


alguns metros e tiro um outro celular da minha bolsa, este
registrado em meu novo nome. Dou sinal para um táxi e
entro nele. Olho para o outro documento que Manu me
trouxe junto com o de Carmen. Agora sou Vanusa Soares.

No caminho para a casa que aluguei com o meu novo nome,


entro no Youtube pelo meu celular e assisto ao vídeo que foi
gravado por um dos cuidadores de Lily e postado na rede
social. Felizmente, o vídeo não viralizou. Quem o encontrou e
me mandou, na época, foi Manu.
Já tentei denunciar o vídeo, pois ele pode despertar a
suspeita de alguém, mas não o retiraram do ar.

Olho

para

quantidade

de

visualizações e menos de cem pessoas o assistiram em


meses.

Fico mais tranquila com isso.

O título do vídeo diz: “Garota surta e pede por mãe em


clínica psiquiátrica”. Pelo que Manu havia me explicado, o
vídeo foi gravado por um dos cuidadores de Lily quando o
doutorzinho de meia tigela fez a técnica de regressão nela,
sem sucesso, e foi afastado.

No vídeo, a garota aparece falando

“LILY QUER... MAMÃE, LILY...

QUER... MAMÃE”.

A maioria das pessoas deve se emocionar vendo isso e achar


que a retardada está pedindo pela mãe.

Mas eu sei que não é isso.

Existe um espaço de tempo minúsculo entre a palavra


“quer” e a palavra “mamãe”. Alguém deve ter perguntado
para a garota se ela queria falar quem lhe fizera aquilo e a
resposta foi essa: “Lily quer!

Mamãe”.

Ah, cheguei em meu novo lar!

Graças a Deus, a mudança já terminou e todos os meus


móveis estão aqui.

— Você o matou? — Ouço ao entrar em meu quarto.

— Claro — digo. — Não

poderia deixá-lo vivo depois de ter pegado ele na cama com


a vaca da minha filha.

— Mas o seu filho disse que a cena não era o que você
pensava.

— Aquele veadinho não sabia de nada — respondo nervosa.


Aliás, aquele fru-fru só serviu para me trazer desgosto. “Mãe,


você está imaginando coisas”. “Mãe, o papai traía você com
a Jéssica e não com minha irmã”. Todos mentirosos. Eu sei
que ele me traía com a Lily.

— Por que seu filho mentiria?

— Porque eles acham que sou louca. Mas eu não sou louca.
Eu sou muito consciente dos meus

atos. E, graças a Deus, conheci você depois que tudo


aconteceu.

Agora tenho com quem desabafar e não me sinto tão


sozinha.
— Eu também estou feliz que você

finalmente

tenha

me

encontrado. Eu sempre quis me mostrar para você, mas


você nunca me enxergava. Ficava tomando aqueles
remédios que impediam de me

encontrar.

Falando

em

remédios, o cianeto realmente funcionou?

— Oh, se funcionou! Ele comeu a maçã todinha. A essa hora


ele já deve estar mortinho da Silva.

— Você agiu igual à bruxa da Branca de Neve.

— Inclusive na questão do espelho mágico, não é? — digo.

— Inclusive nisso. — Meu

reflexo responde.

Sorrio e cubro o espelho com um pano.

Acabou.

Agora

posso
recomeçar minha vida sem as amarras do passado. Sou uma
nova mulher e nada me liga àquela Theodora. Estou livre
para viver conformegostaria.

Livre

para

conseguir um novo emprego e esquecer tudo o que ficou


para trás.

Mas não pense que esqueci de Lily.

Faço

questão

de

sempre

acompanhar

pela

internet

as

liberações dos pacientes da clínica

em que ela está internada. Você pode ter certeza de que, se


um dia ela for liberada, farei questão de encontrá-la.
Afinal, estarei sempre com ela.

Marcada. Ela sempre vai carregar a lembrança do que fiz


quando se olhar no espelho.

Os cortes na bochecha. Um na horizontal. Um na vertical.


Junte os dois e você verá o meu T.

T de Theodora.

Afinal, eu preciso terminar o que comecei.

Mas isso, leitor(a), fica para uma

outra história.

Confesso que essa é sempre a parte mais difícil da história.


Fico morrendo de medo de esquecer de alguém que foi
importante no processo de construção desse livro, mas não
tem jeito. Vamos lá!

Muito obrigado, primeiramente, aos melhores amigos que


poderia ter e que sempre estão presentes apoiando,

fazendo

críticas
construtivas e me incentivando a continuar:

Vinicius,

Viviane,

Débora, Nathy, Carol, Bárbara.

K.M Stephen, obrigado pela betagem

pela

diagramação

SENSACIONAL.

Você

arrasa,

mulher.

T.S. Dantas, você arrasou demais na revisão do texto e em


todos os pontos que apontou na história.

Tayrine Batista, amei as dicas que você me deu na betagem.


Elas foram sensacionais para deixar essa história ainda mais
incrível.

A minha família e principalmente Deus, foram essenciais no


apoio para a construção desse sonho. Só tenho a agradecer
por tudo estar se realizando.

E claro, quero agradecer, por fim,

VOCÊ que está lendo esse livro e que me deu a oportunidade


de apresentar meu trabalho. Espero que a história tenha te
envolvido e que

você

tenha

gostado

do

resultado final.

Espero todos vocês no próximo livro.

Atila Guilherme
Document Outline
Prólogo
Parte 1
Ian- Dia 1
Lily- Semanas antes
Ian- Dia 3
Ian- Dia 4
Ian- Dia 5
Ian- Dia 8
Parte 2
Ian- Dia 15
Ian- Dia 17
Ian- Dia 18
Lily- Duas semanas antes
Ian- Dia 21
Lily- Uma semana antes
Ian- Dia 29
Parte Final
Lily- O dia
Ian- Dia 30
Ian- Dia 45
Ian- Dia 47
2 anos depois
Agradecimentos

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