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CAFÉ DAS DEUSAS

As amigas Tânia, Helena e Ilana têm uma tradição; se encontrar no Café


das Deusas, o espaço mais gostoso da cidade para tomar uma bebida quen-
te, se aconchegar nas poltronas macias e compartilhar suas histórias.
O Café das Deusas já existe há muitas gerações, sempre passando de mãe
para filha e hoje, a atual dona, é Francis, uma mulher misteriosa e amável
que traz consigo anos de sabedorias das muitas histórias que já viu, presen-
ciou e viveu naquele café desde a infância.
Naquela sexta não seria diferente, receberia
as três amigas, com o chá do dia, e todas
as suas histórias confidenciadas durante
aquelas xícaras.
TÂ NI A

ânia decidiu deixar o carro bem onde


estava, no estacionamento, e ir a pé.
O café que se encontraria com as meni-
nas ficava a poucas quadras dali, mas ela
precisava andar, precisava pensar. Aquele
dia difícil e cinzento pedia por um mo-
mento sozinha, com seus pensamentos.
Logo no começo daquele dia, o velho
problema com a nova estagiária. Tânia, com
toda a sua praticidade, apontou alguns erros
no trabalho da moça, sugerindo correções,
mas ela não se aguentou; sem saber lidar
com as críticas, meu Deus, como aquela
menina chorou. Soluços barulhentos o
suficiente pra fazer o escritório inteiro
parar e prestar atenção. Uns olhares
curiosos, outros divertidos, mas
todos atentos, ali de prontidão.
“Sua tonta”, disse para si.
“Poderia ter evitado tudo isso cha-
mando a menina para uma conversa
particular.” concordou consigo.
“Mas também… como imaginaria que a garota reagi-
ria daquele jeito a algo tão simples?” rebateu sozinha.
A situação já era desagradável, mas piorou quando
notou o olhar dele. O olhar de Miguel.
Aquele par de olhos azuis, diferente do restante, expres-
sava uma leve censura. Eram direcionados a ela, ela sabia.
Só de lembrar, Tânia pôde sentir novamente sua mirada
atravessando toda a sala até ferroar em algo dentro de si.
Sentiu a fisgada novamente.
“Será que ele me achou uma cretina, uma pessoa insu-
portável, que fazia pessoas chorar?” Pensar naquilo não era
agradável.
“Ou talvez ele estivesse sendo movido pela simpatia com a estagiária, que
além de jovem e bonita, ainda passava esse ar…frágil?” Exatamente o que
Tânia não era. Ah, aquilo incomodava muito mais. Um sabor amargo veio
na boca, e ela soube que era ciúme.
O que estava acontecendo com ela? Porquê se importava tanto? Desde
que ele foi transferido, há alguns meses, e começaram a trabalhar no mesmo
departamento, um sentimento secreto, ardente, incompreensível, come-
çou a ser nutrido por Miguel. Sentimento esse alimentado por algumas
trocas de olhares. Significativas, é verdade, mas nada além.
“Esqueça”, uma vozinha na sua cabeça dizia.
Primeiro que relacionamentos não eram permitidos dentro da empresa.
As normas eram claras. Segundo que ela sabia o quanto tinha lutado para
conseguir o seu lugar ali. Seria loucura arriscar tudo por um flerte.
Mas mesmo sabendo de tudo isso, Tânia ia ao trabalho ansiosa, sempre
sedenta por aqueles momentos, procurando captar “algo a mais” naqueles
olhares confusos, porém sempre ardentes.
O resto do dia não foi melhor, não senhor. O diretor-geral do seu depar-
tamento - e, na sua opinião, um idiota - parecia empenhado em tornar as
reuniões daquele dia ainda mais intermináveis. Normalmente ela rebateria
os comentários do “Sr. Idiota” com sua fachada usual de indiferença, mas
naquele dia a fachada tinha um buraco; ela estava se sentindo frágil e ex-
posta.
Sua vida parecia estar sendo jogada para um ponto de inflexão, de caos.
E enquanto caminhava em passos rápidos para o café, Tânia sentia a crise
se avolumando em seu peito. O trabalho, que sempre fora seu norte, agora
nunca lhe parecia tão sem sentido.
E o olhar dele, de Miguel… “Malditos
olhos misteriosos”. Aquilo foi difícil, doeu
mais do que ela poderia admitir. Temia que
estivesse se tornando alguém como a mãe;
Dura, crítica, impossível de se conviver. Ela já
tinha desistido do amor depois de um bocado de
relacionamentos mal-sucedidos, mas aquele Miguel a fazia
sentir coisas diferentes. E, quem sabe, ansiar por coisas diferentes.
Sua caminhada ia de acordo com a velocidade de seus pensamentos, e
assim, logo avistou o que tanto esperou. Lá estava o café, também esperan-
do por ela.
Tânia precisava das suas amigas. Elas a ajudariam a decidir o que fazer:
será que arriscava um passo mais perto do abismo - tentando se aproximar
de Miguel - ou daria meia volta?
ILA NA

um pulo, Ilana despertou do seu sonho.


Estava “suando feito uma bica”, total-
mente sobressaltada, pobrezinha. Era de
novo aquele maldito sonho onde ela caía
sem parar, sem nada ou ninguém para a
segurar. Ela olhou ao redor, ainda meio des-
norteada, buscando reconhecer onde estava.
Você pode deduzir que, normalmente, acor-
dar de um pesadelo é um alívio. Mas quando
Ilana identificou aquele seu quarto todo pompo-
so e luxuoso, quase preferiu voltar para o pesa-
delo. Qualquer coisa era melhor do que aquilo.
Mesmo com aquela linda cena dos primei-
ros raios de sol atravessando as cortinas - de
algum-tecido-chique que a sogra cuidado-
samente escolheu, bem como as cômodas,
os lençóis e os tapetes - Ilana não encon-
trava conforto nenhum no seu lar.
Do seu lado, dormindo apagado, o
filho daquela mulher insuportável.
“Ilana, ele é seu marido.”
Ela pensou.
E suspirou.
Conheceu Edgar cinco anos atrás, numa festa.
Um homem inteligente, que esbanjava um ar ami-
gável e bem apessoado. Era o perfeito cara comum,
cheio de qualidades e doses cavalares de normalida-
de. Tão, tão diferente dela.
A beleza da normalidade e a segurança que ele trazia
conquistou Ilana logo de primeira. Era tudo o que ela que-
ria, era tudo o que ela precisava, e com ele teria tudo aquilo de
bandeja.
Ela se agarrou nele como se sua própria vida dependesse
disso - como a Rose, no Titanic, não se soltando da sua por-
ta-flutuante de salvação. Fecharia a porta do seu passado e
esconderia a chave onde nem ela, nunca, pudesse encontrar.
Assim se sucedeu, o namoro não demorou para engatar e,
em quatro meses, o casamento aconteceu.
Tudo bonito, como num comercial de margarina, mas não
demorou para o contraste entre eles se evidenciar. Ilana
tinha crescido numa família disfuncional, caótica, e nunca
soube o que seria do dia seguinte. Edgar talvez fosse inca-
paz de entender o cenário, já que, por crescer numa família
segura - emocional e financeiramente -, nunca teve o seu lugar no mundo
questionado.
Ele não compreendia o caos de Ilana pois sempre se sentiu completo n’ele
mesmo, nunca concebeu o que era tentar juntar seus pedaços espalhados
para buscar, desesperadamente, alguma forma que lhe fizesse sentido.
Quando seu casamento dava as suas verdadeiras caras, se lembrava das
amigas tentando alertá-la. Via claramente a expressão preocupada de
Tânia, que sempre indagava “Mas amiga, quatro meses é tão pouco. Tem
certeza?”.
Sim, claro que ela tinha certeza. Tanto que se agarrou àquela nova vida e
se tornou uma pessoa completamente nova, ou, pelo menos… Tentou.
E olha, como tentou… Nesses cinco anos, colocou toda a sua força para
pertencer à vida de Edgar, para se fundir e integrar. Usou as esposas dos
amigos dele como máxima inspiração; como se vestir, como segurar taças,
como conversar…
Tentou ser adorável com a sogra “querida”, que desde o primeiro dia,
sem nenhum disfarce, a olhava com os olhos imodestos, cheios daquele
brilho de desdém.
E mesmo tentando, de alguma forma, fracassou. As crises de pânico já ti-
nham tomado conta, fazia meses que não dormia, e sua vida, pela qual tanto
se esforçou para merecer o título de “perfeiti-
nha”, já não tinha mais nada de bonita. Era, no
mínimo, sufocante, pois foi na tentativa de se
encontrar que se perdeu de si - anulando-se
por completo.
As crises começaram quando Edgar co-
meçou a cogitar que ela precisava parar
de trabalhar. “Você já ganha uma mixa-
ria”, dizia, sem perceber como isso a
feria. Ele preferia que ela ficasse em casa
“para descansar”.
Ele tinha sido promovido novamente na empresa da família, e sonhava
que ela cumprisse outro papel na casa; aquele que organizava jantares, se
enturmava, fofocava com outras esposas, aquilo tudo que Ilana detestava. E
para agravar, o que ela mais temia tinha acontecido; ele começou a querer
filhos.
A única condição imposta por Ilana desde o início.
Tinha deixado claro que filhos não, nunca. E não queria, nunca, ser co-
brada disso. Ele concordou, dizendo que não era importante. E assim se-
guiram felizes até o momento que ele começou a ter certeza que, em algum
momento, ela mudaria de ideia - como fazia com todo o resto.
Ilana, contemplou o marido ainda dormindo e sentiu as paredes da sua
vida sufocante se apertarem ainda mais.
O dia terminaria com mais um dos jantares da sogra, mas naquele Ilana
decidiu diferente: bateria o pé e não iria, mesmo que aquilo causasse dis-
córdia.
Ela ligou para as meninas no dia an-
terior, convocando um encontro de
emergência, no café de sempre.
Sairia para vê-las e, uma vez fora
daquela casa, pretendia não voltar.
HE LE NA

elena torceu as mãos, nervosa. Perce-


beu que estava de novo rangendo os
dentes, coisa que a dentista já tinha
dito uma porção de vezes para não
fazer. Revisitou mais uma vez a discus-
são da noite anterior, procurando mais
algum detalhe que tivesse deixado passar.
Certo. Era um jantar romântico dos dois,
num lugar super legal. Tudo ia muito bem,
até ela resolver tocar no “assunto proibido”.
O assunto? Aquele que vinha atormen-
tando sua cabeça nas últimas semanas: eles
tinham um relacionamento certo ou não?
Afinal, essa é uma dúvida natural
pra quem já se encontrava, todo final
de semana, há cerca dois meses.
Daniel era bom com as palavras, sabia
como fazer ela se sentir especial. Sem-
pre dizia o quanto gostava dela, mas
os homens dizem muitas coisas.
Helena precisava de algo mais palpável, algo que
fosse além dos superficiais “como você é linda”.
Ele estava apaixonado? Fazia planos que a incluíam? Ela era importante
para ele?
Precisava de algo que desse a entender que ela era mais do que um pas-
satempo. Uma estação provisória até que Daniel encontrasse alguém real-
mente interessante.
Seu histórico com homens não era exatamente dos melhores, o que a dei-
xava ainda mais ressabiada. Estava cansada de se apaixonar, se entregar, e
de receber muito menos em troca.
Helena já conhecia todo tipo de covarde nesse território; os que desapa-
reciam e voltavam sem nenhuma explicação, os que evitavam qualquer tipo
de vínculo, os que gostavam de “levar as coisas mais devagar”.
Fora que a sua última tentativa de relacionamento ainda estava fresca, ela
não tinha digerido a história com Davi, o cara que a enrolou por quase um
ano. Era ela tocar no assunto “casamento”, “filhos”, ele se agitava, man-
dando qualquer coisa como “Mais para frente a gente vê isso”.
Esse “mais pra frente” não teve. “Não estou pronto para isso”, ele disse.
Tão “não-pronto” ele estava, que menos de um mês depois já estava com
outra, morando juntos e de casamento marcado, é claro.
Helena estava muito cansada de ser deixada para trás. Ela queria alguém
e sabia o quanto era capaz de amar e
ser uma boa parceira. Já tinha a vida
toda organizada, e até já dera entrada
para um apartamento grande, com vá-
rios quartos vazios - que ela mal podia
esperar para serem preenchidos pelo
riso dos filhos.
Ah, ela estava tão pronta para a maternidade, aquele era um desejo pul-
sante dentro dela, mas, infelizmente, nada do pai aparecer.
E não, ela não queria uma maternidade solo, embora já tivesse cogitado
isso várias vezes. Ela queria uma família. Um amor.
Daniel parecia ser diferente dos moleques com quem ela tinha saído nos
últimos meses, que mal sabiam o que queriam. Calmo, bem estabelecido
na vida, não parecia ter medo de relacionamento sério. Já dissera que tinha
vontade de formar uma família, e amém, de ser pai.
A questão era: ele pretendia tudo aquilo com ela?
As amigas já tinham dito para ela não botar pressão, mas ela precisava
saber. Precisava acalmar sua insegurança e se livrar daquela angús-
tia. Então assim que os pratos foram servidos, ela abordou
sutilmente o tema, oras; Ele tinha planos para os dois
ou não?
E, bem, ela não foi exatamen-
te sutil. Não sabia ser assim.
Daniel se irritou.
“Meu Deus, Helena, não podemos simplesmente aproveitar o momento,
curtir que estamos juntos? Nos permitir nos conhecermos melhor? Gosto
de você, gosto mesmo. Mas essa sua neurose constante me deixa cismado.
Para de viver no amanhã e aproveita o agora, pô.”
E expressou o quanto se sentia desconfortável, como se a todo momen-
to ela estivesse julgando e inspecionando-o pra saber se ele seria um cara
adequado pra sua vida.
Ela teve vontade de gritar. “Não é você que tem um relógio biológico
tiquetaqueando na cabeça! Assim é fácil falar sobre “viver o momento!”.
Não conversaram no carro, e ele a deixou em casa, com um sucinto “Boa
noite, Helena”.
Como foi que tudo saiu tão errado? O quanto da relação deles sobraria
depois disso?
Já era o fim do dia, e ele ainda não deu sinal de vida. Daniel era atraen-
te, um bom partido. Certamente teria seus contatinhos, fora a ex que vivia
atrás dele, que nem um cachorrinho.
Helena, por fim, entendeu seu nervosismo: ela estava com medo e preci-
sava, mais do que nunca, de um momento com suas amigas. Ainda bem que
Ilana convocou a reunião.
Olhou para o relógio. Já era hora de ir
para o café, encontrar as meninas. Elas
certamente a ajudariam a encontrar uma
forma de resolver as coisas com Daniel,
como sempre faziam.

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