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Laura Restrepo
Não é por coincidência que Dom Quixote e Hamlet, os dois personagens literários que
prefiguram o homem moderno - um da literatura espanhola e o outro da inglesa - são
ambos loucos, ou fingem sê-lo. Tanto Cervantes como Shakespeare recorrem a esse
peculiar recurso narrativo, tornar loucos seus respectivos personagens, com o resultado
de que, nos séculos posteriores a suas obras, o conceito de louco se tornou
gradualmente um marco de modernidade, de alteridade, de uma visão irônica, subjetiva
do mundo. Em suma, ele envolve uma liberdade - errar, enganar a si e aos outros,
duvidar, falhar; o que significa, uma liberdade para as idiossincrasias humanas seguirem
o seu próprio caminho.
Qual a conexão simbólica entre loucura e modernidade? Por que o homem moderno
haveria de terminar se reconhecendo nas palavras de um lunático? Seguramente porque,
no momento em que o grande divisor é reconhecido pela primeira vez, a loucura é o único
nome concebível para esse exercício de fazer em pedaços os velhos modelos, de
transgredir os limites do conhecido e do que é aceito, de ir além do que quer que a
racionalidade convencional tenha conseguido codificar.
Como o próprio Cervantes indicou muitas vezes, a principal causa da loucura de Dom
Quixote é sua leitura de livros de cavalaria. Essa obsessão o leva a perder a identidade e
a se conceber não mais como uma mera pessoa, mas como um personagem: de um lado,
existe o Alonso Quijano de todo dia, e de outro, a visão que ele tem de si mesmo como
um cavaleiro errante e famoso reparador das injustiças. Para se reinventar à semelhança
do que leu, ele se dá o falso nome de Dom Quixote, inventa um codinome adequado para
seu cavalo, conjura uma linda dama do ar, e constrói um amor monumental por ela.
Dom Quixote arenga seguidas vezes, enquanto se reinventa para si mesmo, e os leitores
o acham estranho, maluco, mas ao mesmo tempo se reconhecem nele, e é aí que se
revela a grande transformação. Pois, entre Dom Quixote e o mundo que o rodeia,
surgiu um poderoso mediador cultural: o da própria linguagem, com seu poder
imenso de reformar a realidade, e não raro, suplantá-la. Dom Quixote, o primeiro
homem moderno, passa de mero ser natural a uma entidade cultural.
Com Hamlet acontece algo parecido: sua loucura é basicamente teatral, na medida em
que ele está agindo como se estivesse louco. Ele vê o mundo como um cenário. Em
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Hamlet, essa nova realidade cultural adquire um poder que finalmente se impõe sobre a
outra realidade, a ''''real'''', que lentamente se desenrola e é vista como sistematicamente
suspeita. Tanto Dom Quixote como Hamlet nos confrontam com um novo tipo de ser
humano que não é mais tão obcecado pela realidade quanto o é pela representação
da realidade, por meio da cultura.
Hoje, continuamos trilhando o caminho traçado por esses dois personagens enquanto
discutimos a influência do Quixote em vários âmbitos culturais. Deve-se notar que não
estamos discutindo a influência de Quixote sobre pessoas enquanto tal, mas sobre a
cultura que os seres humanos geraram. Mas não podemos ser acusados de loucura por
isso: porque o que em Dom Quixote era loucura, é hoje um componente padrão do
homem moderno que desconfia desse elemento tênue a que chamamos realidade e
duvida até da própria existência. Nos sentimos mais confortáveis confiando no simbolismo
do real e de suas representações. Não estamos mais interessados em lidar com a
realidade como matéria-prima, pois sentimos um chão mais sólido quando nos
digladiamos com nossas próprias criações - os sistemas de signos que constituem a
cultura. No século 17, essa forma peculiar de epistemologia irrompeu de maneira
tão inesperada que Cervantes teve de chamá-la loucura; hoje, ela alcançou uma
rara estatura nos domínios da razão.
Enfim, há ironia. Esse novo tipo de ser humano suspeita que existe uma anulação, uma
combinação imperfeita entre o self e o universo, entre o sujeito e o que o cerca, e é
precisamente dessa incompreensão que emerge a ironia moderna, com sua
desconfiança, ao modo de Hamlet, das possibilidades da ação.
Para conceber o homem novo, é preciso proceder por meio da dúvida - dúvida metódica,
segundo o primeiro filósofo moderno, Descartes - mas também pela zombaria. Cervantes
goza de seu personagem, faz dele uma criatura grotesca, uma aberração. Uma
ferramenta semelhante de zombaria metódica posteriormente converte os Gregor Samsas
da literatura contemporânea em insetos.
Assim, o homem supera sua própria ingenuidade quando vira para ela esse novo olhar
irônico, dissociado, e ao superar essa ingenuidade ele deixa a infância para trás.
Quem se deixar duvidar, e rir, deixa para trás a realidade rasa, decifrável, para penetrar
numa zona mais problemática, povoada de figuras em chiaroscuro, de marchas e
contramarchas, de duplos sentidos, de ambigüidades ressoantes.
Podemos nos perguntar se nosso processo esfomeado e voraz de culturalizar tudo não se
parece, em certo sentido, com esse infeliz polvo. Eu me pergunto se fomos tão longe no
caminho trilhado por Dom Quixote que, por pura inversão dialética, inadvertidamente já
ficamos tão fora de controle que invertemos os termos: o que era loucura para ele, para
o homem contemporâneo se mostra uma forma privilegiada de razão. Hoje, todo
moinho de vento é algum tipo de gigante inventado pela razão; como propôs Goya, ''O
sono da razão produz monstros.'' Acreditar na existência real de moinhos de vento se
verificou mera ingenuidade, ou pior, uma forma imperdoável de kitsch.
Damos rédea livre a nossa tendência a construir cultura como se ela fosse uma espécie
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de lasanha: camada sobre camada sobre camada, representações culturais que
sustentam representações culturais anteriores e que, por sua vez, geram representações
culturais subseqüentes. E, no processo, onde encontrar algum vínculo com a realidade?
Para onde foi nossa velha amiga vida?
Como o polvo da lenda, uma cultura que só se alimenta de si mesma corre o risco de
desaparecer. O protagonista do último romance de Umberto Eco, que perdeu a memória
pessoal, íntima, embora mantivesse intacta sua memória cultural enciclopédica, lamenta
ao tentar se lembrar do avô: ''''Sei tudo sobre Alexandre o Grande, mas nada sobre meu
próprio pequeno Alexandre.'''' Talvez ''''ele tenha perdido sua alma'''', para resumir o
problema em suas próprias palavras.
É possível que este possa ser o momento de reconsiderar ou, ao menos, questionar, essa
que no século 17 foi uma descoberta tão importante. É por isso que podemos dizer com
todo nosso coração: ''''Ao nosso grande Quixote, longa vida! Possa ele viver pelo menos
outros 400 anos!'''' Mas, ao mesmo tempo, acredito que precisamos tirar do esquecimento
aquilo que um dia foi tão saudável: os velhos e sólidos moinhos de vento da realidade.
Não devemos esquecer que eles também existem. Ou quem sabe? Será que realmente
existem? Devo confessar a suspeita de que eles poderiam não existir mais - salvo na
Holanda, claro, onde foram reduzidos a meros ornamentos culturais.