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Sábado, 06 de Outubro de 2007 - ESTADÃO CADERNO 2

A LOUCURA E A IDENTIDADE CULTURAL


Por que o homem moderno tanto se reconhece nas palavras de um lunático?

Laura Restrepo

Não é por coincidência que Dom Quixote e Hamlet, os dois personagens literários que
prefiguram o homem moderno - um da literatura espanhola e o outro da inglesa - são
ambos loucos, ou fingem sê-lo. Tanto Cervantes como Shakespeare recorrem a esse
peculiar recurso narrativo, tornar loucos seus respectivos personagens, com o resultado
de que, nos séculos posteriores a suas obras, o conceito de louco se tornou
gradualmente um marco de modernidade, de alteridade, de uma visão irônica, subjetiva
do mundo. Em suma, ele envolve uma liberdade - errar, enganar a si e aos outros,
duvidar, falhar; o que significa, uma liberdade para as idiossincrasias humanas seguirem
o seu próprio caminho.

Qual a conexão simbólica entre loucura e modernidade? Por que o homem moderno
haveria de terminar se reconhecendo nas palavras de um lunático? Seguramente porque,
no momento em que o grande divisor é reconhecido pela primeira vez, a loucura é o único
nome concebível para esse exercício de fazer em pedaços os velhos modelos, de
transgredir os limites do conhecido e do que é aceito, de ir além do que quer que a
racionalidade convencional tenha conseguido codificar.

Como o próprio Cervantes indicou muitas vezes, a principal causa da loucura de Dom
Quixote é sua leitura de livros de cavalaria. Essa obsessão o leva a perder a identidade e
a se conceber não mais como uma mera pessoa, mas como um personagem: de um lado,
existe o Alonso Quijano de todo dia, e de outro, a visão que ele tem de si mesmo como
um cavaleiro errante e famoso reparador das injustiças. Para se reinventar à semelhança
do que leu, ele se dá o falso nome de Dom Quixote, inventa um codinome adequado para
seu cavalo, conjura uma linda dama do ar, e constrói um amor monumental por ela.

Desde o seu surgimento, a natureza de Dom Quixote, como será a de um homem


moderno, é marcada por cultura e meios de comunicação. Não foi por acaso que Dom
Quixote nasceu na mesma época que o primeiro meio de comunicação de massa,
conhecido como a imprensa escrita, que, por sua vez, promoveu aquele gênero literário
amplamente disseminado, conhecido como romance cavalheiresco.

Dom Quixote arenga seguidas vezes, enquanto se reinventa para si mesmo, e os leitores
o acham estranho, maluco, mas ao mesmo tempo se reconhecem nele, e é aí que se
revela a grande transformação. Pois, entre Dom Quixote e o mundo que o rodeia,
surgiu um poderoso mediador cultural: o da própria linguagem, com seu poder
imenso de reformar a realidade, e não raro, suplantá-la. Dom Quixote, o primeiro
homem moderno, passa de mero ser natural a uma entidade cultural.

Com Hamlet acontece algo parecido: sua loucura é basicamente teatral, na medida em
que ele está agindo como se estivesse louco. Ele vê o mundo como um cenário. Em
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Hamlet, essa nova realidade cultural adquire um poder que finalmente se impõe sobre a
outra realidade, a ''''real'''', que lentamente se desenrola e é vista como sistematicamente
suspeita. Tanto Dom Quixote como Hamlet nos confrontam com um novo tipo de ser
humano que não é mais tão obcecado pela realidade quanto o é pela representação
da realidade, por meio da cultura.

Hoje, continuamos trilhando o caminho traçado por esses dois personagens enquanto
discutimos a influência do Quixote em vários âmbitos culturais. Deve-se notar que não
estamos discutindo a influência de Quixote sobre pessoas enquanto tal, mas sobre a
cultura que os seres humanos geraram. Mas não podemos ser acusados de loucura por
isso: porque o que em Dom Quixote era loucura, é hoje um componente padrão do
homem moderno que desconfia desse elemento tênue a que chamamos realidade e
duvida até da própria existência. Nos sentimos mais confortáveis confiando no simbolismo
do real e de suas representações. Não estamos mais interessados em lidar com a
realidade como matéria-prima, pois sentimos um chão mais sólido quando nos
digladiamos com nossas próprias criações - os sistemas de signos que constituem a
cultura. No século 17, essa forma peculiar de epistemologia irrompeu de maneira
tão inesperada que Cervantes teve de chamá-la loucura; hoje, ela alcançou uma
rara estatura nos domínios da razão.

Dom Quixote se acredita um cavaleiro andante, mas não é; Cervantes se empenha em


nos revelar sua verdadeira face por uma peça de dupla articulação, por uma visão
refletida que se revela tipicamente moderna. Entre o homem e a visão que ele tem de
si mesmo, há uma disparidade que produz vertigem, com possibilidades ilimitadas
colocadas em jogo, e uma dose quase inimaginável de ambigüidade.

Enfim, há ironia. Esse novo tipo de ser humano suspeita que existe uma anulação, uma
combinação imperfeita entre o self e o universo, entre o sujeito e o que o cerca, e é
precisamente dessa incompreensão que emerge a ironia moderna, com sua
desconfiança, ao modo de Hamlet, das possibilidades da ação.

Para conceber o homem novo, é preciso proceder por meio da dúvida - dúvida metódica,
segundo o primeiro filósofo moderno, Descartes - mas também pela zombaria. Cervantes
goza de seu personagem, faz dele uma criatura grotesca, uma aberração. Uma
ferramenta semelhante de zombaria metódica posteriormente converte os Gregor Samsas
da literatura contemporânea em insetos.

Assim, o homem supera sua própria ingenuidade quando vira para ela esse novo olhar
irônico, dissociado, e ao superar essa ingenuidade ele deixa a infância para trás.
Quem se deixar duvidar, e rir, deixa para trás a realidade rasa, decifrável, para penetrar
numa zona mais problemática, povoada de figuras em chiaroscuro, de marchas e
contramarchas, de duplos sentidos, de ambigüidades ressoantes.

Dúvida e humor implicam o fim do heroísmo, a antiga fé que tornava a ação


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possível, enquanto ironia e dúvida tendem a paralisar. Por isso, Hamlet é um tamanho
fiasco como vingador, e Dom Quixote, tamanha caricatura de cavaleiro errante. Nesses
dois personagens, o homem moderno se reconhece como tendo reformado o curso de
seu próprio destino, e como quem dá dois passos atrás para cada passo adiante. Como
alguém enredado na própria capa, ou urinando na própria sopa. Para colocar nas
palavras de Cervantes, nos reconhecemos como tendo ''''saído para o mundo pela porta
errada''''.

O jogo decisivo deixou de ser jogado no terreno da realidade e é antes mediado no


terreno da cultura, e, por isso, chegamos a ver algumas atitudes excessivamente
imbuídas de realidade como ingênuas, pré-modernas e antiquadas, ocupadas demais
com avatares do real; achamos o heroísmo suspeito, para não mencionar qualquer
excesso de paixão ou convicção, como dar sua vida por uma causa, ou morrer por
amor: essas atitudes são consideradas além do espectro do razoável. Escritores
sérios deram livre rédea a uma tendência de ver como anacronismo os dramas sociais,
dramas regionais, dramas humanos comuns, de carne e sangue, isto é, do tipo que
vemos na rua, do tipo que ofende nossas sensibilidades. Preferimos lidar com isso depois
de filtrado, catalogado, e, de certo modo, domado pela abstração.

Com o fim da crença em qualquer forma de heroísmo, exilamos também a


grandiloqüência, o pedantismo e o melodrama. Mas nem tudo tem sido lucrativo nessa
evolução da modernidade. O que anteriormente chamávamos de ''''zombaria metódica''''
transformou-se num dispositivo diabólico que parou de nos obedecer: quando o
colocamos em movimento, corremos o risco de não conseguir pará-lo. A ironia abre
portas decisivas, mas carrega também consigo uma carga de exaustão, de descrença, de
paralisia, contra a qual Rilke advertiu em suas cartas a um jovem poeta.

Existe uma fábula do Japão do pós-guerra relatando a história de um polvo abandonado


num aquário, esquecido por todos e não alimentado por ninguém. Presa de uma fome
insuportável, a criatura começa a comer os próprios tentáculos, devorando-se dia após
dia até desaparecer completamente. Aí o aquário parece vazio, mas o polvo continua a
existir ali, invisível, prisioneiro da mesma fome perpétua, insaciável. Para mim, a idéia
desse polvo auto-devorando-se, eternamente faminto, ao mesmo tempo invisível e
ferozmente presente, é muito perturbadora.

Podemos nos perguntar se nosso processo esfomeado e voraz de culturalizar tudo não se
parece, em certo sentido, com esse infeliz polvo. Eu me pergunto se fomos tão longe no
caminho trilhado por Dom Quixote que, por pura inversão dialética, inadvertidamente já
ficamos tão fora de controle que invertemos os termos: o que era loucura para ele, para
o homem contemporâneo se mostra uma forma privilegiada de razão. Hoje, todo
moinho de vento é algum tipo de gigante inventado pela razão; como propôs Goya, ''O
sono da razão produz monstros.'' Acreditar na existência real de moinhos de vento se
verificou mera ingenuidade, ou pior, uma forma imperdoável de kitsch.

Damos rédea livre a nossa tendência a construir cultura como se ela fosse uma espécie
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de lasanha: camada sobre camada sobre camada, representações culturais que
sustentam representações culturais anteriores e que, por sua vez, geram representações
culturais subseqüentes. E, no processo, onde encontrar algum vínculo com a realidade?
Para onde foi nossa velha amiga vida?

Como o polvo da lenda, uma cultura que só se alimenta de si mesma corre o risco de
desaparecer. O protagonista do último romance de Umberto Eco, que perdeu a memória
pessoal, íntima, embora mantivesse intacta sua memória cultural enciclopédica, lamenta
ao tentar se lembrar do avô: ''''Sei tudo sobre Alexandre o Grande, mas nada sobre meu
próprio pequeno Alexandre.'''' Talvez ''''ele tenha perdido sua alma'''', para resumir o
problema em suas próprias palavras.

É possível que este possa ser o momento de reconsiderar ou, ao menos, questionar, essa
que no século 17 foi uma descoberta tão importante. É por isso que podemos dizer com
todo nosso coração: ''''Ao nosso grande Quixote, longa vida! Possa ele viver pelo menos
outros 400 anos!'''' Mas, ao mesmo tempo, acredito que precisamos tirar do esquecimento
aquilo que um dia foi tão saudável: os velhos e sólidos moinhos de vento da realidade.
Não devemos esquecer que eles também existem. Ou quem sabe? Será que realmente
existem? Devo confessar a suspeita de que eles poderiam não existir mais - salvo na
Holanda, claro, onde foram reduzidos a meros ornamentos culturais.

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