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ALEXANDRE LINCK VARGAS

A MORTE DO HOMEM NO MORCEGO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ci-


ências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa
Catarina como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Ciências da Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Guimarães Soares.

Palhoça
2007
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ALEXANDRE LINCK VARGAS

A MORTE DO HOMEM NO MORCEGO

Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção do tí-


tulo de Mestre em Ciências da Linguagem e aprovada
em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Ciências
da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catari-
na.

Palhoça, 05 de julho de 2007.

______________________________________________________
Professor e orientador Luiz Felipe Guimarães Soares, Dr.
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL
______________________________________________________
Prof. Oswaldo Giacoia Junior, Dr.
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
______________________________________________________
Prof. Antônio Carlos Gonçalves dos Santos, Dr.
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL
______________________________________________________
Maricélia de Morais, Secretária
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL
À minha avó Judith, minha mãe Ana e meu pai
Paulinho que me propiciaram a capacidade de
narrar universos fantásticos... e um muitíssimo
obrigado à Jenifer e ao amigo Felipe que tive-
ram uma enorme paciência em ouvir tais mul-
tiversos...
(Desenho de Frank Miller para a edição de aniversário dos 20 anos de O Cavaleiro das Trevas, 2006).
RESUMO

Apontar o que pode ou não haver da morte do homem – no sentido que Foucault percebe em
Nietzsche – na personagem Batman, analisando diferentes momentos do homem-morcego nos
quadrinhos e no cinema. Na busca de uma outra leitura, barthesiana, sob outro olhar ao passa-
do, benjaminiano, direciono-me a desconhecidos caminhos, na ética de um leitor com muita
vontade de perceber um Outro morcego. Nessa aventura, nessa resistência deleuzeana, procu-
ro aquilo de irredutível que possa superar o homem. Pela leitura do morcego, busco prosse-
guir para além do homem – na potência do infinito porvir, ainda que num quadrinho envelhe-
cido de uma história de super-herói.

Palavras-chave: Homem. Morcego. Übermensch.


ABSTRACT

To indicate what there may (or may not) be of the death of man – in the sense Foucault reads
in Nietzsche – in the character Batman, by analyzing several moments of that bat/man in com-
ics and film. In my quest for another reading – a Barthesian reading –, from another point of
view regarding the past – a Benajminian reading –, I tread unknown ways, and undertake the
ethics of a reader absolutely invested of the will to find anOther bat. In such an adventure, in
this Deleuzean resistance, I look for something irreducible that might overcome man. By
reading the bat, I try to proceed beyond man – through the Nietzschean power of an endless
future, even though in a simple frame on a torn, poor comic book.

Keywords: Man. Bat. Übermensch.


SUMÁRIO

1 O MORCEGO ..................................................................................................................................8
1.1 PRIMEIRA CONSIDERAÇÃO: UMA APRESENTAÇÃO ....................................................................11
1.2 SEGUNDA CONSIDERAÇÃO: ALÇANDO VÔO... ............................................................................14
1.3 TERCEIRA CONSIDERAÇÃO: UMA CRISE SE ANUNCIA ...............................................................20
2 A MORTE DO HOMEM ..............................................................................................................23
2.1 A FINITUDE DO HOMEM ...............................................................................................................25
2.2 A QUEDA DO HOMEM ...................................................................................................................32
3 A MÁSCARA DO MORCEGO ....................................................................................................37
3.1 GÊNESIS ........................................................................................................................................39
3.2 ECOS DA CAVERNA... ...................................................................................................................45
3.3 O ROSTO É A MÁSCARA ...............................................................................................................51
3.4 A MÁSCARA É A VERDADE ...........................................................................................................57
4 A SOMBRA DO MORCEGO.......................................................................................................66
4.1 UM DELÍRIO SOCIAL ....................................................................................................................67
4.2 A PIADA MORTAL .........................................................................................................................70
4.3 DOIS LADOS DA MOEDA ...............................................................................................................77
4.4 DISTINTO E OBSCURO ..................................................................................................................83
4.5 NO ASILO DO REAL ......................................................................................................................88
5 A LENDA DO MORCEGO ..........................................................................................................96
5.1 O CAVALEIRO DAS TREVAS .........................................................................................................97
5.2 O HOMEM DE AÇO......................................................................................................................102
5.3 ALÉM-DO-MORCEGO .................................................................................................................109
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A INQUIETUDE ......................................................................114
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................117
ANEXOS .............................................................................................................................................122
8

1 O MORCEGO

Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao


brincar (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2005, P. 65).

Não lembro a data exata em que tive meu primeiro contato com a personagem

Batman. Nas minhas recordações, ele nasceu junto comigo. Sempre foi meu preferido. A se-

gunda posição por vezes já foi alternada pelo Flash, He-man, as Tartarugas Ninjas... mas

Batman nunca deixou o pedestal. Os anos 1980 foram uma época propícia para uma criança

se apaixonar pelo super-herói: os quadrinhos do morcego estavam numa elogiada fase, sua

popularidade em alta, e em 1989 estreou o longa-metragem, com imensa repercussão na mí-

dia.

Na televisão ainda passava o cômico seriado dos anos 1960, que para mim era al-

go muito sério. Desejava ser tão inteligente como demonstrava aquele Batman, que em deter-

minado episódio desmascarou um vilão disfarçado de Comissário Gordon – a prova era que o

falso Gordon pegava seu lenço com a mão esquerda, enquanto o verdadeiro era destro... algo

assim, ou vice versa.

Nos final dos anos 1980 e início dos 1990 comecei a ter meus primeiros contatos

com os quadrinhos, em grande parte devido a Batman: the animated series, iniciado em 1992

e que até hoje talvez seja a adaptação audiovisual mais próxima das hqs. Mesmo assim tive

certa resistência, afinal Batman já estava acompanhado de um terceiro Robin nos quadrinhos,

enquanto pelos desenhos e filmes eu acabara de ser apresentado ao primeiro.

Em 1995, nas férias de inverno que passava com minha avó Judith Linck, no inte-

rior do Rio Grande do Sul, tive contato com uma edição histórica do Batman chamada A que-

da do morcego. Mesmo estranhando o que li, gostei muito. A partir disso comecei a comprar

edições esporádicas e procurava me informar do que havia acontecido na vida do herói nas
9

hqs. Além de meu pai que corria atrás dos brinquedos, e minha mãe que me levava quase todo

dia após a aula para uma banca, minha avó acabou sendo talvez a maior responsável pelo meu

vício nos quadrinhos de heróis. Mesmo com pouco dinheiro e sem saber ler, ela me dava uma

boa quantia para que eu fosse à única banca de sua cidade gastar tudo em gibis.

No verão de 1998, numa melancólica praia gaúcha em que passava as férias, com-

prei uma edição aleatória de Batman que vi numa prateleira. Gostei tanto que comecei a cole-

cionar. Percebi que gostava mais dos quadrinhos do Batman do que das produções em outras

mídias, e até hoje tenho conhecimento de praticamente tudo lançado sobre ele no Brasil desde

essa data. Quando deixei de adquirir algo acabou sendo por falta de dinheiro, ou de interesse –

o que é bastante raro. Em 2007, março, estimulado também pela pesquisa no mestrado, come-

cei a vasculhar, pela internet, hqs que nunca tinha tido a oportunidade de ler. Para minha sur-

presa, encontrei quase tudo, e no momento em que digito este texto, estou na minha conexão

discada baixando mais um gibi. Sempre volto a ser criança quando leio mais uma hq ou quan-

do estréia mais um filme, e como fiz em todos os outros, procuro estar na primeira sessão,

para acabar de vez com uma contagem regressiva que às vezes se inicia anos antes.

Havia, e creio que ainda há, nas faculdades de cinema, uma espécie de rivalidade

entre aqueles que só gostam do “cinema de entretenimento” e dos que só admitem assistir

“cinema de arte”. Sempre achei estranha essa divisão, mas na época em que havia ingressado

na graduação eu não possuía argumentos, nem interesse suficiente para concordar ou refutar

das nomenclaturas. Porém, segundo colegas, eu passei grande parte da faculdade defendendo

a idéia de que uma boa interpretação não precisava ser somente possível na leitura dos filmes

do Godard, ou do Tarkovski – olhares muito interessantes podiam partir dos mais banais fil-

mes, entre eles, os produzidos pelos próprios alunos que em muito eram marginalizados pelos

professores. Infantilmente, em meio a esses egos orgulhosos e sensíveis que compõem um


10

universo artístico, eu lia, quase que escondido, as hqs do Batman – precisava manter minha

reputação de artista anti-sociedade do espetáculo.

Com o tempo, o pensamento vai se transformando. Ao longo do mestrado, esses

receios foram desaparecendo aos poucos. Percebi o óbvio: a leitura não está no texto, está no

leitor que a faz acontecer... e, se for para eu ter que ler alguma coisa, nada melhor que seja

aquilo que me dá algum gozo, que faça parte das minhas obsessões. Por isso, o primeiro pro-

jeto de dissertação se chamava “A morte do homem no cinema”, onde, analisando 8 ½, do

Fellini, os dois Solaris, de Tarkovski, e Sodebergh, e os cinco filmes Batman, iria buscar e

apontar no cinema, a morte do homem que Foucault – e agora eu também – vê em Nietzsche.

Minha principal referência de abordagem sempre foi a forma com que Deleuze lê

diversos filmes nos seus livros sobre cinema. Ele elabora poderosos conceitos e ferramentas

poéticas, ao mesmo tempo em que as descarta e as joga no lixo quando parte para mais outra

leitura, refazendo todo seu trabalho ao infinito, livre de qualquer ontologia. Eu estava decidi-

do que era assim que deveria investigar meu objeto... mas havia um problema – as leituras não

aconteciam. Já era fim de janeiro de 2007, meu prazo era de apenas mais dois meses e eu ain-

da não havia escrito nada. Relendo alguns quadrinhos do Batman, no pretexto de estar pesqui-

sando – mentira, queria apenas me distrair –, lembrei de que no primeiro minuto de 2007,

durante abraços e comemorações, um morcego passou voando diante de mim – ele parecia

não se importar comigo, devia estar apenas atrás de alimento. Resolvi permitir que aquele

encontro me impressionasse: decidi acatar aquele momento como uma possibilidade do meu

destino. Nada melhor do que decidir um objeto pela mera intuição quando se pretende matar o

conceito de homem. Afinal, de onde vem a intuição?

Nietzsche aponta como o intuir foi expulso, como não é possível a intuição existir

para aquilo que se entende enquanto homem. Não há nenhuma certeza verificável na intuição,

ela é descontrolada e, por vezes, inexplicável – o homem não se vê na intuição, e por isso, ela
11

foi banida por ele, largada na lista dos vilões de segunda ordem, como a ilusão de ótica, a alu-

cinação passageira...

Por esse encontro intuitivo com o morcego, comecei a imaginar a possibilidade de

enxergar algo na ótica de um morcego, prestes a se recolher entre suas asas, querendo dormir

para poder sonhar. Somente observando tudo de cabeça para baixo, pensei, talvez, eu consiga

destruir de vez a realidade, voando para além de mim mesmo, para além do homem, no obje-

tivo de, por um outro olhar, me aprofundar no conceito de morte do homem, entendendo o

acontecimento homem e o porquê da urgência de sua queda. Para essa tarefa, nada melhor do

que um morcego: se por um lado, enquanto animal selvagem ele toma o distanciamento ne-

cessário perante o homem, por outro, enquanto objeto de exploração da cultura de massa, co-

mo Batman, ele invadiu nossas cidades, nossos quartos e está sempre a espreita naquele canto

escuro de nossa casa. Até que ponto o morcego e o homem, em conflito em um homem-

morcego, podem abrir uma Outra passagem na caverna da tradição filosófica – seduzindo o

cego homem na escuridão, o morcego prepara sua refeição na morte do homem no morcego.

1.1 PRIMEIRA CONSIDERAÇÃO: UMA APRESENTAÇÃO

Os morcegos – ordem Chiroptera – são os únicos mamíferos capazes de voar.

Representam um quarto de toda a fauna de mamíferos do mundo, são mais de 1100 espécies.

Há grande variedade de formas e tamanhos de morcegos, com envergaduras variando de 5

cm até 2 m. Também possuem privilegiada capacidade de adaptação a qualquer ambiente e

ampla variedade de hábitos alimentares – a maior entre os mamíferos –, pois podem se

alimentar de frutas, néctar, pólen, insetos, artrópodes, pequenos vertebrados – inclusive rãs –

e peixes. Dessa maneira contribuem substancialmente para o equilíbrio dos ecossistemas, pois
12

atuam como polinizadores, dispersores de sementes e controladores das populações de

insetos. Somente três espécies se alimentam de sangue: os morcegos hematófagos – vampiros

–, encontrados apenas na América Latina e no sul do México1.

A asa dos morcegos é cheia de delicados vasos sanguíneos, fibras musculares e

nervos. Em temperaturas frias, os morcegos enrolam-se em suas próprias asas como num

casaco. No calor eles as expandem. O polegar e às vezes o segundo dedo dos membros

anteriores têm garras, bem como os cinco dedos dos membros posteriores. As garras traseiras

permitem aos morcegos agarrarem-se aos galhos ou saliências. Todos os morcegos são ativos

à noite ou ao crepúsculo. Seus sentidos de olfato e audição são excelentes, e também possuem

uma boa visão. Os dentes são muito agudos, capazes de atravessar a armadura de quitina dos

insetos ou a casca das frutas.

Os morcegos são dotados do sentido de ecolocalização – ou biosonar –, voando

por entre obstáculos em locais escuros como cavernas. Eles emitem ondas ultra-sônicas pelas

narinas ou pela boca, dependendo da espécie. Essas ondas atingem obstáculos no ambiente e

voltam na forma de ecos com freqüência menor. Esses ecos são percebidos pelo morcego.

Com base no tempo que os ecos demoram para voltar, nas direções de onde vieram e nas

direções de onde nenhum eco veio, os morcegos sentem se há obstáculos no caminho, sentem

também as distâncias, as formas e as velocidades relativas entre eles, no caso de insetos

voadores que servem de alimento, por exemplo. A eficiência da ecolocalização varia entre as

espécies de morcegos – os de hábito alimentar insetívoro, ou predadores de insetos em geral,

possuem esse sistema mais desenvolvido2.

Os morcegos-vampiros possuem ainda um sétimo sentido, a termorrecepção. Gra-

ças a estruturas presentes em seu focinho, eles são capazes de perceber ondas de calor à curta

1
Informações retiradas de textos presentes nos sites: http://pt.wikipedia.org/wiki/morcego e
http://www.casadosmorcegos.org/
2
Idem.
13

distância. Com isso eles conseguem sentir quais vasos sangüíneos estão mais superficiais na

pele do animal a ser atacado. Deste modo, dão mordidas menos doloridas e evitam acordar a

presa, que poderia reagir ao ataque. Além disso, os morcegos têm dentes muito pequenos e

podem morder uma pessoa adormecida sem que sejam sentidos, graças a uma substância

anestésica que espelem na saliva.

Os morcegos vivem bastante em relação a mamíferos do mesmo porte e se repro-

duzem bem lentamente. Algumas fêmeas se tornam férteis logo após darem à luz seus filhotes

– em outras acontece de alguns zigotos não se implantarem prontamente no útero após a ferti-

lização, sendo armazenados, até que o organismo deixe a gravidez prosseguir em uma época

mais favorável, dependendo da oferta de alimentos e da temperatura.

Um morcego recém-nascido se agarra à pele da mãe e é transportado, embora logo

se torne grande demais para isto. Os morcegos freqüentemente formam colônias-berçário,

com muitas fêmeas dando à luz na mesma área, seja uma caverna, um oco de árvore ou uma

cavidade numa construção. A gestação dos vampiros dura cerca de sete meses.

A habilidade de voar é congênita, mas logo após o nascimento as asas são

pequenas demais. Os jovens morcegos se tornam independentes de seis semanas a quatro

meses, dependendo da espécie. Com dois anos os morcegos estão sexualmente maduros. A

expectativa de vida do morcego vai de dez a trinta anos, também variando conforme a

espécie.

No Brasil, os morcegos são protegidos pelo Ibama, sendo proibido seu extermínio,

permite-se apenas sua remoção. Mais do que protegido, o morcego é sagrado em Tonga, na

África Ocidental e na Bósnia, e freqüentemente é considerado a “manifestação física de uma

alma separada”.3 São também um símbolo de fantasmas, morte e doença. Entre alguns nativos

americanos, como os Creeks, Cherokees e Apaches, o morcego é um espírito embusteiro. A

3
Idem.
14

tradição chinesa afirma que o morcego é um símbolo de longevidade e felicidade, bem como

na Polônia, na região da Macedônia e entre os Árabes e Kwakiutls. Na cultura de massa

ocidental, o morcego é freqüentemente associado à noite e à sua natureza proibida. É um dos

animais básicos associados com as personagens ficcionais da noite, tanto vilões como

Drácula, quanto heróis como Batman.

De maneira geral, há poucos animais capazes de caçar um morcego. Os piores

inimigos dos morcegos são os parasitas. As membranas, com seus vasos sangüíneos, são

fontes ideais de alimento para pulgas e carrapatos. Alguns grupos de insetos sugam apenas

sangue de morcego, por exemplo as moscas-de-morcego. Nas cavernas os morcegos ficam

pendurados muito próximos, portanto é fácil para os parasitas infestar novos hospedeiros.

Ainda que o perigo se resuma aos locais onde a raiva é endêmica, dos poucos casos de raiva

relatados anualmente, a maioria é causada por mordidas de morcegos. Embora a maioria dos

morcegos não tenha raiva, os que têm podem ficar pesados, desorientados, incapazes de voar,

o que torna mais provável que entrem em contato com seres humanos.

Os morcegos se aproximam do homem somente na vulnerabilidade.

1.2 SEGUNDA CONSIDERAÇÃO: ALÇANDO VÔO...

Roland Barthes em “Texto (teoria do)” parte da noção de que tudo é um texto, de

que tudo pode ser lido: um filme, uma frase, um livro inteiro, uma música, uma roupa é um

texto. Diferentemente de uma obra, que é algo físico, algo que se segura na mão, como uma

capinha de Dvd, o texto é aquilo que se segura na linguagem.

[A teoria do texto] não considera mais as obras como simples “mensagens”, ou


mesmo “enunciados” (ou seja, produtos finitos, cujo destino estaria fechado uma vez
15

que eles fossem emitidos), mas como produções perpétuas, enunciações, através das
quais o sujeito continua a debater-se; esse sujeito é o do autor sem dúvida, mas tam-
bém o do leitor. A teoria do texto aduz portanto a promoção de um novo objeto epis-
temológico: a leitura. Não apenas a teoria do texto expande ao infinito as liberdades
da leitura, como também insiste muito na equivalência (produtiva) da escrita e da
leitura (p.282-283).

Essa leitura acontece através da produtividade do texto:

O texto é uma produtividade. Isso não quer dizer produto de um trabalho, mas sim o
teatro de uma produção em que se reúnem o produtor do texto e seu leitor: o texto
“trabalha”, a cada momento e por qualquer lado pelo qual seja tomado; mesmo es-
crito (fixado), ele não pára de trabalhar, de manter um processo de produção. O texto
trabalha o quê? A língua. (p.271).

A produtividade não se limita a condições históricas ou autorais: o texto, enquanto

algo vivente, sempre se recria e se enuncia com novos olhares. Não há prisões do sentido,

delimitações de atribuição de estilo ou condições de produção – como se um texto da cultura

de massa não pudesse ser lido de outra forma, não pudesse ser outra coisa. Não há qualquer

restrição de intencionalidade. O autor, depois de exercido seu tempo de tirania e escravidão

sobre as linguagens na escrita de um texto, transforma-se em mais um dos leitores e, ao ser

um bom leitor, sempre dará múltiplas leituras ao texto que não mais lhe pertence. O texto terá

pelo menos uma leitura diferente para cada leitor em diferentes tempos. Outras significações

estarão sempre a surgir, “mesmo que o autor do texto não os tenha previsto e mesmo que fos-

se historicamente impossível prevê-los: o significante pertence a todos; é o texto que, na ver-

dade, trabalha incansavelmente, não o artista ou o consumidor (p. 271-272)”. Barthes acres-

centa:

Mas tão logo o texto é concebido como uma produção (e não mais um produto), a
significação já não é conceito adequado. (...) Com mais razão, quando o texto é lido
(ou escrito) como um jogo móvel de significantes, sem referência possível a um ou a
vários significados fixos, torna-se necessário distinguir bem a significação, que per-
tence ao plano do produto, do enunciado, da comunicação, e o trabalho significante,
que, por sua vez, pertence ao plano da produção, da enunciação, da simbolização: é
esse trabalho que se chama significância (p. 272-273).
16

Ao procurar um significado de um texto, executamos um trabalho de decifração,

revelação, ligado diretamente à noção de verdade do sentido. Esta atividade é muito comum

na leitura dos textos sagrados, onde não interessa ao fiel ler conforme apreende, mas procurar

aquilo que “está por trás” das palavras escritas.

É a esse olhar da tradição ontológica, do ser, da essência oculta e sublime, que

Barthes se contrapõe: o texto, enquanto produtividade, terá infinitas significâncias, atribuições

de sentidos e valorações, tantas quantas o leitor conseguir – sabendo-o ou não. A significância

– “clarão, fulguração imprevisível dos infinitos de linguagem (p.279)” – torna-se a capacidade

de expor o texto como vítima da eterna produtividade das diferentes leituras. Por isso, em

determinado ponto, até mesmo os leitores da tradição ontológica praticam um olhar, mais po-

bre, da significância, mesmo que não a percebam: na procura de uma verdade que nunca che-

ga, eles admitem o infinito do texto, toda vez que supõem uma nova busca de leitura verda-

deira – basta ver, por exemplo, a heterogeneidade das religiões cristãs fundadas sobre uma

mesma Bíblia.

Nesta incapacidade de redução, impossibilidade do fim da produtividade, habili-

dade de instigar as significâncias, o texto torna-se um ato de resistência deleuzeano: algo que

não se enquadra na pergunta “o que quer dizer?” nem na resposta “quero dizer isto...”, algo

que resiste a qualquer tipo de delimitação, numeração, conjunto finito de olhares.

Gilles Deleuze, em “O ato da criação”, aponta uma distinção entre arte e comuni-

cação: comunicação, para Deleuze, é a transmissão e a propagação de uma informação que

partiria de um emissor, destinado a um receptor. A informação é “um conjunto de palavras de


17

ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Informar é fazer

circular uma palavra de ordem”.4

Essa noção está fortemente enraizada na cultura de massa: um espectador comum

assiste diariamente a uma enxurrada de informações vindas por todos os meios de comunica-

ção, fazendo circular diversas palavras de ordem. Inúmeras vezes esse observador não tem a

menor idéia do que pode vir a fazer com elas. A informação, depois de entendida, perde sua

utilidade – o compreendido não tem mais serventia. Por isso torna-se insensato reler livros e

rever filmes: quando algo torna-se uma palavra de ordem, não possui mais qualquer produti-

vidade, basta apenas crer no informado e desconsiderar qualquer outra coisa que fuja do limite

do controle do sentido. Nessa perspectiva, tem sua razão o dito popular segundo o qual nada é

mais velho do que o jornal de notícias de ontem.

Na comunicação, a única chance de se opor é através da contra-informação. Nas

artes, a contra-informação por si só tem pouca serventia – porém quando ela se transforma em

um ato de resistência se faz toda a diferença. Com a arte, diz Deleuze, acontece um outro o-

lhar: a arte não é um instrumento da comunicação, em nada ela comunica ou informa. “Toda

obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo.”

A resistência da arte se dá como aquilo que não pode ser controlado, domesticado, aquilo que

escapa de qualquer sentido, que não pertence a um determinado público. Arte é aquilo que se

lança no porvir, que não se limita, que pode resistir a qualquer forma de controle, que sempre

está à espera de mais uma outra leitura.

Contra a tradição de controle da comunicação, a obra de arte surge como aquilo

que rompe com um projeto ordenado, resistindo num potente ato, incapaz de ser reduzido, de

ser categorizado, de ser silenciado. As noções deleuzeanas de arte, e barthesianas de texto, só

podem atingir sua riqueza, sua pluralidade, infinito devir, quando, proporcionalmente, se

4
Folha de São Paulo (Mais!). São Paulo, 27 de junho de 1999. p. 5.4-5.5.
18

transformam num ato de resistência equivalente a uma outra leitura, que caminha por fora das

finitudes já expostas.

Com isso, além da importância política da resistência diante das limitações impos-

tas pela tradição, a leitura que resiste aponta novas potencialidades textuais nas obras de arte.

Livre de qualquer ontologia, de essências definidoras, históricas ou de características conven-

cionais, a arte pode ser qualquer coisa. A aparição de mais um olhar, de mais uma leitura que

resiste a todas as outras já declaradas, devolve a potência, restabelece a resistência daquilo

que jamais cessa de ser artístico – como o desenho de um cachimbo que nunca pára de poder

vir a ser outras coisas em “Isto não é um cachimbo”, de Magritte. O poder de uma artisticida-

de não está na obra, mas no leitor.

Ao considerarmos tantos jogos de linguagem presentes na leitura, podemos, tal-

vez, entender então como o morcego tornou-se tão rico para as diferentes culturas que se de-

ram o trabalho de lhe atribuir alguma riqueza, seja biológica, seja simbólica. Será num traba-

lho parecido com minha primeira consideração, na atribuição de valores e significados ao

morcego, em cruzamento com o conceito de leitura e arte que nesta segunda consideração

desenvolvo, que, no decorrer desta dissertação, me deterei na figura do Batman, buscando

atribuir-lhe alguma significância, procurando o que pode haver de irredutível, resistente, que

produtividades podem surgir no trabalho com a cavernosa personagem.

Batman, surgido oficialmente nos quadrinhos em 1939, em 1943 estreava sua

primeira série no cinema com grande sucesso. Depois disto vieram desenhos animados, lon-

gas-metragens, brinquedos, videogames, grandes quadros, esculturas e todo o tipo de produto

envolvendo a logomarca do homem-morcego. Batman é um fruto da era da reprodutibilidade

técnica, da cultura de massa do século XX – e agora também do século XXI. Quase tudo o

que é produzido sobre ele é feito com base em pesquisas de mercado e na expectativa de a-

gradar ou atender algum público – de preferência, a grande público.


19

Mesmo levando em conta que Batman é limitado por suas condições de produção,

engaiolado na necessidade de inclusão no senso comum e na obrigação de agradá-lo, o ho-

mem-morcego ainda pode conseguir alçar longos vôos na interpretação, na produtividade,

superando a própria mediocridade dos meios que o criou. A finitude editorial de Batman não é

capaz de impedir que surjam diferentes leituras sobre a personagem. Se eu pensasse o contrá-

rio, considerasse Batman uma arte menor e indigna, e por isso, improdutiva, então estaria

sendo eu, a personagem limitada...

Quero, encorajado por Benjamin, encontrar alguma significância que caminhe pa-

ra além daquilo que já se sabe sobre um homem-morcego.

A distração e o recolhimento representam um contraste que pode ser assim formula-


do: quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dis-
solve (...). A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, en-
volve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo (BENJAMIN, 1986, p.
193).

Entre as possibilidades de leitura da cultura de massa, entre a distração e o reco-

lhimento, apontados por Benjamin, leio Batman nesta dissertação pela segunda via. Ao suge-

rir associar Batman com a morte do homem – principalmente em Nietzsche –, procuro escapar

da estetização da política praticada pelo fascismo cultural de mercado. Assim, respondo, ou

ao menos tento, com uma politização da arte. Neste processo conflituoso, da obsessão por

morcegos que me acompanha desde que me reconheço, junto das novas perspectivas que me

direcionam há pouco tempo, percebi um Outro Batman deixando a caverna ao anoitecer. Es-

tranhamente ele não é mais o Mesmo, mas ainda é aquele que estava lá comigo nos meus

brinquedos de plástico, revistas mofadas e fitas Vhs. Ao prosseguir com esta dissertação esta-

rei no virar das páginas não só me revendo, mas me recriando em novos quadrinhos. Só por

isto, já valeu o esforço.

Que agora deixemos o morcego estilhaçar nossa vidraça...


20

1.3 TERCEIRA CONSIDERAÇÃO: UMA CRISE SE ANUNCIA

Desde que os quadrinhos de heróis começaram a ser publicados nos anos 1930 na

forma de comic books pela então editora hoje chamada Detective Comics – DC comics –, a

quantidade de artistas envolvidos, de diferentes histórias e de distintas escolhas editoriais ao

longo das décadas acabou criando infinitos universos alternativos, onde os mesmos heróis

viviam realidades completamente diferentes – enquanto no universo dos anos 1940 Batman

havia lutado da segunda guerra mundial, e hoje estava casado e aposentado; no universo do

final dos 1950 e início dos 1960 o herói, jovem novamente, viajava pelo espaço, enfrentando

alienígenas e seres de outras dimensões. Também havia o universo do final dos anos 1960

onde Batman era uma figura pública muito respeitada, um detetive mascarado que atuava so-

zinho – Robin havia crescido e estava na universidade.

Costuma-se usar uma divisão em eras de ouro, prata, bronze e moderna para sepa-

rar esses períodos nos quadrinhos da DC comics. Essas demarcações estão ligadas principal-

mente a mudanças editoriais, porém, não as utilizarei por achá-las muito imprecisas quando se

busca concentrar em apenas uma personagem – nesta dissertação, Batman.

Porém, um megaevento merece aqui ser destacado: a Crise nas infinitas Terras

(1985), roteiro de Marv Wofman e arte de George Pérez. Procurando organizar os multi-

universos das hqs que confundia muitos leitores, e dificultava o acompanhamento das histó-

rias, a DC comics lançou a maxi-série Crise nas infinitas Terras, onde todos esses universos

alternativos de todas as personagens da editora acabaram entrando em colisão, causando um

conflito de proporções épicas, e que no final resultou na unificação de uma só Terra. Após

essa crise, todos as personagens da editora foram alteradas – a todas, foi dado um novo come-

ço. Superman: O homem de aço (1986), de John Byrne e Dick Giordano, reformulou a origem
21

do super-herói, enquanto Frank Miller e David Mazzucchelli abordaram por um outro olhar o

início do morcego em Batman: Ano um (1986/1987).

Esse procedimento se tornou comum, aplicado desde heróis mais famosos até aos

coadjuvantes, além também de dar prosseguimento à contagem dos anos – Batman já teve

publicado Ano um, Ano dois e Ano três. Desta forma, a ordem dos acontecimentos na vida das

personagens foi organizada: hoje sabemos que Robin surgiu no ano três de Batman, a Batgirl

no ano cinco, a Caçadora no ano oito... Essa contagem de anos não é publicada de forma line-

ar, ela convive com as histórias atuais, por isso, ainda hoje, eventualmente é narrado mais

algum ano da vida de alguma personagem – mas sempre com bastante transparência, apon-

tando que tal história acontece em algum passado. Por exemplo: quando ocorreu a crise, o

primeiro Robin já estava adulto e havia se tornado o herói Asa Noturna, Batman então atuava

ao lado do segundo Robin, que igualmente ao primeiro também havia sido trapezista de circo.

Após a crise, manteve-se Asa Noturna e sua história, mas o segundo Robin teve toda sua ori-

gem alterada, agora ele era um delinqüente juvenil que havia tentado roubar as rodas do Bat-

móvel. As histórias ano um, dois... vieram justamente para recontar esses novos passados e

preencher brechas que haviam sido abertas, como a própria origem de Batman.

Para que essa postura editorial pós-crise não se tornasse uma ditadura da cronolo-

gia foi inventado o selo Elseworlds, onde histórias com maior liberdade criativa são publica-

das de forma mais ou menos irregular, diferente dos quadrinhos cronológicos que seguem

padrões de número de páginas e freqüência de tempo – quinzenais, mensais, etc... Nesses El-

seworlds, já houve histórias do Batman vampiro, medieval, samurai, pirata, noir, tirano, deus-

astronauta de Atlantis, anarquista russo na união soviética, aristocrata do século XIX enfren-

tando Jack, o estripador, etc...

A Crise nas infinitas Terras obteve tamanho êxito na organização no universo DC

que se tornou hábito em toda década criar mais algum megaevento cósmico para fazer algu-
22

mas mudanças que não seriam possíveis dentro da cronologia das personagens – em 1994 foi

a série Zero hora: crise no tempo, de Dan Jurgens, e em 2005, Crise Infinita, escrita por Geoff

Johns.

A partir de Zero hora, Batman não era mais visto como vigilante mascarado pela

população de Gotham City, mas sim como lenda urbana, além de agora não saber mais quem

foi o assassino de seus pais, elemento que foi abandonado na Crise infinita, onde novamente,

conforme as primeiras histórias do herói, Batman sempre soube desde criança que o assassino

de seus pais foi Joe Chill. Apesar de causarem algumas mudanças relevantes, Zero hora e

Crise infinita não se comparam à radicalidade das mudanças causadas pela Crise nas infinitas

Terras.

Considerei importantes esses apontamentos para, além de possibilitar maior escla-

recimento, também alertar sobre mudanças de origens, narrativas e personalidades – às vezes

conflitantes – que ficarão visíveis nesta dissertação, conforme leio diferentes histórias em

quadrinhos – hqs – do Batman.


23

2 A MORTE DO HOMEM

Houve, desde o iluminismo, grandes investimentos na formação de um conceito

de homem. As noções e valores que constituíam o homem foram os grandes alicerces da mo-

dernidade. Na educação, na política, na ciência e na filosofia, o homem tornou-se um dos

grandes centros de discussões, encontrando ainda hoje desde apoiadores entusiasmados até

inimigos violentos – Nietzsche talvez tenha sido o maior dos inimigos. Na anti-filosofia ni-

etzscheana estão as principais armas contra a afirmação do homem, anunciando sua morte no

clamar pelo além-do-homem...

Michel Foucault aponta o nascimento do homem e aquilo que constitui seu ser vá-

lido para a cultura moderna no início de século XIX. Embora seja habitual pensar o homem

como medida histórica – surgido de um instante congelado, onde o milagre positivista se deu

do macaco ao que somos hoje –, a noção de homem apareceu apenas recentemente. Ao dis-

curso clássico não era possível pensar o homem da mesma maneira como nos últimos 200

anos. Sua presença empírica era ainda algo muito obscuro para o representacionismo, que

tinha como procedimento uma articulação daquilo que representa, com aquilo que suposta-

mente é.

No representacionismo, o lugar do conhecimento para a ciência estava na obser-

vação, na racionalização do mundo que se fazia ver. Somente por uma pretensa abordagem

imparcial e objetiva, era possível conhecer aquilo que se mostrava ao discurso clássico. Cabia

ao homem clássico impor uma ordem aos desorganizados fenômenos espalhados no mundo.

Penso, logo existo, como exemplo de um pensamento claro e distinto, torna-se emblemático

ao discurso clássico: eu penso, penso em mim pensando, pensando sobre o próprio pensamen-

to – representação reduplicada de mim, confundindo o pensar como o existir.


24

Quando parte do mito da objetividade começar a se questionar, o homem vai pedir

licença para tomar a frente. Se no pensamento clássico, havia uma olhar admirativo, ingênuo,

crente nas representações – acreditando que era possível se distanciar de um objeto que ob-

servamos, a ponto de poder conhecê-lo de forma real e objetiva. No pensamento moderno

volta-se ao lugar do espelho, do discreto rei, refletido no espelho de Las meninas, de Velas-

quez. A ciência deixa sua infância para atingir a pré-adolescência – ela não é mais tão ingê-

nua para crer no mundo objetivo, a ciência, agora moderna, percebe que tudo aquilo que é

visto, que é pensado, é, sob todas as formas, construído pelo homem, e ele, somente ele, tor-

na-se a medida e o objeto de estudos que realmente importam para a modernidade. Abando-

na-se o velho mito da objetividade com o mundo, o mito do pensamento verdadeiro, da refle-

xão filosófica clara e distinta, para forjar um outro novo mito: o homem, vítima e algoz da

objetividade da ciência – o novo centro e extensão de todo o universo.

“Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que tam-

bém ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante deste mundo” (NIETZS-

CHE, 1999, p. 53)”.5 Desta forma, a tradição clássica dá espaço ao aparecimento do homem

no momento em que muda seu foco, quando o olhar dirige-se ao espelho. Segundo Foucault,

na medida em que por Cuvier a história natural se torna biologia, a análise das riquezas por

Ricardo se torna economia, e a reflexão sobre a linguagem por Bopp se transforma em filolo-

gia, quebrando “esse discurso clássico onde o ser e a representação encontravam seu lugar-

comum (...), o homem aparece com sua posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito

que conhece: soberano submisso, espectador olhado” (p. 328). O homem se torna a medida de

qualquer conhecimento, tudo se transforma em ingênuo auto-conhecimento.

5
“Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Coleção os pensadores: Obras incompletas.
25

Sem dúvida, ao nível das aparências, a modernidade começa quando o ser humano
começa a existir no interior de seu organismo, na concha de sua cabeça, na armadura
de seus membros e em meio a toda a nervura de sua fisiologia; quando ele começa a
existir no coração de um trabalho cujo princípio o domina e cujo produto lhe escapa;
quando aloja seu pensamento nas dobras de uma linguagem, tão mais velha que ele
não pode dominar-lhe as significações, reanimadas, contudo, pela insistência de sua
palavra. Porém, mais fundamentalmente, nossa cultura transpôs o limiar a partir do
qual reconhecemos nossa modernidade, no dia em que a finitude foi pensada numa
referência interminável a si mesma.(...) A cultura moderna pode pensar o homem
porque ela pensa o finito a partir dele próprio (FOUCAULT, 1995, p.334).

Foucault enumera quatro grandes características do homem, a finitude, o ser empí-

rico-transcendental, o impensado e o recuo e retorno da origem. Aqui eu me fixarei na analíti-

ca da finitude, que me parece a mais decisiva: capaz de sintetizar toda a crítica de que tenho

conhecimento sobre o homem, e ao mesmo tempo, destruí-lo por dentro, mostrando a Narciso

o outro lado de seu reflexo, pequeno, feio e nada apaixonante.

2.1 A FINITUDE DO HOMEM

O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coi-
sas que não são, enquanto não são (Protágoras, em “A verdade”).

O homem tem consciência do seu fim – sabe que em algum momento morrerá,

que sua vida segue um fluxo linear sem escapatória, cronologicamente adequado à máxima de

que tudo que tem um começo, tem um fim. Sua finitude vai desde sua estrutura, na figura de

um decifrado e quantificado esqueleto, até na sua organização social em tribos, territórios,

nações... O homem, para entender-se enquanto homem, começa pelo seu próprio fim. Talvez

seja essa a grande premissa da filosofia de Jean-Jacques Rousseau: o homem precisa ver e se

submeter a sua finitude para que outros homens não tenham suas finitudes profanadas. Deve

haver limitações para todos, o bem comum deve prevalecer, e o homem tem obrigação de
26

contribuir na compreensão e aceitação de sua finitude no objetivo de construir uma iluminada

e ordenada sociedade harmônica – o touro incontrolável precisava manter-se cercado de pos-

turas, valores e conceitos, antes que acabe ferindo algo ou alguém.

A finitude do homem apresenta o abismo que lhe é proibido saltar, a linha que ja-

mais poderia cruzar – organizando, controlando, limitando o homem num conjunto fechado,

finito, como na teoria dos conjuntos. Se na política e na educação de Rousseau, a necessidade

de um fim, um limite em nome do bem-estar comum assegura a finitude de um homem – que

no entanto não aparece claro nas representações, assim como o rei e a rainha no quadro Las

meninas, de Velásquez –, na biologia, na economia e na filologia de fins do século XVIII,

conforme aponta Foucault, a finitude se caracterizará pelo limite de conhecimento do homem,

que enfim começa a aparecer mais claramente.

É na superfície de projeção da biologia que o homem aparece como um ser que tem
funções – que recebe estímulos (fisiológicos, mas também sociais, inter-humanos,
culturais), que responde a eles, que se adapta, evolui, submete-se às exigências do
meio, harmoniza-se com as modificações que ele impõe, busca apagar os desequilí-
brios, age segundo regularidades, tem, em suma, condições de existência e a possibi-
lidade de encontrar normas médias de ajustamento que lhe permitem exercer suas
funções. Na superfície de projeção da economia, o homem aparece enquanto tem
necessidades e desejos, enquanto busca satisfazê-los, enquanto, pois, tem interesses,
visa a lucros, opõe-se a outros homens; em suma, ele aparece numa irredutível situa-
ção de conflito; a esses conflitos ele se esquiva, deles foge ou chega a dominá-los, a
encontrar uma solução que apazigúe, ao menos em um nível e por algum tempo, sua
contradição; instaura um conjunto de regras que são, ao mesmo tempo, limitação e
dilatação do conflito. Enfim, na superfície de projeção da linguagem, as condutas do
homem aparecem como querendo dizer alguma coisa; seus menores gestos, até em
seus mecanismos involuntários e até em seus malogros, têm um sentido; e tudo o
que ele deposita em torno de si, em matéria de objetos, de ritos, de hábitos, de dis-
curso, toda a esteira de rastros que deixa atrás de si constitui um conjunto coerente e
um sistema de signos. Assim, estes três pares, função e norma, conflito e regra, sig-
nificação e sistema, cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do
homem (FOUCAULT, 1995, p. 374).

Na religião, será na explicação do universo, da maneira como funciona, com seus

firmamentos, planos de diferentes escalas evolutivas, que aceitaremos o limite do desconheci-

do, o finito do infinito. O homem aprenderá sobre tudo o que o cerca: em todos os mistérios,

os deuses estarão no centro destas questões, serão sempre a verdade oculta e a luz em que
27

podemos confiar piamente, julgando e presumindo tudo de obscuro. Essa realidade do desco-

nhecimento, do infinito que nos escapa, torna-se talvez o recurso mais dissimulado na afirma-

ção do homem: ao se supor um desconhecido, um mistério, por si só, já se supõe algo para ser

conhecido, para ser decifrado e revelado. Na lógica religiosa, no final, na descoberta da ver-

dade, volta-se sempre ao ponto de partida: os deuses sempre serão a resposta, a medida de

todo o universo. Nessa jornada de voltas em círculo, o homem religioso parte para o infinito

apenas para encontrar um fim que já conhece... como se lesse um texto, de forma obediente,

somente depois que soubesse os significados e como deveria entendê-los.

Esse procedimento de finitude se desdobrará também na filosofia. Ao mesmo

tempo em que o homem é um objeto de estudo empírico, real, passível de conhecimento, ele

também é a medida do próprio conhecimento, um estado de ser transcendental aplicável a

tudo e todos – o limite do ilimitado. Esse é o duplo empírico-transcendental elucidado por

Foucault: ao mesmo tempo em que o homem é papel também é régua... ele mede a si mesmo,

utilizando seus próprios parâmetros. É por ser finito que o homem – principalmente em Kant

– se faz ao mesmo tempo sujeito do conhecimento como síntese da razão pura e da experiên-

cia, transformando-se na forma de medida mestra, transferindo o olhar para si para o olhar

para o todo – o homem novamente parte numa viagem em volta de si mesmo. Mesmo quando

esta finitude sufocante permite supostas brechas, maior tolerância, como nos estudos antropo-

lógicos de “exóticas” comunidades.

O mecanismo volta a se repetir: o desconhecido é tornado ponto de partida para o

conhecido por meio de conceitos, hábitos, olhares do mesmo grupo finito de que havia partido

– num olhar ao próprio reflexo.

Até mesmo na percepção do homem, no seu acesso ao conhecimento do universo,

rigorosas categorias perceptivas lhe são atribuídas, pretensamente excluindo qualquer eventu-

alidade de vir a surgirem outros olhares – o conhecimento do homem se dá num processo de-
28

finido e sem escapatória. Esta tentativa de quantificar a percepção humana está fortemente

ligada à tradição kantiana de estudos de condições de possibilidade do conhecimento a partir

da Crítica da razão pura. Kant, por meio de etapas invariáveis, obrigatoriamente iguais para a

percepção de todas outras percepções, formulou ao homem, em números finitos, uma cartilha

de maneiras de lidar com o conhecimento. Já para aquilo a que não temos acesso, o incondi-

cionado da coisa em si, que nossa linguagem e signos somente podem representar, tratou-se

então de formular conceitos.

O incondicionado, o impensado nos termos de Foucault, aquilo que não pode ser

racionalizado, que é inconsciente, pode até soar como uma ameaça para o homem. Porém,

sendo restrito ao campo daquilo que justamente é encarado como algo que não nos aparece,

mas existe, e de certa forma então aparece, só que fantasmagoricamente por termos e noções,

o impensado bate nos limites do finito e volta-se para o seu próprio paradigma. Como na arte

surrealista, em que, enquanto entendida como “linguagem dos sonhos”, a obra, mesmo que

supostamente impensada, se torna facilmente reduzida, enquadrada numa condição, quando

recebe enfaticamente o rótulo “surrealismo” – o que reduz sua capacidade de vir a ser qual-

quer outra coisa. A noção domesticada de inconsciente para o senso comum reforça isso: o

impensado eu não sei o que é, porém ao mesmo tempo sei, ele existe e se dá, portanto, eu o

conheço, eu o restrinjo a um saber, a um campo, logo, eu estabeleço os fins. Na arte surrealis-

ta, ou ainda na dadaísta, o fim se dará no silêncio de um virar de costas após um “não é para

entender mesmo”. O homem, assim, pensa o impensado no limite constitutivo de si mesmo.

Por fim, sabendo-se finito, o homem, ao ver-se projetado sobre tudo e todos na

história, não consegue enxergar uma origem, e ao afastar-se dela reencontra a si mesmo, numa

inexistência atual, numa falta de explicação de por onde começou, forjando uma proximidade

justamente com aquilo que o afirma como realidade. Ou seja, ao distanciar-se de sua origem o

homem assegura novamente, num retorno, sua válida e verdadeira existência, seu começo sem
29

passado, refazendo assim sua origem sempre em vias de começar e ao mesmo tempo de aca-

bar para um novo retorno – sempre o Mesmo, retorno e repetição. Ao não ver seu nascimento,

o homem perde o direito de morrer...

Por tudo isso o incontrolável e o indizível tornam-se os maiores vilões da finitude,

e conseqüentemente, do homem. A cerca de conceitos do homem ao tigre enfurecido, limitan-

do o número de coisas que podem ser ditas sobre ele, procurando domesticá-lo, investe na sua

clausura a fim de que o monstro não represente nenhum perigo – a cerca precisa executar bem

seu trabalho, tornando-o classificável, previsível. Porém, toda essa inquietude, esse conflito

faz muito barulho, e o homem acorda sobre o dorso do tigre – é precisamente aqui, que Ni-

etzsche nos convida para irmos além.

Assim, o último homem é ao mesmo tempo mais velho e mais novo que a morte de
Deus; uma vez que matou Deus, é ele mesmo que deve responder por sua própria fi-
nitude; mas, uma vez que é na morte de Deus que ele fala, que ele pensa e existe, seu
próprio assassinato está condenado a morrer; deuses novos, os mesmos , já avolu-
mam o Oceano futuro; o homem vai desaparecer. Mais que a morte de Deus – ou an-
tes, no rastro dessa morte e segundo uma correlação profunda com ela, o que anun-
cia o pensamento de Nietzsche é o fim de seu assassino; é o esfacelamento do rosto
do homem no riso e o retorno das máscaras; é a dispersão do profundo escoar do
tempo, pelo qual ele se sentia transportado e cuja pressão ele suspeitava no ser mes-
mo das coisas; é a identidade do retorno do Mesmo e da absoluta dispersão do ho-
mem (FOUCAULT, 1995, p. 402).

Na finitude estamos sempre diante de um Mesmo. Ao entender o homem a partir

de um número determinado de características dispostas que formariam um todo, transformarí-

amos qualquer coisa diferente, estranha, em algo conhecido, similar – um processo de con-

quista de um espelho. A questão não está no conhecido ou no desconhecido, mas na própria

noção de realidade, “mundo real”, de um rei, que é o homem, no pleno império filosófico di-

tatorial de suas finitudes. O procedimento de eterna busca de auto-afirmação e imposição de si

sobre qualquer outra coisa interrompe e violenta as pluralidades e toda sorte de Outros, para

então transformá-los em Mesmos, numa massa só – como num buraco negro, que suga toda
30

luz e energia para alimentar sua única e sem cor antimatéria. Mas exatamente conforme um

buraco negro, o conceito obscuro, as outras realidades sombrias e desconhecidas espreitam

sua vingança contra o paradigma do homem, perturbando e desafiando sua incapacidade ima-

ginativa de ver além dele mesmo...

Narciso se afogou no oceano do oculto ao apaixonar-se pelo reflexo de sua beleza.

O Outro se aproveitou da embriaguez do Mesmo para matá-lo – e por uma questão de sobre-

vivência, afinal, enquanto o Mesmo triunfar, o Outro será sempre recalcado. Essa espreita nas

sombras, como de um Outro morcego em busca de alimento, se opõe à luz de um rei de seu

Mesmo real, de um herói da humanidade – como Ozymandias.

Ramsés II – no grego Ozymandias – foi um faraó egípcio. Seu reinado tem grande

prestígio histórico devido às suas grandes conquistas culturais e militares. Na graphic novel

Watchmen (1986/1987), de Alan Moore e Dave Gibbons, somos apresentados a um mundo

decadente oitentista, próximo de uma guerra nuclear, onde alguns super-heróis, na maioria

aposentados, reagem, cada um da sua forma, diante de uma nova e enigmática ameaça. Um

desses heróis aposentados é Ozymandias, ou Adrian Veidt, o “homem mais inteligente do

mundo”, agora bilionário, graças a grandes investimentos na indústria de entretenimento,

explorando sua antiga figura heróica por meio de brinquedos e jogos eletrônicos. Sua casa,

seu trabalho, tudo o que o cerca reflete sua imagem loura, segura e imponente. A única figura

que ele respeita, além de si, é a de Alexandre, o grande, que, segundo ele, foi o único capaz de

unificar o mundo sem barbárie desnecessária – na hq, Alexandre e Adrian possuem um

mesmo rosto.

Abandonando aparentemente seus velhos anseios de proteger o mundo,

Ozymandias, enquanto assistia a dezenas de televisores e canais ao mesmo tempo, estava

apenas preparando um plano ainda maior, totalizante, de salvação da humanidade, conforme

revelado ao final da hq. A misteriosa ameaça que surgia contra os heróis era um plano de
31

Ozymandias: ele tinha consciência de que lutar contra bandidos e malucos fantasiados nada

resolveria, isso era apenas um auto-elogio simplório das capacidades de um herói – para um

verdadeiro herói era necessário mais do que isso. Por esse motivo, na véspera da declaração

de guerra nuclear, um pseudomonstro alienígena invadiu New York, tirando a vida de metade

da população da cidade. As nações, ameaçadas, então se uniram, no esforço de juntas

eliminarem o tal monstro – o mundo estava em paz. Ozymandias lamentou as milhões de

mortes, mas sabia que serviram para um bem maior – ele foi um verdadeiro herói, salvando a

Terra e a humanidade.

Ozymandias é o triunfo do Mesmo, de um herói que vai até as últimas

conseqüências para executar aquilo que um herói deve fazer na sua finalidade – eis o seu

grande perigo. Narciso se apaixonou tanto por sua beleza que acabou autodestruído, na sua

figura – ou na de seu povo. Nietzsche já alertava sobre os caminhos desse heroísmo: a

imposição de uma verdade, de uma forma de ver, de um bem comum, e conseqüentemente a

necessidade de manutenção dessas verdades, nos levam às maiores limitações e tiranias contra

nós próprios, e a tudo aquilo de diferente6. Na preservação de si, torturamos e aniquilamos o

Outro.

O homem é essa finitude do Mesmo, sendo aquilo que se elegeu tradicionalmente

como verdade, realidade, universalidade... em detrimento da extinção das outras

possibilidades. A potência nietzscheana, seu poder vir a ser, é inaceitável ao Mesmo – no

momento em que ele se permitir ao Outro, ele deixa de ser ele mesmo. Se Ozymandias

chegasse a se questionar sobre a obrigatoriedade de ser um herói, duvidando da tarefa de

salvar o mundo, cogitando outras opções, ele deixaria de ser um herói, perderia toda sua

6
Nietzsche em Ecce Homo, nos comentários que faz sobre seus livros Assim falou Zaratustra, Além do bem e do
mal, Crepúsculo dos ídolos e Humano, demasiado humano deixa bastante clara sua postura contra qualquer
forma de pretensa salvação vinda na figura de uma verdade, apontando toda tirania e pobreza que isso signi-
fica. Por ironias – ou não – Nietzsche formula que ele próprio é a verdade.
32

Mesma identidade. Toda sua dedicação deixaria de visar o próximo, o semelhante aos seus

ideais, para partir em outros rumos – talvez, o da morte do homem-herói.

Acima do amor ao próximo, há o amor pelo longínquo e pelo que está por vir; acima
do amor pela humanidade coloco o amor às coisas e aos fantasmas. Esse fantasma
que corre diante de ti, meu irmão, é mais belo do que tu. Porque não lhe dás a sua
carne e os seus ossos? Mas tens medo e procura refúgio junto do seu próximo. (...)
Um procura o próximo porque se procura, o outro porque anseia se perder. O seu
mau amor por vocês próprios converte sua solidão num cativeiro. São os que estão
mais afastados que pagam o nosso amor ao próximo, e, quando cinco estão reunidos,
é preciso que um sexto morra. (...) Não falo do próximo, mas do amigo. Seja o ami-
go para vocês a festa da terra e o pressentimento do Super-homem. (...) Eu falo do
amigo que traz o mundo em si, como uma taça transbordante de bênçãos, o amigo
criador que tem sempre um mundo disponível para dar. E do mesmo modo que ele
vê o mundo desenrolar-se ante seus olhos, vê o enrolar-se outras vezes em espirais
nas quais o bem é produzido pelo mal e os fins nascem do acaso. (...) Meus irmãos,
não os aconselho o amor ao próximo: aconselho-lhe o amor ao longínquo. Assim fa-
lou Zaratustra. (NIETZSCHE, 2005, p.55-57)

O Outro é o infinito, aquilo que destroça os paradigmas, que se descompromete

com a verdade alheia, debocha de qualquer finalidade. O homem que deseja escapar, buscar

uma outridade, entregar-se ao porvir e a tudo aquilo que desconhece, necessariamente precisa

suprimir-se enquanto finitude, renegando qualquer imposição ou amarra do Mesmo. O

homem necessita morrer, em virtude de um super-homem, um homem que se supera, que voa

além de qualquer fim – assim falou Nietzsche.

2.2 A QUEDA DO HOMEM

Um dos motivos, talvez, de Narciso ter se afogado estaria no demasiado tempo

que levou para contar o número de elementos presentes em seu rosto – o rosto do Mesmo é

finito, mas ainda assim a contagem pode ser difícil. Provavelmente ele se perdia nos números,

e tinha de repetir a apuração diversas vezes. Ao acúmulo de muitas tentativas, sentiu-se e-


33

xausto e desistiu dessa tarefa quantitativa, entregando-se ao oceano do oculto. A queda do

homem tem início a partir do momento em que a finitude começa a se revelar imprecisa, difí-

cil de pontuar, quando as contradições aparecem mais claramente, e diversas brechas geram

rupturas incicatrizáveis no rosto. No ruir por dentro, o homem começa a avistar o infinito.

Esses primeiros sinais da queda do homem acontecerão quando sua história se insinuar de

maneira provocante, num convite à embriaguez de si próprio até as últimas conseqüências,

forçando o homem a regurgitar tudo o que já foi e recomeçar de estômago vazio.

Se hoje a história não faz ao homem de modo amplo esse convite, é porque ele

não percebeu seu chamamento. A história, ao mostrar-se tão facilmente manipulável na mão

do homem que busca se perpetuar, revela-se a primeira grande arma contra o próprio homem.

Na capacidade de manipulação, no manuseio da história, avistamos a possibilidade de abrir

espaços para o Outro que foi suprimido das páginas históricas. Na quebra da noção de história

como verdade absoluta, já mostrada pelo abuso indiscreto que o homem faz dela, avista-se

uma nova possibilidade de salvação, uma nova ruptura messiânica. No recontar, reformular da

história, diferenças vão aflorando, gerando crises que culminarão na doença terminal do ho-

mem. Uma dessas chagas foi lançada em “Sobre o conceito de história”, de Walter Benjamin.

Apontando o funcionamento linear, cronologicamente pobre e dissimulado da tra-

dição herdada dos vitoriosos, donos do historicismo, Benjamin anuncia uma concepção de

história desvencilhada de leis simplórias de causa e efeito, e das aparentes verdades na crista-

lização dos fatos. Quando se revê uma imagem histórica, isolada, solitária, potente, uma que-

bra, uma oportunidade de luta por aquilo que foi ultrapassado, pode vir a surgir. No recontar

da história novos olhares tomam vida, e assim, momentos que se contrapõem, que partilham

de algo, mesmo separados, às vezes, por milênios, podem entrar numa nova sintonia.

O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da


história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico.
Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que po-
dem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a
desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a
34

configuração, em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior,
perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um
“agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico (BENJAMIN, 1987, p. 232).

A história começa de novo, e quanto mais ela retorna a si própria disposta a no-

vamente se surpreender, mais novos recomeços surgem em direção ao infinito contra o rolo

compressor da tradição histórica. Um grito de revanche surge, numa ruptura messiânica que

visa anunciar um novo Messias, empoeirado em algum movimento vivo esquecido nas narra-

tivas históricas. No ataque ao conceito clássico de história, Benjamin não só torna claro seu

funcionamento, como propõe uma Outra visão, sem fim, da história. Somente assim, aquilo

que se perdeu, que foi morto, pode então voltar à vida, num porvir talvez ainda mais intenso

do que antes. A ética histórica benjaminiana torna-se de grande importância na morte do ho-

mem, na recusa de qualquer verdade, imposição, vinda por qualquer lado. Não há finitudes

quando se faz ativamente história – foi quando viu isso que o homem começou a rachar.

Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se


dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o ven-
cedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é pri-
vilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão
em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (BEN-
JAMIN, 1987, p.224-225).

Henri Bergson, em Matéria e memória, aponta uma leitura distinta sobre a tempo-

ralidade: na percepção do tempo, dão-se acontecimentos, não estagnados em instantes, mas

duráveis num movimento que nunca cessa. Esse movimento não é o da cronologia, mas da

eterna possibilidade de acontecimento de um passado qualquer, perdido no fluxo do tempo.

Na duração, o tempo se dá de diferentes formas para cada olhar – um rápido acontecimento

pode durar uma vida inteira na memória de alguém, sendo que depois que participou deste

evento, sua percepção daquilo que entendemos como anterior ao ocorrido também foi modifi-

cada.
35

A noção de duração, se levada em consideração à percepção da consciência, refuta

até mesmo a possibilidade de morte humana ou nascimento, já que a duração está fora do

tempo linear, e por isso toda percepção está sempre acontecendo e em vias de acontecer. O

movimento criativo do tempo não pára. Na filosofia bergsoniana o homem não tem mais co-

mo apontar, como um ponteiro de um relógio, para lados definidos, como passado, presente

ou futuro – o homem precisa que alguém lhe dê corda, mas não há ninguém.

Mas a verdade é que nosso presente não deve se definir como o que é mais intenso:
ele é o que age sobre nós e o que nos faz agir, ele é sensorial e é motor; – nosso pre-
sente é antes de tudo o estado de nosso corpo. Nosso passado, ao contrário, é o que
não age mais, mas poderia agir, ou que agirá ao inserir-se numa sensação presente
da qual tomará emprestada a vitalidade. É verdade que, no momento em que a lem-
brança se atualiza passando assim a agir, ela deixa de ser lembrança, torna-se nova-
mente percepção (BERGSON, 1990, p. 197).

Na duração do tempo, infinita em potencialidades, atemporal em divisões crono-

lógicas, incontrolável no porvir, a memória estabelece um papel importante: não mais de re-

gistrar um passado objetivo ou armazenar imagens, mas de gerar vivacidades, ao dar aquilo

que já passou eternas condições de se recriar e reencontrar no presente as potencialidades que

o tornam novamente possível. É na redundante morte da história morta, num infinito número

de criativos olhares sobre o passado, que o conceito de história de Benjamin mais se aproxima

da filosofia de Bergson.

Na morte da verdade, pela afirmação da noção de jogo, Nietzsche e Wittgenstein

transferem toda tradição das valorações de um pedestal de ouro inquestionável para um debate

infinito em constantes mutações sobre o que vale cada coisa a cada momento, para cada vi-

vência – ousando contra o silêncio da verdade, numa inquietude avassaladora. Na detonação

das verdades, o homem então começa a esvair-se muito rápido – principalmente quando perde

a capacidade de se assegurar num Mesmo, fazendo de sua autenticidade uma mera artimanha
36

filosófica para crer em algo que levasse todos também a crer. O Outro finalmente tem sua

desforra.

Esse campo minado, esquecido, enferrujado, que começa a detonar enlouqueci-

damente, aleatoriamente, causando crateras imensas e buracos escuros nesse território, torna-

se o ponto de colisões e rompimentos do homem, no sentido de sua destruição. Este trabalho

analisará mais precisamente essas idéias, aplicando-as na minha leitura da personagem Bat-

man. Não será meu objetivo iluminar um terreno já devastado e pronto para novas germina-

ções, mas ater-me a um momento ainda anterior, quando as explosões haviam acabado de

ocorrer, e a nuvem de terra ainda ofuscava a visão, permitindo passos às vezes cambaleantes,

mas com certeza ousados.


37

3 A MÁSCARA DO MORCEGO

Meu disfarce precisa inspirar terror. Eu preciso ser negro, terrível. Criminosos são.
Criminosos são um bando covarde e supersticioso. (...) Eu preciso ser uma criatura
da noite. Mamãe morreu. Papai morreu. Brucinho morreu. Eu me tornarei um mor-
cego (Asilo Arkham, p. 118).

Nos anos 1960, a editora Marvel Comics, mãe de personagens como Homem-

Aranha, Hulk e X-men, consolidou a figura do homem por trás do herói. Peter Parker é um

jovem bastante estudioso, que precisa pagar as contas, arranjar um emprego, entregar traba-

lhos em dia, e que às vezes se veste de Homem-Aranha para superar toda sensação de impo-

tência que tanto o incomodou na adolescência – como se costuma dizer entre alguns leitores,

o aracnídeo é a vingança do nerd subestimado. Ainda que assuma um colant de super-herói,

Parker não passa de uma pessoa comum. O mesmo para Bruce Banner, que possui eventuais

crises de raiva como qualquer pessoa, porém acaba se transformando num super-homem ver-

de, repleto de força e fúria chamado Hulk. Há também um grupo de homens, mulheres e cri-

anças, diferentes da maioria, possuidoras do gene mutante X, que se unem para lutar contra o

preconceito e a ameaça de guerra entre raças: esses são os X-men, pessoas diferentes que ape-

nas querem o direito de compartilhar o mundo pacificamente – a história foi baseada nos mo-

vimentos negros da época. Já na DC – Detective Comics –, editora que teve seu apogeu cria-

tivo vinte anos antes, o que caracteriza Superman ou Batman são suas figuras heróicas, pouco

importando o discreto repórter Clark Kent, ou o playboy Bruce Wayne. Sabemos que eles são

engodos, não existe homem sem sua capa – eles são verdadeiramente heróis, não se incomo-

dam com o peso da sua função, estão acima das preocupações e valores do cidadão comum.

A concorrência entre as duas editoras estimulou nos anos 1970, mais precisamente

a partir de 1964, a revitalização dos heróis da DC pelo editor Julius Schwartz. Com roteiros

de Denny O´neil e desenhos de Neal Adams, a partir de 1968, com o fim do seriado de televi-
38

são Batman, a editora procurou explorar o homem escondido no uniforme de morcego – foi

nesse período que as histórias de Batman se concentraram mais em seu treinamento pelo

mundo e em sua relação familiar com Alfred, Robin, Gordon... Batman não passava mais tan-

to tempo só espancando vilões, ele demorava-se horas, dias se preciso, honrando seu estatuto

de “maior detetive do mundo”, investigando possibilidades, levantando provas, evidências,

pesquisando – porém não conseguia fugir do estigma de herói. Até que na segunda metade

dos anos 1980, apareceram graphic novels7 como O cavaleiro das trevas, de Frank Miller, em

1986, que mostra um Batman mais complexo emocionalmente, psicótico e violento, e Watch-

men, de Alan Moore e Dave Gibbons, de 1986/87, que levanta as conseqüências sociais e po-

líticas que haveria na existência de um super-herói. Com isso uma nova investigação então foi

adotada nos quadrinhos de herói: não se tratava mais de procurar um homem, mas sim de ex-

plorar esta vivência fragmentada em homem e herói, sem deixar-se cair em ingênuos dualis-

mos como o rosto e o capuz. A discussão moral e política também passaram a ter relativa im-

portância, mostrando mais claramente o que diferenciava as diversas personagens. Foi nesse

panorama que Batman alcançou sua maturidade.

Diante dessas frações de homem, de herói, e também de morcego, presentes em

Batman, procurarei neste capítulo investigar a afirmação de um Outro, encontrando no passa-

do, nas várias personas, uma outra identidade, outra verdade, misteriosa e sombria, que possa

talvez se mostrar para fora da escuridão.

7
Graphic novel é um título atribuído a hqs consideradas de maior liberdade criativa, trabalho mais elaborado, e
geralmente, um texto mais adulto – mas obviamente não passa de uma nomenclatura arbitrária. Entre os qua-
drinhistas há toda uma longa discussão sobre o que é uma graphic novel, sobre o que a diferencia das outras
hqs. Aqui apenas manterei os termos no intuito de melhor referência histórica.
39

3.1 GÊNESIS

A verdade é que a memória não consiste, em absoluto, numa regressão do presente


ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado ao presente. É no passa-
do que nos colocamos de saída (BERGSON, 1990, p. 196).

O passado de um herói costuma ser retratado como uma assombração ou promes-

sa, anunciando um outro mundo que está por vir: Bruce Wayne tinha oito anos de idade quan-

do, na saída de uma sessão de cinema, acompanhado dos pais – eles haviam assistido A marca

do Zorro –, deparou-se com Joe Chill, um assaltante nervoso, hesitante, que acabou por dispa-

rar um tiro no pai, Thomas Wayne, matando-o, e de reflexo, outro tiro em sua mãe, Martha

Wayne, enquanto as pérolas que tanto o criminoso desejava, quicavam pelo chão. Bruce ficou

ali, num círculo de luz, formado por um poste acima, sozinho, ajoelhado, por um tempo, na-

quele canto obscuro da cidade – conhecido posteriormente como “beco do crime”.

Sob a tutela de Alfred, o fiel mordomo da família, o jovem Bruce, na sua primeira

noite sozinho na mansão, à luz de uma vela, novamente se ajoelha, com os braços sobre a

cama, como que numa prece, fazendo um silencioso juramento em honra a memória de seus

pais: começa assim a jornada de Batman. O assassinato dos pais costuma ser entendido como

momento crucial para a origem da personagem... Porém, dúvidas se levantam.

Conforme a graphic novel O cavaleiro das trevas, dois anos antes do assassinato,

Bruce perseguia um coelho branco – talvez um pouco acinzentado –, no enorme terreno em

volta da mansão, quando, ao tentar entrar na toca do animal, caiu num imenso buraco, desco-

brindo a caverna abaixo das propriedades da família. Vários morcegos assustados sobrevoa-

ram Bruce, que machucado tentou espantá-los – mas, ao longe, um outro morcego se aproxi-

mava. Diferente de todos, este hipnotizou o garoto:


40

Então...algo se move oculto...algo que aspira o ar viciado...e sibila. Planando com


graça milenar...ele se recusa a se afastar como seus irmãos. De olhos radiantes, sem
alegria ou tristeza...seu hálito é quente e tem o sabor dos inimigos vencidos...o odor
de coisas malditas. Com certeza, ele é o mais feroz sobrevivente... o mais puro guer-
reiro...brilhando, odiando...possuindo minha pessoa (O cavaleiro das trevas, n°1 - p.
11 - 13).

Anos mais tarde, segundo a história Batman: Ano um (1987/1988), também de

Miller, com desenhos de David Mazzucchelli, Bruce, adulto, já havia viajado pelo mundo e

estava decidido sobre o que iria fazer, embora ainda não soubesse exatamente como. Em sua

primeira aventura noturna, disfarçado de homem comum, para melhor reconhecimento da

cidade, ele acabou perdendo a paciência com um cafetão que espancava uma prostituta. Der-

rotando o agressor, outras prostitutas o atacaram – entre elas Selina Kyle, que se tornará a

Mulher-Gato. Dois policiais, vendo a confusão, chegaram atirando, baleando Bruce grave-

mente – na viatura, ele desperta sangrando, enquanto os policiais procuram dinheiro na sua

carteira e decidem se vão matá-lo de vez ou deixá-lo num hospital para evitar maiores pro-

blemas. Bruce se solta, ataca os dois, o carro se choca contra um caminhão, pegando fogo.

Muito ferido, Bruce consegue tirar os dois policias inconscientes, antes que a viatura exploda,

fugindo para seu Porsche.

Na mansão, no estúdio, na poltrona de seu pai, em frente ao busto em pedra de

Thomas Wayne, Bruce, ensangüentado, decepcionado, arrasado espiritualmente, parece no-

vamente rezar: os criminosos não o temiam, revidavam, e no final, nada mudara de fato, tudo

continuava igual, a mesma dor, sensação de impotência – ele não havia se tornado algo maior,

algo quem nem sabia explicar ou entender, era apenas mais um desamparado, buscando o que

não havia encontrado. Bruce fracassou naquilo em que dedicou toda sua vida8. Todo esforço

não havia valido para nada, o vazio permanecia.

8
Diferentes hqs já mostraram que Bruce estudou artes marciais com os melhores mestres, viveu parte de sua
vida num circo, treinado pelo maior mágico do mundo, onde aprendeu a se libertar de armadilhas, iludir a-
quele que o observa, disfarçar-se, manipular a voz, desaparecer, foi também alpinista por um longo tempo,
trabalhou com os melhores detetives europeus, e estudou nas mais conceituadas universidades, onde apren-
41

Pai...eu acho que vou morrer esta noite. Tentei ser paciente. Tentei esperar... mas...
eu preciso saber. Como, pai? Como devo agir? O que devo usar...pra que eles te-
nham medo? Se eu tocar este sino, Alfred vem. Ele pode deter o sangramento a tem-
po.(...) Sim, pai. Eu tenho tudo... menos paciência. Prefiro morrer... a esperar... mais
outra hora. Já esperei... dezoito anos... (...) Desde que minha vida perdeu o sentido.
Sem o menor aviso, ele surge...estilhaçando a janela do seu estúdio, agora meu. [um
morcego aparece, pousando sobre o busto do pai] Já vi essa criatura antes... em al-
gum lugar. Ela me aterrorizou quando criança... me aterrorizou... Sim, pai. Eu me
tornarei um morcego [Bruce toca o sino] (Ano um, p. 26-28).

A dor, na forma de medo e culpa, torna-se necessária para a fomentação e o dile-

ma desse homem-morcego. Freqüentemente vemos nos quadrinhos Batman, de pé ou acoco-

rado, de cabeça baixa, numa vigília, numa espera, sobre enormes arranha-céus, gárgulas ou

cemitérios, como em Batman: Guerra ao crime (1999), de Paul Dini e Alex Ross. “Sejam

cicatrizes físicas ou psíquicas, o crime fere todos que toca. Traz lesão e morte. Envenena a

mente e a alma. E, no final, destrói toda a esperança” (p. 26-27). O dia amanhece enquanto

ele se encobre com a capa em meio a esculturas de anjos rezando, voltados aos céus. “Eu en-

terrei meus pais aqui (...) Desde aquele dia, parte de mim sempre esteve ligada a este lugar.

Às lembranças que guardo dos inocentes destruídos pelo crime. Fantasmas que há muito parti-

ram e outros que ainda aguardam” (p. 5). Sobre a escultura de uma águia, no alto da torre

Wayne, Batman reflete: “(...) talvez a redenção possa se espalhar por uma cidade inteira, e

finalmente voltar a mim. Talvez algum dia eu também possa superar a minha [dor]. Mas por

enquanto eu ainda aguardo” (p. 61-62).

O homem-morcego, marcado pelo crime, espera redimir-se de um peso que não é

apenas de uma violação incurável – há um segundo caráter, que justifica a penitência de vigiar

uma cidade noite após noite. O que faz com que Batman aconteça no movimento de destrui-

ção de uma sombra, em nome de libertação, é um estranho sentimento de culpa que nunca fica

deu diversos idiomas, química, biologia, história, psicologia, criminalística, mecânica, tecnologias de ponta,
além de outros diversos conhecimentos que ainda se revelam.
42

suficientemente claro – do que Batman tanto se culpa? Poderia ser por reprovação da violên-

cia dos próprios atos, porém, a principal razão seria que na noite da morte dos pais ele que

havia insistido para ir ao cinema – eles disseram que aquele dia não seria possível, mas no

final a birra do garoto foi maior (Cidade castigada, de Brian Azzarello e Eduardo Risso).

Também pode ser que, na hora do assalto, o criminoso tenha disparado os tiros porque Bruce

reagiu ingenuamente, imitando Zorro (Olhando para trás, de Devin Grayson e Staz Johnson).

No filme Batman begins (2005), de Christopher Nolan, há uma reformulação dessa versão:

Bruce (Gus Lewis) e seus pais haviam ido à ópera assistir a Mefistófeles, mas Bruce, assusta-

do com as criaturas que lembravam morcegos, pediu para partir mais cedo – sua queda na

caverna era recente. Na saída do teatro, a história se repete, com destaque nas últimas palavras

do pai (Linus Roache) antes de morrer: “não tenha medo”.

“Viajou o mundo para entender a mente criminosa e vencer os seus medos. Mas

um criminoso não é complicado. O que realmente teme está dentro de você. Você teme seu

próprio poder. Teme sua raiva, o impulso de fazer coisas fantásticas ou terríveis” diz um de

seus mestres, Henri Ducard (Liam Neeson), no filme. Em Batman (1989), filme de Tim Bur-

ton, Bruce (Michael Keaton) a respeito de Batman, justifica-se: “é algo que preciso fazer.(...)

Porque ninguém mais pode. Tentei evitar tudo isso, mas não posso. É assim que é. Não é um

mundo perfeito”. Talvez seja esse então o maior sentimento de culpa e ao mesmo tempo medo

do homem-morcego: ele não resiste às suas paixões, suas vontades. Os vícios do corpo e da

alma falam muito mais alto do que qualquer outra coisa. Batman se entregou de asas abertas

para tudo aquilo de fantástico e terrível.

Outros elementos característicos são a frieza e o metodismo: as estratégias, os ar-

mamentos são utilizados sempre de forma calculada. Tudo é previsto: no cinto de utilidades

estão explosivos, soníferos, cordas com ganchos, lasers, uma máscara de gás, eletrodos, co-

municadores, rastreadores, batarangues e shurikens em forma de morcego. Na máscara há


43

lentes para enxergar no escuro, ampliadoras, infravermelho, além de antenas nas orelhas de

morcego. A capa é a prova de fogo e funciona também como asa delta. Há braceletes com três

lâminas cada, que servem de defesa. Um símbolo no peito de metal reforçado em forma de

morcego, capaz de suportar diversos tipos de balas. Já no computador da caverna estão planos

de todos os tipos, que vão desde simular a morte de Bruce Wayne ao mundo, como até assu-

mir o controle da cidade em casos mais drásticos. Esse procedimento frio, lúcido, dialoga com

a calorosa, perturbadora lembrança da morte dos pais, que sempre lhe servirá de motor para

continuar a fazer o que faz – não é agradável, mas é conveniente, talvez mais do que se ima-

gina...

A epistemologia de Bergson aponta numa outra noção de imagem, uma sofistica-

ção da dualidade entre realismo e idealismo: não importa descobrir se uma imagem é real ou

idealizada, a validade dela estará na sua presença para alguém, no seu status de acontecimen-

to, seja de qualquer ordem ou natureza. Se a noção de realidade para seu antecessor, Friedrich

Hegel, estava na coletividade – se a maioria das pessoas vissem uma mesma coisa, isto seria

real, caso contrário, estar-se-ia louco ou delirando. Para Bergson, ao contrário, não há distin-

ções de importância, nem limites físicos ou temporais para as imagens. A filosofia hegeliana

se basta por um controle dos semelhantes enquanto a bergsoniana afirma o descontrole das

diferenças. Em Bergson, para cada um haverá uma própria imagem, que às vezes coincide, às

vezes discorda com os outros, dependendo de cada convenção cultural, como as cores do ar-

co-íris – alguns vêem sete, outros mais, outros menos, podendo também ser contempladas

como um rico degradê.

- “Você gosta de morcegos?” Pergunta Bruce (Val Kilmer) para a psicológa Cha-
se Meridian (Nicole Kidman), ao ver uma imagem semelhante a um morcego no
escritório de Chase.
- “É um teste de Rorschach, Sr. Wayne. Um borrão. As pessoas vêem o que que-
rem. A questão é: você gosta de morcegos?” (Batman forever, 1995, filme de
Joel Schumacher).
44

Se toda imagem torna-se válida, dependendo muito de qual posição tomamos, de

por onde enxergamos, o passado deixa de ser algo objetivo para se assumir como uma eterna

construção de novos olhares, que retorna ao mesmo tempo em que se recria e se projeta.

“Nosso passado, (...) é o que não age mais, mas poderia agir, e que agirá ao inserir-se numa

sensação presente da qual tomará emprestada a vitalidade” (BERGSON, 1990, p. 197). As-

sim, nesse vital emprestado, na repetição – não como cópia, mas como nova possibilidade –,

ousa-se duvidar do passado enquanto verdade: ao se aniquilar a linearidade – pois o passado

transforma-se em um outro presente quando revisto –, estabelece-se uma crise temporal, que

envenenará as concepções do homem e suas leis naturais. Causa e efeito não farão mais senti-

do.

Eis a charada: Batman não tomou emprestado algo maior para justificar algo me-

nor? A morte dos pais, toda culpa, dor e medo que a cercam, como razão para uma poderosa

sutileza de um morcego que veio antes e depois? Não seria o assassinato uma justificativa de

seu comportamento, plausível para si mesmo e para os outros, mais do que meramente uma

obsessão por morcegos? Quantas vezes foi necessário retomar a lembrança de um trauma para

manter-se num destino? Parece-me apropriado fazer uma livre associação com o texto “Sobre

o conceito da história” de Benjamin:

Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização.
Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões,
ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza en-
quanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico
quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma
imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma opor-
tunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido (BENJAMIN, 1987, p.
231).

Imobilizar uma imagem do passado para permitir que ela possa gerar uma outra

realidade, se tornar numa esperança de vingança, mas mesmo assim, um pretexto disfarçado

de associação para ainda uma outra presença muito mais viva e intensa, soterrada na escuridão
45

– seria esta a grande caverna de Batman? É preciso passar pelo relógio que oculta a entrada da

caverna, posicionando os ponteiros no horário do assassinato dos pais de Bruce para penetrar

neste subsolo sujo, sombrio e inóspito, com acesso por meio de uma escada espiral, onde,

entre estreitas reentrâncias e formas pontiagudas, guarda-se e repele-se o mais obscuro segre-

do do subconsciente do homem-morcego... mas Batman não é ingênuo: “nos meus mais som-

brios momentos, eu sou atormentado pela idéia de que o assassinato dos meus pais foi a me-

lhor coisa que já me aconteceu. Cinicamente, digo a mim mesmo que isso deu à minha vida

um destino e os meios para realizá-lo” (Guerra ao crime, p. 36).

Aqui que começa a morte do homem no morcego: quando o homem perde sua

causa, seu sentido, seu conceito, quando se confunde numa falta de cronologia, que se estende

no adulto que nunca cresceu, e na criança que nasceu grande. O homem em vias de morrer

flutua sobre diferentes acontecimentos, fictícios ou não, tirando-os de um passado e os tor-

nando a se repetirem, num devir louco, que não tem origem, apenas fragmentações de lem-

branças. Com isso, o homem não vê outra saída senão criar e multiplicar aquilo que não tem

apenas um só chão para se afirmar: disto resulta o despedaçamento de uma identidade que não

pode mais ser inteira na ausência de um passado claro e distinto.

3.2 ECOS DA CAVERNA...

“Uma vez que a personalidade começa a se dividir... as possibilidades... são infini-


tas.” (Bruce Wayne, sentado em sua mansão, estranha a sua enorme sombra projeta-
da na parede, pela luz que vem da lareira, em “A terceira máscara”, de Hatsuhiro
Otomo, em Batman: preto e branco vol. 1 n° 4, p. 43-44)

Personagens mascaradas de hqs costumam ser entendidas em duas partes: o ho-

mem e o herói – isso sempre foi uma leitura muito ingênua. Se olharmos com maior atenção,
46

desde o surgimento da personagem Batman nas histórias em quadrinhos, veremos muitos e

diametralmente opostos homens-morcego – nisto estão incluídos tanto elementos interiores à

dramaturgia da personagem quanto questões editorais ou modismos. Não podemos esquecer

que parte dessa pluralidade de personalidades e histórias deve-se à avançada idade da perso-

nagem, e as dezenas, talvez centenas, de quadrinhistas e outros profissionais que acrescenta-

ram algo à narrativa do morcego.

Atribuir a autoria de Batman a Bob Kane é apenas uma formalidade legal, uma

cortesia jurídica, diante de uma personagem que perdeu os pais muito cedo e se viu livre para

novos mundos e descobertas. Mesmo que as raízes editoriais o cerceiem, o morcego conse-

gue, algumas vezes, levantar vôos de maior altura do que o costume, nem que para isso seja

de forma sorrateira, escondido nas sombras – conta um boato entre leitores que O cavaleiro

das trevas somente aconteceu porque a DC comics, na época, não se preocupava muito com

uma estabilidade sobre a imagem da personagem, que não andava muito bem de vendas.

Na sua primeira história, na hq Detective comics nº. 27, de maio de 1939, Batman

age sozinho, é agressivo e sério. A narração destaca o mistério e as habilidades físicas e inte-

lectuais do detetive que no final da história, reagindo a um ataque, acaba matando seu inimi-

go. Somente nos dois últimos quadrinhos, no mover de uma pesada porta da mansão Wayne,

descobrimos que Batman é na verdade Bruce, o fútil e entediado amigo do Comissário Gor-

don que gosta de ouvir crônicas policiais enquanto fuma seu cachimbo.

Visando uma proximidade maior com o público juvenil, a equipe de criação de

Batman, em menos de um ano depois de sua primeira aparição, lançou, na Detective comics

nº. 38 o primeiro grande e mais famoso sidekick9 das hqs: Robin estreava no mundo do mor-

9
Sidekick é um termo usado nas hqs para denominar os jovens parceiros dos super-heróis. Robin teve tanto êxito
no seu objetivo, que tal procedimento se tornou padrão: Aquaman foi acompanhado de Aqualad, Arqueiro
Verde de Ricardito, Flash de Kid Flash, além das versões juvenis que necessariamente não precisavam cami-
nhar ao lado de seus inspiradores, como Superboy e Moça-Maravilha. Nos anos 1960, com o sucesso dos X-
men na Marvel comics, a DC procurou criar um grupo de super-heróis com uma rotina o mais próxima pos-
sível de uma família comum. Diferentemente da impessoalidade e profissionalismo da Liga da Justiça, eram
47

cego, alterando crucialmente o rumo das histórias. Batman nunca mais mataria, uma das suas

preocupações seria dar bons exemplos ao Robin – o clima noir dos pulps da época aos poucos

ia se apagando. Da segunda metade dos anos 1950 à segunda metade dos 1960, Batman e Ro-

bin participariam de diversas histórias de ficção científica, derrotando máquinas gigantes,

viajando entre diferentes épocas e espancando ETs de todo o tipo. O ápice desse Batman mais

suave se deu na segunda metade anos 1960, com a popularidade do seriado de televisão Bat-

man (1966/67/68), de William Dozier, quando as hqs do homem-morcego se tornaram essen-

cialmente cômicas e despreocupadamente divertidas.

Muitas dessas mudanças nas hqs de Batman, abandonando as aventuras urbanas e

partindo para o espaço sideral, se deve ao código de ética imposto aos quadrinhos nos anos

1950, em conseqüência ao livro “Seduction of the innocents” (1954), de Frederic Wertham,

que acusava as hqs de provocarem preguiça e delinqüência juvenil. As associações de pais, e

movimentos moralistas em nome da integridade familiar, foram até o senado estadunidense

exigir alguma atitude diante do perigo que representava as hqs, encontrando simpatia na causa

do senador McCarthy e nos aglomerados políticos de direita. A temporada de caças às bruxas

promovida pelo mccarthysmo nos EUA resultou que diversas editoras de quadrinhos de hor-

ror tiveram de fechar. A homossexualidade de Batman e Robin, a influência negativa de um

homem-morcego sobre um jovem inocente, comentada na obra de Wertham, levaram as histó-

rias a aproximarem Batman de um sujeito bem-humorado, muitíssimo responsável, que conta

com o apoio das autoridades e que tem uma namorada – Robin também tem a sua. Batman era

igual a um policial, mas de máscara. Talvez estivesse no humor, no sarcasmo do seriado ses-

sentista, a ironia que Batman representava moralmente: um criminoso bem-visto pela socie-

dade.

procurado conflitos de convivência, crises de amor e ódio. Assim então nasceram os Jovens Titãs: grupo jo-
vem que reunia praticamente todos os sidekicks do universo DC – Robin era, e ainda é na figura do terceiro
Robin, o líder do grupo.
48

Em 1997 foi lançado o filme Batman & Robin, de Joel Schumacher, que parte de

uma premissa parecida com a dos anos 1960, mostrando o bom criminoso homem-morcego

divertindo-se com a grande brincadeira que é ser um super-herói. No filme, Batman (George

Clooney) tem até seu bat-cartão-de-crédito. Em contraste com o melancólico, na hq Batman:

Ano um, vemos também o entusiasmo infantil que causa ao jovem Bruce Wayne, recém Bat-

man, sair por aí fantasiado, assustando os outros. Numas de suas primeiras aventuras como

Batman, ainda inexperiente, ele se envolve numa situação em que precisa segurar um bandi-

do, para que este não caia de uma altura de vinte andares, enquanto outro, o golpeia pelas cos-

tas com um televisor – o traço verossímil, de ladrões tipicamente comuns contra um homem

fantasiado com uma sunga por cima das calças, contribui para a comicidade e o ridículo, ao

mesmo tempo em que causa grande ansiedade a determinação de um jovem Batman, ainda

muito atrapalhado.

Apesar destes opostos históricos, Batman sério e misterioso de um lado e Batman

amistoso e público de outro, foi nos anos 1970, com a retomada de um Batman mais sério e

sombrio, que começamos a avistar os fragmentos de identidades coexistindo mais claramente:

não se tratava apenas de dois – o herói e o homem –, e sim de no mínimo três personagens.

Sempre houve o falso, o Bruce Wayne público, um playboy bilionário, às vezes filantropo, às

vezes fútil e grosseiro. Porém Batman se percebeu dividido em dois, um com a máscara e

outro sem: este último era o Bruce Wayne no íntimo, na solidão dos seus pensamentos, o Bru-

ce que viu seus pais serem mortos, que viajou pelo mundo, aprendeu de tudo o que fosse ne-

cessário e retornou para Gotham – o homem temeroso, em conflito consigo mesmo, cheio de

dúvidas.

No filme Batman begins vemos claramente essa tríade: há o Bruce cínico que fre-

qüenta jantares caros e se embriaga em festas da alta sociedade, o Bruce homem, sensível, e o

Batman, como uma força sedenta, furiosa, uma vontade de vingança. Essa divisão em três,
49

típica dos anos 1970, já aponta uma crise que se intensificará mais adiante. Ainda no filme,

Bruce Wayne (Christian Bale) comenta “teatralidade e ilusão são agentes poderosos” quando

se refere às impressões que Batman causa na cidade. Poderíamos com isso supor o Bruce ín-

timo como o autor, e os outros, as personagens, mas no mesmo filme isso é posto em dúvida

quando Bruce se depara com a amiga de infância Rachel (Katie Holmes), que acabou de des-

cobrir sua outra identidade:

- “Eu nunca havia te esquecido...Então eu soube da sua máscara.”


- “Batman é um símbolo, Rachel.”
- “Não. Esta máscara...” continua ela com a mão sobre o rosto de Bruce. “Seu
rosto é agora o que os criminosos temem, o homem que eu amava, que partiu
[na jornada pelo mundo], nunca mais voltou...”

Quanto mais o Batman se afirma, mais o Bruce intimista sucumbe. As inseguran-

ças, os questionamentos do homem comum se transformam dentro do jogo obsessivo do ho-

mem-morcego – ainda assim, há dois ali, que se misturam, se encobrem. O teatro que repre-

senta o Bruce público parece contaminar o Bruce reservado e o Batman, que se perdem na

encenação das máscaras, a ponto de não sabermos ao certo quem se sobrepõe a quem. Seria o

homem consciente do delírio patológico que representa o Batman, ou o Batman consciente do

jogo que significa o homem? Até mesmo o Bruce aristocrata poderia ser a identidade predo-

minante – é com cinismo que ele vê tudo aquilo que faz parte do homem e do morcego: “um

cara que se veste como morcego obviamente tem problemas” diz ele aos seus amigos da elite

gothamita em Batman begins.

Bruce Wayne, que estudou teatro e maquilagem, nem sempre recorre à fantasia de

morcego para investigar ou perseguir criminosos: freqüentemente ele se disfarça de mendigo,

traficante, operário, militar... Mesmo que isso não altere decisivamente sua personagem, re-

força seu caráter camaleônico, suas camadas ofuscadas e justapostas.


50

Na graphic novel Batman: Ego (2000), de Darwyn Cooke, levanta-se ainda uma

outra possibilidade: haveria dois Batmen mascarados, um seria uma força misteriosa, mística

e monstruosa, à procura de um hospedeiro, e o outro, carente, que não suportou ser deixado

pelos pais, e precisa desesperadamente da companhia de um Robin, além de ser também vai-

doso, orgulhando-se de si próprio ao ter seu sinal luminoso projetado no céu e possuir um

carro potente e majestoso. Ainda nesta hq, o Batman monstro joga Bruce contra sua galeria de

troféus na caverna – local onde peculiares objetos usados pelos seus vilões foram guardados,

como um tiranossauro robô, uma moeda gigante do Duas-Caras, uma carta também enorme

do Coringa... Também consta na caverna um uniforme de Robin dentro de um vitral – abaixo

há uma placa com os dizeres “em memória de Jason Todd”, o segundo Robin, morto pelo

Coringa. Em Ego, será o Batman mais frágil que optará por nunca tirar vidas, devido à profis-

são de médico do pai, e sua infindável determinação em salvar vidas10. O valor à vida ensina-

do pelo pai, em correspondência de seu banal assassinato foi decisivo para a ética do morce-

go.

Batman, Bruce, e todas as suas variantes deparam-se com uma outra noção de fic-

ção que não se trata de uma reles “mentirinha”, mas de uma poderosa construção inteligível

que põe em questão as ferramentas que utilizamos para distinguir um fato de uma ficção11.

Existe diferença entre os dois? Como acusar um homem-morcego de delírio, falsidade, quan-

do o conjunto de argumentos que ele tem para se sustentar enquanto indivíduo. São tão arbi-

trários e refutáveis quanto os mesmos que uso para me sustentar enquanto homem, como do-

cumentos, registros, hábitos culturais? Na morte das verdades do homem e na vida por vir da

personagem se estabelece uma importante oposição entre a tradição filosófica e Nietzsche: na

10
Na série O longo dia das bruxas (1997/1998) de Jeph Loeb e Tim Sale, Thomas Wayne não se negou a salvar
a vida do maior chefão do crime de Gotham, que bateu em sua porta na mansão, no meio da noite, baleado, com
medo de ir ao hospital, a acabar sendo preso ou morto – o mafioso foi atendido ali mesmo, sobre a mesa de jan-
tar, e Bruce assistiu a tudo, escondido. Aquilo impressionou muito o garoto (n° 6, p. 1-4).
11
Jacques Rancière em “A partilha do Sensível”, capítulo quarto.
51

primeira está uma única verdade, um único caminho, impositivo e limitante, no outro estamos

diante de muitas e, ao mesmo tempo, nenhuma verdade.

O que é verdade portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropo-


morfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e
retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que,após longo uso, parecem a um povo só-
lidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que o
são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam
sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.
(NIETZSCHE, “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”, 1999, nº. 57)

A morte do homem, iniciada na incapacidade de um passado, se prolonga, nos

seus últimos suspiros, quando o homem não consegue mais recorrer a uma individualidade,

uma essência, um controle sobre uma verdade de si. Sem uma memória, ou melhor, com uma

memória que sempre muda dependendo de onde e quando a visitamos, e sem uma personali-

dade cristalizada, assim, uma outra identidade é avistada, se fazendo e em vias de se recons-

truir, diante do atemporal, do divisível e multiplicável. Afirmando-se com força monstruosa,

projetada e inscrita sobre tudo o que a cerca, a máscara então, reclama seu posto, triunfante.

3.3 O ROSTO É A MÁSCARA

Em Nietzsche, há um princípio comum aos homens: a vontade – em toda vontade

divide-se um tirano que cruelmente ordena e um escravo que obedece cegamente (NIETZS-

CHE, 2005, p. 23).12 Se nos é permitido recomeçar, não mais procurando a verdade por trás

da máscara, mas a vontade que guia esta máscara, veremos que o ponto de partida é o mesmo

de chegada: a máscara é a vontade e também a única identidade. No ser de Batman, em seu

12
Além do bem e do mal.
52

fragmento e eterna construção, a máscara torna-se o único e aparentemente confiável rosto

que podemos apontar.

“A imagem-afecção é o primeiro plano, e o primeiro plano é o rosto...” (p.114)

Com essa afirmação Gilles Deleuze começa seu primeiro capítulo sobre a imagem-afecção em

A imagem-movimento (1983).13 Utilizando-se do exemplo de um relógio que se divide em

ponteiros animados por micromovimentos e um mostrador como superfície receptora imóvel,

Deleuze aponta dois pólos existentes no rosto. Um que apresenta um contorno rostificante,

como uma admiração ou espanto – a superfície do relógio – e outro associado à micromovi-

mentos de expressão que garantem os traços de rosticidade, como amor e ódio – os ponteiros

do relógio. Há então no rosto o contorno e a expressão.

No contorno, segundo Deleuze, exprime-se uma qualidade pura, uma qualidade

comum a vários objetos de naturezas diferentes. Por exemplo, o sentimento de admiração,

afeição, de uma mãe que observa seu filho pequeno brincar, assim como um lustre de família,

que traz consigo toda uma história comum de vivências entre familiares – o lustre parece ob-

servar em ato de contemplação a família a que ele pertence. Na expressão se manifesta uma

potência pura, uma série que nos faz passar de uma qualidade a outra. É quando uma expres-

são triste se permite transformar-se em alegria: é a transitoriedade que marca a expressão do

rosto, que também pode estar contida num objeto, um balanço infantil vermelho, antes sinô-

nimo de vida e brincadeira de crianças, e depois, inscrita em sua madeira apodrecida, a lem-

brança melancólica de um terrível crime. “O afeto é a entidade, isto é, a Potência e a Qualida-

de” (p.126).

O contorno é quase que a total objetificação do rosto, como qualquer outro objeto:

um relógio, uma porta, uma janela. Na expressão há mais traços de vivacidade, de qualidades

13
Deleuze utiliza a imagem no sentido amplo, bergsoniano, que vai desde uma história em quadrinhos até um
policial que encontramos na rua. Imagem é tudo e todos, um cheiro, um sentimento, o leitor deste texto.
53

passageiras que mudam conforme esta expressão exerce seu poder, demonstrando amor, ódio,

asco, medo. Não se pode dizer que a expressão do rosto é uma exclusividade do ser humano.

Esta mesma potência de expressividade pode ser manifestada por quaisquer objetos, vide fil-

mes clássicos de terror, onde elementos como corredores, escadas ou espelhos parecem já ter

sua expressividade, sua capacidade de demonstrar seus sentimentos, desejos.

Quanto mais se humaniza os objetos, mais se desumaniza o próprio rosto humano.

O rosto não é mais o rosto social, da individualidade. “Não há primeiro plano de rosto (...) o

primeiro plano é por si mesmo rosto” (p.115). Ou seja, o primeiro plano é o rosto da imagem.

Aqui, o primeiro plano de que fala Deleuze não é apenas o rosto de uma personagem, o pri-

meiro plano é tudo aquilo que imprime uma rosticidade – expressão – ou rostificação – con-

torno –, não importando se o que vemos é o detalhe de uma maçaneta ou a visão geral de um

castelo. Este rosto, primeiro plano que é afeto, não se limita a enquadramentos – ele pode se

espalhar por tudo, contagiando, “afetando” todos os espaços e tempos.14

Para um afeto prevalecer, para um rosto ser um rosto, é necessário eliminar qual-

quer perspectiva ou profundidade. O afeto é um ente único, indivisível, independente de qual-

quer espaço-tempo determinado, é uma qualidade ou potência, e deste modo não é relaciona-

do com coisa alguma. Se o afeto é o rosto, este não é uma parte de um corpo, ele é o próprio

corpo. O rosto é somente ele e não precisa de mais nada.

Com Batman, o rosto é a máscara, ela que permeia tudo aquilo que vemos no

mundo do homem-morcego. Ao olharmos por trás da máscara nos deparamos com um espe-

lho. Ela se propaga e se torna a positividade mestra do universo do morcego, residindo em um

jogo contraditório – na mesma máscara estão a expressão e o contorno, mas em pontuações

diferentes.

14
É importante destacar que tais classificações e divisões deleuzeanas não se tratam de uma taxionomia preten-
siosamente verdadeira sobre o rosto, mas apenas uma ontologia metodológica, uma maneira pessoal de ler,
ver.
54

A princípio, o contorno será a realidade presente em Batman: veremos esculturas,

rostos de gárgulas demoníacas na catedral de Batman, de Burton, feições austeras de muscu-

losos operários que se confundem com poderosos líderes fascistas em Batman & Robin de

Schumacher e Batman returns (1992), de Burton, ou ainda heróis à espera de redenção em

Batman forever (1995), de Schumacher. Haverá anjos e santos que clamam pelo pai em Bat-

man: Guerra ao crime, de Dini e Ross, a cidade na forma do corpo de um homem-morcego

dolorosamente aprisionado entre prédios, em Batman: Ego de Cooke, ou a ausência da cor de

pele, mesclando-se à cor da máscara em Asilo Arkham, de Morrison e McKean. O Batmóvel

trará consigo adereços de asas de morcego, ou na sua frente um rosto de morcego, podendo

ainda se assemelhar a um morcego de asas fechadas em Batman begins, de Nolan. Há também

a batmoto, a batlancha e o batplano, na forma de um gigantesco morcego – todos sem rostici-

dade, há apenas uma rostificação, a qualidade pura da máscara do morcego.

Porém a expressão persiste, não como realidade deste universo, mas como virtua-

lidade, lembrança e promessa de algo que não está ali, mas que já esteve e está sempre por vir

na fragmentação do passado de Batman e na transitoriedade de suas personalidades. Quando

chegar o dia em que a máscara do morcego se apagar, sucumbir à escuridão, essas pluralida-

des temporais e espaciais explodirão pelos ares, numa transitoriedade infinita, potência pura.

Isso fica bem evidenciado em Batman begins. Na primeira hora do filme, em

que ainda não há Batman, somos cercados de diferentes movimentos expressivos. Há o

Bruce Wayne criança, feliz com a família; assustado pelos morcegos; abalado pela morte

dos pais; revoltado com a injustiça; perdido; e por fim, determinado a encontrar um outro

rumo. Assim também acontece com as outras várias personagens, cada uma em seu próprio

curso, em suas próprias rosticidades, como Ra‟s Al Ghul (Ken Watanabe), líder da Liga

das Sombras e mestre de Bruce na arte do medo; a promotora Rachel Dawes (Katie Hol-

mes) defensora da lei; o fiel mordomo Alfred (Michael Caine), responsável pela manuten-
55

ção do legado da família Wayne; o honesto e impotente sargento de polícia James Gordon

(Gary Oldman); o esquecido cientista Lucius Fox (Morgan Freeman); e o corrupto psiquia-

tra Jonathan Crane (Cillian Murphy).

Porém tudo muda ao surgir a máscara de Batman: o filme se transforma, e o

rosto de homem-morcego se espelha sobre tudo e todos. Gotham, que parecia uma grande

cidade comum, assume uma duríssima face – um limbo fértil para toda sorte de crime e

corrupção, confundindo o olhar com seus vapores e descarregando ódio e fúria entre tem-

pestades. Todos os coadjuvantes agora têm um propósito comum, Alfred e Lucius servem

ao Batman, Gordon é seu contato na polícia, e Rachel sua aliança no judiciário. Crane toma

o lado oposto da guerra, mas também se sujeita à máscara de morcego que contamina – ele

se torna o vilão Espantalho, utilizando uma máscara de trapos, desprovida de qualquer mo-

vimento. Se antes de surgir Batman tínhamos muitas rosticidades e diversas expressões,

agora só há uma cara, uma qualidade, que se manifesta pelo contorno. O Batmóvel, a trilha

sonora, todos se tornam estáticos – formas severas da rostificação de Batman. Até mesmo

o antigo aliado, Ra‟s Al Ghul se coloca como vilão na imagem de outra pessoa (Liam Nee-

son) – todo o trânsito emocional que víamos em seu rosto no início do filme se perde na

sua transformação em cruel vilão. Os contornos do rosto então reinam por toda Gotham,

mas com uma diferença crucial: o passado de movimentos expressivos sempre vai estar lá,

e sempre retornará como uma lembrança assustadora e ao mesmo tempo catártica, uma ten-

tativa de fuga, fomentando uma nova esperança.

A dualidade entre expressão e contorno, pode ser também vista no filme Bat-

man, de Burton. No rosto de Gotham prevalecem os contornos – gótica, com suas imensas

torres apontando para os céus. A cidade revela também uma aparência extremamente me-

canicista: vemos formatos de engrenagens, rótulas, moldes, máquinas de montagem, peças

mecânicas em prédios, ruas e portas. Batman é quem personifica esse mundo: sua máscara,
56

sempre de expressão austera, é também desprovida de movimentos – até mesmo sua boca,

que fica visível, mantém a rigidez da máscara. O uniforme de Batman, duro, com pouca

mobilidade, complementa, assim como o pesado Batmóvel, os contornos mecanicistas que

são determinantes até mesmo no Bruce Wayne. Sua expressão é igual à da máscara, porém

fortalecida com maior apatia – as sobrancelhas lembram o próprio desenho da máscara.

Apenas os olhos partem em outra direção: seu olhar nos faz lembrar o de uma criança que

viu seus pais serem assassinados. Na foto que mostra o jovem Bruce após o crime, Vicki

Vale (Kim Basinger) associa “o olhar do garoto” com um Bruce Wayne adulto – ausente,

parece que o olhar se estagnou na fatídica noite e nunca mais retornou ao movimento. Essa

melancolia de um órfão que nunca mais recuperou aquilo que seus pais significavam a ele

é o que vemos quando fitamos os olhos de Batman. A ausência se expande quando Bruce

se coloca na posição de bilionário e socialite: ele não se sente à vontade nos eventos sociais

de que participa; mesmo estando lá, ele não está – Alfred (Michael Gough) precisa acom-

panhá-lo para indicar como se portar com a alta elite, apontar em qual parte da mansão está

uma sala de jantar, a entrada da caverna... Esse comportamento é o rosto mecanicista de

Batman – tanto a postura de Bruce Wayne como a do herói são um acúmulo de movimen-

tos mecânicos, automáticos. Até mesmo quando está espancando um oponente, ele parece

se mover sem vida. Sua apatia torna-se tão grande que mesmo em momentos mais carrega-

dos de emoção como quando Bruce justifica a Vicki porque se tornou Batman, não há e-

moção alguma, não se vê qualquer expressividade em movimentos faciais, a expressivida-

de está sempre no que não está ali, no que está faltando.

Nesse rosto de morcego que se espalha, inevitavelmente alguém teria que se

opor, e este é o vilão Coringa (Jack Nicholson). Em contraste com essa realidade cinza,

melancólica e apática, surgem uma alegria, um humor e um novo colorido: Coringa está

sempre rindo, sua face é deformada numa constante risada e, apesar de imóvel, é ela que
57

destrói a ordem dos contornos, e traz consigo o caos, a mobilidade, a expressividade em

pequenos movimentos de olhos, boca, sobrancelhas, que transitam entre a depressividade

de um palhaço e a crueldade sádica de um assassino. Conforme Coringa age, ela muda Go-

tham, as formas mecânicas saem de cena conforme ele pinta, destrói e mata tudo o que to-

ca. O antagonismo entre Batman e Coringa é total: Coringa matou os pais de Bruce, e

Batman acidentalmente deixou Coringa cair no tanque de produtos químicos que o defor-

mou – como se um precisasse do outro para se libertar de sua própria face. Trata-se de um

duelo de rostos o que vemos em Batman: uma criança sozinha e tristonha, que procura al-

gum sentido na vida, contra um adulto que não vê mais sentido algum e só o que resta é vi-

ver morrendo, e matando, de tanto rir.

3.4 A MÁSCARA É A VERDADE

A sufocante imposição da máscara de morcego e a busca por libertar-se dela se re-

fletem de forma mais intensa naqueles que se mascararam, que aceitaram essa outra realidade,

e que agora partem em sentido oposto, numa fuga desesperada: o menino Richard “Dick”

Grayson vivia e trabalhava no circo Haly desde que nasceu – junto com seus pais, talentosos

trapezistas, formavam os “Graysons Voadores”. Por não aceitar extorsão, o dono do circo foi

ameaçado: numa noite de espetáculo, em que Bruce Wayne, recém Batman, estava presente,

as cordas do trapézio foram sabotadas, e na queda os pais de Dick morreram na sua frente. O

enquadramento usado comumente nas hqs e audiovisuais, de um casal morto dentro de um

círculo no meio do picadeiro é muito semelhante ao da morte dos pais de Bruce, dentro de um
58

círculo de luz. Na repetição da tragédia, de um menino semelhante fisicamente, de doze anos,

Bruce vê um espelho15.

Como o garoto havia identificado o assassino dos pais, para sua proteção, Dick fi-

cou sob a guarda de Bruce, até que Gordon investigasse o crime. Convivendo na estranha ro-

tina da mansão, na companhia de Alfred, logo Dick percebeu que aquela não é uma família

normal – o homem-morcego se revela a ele. O garoto é treinado por Bruce até assumir o man-

to de Robin, após, o mesmo juramento que Bruce havia feito quando criança: “combater o

crime e a corrupção, e nunca se desviar do caminho da justiça.” Na linha Grandes astros, em

que se busca produzir histórias livres da cronologia, com base nos elementos mais marcantes

das clássicas personagens, Batman, ao salvar o jovem Grayson de policias corruptos, envolvi-

dos na recente morte de seus pais, o ergue pela camisa, no meio de uma revoada de morcegos:

“de pé soldado”, Batman diz, “Você acaba de ser convocado para uma guerra” (Grandes as-

tros: Batman & Robin 01, p. 23-24).

A distinção do uniforme de homem-morcego para menino-prodígio é grande:

Batman veste cinza e azul escuro, uma máscara com orelhas de morcego que tapa toda sua

cabeça e uma comprida capa de vampiro. Já o manto original de Robin é composto de uma

máscara que apenas lhe esconde a região em volta dos olhos – tipo Zorro –, sapatos verdes

tipo duende, uma curta capa amarela, um colete vermelho, além de luvas e sunga também

verdes, deixando parte dos braços e as pernas inteiramente expostas – todas as cores são quen-

15
A narrativa do surgimento de Robin é constantemente recontada e reformulada, assim como qualquer evento
referente ao passado dos super-heróis. Procurei me ater naquilo de mais essencial à história. Na ausência de
uma narrativa definitiva, felizmente, me reservo no direito de recontá-la ao meu olhar, construindo dentro das
contradições entre versões, aquilo que acho crucial à narrativa. Esse procedimento que adoto, onde tento de
alguma forma manter o rigor da pesquisa e, ao mesmo tempo, me permitir a elaboração de mais uma versão
sobre uma personagem, será comum neste trabalho a todo o momento em que abordar algum passado, algu-
ma narrativa das personagens, sejam heróis, vilões ou coadjuvantes. Para contar o começo de Robin, me ate-
nho em diferentes hqs; entre as principais estão: Detective comics n°. 38 (1940), assinada por Bob Kane, em-
bora nesta época apenas assinava as histórias os criadores das personagens, mesmo que em nada contribuís-
sem. Até onde consegui apurar em prefácios de hqs, Bob Kane, Bill Finger e, Jerry Robinson foram respon-
sáveis pela criação de Robin. Já as outras histórias que me baseio para contar a narrativa do menino-prodígio
são todas pós-crise nas infinitas Terras: Batman: Ano três (1989), de Wolfman, Broderick e Beatty, Vitória
59

tes e chamativas. Se do ponto de vista moralista, já não é algo muito correto conduzir um ado-

lescente em perigosas e violentas aventuras, muito menos o é dar-lhe o mínimo de proteção e

descrição. Robin é um alvo, o menino-refém como o chama Duas-Caras: alguém que distrai

os criminosos enquanto Batman ataca pelas sombras. Até o Comissário Gordon estranhou a

primeira vez que viu Robin, mas aceitou. Seja como for, e talvez seja isso que Gordon enten-

deu, a significância do menino-prodígio está para além da moral. Robin é a luz necessária

para que o homem-morcego não caia definitivamente nas profundezas do abismo na caverna –

com Robin ao lado, Batman torna-se mais zeloso, mais responsável por aquilo que está legan-

do. A empreitada do morcego não fica tão solitária, há uma alegria juvenil na sua guerra, que

ele sozinho não consegue ver. Batman depende de um Robin para se sentir amado, vivo. Em

O cavaleiro das trevas, ao voltar a pilotar o Batmóvel – nome inventado por Dick segundo a

hq – Batman relembra-se com amargura do passado no banco vazio ao seu lado, ele lamenta

“...onde está você, Dick? Você sempre foi minha melhor arma...” (O cavaleiro das trevas, nº.

2, p. 22, 28)

Dick Grayson sempre foi um adolescente disciplinado, mas muito autoconfiante –

quando desobedecia alguma ordem direta, costumava se sair bem. Batman tolerava, embora o

repreendesse enfaticamente. Nos anos 1970, as hqs regulares de Batman começaram então a

explorar uma nova relação: Dick estava crescendo, não tolerava mais as limitações de Bat-

man, nem via mais sentido em vestir-se de Robin – estava cansado de viver na sombra do

morcego. “As suas regras, o seu jeito, ou rua!? É Batman e Robin, não Robin e Batman!” diz

Dick (Chris O‟donnel) em Batman & Robin.

Em meio a intensas brigas e mágoas com Batman, que até hoje não foram total-

mente superadas, uma crise de identidade vai abalar Dick, que passa a duvidar se foi apenas

aquilo que Batman esperava dele. Grayson se afastará de Bruce: vivendo sozinho, agora adul-

Sombria (1999/2000), de Loeb e Sale, e Grandes astros: Batman & Robin 01 a 04 (2006), de Miller e Jim
Lee.
60

to, de cabelos compridos, assumirá um novo uniforme, ele será Asa Noturna – herói que de-

fenderá Blüdhaven, cidade vizinha de Gotham. Sua roupa é escura, urbana, tem um símbolo

azul no peito, não tem cinto de utilidades, e é sem capa – manteve apenas a máscara, com

pequenas alterações. Bruce e Dick passaram anos sem se ver ou falar.

Desde os quadrinhos nos anos 1980 até os dias de hoje, o grande conflito de Dick

será sua relação com Batman – ao mesmo tempo em que admira seu mestre, ele se distancia,

na vontade de encontrar, afirmar seu próprio rosto. Isso se reflete na suas profissões, Dick não

consegue se fixar num emprego, já foi garçom, empresário de circo, policial, segurança... A

única em que ele ainda tem êxito é como vigilante mascarado – mesmo assim, às vezes acon-

tece de Asa Noturna, no salvamento dos fracos e oprimidos, ser comparado ao Batman, algo

que lhe traz grande incômodo. Às vezes, em casos extremos, Dick assume o manto de morce-

go por alguns instantes, mas acaba sentindo-se muito mal, não suportando o pesado uniforme

por muito tempo.

Essa relação identidade/individualidade ganha uma triangulação com o surgimen-

to do segundo Robin. Carente, desanimado, Batman vê um novo parceiro no delinqüente ju-

venil Jason Todd – ladrão de rodas de carro que ousou roubar os pneus do Batmóvel. Filho de

um capanga assassinado pelo Duas-Caras, Jason passará boa parte da sua curta vida como

Robin, procurando se afirmar como alguém diferente do seu antecessor – nas histórias pré-

crise, Jason era loiro e tinha de tingir os cabelos para ficar semelhante a Dick, a fim de evitar

suspeitas. O segundo Robin é mais cínico, inconseqüente e malicioso que o primeiro. Isso

causará muitas brigas com Batman. Uma das ordens do morcego que Jason desobecedeu foi

viajar sozinho, na procura de sua mãe, sendo traído por ela, que estava aliada ao Coringa: no
61

final, Jason e sua mãe são assassinados pelo vilão na saga Morte em família (1988), de Jim

Aparo e Jim Starlin16.

Com Jason, a tentativa de distinção, fuga da obediência, do condicionamento da

máscara de Robin, e conseqüentemente, de Batman, levou a uma tragédia. Com Dick, a tragé-

dia assumiu outra natureza: ele não se libertou do morcego pela morte ou afastamento, de

forma contrária, se aproximou ainda mais por meio do manto do sombrio vigilante Asa notur-

na. Nesse sentido, a única que reúne a tragédia com o legado, fazendo disso um renascimento,

é Bárbara Gordon, antes Batgirl.

Jim Gordon estava separado há pouco tempo. Insatisfeita com os jantares a que

Gordon não compareceu, com os compromissos familiares que deixou em segundo plano em

nome do trabalho, ao descaso em relação a ela e ao filho recém nascido, além do romance

extraconjugal que ele havia tido com a policial Sarah Essen, enquanto ela ainda estava grávi-

da, sua ex-esposa o deixou sozinho, levando consigo o filho de volta para Chicago. Pouco

depois, o irmão de Gordon e a esposa haviam morrido num acidente automobilístico – a filha

do casal, a pequena Bárbara Gordon, estava órfã. O carinho que Jim não havia dado à sua

família, ele procurou transmitir à sobrinha, que criou como filha. Bárbara estudou biblioteco-

nomia, era talentosa em ginástica e judô, e tinha conhecimento, pelo pai adotivo, da dura rea-

lidade do submundo de Gotham. Quando o cômico vilão Mariposa Assassina invadiu a festa à

16
Aqui cabem duas explicações: nos quadrinhos de heróis no Brasil, costuma-se usar o termo “saga” para referir-
se a uma única história que une as diferentes hqs de um herói por algum tempo. O que caracteriza uma saga é
uma história fechada, que dura meses, às vezes anos, e ao final, mesmo que a história acabe, as personagens
continuam a existir em novas aventuras. Esse termo gera algumas confusões, e determinados editores evitam
usá-lo, mas na falta de algo melhor, opto por mantê-lo, já que estas histórias não podem ser chamadas de sé-
rie – pois suas personagens não tem fim mesmo depois do final da hq –, e também não podem ser vistas sim-
plesmente como histórias regulares, já que costumam envolver muitas hqs que na maioria das vezes possuem
desenvolvimentos relativamente independentes.
O segundo esclarecimento que faço refere-se especificamente a história Morte em família. Esta saga, hoje pro-
movida a graphic novel, foi publicada gradativamente, sendo que cabia aos leitores numa eleição por telefone
escolher seu final – deveria ser decidido se Robin morreria ou não. Boatos entre leitores contam que houve
fraude eleitoral, mas a informação oficial é que por uma pequena diferença foi escolhido que Robin deveria
morrer. Devido à repercussão da saga, a editora Abril a publicou no Brasil com o nome de A morte de Robin,
já no formato graphic novel. Por isso, a partir de agora irei me referir a esta história pela edição e nomencla-
tura – e reedição da qual disponho – adotada no Brasil.
62

fantasia da polícia de Gotham, ferindo Jim Gordon, Bárbara, fantasiada de Batman para irritar

seu pai, tinha recém chegado ao local. A destemida jovem então, aproveitando de seu anoni-

mato, derrotou o vilão. Empolgada com a adrenalina e o mistério que cercavam a imagem do

morcego, além de poder fazer aquilo que as instituições não permitiam a uma menina tão “jo-

vem e frágil”, Bárbara tornou-se a Batgirl. Em Batman: the animated series, no episódio “A

sombra do morcego” (1993), de Frank Paur, a história é semelhante: ao ver Jim Gordon injus-

tamente acusado de corrupção, e ciente do poder que a figura de Batman proporcionava, Bár-

bara fez uma fantasia semelhante apenas para causar algumas impressões, mas acabou partici-

pando de todo um caso que levou ao desmantelamento de uma quadrilha.

Batman e Robin – o primeiro ainda jovem – tentaram desestimular a bela heroína

de longos cabelos ruivos expostos para fora da máscara, mas não foi possível. Adulta, Bárbara

manteve-se como Batgirl, chegando atuar junto do segundo Robin, Jason Todd. Porém, seme-

lhante ao que acontecia com o namorado Dick, Bárbara não via mais com animação ser uma

garota-morcego – abandonou o manto, tentando levar uma vida normal, longe das aventuras

heróicas de Batman, Asa Noturna e Robin. Até que numa noite, o Coringa invadiu sua casa e

a baleou na coluna, deixando-a paraplégica. Bárbara ficou por um longo tempo traumatizada.

Superada a sensação de impotência, voltou a praticar exercícios físicos, treinar artes de luta

com as mãos e natação. Tornando-se uma talentosa hacker, Bárbara, acompanhada de podero-

sos computadores, começou a trabalhar na torre do relógio de Gotham – propriedade das em-

presas Wayne –, no serviço de informação para Bruce, com o pseudônimo de Oráculo. Logo,

a habilidade para invadir e espionar sistemas de dados e programas de controle, e também

para manter uma rede de informantes em várias cidades, levou Oráculo a se tornar colabora-

dora não só de Batman, mas também de todos os heróis, inclusive os da Liga da Justiça – Su-

perman, Mulher-Maravilha, Flash... Também, com a antiga amiga Canário Negro, heroína

com poderes sônicos, e a vigilante Caçadora – que não obtém aprovação de Batman para agir
63

em Gotham City –, formou o trio de heroínas conhecido como Aves de Rapina. Ao se tornar

Oráculo, mesmo mantendo o vigilantismo como atividade, Bárbara conseguiu se libertar do

legado da caverna – a personagem conquistou uma identidade. Não há, ao vermos Oráculo, a

lembrança de Batman, diferentemente do que acontece com Dick, que sempre será o menino

prodigioso do morcego.

Consciente de sua asfixiante influência, atualmente Batman não leva mais uma re-

lação muito próxima com seus aliados: Tim Drake, o terceiro Robin, o mais jovem de todos, o

menino-prodígio detetive, como costuma ser chamado, foi treinado por Batman, mas não há

uma ligação afetiva entre eles como havia com Dick – poucas vezes Tim e Batman atuam

juntos. O terceiro Robin segue carreira solo, atuando mais como espião, investigador e even-

tual suporte. Diferente de Jason, Tim é cauteloso e responsável, e foi ele que se ofereceu a

assumir a herança de Robin.

A personagem Mulher-Gato, embora não seja necessariamente uma aliada do he-

rói, também sofre para libertar-se da máscara de Batman. Conforme na hq Batman: Ano um, a

prostituta apaixonada por felinos Selina Kyle abandonou sua atual atividade, teceu um uni-

forme de gato e, inspirada pelas impressões causadas pelo homem-morcego, tornou-se a sedu-

tora ladra que sempre deixa um arranhão como marca em suas vítimas. Ainda na mesma hq,

Selina decide aumentar a violência de seus golpes, já que tem sido confundida com o morcego

pela imprensa de Gotham.

O passado da Mulher-Gato ainda sofre constantes reformulações: uma das versões

conta que Selina, após o suicídio da mãe, não podendo ficar com o pai alcoólatra, foi encami-

nhada a um cruel e rigoroso orfanato para crianças pobres. Fugindo do lugar ainda muito jo-

vem, viveu nas ruas, praticando pequenos furtos e se prostituindo. Às vezes põe-se em dúvida

se a atividade de prostituta não era apenas um fingimento para praticar roubos maiores. É per-

ceptível nas hqs que Selina é uma atleta incomparável, manuseando com maestria seu chicote,
64

porém nunca foi explicado onde aprendeu tais habilidades, apenas que alguém lhe ensinou

caratê. Batman returns, de Burton, mostra uma outra versão: Selina Kyle (Michelle Pfeiffer)

seria uma frustrada secretária, decepcionada com contos de fadas, que após sobreviver a uma

tentativa de assassinato, numa ressurreição mística entre gatos, revolta-se, costurando a roupa

de voluptuosa felina.

O perfil psicológico da vilã também sofre diferentes variações nas hqs, às vezes

ela é mostrada como uma cleptomaníaca descontrolada, outras como uma mulher fria e domi-

nadora, que sabe exatamente o que está fazendo. Às vezes ela ajuda Batman, combate vilões,

e ainda troca alguns beijos com o herói. Em outras histórias, ela rouba ricos e poderosos, co-

mete diversos crimes e tenta matar, ou ao menos cravar suas garras, ferindo gravemente o

morcego. Por isso são emblemáticos os sinais de costuras e remendos em sua roupa no filme

de Burton – os fragmentos de personalidade de uma mulher-gato. Apesar de tudo, duas coisas

são comuns a todas as suas caracterizações: seu profundo desprezo pelos homens e sua luta

incessante contra a dependência, principalmente em relação ao Batman. Mulher-Gato torna-se

um grito feminino de independência em Gotham: uma mulher que não precisa de nenhum

homem para se proteger ou se afirmar, que não aceita limite algum, fazendo tudo o que dese-

ja, livremente – ainda que em partes. Esse aparente discurso de emancipação feminista não se

sustenta na medida em que Selina não vê problema algum em se condicionar a suas vontades,

e talvez debochar de sua própria feminilidade: ela seduz, explora suas suntuosas curvas, gosta

de luxo e dinheiro, não suporta homens fracos, sentido-se atraída pelos mais bonitos e refina-

dos. Mesmo que ela não esconda sua paixão por Batman, e uma “quedinha” por Bruce – por

muito tempo ela não soube do segredo do morcego –, seu maior pesadelo é se perceber do-

mesticada, ligada a um homem como uma gata castrada, presa à coleira de seu dono. Ainda

mais com Batman, que não tolera a vida de crimes da ladra. A presença dominadora de Bat-

man e a selvagem impertinência da Mulher-Gato que propiciam a instável relação de amor e


65

ódio entre os dois. Selina não se sujeita ao morcego, mesmo mascarada procura encontrar seu

próprio rosto, descompromissadamente egoísta, ousado, mas fatalmente ainda não livre do

rosto do morcego que a impulsionou e retorna em forma de assombração, como mais um

fragmento, assustador e manipulador, dentro da mulher que quer ser gato.

O que vemos em Gotham, enquanto a máscara do morcego persistir, serão contor-

nos recalcando impiedosamente todo o movimento da expressividade. Talvez essa máscara

nunca desapareça. Se na vontade residem um tirano e um escravo, em Batman houve certo

desequilíbrio, o tirano ordenou muito no início, e agora o escravo, ausente no começo, precisa

suprir todas as obrigações até que lhe sejam conferidas outras – e ele sabe que nunca vai dar

conta de tudo o que há por fazer e refazer. Na meta de Batman, está lutar contra todo tipo de

crime, evitar que eles aconteçam, ter o controle sobre a morte, mas ao mesmo tempo, afirmar-

se na liberdade, no porvir de toda nova e arriscada aventura em que ele mergulha. Isso nunca

vai ter fim, é uma oposição de idéias sem possibilidade de síntese. Pode ser que Batman saiba

disso: “eu sei que estou lutando uma guerra que nunca vou poder vencer completamente”

(Guerra ao crime, p. 60). Na contradição, na coexistência dos incompatíveis, na mentira da

verdade e na verdade da mentira, na vontade da máscara, encontra-se o primeiro princípio da

morte do homem no morcego. Nessa estranha identidade, o jogo, o teatro se torna única ver-

dade possível na destruição de todas as outras.


66

4 A SOMBRA DO MORCEGO

Após a repercussão de O cavaleiro das trevas em 1986, muitos outros quadrinhis-

tas se aproximaram da personagem dando uma continuidade a esse novo homem-morcego que

surgia. Se em O cavaleiro das trevas vemos um Batman psicótico, obsessivo, em boa parte

amoral, que desliza entre a figura de um velho tirano em busca de mais poder, e um jovem

revolucionário que deseja que a velha ordem sucumba em nome de uma romântica transfor-

mação do mundo, mais frágil tornaram-se as fronteiras que separam o morcego de seus vilões.

Como era possível dar o status de herói, símbolo dos bons valores de justiça e de liberdade, a

um homem que mastiga e regurgita seu passado, que praticamente não dorme – ou dorme de

cabeça para baixo, conforme sugere Batman, de Burton –, transita entre identidades sem ces-

sar, veste-se de morcego mesmo na reclusão da caverna, atrai menores de idade para uma vida

de crimes e tragédias, desrespeita qualquer autoridade e age ignorando a polícia, encarando-a

como uma instituição totalmente falida? Batman begins, de Christopher Nolan, demonstra

muito bem esta última pontuação quando Batman, fugindo dos policias com seu Batmóvel,

pouco se importa com as colisões e destruições causadas às viaturas e ao patrimônio público

na sua escapada. Além disso, os policias são representados de forma debochada e ridícula,

sendo eles completamente despreparados para um homem-morcego.

Classificar Batman na luta em defesa dos fracos e oprimidos tornou-se pratica-

mente impossível, quando vemos que o altruísmo fica em segundo plano perto do seu imenso

prazer, do egoísmo cínico em perseguir, apavorar e torturar criminosos. Onde o limite sanida-

de/insanidade poderia separar Batman de seus vilões? Depois de O cavaleiro das trevas não

houve mais por onde e essa cerca perdeu todo seu sentido...

Duas graphic novels se tornaram centrais no desenvolvimento da relação entre o

Batman pós-cavaleiro das trevas com seus vilões: A piada mortal (1988), escrita por Alan
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Moore e desenhada por Brian Bolland, que aproximou violentamente o homem-morcego e seu

arqui-rival o Coringa, mostrando as razões – e loucuras – que os tornavam tão semelhantes, e

Asilo Arkham (1989), escrita por Grant Morrison e ilustrada por Dave McKean, que por meio

de uma narrativa perturbadora, Batman se vê coagido a conviver por uma hora com seus vi-

lões, e a perceber que as diferenças eram muito mais tênues do que se imaginava.

Vimos que na morte da idéia tradicional de memória, da individualidade, da uni-

cidade, de uma pretensa essencialidade, começamos a esquartejar partes do cego homem,

prestes a morrer pelas asas do morcego, na busca por uma outra noção de identidade. Neste

capítulo nos concentraremos nos limites da razão – dom supremo da vitória do homem, que se

encontra terrivelmente confuso e doente no asilo da verdade, sob a máscara do morcego, a

fantasia de palhaço e a moeda riscada.

4.1 UM DELÍRIO SOCIAL

Com bastante freqüência o criminoso não está à altura do seu ato: ele o diminui e di-
fama (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2005, p. 66).

Os vilões de Batman, desde seu começo em 1939, sempre foram, em grande maio-

ria, psicóticos e fantasiados. Enquanto os vilões de Superman se caracterizavam por saber

exatamente o que estavam fazendo e qual seria o próximo passo para seu êxito financeiro ou

político, os vilões de Batman tinham metas absurdas e eram movidos em seus crimes, acima

de tudo, pela compulsão. No anos 1960, isso se tornava um dos principais artifícios cômicos

das histórias. Em 1970 houve uma tentativa de abandono dos vilões fantasiados, embora a

loucura permanecesse, até que a partir dos anos 1980, buscou-se repensar quem são afinal
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esses vilões, porque eles são assim e o que há neles de normal, ou seja, a que normas sociais

eles obedecem.

Na graphic novel O longo dia das bruxas (1997/1998), de Loeb e Sale, publicada

originalmente em treze edições, de um halloween a outro – as hqs de Batman tem tradição em

especiais de dias das bruxas –, acompanhamos os diversos eventos que levarão Gotham City a

se tornar a capital universal do crime caótico, dando continuidade a algumas sementes já plan-

tadas em Batman: Ano um. É neste panorama de Gotham, construído por estas duas hqs, que

conhecemos a cidade antes do surgimento de Batman.

Gotham era uma grande cidade como qualquer outra, até mesmo as hqs que traba-

lham este período a mostram sem torres góticas ou deformações exageradas – Gotham pode

ser Nova York, Londres ou São Paulo. Além de problemas de urbanismo, desigualdade social,

crises econômicas, a cidade possui altíssimos índices de violência urbana. O crime organizado

controla drogas e armas, a polícia é em grande parte corrupta – incluindo seu comissário –, e

no judiciário quem não aceita suborno morre ou concorda com fingir que nada vê. Existe um

grande chefão do crime, Carmine “Romano” Falcone, e um poderoso e proeminente rival – às

vezes aliado -, Salvatore Maroni – além de outras menores famílias de mafiosos. As ruas são

infestadas de estupradores, drogados e prostitutas. O Estado, as instituições não funcionam.

Raramente se vê uma influência política que ultrapasse o âmbito da cidade – Gotham parece

uma cidade-estado, filha órfã de uma nação que nunca conseguiu se constituir de fato.

Em Batman: Ano um, por uma narrativa paralela, acompanhamos, num mesmo di-

a, o jovem Bruce Wayne retornando a Gotham de avião depois de todo seu exílio, e o tenente

de polícia Jim Gordon no seu primeiro dia de trabalho na cidade. Bruce pensa que teria sido

melhor ter voltado de trem para estudar mais cuidadosamente sua cidade, enquanto no trem o

fumante obsessivo Jim Gordon está inconformado e horrorizado com a agressividade da po-

pulação gothamita (p. 8-9). Enquanto Bruce se prepara no isolamento da mansão, Gordon
69

depara-se com uma polícia corrompida e uma cidade preocupante – sua esposa está grávida.

Apesar de não delatar os colegas corruptos, Gordon não participa de esquemas e recusa su-

bornos, com isso ganha inimigos dentro da polícia.

Com o aparecimento de Batman, Gotham trilha um novo rumo: o crime organiza-

do se desespera e começa a desmantelar-se. Uma força-tarefa caça-morcego é formada pela

polícia. Gordon, impressionado com os feitos do Batman, acaba se aproximando do vigilante,

depositando sua confiança no misterioso morcego ao vê-lo salvar seu filho recém-nascido de

um seqüestro promovido por policiais em vingança (p. 95).

Uma aliança é formada, Batman e Gordon – agora capitão, devido ao prestígio

que ganhou junto à mídia por suas investigações e prisões – juntam forças com o competente

e entusiasta promotor público Harvey Dent e conseguem acabar definitivamente com as gran-

des famílias criminosas de Gotham (O longo dia das bruxas, n° 1, p. 29).

Ao mesmo tempo em que nossa cruzada provocou uma queda radical na criminali-
dade urbana, ela também pareceu semear uma laia mais extrema de criminosos. Gê-
nios com ânsia de poder, psicóticos sádicos, oportunistas voluptuosas e maníacos
homicidas obstinados! Cada um deles parecia compelido a aceitar nosso desafio não
manifestamente declarado (Batman dialogando consigo mesmo, em Ego, p. 40-41).

Nasce um novo submundo: a prostituta Selina Kyle espanca seu cafetão, faz um

uniforme de Mulher-Gato, e começa a roubar dos corruptos e mafiosos (Ano um, p. 69, 71).

Um outro criminoso, ao matar diversas pessoas envenenadas, deixa uma carta de coringa na

cena do crime (Batman nº. 1,1940).

Em Batman begins há um diálogo que ilustra bem essa mudança, quando Gordon

usa pela primeira vez o sinal luminoso de morcego, na torre da polícia, para chamar por Bat-

man:

- “Gotham voltará a ser o que era” diz Batman.


70

- “E a escalada?” aponta Gordon. “Usamos semi-automáticas, e eles compram


automáticas, usamos Kevlar, e eles compram munição perfurante...”
- “E...?”
- “E você está usando uma máscara, e pulando de telhados...” Gordon mostra a
evidência de um crime, uma carta de baralho do Coringa, “ele gosta de teatro,
como você”.

Esse processo chegará à sua última etapa quando o antigo aliado, o promotor Har-

vey Dent se tornar o vilão Duas-Caras.

Somente a presença de Batman já causa uma grande transformação social. O ho-

mem-morcego surge como a catarse de uma cidade oprimida em suas vontades, e o delírio da

máscara como uma nova verdade pra se mostrar por trás do rosto. O homem-morcego torna-se

o messias da morte do limite. Em Gotham, tudo passará a ser possível. O crime será imprevis-

to, surpreendente, compulsivo. Toda vontade será realizável... até que, como toda salvação,

ela se volta contra aquele que foi salvo – o messias do ilimitado é agora o limite. Gotham per-

tence ao Batman, aqueles que reclamam seu direito de insana liberdade terão de recuar. Assim

se inicia a sangrenta guerra pelas imensas torres góticas que marcarão esse novo mundo de

descontrole e caos.

4.2 A PIADA MORTAL

Vocês já o conhecem pelas manchetes dos jornais! Agora tremam ao ver com seus
próprios olhos o mais raro e trágico dos mistérios da natureza! Apresento...o homem
comum! (...) Observem o seu repugnante senso de humanidade, a disforme consci-
ência social e o asqueroso otimismo. O mais repulsivo de tudo são suas frágeis e
inúteis noções de ordem e sanidade. Se for submetido a muita pressão...ele quebra!
(...) Frente ao inegável fato de que a existência humana é louca, casual e sem finali-
dade, um em cada oito deles fica piradinho! E quem pode culpá-los? (...)...qualquer
outra reação seria loucura! (Coringa em A piada mortal, p. 36)

Nas hqs é comum o arquiinimigo do herói ser seu exato oposto, ao mesmo tempo

em que compartilha algumas características. Nas histórias do Superman, Lex Luthor completa
71

a outra metade: um homem sem superpoderes, mas bilionário e muito inteligente, dono de

metade da cidade de Metrópolis, e que recentemente se tornou o presidente estadunidense – o

homem mais poderoso do mundo contra o herói mais poderoso do mundo. Para Hulk, seu

maior vilão é o poderio militar usado contra ele – aquilo de mais forte criado pelo homem

contra o homem criado por aquilo de mais forte –, seus vilões costumam aparecer na figura de

generais, empresários da indústria bélica ou cientistas inescrupulosos. Já Homem-Aranha, um

jovem comum e simples, tem como arquivilão o Duende Verde, um homem influente e sofis-

ticado – se o lema do aracnídeo é “grandes poderes trazem grandes responsabilidades”, o ci-

entista ambicioso Norman Osborn, que eventualmente se mascara de Duende, é a manifesta-

ção do grande poder sem responsabilidade alguma. Com Batman, a relação antagônica com

seu arquiinimigo Coringa não muda, mas ganha complicadores.

A princípio, Batman é sombrio, tem um corpo escultural, é bonito, e nunca sorri,

já Coringa é colorido, magro, feio, e gargalhada endiabradamente. Batman é metódico, Corin-

ga não segue método algum, leva tudo na gozação: “onde ele consegue esses brinquedos ma-

ravilhosos?” diz ele no filme Batman, em relação aos equipamentos do morcego. Diante da

criminalidade em Gotham, Batman tenta impor-se como uma ordem em meio ao caos, o Co-

ringa incita o caos a devorar a ordem como o príncipe palhaço do crime.

Em 1940, Batman passou a ter uma revista em quadrinhos própria. No primeiro

número surgiu o Coringa – um criminoso que intoxicava as pessoas, deixado-as com um e-

norme sorriso no rosto, juntamente com cartas de baralho com a estampa do coringa. Os cri-

mes do Coringa sempre foram marcados pelo humor negro, estimulando a louca liberação de

um escandaloso sorriso, sádico e perverso – mas Batman nunca acha graça. Também é co-

mum haver em seus atentados a manipulação ou o deboche das mídias, principalmente televi-

são – ele invade sinais de transmissão ou emissoras, exibindo ao vivo suas ameaças e assassi-

natos. Muitas vezes seu procedimento se compara o de um artista descompromissado, Coringa


72

nunca mata por dinheiro, é sempre por deleite: “Agora faço o que os outros apenas sonham.

Faço arte. Até que alguém morra. Sou o primeiro artista homicida totalmente ativo.(...) ...uma

obra de arte viva” (Batman, de Burton).

A piada mortal começa com Batman se dirigindo ao asilo Arkham – local onde fi-

cam os perigosos criminosos doentes mentais, maioria dos vilões do herói. Ele se senta em

frente ao Coringa, que está embaralhando cartas em sua cela pouco iluminada, e desabafa:

Eu vim conversar. Estive pensando muito ultimamente. Sobre você e eu. Sobre o
que vai acontecer conosco no fim. Nós vamos matar um ao outro, não? Talvez você
me mate. Talvez eu te mate. Talvez mais cedo. Talvez mais tarde. Eu só queria estar
certo de que realmente tentei mudar as coisas entre nós. Só uma vez (p. 7).

Coringa não reage, Batman se irrita e então percebe pela tinta branca que se des-

prende da pele, que aquele não é o verdadeiro vilão – longe dali, em um parque de diversões

abandonado vemos Coringa liberto. O plano dessa vez é provar sua teoria de que qualquer

homem, por causa de um dia ruim, pode enlouquecer. Como ele próprio sugere ao Batman:

“essa é a distância entre o mundo e eu... apenas um dia ruim. Você teve um dia ruim uma vez,

não é? (...) Senão, por que você se vestiria como um rato voador?” (p. 41).

Jim Gordon, já comissário, é a vítima escolhida pelo palhaço criminoso para testar

sua hipótese. Coringa invade a casa de Gordon, dando um tiro em Bárbara Gordon, quebrando

sua coluna propositalmente – Jim assiste a tudo, contido pelos capangas do vilão (p. 16). Mais

tarde, no túnel fantasma no parque, Coringa deixa Gordon nu, acorrentado, assistindo fotos

tiradas pelo vilão, violentando e torturando Bárbara que ainda no chão, sangra muito e agoni-

za (p. 28). Apesar de tudo, Gordon resiste até o fim.

Paralelamente a esta narrativa, conhecemos, nas inseguras lembranças, um outro

Coringa: em nenhum momento seu nome é citado, mas trata-se de um homem comum, magro,

não muito bonito, que tenta a carreira como comediante, mas só obtém fracassos. Sua esposa
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está grávida, e a falta de dinheiro o preocupa. Ele está desempregado, havia pedido demissão

da indústria química onde trabalhava como assistente de laboratório, para dedicar-se a sua

carreira. Muito hesitante, o comediante se junta a dois criminosos para assaltar uma fábrica de

baralhos, ao lado do seu antigo emprego, a fim de conseguir algum dinheiro para se mudar de

bairro com a esposa. Porém momentos antes do roubo, um policial o encontra e lhe avisa que

houve um curto-circuito com o aquecedor de mamadeira e sua esposa morreu num infeliz

acidente. Em choque, Coringa se vê de mãos atadas, precisa prosseguir com o roubo, senão

seus comparsas o matam (p. 25-26).

Na hora do crime, disfarçado com um capuz vermelho, o frustrado humorista en-

tra em pânico com a presença da polícia e de Batman, pulando num rio poluído por produtos

químicos. Com muito esforço ele não se afoga, conseguindo chegar à margem para perceber

então que seu cabelo está verde, a pele branca, e que há um enorme sorriso deformado em seu

rosto – Coringa começa a gargalhar histericamente (p. 34-35). “Já estive morto uma vez. É

uma libertação. Deveria considerar como uma terapia. (...) Como vê, sou muito mais feliz”

(Batman, de Burton).

Vocês, juizes e sacrificadores, não querem matar enquanto a besta não tiver curvado
a cabeça? Veja, o pálido criminoso inclinou a cabeça, o seu olhar exprime o supre-
mo desprezo. “O meu Eu é o que deve ser superado, o meu Eu inspira-me o profun-
do desprezo do homem” – é o que diz este olhar. O momento em que se condenou
foi o seu apogeu; não o deixe descer deste cimo para a sua baixeza. Para aquele que
tanto sofre por si, não há redenção possível, a não ser uma morte rápida.(...) Devem
chamá-lo de “inimigo” e não “malfeitor”; “enfermo” e não “infame”; “louco” e não
“pecador”.(...) Nas suas pessoas de bem há muitíssimas coisas que me repugnam, e
não certamente o mal que nelas existe. Desejaria que tivessem uma loucura que as
levasse a perecer, como esse pálido criminoso. (NIETZSCHE, “Do pálido crimino-
so”, Assim falou Zaratustra, 2005, p. 34-36)

Há outras versões sobre a origem do Coringa: no especial Batman: preto & bran-

co vol. 2 (2005), na história “Estudo de caso” de Paul Dini e Alex Ross, é contado que mesmo

antes do mergulho nos produtos químicos, ele já era um criminoso cruel, que havia assistido
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ao clássico O homem que ri (1927), de Paul Leni, e aproveitou a situação para se passar por

louco e cometer crimes aparentemente desconexos, enquanto na verdade realizava exatamente

o planejado, matando as pessoas que poderiam interferir no seu desconhecido objetivo. Este

relatório foi escrito pela Dra. Harleen Quinzel, psiquiatra do Arkham que se apaixonou pelo

Coringa e tornou-se a vilã Arlequina, mantendo um louco amor com o vilão – relação essa,

alternada em momentos de carinho com outros em que o Coringa tenta cruelmente matá-la.

Mas como o vilão mesmo aponta em A piada mortal: “Algumas vezes me lembro

de um jeito. Outras vezes de outro... Se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla

escolha!” (p. 42). Quando prestes a torturar Jim Gordon com a sessão de fotos do estupro de

Bárbara, Coringa discursa: “Mas podemos viver sem elas [as memórias]? A razão se sustenta

nelas. Não encarar as memórias é o mesmo que negar a razão! Mas e daí? Quem nos obriga a

ser racionais? Não há cláusula de sanidade! (...) Loucura é a porta de emergência!” (p. 24).

Mesmo considerando os dois começos, talvez o primeiro mais que o segundo, surge um novo

antagonismo entre herói e vilão: Batman é o desejo e o juramento infantil, aquilo que ele

prometeu a si mesmo no enterro de seus pais é o que ainda o norteia por toda a vida adulta –

talvez seja por isso que Batman atrai tantos parceiros juvenis. O Coringa, ao contrário, é a

decepção e a maturidade de um adulto que percebeu o jogo maluco que representa o acaso, o

imprevisível, e a partir disso, a piada e o riso tornam-se a maneira de lidar com toda a loucura

que significa viver.

Qual foi até agora, na terra, o maior pecado? Não será ter dito: “Pobres dos que ri-
em”! Não teria ele encontrado nenhum motivo de riso na terra, o que disse tais pala-
vras? Foi por ter procurado mal. Até uma criança aqui encontra razões para isso.(...)
O seu pior defeito, Homens superiores, é que nem sequer sabem dançar como é pre-
ciso dançar: até para além de vocês mesmos. Que importa que o não tenham conse-
guido? Quantas possibilidades restam ainda em aberto! Aprendam então a rir para
além de vocês mesmos. Elevem o seu coração, bons dançarinos, levante-os bem alto,
mais alto ainda! E não esqueçam também o riso bom! Esta coroa daquele que ri, esta
grinalda de rosas, é a vocês que a lanço, irmãos! Proclamei que o riso é sagrado:
Homens superiores, aprendam então a rir! (NIETZSCHE, idem, p. 262-263).
75

Mas Coringa não é livre daquilo de que gargalha – ele se vê preso a tudo o que é

Batman. Em O cavaleiro das trevas, Batman some por dez anos, e percebe-se que o Coringa

não volta a cometer mais crime algum, ele nem sequer sorri mais, está catatônico. Porém com

o retorno de Batman, sua vontade se alimenta, e gargalhando, ele volta a matar de tanto rir

com seu letal gás hilariante. Para Coringa não seria Batman um deus numa luta sem fim con-

tra o acaso? Batman não representaria a vontade de controle sobre aquilo que o Coringa im-

pactantemente aprendeu que não passa de uma piada? “Você não é nenhum burro. (...) Só

precisa ver a realidade...(...) É tudo uma piada! Tudo pelo que as pessoas lutam e dão valor

não passa de uma monstruosa e insensata anedota! Então por que você não vê o lado engraça-

do?” “Porque já ouvi isso antes...e não foi engraçado da primeira vez” responde Batman (A

piada mortal, p. 42-43). Talvez, ao ver Batman como o único à sua altura, a luta de Coringa

consista em tentar persuadi-lo da ilusão de um morcego que ainda insiste em também ser ho-

mem.

Nos títulos regulares de Batman há toda uma discussão por parte dos leitores so-

bre se o Coringa sabe a identidade secreta do herói. Na hq posteriormente chamada A morte

de Robin onde o Coringa mata, dionisiacamente, com um pé-de-cabra, o segundo Robin, Ja-

son Todd, ficamos em dúvida no diálogo entre o vilão e Batman ao final da história. Após

Bruce Wayne enterrar Jason, Coringa comenta: “até um pirado soma dois e dois...” (n° 3, p.

34). Porém, mesmo entendendo que Coringa sabe a verdade sobre Bruce Wayne, isso nunca

implicou em nada: jamais o pálido criminoso moveu uma ofensiva aos íntimos de Bruce, ou

ao próprio. Talvez, consciente da verdade como jogo absoluto, Coringa não vê diversão al-

guma em atacar o homem – só com o morcego ele pode brincar de forma mais madura. Mes-

mo quando tem Batman preso em armadilhas, ele jamais se dá ao trabalho de tirar a máscara

do inimigo. Em Asilo Arkham, quando têm Batman como refém, Máscara Negra e outros vi-

lões sugerem ao Coringa tirar a máscara do vigilante, mas ele revida: “Oh, não sejam tão pre-
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visíveis, pelo amor de Deus! Essa é a cara dele. E eu quero ir muito mais fundo do que isso.

Quero que ele saiba o que é sentir dedos pegajosos cutucando sua mente” (p. 43).

Mesmo aceitando a ironia e a cruel lucidez com que o Coringa enxerga o jogo da

moral, das valorações, ele não consegue se livrar do seu funcionamento, acaba por se embara-

lhar. Não conquista um desprendimento amoral, deixando-se cair invariavelmente no poço da

imoralidade. Coringa não é libertação da moral, mas a resposta positiva ao jogo, mesmo que

se mostre num mecanismo negativo: ele não é o contrário da razão, mas sim uma enfática

afirmação da própria tradição racionalista – neurótica e vingativa.

O Coringa é um caso especial. Muitos de nós acreditam que ele está além de qual-
quer tratamento. Na verdade, não estamos sequer certos de que ele possa ser defini-
do como insano.(...) É bem possível que estejamos diante de um caso de supersani-
dade. Uma nova e brilhante modificação da percepção humana, mais adequada à vi-
da urbana no fim do século vinte. (...) Diferente de você ou de mim, o Coringa não
parece ter controle sobre as informações sensoriais que recebe do mundo externo.
Sua mente só pode lidar com a barragem caótica de estímulos deixando-se levar pelo
fluxo. Por isso, alguns dias ele é um palhaço infantil, outros, um psicopata assassino,
o Coringa não tem verdadeira personalidade. Ele cria uma diferente por dia. O Co-
ringa se vê como o mestre do desgoverno, e o mundo como um teatro do absurdo
(Asilo Arkham, p. 40-41).

Ao final de A piada mortal, Batman e Coringa, após uma sangrenta batalha, con-

seguem ter a seguinte conversa: “Talvez eu possa ajudar.(...) Não precisamos nos matar. O

que me diz?” sugere Batman. “Não... é tarde pra isso.(...) Essa situação me lembrou uma pia-

da...” Coringa então conta uma antiga anedota sobre dois loucos que resolveram fugir do sa-

natório, conquistar sua liberdade, e para isso foram até a cobertura, pular para o telhado do

prédio ao lado. O primeiro pulou sem problemas, mas o segundo se acovardou, tinha medo de

cair. Então o primeiro teve uma idéia: “Ei! Eu estou com minha lanterna aqui. Vou acendê-la

sobre os vãos dos prédios e você atravessa pelo facho de luz!” Mas o segundo não aceitou: “E

se você apagar a luz quando eu estiver no meio do caminho?” Batman então começa a sorrir,

gargalhando enlouquecidamente, com a mão sobre o ombro de Coringa, que por um segundo
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demonstrou-se lúcido – a hq termina como começou, com pingos de chuva caindo sobre poças

d'água (p. 47-49).

No final, Coringa é uma vítima do abrupto corte de laços que teve com os valores

positivos da tradição racionalista – um trauma que não consegue superar. Mesmo que Batman

possa ser também uma resposta a um mau dia, ele ainda tenta ir além: não simplesmente des-

locou-se para o outro lado de um mesmo raciocínio, não recorreu apenas a aquilo que a tradi-

ção entende como negativo, como exato oposto. Coringa é coerente, revelador como o negati-

vo de uma foto, o homem-morcego é contraditório, autodestrutivo, e por isso mesmo, ainda

esteja nele, e não no cômico vilão, a oportunidade maior de prosseguir para além do jogo da

moral na morte do homem.

...e quem é este puro tolo? (...) Oh! Sim! Encha as igrejas com pensamentos imun-
dos! Apresente a honestidade à casa branca, escreva cartas em línguas mortas para
pessoas que nunca conheceu! Pinte palavras sujas na fronte de crianças! Queime
seus cartões de crédito e use salto alto! Portas do hospício escancaradas! Encham os
subúrbios com estupro e morte! Divina insanidade! Que haja êxtase, êxtase nas ruas!
Ria e o mundo rirá com você! (Coringa em Asilo Arkham, p. 119)

4.3 DOIS LADOS DA MOEDA

Harvey passou a viver numa situação que permite à sua persona secreta atuar livre-
mente... Enquanto sua condição o isenta de qualquer responsabilidade penal pelos
crimes do Duas-Caras. (...) Certas culturas ancestrais mencionavam simples nativos
possuídos pelos espíritos de grandes guerreiros. Métodos modernos de condiciona-
mento físico e mental podem converter um professor de curso primário num impla-
cável assassino (Batman em Ego, p. 54).

O vilão mais emblemático do jogo que assola as personagens de Gotham City é o

Duas-Caras. Depois do Coringa, é o inimigo mais intimamente ligado ao homem-morcego.

Sua condição é a eterna lembrança da dualidade que o universo de Gotham não consegue se

ver livre. Duas-Caras é a personificação da maldição do espelho, do reflexo, que é imanente-


78

mente diferente, mas paradoxalmente igual – como a melancolia gradativa da imortalidade na

beleza de Dorian Gray junto da sua imagem no retrato, já de um semi-cadáver decomposto,

que envelhece e enfeia cada vez mais.

Na dualidade não há prosseguimento, apenas voltas em círculo. Quando pensamos

que atingimos o outro lado, apenas invertemos de posição com o espelho – viramos reflexo

daquilo que em vão fugíamos. Em Gotham, a cidade, os habitantes, as almas desorientadas

participam do jogo do duplo, muitas vezes conscientes de sua pequenez, mas sem condições

de simplesmente abandoná-lo. Na filosofia, os entusiastas do duplo jogam com total liberdade

– é muito fácil participar do jogo. Já aqueles que tentam fugir, precisam fazer uma força des-

comunal para não serem engolidos pelo duplo, pois este jogo têm um apetite voraz e persegue

a todos sem exceção. Quando Deleuze aponta que filosofar é criar conceitos, de antemão tudo

parece razoavelmente fácil – e de fato seria se Deleuze não fosse nietzscheano. Em um con-

ceito sempre se erguerá um reflexo, um número dois que pode fazer ruir com qualquer tenta-

tiva da “filosofia do futuro” em se superar, ir além... Monstruosamente, todo conceito parece

trazer imbricado seu exato oposto, reafirmando o inimigo que inutilmente era combatido. Mas

Nietzsche na sua anti-filosofia consegue mostrar que tudo ainda pode vir a ser de outra manei-

ra ao destruir a tradição moral, não pelo seu exato oposto, pela imoralidade, mas por um ata-

que certeiro de um olhar de fora do jogo moral, um olhar amoral, sem verdades porque tam-

bém não há mais mentiras.

Lidar com o jogo da dualidade só até onde ela ainda pode ser útil, mas sem se

descuidar da necessidade dos conceitos do futuro em alcançar o extra-moral, será o grande

desafio filosófico de qualquer habitante de Gotham City – e também daqueles que ousam in-

cursar no universo da sufocante cidade. Por isso Duas-Caras é o melhor cartão postal filosófi-

co de Gotham, a metrópole refém entre conceitos de Batman e Coringa, de verdade e mentira.


79

O assistente da promotoria, e depois promotor público Harvey Dent, eleito com o

apoio de Bruce Wayne, apareceu inicialmente na narrativa do herói como aliado: Batman e

Gordon nas ruas levantavam as evidências e provas, capturavam os criminosos que Harvey

atacaria pelos tribunais. Os três foram os grandes responsáveis pela transformação político-

social de Gotham City. Harvey também era amigo de Bruce Wayne.

Chamado de Apolo pela mídia, Harvey era um astro, belo, bem-sucedido e obsti-

nado por justiça – mas sofria de um sutil distúrbio que vinha se intensificando, chamado cos-

tumeiramente nos quadrinhos de “dupla personalidade”. Em situações de alto estresse, Harvey

assumia um caráter agressivo e descontrolado, tendo como hábito manusear e lançar uma mo-

eda de um dólar. Na hq O longo dias das bruxas acompanhamos toda a transformação de

Harvey – é o seu pai, que já tinha histórico de doença mental e estava internado, que havia lhe

herdado a tal moeda e algumas perturbadoras palavras sobre o acaso (n° 6, p. 16-17).

No importante julgamento do chefão do crime Maroni, o assistente de Harvey, tra-

indo-o, deu ao inconseqüente criminoso um frasco com ácido. No meio do julgamento, quan-

do Harvey estava próximo do réu, Maroni jogou o líquido em seu rosto, acertando apenas o

lado esquerdo. Harvey gritava desesperadamente, Batman, que estava presente, disfarçado,

nunca se esqueceu daquilo, sendo um dos motivos de sua flagelação moral: ele não pode sal-

var o amigo (n° 7, p. 11). Internado às pressas no hospital, quando acordou – seria dois dias

depois ? –, Harvey percebeu que metade de seu rosto estava terrivelmente deformada. Fugin-

do do hospital, o apolíneo Harvey abandona a esposa Gilda e assume uma nova postura, dio-

nisíaca, tornando-se o criminoso Duas-Caras – sua marca registrada é uma moeda de um dó-

lar, de um lado totalmente riscado, que ele lança para fazer suas escolhas: quando o lado ris-

cado cai para cima, o vilão executa o crime, quando do outro, ele deixa que suas vítimas con-

tinuem vivas.
80

Duas-Caras só fala na primeira pessoa do plural, suas roupas e esconderijos tam-

bém são divididos pela metade, assim como suas amantes – no filme Batman forever, procu-

rou-se dar dois lados bastante distintos para o Duas-Caras (Tommy Lee Jones): o lado Harvey

é recatado, usa gel no cabelo, veste ternos pretos e conservadores, belos sapatos escuros, o

esconderijo é branco, com elementos de art deco, além de lençóis de seda sobre a mobília

para maior conservação. Ele fuma apenas elegantes cigarros e seu prato predileto é “cham-

pagne borbulhante, um delicioso salmão com ovos de codorna, e um, cremoso, maravilhoso

suflê de limão.” Sua amante, Açúcar (Drew Barrymore), é doce, carinhosa, de curtos cabelos

loiros cacheados, vestindo elementos também art deco, de seda ou pele, branca ou cor de

creme. Já o lado segunda cara é espalhafatoso, com vestes coloridas – mas a maioria caindo

para o vermelho, mesma cor da face. Às vezes as roupas lembram couro, outras moda brega,

há também elementos punk como espinhos e peircings no sapato. Seu esconderijo é mal ilu-

minado, avermelhado, entre a art nouveau e elementos sadomasoquistas. Ele fuma grotescos

charutos, e seu prato preferido é “coração de javali negro, carbonizado, carne crua de mula e

álcool de cereais, puro e sem gelo.” Sua amante, Pimenta (Deby Mazar), é grosseira, agressi-

va, com longos cabelos escuros, vestindo couro e maquilagem pesada.

Apesar dessa caracterização no cinema, nas hqs, Duas-Caras costuma ser contido,

frio, exaltando-se mais ao ver Batman, ou quando perde aquilo que há de mais importante no

mundo: sua moeda. Sem ela, ele não consegue tomar nenhuma decisão. Na hq Asilo Arkham,

Duas-caras é submetido a um tratamento. Para conter sua obsessão por dois, tiram-lhe sua

moeda e lhe dão um dado, aumentando de duas para seis as opções. Após melhoras, cartas de

tarô, 78 opções. Porém Harvey não consegue ir a tempo ao banheiro porque com tantas com-

binações não consegue se decidir: “em breve, ele terá uma capacidade de julgamento comple-

tamente funcional, não mais baseada em conceitos absolutos de branco e preto” diz a psiquia-

tra de Harvey. Batman acha que ela está destruindo de vez a personalidade do antigo amigo.
81

“Às vezes, é preciso demolir pra reconstruir, Batman. Assim é a psiquiatria” comenta a médi-

ca (p. 37-39).

A obsessão de Harvey pelo dois também será a marca de seus crimes. Ainda em

Batman forever ele assalta o Segundo Banco de Gotham, matando dois guardas no dia que

completava dois anos que ele havia sido preso por Batman. A sorte e o azar, ou melhor, o aca-

so, será a marca dessa personagem, que assim como o Coringa, profana esse descontrole, o

insulta, acusando-o de todas as malesas da Terra.

Gosta de jogar? Vamos decidir na sorte? Um homem nasce herói, seu irmão nasce
covarde. Bebês passam fome, políticos engordam. Santos são martirizados e vicia-
dos proliferam. Por quê? Sorte! Sorte cega, boba, simples e babaca. Uma lance alea-
tório, é a única justiça verdadeira para você. Como um toque de Deus (Duas-Caras
em Batman forever).

Para o justo promotor Harvey Dent, agora Duas-Caras, o lançar da moeda será

uma justiça ainda maior, divina, acima de qualquer tribunal, lei ou moral. “A lua está tão bo-

nita...ela parece uma moeda gigante lançada por Deus! Que caiu com o lado riscado pra cima.

Assim ele fez o mundo” (p. 58-59).

Na dualidade do Duas-Caras está toda a tradição do pensamento ocidental: para

todo conceito, noção ou idéia estará presente em si o oposto – um jogo dialético e infinito.

Para Hegel, toda tese gera uma antítese e desse confronto surge uma síntese, que por sua vez

gerará uma outra antítese, num movimento em espiral até um absoluto. Nietzsche, consciente

da pequenez e improdutividade desse jogo, vai ter na palavra “além” uma das chaves da sua

filosofia – além do bem e do mal, além do homem... É preciso ir além do dualismo. Mesmo

aceitando sua existência, ele não deve ser encarado como limite, definição de uma verdade

universal. Mas parece que Duas-caras não conheceu Nietzsche, é um escravo desse jogo, que

se projetará nos outros vilões de Batman. Será que o homem-morcego também consegue fugir

do dualismo? Como uma maldição legada pelos deuses antigos – ou seriam filósofos –, o dua-
82

lismo para Batman acontece como para qualquer outro que tenta ir além. Mesmo fugindo, ele

vai estar sempre lá à espreita de uma nova vítima, como Duas-Caras, refém da sua moeda

tradicional.

Sr. Apolo. Eu sou um homem da lei. Sim. Nós, o povo dos estados unidos, a fim de
formar uma união mais perfeita, estabelecer justiça, proporcionar tranqüilidade do-
méstica, garantir o bem comum. Promover o bem-estar geral, assegurar a bênção da
liberdade para nós e nossos descendentes.
Sr. Dionísio. Eu sou um fora-da-lei. Não. Nós, as vítimas mutiladas da história, do
mal e da hipocrisia, enaltecemos o trabalho dos criminosos do Vietnã, El Salvador,
Chile. Com adoráveis mísseis, estrondosos dos ricos, brancos e pios. E queimar cri-
anças e torturar mulheres para sempre e sempre amém. Deus abençoe / a América.
(Asilo Arkham, p. 120)

Na hq O cavaleiro das trevas, depois de 12 anos preso por Batman na cela 602,

Harvey realiza uma sofisticada cirurgia plástica com um famoso cirurgião, além de ter o a-

companhamento de um renomado psiquiatra. Ao ter seu belo rosto novamente, ele vai às lá-

grimas, e demonstra estar recuperado, exibindo para a mídia uma moeda de um dólar com os

dois lados normais. Logo após ele some e reaparece com a cara completamente enfaixada,

cometendo os mesmos crimes (p. 9-11).

Quando perseguido por Batman, no meio da batalha, percebemos que o rosto de

Harvey continua normal. Ele diz:

“Por que está tão furioso, Batman? Eu fui um bom esportista! Você tem que admitir.
Eu concordei em brincar! E você...você aceitou a piada até o fim! O mundo inteiro
sorriu pra mim! Ninguém vomitou quando viu meu rosto! Todos disseram que eu ti-
nha sido curado... que o defeito estava corrigido! Olhe pra mim! Ria também! O de-
feito foi corrigido! Os dois lados estão iguais! (...) Olhe pra mim...”

Batman fecha os olhos, e vê todo o rosto de Harvey deformado, e após, a imagem

de um morcego. “Eu vejo... um reflexo Harvey! Só um reflexo!” Harvey acaba ajoelhado e

chorando, e Batman, solidário, ao seu lado (p. 49). Vítimas conscientes da maldição do refle-

xo, da inevitável perseguição do duplo. Talvez agora, Batman e Duas-Caras ao perceberem


83

isso, podem seguir adiante mas essa cidade trata-se de Gotham, e no momento eles estão sem

muitas esperanças...

4.4 DISTINTO E OBSCURO

A diferença entre Batman e seus vilões não se dá por uma questão de natureza ou

qualidade, mas de freqüência e intensidade. Todos os atributos dos vilões, o herói comparti-

lha, mas sempre na linha tênue que separa a virtude do vício. Enquanto os vilões mergulham

de cabeça no jogo de que participam, o herói joga, mas com a consciência do jogo, tendo ne-

cessidade de abandoná-lo eventualmente. A vontade em Batman se dará como algo necessá-

rio, intenso, mas ao mesmo tempo não se transforma num jogo em que tudo vale. Já nos vi-

lões, isso não acontece: eles se perdem no curso de suas vontades até uma dependência exces-

siva de uma qualidade. O que os separa do herói não está no que fazem, mas até onde vão

com isso. Esse imponderável dos vilões volta-se contra eles, tornando-se sua principal fraque-

za.

Oswald Cobblepot, menino pobre, baixo, gordo, narigudo, de voz anasalada, e a-

paixonado por pássaros, logo recebeu o apelido de Pingüim. Com o tempo, no submundo,

essa criança menosprezada tornou-se o mais importante chefão do crime de Gotham após o

surgimento do Batman. Assim, o prestígio por si, o auto-elogio, tornou-se a maior caracterís-

tica do feio criminoso que adora estar na companhia de belas mulheres – com uma vontade

sexual monstruosa –, participar de festas da alta sociedade, saborear arte erudita e esconder

em seus guarda-chuvas metralhadoras, lança-chamas, gases venenosos, lâminas afiadas... No

filme Batman returns, a história é outra. Ele (Danny DeVitto) nasceu deformado, meio ho-

mem, meio pássaro, e por isso foi largado por seus ricos pais no esgoto, onde cresceu na com-
84

panhia de pingüins. Posteriormente foi atração de horror no circo. Da mesma forma, a vaida-

de, a vontade de aceitação, a aparente superioridade se mostram no complexo de inferioridade

deste horrendo homem-pingüim. Por isso a mais eficiente forma de derrotar o Pingüim é afo-

gá-lo no seu próprio narcisismo – que no movimento das ondas, deforma sua imagem. Bat-

man compartilha dessa mesma vaidade do Pingüim, assim como o vilão têm viveiros com

centenas de espécies de pássaros e coleções de guarda-chuvas, Batman têm sua sala de troféus

na caverna e tudo que o cerca tem o designer do morcego. Mas o herói é mais cauteloso, cos-

tuma enxergar o momento certo de recuar e deixar que o Pingüim mergulhe sozinho. Deste

modo Batman não é menos vaidoso, pelo contrário, se auto-elogia tanto que pode até mesmo

abrir mão do narcisismo de vez em quando. Já o vilão não chegou a esse patamar, ainda assus-

ta-se e diminui-se com o seu horrendo reflexo, postura que Batman parece adotar cada vez

menos. O Pingüim tem muito que aprender com o morcego.

De forma semelhante acontece essa relação de proximidade e distanciamento a

Edward Nygma, o gênio desacreditado, “o homem mais inteligente do mundo”, apaixonado

por cruzadinhas, quebra-cabeças e enigmas, que assume o papel do vilão Charada, vestindo

uma roupa verde cheia de pontos de interrogação, no intuito de derrotar aquele que parece ser

o único homem que ameaça sua superioridade intelectual. Ambos inteligentes, Batman só

derrota o Charada naquilo que consegue dispensar: a necessidade de auto-afirmação de sua

genialidade, coisa que Nygma não abandona no seu vício de deixar charadas quase indecifrá-

veis em todos os seus crimes. Na saga Silêncio (2003), de Jeph Loeb e Jim Lee, Charada des-

cobre a identidade de Batman, mas o mascarado não se vê ameaçado – Batman sabe que um

verdadeiro enigma tem de ser indecifrável, senão perde todo seu valor, torna-se inútil, por isso

Charada jamais irá confessar a alguém a identidade do herói (Batman 20, 2005, p. 20).

Outros vilões compartilham dessa obstinação sem consciência do jogo. O Senhor

Frio – Victor Fries, doutor em criogenia, que ao congelar voluntariamente a esposa na finali-
85

dade de pesquisar uma futura cura para a sua insolucionável doença terminal, é violentamente

interrompido pelas autoridades, ocasionando um acidente, que alteraria sua composição gené-

tica, permitindo que ele só suporte condições de temperatura negativas, tornando-se assim, o

vilão sem cabelos de pele azulada, por trás de uma imponente armadura e arma congelante,

nos esforços sem fim pelo salvamento da esposa; Hera Venenosa – Pamela Isley, eco-

terrorista que após ser envenenada por seu parceiro, sofre mutações: seu sangue transforma-se

em babosa, sua pele em clorofila e seus lábios se enchem de veneno, metamorfoseando-se na

mulher mais sedutora do mundo, cometendo todo o tipo de crime em nome da natureza; o

Espantalho – Jonathan Crane, professor universitário especializado em medos e fobias, que

desenvolve uma toxina do medo, sendo por isso demitido e ridicularizado, retorna na fantasia

de um assustador espantalho; o Cara-de-barro – Basil Karlo, ator, mestre em maquilagem, que

assume uma forma antropomórfica, capaz de simular diversos objetos, atuando na imagem de

qualquer homem... Todos eles são exemplos de ingenuidade diante de um jogo que os envol-

ve. Frieza nas decisões, sedução na hora de conquistar aquilo de que necessita – a figura do

morcego seduz os jovens –, medo como principal arma e teatralidade são atributos que o herói

compartilha, porém mesmo assim, não se entrega a eles totalmente.

Para vencer o medo, deve causar medo. (...) O homem teme sobretudo o que não po-
de ver. Você deve se tornar uma ameaça terrível. Um espectro. Você deve se tornar
uma idéia! Sinta o terror obscurecer seus sentidos. Sinta o poder dele de distor-
cer...de controlar. E saiba que esse poder pode ser seu. (...) Identifique-se com as
trevas. (Ra‟s Al Ghul (Liam Neeson), para Bruce, em Batman begins)

Do ponto de vista político partidário isso fica mais claro na relação de Batman

com o vilão Ra‟s Al Ghul – “cabeça do demônio” em árabe segundo os quadrinhos. Ra‟s é

uma lenda viva, possui aproximadamente 600 anos, sendo sempre ressuscitado no mítico poço

de Lázaro. Ele controla a Liga das Sombras – que às vezes também se chama Liga dos Assas-

sinos –, uma milenar e poderosa sociedade secreta, com ligações em diversos povos, culturas
86

e continentes, nas diferentes escalas sociais, que busca defender e propagar uma justiça pura

para todo o mundo. No filme Batman begins, a Liga é responsável pela destruição da antiga

Roma e de Constantinopla, foi ela que colocou ratos nos navios mercantes, ateou fogo em

Londres, e agora pretende destruir o local fértil de desgraça e sofrimento que é Gotham. Para

isso espera contar com o jovem Bruce Wayne, ainda não morcego. Já nas hqs, o motivo que

aproximou Ra‟s de Batman – ao qual só se dirige como “detetive”, mesmo sabendo sua iden-

tidade – é a admiração por seus inúmeros talentos. Ra‟s quer morrer, e deseja que Batman

assuma seu império, casando-se com sua bela filha Tália. Embora o homem-morcego não

esconda sua paixão pela filha do inimigo – que havia conhecido antes sem saber quem ela era

de fato –, recusa o posto, acreditando que Ra‟s e seus seguidores vão longe demais nas suas

nobres intenções de preservar a paz e o planeta. Mesmo que Batman e Ra‟s espalhem o terror

e assumam uma posição de “mal necessário” para o equilíbrio – ou seria desequilíbrio – da

sociedade, o herói não mostra nenhum anseio para que tudo aquilo que pratica aconteça além

dos limites de sua cidade. Batman nasceu em Gotham, foi lá que perdeu seus pais e conquis-

tou seu novo rosto. Seu poder, suas atitudes só fazem sentido dentro do mundo a que ele per-

tence e possui – freqüentemente, quando Batman captura um criminoso, mas não possui pro-

vas para prendê-lo, ou sente alguma pena do infeliz, ele deixa bem claro: “saia da minha cida-

de!” Essa diferença meramente de espaços – e número de vidas, porque Batman não mata –

que separa o herói de Ra‟s é derrubada na hq O cavaleiro das trevas ataca novamente (2001),

também de Frank Miller, em que Batman e outros vários heróis tornam-se terroristas, destru-

indo usinas elétricas, centros militares e tudo o mais que for necessário para derrubar o presi-

dente estadunidense e a atual ordem. Talvez se Batman ficar alguns milímetros mais ambicio-

so, ele se tornará o novo cabeça do demônio, somente o tempo dirá... Ra‟s sabe disso, por isso

aguarda.
87

Mas Batman se vê preso ao morcego que cultivou ao longo dos anos. Seu insuces-

so em relacionamentos amorosos se dá pela falta de capacidade de administrar sua vida dupla,

por isso torna-se mais conveniente ter curtos períodos de amor com Tália, Mulher-Gato, ou a

ousada repórter Vicki Vale – elas são tão arredias e não possíveis de possuir quanto ele. Em

“Encontro com um anjo”17, história que acrescenta eventos à hq Batman: Ano um, Bruce está

apaixonado, gosta de sair para dançar e namorar sua parceira, mas sempre chega atrasado ou

cancela seus encontros noturnos. Irritada, a jovem ameaça abandoná-lo caso se atrase mais

uma vez. Batman então surra rapidamente alguns criminosos e parte ao encontro de sua ama-

da. Ambos têm uma noite maravilhosa: Bruce chega à mansão dançando e cantarolando, até

faz uma piada com Alfred, que está de pé, sério diante da televisão, e lhe comunica a má notí-

cia. Outros criminosos se aproximaram daqueles que Batman tinha espancado, houve confron-

to com a polícia, muitos morreram, inclusive uma criança que assistia a tudo. Chocado, Bruce

se senta no estúdio da mansão, com a severa expressão de homem-morcego. Pouco iluminado

pelo sol que está nascendo, Bruce cancela seu romance pelo telefone (p. 115 – 116).

Mesmo assim, na sombra do morcego – o reduto onde sua vontade torna-se vítima

de si própria –, ele consegue manter a capacidade de recuar quando realmente necessário, de

lembrar do homem que está junto do morcego. Na saga Bruce Wayne: Fugitivo (2004), Bruce

é acusado de um assassinato e foge da cadeia, sendo dado por desaparecido. Batman vê nisso

uma ótima chance de ser agora só morcego, sem a necessidade de fingir aquilo que ele tanto

odeia – ou talvez de assumir um lado que nada tem de menos real do que o outro, só é apenas

mais incômodo. Porém, por pressões de seus aliados e novas lembranças da sua infância, Bru-

ce retorna.

Esse recuo do morcego se comprova em oposição a dois outros vilões. Um deles é

o zoólogo Kirk Langstrom, especialista em morcegos, que desenvolve um soro de glândulas

17
Argumento de Steve Englehart e desenhos de Javier Pulido, publicada na revista Batman 10 (2001).
88

de morcego e injeta em si próprio, desenvolvendo assim radar e audição supersensível, mas

como efeito colateral, seu aspecto físico muda, passando a ser o gigantesco Morcego Huma-

no; e o outro é o professor e psiquiatra Hugo Strange, obcecado pela figura de Batman – seu

grande plano é matar o herói e assumir seu manto. Em diversas histórias Strange se vestiu de

Batman e passou a praticar vários crimes, como uma versão mais perversa do homem-

morcego. Nenhum dos dois vilões consegue se ver livre do estigma do Batman, apenas o pró-

prio herói, que na sua obsessão parece ter força de vontade suficiente para pontuar uma hora

de parar de brincar – essa mesma hesitação pode ser vista também como fraquejo perante o

código ético do morcego, mas isso veremos mais adiante.

4.5 NO ASILO DO REAL

“O jogo da paixão como é jogado hoje” (the passion play as it is played to-day), na
página seguinte há a imagem do esqueleto de um morcego “Icaronycteres”, e depois
o anúncio: “Asilo Arkham – uma séria casa em um sério mundo” (Asilo Arkham, p.
4 -9)

No asilo Arkham ficam os vilões tidos como doentes mentais: o Coringa, Duas-

Caras, Espantalho, entre outros, vivem sendo internados e fugindo dos seus tratamentos. Na

hq Asilo Arkham, acompanhamos duas histórias que se entrecruzam. Numa, há uma rebelião

no asilo no dia 1ª de abril: os loucos assumem o controle, aprisionam os funcionários como

reféns e, entre as exigências mais absurdas como roupas, móveis, manequins e comidas, eles

requerem a presença do Batman. Temendo mortes, e por meio de um pedido persuasivo do

Coringa, que dizia estar apontando o lápis nos belos olhos de uma funcionária que trabalhava

em Arkham para pagar sua faculdade de artes, o homem-morcego se rende ao chamado. Re-

cebido na porta pelo Coringa, o jogo consiste em que o morcego passe uma hora vagando
89

pelos corredores do sombrio asilo, fugindo e se escondendo de seus moradores, enquanto luta

contra si próprio para não enlouquecer.

Na outra narrativa, acompanhamos a história do homem por trás do asilo: o psi-

quiatra Amadeus Arkham, que cresceu na companhia de sua enlouquecida mãe após a morte

do pai, na mansão que viria a ser o asilo Elizabeth Arkham para criminosos insanos. Obstina-

do a levar esperança a “homens, cujo único verdadeiro crime é a doença mental, aprisionados

a um sistema penal sem esperança de tratamento” (p. 27), Amadeus volta a morar na antiga

mansão, agora casado e com uma filha pequena, pensando em transformar a casa num asilo:

“meu caminho está claro”(p. 27).

Perto da inauguração do manicômio, um dos criminosos que Amadeus tratava em

Metrópolis fugiu e violentou, assassinou e esquartejou sua mulher e filha. Terrivelmente aba-

lado, Arkham manteve-se no seu objetivo, inaugurando o asilo na data prevista, tratando in-

clusive do assassino de sua família – até que um dia no eletro-choque incinerou o criminoso.

No final, Amadeus enlouquece até se tornar um dos internos de seu próprio asilo. Mais adian-

te na hq, descobrimos que foi um dos psiquiatras do asilo Arkham que libertou os loucos, cau-

sando a rebelião após ler o diário de Amadeus. Havia um trecho em que Amadeus lembrava

surpreso da noite em que havia matado sua mãe, uma anotação que se assemelhava a uma

premonição:

É 1920. Árvores se agitam na escuridão sob um céu intranqüilo. A chuva chacoalha


as janelas. Por quê? Por que eu vim aqui?" Está aqui! Está aqui!” “Mamãe por favor,
não tem nada!” Então por que eu tenho medo? (...) Debaixo da cama, grandes asas
começam a bater. Eu não estou louco. Eu não estou louco. Que Deus me ajude...eu
estou vendo. Estou vendo a criatura que apavorou e atormentou minha pobre mãe
naqueles anos tão longos. Eu vejo. É um morcego. Um morcego! (...) Agora percebo
do que minha memória tentou me manter afastado. A loucura vem do sangue. É meu
direito de nascença. Minha herança. Meu destino. Eu conterei as presenças que va-
gam por estes quartos e escadas estreitas. Eu as cercarei com barras, muralhas e cer-
cas eletrificadas, e rezarei para que jamais escapem. (...) Asas de couro me envol-
vem (p. 94 – 98).
90

Diante disso, Batman recua “Não. Eu sou... apenas um homem” – ao fundo vemos

a imagem de um messias, semelhante a Cristo, e abaixo dele há escrito “ecce homo” (p. 98).

Neste quadro, Batman está de cabeça baixa, e seu rosto possui a mesma cor azulada e textura

granulada da máscara. Uma única linha faz o recorte do rosto com o fundo, atribuindo uma

aura santificada ao homem-morcego. Neste momento, quando Batman se descobre atemporal,

não humano, mítico, e ao mesmo tempo, a imagem ao fundo revela um homem, e os dizeres

afirmam e remetem a outro, que o messianismo benjaminiano acontece.

No asilo Arkham, Batman se descobre o messias da morte do homem. Nesse ho-

mem Jesus, e ironicamente, nesse homem Nietzsche, um messianismo, de trilhas diametral-

mente opostas acontecem. No recuo e, ao mesmo tempo, no salto àquilo que ultrapassa o ho-

mem, o morcego compreende, embora não quantifique, o peso do homem que ainda é, e que

há muito já deixou de ser.

O morcego enfim vê o fardo do messias em que se tornou, em conflituosa convi-

vência com a destruição da noção de messianismo que a tradição fez imagem. Nesse quadri-

nho, a vingança da história acontece – no retornar, o passado devasta e recria, ao mesmo tem-

po, numa explosão de movimentos que um quadro imóvel conseguiu apreender, impulsionan-

do ainda mais forte o grande estrondo e tremor das potencialidades, abrindo brechas profun-

das nas cavernas, permitindo que uma quantidade nunca antes vista de morcegos sobrevoem

toda a humanidade.

Se Batman descobre algo muito maior, também se percebe algo muito menor no

mundo do asilo Arkham. Em Batman begins, quando Batman caminha entre uma revoada de

morcegos no asilo, e os internos o observa, impressionados, já se estabelece uma íntima rela-

ção entre a personagem e os habitantes daquele mundo. No passado do asilo estão várias refe-

rências de seus moradores: Amadeus possui dois peixes-palhaços, eventualmente ouve risadas

histéricas de um quarto que sabe que está vazio e uma vez encontrou uma carta do coringa
91

embaixo da cama de sua filha. Há também sutilezas que parecem anunciar o presença do Du-

as-Caras:

No outono de 1920, sou convidado para ir à Europa. Finalmente conheço o professor


Jung, na Suíça. E, na Inglaterra, sou apresentado àquele que chamam de “Homem
mais depravado da Terra”...Aleister Crowley. Eu o acho fascinante e bem-educado.
Discutimos o simbolismo do tarô egípcio e ele me derrotou no xadrez. Duas vezes
(Amadeus em Asilo Arkham, p. 48-49)

Toda a narrativa da hq deixa diversas brechas... Ficamos em dúvida se Amadeus

sofria abusos do pai – já que o vemos num sonho sendo chamado pelo pai diante de um tecido

humano gigante vermelho cheio de fios que parecem pêlos pubianos, denominado “túnel do

amor”. Após matar sua atormentada mãe, Amadeus pôs o vestido de noiva dela – o mesmo

vestido que usou após a morte da sua família, o que levanta a possibilidade de ter sido ele

mesmo que matou sua mulher e sua filha, a qual ele dizia querer que nunca crescesse. Há

também um trecho de Psicose, de Hitchcock – a cena em que é feita a fusão da imagem do

rosto de Norman Bates (Anthony Perkins) com o esqueleto de sua mãe. Com isso, podemos

também pensar que não havia mãe alguma, Amadeus que assumia essa personagem, por esco-

lha ou imposição – por isso a relação sexual com o pai?

Quando a mansão estava em reformas para se tornar um asilo, Amadeus mandou

colocar uma escultura pendurada em correntes, defronte ao asilo:

“Miguel e seus anjos pelejavam contra o Dragão; e o Dragão com seus anjos peleja-
va. E o grande Dragão foi banido, aquela antiga serpente chamada Diabo, e Satanás,
que seduz todo mundo.” Assim como o Arcanjo subjugou o Antigo Dragão, eu ver-
terei essa casa à minha vontade. Eu trarei luz a estes corredores lúgubres de minha
infância. Abrirei as portas trancadas e encherei os quartos vazios. E colocarei sobre a
mansão uma imagem do triunfo da razão sobre o irracional (p. 44).

Mais tarde, no asilo, Batman é perseguido pelo vilão Crocodilo, mutante, aberra-

ção de circo quando criança, com pele de crocodilo, dentes poderosos e força sobre-humana.
92

Como arma, o homem-morcego pega a lança da escultura de Miguel, derrotando o monstro:

“sou mais forte do que eles. Do que este lugar. Eles precisam saber. (...) Arkham tinha razão.

As vezes, é só a loucura que nos faz ser aquilo que somos. Ou talvez o destino” diz Batman,

muito machucado, depois de saber da lenda do morcego descrita no diário de Arkham (p.

107).

Com um machado, o homem-morcego destrói uma das paredes de Arkham, entre-

gando a ferramenta ao Coringa:

- “Estão livres. Estão todos livres” diz Batman.


- “Ah, nós já sabemos. Mas e você?” pergunta Coringa.
- “Por que não deixamos Duas-caras decidir o que fazer comigo?” Batman entre-
ga a moeda, riscada num lado para Duas-Caras.
- “Se cair o lado intacto, ele está livre. Se cair o riscado, ele morre aqui” anuncia
Duas-Caras que, após lançar a moeda, informa que o homem-morcego está li-
vre.
- “Vá curtir a vida lá fora. No asilo” diz Coringa se despedindo de Batman.

Após, vemos a moeda na mão de Duas-caras – havia caído o lado riscado (p. 108-

113).

A todo o momento há referências a Alice no país das maravilhas, de Lewis Car-

roll. Nas suas andanças pelo asilo, diante de um espelho com reflexo ao infinito, Batman en-

contra o vilão Chapeleiro Maluco – Jervis Tech, leitor apaixonado do livro e colecionador de

chapéus que perseguiu uma jovem com o nome de Alice. Enquanto tecnólogo, desenvolveu

chips capazes de controlar ondas cerebrais. Nesta graphic novel fica clara a obsessão da per-

sonagem por “garotinhas loiras. As putinhas sem-vergonhas!”, como diz, enquanto consome

ópio:

A aparente desordem do universo é só uma ordem mais elevada, uma intricada or-
dem além de nossa compreensão. Por isso as crianças... me interessam. São todas
loucas, mas em cada uma, há um adulto intrincado. Ordem gerada do caos. Ou caos
gerado da ordem? Conhecê-las é conhecer a mim mesmo. Garotinhas, principalmen-
te.(...) às vezes acho que o asilo é uma cabeça. Estamos dentro de uma cabeça que
93

nos sonha. Talvez seja a sua cabeça, Batman. Arkham é um país dos espelhos. E nós
somos você. (p. 72-73)

Na hq O cavaleiro das trevas, Bruce, aos seis anos, descobre a caverna e o legen-

dário morcego ao perseguir um coelho branco – semelhante a Alice. Não foi a partir daí que

todo o delírio começou? Todo o treinamento, aventuras, vilões e pesadelos, o delírio de uma

duração de tempo bergsoniana em uma criança que está caindo no escuro? “Para baixo, para

baixo, para baixo. Essa queda nunca chegará ao fim?”18 indaga Alice que não pára de cair na

toca do coelho.

Na filosofia de Bergson existe para a percepção uma temporalidade que ele chama

de duração, que vai do instante em que temos um novo contato com algo até a interpretação

que construímos para aquilo. Na duração da percepção, infinitas potencialidades acontecem

até a imposição de um conceito. É por meio disto, talvez, que se pode reconhecer uma experi-

ência artística – a obra mantém-se sempre durando, sem nunca permitir que haja uma defini-

ção que encerre sua duração.

Em Batman forever, Bruce (Val Kilmer) lembra do momento em que caiu na ca-

verna: “caí uma eternidade.” Alice ao seguir o apressado coelho branco que estava sempre

consultando seu relógio quebrado, conheceu um outro mundo: as conversas desconexas do

Chapeleiro Maluco que disse ter brigado com o tempo e por isso sempre são 18 h; as compli-

cadas poções que fazem Alice crescer ou diminuir de tamanho; as danças e músicas que não

fazem nenhum sentido; as regras da Rainha de Copas que estão sempre mudando durante o

próprio jogo; a arbitrariedade da razão, da lógica e dos conceitos... Tudo isso se revela à Ali-

ce, perdida num mundo de pessoas loucas; e ela, por também estar ali, se descobre só mais

uma louca.

18
http://aventurasdealicenopaisdasmaravilhas.50webs.org/txt/01.htm
94

Nesta queda na toca do coelho, será que Alice – ou Bruce – deixou em algum

momento de continuar caindo? Pode ser que essa queda dure mais do que se suponha, talvez

nunca se tenha saído do buraco.

Vejo agora a virtude na loucura, pois este país não conhece lei nem fronteiras. Te-
nho pena das pobres sombras confinadas na prisão euclidiana que é a sanidade. To-
das as coisas são possíveis aqui, e eu sou aquilo que a loucura fez de mim. Inteiro.
Completo. E livre, afinal. (Amadeus, em “Asilo Arkham” p. 101-102)

“Estou com medo de que, quando atravessar os portões do asilo...quando eu entrar

no Arkham e as portas se fecharem atrás de mim...vai ser como voltar para casa.”, diz Batman

em Asilo Arkham. O que está em jogo no final? Quando Duas-Caras mentiu sobre a moeda,

ele se tornou são? Foi aqui que o dualismo foi ultrapassado. Não se trata mais de enxergar

entre racional e irracional, e sim de seguir adiante.

Na morte do homem está a necessidade do sacrifício da razão, mas isso não signi-

fica optar pelo irracional. Não há dualidade alguma entre razão e loucura, ambas se caracteri-

zam por um olhar entre tantos. Como julgar o olhar real? Hegel achava que isso estava na

coletividade – se todos viam um morcego, ele era real; se só um via, havia algum tipo de pro-

blema. Não há segurança alguma nisso, como saber se todos não participam de um mesmo

delírio?

O delírio da razão: a compreensão disto já é o que por si só se ultrapassa. Quando

Batman enxerga num momento a hora de recuar no delírio do morcego, assim como também

trabalhou por toda vida para também recuar do delírio do homem, apreende uma nova loucura

metodológica – na consciência do próprio delírio, indo até quanto houver vontade de jogar.

Seus vilões, como dito, não conseguem isso, não percebem que estão no mesmo jogo da ra-

zão, mas do lado oposto somente. Duas-Caras viu isso ao final – ele não ficou são, apenas
95

compreendeu a arbitrariedade de qualquer razão, seja ela na sanidade ou na insanidade. Na

morte do racionalismo, faz-se ver o delírio que significam crenças, conceitos ou homens.
96

5 A LENDA DO MORCEGO

Um justiceiro é um homem que age visando beneficiar a si próprio. Ele pode ser
destruído ou preso. Mas, se você se torna mais do que um mero homem, se você se
dedica a um ideal, e se não conseguem detê-lo, se torna algo totalmente diferente:
uma lenda, Sr. Wayne! (Ducard, em Batman begins)

Batman é um messias, ele abre uma porta, revela uma caverna escura que Gotham

nem sequer sabia que existia – trazendo algo novo, estancando um fluxo sanguíneo para o

anúncio de uma salvação... Porém, até que ponto? Qual foi o momento – se é que houve – em

que ele se traiu, voltou-se contra si próprio, limitou-se, ocasionando que depois dele, Gotham

precisa de um outro messias para libertar-se?

Acima de tudo Batman ainda é um herói – não talvez para a maioria dos habitan-

tes de Gotham City, que acredita que o homem-morcego não passa de uma lenda urbana, um

louco ou algum teatro de máscaras da polícia para assustar criminosos. Mas fora de sua dra-

maturgia social, Batman é uma marca – um ícone da cultura pop como a mídia costuma se

referir. Crianças se aproximam muito facilmente da personagem, assim como de seus heróicos

parceiros juvenis. Para o senso comum, Batman ainda é a lembrança de uma atitude nobre, de

um exemplo de valores. Ele luta pela justiça, um humanista que jamais mata. Mesmo obser-

vando a personagem pelo seu lado mais obscuro, ele é ainda assim um exemplo de força de

vontade e determinação. Diferentemente da maioria dos heróis, que nasceram poderosos ou

sofreram alguma mutação, as capacidades do homem-morcego foram adquiridas com treina-

mento e estudo – exceto sua fortuna e saúde impecável, que não deixam de ser superpoderes.

O código moral de Batman, principalmente, não seria o principal culpado por essa

mudança, onde o messias tornou-se um carrasco, impondo vingativamente só mais um amon-

toado de moralidades? Um cristão com capa de morcego? Se a máscara perpetua toda realida-

de de Gotham, o não-racional se impõe impiedosamente como única razão possível, e todos


97

os outros rostos vêem-se escurecidos sob a sombra do morcego, não estaria aqui, no triunfo de

uma vontade sombria, só mais um outro fascismo? Talvez seja disso que Coringa tanto garga-

lhe.

Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se
você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você
(NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2005, p. 70).

Desde os anos 1980, houve uma tentativa de afastar Batman dos bons valores e

costumes – mostrar o louco de capa na noite adentro. Até que ponto os uivos desse morcego

salvador chegou à caverna e, em vingança, ecoou de volta, como num espelho, que ao desferir

energia, a reflete, retornando contra você? O lugar da diferença entre o nascimento do novo

messias e a ressurreição do velho será o ponto final de conflito na morte do homem. A última

charada provoca... afinal, existe um além-do-homem em Batman? Ou ainda, um além-do-

morcego?

5.1 O CAVALEIRO DAS TREVAS

Na graphic novel O cavaleiro das trevas acompanhamos um Bruce Wayne com

55 anos, de bigode e cabelos brancos. Faz uma década que ele havia deixado de ser Batman.

Bruce leva uma rotina banal, eventualmente participando de atividades que lhe trazem algum

perigo ou emoção: a primeira página da hq o mostra numa corrida automobilística. Seu veícu-

lo entra em colapso mecânico devido à excessiva velocidade, as rodas não respondem, ele

quebra o computador de bordo, o carro incendeia. “Seria uma boa morte... mas não o bastan-
98

te”, pensa Bruce. O carro chega em primeiro lugar, completamente destruído, mas ele escapa

no último segundo, sofrendo apenas queimaduras superficiais.

Gotham City passa por uma onda de calor recorde, a violência urbana está mais

alta do que nunca, a cidade é aterrorizada pela gangue Mutante formada por centenas de jo-

vens, e as novas gerações não acreditam que Batman tenha um dia existido. Jim Gordon é

ainda comissário de polícia, com 70 anos, faltando um mês para se aposentar compulsoria-

mente. Depois de tomar um drink com Gordon, em homenagem aos dez anos de aposentado-

ria de Batman, Bruce perambula pela noite, chegando ao beco do crime.

Quando nos despedimos, Jim pôs a mão no meu ombro e riu. “Você precisa de uma
mulher!”, ele disse. Enquanto isso, em minhas entranhas, uma criatura rosna e diz do
que eu preciso. (...) ...decido caminhar pelas ruas da cidade que está se acabando
como o resto do mundo. Eu sou um zumbi, um holandês voador, um cadáver... mor-
to há dez anos. Vou me sentir melhor pela manhã. A sensação não será tão forte. É a
noite que piora as coisas...quando os odores da cidade atraem o maldito embora eu
durma numa mansão a quilômetros de distância...e quando as sirenes da polícia me
fazem acordar e esquecer, por um instante, que tudo está acabado. Mas Batman era
jovem. Se ele procurava vingança, encontrou. Faz quarenta anos que sua sombra
nasceu...nasceu aqui. Uma vez mais, ele me trouxe de volta pra mostrar como tudo
mudou pouco. O mundo só está mais velho e sujo...mas o fato poderia ter sido on-
tem. Poderia ser agora. Eles poderiam estar caídos, a meus pés, inertes, sangrando...
e o homem que privou minha vida de todo sentido poderia estar em pé...bem a-
li...[Bruce se surpreende, dois jovens tentam assaltá-lo] (...) Não. Não é ele. (...)
Não. O assassino de meus pais tremeu ao puxar o gatilho. Ele estava apavorado. Tu-
do que o sujo queria era dinheiro. Ele se sentiu culpado pelo que fez! Esses... esses
são crianças... uma linhagem mais pura... os atuais donos do mundo (n°. 1, p. 6-8).

Bruce acaba ajoelhado, perturbado... Mais tarde, visitando a caverna, que está fe-

chada há anos, ele percebe surpreso que havia raspado seu bigode. Perdido em lembranças,

assiste A marca do Zorro na televisão – o mesmo filme da fatídica noite. Cada vez mais ner-

voso, Bruce resolve trocar de canal , mas só vê crimes hediondos e tragédias na sua cidade.

Uma fortíssima tempestade se anuncia:

O momento chegou! Em seu íntimo, você sabe...pois eu sou sua alma! Não há como
escapar de mim! Você é frágil... você é pequeno... você é menos do que nada... uma
carcaça vazia... um trapo que não pode me conter! Ardentemente, eu queimo sua pe-
le... e assim brilho cada vez mais belo e feroz! Você não pode me deter... nem mes-
99

mo com vinho... ou com o peso da idade! Você não tem como me deter... e, mesmo
assim, ainda tenta... ainda foge! Você tenta me abafar... mas sua voz é débil! (n°. 1,
p. 19-20)

Entre raios e trovões, um morcego invade a mansão, destroçando a vidraça – o ca-

valeiro das trevas retorna.

Isso trará grandes conseqüências: Duas-Caras ressurge, e o Coringa desperta do

estado catatônico. A gangue Mutante é desarticulada, e seu líder é derrotado por Batman. A

nova comissária de polícia organiza uma força-tarefa para a captura do herói. As atitudes de

Batman geram tanta repercussão na imprensa, que o presidente Reagan – sem ter seu nome

citado, mas com claras analogias pela sua aparência e seu passado de espetáculos – pede para

que o Superman interfira, conduzindo a uma intensa batalha entre os dois heróis no final da

história – tudo isso na iminência de uma guerra nuclear.

Na hq, os jovens são todos carentes de referenciais – há uma necessidade urgente

de “bons exemplos”, de determinação, de força de vontade num mundo onde heróis não exis-

tem mais. Grande parte da gangue mutante abandona seu forte, brutal líder de agressiva retó-

rica, quando ele é derrotado pelo morcego. Batman, ciente da impressão que isso causaria, fez

com que toda a juventude estivesse presente na batalha. Após, surgem diversas gangues juve-

nis: os filhos de Batman, extremamente violentos, assassinos sem a autorização do herói; os

nixons, jovens mascarados com a figura do ex-presidente; os filhos de Coringa; os neonazis-

tas; entre outros, como a ingênua jovem Cassie Kelley, que depois de salva pelo Batman faz

um uniforme para si e torna-se a nova Robin.

Durante um pulso eletromagnético causado pela explosão nuclear de um míssil

desviado por Superman, Gotham fica às escuras: um avião cai sobre alguns prédios, muitos

morrem, há diversos incêndios e desespero total. Batman sai pelas ruas a cavalo, recrutando

jovens de todas as gangues para levar ordem à cidade – ele pega uma espingarda e a quebra,

“este objeto covarde e idiota... ele é a arma do inimigo! (...) Nossas armas são silencio-
100

sas...precisas! (...) Esta noite vocês usarão só os punhos... e a astúcia! Esta noite nós somos a

lei! Eu sou a lei!” (n°4, p. 23). Depois da destruição da mansão, o desvio de toda sua fortuna,

e com a identidade próxima de se tornar pública, Batman tem finalmente Superman em suas

mãos, está prestes a matá-lo, mas no último momento sofre um ataque cardíaco – Batman e

Bruce Wayne morrem para o mundo. Mas, na imensidão da caverna, Bruce ressurge, como

um professor diante de seus alunos, ele inicia o treinamento do seu exército juvenil, “...pra

trazer sentido ao mundo infectado por algo pior do que ladrões e assassinos” (n°4, p. 49).

Qual é a disciplina que Batman ensina, pergunto? É teatro – para isso, basta observarmos Al-

fred.

O fiel mordomo inglês, metódico, apaixonado por teatro, principalmente Shakes-

peare, jamais perde sua postura de alto empregado. Mesmo sendo sarcástico, mantém-se nas

suas obrigações ao “mestre Bruce”, que também não parece requerer, fazer questão alguma de

qualquer mudança no tratamento entre os dois. O fino e bem aparado bigode, o fraque preto e

a gravata borboleta, a neurótica higiene e as luvas brancas de Alfred destoam ao servir um

homem fantasiado, numa caverna antiga e escura, habitada por nada limpos morcegos. Alfred

é o único que acompanha Bruce desde criança – é a pessoa mais próxima dele, e mesmo as-

sim, jamais foi consultado, se opôs ou interferiu quando não requisitado na aventura do herói.

Pelo contrário, dá a ele todo o suporte necessário – além de manter a mansão, ele organiza sua

agenda, faz eventuais pesquisas e serve ao vigilante mascarado mesmo fora de seu horário de

trabalho, inclusive como cirurgião de guerra, atividade que aprendeu antes de ser mordomo,

costurando, tratando das feridas do homem-morcego.

Somente no sarcasmo de Alfred há espaço para as contestações e lembrança da pi-

ada que sempre se repete – algo como “brincadeira tem limite”, de um pai que observa aten-

tamente, mas procura não estragar a diversão de um filho. Mesmo assim o teatro acontece

entre Batman e seu fiel mordomo.


101

De maneira semelhante o teatro também se desenvolve com Jim Gordon. O co-

missário e Batman entendem muito bem o funcionamento da cidade, Gordon compreende a

urgência de teatralidade que faz parte de Gotham, afinal foi ele quem inventou o sinal de mor-

cego, projetado no céu por um holofote. Supostamente ele não sabe quem está por trás da

máscara de Batman, mas em Batman: Ano um ele chega a investigar Bruce Wayne, quando

opta por parar a apuração de provas. Em O cavaleiro das trevas ele dá a entender que sempre

soube. Gordon interpreta a figura de um inquestionável comissário, enquanto infringe dezenas

de leis e condutas para permitir Bruce transmutar-se em morcego, fazendo aquilo que parece

momentaneamente necessário, algo que jamais um homem institucional poderia fazer.

No teatro de máscaras, saber contracenar torna-se importantíssimo. Por isso o

mordomo e o comissário atuam juntos na ética do morcego. Esse posicionamento não é neces-

sariamente uma moral, mas pode vir a ser para quem assim o entende – porém, Batman de-

monstra não entender assim. “Jurei jamais tirar vidas (...) Não foi por moral. Foi uma questão

de identidade” (Vigilantes de Gotham, nº. 29, p. 88). Em Batman begins quando Ra‟s Al Ghul

incentiva Bruce a assassinar um criminoso, e ele recusa, Ra‟s protesta: “Sua compaixão é uma

fraqueza da qual seus inimigos não partilharam”, “Por isso ela é tão importante. É o que nos

diferencia deles” responde Bruce. Todas as valorações do morcego, seu posicionamento polí-

tico, ético, parecem funcionar exclusiva e unicamente como traço distintivo daqueles que

combate. Batman não é parte humanista porque acredita piamente em alguns valores do hu-

manismo, mas porque em seu mundo, ninguém mais é – ou ao menos, porque, apesar dos es-

forços, Batman não encontra coragem para abandonar totalmente o humanismo : “Eu ouço

vozes... vozes me chamando de assassino. Eu gostaria mesmo de ser...” (O cavaleiro das tre-

vas, n°3, p. 48) – diz Batman quando tem a chance de matar o Coringa. Vicki Vale questiona

em Batman por que Bruce faz isso, “porque ninguém mais pode...” responde ele. Enquanto

Batman, pelas suas próprias atitudes e capacidades, prova que tudo é possível, da mesma for-
102

ma ele lembra da necessidade do teatro, da disciplina inerente ao jogo para que as ficções a-

conteçam, sem cair na relativização do vale tudo – Batman é o jogo. Um jogo de um homem

que como qualquer outro homem que se predispõe a lutar, inevitavelmente estará lutando con-

tra sua própria época.

Ainda que em segundo plano, a ética do morcego funcione também como exem-

plo moral, será sempre de forma provisória – quando ciente daquilo que Batman representa,

da escada metodológica a ser descartada no final, a Batgirl, na sombra de um legado, torna-se

Oráculo, afirmando seu caráter distintivo. Algo diferente acontece com os vilões: O cavaleiro

das trevas, assim como dezenas de outras hqs, abordam a possibilidade de Batman ter dado

origem a todos os seus inimigos – como no Western, onde todos os criminosos e audazes a-

ventureiros partem para a cidade do homem com o mais rápido gatilho do Oeste no objetivo

de desafiá-lo. Batman é uma provocação, porém, o que seus fantasiados e psicóticos vilões

não percebem é a efemeridade de toda lenda – mesmo permanecendo eterna, ela sempre mor-

re e renasce aos olhos de cada um. Ao mesmo tempo em que é imortal, é temporária, uma

ponte para um Outro – a lenda sempre voltará a se repetir, mas proporcionalmente sempre

será necessário ultrapassá-la, seguir adiante, ir além...

5.2 O HOMEM DE AÇO

Superman foi publicado pela primeira vez em 1938. Nascido no planeta Krypton,

Kal-el era filho de Lara–el e de Jor-el, um importante político/cientista. Convencido que um

terrível cataclisma estava em curso, Jor–el, desacreditado por seus superiores, prometeu que

ele e sua esposa não deixariam o planeta – mas em segredo enviou seu filho, ainda bebê, para
103

um planeta semelhante. Logo na partida da espaçonave, o planeta Krypton explodiu, morren-

do todos os seus habitantes.

Na Terra, a espaçonave caiu em Smallville no Kansas, EUA. Adotado por

Jonathan e Martha Kent, recebeu o nome de Clark. Na adolescência, o futuro herói começou a

desenvolver seus poderes. Após a morte do pai, decidiu viajar para o norte. No Ártico cons-

truiu sua Fortaleza da Solidão, onde descobriu toda verdade sobre si. Trabalhando em Metró-

polis como jornalista no Planeta Diário, ao lado de Lois Lane, Clark Kent assume o manto

herdado por seus pais biológicos, sendo chamado pela imprensa de Superman – protegendo a

Terra de terríveis fatalidades e poderosos vilões, como o inescrupuloso Lex Luthor.19

Os poderes do Superman acontecem na Terra, diferentemente do seu planeta natal,

por causa da radiação de nosso sol amarelo – em Krypton, o sol era vermelho. Assim, o corpo

de Superman funciona como uma bateria, carregando energia. Por isso seus maiores poderes

foram aparecer só na adolescência e, conforme envelhece, mais poderoso fica (O homem de

aço, 1986). Por essa lógica, se supõem que com o tempo novos poderes surjam, podendo o

Superman tornar-se imortal e invulnerável à kryptonita, mineral originário do seu planeta e a

única coisa que pode matá-lo.

Superman e Batman já se encontraram diversas vezes nos quadrinhos, possuem

publicações em comum, atuam juntos na Liga da Justiça e são reconhecidos pela editora e

leitores da DC comics como “the World‟s Finest”. Na animação de mesmo nome, de 1998,

direção de Toshihiko Masuda, acompanhamos a primeira aventura entre os dois heróis: Bat-

man parte para Metrópolis em busca de Coringa, que se aliou a Lex Luthor. Superman logo

intervém, achando muito agressivos os métodos desse homem-morcego que invadiu uma boa-

19
Essa narrativa varia entre filmes, seriados, hqs de diferentes épocas – aqui tento seguir o que há de mais pró-
ximo de uma estrutura comum a todos. Mesmo assim, acho importante salientar que depois da Crise nas infinitas
Terras foi estipulado que Jonathan Kent nunca chegou a morrer. Assim, até hoje, os pais adotivos do Superman
são vivos e atuantes na vida íntima do herói que atualmente, nas revistas regulares da personagem, está casado
com Lois Lane.
104

te de criminosos e espancou todo mundo atrás de informações. Logo no primeiro encontro,

Superman usa sua habilidade para enxergar através das coisas, e vê Bruce Wayne sob a más-

cara. O homem de aço sai voando, até seu apartamento, onde telefona para Lois, a fim de co-

municar a descoberta. Porém, Clark percebe um pequeno objeto na sua capa. Usando sua su-

pervisão, vê Batman, sobre um prédio ao longe, com um binóculo, acenando para ele – era um

rastreador, agora um sabia o segredo do outro.

Esse duelo entre os dois maiores heróis, querendo provar, cada um a seu modo,

quem é o melhor, é algo que vai marcar essa relação, que com Frank Miller em O cavaleiro

das trevas, culminará numa batalha mortal, conseqüência da inevitável colisão política das

duas personagens. Superman e Batman apresentam diferenças significativas que podem ser

vistas claramente ao observar como a cidade de cada um reflete seu residente.

Na cidade de Metrópolis há uma aura de bondade e otimismo sobre tudo e todos.

As pessoas são gentis e preocupadas com o próximo, tudo é muito limpo, branco e iluminado

– ou seria iluminista? A ciência, enquanto promessa, garantiu uma cidade do futuro, muito

bem ordenada: o lugar onde o projeto moderno de mundo deu certo. Comunicação é um dos

grandes exemplos do sucesso – não é por acaso que Superman é um jornalista nas suas horas

vagas de protetor da humanidade. Hierarquias e instituições costumam ser perfeitas e abenço-

adas, por isso o único receio, o único evento a ser temido, é alguém mal-intencionado cor-

romper toda a maquinaria sócio-política: este é o vilão Lex Luthor, um homem rico, que an-

seia o poder absoluto, fazendo-se passar por um bom samaritano, um verdadeiro altruísta que

ajuda causas sociais e estimula o progresso tecnológico da cidade. Outro grande medo é o

imigrante, aquele que vem de fora para profanar o paraíso na Terra, como o vilão alienígena

Brainiac.

Nos anos 2000, nas histórias em quadrinhos regulares do Superman, Luthor se

tornou presidente dos Estados Unidos: nesse panorama, o jornalismo praticado por Clark Kent
105

e Lois Lane se tornou mais importante do que nunca – somente através da verdade se pode

desmascarar os vilões. Esse é o espírito de Superman: uma busca incessante do justo e do ver-

dadeiro, de um enviado de um outro mundo, que veio à Terra para salvar os homens e dar o

exemplo – da mesma forma sua cidade, que sempre será o modelo do progresso, da liberdade

de expressão e do conhecimento em benefício do homem de idéias claras e distintas.

Já em Gotham City tudo é virado ao avesso: os prédios na sua arquitetura góti-

ca parecem apontar para o céu, geralmente chuvoso, clamando pela volta do Pai que os a-

bandonou – não seria num assassinato no “beco do crime”? Gotham é onde o projeto mo-

derno realmente faliu. As instituições não funcionam, há terrível desigualdade social e vio-

lência, a ordem e a luz não passam pelas carregadas nuvens, só há sujeira, escuridão e caos.

Quando diante de uma cena de assassinato, Batman, “o maior detetive do mundo”, usa toda

ordem da criminalística a favor unicamente de sua intuição – na hora de perseguir um cri-

minoso culpado, ele recorre ao instinto, e costuma acertar.

Gotham se constituiu sobre um antigo manicômio. Poucos conseguem ou que-

rem reprimir suas paixões ou vontades, a maioria põe em prática suas fantasias e delírios.

A liberdade torna-se um conceito estranho à Gotham. Ao mesmo tempo em que a cidade se

vê descompromissada para suas estranhas obsessões, torna-se vítima delas.

Superman é um herói para Metrópolis, comparece a eventos públicos, recebe

homenagens, tem grande reconhecimento e é um referencial moral – ele pertence ao povo,

por isso seu arquiinimigo é um aristocrata que gosta de música clássica. Já para Gotham,

Batman é uma lenda urbana. Para os que acreditam nele, não passa de um lunático vigilan-

te, que no anonimato persegue e aterroriza as pessoas. Esta é a maior crítica do homem de

aço ao homem-morcego: ele constrói uma sociedade de covardes. Em Gotham, as pessoas

não deixam de cometer crimes porque acham errado, mas porque têm medo da sombra que

virá no encalço de todos. Batman apenas sorri, irônico. Afinal, qual a moral que não fun-
106

ciona pela ameaça e pela vingança? Superman faz o mesmo jogo, mas é ingênuo para per-

ceber ou temeroso demais para aceitar a violência que é um super-herói. “Quando os gru-

pos de pais começaram a se queixar e a comissão do congresso nos convocou para depor...

foi você [Bruce] quem deu risada... aquela sua gargalhada assustadora! „Claro que somos

criminosos!‟ você disse! „Nós sempre fomos!‟ „Nós temos de ser!‟ ” (O cavaleiro das tre-

vas, n°3, p.33).20

Acontece uma estranha admiração entre ambos. Batman acha fascinante as ca-

pacidades e a imponência da figura do Superman, mas ressalva: “...quando fala, ele estraga

tudo” (n°. 3, p. 16). Já Superman admira o morcego por ser justamente aquilo que ele pró-

prio não é: um humano. Numa ocasião em que o homem de aço foi seqüestrado por super-

poderosos vilões, junto com toda a Liga da Justiça, residindo em Batman toda a esperança

da humanidade, um vilão debochou: “ele é só um homem...” Superman, torturado, deliran-

do, então retruca: “o mais perigoso da Terra...” (Os melhores do mundo, n°11, p.21). Foi

ao Batman que Superman confiou o anel de kryptonita que pertencia a Luthor – se um dia

Superman perder o controle, se transformar-se em algo grande demais que possa vir a ser

uma ameaça à Terra, Batman é o único que poderá derrotá-lo.

Se na admiração de Batman está vontade de força, em Superman, sua vontade

confunde-se entre insegurança e desespero. Superman está sozinho, num mundo que não é

20
As diferenças éticas entre Batman e Superman triangulam com Oliver Queen, o Arqueiro Verde: originalmente
de Star City, o ex-milionário falido, que após um acidente teve de passar um tempo numa ilha deserta, onde
aprendeu sozinho a manusear arco e flecha, costuma questionar ambos os heróis. Mais engajado politicamen-
te, o herói, às vezes esquerdista, às vezes liberal, dependendo de quem escreve, já lutou por causas ambien-
tais, contra a desigualdade social, e eventualmente até assume um cargo político. Ao mesmo tempo em que
reúne a impetuosidade de Batman, tem forte senso de responsabilidade como Superman – até mais, é ele
quem reclama quando a Liga da Justiça vai mais uma vez salvar o mundo, e destrói inteiramente mais uma
cidade, na batalha em nome da justiça contra poderosos vilões. Oliver é o mais crítico dos super-heróis – ele
questiona como Batman leva crianças pra frentes de guerra, e ataca a ingenuidade moral do escoteiro Super-
man. Em O cavaleiro das trevas, o Arqueiro Verde – que teve o braço esquerdo amputado por algo envol-
vendo o homem de aço – trabalha secretamente no boicote das forças armadas estadunidenses desde que fu-
giu da prisão. Aos gritos de “fascistas!” para o exército, ele lança, segurando pelos dentes, uma flecha de
kryptonita no Superman, ajudando Batman a derrotá-lo (n°4, p. 43).
107

seu, numa posição que lhe foi herdada, imposta: “embora você tenha sido criado como um ser

humano, você não é um deles. Eles podem ser ótimas pessoas como costumavam ser. A eles

só falta a luz pra mostrar o caminho. Por essa razão, além de tudo, pela capacidade das pesso-

as em evoluir, eu mando a eles meu único filho”, diz Jor–el (Marlon Brando) em Superman

(1978), de Richard Donner. Superman tem de estar sempre do lado do bem na balança moral,

ele precisa ser aceito para conquistar um lar, uma pátria que possa compartilhar.

Não se pode tocar em meu planeta sem destruir algo precioso! Até os desertos são
preciosos! (...) Nosso povo, Bruce! E você riu deles! Os malditos podem fazer isto...
e você riu! Eles rasgaram o tecido da realidade (...) e ofuscaram o sol... fonte de todo
meu poder... esperança de milhões de criaturas! (...) A senhora tem toda razão de es-
tar ultrajada, mãe-terra! Deu a seus filhos tudo... esses filhos mesquinhos, idiotas e
perversos! (...) Eu sempre amei a senhora. Embora tenha vindo de outra galáxia...
sempre servi a seus desígnios! O mesmo poder... a energia do sol... alimenta a nós
dois! (...) Eu suplico... em nome de um planeta moribundo... libere essa força...
mãe... mãe... (...) Eu juro... este filho adotivo honrará seu nome! (Superman, após a
detonação de uma ogiva nuclear, em O cavaleiro das trevas, n°4, p.26-29)

Há dois tipos de messianismo – o primeiro é o da tradição, que visa restaurar, rea-

firmar a velha ordem no novo atrás de uma capa envelhecida. Superman foi criado por cam-

poneses estadunidenses, seus valores, sua moral representa o caipira norte-americano. Junto

com sua educação de simplicidade, de humildade, vem o fardo do legado das estrelas, grandi-

oso, poderoso. Unindo as duas tradições pelo que elas têm de comum, na moralidade, na con-

dição para o bem, Superman torna-se o herói dos fracos, daqueles que precisam de uma luz,

de um salvador que venha voando cheio de esperanças. As crises de Superman acontecem

quando ele falha na obrigação de ser um messias, ou percebe o fracasso da humanidade, como

na graphic novel Paz na Terra (1998), de Paul Dini e Alex Ross, onde Superman usa toda sua

influência para acabar com a fome no mundo, mas no final percebe-se frustrado – nem todos

estão preparados ou querem um salvador. São comuns cenas em que uma multidão desespera-

da o cerca, e no final, o homem de aço precisa se retirar voando – ou se enterrar, inclusive em

Gotham.
108

“Papai dizia que seria necessário alguém especial, sem interesses pessoais, para

fazer todos perceberem o que o mundo tem a oferecer. Alguém que colocasse de lado as pró-

prias necessidades em nome do bem comum” (Paz na Terra, p. 18-19). Superman é o herói da

coletividade – ostensivo e óbvio para que todos vejam claramente o único filho do pai celesti-

al. Superman é a ressurreição do velho messias, cristalizado, limitado nos pensamentos e a-

ções, imóvel como um homem de aço.

Para sair da apatia, as pessoas precisam de exemplos dramáticos. Não posso fazer is-
so como Bruce Wayne. Como homem sou de carne e osso, posso ser ignorado ou
destruído, mas como símbolo, como símbolo posso ser incorruptível... posso ser e-
terno... (...) Alguma coisa elementar... alguma coisa aterrorizante... (Batman begins)

O outro messias se dará pelo choque e pela ruptura – uma interrupção messiânica

benjaminiana. Não será nenhum exemplo esse novo messias, a não ser de quebra do próprio

exemplo. No Batman estarão a ironia, o cinismo, a vontade como força maior. Ele não herdou

seu uniforme, é um menino mimado bilionário cheio de desejos. No indomesticável morcego

não há moral, há negociações entre jogos, brincadeiras que devemos aceitar provisoriamente a

fim de que se siga adiante. Batman não traz nenhum bem-comum, pelo contrário, ele por si só

se demonstra a impossibilidade e recusa dessa condição. Para o abandono do bem-comum não

é preciso adeptos, mas todos ao procederem na refutação do coletivo, inevitavelmente tornam-

se partidários do homem-morcego.

Talvez o homem ainda não saiba, mas o morcego está lhe devorando, sugando seu

sangue, nutrindo-se com sua energia vital para um grande uivo na escuridão – na luz enxer-

gamos o que nos é dado, mas nas sombras vemos aquilo que ninguém mais vê, as imagens

que não se compartilham, que consomem cada um de um modo. Sobre um cavalo selvagem,

negro, violento, surge um cavaleiro das trevas – messias da vontade sombria.


109

Você sempre soube o que dizer... diz sim... a qualquer um com distintivo... ou a uma
bandeira. (...) Você traiu a todos nós Clark. Deu a eles o poder... que devia ter sido
nosso. Exatamente com seus pais ensinaram. Meus pais me ensinaram coisa diferen-
te. Caídos nesta rua sangrando muito... morrendo sem razão nenhuma... eles me
mostraram que o mundo só faz sentido quando você o força a fazer. (...) Poderíamos
ter mudado o mundo... agora olha só para nós... eu me tornei um risco político... e
você... você, uma piada... (Batman na batalha contra Superman, no “beco do crime”,
em O cavaleiro das trevas, n°4, p. 40-44)

5.3 ALÉM-DO-MORCEGO

Batman foi uma aposta da promissora indústria de quadrinhos em 1939. Frank

Foster já havia formulado um homem-morcego sete anos antes, mas o projeto não foi à frente.

Devido ao aumento dos problemas sociais e a violência urbana amplificada pela grande de-

pressão de 1929, além também da segunda guerra mundial que começava, Batman foi apre-

sentado ao mundo inicialmente como uma distração, um escapismo, algo para que o público

não se horrorizasse tanto quanto o mundo lá fora – mas em todo entretenimento reside uma

vingança. Batman era a lembrança de um projeto decadente: por mais que, a partir do surgi-

mento de Robin, as histórias se tornassem mais leves, a sombra ainda estava lá.

É uma oportuna coincidência uma das personagens mais emblemáticas da descon-

fiança e falência da modernidade no mundo das hqs de heróis estadunidenses ter nascido no

mesmo ano em que se iniciava a segunda guerra mundial. Assim como a economia e o urba-

nismo das grandes metrópoles mostravam a modernidade e o progresso como phármakon, a

guerra obscureceu de vez qualquer fé num projeto moderno – não haveria mais como crer

num futuro melhor pela pura ciência, quando o que se via eram avançados campos de concen-

tração e de extermínio culminado em bombas atômicas. A razão, promessa para um futuro

justo e livre, foi a grande arma no planejamento sistemático de genocídios, na criação de ar-

mas de destruição em massa, e no controle sobre qualquer forma de vida, e conseqüentemente

de morte.
110

Batman é fruto disso tudo: um homem atormentado pela destruição da sua pro-

messa de futuro feliz. Nas hqs, até hoje, Batman sempre lembra de sua vida anterior ao assas-

sinato dos pais como algo simplesmente perfeito – sua feição torna-se igual de uma criança.

Seu pai é um médico exemplar, e sua mãe é uma esposa incomparável. Os dois se amam tanto

quanto amam o único filho. Mas a modernidade se vingou, os pais de Bruce foram assassina-

dos, não por um serial killer, ou um louco fantasiado, mas um trabalhador braçal, desempre-

gado, desesperado, mais nervoso que suas próprias vítimas, que ainda teve a decência de não

machucar fisicamente uma criança.

Depois, quando Batman tornou-se aliado dos policiais, compareceu a eventos pú-

blicos, e deu coletivas à imprensa, a modernidade adoecia ao ver um criminoso bem-aceito.

Batman é urgentemente necessário a esse mundo que desaba e clama por algum outro referen-

cial. Se no morcego encontramos algo da morte do homem, nele não estaria também um pou-

co da profecia do além-do-homem?

Arte é um desperdício e Batman é um desperdício: não possui um propósito me-

ramente utilitarista, é uma inscrição no mundo que acontece sem necessidade objetiva de um

por que nem de um para quê. O objetivo do morcego supostamente é combater crimes como o

que ele sofreu, mas até quando? Batman só iria parar quando não houvesse mais crimes. Co-

mo evitar todos os crimes, como controlá-los? Por outro lado, no morcego a vontade nietzs-

cheana mostra alguns dos seus maiores poderes, num sombrio convite ecoado no aparecimen-

to infinito de mais loucos vilões e jovens destemidos heróis. Não há respeito por limites ou

regras, a não ser por aquelas escolhidas por si próprio. Batman, como uma boa criança mima-

da, jamais aceita um não.

Na sobreposição indefinida da ordem e do caos, da inevitável contradição de justi-

ça e liberdade, no choque e no colapso inerentes à vontade, entre o escravo e o tirano, Batman

parte para além do bem e do mal, para além do homem. Mas assim como é duvidoso lhe con-
111

ferir um começo, tanto quanto o é lhe proferir um final – Batman não é ainda um super-

homem nietzscheano.

Nietzsche anuncia como potencialidade do além-do-homem a capacidade de se

autocriar, de se tornar arte, ir além... Batman parece atingir isso, mas em partes: aos poucos

ele foi criando seu estranho visual, forjando sua louca razão. Quando o morcego adentrou a

janela, só houve pretextos racionalizados em estilhaços de vontades, desejos e obsessões. Seu

passado é um eterno devir, e sua identidade está sempre a se construir. Porém, ele não conse-

gue ir adiante, – vê-se envolto numa rostificação, que ele demonstra compreender como só

mais uma ficção no mundo. Mesmo assim, não consegue abandoná-la e partir em busca de

outras ficções.

Deleuze, no capítulo “Platão e o Simulacro” da Lógica do Sentido, parte de uma

proposta de reversão do platonismo, tornando clara a motivação do platonismo, encurralando

esta motivação, apontando as principais diretrizes e engrenagens da filosofia de Platão: “...o

motivo da teoria das Idéias deve ser buscado do lado de uma vontade de selecionar, de filtrar”

(p. 259). Distinguindo dois tipos de imagens: a cópia – semelhança do original, do ideal, onde

para Platão tudo se inicia, como um boneco de argila vindo de uma fôrma –, e o simulacro – a

dissimilitude, o falso, aquilo que não veio de fôrma alguma.

“A dialética platônica não é uma dialética da contradição nem da contrariedade,

mas uma dialética da rivalidade, uma dialética dos rivais ou dos pretendentes”, numa seleção

de linhagem, para “filtrar pretensões, distinguir o verdadeiro pretendente dos falsos.” Essa

divisão sucessiva que constitui a dialética platônica. Quando chega à sua tarefa seletiva, a

dialética pára abruptamente, e no lugar aparece um mito – que “não interrompe nada, ele é, ao

contrário, elemento integrante da própria divisão”. “O mito, com sua estrutura sempre circu-

lar, é realmente a narrativa de uma fundação. É ele que permite erigir um modelo segundo o

qual os diferentes pretendentes poderão ser julgados. O que deve ser fundado, com efeito, é
112

sempre uma pretensão” (p. 260). Por meio do mito a divisão “atinge seu fim, que não é a es-

pecificação do conceito mas a autenticação da Idéia” (p. 261).

Com a cópia, como um pretendente bem fundado, semelhante ao modelo do ideal;

e o simulacro, como um falso pretendente, o platonismo trata de...

...garantir o triunfo das cópias sobre os simulacros, de recalcar os simulacros, de


mantê-los encadeados no fundo, de impedi-los de subir à superfície e de se „insinu-
ar‟ por toda parte.(...) A grande dualidade manifesta, a Idéia e a imagem, não está aí
senão com este objetivo: assegurar a distinção latente entre as duas espécies de ima-
gens, dar um critério concreto (DELEUZE, 1974, p. 262-263).

A cópia, pretendendo se assemelhar ao ideal, precisa moldar-se física e espiritu-

almente às Idéias. Já o simulacro, nas sombras de estranhas pretensões, torna-se “ uma agres-

são, uma insinuação, um desequilíbrio, uma subversão, (...) sem passar pela Idéia” (p. 263).

O cristianismo segue a mesma cartilha: somos simulacros de Deus, e só podemos

reconquistar nosso direito de cópia se voltarmos às semelhanças com o pai, se nos aproxi-

marmos do Mesmo, enquanto o diferente, o simulacro não cristão, o Outro, acaba por se tor-

nar o demoníaco. Transformar esse simulacro em semelhante, ou expulsá-lo de vez da frente

de nossos olhos é o objetivo do platonismo. O Simulacro é distinto, estranho; justamente por

isso, por seu poder de corromper, ele é tão perigoso. “O platonismo funda assim todo o domí-

nio que a filosofia reconhecerá como seu: o domínio da representação preenchido pelas có-

pias-ícones e definido não em uma relação extrínseca a um objeto, mas numa relação intrínse-

ca ao modelo ou fundamento.” (p.264)

(...) a filosofia não deixa o elemento da representação quando parte à conquista do


infinito. Sua embriaguez é fingida. Ela persegue sempre a mesma tarefa, Iconologia
e adapta-a as exigências especulativas do Cristianismo (o infinitamente pequeno e o
infinitamente grande). E sempre a seleção dos pretendentes, a exclusão do excêntri-
co e do divergente, em nome de uma finalidade superior, de uma realidade essencial
ou mesmo de um sentido da história (p.265).
113

No simulacro estarão a interrupção messiânica e a quebra do exemplo do Mesmo

e do Semelhante. Como vontade de potência, do diferente, do plural, um exemplo permanece:

de desenlace do próprio exemplo. O porvir dionisíaco se apresenta na figura do simulacro:

“...neste sentido ele subverte a representação, que destrói os ícones: ele não pressupõe o

Mesmo e o Semelhante, mas, ao contrário, constitui o único Mesmo daquilo que difere, a úni-

ca semelhança do desemparelhado” (p. 270).

Reverter o platonismo significa então: fazer subir os simulacros, afirmar seus direi-
tos entre os ícones ou as cópias. (...) O simulacro não é uma cópia degradada, ele en-
cerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo
como a reprodução. (...) Não há mais ponto de vista privilegiado do que objeto co-
mum a todos os pontos de vista. (...) A semelhança subsiste, mas é produzida como
o efeito exterior do simulacro, na medida em que se constrói sobre as séries diver-
gentes e faz com que ressoem (p. 267-268).

Batman é um simulacro traumatizado. Assim como no mito de Platão, onde todas

as almas avistaram o plano das Idéias e chegaram até a Terra com a lembrança de um ideal de

mundo, Batman avistou também esse ideal antes dos seus oito anos de idade. Mesmo como

um simulacro, um divergente do ideal, ele ainda carrega consigo esse passado que o assombra

e o amarra, impendindo-o de alçar vôos maiores. Batman é uma ótima oportunidade da morte

do homem, mas depois dele precisa-se prosseguir... sair das sombras, deixar de vê-las como

oposição da luz, e construir um outro olhar, inexplicável.

“O treinamento não é nada. A vontade é tudo!” (Ra‟s em Batman begins). Talvez

essa esperança resida no filho de Batman com Tália, Ibn al Xu'ffasch – filho do morcego em

árabe, também chamado de Damian Wayne –, neto de Ra‟s al Ghul. No conflito do mistério e

do poder ilimitado herdado pelo avô, com o legado das sombras e a superação dos medos do

pai, talvez Ibn consiga continuar de onde seus antecessores cessaram, partindo para o além do

homem, do bem e do mal – para além-do-morcego...


114

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A INQUIETUDE

Toda vez que leio uma narrativa de Batman, vejo a mesma coisa: o vigilante toma

para si uma situação de ameaça à vida, parte numa aventura – às vezes mais concentrada em

levantamento de pistas e provas, às vezes com muita pancadaria e explosões gratuitas.

Um vilão se personifica numa individualidade ou numa coletividade, isso não im-

porta – há algo para ser combatido. No final, o morcego é vitorioso, mas com algum pesar...

ele sabe que ainda há muito por fazer, e por mais que se esforce, sua dor não passa.

Embora nos filmes e seriados costume ficar clara a narrativa de uma aventura –

um crime acontece, Batman se envolve, um vilão o ameaça, e no final, o herói triunfa –, nas

hqs – que em comparação com as narrativas dos audiovisuais, se assemelham mais a uma

telenovela – Batman está constantemente resolvendo diversos crimes ao mesmo tempo. O

morcego nunca descansa. Uma imagem habitual é Batman lançando suas cordas, voando entre

os arranha-céus atrás de mais outro crime a ser resolvido – sendo que acabou de solucionar

um, deixando um vilão desmaiado, amarrado, à espera da polícia.

A eterna repetição na vida de Batman não se reduz às suas ações. Na memória, tu-

do está sempre por acontecer de novo: em apenas um ano de histórias, é possível que se tenha

repetido a morte de seus pais dezenas de vezes. A origem das personagens periféricas também

nunca cessa de voltar a acontecer: somente o começo do primeiro Robin já foi recontado di-

versas vezes com grande precisão de detalhes. Desde sua primeira aparição em 1940, na De-

tective comics 38, sua narrativa foi recontada em minisséries como Vitória sombria, Batman:

Ano três, e atualmente na linha regular Grandes astros: Batman & Robin – além dos vários

filmes e desenhos animados.

Essas repetições também acontecem na noção de legado dos heróis. O homem ou

a mulher podem mudar, mas o herói permanece: basta ver que atualmente estamos no terceiro
115

Robin, na segunda Batgirl... A Batwoman, personagem característica dos anos 1950, está

também de volta, assim como a Caçadora, que antes da Crise nas infinitas Terras era filha do

Batman e Mulher-Gato, e que nos anos 1980 apareceu como uma outra vigilante, contempo-

rânea do homem-morcego. Nem os vilões estão imunes, Cassius Clay é atualmente o quinto

Cara-de-barro.

Toda vez que a história recomeça, o pressuposto original permanece o mesmo,

mas as pequenas diferenças, as mais sutis, como alguns enquadramentos, cores ou palavras,

acabam tornando a história novamente viva. Essa vivacidade está na narrativa, mas também

está no leitor que pela milésima vez se emociona com a mesma história.

Nesta repetição psicótica, no pacto de morcego entre leitor e escritos, está, talvez,

a maior potência desse ghotamita universo em quadrinhos. A repetição torna-se a maior força

de destruição do mundo do homem. Giorgio Agamben, no texto O cinema de Guy Debord,

aponta uma simples, porém muito útil noção de repetição:

O que é uma repetição? Há na modernidade quatro grandes pensadores da repetição:


Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Gilles Deleuze. Todos os quatro nos mostraram
que a repetição não é o retorno do idêntico, o mesmo enquanto tal que retorna. A
força e a graça da repetição, a novidade que ela traz, é o retorno como possibilidade
daquilo que foi. A repetição restitui a possibilidade daquilo que foi, torna essa coisa
novamente possível. Repetir uma coisa é torná-la novamente possível. É aí que resi-
de a proximidade entre a repetição e a memória. Pois a memória não pode nos resti-
tuir tal qual aquilo que já foi. Isto seria o inferno. A memória restitui ao passado sua
possibilidade. É o sentido dessa experiência teológica que Benjamin via na memória
quando dizia que a lembrança faz do não-consumado (inaccompli) algo consumado
(accompli). A memória é por assim dizer o órgão de modalização do real, aquilo que
pode transformar o real em possível e o possível em real (AGAMBEN, 1995).21

Foi esse trabalho de memória que me impus ao realizar esta dissertação, re-

visitando diferentes quadrinhos das minhas recordações. Na repetição do meu pacto com o

morcego, pude torná-lo novamente possível – recriá-lo e ao mesmo tempo descriá-lo.


116

Não se deve considerar o trabalho do artista unicamente em termos de criação: ao


contrário, no coração de todo ato de criação, há um ato de des-criação. Deleuze disse
certa vez, sobre o cinema, que todo ato de criação é sempre um ato de resistência.
Mas o que significa resistir? É antes de tudo ter a força de des-criar o que existe,
des-criar o real, ser mais forte do que o fato que está aí. Todo ato de criação é tam-
bém um ato de pensamento, e um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pen-
samento se define, antes de mais nada, por sua capacidade de des-criar o real. (A-
GAMBEN, 1995)

No repetir o universo do morcego consegue atingir a morte do homem: na nega-

ção do real – própria dos quadrinhos –, e do progresso, que nunca acontece na cronologia que

auto-engana – Bruce já teve três Robins e continua sempre com uma aparência de aproxima-

damente uns trinta e cinco anos. A morte do homem também ocorre na personagem de Bat-

man conforme já apontado na morte da individualidade, da origem, da razão, da moral... Se o

homem-morcego não consegue chegar a ser o emblema do além-do-homem nietzscheano, é

porque a tarefa não cabe a ele, nem sequer se faz necessária. A repetição se preocupará com

essa missão. Assim como Batman sempre se repete, sempre se repetirá a necessidade de pros-

seguir a ele – o que une Batman a seus leitores é a psicose compartilhada do eterno retorno.

Em oposição ao silêncio que se tornou o homem, para ir adiante, avançar na in-

quietude, adentrar no devir, o morcego retorna eternamente com a lembrança de que, na som-

bria morte, sempre caberá ao leitor procurar uma outra vivacidade – na vontade, voar para

mais além...

21
AGAMBEN, Giorgio. “O cinema de Guy Debord” (conferência em Genebra, novembro de 1995, publicada
em Image et mémoire, Paris: Desclée de Brower, 2004). Tradução de Antônio Carlos dos Santos (texto
fotocopiado).
117

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____________. O cavaleiro das trevas 2. História em quadrinhos (3 vol.). São Paulo: ed.
Abril, 2002.
MILLER, Frank; LEE, Jim. Grandes astros: Batman & Robin (nº.1 a 4). História em qua-
drinhos. São Paulo: Panini comics, 2007.
MILLER, Frank; MAZZUCCHELLI, David. Batman: Ano um. História em quadrinhos. São
Paulo: ed. Abril, 2002.
120

MILLER, Mark; YEOWELL, Steve. “Brinquedo favorito”. In: Batman Anual. História em
quadrinhos. São Paulo: ed. Abril, 1996.
MOENCH, Doug; JONES, Kelley. Batman & Drácula – Chuva rubra. História em quadri-
nhos (3 vol.). São Paulo: ed. Abril, 1992.
____________. Bruma escarlate. História em quadrinhos (2 vol.). São Paulo: Mythos, 2001.
____________. Tempestade de sangue. História em quadrinhos (2 vol.). São Paulo: Mythos,
2001.
MOORE, Alan; BOLLAND, Brian. A piada mortal. História em quadrinhos. São Paulo: ed.
Abril, 1999.
MOORE, Alan; GIBBONS, Dave. Watchmen. História em quadrinhos (12 vol.). São Paulo:
ed. Abril, 1999.
MORRISON, Grant; MCKEAN, Dave. Asilo Arkham. História em quadrinhos. São Paulo:
Panini comics, 2003.
MORRISON, Grant; PORTER, Howard. “Guerra dos mundos”. In: Os melhores do mundo
nº. 11. História em quadrinhos. São Paulo: ed. Abril, 1998.
STARLIN, Jim; APARO, Jim. A morte de Robin. História em quadrinhos (3 vol.). São Pau-
lo: ed. Abril, 2002.
____________. As dez noites da Besta. História em quadrinhos. São Paulo: ed. Abril, 1989.
STARLIN, Jim; WRIGHTSON, Berni. O messias. História em quadrinhos (4 vol.). São Pau-
lo: ed. Abril, 1989.
WOLFMAN, Marv; BRODERICK, Pat. Batman: Ano três. História em quadrinhos (2 vol.).
São Paulo: ed. Abril, 1990.
WOLFMAN, Marv; PÉREZ, George. Crise nas infinitas Terras. História em quadrinhos (2
vol.). São Paulo: Panini comics, 2003.

FILMOGRAFIA

BURTON, Tim. Batman – edição especial. [DVD]. Warner home video, 2005.
____________. Batman o retorno – edição especial. [DVD]. Warner home video, 2005.
DONNER, Richard. Superman: o filme – edição especial. [DVD]. Warner home video,
2006.
DOZIER, William. Batman: o homem morcego – edição especial. [DVD]. Fox film, 2004.
HILHOUSE, Jason. “A lenda do cavaleiro das trevas”. In: Batman – edição especial. [DVD].
Warner home video, 2005.
121

MASUDA, Toshihiko. Batman & Superman – os melhores do mundo. [DVD]. Warner


home video, 2002.
NOLAN, Christopher. Batman begins – edição especial. [DVD]. Warner home video, 2005.
SCHUMACHER, Joel. Batman & Robin – edição especial. [DVD]. Warner home video,
2005.
____________. Batman eternamente – edição especial. [DVD]. Warner home video, 2005.
122

ANEXOS
123

Primeira aparição, 1939 – desenho de Bob Kane. Em Batman:ano um, o morcego encontra Gordon –
desenho de David Mazzucchelli, 1987.

Batman de Alex Ross, 1999.


124

Robin. de Frank Miller. Grandes astros: Batman &


Robin 2, 2006.
Batman, de Neal Adams, 1971.

Batman, de Jim Lee. Grandes astros: Batman &


Batman: ano 100, de Paul Pope, 2006. Robin 1. 2006.
125
Asa Noturna, de Jim Lee, em Silêncio, 2003.

A morte de Robin, de Jim Aparo, 1988.

Batman, de Alex Ross, 1999.


126

Mulher-Gato, de Jim Lee, em Silêncio, 2003.

Mulher-Gato, de Tim Sale, em O longo dia das bruxas, 1997.

Mulher-Gato, de Jim Balent, 1996.


127
Batman, de Tim Sale, 2000.

Batman, de Simon Bisley, 1993.


128

Coringa, de Dave McKean – Asilo Arkham, 1989.

Coringa, em A piada mortal – desenho de Brian Bolland, 1988.


129

Duas-Caras, de Tim Sale. Vitória sombria, 2000.

Duas-Caras, de Dave McKean – Asilo Arkham, 1989.


130

O cavaleiro das trevas, de Frank Miller, 1986.

Batman begins, de Christopher Nolan, 2005.


131
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