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Boulevard des Capucines e O crime metafísico

Nenhum de nós pode ter certeza de escapar à prisão. Hoje, menos do


que nunca. Sobre nossa vida do dia a dia, o enquadramento policial
estreita o cerco: nas ruas e nas estradas; em torno dos estrangeiros e dos
jovens. O delito de opinião reapareceu: as medidas antidrogas multipli-
cam a arbitrariedade. Estamos sob o signo do “vigiar de perto”.
Michel Foucault
Acossado. Como a caça pelo caçador. O romance policial é moderno e
concentra angústias modernas. Ele se forma no século x1x, prolonga-
se até hoje, mas tem precedentes, sobretudo um, ilustre, simbólico: o
terceiro capítulo de Zadig ou o destino, de Voltaire. A rainha perdeu seu
cachorro, o rei perdeu seu cavalo. Zadig não os viu, mas é capaz de des-
crevê-los perfeitamente: uma cadela de caça, que deu cria havia pouco,
manca, de orelhas compridas; um cavalo galopador, de cinco pés de altura
etc. Como? Pelas marcas deixadas: “Percebi na areia pegadas de um
animal e facilmente concluí serem as de um cão. Leves e longos sulcos,
visíveis nas ondulações da areia entre os vestígios das patas revelaram-
me tratar-se de uma cadela com as tetas pendentes, e que portanto devia
ter dado cria poucos dias antes [...]”. Carlo Ginzburg cita o trecho em
seu “Sinais, raízes de um paradigma indiciário”. Ele insiste na natureza
primordial do homem enquanto cagador:
Por milénios o homem foi cagador. Durante inúmeras perseguições, ele
aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invistveis pe-
las pegadas na lama, ramos quebrados, bolozas de esterco, tufos de pe-
los, plumas emarankadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, re-
gistrar, interpretar e classificar pistas infinitesimats como fios de barba.
Aprendeu a fazer operagies mentais complexas com rapide; fulminante,
no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas.'
1. Carlo Ginzburg, “Sin es de um paradigma indiciário”, in Mitos, emblemas, sinais:
gia wad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 143-79.
morfoloe história,
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Tal filogenia cinegética renova suas energias na sociedade contempora- cial contemporâneo: o anonimato permite a máscara e a falsa identidade
nea. O homem é lobo do homem, hoje e sempre, está claro, mas mais e, portanto, permite também esconder o criminoso.
sutilmente agora. No mundo contemporaneo, o homem tornou-se caça- Em Os miseráveis, de Victor Hugo, o mundo moderno autoriza
dor do homem. A presa não estd majs correndo na floresta — situagdo todos os disfarces, as mudanças de personalidade; a cidade é explorada
que faz pensar imediatamente em The Most Dangerous Game, filme de dos subterrâneos às torres. Jean Valjean, o criminoso, é a caça, Javert, o
Ernest B. Schoedsack (1932), cujo titulo em portugués é explicito: Zarof; policial, é o cagador: a ordem institucional são os braços vingadores da
cagador de homens. O campo é outro, nada de selvas em que 0 humano se sociedade. O desconforto romântico de Hugo intui, porém, que a caçada
reduza a uma presa natural, Apenas majs astuciosa que as outras. Trata- é mais importante do que quaisquer sentimentos humanos. Pressupde
se, ao contrério, do mundo contemporâneo e civilizado, que instaurou o que a lei e seus instrumentos repressores funcionem como alegitimagio
anonimato coletivo das grandes Q.n_mmom“ dos deslocamentos féceis pela de uma justiga incapaz de dar conta do homem. O rigor de Javert é, de
rapidez e agilidade dos transportes. Um anonimato que é equivalente ao fato, crueldade. Compreender o crime de Jean Valjean é humaniza-lo e
dos emaranhados nas florestas ou dos pantanos insondaveis nos quais apagé-lo. A Ordem moderna torna-se antes um élibi nos jogos de per-
o animal desvanece. Assim, no coletivo, cada individuo pode se dissi- seguição e de busca. Victor Hugo, em Os miserdveis, estabelece a dupla
mular. A figura do novo cagador solitário se encarna então no detetive. perseguido/perseguidor, policial/bandido, em que este último passa
Quando a caga se amplia, se institucionaliza e se torna permanente, ela de identidade em identidade. Ao mesmo tempo, Os miserdveis distin-
se chama policia. . gue culpa legal, juridica e inocéncia de fato, demonstrando um conflito
É Walter Benjamin, leitor de Baudelaire, leitor de Edgar Allan Poe, entre regras coletivas e histéria individual que termina por assinalar o
quem sublinha o papel do anonimato no romance policial: “O conteúdo carater desumano e fatidico de uma sociedade racional em seus proces-
social primitivo do romance policial ¢ 5 obliteração dos vestigios do indi- sos de controle.
viduo na multidio da grande cidade”, poe inventou o detetive moderno Esgotos, bulevares, metrés, trens, automéveis, avides, a circulagio
na pessoa do Chevalier Dupin, cujo raciocinio dedutivo impde uma sen- se dilata, as perseguigdes se tornam mais dificeis e complexas: qualquer
sação de maravilhamento ao leitor em “Duplo assassinato na rua Morgue” um é “passageiro”. A moda se universaliza, ingleses, japoneses ou bra-
e “A carta roubada”. A esses dois Ontos, Benjamin prefere escolher “O sileiros passam a se vestir da mesma maneira. O trabatho nas fébricas
mistério de Marie Roget”. , porque a hist6ria traz um debate imediata- impde aos operdrios a repeti¢io dos mesmos gestos, acompanhando a
mente ligado à modernidade como território do anénimo. cadéncia das maquinas, sem exigir habilidades especiais, determinando
" Marie Roget é assassinada indo para a casa de sua tia. Um jornal a igualdade de todos, que sdo, por consequéncia, intercambiéveis. Metrd-
sustenta que o crime deve ter ocorrido logo depois que ela deixou a pen- polis, de Fritz Lang, A nós a liberdade, de René Clair, ou Tempos modernos,
são de sua mée porque ninguém viu a moga no seu trajeto. Dupin afirma de Chaplin, contestaram, no cinema, em clave dramática ou cômica, essa
o contrario: é possivel, é mesmo mais provavel, que a moga não tivesse poda, por assim dizer, da humanidade dos trabalhadores, reduzindo-os
encontrado ninguém capaz de reconheçê-la, por uma questio de propor- todos a um mesmo molde, indiferenciado.
ções, já que o niimero de pessoas conhecidas por um individuo é infimo O anonimato marca as relagdes modernas. Por meio dele é que
diante da inteira populagio da cidade de paris. Poe, que caracterizou o se infiltram as transgressdes, as fraudes, os crimes. Nesse mundo anô-
“ homem da multidão”
309 é,A nãos por acaso,
aquele que inaugura o conto poli- nimo, talvez eu ndo seja quem digo que sou, e nisso encontra-se uma
fonte profunda de riscos e temores. Aquela pessoa que avanga em minha
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direção, ou por trás de mim, pode me agredir, pode me transformar — Apenas, queira me dizer o que representam essas numerosas minho-
em vítima. Baudelaire gostava de isolar-se, mergulhando na multidão, quinhas negras na parte de baixo do quadro?
lembra Walter Benjamin. O indivíduo, se quiser, desaparece na massa, — Mas, respondt, são os transeuntes.
o criminoso dissimula sua culpa em meio a tantas pessoas indiferentes — Entdo, eu parego com isso quando passeio pelo Boulevard des Capu-
e desconhecidas. cines?
Um caso real, o de François Vidocq (1775-1857), que passou da cri-
minalidade à chefia de polícia francesa. Essa metamorfose acontece em O pintor académico, no seu espanto, descobre que sua identidade foi
1807, quando negocia suas pretensões com as autoridades oficiais, afir- devorada no quadro: é dificil admitir, mas sim, sem dúvida, ele, eu, todos
mando que, para melhor descobrir bandidos, é preciso ter sido bandido. parecemos com “aquilo” quando passeamos pelas ruas, pragas, avenidas.
Trata-se de um exemplo claro das novas possibilidades metamórficas, não O pintor (e o critico) viu bem: ao integrar uma multiddo, somos todos
apenas na trajetória que se dá do avesso ao direito, mas no princípio que pequenas manchas indistintas. —
permite reconhecer os criminosos dissimulados na sociedade. O argu- O indiferenciado torna-se o melhor esconderijo. É a chance dos
mento é forte e repousa em faculdades de visão: o criminoso vé aquilo transgressores, dos criminosos. O perigo encontra-se naquele que é
que as outras pessoas não veem, isto é, aquele que é seu igual, mas que falsamente igual. Forgoso é distinguir cada um, para evitar as fraudes
se esconde por trás da máscara social. identitarias.
1; A literatura popular do início do século xx criará obras-primas Como fazé-lo, porém? Minha pessoa, em carne e osso, não garante
baseadas na obsessão do disfarce, logo transpostas para o cinema. O nada, assim como minhas declaragdes também não. Como provar então
gênio do mal é o homem de mil caras, sem rosto verdadeiro: Fantomas, que sou quem digo que sou? Por meio de meu desdobramento em ima-
adaptado em filme por Louis Feuillade a partir do folhetim de Pierre gem, por meu fantasma fixado no papel, pela fotografia que mostro, na
Souvestre e Marcel Allain, cuja primeira aparição se fez em 1911. Ou, minha carteira de identidade ou no meu passaporte.
também, mais tarde, um seu descendente, o dr. Mabuse, de Fritz Lang. Esses documentos são mais importantes do que eu proprio. Minha

i
presença em carne e 0sso é uma garantia menor do que a pequena ima-
|
gem fotografica. O fantasma garante a identificação: o documento de

e
identidade é uma exigéncia da sociedade moderna, da policia moderna.
Em 1874, na primeira exposição dos impressionistas, Monet apresenta A fotografia não basta. Alphonse Bertillon cria em Paris, a partir de
seu quadro Boulevard des Capucines [fig. 27]. Vistos do alto, os passantes 1879, um método antropométrico, que faz um enorme sucesso interna-
são representados como pequenas manchas alongadas e escuras. Louis cional, adotado com avidez em vérios paises, particularmente no Estados
Leroy escreve um artigo satírico, zombando dessa nova pintura, no Unidos. O sucesso vem do caráter rigoroso e cientifico, mas esse carater,
qual inventa a palavra impressionismo. Seu título é: “A exposição dos justamente, é tão paranoico em seu sistema de medidas minuciosas que
impressionistas” ? A sátira se faz sob forma de diálogo entre autor e um termina por desmoronar: o erro de identificagio mais célebre de Ber-
fictício M. Vincent, pintor acadêmico, que se escandaliza com a nova tillon ocorreu quando suas andlises cientificas estabelecem a culpabilidade
vanguarda: do inocente Dreyfus. Ficou, porém, o principio do fichamento, a foto
denunciadora, a descrição que precisa. Ficou, sobretudo, essa marca de
2. Loris Leroy, “L'Exposition des Impressionistes”, Charivari, 25 abr. 1874. Caim que a modernidade descobre: a impressio digital. Nascemos com
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ela; ela deixa nosso traço material inco
nfundível nesse mundo andnimo.
Ela nos denuncia. forma de medo, que o romance policial sabera explorar admiravelmente:
O método de Bertillon configura-se, ústi a.
sobretudo, como a necessidade
da organizagao cientifica e técnica da * mzm“m_”_h %M«“:H contraponto, anonimato e fichamento se opõem —É.M
policia. O sangue pode circular
nas veias, o coragio pulsa se completarem. No final do século x1x, a0 imm.n.c..o:wv.o em que s Í
r, o cérebro pensar: sem “meus docu
mentos”, racionaliza a técnica policial, surge, dentro da ficção literária, o persona-
não existo. Num procedimento de alie
nação de si, a policia da sociedade
moderna concebe uma indistinção entre gem do detetive. Ele atua ali onde a polícia não alcança: nesses romances,
os seres reais, aquela indistinção
de Monet. É, portanto, necessário Pôr é clássico o contraponto cômico entre a »_.m..._nmv do free-lancer \mo dete-
neles um sinal distintivo. Se até o
século xviI a justiga de alguns países marc tive arguto — e os limites dedutivos da policia — encarnada num de seus
ava os grandes criminosos e representantes — em um mesmo caso.
as prostitutas com ferro em bras
a — ou seja, cada um carregava,
na pró-
pria pele, o sinal infamante do crime —,
agora a policia marca todos por ..
modos abstratos de identificar — como
etiquetas — porque qualquer um
pode ser, virtualmente, um criminoso,
A sociedade contemporane a pre-
cisa, para seu funcionamento, de uma Quando Sherlock Holmes nasce, em 1887, inventado mº. Oo:».: U_QÉP
paranoia institucionalizada. No
final do século x1x, a policia é leva funda-se, definitivamente, o género do _.oEE._am.vc:n_m_. Seu eixo é um
da, por necessidades evid entes, a
estabelecer principios cientificos que perm personagem forte. Ele é quem permite constituir uma saga de extraor-
itam a identificagio e a busca inári: evidade.
de criminosos. Criam-se os procedim
entos dactiloscépicos, o mais rigo-
roso método de um sistema indiciário m_nu-“ _NMMB»:D da saga adquire com o romance policial :.:. _wovã.
, que assinala a busca por meio de
marcas deixadas pelo delinquente. aspecto, dentro da literatura moderna. Voltará com outros n_Ms_uâm_. :M__.
AÍ está a primeira angústia, a mais rot, Miss Marple ou Maigret, por mxmã,v_c. Porque, antes de qual a?.m
funda e a mais disseminada.
A contrapartida do anonimato que diss coisa, a base é a de um dispositivo decifrador. À :.m..nm —.m_uoumm so] :
imula é o fichamento que acusa.
Cada um encontra-se entre as mãos uma incógnita a ser resolvida, a aventura ===.mumm.v ao infinito, Mmmm pr
invisíveis de um poder que se fun-
damenta num principio de justiça rigorosa cedimento que elucida. Eles, o romance e o m»m.onãw m.ommi vol M:. m.m—M
, justiça, porém, que se cons-
trói sobre uma ordem indiscutível, da cessar, porque o enigma é sempre novo. Está claro, não cabe re E—“S
qual ninguém escapa. O antigo
pecado religioso desaparece por trás género ao esquema, ao problema de álgebra. O grande m_,:o—. nmn«m_ u
da nova transgressão laica, que
Pune não numa outra hipotética vida, teia sedutora, pitoresca, e mais profunda do que parece, à volta de sua
mas aqui mesmo, em breve. Por
trás da ordem, estabelece-se a Ordem inci iatura.
hegemoénica, invisivel, presente e
Opressora; porém, que submete a todo ?.:n“”“mnmuwn“m interrogagdo sobre o mistério, o romance policial acres-
s e que, sobretudo, não pode ser
discutida. Como o criminoso, ninguém centa uma nova angustia. Não apenas a de ser Emnnm.mo com o vnn.w“o
estd a salvo nesse imenso anoni-
mato: cada pessoa deixa sinais e evid original na ponta dos dedos, detectado pela datiloscopia, ou n“fi“_::c_u. cw.
éncias que traem segredos. Somos
passiveis de redução a detalhes acusador pela imagem que se parece comigo no moEBo:fiw. Mas ÉH la de se or
es, alguns deles fazendo parte
do préprio corpo (uma orelha, um nar caga, a de não poder se esconder, porque existe um olhar capaz
nariz, cuidadosamente classificados
por fotografias nos arquivos). Há aqui ler as pistas de cada um, deixadas no mundo. o ) "
uma dimensio coletiva paranoica,
em que cada um é virtualmente suspe Pode-se protestar: “Mas, enfim, a questão não são os inocent m_...
ito. Brota, dessa maneira, uma nova
A questão são os criminosos, aqueles que merecem ser pegos e presos!”.
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Nem tanto. Primeiro, o “merecer” captura e prisão é menos evi-
O positivismo de Holmes é exterior. Interessa-se apenas por uma
dente do que sonha qualquer polícia ou justiga: lembremos de Victor
sintomatologia inscrita no mundo material. Seus diagndsticos são nutri-
Hugo e de Jean Valjean. Mas mesmo concedendo a necessidade de uma
dos por uma objetividade “cientifica”. A ficção conduz o raciocinio ao
caga ao criminoso, de uma distinção entre criminoso e inocente, Sherlock
extremo do anonimato catalogado e fichado da policia, que existe nos
Holmes demonstra que ambos, inocente e culpado, tornam-se objeto do
fatos. Ela torna cada um vulnerével. Inocente ou criminoso, o olhar que
desvendamento.
atravessa é o mesmo. Apenas, o grande delinquente é mais astuto e mais
Todo apaixonado pelos livros de Conan Doyle lembra-se do pri-
desafiador para a inteligéncia excepcional do detetive. Que chega a se
meiro encontro entre Holmes e o dr. Watson:
lamentar: “— Não ha mais crimes nem criminosos em nossos dias, disse
“— Como esté? [....] Vejo que andou pelo Afeganistio.
ele em tom queixoso”
“~ Como o sabe? perguntei-lhe aténito,”
Homens e mulheres trazem, em seu aspecto e atitudes, os sintomas
Mais tarde o detetive explicari: Watson tem a postura de um médico indisfargéveis do que foram e do que sdo. Mais ainda, nenhum gesto,
e de um militar; está muito queimado de sol, portanto acaba de chegar
de nenhuma ação, passa pelo mundo sem deixar tragos. A mente implacével
um pais quente; encontra-se magro, sofreu privagdes; seu brago esquerdo
do detetive sabe desvendé-los simplesmente porque eles estão ali, expos-
está rigido, como se tivesse sofrido um ferimento. “Em que lugar dos
tos, como que pedindo para serem lidos. Holmes demonstra que ninguém
trópicos um médico do exército inglés poderia ter passado por tantas
é capaz de esconder nada de modo definitivo. Não ha intimidade sufi-
dificuldades e ser ferido no brago? No Afeganistio, naturalmente.”
cientemente poderosa para recobrir maiores ou menores transgressGes,
Ao longo dos contos e dos romances, Holmes repete constantemente
crimes pequenos ou grandes. Sherlock Holmes tem a faculdade de dizer
essas dedugbes, que deliciam os leitores de suas aventuras. Elas banham-
quem somos por meio daquilo que, sem consciéncia, emana de nés. O
se em andlises objetivas, como se pode constatar pelo exemplo acima: o
criminoso — mas não apenas ele — é identificado por uma leitura répida.
detetive é capaz de ler sinais precisos que se inscreveram no mundo, dar
O detetive fornece imediatamente uma série de informagdes referentes
um sentido a eles, e penetrar nos reconditos de quaisquer segredos. Cri-
a um perfeito desconhecido, apenas porque sabe decifrar sintomas invo-
minoso ou inocente, cada ser é transparente diante dos othos argutos.
luntérios. Não há mais opacidade que resista ao olhar que desvenda. Ou
Sem diivida, Holmes é um ente superior, e só ele possui (se excluirmos
seja, o dado imanente 3 existéncia moderna vasculhada pelo detetive é a
seu irmão Mycroft, que aparece episodicamente nas aventuras e que tam-
impossibilidade de evoluir no anonimato de maneira absolutamente anô-
bém demonstra um poderoso sentido de dedução) esse poder.
nima: marcas inevitdveis traem a passagem de cada um por qualquer lugar.
Mas Holmes induz a possidilidade dessa leitura, e instaura uma
O culpado torna-se, assim, bem menos aterrador que o detetive. O
dimenso paranoica suplementar no mundo: a de que nenhum segredo
crime é pontual, episédico. O olhar do detetive é constante e se projeta
€ mais possivel. Diante dele somos de vidro; Holmes leva à anulagio
sobre todos. Para uma anomalia localizada, um poder genérico. Surge
dos passeantes indistintos no Boulevard des Capucines, já que cada um
a culpa virtual. Que ninguém seja criminoso, ou o detetive desentoca e
é passivel de uma radiografia implacavel. O homem da multiddo, de
apanha a caga em seu lago! Para paliar suas falhas, nas frestas de suas
Poe, se transforma aqui num aparelho identificador. Monet é o oposto
incapacidades, 3 maquina estével e incorpérea da policia acrescenta-se o
de Holmes porque expde o anonimato na vida moderna. Holmes,
ao cagador inesperado, habil e agil.
contrario, afirma a utopia controladora de uma leitura que distingue
cada um.
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O procedimento indiciário que acabou de ser descrito e que caracteriza significa a introdução do mal no mundo. É preciso estudar a vítima, vul-
Sherlock Holmes é exterior, não vai ao cerne do crime, não toca na alma, nerável ao mal. É preciso estudar as causas do assassinato, presença do
não atinge os fundamentos estáveis e constantes do mal. É Agatha Chris- mal. Para chegar ao assassino, o portador do mal.
tie quem faz isso. Ela cria dois detetives principais, que desdobram, eles Agatha Christie não pensa em termos psicológicos. Há outra coisa
também, ao longo de tantos livros, suas sagas: Hercule Poirot e Miss em seus livros. As “causas” referidas acima não dependem de motivos
Marple. São muito diferentes. Poirot se destaca pela excentricidade de seu explicados mecanicamente: matou porque odiava; matou porque queria
aspecto: um belga na Inglaterra, com sua célebre cabeça em forma de ovo, herdar. Quando elas existem, essas razões são secundárias e superficiais.
com seus bigodes cuidados, com seus sapatos impecáveis de verniz, com Agatha Christie passa ao largo da psicologia. As aventuras de seus
os vincos perfeitos das calças, com sua vaidade enorme e sem disfarce. detetives repousam antes numa camada mais funda, que é forgoso chamar
Ele sobressai nos ambientes e isso mesmo lhe dá uma posição excepcio- de “natureza humana”. O método de Miss Marple mostra-se revelador.
nal. Ele vê tudo “de fora”, como um estrangeiro que é capaz de notar Ela pensa por analogia. Tal crime nas altas esferas sociais ird lembré-la,
particularidades de uma paisagem que os habitantes locais, pela força do por exemplo, do dia em que o gato de um vizinho de sua aldeia sumiu,
hábito, não conseguem ver. Miss Marple, ao contrário, confunde-se no Com esses paralelismos, comprova-se um procedimento de repetigio nos
cenário: é uma velhinha inglesa simpática, que gosta de tricô, vivendo modos de se cometer um delito. É que a natureza humana, seja onde for,
numa pequena aldeia, St. Mary Mead. Discreta e silenciosa, ela observa afirma-se igual a si mesma.
“de dentro” a sociedade à qual pertence. Mas isso não basta. Os criminosos de Agatha Christie nasceram
Ambos, porém, possuem um ponto comum que os opõe a Holmes. com o mal dentro de si. É isso que os denuncia. Assim como a graga
Nenhum dos dois é “físico”. Quero dizer: Holmes é um atleta, escala redentora para certas teologias da predestinação, que cabe, por designio
montanhas, briga com bandidos, usa disfarces. Nem Poirot nem Miss incompreensivel, a alguns, mas não a todos, os crimes também podem ser
Marple seriam capazes de qualquer atividade desse gênero. Pelo feitio, cometidos por alguns, mas não por todos. A autora assim se exprime no
pela idade, são pouco ágeis. prefécio a Cards on the table [ Cartas na mesa]: “Há nele [no livro] apenas
Não se importam também muito com pistas materiais. Não deri- quatro concorrentes, e cada um, pelas circunstancias, poderia ser o cri-
vam do Zadig, de Voltaire; estão mais próximos, antes, do Dupin de Poe. minoso. Se o elemento de surpresa diminui um pouco, a mesma curiosi-
A decifração se faz por raciocínio: são as célebres células cinzentas de dade se vincula a esses quatro personagens que, todos, ja tém um crime
Poireau. Há aqui uma recusa do positivismo, das provas. Poirot é mani- na consciéncia e são capazes de cometer outros”.
aco pela ordem, pela simetria, e qualquer irregularidade o incomoda. Outra angústia se insinua, portanto. A questão é saber se cada um
Não desdenha elemento nenhum, mesmo, ou sobretudo, aqueles mais tem ou não o mal dentro de si. Os finais das aventuras de Poirot são sem-
insignificantes, para montar um todo coerente. O campo, porém, é o do pre teatrais: o detetive reúne os suspeitos e vai designar o culpado. Sua
raciocínio e das ideias, não do mundo. A solução do crime, é verdade, res- aparéncia extravagante torna-0 incomum; o teatro avizinha-se de uma
tabelece a ordem perturbada, mas não, exatamente, a ordem social, tanto cerimdnia acusatria, de um exorcismo, na qual o detetive transfigurou-
que Poirot pode permitir que o assassino escape, se o crime lhe parece se em sacerdote onisciente.
justificado. Nada, portanto, de uma desordem social episódica, como
ocorre no universo vitoriano de Holmes. Nos livros de Agatha Christie, “E agora, messieurs et mesdames”, disse Poirot rapidamente, “eu vou
© assassinato não vem tomado como um acontecimento qualquer. Ele continuar com o que eu estava para dizer. Entendam isto, eu vou che-
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gar à verdade. A verdade, embora feia em si mesma, é sempre curioso é incapaz de se relacionar, em modo verdadeiro, com o crime e com a
e belo buscd-la. Eu estou muito velho, minhas faculdades talvez não culpa. Todos somos, ou podemos ser, virtualmente, culpados. Todos tra-
sejam mais o que eram.” Aqui, claramente, ele esperava uma contra- zemos nas costas um invisivel M do vampiro. Nesse filme, M, o vampiro
dição. “Com toda a probabilidade este é o último caso que investigarei. de Diisseldorf, a policia se equivale aos criminosos e estes constituem um
Mas Hercule Poirot não termina com um fracasso. Messieurs et mes- tribunal à semelhanga dos oficiais. Peter Lorre faz, então, um discurso
dames, digo-lhes, entendo saber. E eu saberei, apesar de todos vocês.”* para demonstrar a universalidade da culpa. A última frase do filme: mdes,
cuidado com seus filkos, pdde ser interpretada como metafora acusadora
Um de nós é culpado. Neste “nós” encontro-me eu mesmo. E se eu tiver do nazismo. É possivel percebé-la também como indice de suspeita geral
em mim a virtualidade do mal? Pode parecer extravagante perceber um diante de todos os homens.
mal ontológico nas engenhosas tramas de Agatha Christie, mas ele é
rigorosamente inevitável. aaa
nx
Crime virtual, culpa virtual: outra autora deslocará a questão, ao mesmo
tempo em que a explora em profundidade vertiginosa. Trata-se agora não
O cinema de Fritz Lang foi caracterizado por Truffaut como um universo de uma insinuada ontologia do mal, mas da culpa. É uma desarticulação
em que surge “a solidão moral, o homem levando sozinho uma luta con- atroz: a culpa substitui o mal. A culpa não está no mal; nem mesmo, de
tra um universo meio hostil, meio indiferente”. Lang mostra também o fato, o mal está na culpa; antes, a culpa é feiza de mal.
homem na multidão desencadeada; o homem como duplo, ou como múl- Patricia Highsmith deixou uma obra literária das mais admiráveis e
tiplo, feito de máscaras que se tomam por rostos; o homem como assas- complexas. O cinema logo se interessou por seu jogo ambíguo de situa-
sino, como vítima, ou melhor, como assassino e vítima. Esse talvez seja ções, desde O pacto sinistro, de Hitchcock, em 1951. Claude Chabrol,
o ponto mais fascinante engendrado pelos filmes de Lang; a obsessão Michel Deville, Autant-Lara, Geissendorfer, entre certamente outros,
pelos laços que vinculam o homem à culpa. Eles se tecem num domínio adaptaram romances seus. Mas é o personagem de Ripley que fascinou
propriamente metafísico. Entre os bons e os maus, entre criminosos e os cineastas: René Clement, Wim Wenders, mais recentemente Anthony
inocentes, há sempre uma relação insidiosa de vasos comunicantes. Minghella e Liliana Cavani. Foi encarnado por grandes atores: Alain
É o acaso que, muitas vezes, determina se alguém está de um lado Delon, Dennis Hopper, Matt Damon, John Malkovich. Essa fecundidade
ou de outro da fronteira. Objetos carregados de um estranho poder enfei- cinematogrifica de Highsmith é maior do que a de Conan Doyle ou Aga-
xam relações estranhas entre os seres e decidem de seus destinos. Jamais tha Christie — apesar de muitos filmes, alguns bem-sucedidos, inspirarem-
os personagens guardam aquela inocência incólume, bastante presente se nesses autores, eles não se afirmam com tanta forga. A complexidade
nos filmes de Hitchcock. Só existem pessoas ruins ou menos ruins, disse das situagBes e o mistério dos personagens de Patricia Highsmith são
uma vez Lang. sugestivos para o cinema que sabe explorar relagSes soturnas entre os
Os seres não agem, são “agidos”, por assim dizer. Não possuem seres humanos.
psicologia; apenas são, ontologicamente. Neste quadro, a justiça humana Ripley não é um detetive, nem forma de fato uma saga: são poucos
os livros em que aparece, na obra de Patricia Highsmith. Na verdade,
3: Agatha Christie, The Murder of Roger Ackrayd [O assassinato de Roger Ackroyd], 1926. mostra-se como o avesso dos personagens centrais que preocupam a
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autora: instaura o medo porque não tem medo, a angústia, porque não
— carrega em volta de si uma cela invisível, feita da culpabilidade que
tem angústias. Ripley é um assassino. Matou alguém para tomar-lhe a incorporou. Um crime, que surgirá na história, ao contrário, não é por-
identidade — foi o primeiro crime de uma série. Continuamente, está à
tador de culpa. Terrivel, o diálogo final, entre o policial e o injustiçado:
beira de ser descoberto. Essa corda bamba the dá prazer; o exercício de
“— Nós não cessaremos de vigiá-lo, Carter.
risco provoca nele um júbilo frio, — Oh! Eu sei, eu sei.”
Ripley é um personagem excepcional, já que a abolição da culpa e Não estamos mais numa relação simples de transgressão, punição,
do medo não é o lote das pessoas comuns. Patricia Highsmith, na maioria justiça. Em seus romances, a autora expõe o sistema judicial e punitivo
de seus livros, criará, ao contrário, situações nas quais põe em evidência como uma máquina cujos mecanismos têm leis falsamente objetivas, igno-
a culpa e o crime. Com uma percepção aguda, o que lhe interessa são rando tudo daquilo que ocorre na alma do criminoso ou do inocente. Em
menos esses dois substantivos que a conjunção e. Para Ripley, no crime
que quaisquer atos, por mais banais, carregam-se de denúncia, ao trans-
não está o castigo, nem sequer o castigo da culpa. Para os outros perso- formarem-se perversamente em indícios para acusação. Camus expôs a
nagens, na culpa e no castigo não se encontra o crime. Melhor dizendo: força de delação que cada gesto anódino adquire em leitura acusatória.
entre crime e culpa as ligações, se existem, são inesperadas e perversas. O julgamento que se desenrola em O estrangeiro traz fatos alheios ao
O descompasso entre esses três elementos — crime, culpa, justiça crime: entre outros, o acusado foi ao cinema no dia seguinte ao do enterro
— permite, pela ficção, um modo raro de intuir as determinantes de per-
de sua mãe. Para o tribunal, é manifestação indiscutível de uma alma
turbação que impedem superpô-los. Não se trata de psicologia: trata-se insensível, que pesa contra ele e ajuda a transformá-lo em culpado. Alguns
de uma imanência ao mesmo tempo própria à natureza humana e à con- criticos assinalaram a relação entre algumas preocupações de Patricia
dição humana. A culpa é imensa e nevrálgica, ela preexiste ao crime, à Highsmith e de Dostoiévski, que são, de fato, bastante expressivas. Mas
Punição. Caso ela se ausente — Ripley é o modelo —, o crime é secundário há também, sem dúvida, um vínculo forte com o universo de Camus.
€ a punição, desconsiderada.
Numa de suas obras-primas, The Tremor of Forgery [O falsário
indeciso), de 1966, a inquietação do protagonista vem por não saber se
cometeu, de fato, um crime. Em outra, The Story-Teller [O contador “Ninguém está seguro no mundo de hoje.” O mundo de hoje está podre.
de histórias], um jovem escritor enterra, à noite, um tapete num bos- A citação vem do livro Foco inicial [Point of Origin]. A podridão emana
que: a experiência serviria de subsídio para um livro em projeto. No dia de cada pagina.
seguinte, sua esposa o abandona e desaparece sem deixar traço. Circuns- Patricia Cornwell, norte-americana, criou, no inicio dos anos de 1990,
tâncias suficientes para que ele entre na pele de um criminoso, porque o personagem da dr? Scarpetta, chefe do Departamento de Medicina
todos acreditam que matou a mulher. Porém, a questão não é a do falso
Legal no estado de Virginia. Scarpetta ressurge em livros que se sucedem
culpado e a do erro de julgamento. Ela deriva do fato de que a suspeita para formar o fio condutor de uma saga. Ela se impôs imediatamente,
engendra a culpa, mesmo quando o crime não ocorre. com uma convicção verdadeira, como as que possuem os maiores dete-
Talvez o mais estupendo livro de Patricia Higsmith seja The Glass tives das histérias de mistério, como Miss Marple, Hercule Poirot ou
Cell [A cela de vidro], de 1965. Nesse romance, Carter, o personagem Sherlock Holmes.
principal, inocente, é condenado de maneira injusta à prisão. Ali, o que Porém, nada da elegância discreta de Agatha Christie, de suas geo-
ocorre é o aprendizado da culpa. Quando sai — é o sentido do título metrias mentais em que os crimes tornam-se quase abstratos, em que o
262 Boulevarddes Capucines € o crime metafisico 263
mal compõe a natureza humana e é acionado por ato da vontade. Mas, à distorção dos fatos e das razões. Mais ainda: a detetive não se encontra
um pouco, como em Doyle, esse mundo que guarda, materialmente, a fora do crime: é ameaçada, é atingida violentamente por ele. É vítima
memória da violéncia, cuja decifração leva à origem do mal. Entretanto, possível e mesmo, por vezes, privilegiada.
Holmes é um caçador, de inteligência inusitada, facilmente desencavando O universo de Scarpetta não tem a nitidez material do de Holmes,
os criminosos, numa busca metódica e vigorosa dos desvios dentro de nem a elegância impecável do de Poirot. Scarpetta examina cadáveres
uma sociedade enérgica e saudável. € as mais terríveis mutilações do corpo. Mergulha num horror material.
Scarpetta difere dos heróis criados por Agatha Christie ou Conan Patrícia Cornwell tem o segredo de recriar ambientes pelos detalhes.
Doyle em vários pontos, e sobretudo neste: ela não se conserva idêntica O trabalho de Scarpeta é descrito com minúcia, e sua natureza orgânica
a si mesma de um romance a outro. É permeável ao tempo, ao envelhe- traz, ao livro, a percepção de uma concretude física:
cimento. É abalada por ataques violentos de criminosos, que atingem
duramente sua vida sentimental. Mais os romances se sucedem, mais Pus a máscara e a luva, baixet a temperatura do fogão para não danifi-
Kay Scarpetta vai se tornando amarga e melancólica. Ela envelhece num car os ossos e despejei duas colheres de sabão em pó e uma de alvejante
mundo que se torna cada vez mais duro. para facilitar a soltura das membranas fibrosas, cartilagens e gordura.
Is50 não ocorre apenas com ela. O capitão de policia Marino, Lucy, [...] Coloquei com cuidado as tibias e os fêmures na panela, depois
a sobrinha brilhante, que constituem suas relações afetivas mais longas a pelve e partes do crânio. As vértebras e costelas entraram a seguir.
€ estáveis, são também, cada vez mais, atingidos pela maldade intrínseca A água esquentou novamente e o cheiro forte se espalhou com o vapor.
que nos envolve a todos. Essa maldade parece não conhecer limites. Eu precisava examinar os ossos limpos, pois eles poderiam ocultar al-
Aqui se encontra um outro ponto de divergência entre Scarpetta e guma informação, e infelizmente não havia outra maneira de fazer isso.*
seus célebres colegas, detetives inventados pela literatura. O positivismo
de Holmes descobre crimes que tentam disfarçar seus rastros materiais. Esse caldeirão de Medeia mostra como Patricia Cornwell reduz o humano
O racionalismo de Poirot retraça o caminho mental dos motivos e pro- ao físico, porque nesse domínio inscreve-se de modo mais visível tudo o
cedimentos assassinos. Nesses casos, ou o crime insere-se na ordem do que é vulnerável. Ela possui o dom, ainda, das sugestões implícitas: assim,
mundo, ou nos traços constantes da natureza humana, como uma alte- no exemplo acima, a necessidade técnica, para a patologista, de cozer
ração disfarçada de uma coisa e de outra. partes de um cadáver, evoca os procedimentos prescritos por alguma
O pessimismo de Patricia Cornwell, ao contrário, ao inventar deli- receita de cozinha e, sem dizer, embute uma ressonância de canibalismo.
tos patológicos, mostra os homens, a sociedade funcionando de maneira Por sinal, Scarpetta tem prazer, nos primeiros romances, em criar refei-
desequilibrada e tornando-se cúmplice dos criminosos. A loucura de ções suculentas. Pouco a pouco, esse prazer desaparece; em Foco inicial
indivíduos encontra eco na loucura coletiva. Esta é constante, o principal torna-se, simbolicamente, uma cozinheira de defuntos.
dado do mundo e da existência. Uma ameaça invisível dissemina-se em Scarpetta carrega em si a lassidão melancólica de ver-se envolvida
cada coisa, em todas as coisas. Inventa Carrie Gretchen, um ser diabó- em um corpo social marcado por suas próprias taras, um organismo
lico e demente, antiga namorada de Lucy, que sabe se infiltrar com maes- doentio onde os crimes surgem como horrendas ramificações patogênicas.
tria nos pontos mais frágeis das pessoas e das instituições. Por exemplo,
manipula habilmente a imprensa, explorando a tendência do jornalismo
4 P. Cornwell, Point of Origin. [ed. bra Foco inicial, trad. Celso Nogueira. São Paulo:
em ceder facilmente ao espalhafatoso, ao chocante, ao sensacionalismo, Companhia das Letras, 2003].
264 Boulevard des Capucines e o crime metafisico 265
Seus livros são surtos terríveis terminados por uma falsa e temporária A semelhança e a aura: sobre Proust
tranquilidade. Ficam as lesões dolorosas, cobertas pela quietude,
as cica-
trizes fechando-se aos poucos, num aprendizado cada vez mais amargo, e Walter Benjamin
numa paz cada vez mais resignada. seguido por Considerações sobre a distinção entre autor e artista
Patricia Cornwell enxerga um fundo elementar de maldade e de vio-
lência, préprio a0 homem, que os progressos não são capazes de
domar.
Os crimes nascem disso, de ressurgéncias primárias que irrompem, vulca-
nicas, na superficie da civilizagio: “Sempre que acreditava ser impossivel
aos seres humanos fazer algo pior, eu errava. Ou talvez fosse apenas mais
chocante o mal primitivo numa sociedade de seres humanos altamen
te No oposto do espetáculo, que prende o olhar pelo exterior, encontra-se
evoluidos que viajavam a Marte e se comunicavam pelainterner”. Revela,
a busca de essências invisíveis. É um velho tema, esse da natureza invi-
assim, alguns dos abominaveis avessos da modernidade.
' sível das imagens. As questões históricas, ancestrais, da iconolatria e da
iconoclastia testemunham de quão dramáticas e nucleares essas relações
se mostraram, e se mostram ainda, dentro das crenças humanas. Elas
estão ativas: as destruições recentes dos Budas, imensos e antigos, no
Afeganistão, assinalam o quanto a presença das imagens no mundo pode
ser perturbadora.
A palavra imagem está ligada à imitação, à cópia: é mimogenética,
ou seja, nasce da vontade de reproduzir. Entre a representação e o repre-
sentado, ocorrem procedimentos de identidade, já que a identificação é o
objetivo. Representação, isto é, apresentar de novo o mesmo. No entanto,
nós sabemos que esse mesmo não é o mesmo. Creio que é Panofsky
quem lembra, em algum lugar, esta evidência: diante do retrato fiel, nós
reconhecemos quem conhecemos, mas ninguém confunde o retratado
com o retrato.
A questão é a da ligação invisível que se encontra entre retrato e
retratado. Ela repousa numa noção que, dentro da estética e da filosofia
das artes, parece-me, nunca teve um lugar tão importante quanto outros
conceitos prestigiosos. Refiro-me à ideia de semelhança. Se ela não mere-
ceu desenvolvimentos teóricos substanciais, constitui um dos eixos mais
importantes, e indispensáveis, da prática própria aos historiadores da arte.
Não importa se sabemos ou não definir a noção de semelhança: qual-
quer um pode dizer se a criança é mais parecida com o pai ou com a mãe,
se o retrato se parece ou não com o modelo, que uma nuvem se parece
266 Boulevarddes Capucines e o crime metafisico 267
Sobre a liberdade na arte
Iniciemos por um episódio que se passa em Veneza, quando os domi-
nicanos de Zanipolo pedem a Paolo Veronese que execute uma tela
destinada ao refeitório do convento, representando a Santa Ceia.
Veronese leva dois anos para completar a tarefa. Imenso, monumen-
tal, o quadro mede 5,50 por 12,80 metros, ou seja, mais ou menos 71
metros quadrados. Seu caráter muito ambicioso causou grande expec-
tativa. A superficie é ocupada por um grande número de persona-
gens imaginarios junto ao Cristo e aos Apóstolos. Eram figuras que
faziam parte de um espeticulo colorido, pitoresco, dando a impressdo
de uma suntuosa festa, tal como as que podemos imaginar na Veneza
daqueles tempos.
Em 20 de abril de 1573 a tela ficou pronta. No dia 18 de julho, Vero-
nese era chamado diante do tribunal do Santo Oficio. A Inquisigao fez
um interrogatorio, cujas atas existem. Eis aqui um excerto:
Juiz: O que significa este homem sangrando pelo nariz?
VERONESE: É um criado que, por qualquer motivo, estd sangrando
pelo nariz.
Juiz: O que significam estes soldados alemdes armados com
alabardas?
VERONESE: Preciso dizer aqui algumas palavras.
Juiz: Diga.
VERONESE: Nós, pintores, podemos nos permitir as mesmas
liberdades que tomam os poetas e os bufbes. E, se pintei dois
alabardeiros, foi porgue me pareciam convenientes e bonitos. Se o
317
dono da casa era poderoso e rico, segundo me disseram, era de se azul, trazendo o Menino nos braços — são acrescentadas bolas de estrume.
esperar que dispusesse de tais servidores. Elas foram envolvidas numa resina, para conservá-las e protegê-las, e
JuIz: Para que efeito o senhor pintou o bobo com um papagaio na ficam dispostas sobre a pintura. Duas delas se encontram no chão, sus-
mão? tentando o quadro, como pedestais. Em uma vem escrito “Virgin”, em
VERONESE: Por ornamento, como se costuma fazer. outra, “Mary”.
JuIZ: Quem o senhor acredita que estava, de fato, naquela ceia? Além disso, Ofili junta à obra, que é bastante grande, pequenos
VERONESE: Creio que se encontravam o Cristo com os seus apóstolos. recortes extraidos de revistas pornogréficas. Foram feitos de maneira a
Mas, como no quadro sobra espaço, eu o adorno com figuras que torná-los imprecisos, perturbando a visio, dificultando o reconhecimento
encomendam e segundo o costume. imediato. São recortes de nádegas, de sexo feminino, colados à volta
JuIz: Alguém encomendou ao senhor que pintasse alemães, bufões e da imagem da Virgem. Ofili estabelece, com isto, uma relagio orgénica,
coisas semelhantes? voltada para o principio da fecundação: a Virgem Maria, fecundada por
VERONESE: Não, senhores. Mas a encomenda foi a de decorar o Deus, que pariu o Deus feito homem, liga-se fertilizagio da terra, a0
quadro como eu o desejasse. E o quadro é grande, capaz de conter principio que engendra, préprio do ato sexual.
muitas figuras. Fig o que me parecia.! Ocorre que isto pareceu obsceno ao prefeito de Nova York, Giu-
liani, de origem italiana e católico. Giuliani deu um ultimato: ou o museu
O tribunal concluiu que esse ambiente de festa era um desrespeito. retirava a obra, ou ele retirava a verba municipal destinada ao museu.
A última ceia do Cristo devia ser solene e severa. Veronese foi condenado O quadro de Ofili foi mantido na exposição, contra ventos e marés,
amudar o quadro. Em vez disso, ele preferiu mudar o título. A Santa Ceia em nome da liberdade artistica. Ficou protegido por um reforgo policial
passou a se chamar Ceia em casa de Levi. Tratava-se de um tema evangé- fora do comum e, diante dele, dispés-se um vidro à prova de balas, para
lico menor, onde a exuberância visual da obra podia ser permitida. Com evitar que sofresse qualquer agressao.
a mudança de denominação, salvava-se a imagem. Quatro séculos separam esses episédios, unidos, no entanto, por um
Associemos a este episódio um outro, ocorrido no ano de 1999, em conflito entre criação artistica e liberdade. Nos tempos de Veronese, o
Nova York. O Museu do Brooklyn recebeu uma exposição de jovens tribunal da Inquisição intervinha em nome de um ortodoxia. Veronese
artistas ingleses, impulsionados pela galeria Saatchi, um dos marchands havia perturbado a espiritualidade do quadro por um luxo mundano. Em
mais importantes da atual Gra-Bretanha. Em meio às obras, havia a de consequéncia do impacto provocado pela Reforma protestante, parecia
um jovem pintor negro, chamado Chris Ofili. Seu título é 4 Santa Vir- então essencial para a Igreja Catélica controlar qualquer tipo de desvio
gem Maria. Ofili nasceu em Manchester, na Inglaterra, mas identifica- que pudesse parecer, de alguma forma, herético. O artista estava proi-
se, numa busca por raízes africanas, com tribos do Zimbábue. Nelas, o bido de produzir, voluntéria ou involuntariamente, imagens passiveis de
excremento de elefante possui uma significação central: ele fecunda as suspeita de uma eventual heresia.
terras áridas, é vital para o plantio. Ofili incorporou fezes de elefante No caso de Ofili, não se trata exatamente da mesma coisa. Ele,
em seu quadro. À imagem da Virgem — mulher negra, com um manto decerto, não tinha, como Veronese também não, desejo de insultar. Sua
obra pode — e deve — ser entendida por meio de uma leitura segundo
1. Gino Fogolari, “Il processo dell'inquisizione a Paolo Veronese”, Archivio Veneto, 5 s, a qual o mistério da encarnagio e da natividade do Cristo é posto em
pp. 352-86.
XVIL, 1935, sintonia com forgas naturais fecundantes: fecundagio da terra pelo
318 Sobre a liberdadena arte 319
excremento; fecundação humana e divina pela sexualidade. Estas ques- É no século xv111, é com o [luminismo, com o pensamento burgués,
tões, porém, foram confundidas com o insulto e com a provocação. O que esta situação se modifica. Voltemos à etimologia da palavra burgués:
modo como o prefeito Giuliani reagiu indica, com clareza, a seguinte habitante do burgo, isto é, cidadão. O artista, a partir do século xvi11,
posição: o artista tem a liberdade de produzir aquilo que quiser, desde serd um cidaddo como outro, com a mesma autonomia e liberdade de
que respeite crenças e convicções de outrem. pensamento de qualquer um. É verdade que para os iluministas essa liber-
Trata-se de uma diferença importante, em relação a Veronese, que dade de pensamento — não apenas nas artes, mas em todos os dominios
nos remete à história da liberdade vinculada à criação artística. O episódio — estava condicionada a um principio racional. Ou seja, todos são livres,
da Ceia em casa de Levi, de Veronese, é sintoma de um momento de crise. mas cada um é portador da mesma razio universal que nos une; ou seja,
No final do século xv1 a Igreja Católica, por meio da Contrarreforma, eu sou livre para ser racional. Espera-se do artista uma posição pessoal
opunha-se à Reforma protestante. Foi o momento também da instalação em relação aos acontecimentos da História, mas espera-se do artista a
dos Estados Nacionais, escorados nos regimes monárquicos absolutistas. boa escolha, isto &, a escolha racional.
A arte passou a ser submetida tanto a um — a Contrarreforma — quanto O grande agente da pintura do Iluminismo, da pintura da Revolu-
ao outro — os Estados Nacionais. O artista era então honrado, participava ção Francesa, foi David. David instaurou, definitivamente, a reforma
das cortes, às vezes em posições importantes, em missões diplomáticas, neocldssica, chamada então de “arte regenerada”. Introduz principios
como aconteceu com Rubens. Mas sua arte, naquele momento, vinha racionais no préprio processo da fabricagdo das imagens. Há, nele, um
compreendida sempre como um veículo. Seria perfeitamente deslocado método analitico que deve ser claramente enunciado: a escolha do tema e
se pensássemos que o artista, dentro de sua produção artística, pudesse cada etapa da construção do quadro são pensados, passados por escolhas
levantar-se contra o mundo no qual se encontrava. O pintor evoluía no cuidadosas. Numa palavra, a criação artistica fica permeada pela razão.
interior de um mecanismo cujo funcionamento era perfeito e que ele pré- Essa disciplina é estratégica. Ela foi estabelecida para impor à obra
prio não tinha interesse em emperrar. O artista 4ulico transmitia convic- um carater de imagem poderosamente emotiva. Deste modo, o célebre
ções que se encontravam fora dele, às quais aderia. Le Brun, pintor de quadro À morte de Marat {fig. 3], de 1793, transforma o lider politico
Luis x1v orquestrou uma extraordindria celebragio para o mito do Rei num mártir das novas ideias. Com ele, opera-se a transfiguragio de um
Sol. Bernini transformou Roma, no século xv11, num prodigioso cenário fato da histéria politica contempordnea, um crime que corre os jornais,
que confirmava os mistérios da fé catélica. e a projeção desse fato na eternidade. O acontecimento deixa o efémero
Era um momento em que a maneira individual de ver o mundo, pró- para adentrar no eterno.
pria a cada artista, vinha enxertada numa percepção genérica e coletiva, E importante notar que David fez uma escolha politica. Sabemos de
claramente delineada, à qual não é possivel que ele se furte. É preciso ter- que lado se encontram suas opiniões. Isto quer dizer que David, em sua
mos cuidado com as projegdes anacrônicas. A maneira individual é, para escolha, também adere a algo que o ultrapassa, e pelo qual ele milita. Não
nés, hoje, o essencial: é ela o que nos interessa em Rubens, Velizquez ou se trata mais de obediéncia, porém. Trata-se de uma escolha. Quando
Zurbarén. Mas se enxergarmos a partir da 6tica do século xv1 ou xviI, a Marat foi assassinado, David já havia feito um outro quadro, de outro
individualidade de cada artista, é apenas o meio de fazer passar as mesmas mértir da Revolugdio, que se chamava Le Pelletier de Saint-Fargeau. Era
verdades. Há, portanto, uma inversio, algo que está oposto à perspectiva um aristocrata que aderira à Revolução e que fora também assassinado.
dos nossos dias. Naqueles tempos, os modos de cada artista são os aciden- O paralelo é expressivo — o personagem de origem aristocrtica tam-
tes destinados a revelar uma esséncia maior, coletiva, que os ultrapassava. bém escolhe, politicamente. As consequéncias dessa escolha prosseguem,
320 Sobre a liberdade
na arte 321
por sinal, na própria história fisica da tela. Le Pelletier assassinado, que rei Luis Filipe legitimava seu poder como emanado da vontade popular,
deveria fazer pendant ao Marat, não existe mais. A filha do retratado, de e a alegoria pintada por Delacroix era uma liberdade “recuperada” pela
ideias completamente opostas às do pai, monarquista e católica, termina nova monarquia.
comprando a obra para destruí-la, como mancha vergonhosa na família. O quadro, porém, possuia poderes mais subversivos do que espe-
Com esses dois quadros — as homenagens aos mártires políticos Le rava seu autor e adquiria vida prépria. Num primeiro tempo, as revoltas
Pelletier de Saint-Fargeau e Marat — David é o cidadão que faz suas esco- populares foram um dos fatores que permitiram a Luis Filipe tomar o
lhas. Decidiu seu lado, no jogo político, e isto significa submeter-se às poder. Mas depois disso, como elas continuassem a ocorrer, ameagando
regras estabelecidas por esse jogo. Tanto é assim que, concebendo o impé- a estabilidade da nova monarquia, o quadro, de oficial, passou a ser sen-
rio napoleônico como uma continuação da Revolução Francesa, David tido como subversivo. O povo, que se levantara, retratado por Delacroix,
celebrou o imperador, mais ou menos como Le Brun fazia com Luis x1v. ‘mostra-se não tão manipulável como se esperava. Ao contririo, revela-se
Mas com uma diferença. David escolheu. A fidelidade à sua decisão é com- perigoso. Assim, também o quadro mostra-se indesejavel, porque pas-
provada pela história pessoal. Quando cai o imperador, David, embora sou — involuntariamente — a exaltar as ações populares, de fato ameaga-
solicitado para ficar na França pela Restauração, escolhe o exilio, na Bélgica, doras. A obra fora comprada pelo governo, mas terminou sendo devol-
onde morre. Não quis pactuar com um regime que ia contra suas ideias. vida a Delacroix. Sob o Segundo Império, trinta anos depois, sera ainda
Este é o último momento dentro da história das artes no qual o objeto de censura. Este exemplo revela bem o quanto chega a ser pequena
artista — ou pelo menos o grande artista — endossa a positividade do anogio que um autor pode possuir do alcance e dos efeitos de sua prépria
poder, mesmo que esse endosso signifique o resultado de uma escolha, criagio. Uma vez a obra produzida, o cordão umbilical foi cortado e ela
€ não uma adesão tácita como outrora. Com os românticos a questão se passa a ter uma trajetdria autdnoma, cursando um caminho independente.
radicaliza. Os artistas românticos encontram-se na oposição, na recusa ao O que faz de seu criador, quando comenta sua prépria obra, apenas um
poder, ali onde os sentimentos se levantam contra as injustiças e as opres- exegeta entre outros. Talvez privilegiado, mas exegeta apenas.
sões. Diante da censura, diante das proibições, eles inventam a denúncia Com os rominticos afirmou-se algo que se prolonga até nossos dias:
metaférica: é o caso de 4 balsa da Medusa [fig. 6), de Géricault. Inven- toda uma corrente artistica que se quer engajada. Durante o século xx,
tam também novos emblemas, para exaltar a liberdade social, coletiva: é os regimes totalitirios arregimentaram os artistas, pondo-os a seu servigo.
Delacroix e A Liberdade guiando o povo [fig. 10]. Há, ainda, a exasperação O nazismo e o fascismo submeteram assim os criadores. Mas também a
contra a tirania racional, sentida como autoritária: Blake, Fiissli, Frie- esquerda — o Partido Comunista — solicitava a artistas modernos — isto
drich foram alguns dos artistas que se ergueram contra a razão ditadora. &, artistas que, afinal de contas, navegavam em águas da autonomia e da
No caso dos roménticos não basta a posição individual que diz: eu, liberdade de criação desde o final do século x1X — uma posição obediente
pessoalmente, sou contra. O artista romantico não se dissocia de sua obra, a certos ideais politicos.
ele empenha sua arte. Encontra-se assim, nas obras, de modo imanente, Depois da Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950, o debate a
um poder critico, de oposição. Por vezes, esse poder é mesmo auténomo esse respeito tornou-se agudo. Existe um texto cléssico de Sartre, desse
em relagdo s ideias, ou motivos, do préprio criador. O quadro revolu- periodo, chamado Que é a literatura?.? Nele, o autor se obriga a um mala-
cionario de Delacroix é um bom exemplo. Nasceu das revoltas parisien-
ses de 1830, colocando em cena uma multidão em luta pelo direito da 2. J-P. Sartre, Que é a literatura?, [1948]), trad. de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Arica,
liberdade. Mas é preciso lembrar que ele possuia um sentido oficial: o 1993
322 Sobre a liberdadena arte 323
barismo mental para exigir que todo escrito literário seja empenhado,
submetida, do modo mais cerrado, ao controle rigoroso do vomnm abso-
e para excluir de qualquer empenho as outras artes. Sartre estatui que
luto do rei, paranoica policia religiosa dos tribunais da —:A:.Emuo..
à música, a pintura, a escultura possuem uma caracteristica ontológ
ica Não há diivida: de um ponto de vista histé nemrico,
sempre situa-
diversa da literatura. Como esta última é feita de palavras, ele a cre-
ções de censura, de restrição, de controle e patrulhamento sobre o ato
dita como essencialmente portadora de mensagem, o estilo vindo
como de criar bastam para reduzir as forças da arte. As vezes, ou antes, com
um acompanhamento secundário ao papel principal. Deste modo, o
Ffrequéncia, essas situações N , . iste, no
Sartre terminam por estimular a criação. Existe,
afirma que a literatura pode e deve ser engajada. As outras artes carrega-
“século XX, um caso evidente.
riam uma dimensão emocional “em si”, intrinseca aos préprios
elemen- Logo depois da invenção do cinema sonoro, por .<o.í de 1930, 08
tos plésticos ou sonoros que compõem um quadro ou uma sonata. Isto
produtores de Hollywood decidem estabelecer um nom_.mo de censura
as tornaria incapazes de empenho politico ou social. Uma leitura atual
para controlar a moralidade dos filmes. O cinema wnãn__n R_A::.:.:B
desse pequeno livro, muito agudo, revela o quão sensivel era o debate em
caráter de divertimento um pouco vulgar, afastando o público —.u::_ME..
torno de tais questdes naqueles anos, quando parecia necessirio
encon- mais moralista. Para garantir a presença desse público — mas .»u_uv«_:
trar justificagdes teóricas dentro do que se supunha ser a natureza
de cada para satisfazer às exigências de um puritanismo —ivnam»_...n — cria-se um
atividade artistica, para empenhs-la ou não.
código de moral, conhecido como código Iw.v.m. Esse código era de :._._.m
Em nossos dias, a questio parece adormecida. Poderiamos dizer
extrema pudicicia e muito detalhado. Proibia uwgmnafi.—u por exemplo,
que pouco importa o engajamento, pelo menos no que concern
e A qua- familias compostas por ragas diferentes ou casais dormindo na mesma
lidade do objeto artistico. Trata-se de uma velha discussão: será que
o cama. Impedia-se a exibição do umbigo das mulheres ou que se mumm.moa
artista, aderindo a uma causa politica, consegue produzir grandes obras?
piadas com sacerdotes, cronometrava-se exatamente o numero máximo
Consegue, esta claro. Guernica é o exemplo, no século xx,
do sucesso de segundos que um beijo podia durar. >ww=.? A:Eãe. o cineasta que-
de uma empreitada desse tipo. Mas é interessante notar que o Picasso ria sugerir uma longa duração para um beijo, interrompia, por ==». nw—ao.
dos anos 1950, o que pinta a 4 Guerra e 4 Paz, em Vallauris, por
bela que ele se terminasse diante dos olhos do espectador. Por metonímia, a
que seja a obra, chega a um resultado menos intenso, menos vigoros o plateia imaginava uma prolongação maior do que o filme estava auto-
do que em Guernica. Eram tempos em que ele tentava se submete
r às rizado a expor. '
pressões do Partido Comunista, empenhado numa campanha cuja
pala- Ora, a História constata que o código Hays não bloqueou, an.
vra de ordem era Paz.
modo algum, o surgimento, em Hollywood, de m_.w:mnm e mwnuuo:—..
A História nos revela que a qualidade de uma obra não depende nem
nárias obras-primas. Como os diretores eram cr:mwmow a inventar
daliberdade, nem da exigéncia de empenho: ela depende do modo como
astiicias para iludir as regras absurdas, a criagdo ficava mmna..__u.mu. por
certas circunstincias, em certos acasos, atingem o artista e estimul
am sua essas próprias regras, que exigiam ser ultrapassadas. /nterfúdio é um
produgo. Salvador Dali, com suas posigdes frontal mente provoca doras, dos mais admiráveis filmes de Alfred Hitchcock, datado de 1946. Nele
chegou a dizer que a liberdade é nociva ao artista. Declaração, esta
claro, existe uma célebre sequência, onde um beijo dura muito _,nimp Para
que corre a contrapelo das libertárias tradições modernas. Dalí forneci
a conseguir isso, Hitchcock fez com que Cary n.m—u:— e Ingrid m.m—m..:.»n
um exemplo que lhe era caro. Quando a arte espanhola atingiu seu apo-
se beijassem enquanto o protagonista respondia ao —m_.mmc._a. Eis aquio
geu? No século xvi1, com Velizquez, com Zurbaran, com Murillo,
com que diz Hitchcock numa entrevista concedida a Frangois Truffaut, onde
pintores admirdveis que viviam no periodo em que a Espanha esteve
comenta o aspecto erdtico da sequéncia:
324 Sobre a liberdade na arte
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F.T.: Não falamos o suficiente do amor em seus filmes. Creio que a ausência de censura não é condição necessária para a criação de grandes
partir de Interlidio, consideram-no não apenas como um especialista obras, nem sua presença impede, também, a realização de grandes obras.
do suspense, mas também como um especialista do aspecto físico no Nesse campo, não há regras, nem previsões são possíveis. O sucesso
cinema. ou o fracasso de um clima estimulando a criação permanecem muitas
A.H.: Sim, havia um aspecto fisico nas cenas de amor de Interlúdio e vezes misteriosos. É, por sinal, muito fascinante o fato de que certas cul-
você pensa provavelmente na longa cena de beijo entre Ingrid Bergman turas, em certas épocas, tenham produzido, com grande densidade, obras
e Cary Grant... admiráveis num campo das artes e não em outros. Por exemplo, sob Stá-
F.T.: Sim, e creio me lembrar que a publicidade dizia a propósito dessa lin, o cinema soviético foi vigoroso, e a música também, mas a pintura
cena: “O mais longo beijo da história do cinema...”. foi pífia. Por que um povo, como os holandeses, possui uma pintura tão
L) elevada no século Xv11, mas não uma literatura do mesmo nível? Por que
A.H.: Se eu os tivesse separado um do outro a emoção teria sido per- o Renascimento florentino não deixou música à altura de suas estupendas
dida. Ora, havia, com efeito, ações a cumprir, eles deviam andar até o criações no domínio das artes plásticas? Por que os ingleses, que sempre
telefone que tocava, continuar abraçados durante toda a duração da co- possuíram uma literatura notável, se afirmam, na pintura, apenas a partir
municação, depois um segundo deslocamento os levava até a porta. Eu do século xv111? Por que certos setores das artes entram em ação e outros
sentia que era essencial para eles não se separarem e não romper aquele não entram, numa mesma época, numa mesma cultura? Está claro que
abraço. Dava ao público o grande privilégio de abraçar Cary Grant e é possível enumerar certos fatores, buscar certas causas, mas elas serão
Ingrid Bergman juntos. Era uma espécie de relação a três temporária. sempre insuficientes, sobretudo na compreensão genérica desses mistérios.
Resta que, do ponto de vista da história, a questão da liberdade nas
A intensa dimensão erótica — no caso, com essa consciência de uma certa artes deslocou-se, e questões éticas ou políticas — pelo menos de maneira
perversão envolvendo o público — tem o seu ponto de partida no código direta — deixaram de fazer parte do campo artístico. Quando Chris Ofili
Hays, que controlava a duração dos beijos. Eles não podiam se prolon- é censurado em Nova York, isto não é feito pelas qualidades ou defeitos
gar mais do que tantos segundos. Como fazer para conseguir “o mais de sua arte, mas por razões religiosas. E seus defensores não se levan-
longo beijo da histéria do cinema”? A interdição estimula o génio de tavam para exprimir admiração diante do produto artístico, mas para
Hitchcock, que inventa esse beijo renovando-se antes que os fatidicos erguerem-se em favor da liberdade de expressão.
segundos da censura possam intervir. Se a censura não existisse, está O debate se situa então em outro terreno: o artista tem ou não o
claro que Hichtcock não teria a necessidade de dribla-la como fez: ela direito de expor todo o seu pensamento em nome da liberdade das artes?
foi, portanto, necessaria para a invenção desse prodigioso momento Não se trata, portanto, de uma questão de forma, como ocorria com os
cinematogrifico. impressionistas, que foram atacados porque eram impressionistas, ou
Seu caso não foi o tinico. Ao contrario, é muito fácil constatar o os cubistas, porque eram cubistas. Recapitulemos: nos tempos de Vero-
quanto essas regras limitadoras serviram para estimular a criagio em nese, de Le Brun ou Velázquez, a adesão das artes ao universo político
Hollywood. Mas não é possivel estabelecer uma regra geral. Nem sem- ou religioso era tácita e indiscutível. O mundo, a ordem das coisas — as
pre a censura é positiva para a criagdo, nem sempre ela é negativa. Que “ideologias”, para empregarmos uma palavra bárbara — são confirmados
a censura seja sempre — de um ponto de vista das mais profundas con-
vicções éticas — algo abominável e indesejavel, não há dúvida. Porém, a pressupõe-se uma adesão por reflexão e por escolha. Os românticos, por
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sua vez, trarão a possibilidade da recusa ao poder e à ordem, reivindi- A liberdade conquistada leva assim não só à emergéncia do génio,
carão o direito à crítica, à intervenção do artista no mundo, por meio de mas à construção da imagem do génio. Construir-se artista como génio,
sua arte, para denunciá-lo ou transformá-lo. " dentro do campo marginal da liberdade, estabelecer-se como senhor de
Se esta ideia do objeto artístico que denuncia, que intervém, que cri- um dominio a parte: assim, a propria liberdade deixou de manter uma
tica, se prolonga no século xx, ela aparece, nos dias hoje, por assim dizer, relação dialógica com o mundo para tornar-se interna e fechada no
como uma questão não “atual”. Ocorreu, nela, um deslocamento. Há uma interior da produção de cada criador. É interessante notar que, como
dissociação entre as opiniões do artista e aquilo que sua obra mxwww...m.‘ o aluta pela liberdade nos tempos do neoclassicismo localizava seu obje-
ponto de articulação histérico ocorreu com Coutbet, na metade do século tivo fora da arte, a visada neocléssica instituiu um sistema de deveres
XIX, que abriu uma nova trilha. Courbet, chamado por si préprio de “rea- que se iniciam éticos para resultarem artisticos. Dentro dessa liber-
lista”, foi um artista empenhado politicamente no seu tempo, a ponto de dade, aquilo que poderia se chamar de originalidade criadora é pro-
passar pela prisdo e terminar sua vida como exilado. Mas desvinculou as fundamente reduzido. O artista neocléssico, como os outros homens
atividades politicas pessoais de suas atividades artisticas, fazendo nitida- em suas diversas fungdes, segundo a perspectiva do Iluminismo, sub-
“mente a distinção entre liberdade artistica e liberdade politica. Com ele, mete seu trabalho, sua criação, a regras racionais, regras universais e
a arte não estd mais a servigo de qualquer ideia exterior 2 ela, mas ao ser- eternas, das quais não é possivel escapar, diminuindo o papel da sin-
vigo de si própria, arte. Depois disso, liberdade nas artes m,.mi.mm@rfimmm. gularidade criadora.
€ mais, encontrar um modo especifica interno aos objetos artisticos, sem Os roménticos trouxeram uma atitude oposta: instauraram a liber-
que nenhum critério exterior ao préprio objeto possa intervir. O artista, dade de invenção, cuja exigéncia paradoxal é a de ser livre, cujo coroldrio
aos olhos de si proprio, situa-se acima do seu público. Se, nas situações é o da originalidade necesséria.
de vanguarda, ele escolhe, como Van Gogh, o campo da marginalidade, O artista passa a ter, com eles, o dever de ser livre, e esse dever
€ que esse campo — muito cruel por vérias razdes — mostra-se compen- )\ pode se tornar muito pesado. Chega a conduzir 3 perda dos pontos de
sador, porque nele o artista é senhor absoluto de sua liberdade criadora. referéncia, à perda das regras do jogo artistico. Assim, na realidade, o
Se o artista atinge o sucesso sem sair do livre universo préprio à artista elimina qualquer possibilidade de transgressio, ja que não há mais
marginalidade, isto significa que ele é reconhecido no seu patamar supe- limites ou fronteiras, já que não há mais nada barrando os seus processos
rior e passaré a ser venerado como um demiurgo. É o caso, mais evidente de criação artistica.
e mais extremo talvez, do compositor Richard Wagner. Wagnet'se situa Há um fenômeno social curioso, ligado a este ponto. Antigas mani-
nas margens das produgdes musicais do seu tempo, e consegue ser reco- festages da vanguarda — desde a batalha do Hernani, de Victor Hugo,
nhecido dentro dessa marginalidade. Ele tira uma consequéncia lógica. que causa escandalo no mundo do teatro parisiense, em 1830, até os
Já que, contra tudo e contra todos, consagrou-se inteiramente 2 arte, impressionistas, de 1874, ou a Sagração da primavera, de Stravinski, em
colocando-a antes de qualquer coisa, e já que, com isso, atingiu alturas 1913 — provocam abalos no público por meio de grandes escindalos. Eles
vertiginosas no dominio da criagéo, abrindo caminhos insuspeitados, é ocorrem não em nome de ideias politicas, não em nome de ideias sociais,
o público, é toda a humanidade que lhe deve admiragio, louvor, culto, mas em nome de ideias artisticas, que se configuram de um modo dife-
dinheiro, luxo, bem-estar, um teatro fora do comum, porque ele se tor- rente daquele que o público pensava ser a arte.
nou o supremo sacerdote da arte, génio trazendo um beneficio único e Curiosamente, essa incompreensao por parte do piiblico terminou
insubstituivel para o mundo. por tornar-se uma espécie de termbmetro, ou melhor, uma garantia, um
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na arte 329
sinal de vigor criativo. O tempo mostrou que os escandalizados esta- ele proprio havia instaurado. Necessitando de uma ancoragem, criou a
vam errados, que Hugo, Cézanne, Wagner ou Duchamp — isto é, aquilo teoria dodecafônica da construção musical.
que chamamos de “vanguarda” — entraram para o panteão da geniali- Existiu, desde o romantismo, um deslocamento sub-repticio do
dade. Portanto, se o artista mostra-se capaz de provocar reações raivosas objeto produzido para o gesto que o produz. Nesse gesto, as referéncias
no piiblico, ótimo; ele estd, por esse meio, identificando-se, diante de si podem se perder, inclusive as referéncias materiais. Das emogdes roménti-
mesmo e dos que o admiram, como original e criador. cas até o gesto de Marcel Duchamp — que transforma um objeto qualquer
O problema é que, com o passar do tempo, o piiblico que reagia em arte simplesmente pelo fato de colocé-lo numa exposigio ou numa sala
mal, de maneira escandalosa, s novidades, aprendeu a “bem” reagir. Ele de museu — e do porta-garrafas de Duchamp aos Aappenings, a imateria-
entendeu os mecanismos, percebeu que, para mostrar-se intelectualmente lidade das artes é frequente no mundo contemporéneo. O sentimento, a
sofisticado, é melhor não mais se escandalizar. Educou-se para assimi- gratuidade do ato, o poder do gesto terminaram por se institucionalizar,
lar aquilo que era afronta, sabe agora rir com indulgéncia daqueles que, por se incorporar no percurso recente da histéria das artes. Eles abriram
por exemplo, riram dos impressionistas em 1874. Metaboliza de antemão caminho para a imaterialidade, que representa a situação de mais extrema
quaisquer novidades. Sabe mesmo, por vezes, com sinceridade, identificar liberdade, já que os artistas não dependem mais sequer dos limites con-
e saborear essas mesmas novidades. cretos impostos & obra. Estes modos de ser, anunciados pelo romantismo,
Com isso tudo, tornou-se mais e mais insensivel às provocagdes. extremaram-se e banalizaram-se pelas situagdes de vanguarda.
Provocar escindalos passou a ser cada vez mais dificil. Paradoxo: o artista, Vários pensadores do século xx, como Eliot ou Alain —e, no Brasil,
a0 acender reações raivosas no piiblico, sabe, segundo as experiéncias das Mirio de Andrade — opuseram-se, teoricamente, a essa suprema liber-
passadas vanguardas, que está no bom caminho, que está criando, que tação do artista diante de sua obra, pregando, cada qual à sua moda, um
esta produzindo novidades. Mas, como o piiblico aprendeu a manha, a retorno Aquilo que se poderia chamar de artesanato. É uma reação: já
provocagdo institucionalizou-se, e é raro que o escindalo ocorra. Ainda que os artistas estdo trabalhando com gestos imateriais, vamos pregar,
hoje, alguns artistas buscam desesperada, pateticamente provocar escan- a0 contrério, a ética do artesão.
dalos. Fazem assim tentando projetar-se como precursores, e confirma- Eliot, num ensaio de 1917, intitulado “A tradição e o talento pes-
rem a si mesmos como criadores. São modos sociais, coletivos, testemu- soal”, escreve:?
nhando que, cada vez mais, o artista encontra-se prisioneiro da liberdade
que ele próprio instituiu.
O inicio do século xx viveu um momento intenso de experimen- A tarefa do poeta não é encontrar emoções novas, mas empregar emo-
tações sem freios nas artes. Elas entrariam em refluxo duas ou trés déca- ções ordindrias e, trabalhando-as em sua poesia, exprimir sentimentos
das depois, por volta de 1920 ou 1930. Mas no inicio do século há uma que não se encontram, de modo algum, nas emoções reais. [...] Há,
explosão de obras que surgem fora de todos os parimetros. Por volta de na composição de um poema, uma grande parte de atos conscientes
1910, Schoenberg renuncia a todas as normas de construção musical, a e deliberados. Na realidade, o mau poeta é, habitualmente, incons-
toda referéncia tonal. É assim que ele vai criar uma de suas composições
atonais mais célebres, o Pierrot lunaire. Mas, a partir de 1920, esse mesmo 3. T. S. Eliot, “Tradition and the Individual Talent”, in 7he Sacred Wood, 1920 [ed. bras.:
Schoenberg passa a buscar regras estritas de composição por um novo “Tradição e talento individual”, in T. , Ensaios, trad. Ivan Junqueira. São Paulo: Art
método, que ele inventa, de maneira a limitar aquela plena liberdade que Editora, 1989].
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na arte 331
ciente onde ele deveria ser consciente, e consciente lá onde ele deveria Como manifesto, um pouco
ser inconsciente. Esses dois erros tendem a torná-lo “pessoal”. A poesia
não é rédea solta à emoção; não é a expressão de uma personalidade,
mas uma maneira de escapar à personalidade. Mas, está claro, apenas
aqueles que possuem personalidade e emoções sabem o que significa
querer escapar delas.

Transferir o interesse do poeta para o da poesia é um objetivo louvável;
pois isso conduziria a uma apreciação mais justa da verdadeira poe-
sia, boa ou ruim. [...] A emoção devida à arte é impessoal. E o poeta A extraordindria complexidade da cultura determina problemas sérios
não pode atingir essa impessoalidade sem se entregar completamente para discorrer sobre ela. Porque não pode ser concebida de modo uni~
à obra a construir. voco, nem em mão Gnica, nem como instrumento.
Talvez fosse bom comegar por estabelecer algumas configura-
Alain, no capitulo vi1 do livro 1, intitulado “De la matiére”, em seu ções. Não faz muito tempo, dizia-se repetidamente que “tudo é cultura”.
Systéme des beaux-arts, de 1920, desenvolverd uma posição semelhante: Comida é cultura, futebol é cultura, sapato é cultura. Essa definição larga
deriva de um sentido antropolégico: toda produção, material ou imaterial,
Já que é evidente que a inspiragdo ndo forma nada sem matéria, é ne- é sem dúvida cultura, e isso permite que anlises sejam feitas para uma
cessdrio ao artista, na origem das artes e sempre, algum primeiro ob- compreensdo dos modos como uma sociedade se constitui e age.
Jeto ou alguma primeira limitação [contrainte] efetiva, sobre o qual ele No entanto, ao dizer “sapato é cultura”, eu não estou repetindo a
exerce primeiro sua percepgdo, como o lugar e as pedras para o arqui- evidéncia de que os sapatos fazem parte da cultura de tal ou qual socie-
teto. [...] O artista é definido por essas coisas, de modo muito diverso dade. Isto seria um truismo, uma verdade que não precisa ser enunciada.
da fantasia. Porque todo artista percebe e é ativo, sempre artesão nisso. Eu a enuncio, porém, insisto na afirmagiio, e, ao fazé-lo, introduzo uma
Mais atento ao objeto do que às suas proprias paixbes, poder-se-ia dizer ambiguidade. A ambiguidade surge porque a ideia de cultura tem um
quase passional contra as paixées [...] Em suma, a lei suprema da outro sentido, elevado. Ela se refere à constituigio de um conjunto com-
invengdo humana € que só se inventa trabalhando. Artesdo, primeiro. plexo de conhecimentos, de reflexdes, de criações intelectuais e artisticas.
Dessa maneira, a filosofia é cultura, por exemplo. Futebol, não. Assim, ao
São apelos que participam dos momentos pendulares, rapidamente esbo- afirmar “sapato é cultura”, “futebol é cultura”, “comida é cultura”, eu
gados aqui, em que a liberdade do artista surge na Histéria não como estou sugerindo que eles são tão nobres e tio complexos quanto a filoso-
um absoluto ou como um abstrato; nem sempre como amiga, nem sem- fia, a historia, a arquitetura, os romances ou as sinfonias.
pre como inimiga; às vezes desejada, as vezes incômoda. Não existem Portanto, antes de prosseguirmos, é preciso evitar essa ambiguidade
melhores lições do que as da Histéria, e a liberdade nas artes, dentro que possui um caréter demagogico, de falso “enobrecimento”. Sapato é
delas, deixa de ser um mito emocional ou teérico, a ser alcangado fora um elemento do vestuério; futebol é um esporte; comida, por mais sofisti-
do gesto artistico, para tornar-se, exatamente, um resultado desse gesto. cada, é uma exigéncia fisica de sobrevivéncia. Eles podem entrar no campo
da cultura, se estiverem num filme, se forem motivo para um quadro ou
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