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CA P Í T ULO 2

ânia entrou no café já sabendo onde procurar as amigas. Batata!


Lá estava Ilana, na mesa favorita delas, estudando atentamente
o cardápio. Tânia sorriu para si mesma, já que a amiga pedia
sempre a mesma coisa.
Ela mal se sentou e Ilana já disparou, à guisa de boas vindas:
- E aí, já deu uns beijos naquele Miguel? Preciso
de uma boa notícia hoje. Ou uma boa bebida.
Ou os dois.
Tânia fez uma careta.
ÁP IO
- Já se prepara para aprender a beber, então. Ou CARD
torce para a Helena aparecer com as boas notícias.
Minha vida tá total desinteresse.
Ilana revirou os olhos.
- Diz que você pelo menos falou com o guri, vai.
- E eu falaria o quê para ele? “Olá, sou Tânia, sua colega
de trabalho, há uns três meses. Você já deve ter me visto…”. Tsc, tsc… Ele
é homem, tá ligado? Se estivesse interessado, já teria falado comigo, certo?
Ilana pensou um pouco, enquanto continuava folheando o cardápio.
- Hummm, não sei. Tu tem essa sua aura aí de “não estou disponível”.
- E como é essa aura de “não estou disponível”, faça o favor de me explicar?
- Aah, Taninha, é a coisa de você ser
uma guria muito séria, sabe? Aqui,
com a gente, você mostra o seu lado
mais fofinho, mas as pessoas não
sabem disso. É como se tu estivesse
sempre tensa.
- Eu estou sempre tensa! Minha vida
é uma zona!
Helena escolheu o momento certo
para aparecer, largando a bolsa na cadeira ao lado, e arrastando outra para
mais perto das meninas.
- Cheguei, meu povo. Desculpem o atraso. Me atualizem aí.
Ilana, prestativa, apontou um dedo acusador para Tânia:
- Essa aí tá toda caidinha no tal Miguel, desde o começo do ano, e ainda
não trocou uma palavra com ele. Nada!
- Oxente. Teve umas trocas de olhares, não foi Taninha? Ele te deu umas
secadas! Eu lembro! - replicou Helena, animada.
Tânia deu de ombros, frustrada.
- É, me secou com uns olhares bem confusos, diga-se de passagem! Não
sei interpretar essa joça, não sou que nem a Ilana, que é toda phD no as-
sunto!
— Tá — insistiu Helena —, mas alguma coisa tem, não tem?
- Olha, eu aaaacho que rolou um clima, sim. Mas depois de hoje, sei não…
As duas amigas se concentraram em Tânia, atentas, e Tânia contou tudo
daquele dia estranho.
Enquanto contava, se sentiu mais leve, as coisas não pareciam assim tão
ruins. Tirando a pausa para fazer o pedido, as meninas não interromperam.
Quando por fim Tânia terminou, Helena, tamborilando os dedos na mesa,
replicou:
- Então deixa eu ver se eu entendi. Você deu uma moral numa estagiária
xôxa, e a abestalhada se largou de chorar. Porra, Taninha! Quando era a
gente passando pelo estágio, pense, esse era o normal! Agora a coisa da-
quele seu chefe cavalo, eu entendo. E acho que você já aguentou aquela
porcaria de lugar por tempo demais. Tempo demais.
Ilana aproveitou para acrescentar:
- E eu sei que se o Miguel conversar com você por cinco minutos, vai
perceber que você é um amor. E se não perceber, é um anormal, não vale a
pena, daí.
Tânia se sentiu mais calma. Aí lembrou de mais uma coisa.
- E se ele preferir umas do tipo dessa estagiária? Toda delicada, prince-
sinha?
Ilana semicerrou os olhos.
- E se ela fez essa cena só pra chamar a atenção? Tu já pensou nisso?
Não, ela não tinha pensado nisso. Sentiu
um misto de alívio (ela não era tão monstro
assim) com… mais ciúme? A estagiária esta-
va tentando chamar a atenção de quem?
Os pedidos foram servidos e, enquanto
Tânia remexia o seu latte, desabafou:
- Gente, sabe essa sensação de que tá tudo meio errado?
As duas concordaram vigorosamente com a cabeça e sorriram em com-
paixão mútua.
- Não é só o trabalho, sabe? É a forma como a vida tá. Tudo. Sempre tive
pavor de ficar como a minha mãe, dependente do marido, a vida dela são os
filhos, cara...
Helena deu um gole em sua bebida.
- E agora que crescemos, ela fica reclamando de tudo a ponto de eu não
conseguir mais ficar perto dela. Tanto que quando tive oportunidade, me
joguei nos estudos e no trabalho, para ser diferente dela. Agora que eu
consegui, essa independência, essa estabilidade, eu só consigo me sentir
cansada. É problema pra resolver todo dia, irmão. Acordo cansada, durmo
cansada. - Suas palavras foram crescendo em intensidade.
“Não estou cuidando de mim mesma. Eu não sei se é esse trabalho que tá
uma merda, ou se o problema é comigo. E se for o trabalho, o que eu faço?
Para onde eu vou sendo que esse era pra ser o meu porto seguro?”
Tânia sentiu as lágrimas querendo vir. Realmente estava sendo bom botar
para fora. As amigas permaneceram caladas, o que era uma raridade.
Nisso, a dona do café, velha conhecida das meninas, se aproximou da
mesa delas.
- Oi, meninas. Os pedidos de vocês estão em ordem? Como vocês estão?
Tânia se virou para ela, e suspirou.
- Nem me faça pergunta. Ei, não está precisando de uma sócia no café,
não?
- Ué, por quê? Dia difícil no trabalho?
- Dia difícil em tudo, serve? - disse, com o olho úmido.
Fran ficou em silêncio por um momento.
- Uma coisa que eu aprendi é que nesses dias
difíceis, em que tudo parece sair do lugar, a
verdade é que o problema não está lá fora.
Esses problemas são partes nossas que
nunca demos atenção, sombras nossas,
que estão dando as caras. Avisando que elas estão
ali para que a gente consiga cuidar delas.
Ilana se acomodou na cadeira, interessadíssima.
- Bah, acho que isso se aplica para mim também. Como assim uma parte
nossa que dá as caras? Conta tudo, Fran!
Helena acenou em concordância. Também queria saber. Fran continuou
falando:
- Pense numa situação que te angustia, que te dói. Como se o mundo
estivesse te recusando algo que você precisa muito. Apesar de não parecer,
essas situações não são ruins. Elas são importantes para que a gente consi-
ga mudar a rota. Essa situação, como aparece lá fora, é só um reflexo, um
pano de fundo, de algo que está acontecendo em você.
Tânia acrescentou:
-Então, no caso, tudo de errado que aconteceu hoje no trabalho é um
reflexo da minha bagunça interna.
- Exatamente. - Concordou Fran. - A gente poderia resumir em: você não
está cuidando de uma parte sua. Não está respeitando um aspecto seu. Essa
parte precisa dar um jeito de se mostrar para você, mostrar que ela está lá.
Isso é que criou o seu dia difícil.
Tânia tomou um bom gole do café, e tentou organizar as coisas na sua
cabeça.
- Então, hoje, por exemplo, foi um dia que eu desrespeitei uma parte
minha? E isso explodiu na minha cara?
- Isso mesmo. São coisas sutis, são certas atitudes suas. Coisas que você
se cobra, coisas que não se permite. - Disse Fran.
Tânia assentiu. Era bem aquilo mesmo. Fran concluiu:
-É nesse momento que a gente se pergunta: que necessidade minha estou
deixando de lado? Não permitindo que ela “fale”?
Ilana cantarolou:
- Como uma necessidade de olhos azuis… - Diante da cara feia de Tânia,
ergueu os braços. - Pronto, pronto, parei.
- Nossa, valeu Fran. Já deu muito o que pensar aqui. - Tânia agrade-
ceu com sinceridade.
- Imagine, Taninha! E não se preocupe tanto:
quando olhamos pela perspectiva certa, as
coisas já começam a se resolver. Meninas, vou
deixar vocês e vou resolver algumas coisas do café, mas
qualquer coisa, estou à disposição, ok?
As meninas se despediram de Fran, animadas. Ilana ajeitou os ta-
lheres, inocentemente. Tânia conhecia a amiga, lá vinha coisa.
- Então, segundo a Fran, nossa amiga Tânia enfiou as caras em ser séria
e responsável, vive tensa porque nada pode sair do lugar, e esqueceu que
tem uma vagin….
- Ilana! - Tânia repreendeu. Claro que a amiga ia levar por aquele lado.
Óbvio.
- Estou errada? O que você sente pelo Miguel te dá medo porque sai do
seu controle!
- Eu nem conheço o cara…
- Mas tá doidinha pra conhecer, não é? — acrescentou Helena, sorrindo
divertida.
- Você também? - resmungou Tânia. As amigas sabiam mesmo ser um pé
no saco quando queriam! - Eu com a vida toda zoada, e vocês só pensam no
Miguel?
- Aaah, mas dona Fran disse que essa situação só está refletindo algo mais
profundo. - reiterou Helena, com ares de sabedoria.
Aquilo bateu fundo. Era verdade. Tânia ficou quieta um momento, atur-
dida.
- Eu vou pensar no assunto, tá? E agora, chega de mim. Quem é a próxi-
ma a chorar as pitangas?
- Eu! - disse Ilana, animada. - Mas primeiro, vamos pedir um docinho?

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