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"SONHO DE MISS" da série Kid Bauhaus de Jô Bilac

Personagens:

Erik, bonito e elegante.


Kid, um misto de Radical e Chic com Vani dos normais

( Kid aborda Erik, que passa por um beco escuro qualquer)

Kid: Me ajuda.

Erik: Meu deus, você está baleada, precisamos chamar ajuda médica...

Kid: Por favor, não!

Erik: Mas você está se esvaindo em sangue!

Kid: (firme) Não! (tempo) Só fica aqui comigo um tempo, até eu conseguir segurar a onda.

Erik: Olha, eu não posso ficar aqui passivo e ver você sangrar até morrer. Não mesmo!(tira o
telefone do bolso) Eu vou chamar uma ambulância, não vai demorar e em pouco tempo tudo
estará resol...

Kid: Esse sangue não é meu.

(silêncio)

Erik: ???

Kid: Isso mesmo que você ouviu: esse sangue não é meu.

(tempo)

Erik: Então... De quem é esse sangue?

Kid: Pam Loretti.

Erik: Pam Loretti, a Miss Simpatia????!!!!

Kid: Pam Loretti, a Mis Simpatia.

Erik: (tomado de horror) Você matou Pam Loretti, a Miss simpatia?

Kid: Não me encare como se eu fosse uma cadela leprosa banhada em esgoto. Eu não matei
Pam Loretti, a Miss simpatia. Foi tudo uma armação.

Erik: Moça, eu não quero ouvir mais nada. Você está muito encrencada! Vamos fingir que nada
aconteceu e nunca nos vimos antes. (vai saindo)

Kid: Por favor, deixa 15 reais pro meu táxi. Estou mais dura que coco.

Erik: Eu não quero me envolver com isso...

Kid: Você já está envolvido, Erik, até o último fio do seu cabelo.

Erik: (num espanto que desfigura seu rosto) Como você sabe o meu nome?

Kid: Eu sei tudo sobre você, Erik.

Erik: O que está acontecendo?


Kid: 15 reais pro táxi, e eu rasgo o mapa!Conto todos os milagres e os nomes dos respectivos
santos.

(tempo.)

(Erik tira 15 reais e contrariado paga a moça)

Kid: (guardando o dinheiro no decote) Pam Loretti, a Miss Simpatia, me contratou para te
matar. Mas parece que alguém se antecipou e foi ela que acabou sendo assassinada.

Erik: Mas por que Pam faria uma coisa dessas?

Kid: Vingança.

Erik: Vingança?

Kid: Não faz o louco! Você, mais que ninguém, sabia que o casamento de Pam com Bryan era
pura fachada!

Erik: Como eu poderia saber?

Kid: Porque você tinha um caso com o marido dela.

Erik: Que absurdo!

Kid: Ela viu tudo ruir quando descobriu que Bryan estava apaixonado por você e disposto a
jogar tudo pro alto e assumir o romance publicamente, arruinando a carreira de Pam como
símbolo da perfeição coca cola trash luxo. Milhões estavam em jogo e você seria só um
pobretão a menos: Carta fora do baralho. Pam precisava tomar uma providência o mais rápido
possível e não hesitaria em quebrar os ovos para fazer uma rica omelete! Para isso eu fui
contratada, afinal de contas, a Miss Simpatia jamais sujaria suas mãos com gordura barata.
Erik: (tonto com o impacto da revelação) Eu não posso acreditar nisso...

Kid: Pois é, meu bem. A vida é um carrossel desgovernado com cavalos selvagens capazes de
tudo a qualquer preço.

Erik: E quem matou Pam?

Kid: Talvez você saiba disso melhor que eu...

Erik: Não sei o que está insinuando...

Kid: (irritada) Ora bolas! Não banca a vítima. Faz um esforço, meu filho.

Erik: Repito: eu não sei onde você quer chegar com isso.

Kid: Bryan.

Erik: O que tem Bryan.

Kid: Você convenceu Bryan a matar Pam. Sua ambição cega e desgovernada fez de Bryan um
joguete em suas mãos, capaz de fazer tudo pra ficar com você.

Erik: Isso não é verdade!

Kid: Diz aqui, diz na minha face que você ama verdadeiramente Bryan! Diz!

Erik: Eu amo verdadeiramente Bryan.


Kid: Torpe! O amor em sua boca parece uma ferida pestilenta com uma mosca varejeira
agonizante pousada em cima. Seu amor é como uma grande bola de pus, que precisa ser
atravessada por uma agulha quente.

Erik: Eu não permito que você faça juízo de valor do que eu sinto pelo Bryan!

Kid: Pessoas como você, que usam o amor de forma feia e egoísta, se aproveitando da pureza
alheia, não merecem um pingo de consideração. Fico pasma em saber que pessoas como você
são capazes de despertar um sentimento tão belo e sincero no outro e deformar tudo sem o
mínimo de dignidade e respeito.

Erik: (digno) O amor tem suas variantes e isso não diminui sua origem. Amo Bryan. E se fiz o
que fiz, foi para protegê-lo. Bryan é ingênuo, uma rosa em botão, que murcharia no primeiro
raio de sol. Bryan acredita que o amor justifica tudo e que sela o verdadeiro sentido da
felicidade. Mas você e eu sabemos que isso não é verdade. Bryan é uma criança que pensa que
o mundo cabe numa casquinha de sorvete.

Kid: E por isso você o convenceu que matar Pam, seria a melhor maneira de resolver tudo.
Muito mais jogo. Afinal de contas, toda a fortuna seria dele e juntos poderiam desfrutá-la em
alguma ilha da América Central.

Erik: Eu só quis poupá-lo de um escândalo desnecessário e para além de tudo eu sabia muito
bem do que a miss simpatia seria capaz de fazer. Eu apenas fui mais rápido que ela.

Kid: (enojada) Vocês são tudo farinha do mesmo saco. Pobre Bryan... Aliás, pobre nada. Bem
feito. Deve ser uma besta quadrada. Só mesmo uma besta quadrada pra não se dar conta que
a piscina em que ele nada anda cheia de tubarões.(reflete) Se bem que quando estamos
apaixonados, todos nós viramos verdadeiras bestas quadradas.

Erik: E o que você vai fazer agora, que sabe de toda a verdade?

Kid: (aponta um revólver) Te matar, naturalmente.

Erik: Me matar?

Kid: Sim. Eu fui paga pra isso e costumo levar meu trabalho muito a sério.

Erik: Muito bem, vá em frente. (arrogante) Você pensa que eu vou me humilhar? Eu não vou
me humilhar. Pelo contrário: Eu quero que você faça! Faz! Se não fizer eu faço!

Kid: Por favor, não me dê ordens, eu sei muito bem o que devo fazer.

Erik: Pois bem: faça. Mas antes eu queria pedir um último desejo.

Kid: Você não está em condições de pedir nada por aqui.

Erik: Não se nega um desejo para alguém que está pra morrer. Você não pode me negar.

Kid: O que você acha que eu sou, cara? Sua fada madrinha! Você matou a mulher mais
simpática do nosso país! Merece desejo nenhum!

Erik: Não fui eu, foi o Bryan!

Kid: Seu canalha, ele fez por você!


Erik: Então você pode realizar esse último desejo por mim, Não é nada demais, é só uma
última vontade. Por favor. (sincero) Por favor.

( Kid Suspira)

Kid: Tudo bem. (debochada) Você terá seu pedido realizado, princesa. O que você quer?

Erik: Um beijo.

Kid: Um beijo????

Erik: Um beijo de língua.

Kid: Esquece. Você não me atrai em nada. Se prepara pra morrer!

Erik: Você prometeu!

Kid: Eu te prometi um desejo e não dois.

Erik: Mas foi exatamente o que fiz: um desejo.

Kid: Meu camarada, existem dois desejos: o seu desejo de beijar e o meu de ser beijada. Não
vai rolar e fim de papo.

Erik: Um beijo. Por favor. Eu queria só um beijo antes de morrer. Por favor. O último que dei
foi tão sem gosto que nem lembro. Afinal de contas você não acorda pensando que aquela
quarta feira é a sua última chance com as coisas. E quando você se dá conta, como eu estou
me dando conta agora, quando você se dá conta_ percebe que sua última transa foi qualquer
nota e que seu último beijo então... Nem se fala. E que você tem se desperdiçado tanto por aí,
e se esgotado tanto, a troco de nada... Sem nem valer a pena... Poxa... Dá um vazio, sabe?
Uma sensação de autopiedade, horrível. Você se sente um fantasma de si mesmo. Uma casa
abandonada por dentro. E tudo o que você quer é um beijo. Um único beijo. Só pra prestar
atenção. Só pra perceber que a vida é feita de pequenas eternidades. E que são essas
pequenas eternidades que justificam todo o resto...

Kid: (puta da cara) Seu safado! Essa é a fala de Charlote Elizabete, na estação do trem,
despedindo-se de Troi Bernard.

Erik: Sim, eu sei: Charlote assume que sua vida foi um erro e que o câncer só veio para finalizar
aquilo que outrora já havia sido finalizado. Ela convence Troi a partir para a Capital e realizar
seu sonho de ser um advogado renomado, enquanto Charlote havia se desperdiçado naquela
cidadezinha cruel e implacável. Charlote só pede um último beijo, e Troi, mesmo sabendo que
ela o traía com seu padrasto _ que havia tomado sua mãe como esposa apenas por uma
rivalidade antiga, por questões territoriais, agora fazia o mesmo com a noiva do filho_ Mesmo
assim, Troi perdoa Charlote e lhe dá um beijo e jura voltar assim que achar uma medula
compatível com a dela!

Kid: “Corações sangrando”. Vejo que temos algo em comum.(exibe o livro que acabou de tirar
da bolsa) Só que, meu chapa!, eu não sou Troi e você muito menos Charlote. E você vai beijar
Jesus lá no céu.

Erik: E quem disse que eu não sou Charlote?.

Kid: Ora! Você está começando a me irritar. (faz que vai atirar)
Erik: (rápido) Espera!!!! Espera!!! Eu sou Charlote! Quer dizer, de certa maneira sim.

Kid: Eu também sou Charlote, todo mundo é um pouco. Isso não faz você melhor que
ninguém!

Erik: Não foi isso que eu quis dizer.

Kid: E que diabos você quer dizer?


Erik: Eu quero dizer que eu sei essas falas porque fui eu quem as escreveu.

Kid: Pára a palhaçada! Todo mundo sabe que Kire Osnam é a autora de “Corações sangrando”,
e que escreveu toda a coleção enquanto estava sobre o fogo cruzado na Faixa de Gaza,
dividindo a casa com mais seis esposas de seu marido, 37 anos mais velho que ela. Agora eu
vou te matar com gosto, só por essa profanação ao ícone dos açucarados das bancas de jornal!

Erik: Juro que não estou mentindo. É Kire Osnam quem mente. Quer dizer. Sempre mentiu.
Kire Osnam é meu nome de trás pra frente: Erik Manso. Kire Osnam: Erik Manso. Olha. (mostra
a identidade) Essa história de Faixa de Gaza e o escarcéu, é estratégia de marketing. Jogada
comercial. Vende mais que Erik Manso, um gay que tem um caso com o marido da Miss
Simpatia.

Kid: Eu duvido que alguém sensível como Kire, seria capaz de algo tão mesquinho. Kire jamais
abusaria do amor por dinheiro.

Erik: Kire não come, não mora e nem bebe, Erik sim.

Kid: (muda o tom) Mas como saberei se está dizendo a verdade?

Erik: Me pergunte qualquer coisa a respeito dos livros. Eu respondo.

(tempo)

Kid: (reflete girando o revólver no ar) Ok. Em “Desejo e constatação”, Qual era a profissão do
órfão Andrew antes de se casar com Eleonora e descobrir que o pai dela havia matado o seu?

Erik: Coveiro. Seu pai, teria sido o primeiro que ele havia enterrado, jurando vingança contra
aquele que o matara.

Kid: Muito bem... Qual era a doença secreta de Lady Cameron em “Aqui se faz, aqui se paga”?

Erik: Cleptomaníaca, no capítulo final ela coloca fogo no próprio corpo, abraçada tudo que
havia roubado até então, sussurrando o nome de seu amado, Evan.

Kid: Em “Esqueça o amanhã, amar não vale a pena”, por quem e o que era traficado em
bonecas de porcelana para Antiga Iugoslávia?

Erik: Joshua, o falso manco. Traficava passaportes falsos, só que _ correção!_ não em bonecas
de porcelana e sim em barras de chocolate. E a Iugoslávia já havia se dividido em Sérvia e
Montenegro. Daí a falha trágica, Joshua, não sabia para onde ir com os passaportes.

Kid: (maravilhada, abraça Erik. Um abraço muito apertado e emocionado) Kire!!

(ficam abraçados por um tempo enquanto ela fala)

Kid: (consternada) Quantas e quantas vezes eu pensava em desistir de tudo, em chutar esse
maldito balde e eu lia você e percebia que do outro lado, sim, lá do outro lado havia um
alguém com as mesmas inquietações que as minhas... (se recompondo) Desculpa, fiquei
cafona. Não acontece sempre. É que não é todo dia que se encontra uma celebridade e hoje
foi um dia atípico eu encontrei com duas: uma morta e uma que eu deveria matar! (ri gostoso)

Erik: Eu não fazia idéia de que meu livro estava sendo lido por uma pessoa tão interessante.

Kid: (encabulada) Ai, imagina! Tenho todos. Meu sonho era conhecer você! Comecei lendo
meio que por acaso e agora não perco um. Inclusive achei uma pena que no último livro, Troi
não tenha voltado pra ficar com Charlote Elizabete. Ela morreu sozinha achando que ele
voltaria. Achei muito triste.

Erik: É tudo meio baseado na minha relação com o Bryan e a Pam, entende? O nosso amor é
como essa medula que nunca chega...

Kid: Ah... Mas você bem que poderia ressucitar Charlote Elizabete no próximo livro, porque se
pensar bem, ela não...

Erik: (corta) Vejo que você gosta mesmo desse gênero. Mas é que eu estou meio com pressa,
não me leve a mal. Eu queria saber se você ainda vai me matar?

Kid: Eu deveria, pois você continua sendo o mesmo escrotinho ambicioso que convenceu seu
amante a matar a própria esposa. E para além de tudo destruiu a minha referência de doçura
em tempos duros. (muda o tom) Mas, justamente, em consideração a Kire Osnam, e a tudo de
belo que ela já despertou em mim , é que eu vou poupá-lo e deixar que a vida se encarregue
de fazer o que deve ser feito.

Erik: Obrigado. Muito obrigado.

Kid: Não agradeça a mim, agradeça a Kire, que aliás, ela sim, deveria ser a nossa miss simpatia.

(Erik vai saindo)

Kid: Espera. Tem mais uma coisa.

(ele estanca)

Kid: Me dá um autógrafo? (estende o livro sorrindo)

Fim.

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