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EDIÇÃO VERÃO

Co m o d eve 14 contos Co n t o
ser um conto? p a ra c e le b ra r See you soon!
de Cíntia o melhor do destacado por
Moscovich ve rã o R .Ta v a r e s
nota da
ed i t o ra
Foram quarenta inscrições validadas,
quarenta textos de autores de todos os
lugares, com diferentes pontos de vista.

Um dos desafios, como editora, foi manter a


diversidade de assuntos e visões de mundo
unidos pelo tema central, o verão.

Verão de amores, das crianças, que muda


para sempre a vida de alguns e que passa
fulgazmente para outros.

E não há consenso na arte ou na literatura.


Talvez você se emocione com Gigantes do
Verão, ame o final cinematográfico de
Sibipiruna, se veja nos amores (perdidos) de
verão e leia as três marias de forma irônica.
Ou talvez não, mas uma coisa eu prometo,
tem textos para gostos e estilos diferentes,
cada um com seus méritos.

Além dos contos, trouxemos o texto da


oficina da escritora gaúcha Cíntia Moscovich,
que trata dos subtextos que nos deram nome.

Então vamos à leitura, pois arte será plural,


ou não será nada.

Mariane Lima

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índice
n o t a d a ed i t o ra
p re fá c i o
R.Tavares
como dever ser um conto
Cíntia Moscovich
o ú l t i m o g i g a n t e d o ve rã o
Gustavo Rosa
a m o r d e ve rã o
Regiane Folter
t rê s M a r i a s
Maria Carminha Pires
dia de sol
Margarete Bretone
see you soon!
Anton Roos
a c a d a u m s e u fa rd o
Rodrigo Domit
escolhas
Marcel Ahless
sibipiruna
Neuceli Maria da Silva Candido
o s e q u e s t ro
Jeff Ferreira
dalit
Marcelo Mendes
fe l i c i d a d e ve rd a d e i ra
Mario Sergio Ribeiro
minhas pernas
R.Tavares
do pampa ao mar
Caroline Rodrigues
a m o re s l í q u i d o s
Mariane Lima

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p re fá c i o
O verão é uma estação que sempre deixa marcas. Gostem ou não da
estação mais quente do ano, é nela que nossas lembranças buscam as
melhores histórias para serem contadas aos amigos, seja nas conversas
da madrugada, nos bares ou nessa coletânea de contos.
Verões de dias longos e noites quentes são propícios para
brincadeiras noturnas, pique-esconde com os vizinhos, um primeiro
beijo com a prima da amiga, um cinema daqueles que a gente não
lembra nem do nome do filme.
Nos verões temos as grandes marcas das adolescências, diversas
primeiras vezes nas praias, nos centrinhos, encostados nos murinhos
das casas antigas dos balneários, com as bochechas quentes, vermelhas
e com cheiro de pós sol.
Madrugadas inteiras de conversas, as primeiras bebedeiras, roupas
encharcadas com a chuvarada que veio sem avisar, proporcionando
aquele arco-íris para apreciarem abraçados. Verão também é a época de
visitar as famílias, das grandes brigas por causa de política no Natal, e
das pazes feitas à meia-noite, com brindes e salgadinhos.

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Os contos reunidos nessa coletânea apresentam um pouco desse
rico imaginário dos nossos verões e é interessante notar que todo temos
histórias em comum desses veraneios e férias escolares.
Os autores aqui reunidos demonstram conhecimento das técnicas
da escrita criativa, mostrando mais do que dizendo, todas essas cenas
que permeiam o nosso imaginário.
A editora da revista me convidou para escolher o conto que eu mais
gostasse e, vou confessar, não foi uma tarefa fácil. Amores de verão,
relacionamentos, toplesses, Gigantes escondidos, tudo isso me
emocionou demais.
Mas teve um conto em especial que além de me narrar uma história
interessante de se ler, também apresentou um autor maduro em suas
escolhas, ciente do que mostrar e do que esconder (conhecedor,
portanto, da teoria das duas histórias do conto), para nos surpreender
com um ataque feroz de tubarão e as consequências disso na vida do
narrador. Por isso, meu destaque dessa coletânea é o conto See you
soon!, cuja autoria desconheço até o momento desse texto.
Se me permitem uma menção honrosa, gostaria de citar o conto
Amor de verão, que apesar de tratar de um tema batido e clichê
conseguiu trazer inventividade no modo de narrar, trazendo para mim a
boa lembrança dos filmes Houve uma vez dois verões, de Jorge Furtado,
e 500 dias com ela de Mark Webb.
Vida longa à revista Subtextos!
R. Tavares

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Cíntia Moscovich

Co m o d eve s e r
um conto?

Oficina do Subtexto - Cíntia Moscovich

Apesar de que as fronteiras entre os gêneros cada vez mais se


esfumam e desaparecem, nos apegamos a algumas características
clássicas do conto para efeitos didáticos. Só se pode superar a tradição
conhecendo-a.

1. Um conto deve ser BREVE.


Em termos de extensão, opondo-se ao romance, o conceito de
brevidade é um dos mais caros às narrativas curtas. Por breve, entenda-
se aquele texto que, de acordo com Poe, “não demande mais do que
duas horas de leitura”.

2. Um conto deve ter uma ÚNICA TRAMA CENTRAL.


Ainda em relação ao romance, que tem vários enredos e
subenredos, o conto segue um único fio narrativo.

3. Um conto deve ter POUCOS PERSONAGENS.


Se o romance admite vários subenredos, é lógico que admitirá
vários personagens. O conto, por outro lado, admitirá poucos

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Cíntia Moscovich

personagens.

4. Tudo o que está no conto deve ser SUFICIENTE


E NECESSÁRIO
A noção aristotélica de suficiência e necessidade é, no conto,
sagrada. Todos os elementos que integram a narrativa têm função
orgânica, nada está lá por acaso.

4.1. Deve-se evitar informações excessivas/explicativas: a ânsia de


explicar o subtexto, a entrelinha ou aquilo que é somente sugerido pode
gerar alguma inquitação por parte do autor, que parte para explicações
desnecessárias. O leitor, por vezes, se sente subavaliado por parte do
autor, uma vez que todos os fatos se lhe são dados de forma esmiuçada;
4.2. deve-se evitar informações totalmente cifradas/misteriosas: a
ânsia de ocultar o subtexto, a entrelinha ou aquilo que é somente
sugerido pode gerar alguma inquietação por parte do autor, que começa
a reter informações de forma mesquinha e “esperta”. O leitor se sente
perdido, uma vez que é superavaliado pelo autor.

5. Um conto conto deve TER DUAS HISTÓRIAS


5.1. História aparente (texto): a história que se dá a conhecer de
imediato, preto no branco, sem necessidade de nenhuma interpretação;

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Cíntia Moscovich

5.2. História cifrada ou oculta (subtexto): a história por baixo da


história, aquela que teima em aparecer de quando em quando e que
depende de interpretação.

6. O subtexto ou história cifrada pode ser de dois


tipos:
6.1. subtexto de enredo: subtexto em que, ao final da narrativa, é
possível se ter verdadeiro enredo que subjaz ao enredo principal. Ao
longo do texto, são dados elementos de uma segunda história e que são
incorporados à primeira história. Subtexto próprio de histórias policiais
e de suspense, mas não só;
6.2. subtexto de atmosfera: ao final da narrativa, o subtexto se
revela como uma poderosa sensação de estranheza ou estranhamento,
sem que nenhuma história se deslinde ou se complete. É a Unidade de
Efeito da qual falava Poe.

Cíntia Moscovich é escritora, jornalista e mestre em Teoria

Literária, tendo exercido atividades de professora, tradutora, consultora


literária, revisora e assessora de imprensa. Dentre vários prêmios
literários conquistados, destaca-se o primeiro lugar no Concurso de
Contos Guimarães Rosa, instituído pelo Departamento de Línguas
Ibéricas da Radio France Internationale, de Paris, ao qual concorreu com
mais de mil e cem outros escritores de língua portuguesa.

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O último gigante do verão Gustavo Rosa

O último gigante
d o ve rã o

Todas as noites Arthur descia até o porão, tomando cuidado para


não acordar seus dois irmãos, e tentava se comunicar com o gigante de
armadura escondido lá embaixo. Falava sobre o tempo, sobre costumes
humanos e, quando desistia de tentar conquistar uma resposta dele,
Arthur o usava como um diário vivo para contar as frustrações do dia a
dia. Nenhum dos irmãos se perguntou como aquela criatura foi parar ali,
mas um dia ela veio, se sentou próximo das máquinas de lavar e ali
permaneceu, em silêncio.

Você gosta da chuva? Arthur perguntou ao gigante certa

noite. Não obteve resposta. Eu não gosto, não! Imagino que você não

deva sentir ela, então nem sabe como é ficar todo molhado e depois
pegar uma gripe.

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O último gigante do verão Gustavo Rosa

Naquele dia, uma tempestade reinava do lado de fora. Os seus


irmãos estavam assistindo televisão. O irmão mais novo, Douglas,
gostava da ideia de um dia arrastar o gigante até a casa da tia Helena e
dar um grande susto nela. Arthur, por outro lado, preferia ele ali, onde
podiam vê-lo. Era só deles. Arthur estava encolhido ao lado dele,
abraçando seus joelhos. A armadura era fria. Mais fria que as páscoas
passadas em Gramado.
Dias depois, quando a tempestade já havia sumido, Arthur decidiu
batizar o gigante:

Vou chamar você de Naut! Os outros dois irmãos nem

tiveram tempo de pensar em um nome.


José, o irmão do meio, pensou em vestir a armadura e sair por aí
usando ela. Essa foi a primeira vez que ouviram alguma coisa lá dentro
rugir. Deixaram Naut ali, parado, descansando em seu silêncio frio. Para
os outros irmãos, Naut dava medo. Para Arthur, era a alegria de todos os
seus dias. Conforme o tempo passava, a ideia de usar o gigante como um
diário-vivo parecia mais e mais empolgante. Era alguém para ouvir e
nunca criticar. Alguém que nunca iria embora:

Se o José descer aqui de novo, te dou permissão pra rugir pra

ele, ok? Arthur estava mais empolgado do que nunca. Ele é o irmão

que menos gosto, então pode assustá-lo à vontade!


Depois do incidente com o rugido, Arthur era o único que descia
até o porão. Um dia ele só parou de subir as escadas, ficando lá,
abraçado no metal gelado que mandava o verão para longe. Se

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O último gigante do verão Gustavo Rosa

alimentava de suas próprias palavras. Falando e falando sem parar. Se


tornando cada vez mais uma parte do cenário morto daquele porão, tão
cinzento quanto a armadura do gigante.

Sabe, meu melhor amigo ia gostar de você Arthur comentou,

encolhido. Não vejo ele desde que o verão começou. Sempre odiei

férias. Não ver meus amigos é complicado. Pelo menos, dessa vez, eu
conheci você!
Arthur encarou a escuridão. Ela não o encarou de volta, mas ele
continuou olhando até sua visão começar a duplicar e, pouco a pouco,
cansar de se fixar somente em um ponto. Ele começou a sentir falta do
mundo lá de cima. Um mundo sem o gigante; um mundo quente e cheio
de diversão, recheado das cores mais fortes que o calor poderia oferecer,
mas alguma coisa o prendia ali. Ele mesmo, talvez. Questionamentos
que ele não conseguia parar de ter e nada podia fazer a respeito. Seu
corpo pesava como se fosse uma âncora.
Quanto mais próximo do outono, mais inquieto o gigante parecia.
Os rugidos sempre acordavam Arthur no meio da madrugada, fazendo-o
questionar voltar para seu quarto. Seus irmãos imploravam todos os
dias para ele voltar, mas o garoto apenas pegava seu prato de comida e
descia para o lado de Naut. Os primeiros sinais do fim do verão foram o
sumiço dos irmãos, que agora iam para a escola diariamente e deixavam
Arthur ali, sozinho. Uma solidão silenciosa e fria.

Posso contar uma história? Arthur perguntou, se esticando

do lado do gigante. Claro que posso, não é? É sobre minha infância.

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O último gigante do verão Gustavo Rosa

Eu sempre via aquelas luzes bonitas nos prédios, principalmente na


época de Natal. Elas eram minha diversão. Ficava lá, no telhado,
olhando para elas até pegar no sono.
Arthur fez uma longa pausa, sentindo que sua voz ecoava no vazio.

Talvez você não seja igual às luzinhas concluiu. É melhor

eu ir dormir.
Estações sempre chegam ao fim. Arthur sabia disso. A armadura já
não era mais aconchegante. Era fria como o inverno. “Esse deve ser o
cheiro da morte”, ele pensou. “Amanhã vai ser diferente”, decidiu.
No último dia do verão, Arthur subiu para pegar seu almoço. Ouviu
os ruídos de metal enquanto o chão a sua volta tremia. Até o último
encontro, o garoto ainda se questionava por que o gigante estava no seu
porão; a partir dali, passaria a se questionar por que ele foi embora. O
último gigante do verão se levantou e partiu. Indo embora
repentinamente, igual todas as coisas na vida. Se foi do jeito que
chegou, em silêncio. Da mesma forma que as estações morrem uma
após a outra.
E no fim elas sempre voltam.

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Amor de verão Regiane Folter

Gustavo Rosa t
Escritor de literatura sobrenatural e amigo de todos os monstros.
Graduado em Escrita Criativa pela PUCRS, vivendo na cidade de
Porto Alegre quase toda a minha vida (e eu só quero ir embora
logo). Sei falar sobre fantasmas, aliens e guaxinins, mas não sobre
mim mesmo.

antologias

“Visão” publicado na Antologia Mirage II pela Editora Coverge


“Ecos” publicado na Antologia Três de Escrita Criativa pela PUCRS
“Esclera” publicado na Antologia Dois de Escrita Criativa pela
PUCRS

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Photo by Jake Givens on Unsplash
Amor de verão Regiane Folter

a m o r d e ve rã o
Quando eu te conheci era verão e eu não imaginava que as horas
iam passar tão rápido.
Na primeira hora que passamos juntos você não desviou os olhos
dos meus em nenhum momento, esses olhos tão azuis quanto o céu da
praia ensolarada por onde caminhávamos naquele dia. Na realidade,
nem eu nem você éramos muito chegados a praticar exercício. Mas na
segunda hora do nosso encontro, enquanto nossos sorrisos iam ficando
mais firmes, ao contrário dos sorvetes meio derretidos que você me
convidou para tomar, afirmamos entusiasticamente que todas as
manhãs fazíamos aquele trajeto, como bons esportistas que éramos,
para começar bem o dia. Você parecia tão inocente, mas mentiu tão
cedo. Mentimos cedo demais.

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Amor de verão Regiane Folter

Na terceira hora você me beijou. Na terceira hora mais cinco


minutos eu deixei o que restava do meu sorvete cair no seu colo e nós
dois rimos alto, como se quiséssemos que o som da nossa felicidade
competisse com o barulho das ondas.
Na décima hora tivemos nosso primeiro encontro oficial. Eu usando
meu vestido preferido, que você iria tirar com tanto cuidado cinco horas
depois. Na hora número 52, te ensinei a pegar jacaré nas marolas suaves
da praia. Na hora 78, você cozinhou panquecas para mim, ou era o que
deveriam ter sido se não tivessem queimado enquanto fazíamos amor
no chão da cozinha. Na 96ª, conheci seus amigos e descobri alguns
segredos embaraçosos de seus tempos de menino. Não demorou muito
para você conhecer os meus, quando na hora número 115 minha mãe te
mostrou algumas fotos minhas de menina que ela sempre leva no
celular.
Enquanto as horas iam passando e o calor ia dando lugar à brisa
amena do outono, fomos nos entregando a uma vontade mútua, tão
intensa que foi consumindo pouco a pouco nossos últimos dias de férias.
Nos apaixonamos enquanto as folhas verdinhas iam aos poucos se
amarelando, mas o mundo real foi aumentando de tamanho, tornando-
se mais ameaçador. Trabalho, família, faculdade, outros
relacionamentos mal resolvidos, tudo que havia ficado lá no alto da
serra, na cidade grande onde tudo é cinza, inclusive o céu, parecia nos
querer de volta. O fim do verão nos lembrava que a hora de pegar a
estrada iria chegar.

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Amor de verão Regiane Folter

Na hora 277, eu me esqueci de te encontrar para jantar porque


precisei resolver um problema de última hora do trabalho. Na 294ª, sua
ex-namorada ligou bêbada e acabamos entrando em mais uma espiral
de gritos e acusações. Meus olhos ardiam na 405ª, quando percebi que
era a última hora que iria passar com você e nem pude colocar os óculos
de sol para disfarçar. Fazia frio e garoava e esses adereços de verão não
tinham mais cabimento. Você também não parecia feliz quando disse:
― Talvez a gente só possa ficar juntos quando o céu está azul.

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Amor de verão Regiane Folter

Regiane Folter
oct
Escrevo desde que me entendo por gente e nunca passo muito
tempo longe das palavras. Das 9h às 18h (ou 19h, ou 20h…)
trabalho com comunicação e marketing. No meu tempo livre leio ou
brinco de ser escritora. Também gosto de passar tempo com meus
amores, brincar com meus gatinhos, escutar música e conhecer
lugares novos. Natural de São Paulo, atualmente vivo em
Montevidéu, Uruguai.

Medium https://medium.com/@regianefolter

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Photo by Yoann Boyer on Unsplash
Amor de verão Regiane Folter

t rê s M a r i a s
Era quase meio-dia. Deitadas em esteiras de palha, na praia de
Itararé, as irmãs Maria Ana, Maria Bel e Maria Céu, em seus biquínis
coloridos, esturricavam no sol escaldante, ainda que tivessem o
saudável hábito de lambuzar seus corpos de protetor, como súplica por
uma pele sem manchas marrons.
Do outro lado do guarda-sol, deitada em uma espreguiçadeira, a
mãe das moças vigilante, atenta ao horário de exposição ao Sol.
Escutavam o burburinho das ondas batendo contra a areia fina, as
espumas formadas retornavam para o imenso mar azul.
Os corpos bronzeados das três Marias, em contraste com a brancura
da pele debaixo dos biquínis, incomodou em especial Maria Céu. Sem
mais delongas, ela tirou a parte de cima do biquíni. Seu topless causou

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Três Marias Maria Carminha Pires

espanto e admiração. As irmãs Maria Ana e Maria Bel aprovaram a


atitude irreverente que Céu causou, em um rápido gesto de mãos,
também aderiram ao topless.
Recatada em seus modos provincianos, a mãe das moças teve um
princípio de desmaio, com muito custo aprumou-se, ainda cambaleante
alcançou uma toalha multicores jogando-a por cima dos corpos
seminus.
A atitude das três Marias causou alvoroço, uma verdadeira guerra
de empurra-empurra. Era difícil para as moças perceberem o que
provocara imensa algazarra. O fato de estarem à mostra seus seios
volumosos, para elas significava normalidade, por que ao ser redor
estava tudo de pernas para o ar?
O alarido acalmou com a chegada de um policial que colocou
ordem no local, solicitando para as moças “se vestirem”, caso a ordem
não fosse acatada daria voz de prisão por atentado ao pudor.
Estarrecidas, Maria Ana, Maria Bel, Maria Céu e a mãe angustiada,
compadecida, lamenta:
― “Seu” policial, por favor, minhas filhas foram ingênuas, não
queriam causar tumulto.
O lamento dos banhistas ouvia-se além mar... O apelo para que as
moças ficassem à vontade, que a liberdade de expressão devia ser sem
censura.
As feministas passaram a proclamar: “Por uma sociedade livre de
preconceitos!”.

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Três Marias Maria Carminha Pires

As Marias ouviam o atordoante público exaltado, elas


entreolharam-se, se vestiram, deixaram o local da cena.Por uns bons
minutos as moças saborearam o gosto amargo da fama por terem
causado.
― O meu simples gesto de mostrar meus seios causou todo esse
rebuliço, quem dirá se fosse o corpo nu!
― Maria Céu, não houve de nada repugnante sua atitude! Tanto não
há repugnância que seguimos seu exemplo!
― Sério! Repugnante foi a atitude de quem estava torcendo o nariz!
Nós não fizemos nada, apenas seguimos o nosso instinto!
Creio que as três Marias não souberam a grande manifestação
conclamada pelo simples gesto de serem naturais. Suas atitudes,
livremente expostas, partiram-se ao meio defronte a manipulação de
convivência e conveniência das autoridades.
Ao partirem, deixaram para trás ativistas de plantão atuantes,
ativos, unidos pela emancipação ao direito pelo “Topless”.
Que importa a grande manifestação ao efeito causado?
No caminho de volta para casa de veraneio, calçadão apinhado de
turistas, seus vestuários despojados, livres, leves. Sungas, maiôs com
saída de banho, vestidos curtinhos, shorts agarradinhos, bermudas
floridas. As irmãs perceberam olhares dissimulados, ora de reprovação
ora de aceitação, todos caídos diretamente para elas. Sem entender o
enxame de olhares recebidos, em passadas longas marcharam
apressadas para a segurança do lar.

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Três Marias Maria Carminha Pires

A porta foi pequena para as três irmãs entrarem na casa, cada uma
queria agarrar a maçaneta, engalfinhando-se numa luta sem trégua,
coube à mãe das moças, toda segura de si, tirar a chave da bolsa abrindo
caminho.
Dentro de casa, as irmãs cada qual com seus celulares, acionaram a
rede social que piscava sem parar.
Maria Ana a primeira a clicar na tela negra iluminando com o clarão
seus olhos. O vídeo com milhares de visualizações, publicado “ao vivo”
por um dos turistas exaltados ao ver tanta beleza mostrava as três
Marias fazendo topless e todo alvoroço que causaram.
Maria Bel não pode conter, disparou a gargalhar (de nervoso),
perplexa diante de tanta hipocrisia. Maria Céu estupefata, boquiaberta,
olhos vidrados, paralisou-se.
Assustaram a sociedade conservadora. Exaltaram a comunidade
ativista ao direito de expressar livremente por aquilo que seguir o fluxo
natural de conduta de cada indivíduo.
Em resposta aos comentários que pipocavam em segundos, as três
Marias, em comum acordo entre as partes, organizaram em suas redes
sociais, um manifesto:
Caríssimos seguidores!
Seguindo as regras de boa conduta diante da situação que
causamos, pedimos que cada um de nossos amigos, (virtuais e não
virtuais) preencham o abaixo-assinado por nós digitado.
Colocamos à disposição dos interessados as normas:

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Três Marias Maria Carminha Pires

É de livre e espontânea vontade qualquer tipo de atitude que não


seja contra os princípios da moralidade;
Não foi arbitrária a conduta por nós três Marias;
Solicitamos o apoio de todos seguidores que gostaram das ações
manifestadas apenas pelo fato de não querer marca de biquíni, nem tão
pouco nossos seios brancos sem o direito ao bronzeamento. Eles
merecem a luz direta do sol.
Ajudem-nos a alcançar mil assinaturas.
Realmente, não sabemos aonde tudo isso vai chegar, só desejamos
que alcance a consciência daqueles que se manifestaram contra.
O manifesto das três Marias atingiu mais de mil assinaturas em
menos de um dia de publicação.
Dona Isabel, mãe das moças descompensadas, atingiu um nível de
estresse maior de dezoito em uma escala de zero a dez, parando com
ataques de ansiedade no pronto socorro local. Precisou ser medicada
com remédio tarja preta, sua ação sedativa colocou a mãe em estado
sonolento, longe da confusão causada pelo topless das filhas.
Cada qual em seus devidos lugares, a vida de cada uma das três
Marias seguiu conforme a Terra gira em torno Sol.
O astro-rei não sai do caminho para o bloco dos conformados-
inconformados passar. Ele é exuberante. Durante os meses de Estação
quente, o sol aparece bronzeando aqueles que querem ser bronzeados
em qualquer parte do corpo que lhe caiba ser exposta.
Coube às espevitadas irmãs; Maria Ana, Maria Bel e Maria Céu o
direito de exposição, contudo seus seios foram alvo de vários memes.

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Dia de Sol Margarete Bretone

Maria Carminha Pires fc


Formada em Administração de Empresas, mãe, dona-de-casa,
escritora em evolução. Tem quatro livros publicados de forma
independente na Amazon. Além disso participa do livro
Arquipélago, da editora Andross, com a poesia “Em Frente ao Mar”
e do Livro 23 formas de morrer, da Amelie Editorial, com o conto "A
aposta", com lançamento previsto para julho/2020.

livros

ANAHÍ & ANTÔNIO: Sonhos, Pesadelos e Reflexões!


Estou viva graças a minha mãe
O casarão: o caso castelar
Fractal na natureza

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Photo by Ella Geiser on Unsplash
Dia de Sol Margarete Bretone

dia de sol

Uma música suave, sucesso de décadas atrás, ressoava pela sala


em total desarmonia com o ronco alto do motor do carro sendo
consertado do lado de fora da casa. Na mesa, o cheiro do bolo recém
assado era anulado pelo escape insuportável do veículo ranzinza que um
dia foi estrela. Um menino com o queixo apoiado sobre os dedos
entrelaçados olhando pela janela aberta completava o quadro
expressionista daquela manhã de verão.
Um suspiro e o corpinho se mexeu, em descrença.
O homem com as mãos sujas de graxa olhou para o motor
moribundo e coçou a careca deixando um rastro negro na pele suada.
Uma semana inteira, que parecera uma eternidade para o menino,
planejando um passeio em família que possivelmente não aconteceria.

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Dia de Sol Margarete Bretone

Uma cesta de vime com um lindo e enorme laço vermelho surgiu


em frente à janela, mas o garoto não foi capaz de esboçar reação. Um
rosto redondo com lápis delineando olhos de preto profundo e lábios cor
de rosa surgiram em seguida e um novo suspiro cortou o ar quando
dedos gorduchos o chamaram para fora. Ele ignorou e voltou a olhar o
carro com a bocarra aberta, prestes a engolir o homem que insistia em
mexer em suas entranhas. Praticamente um monstrengo.
Um cobertor xadrez passou voando como um tapete mágico e foi
colocado sobre o chão de grama maltratada pelo sol forte da estação
mais quente do ano. Uma bola voou e quicou de forma ousada no teto
do carro monstrengo teimoso moribundo. O guarda-sol azul e amarelo
passou girando como a hélice de um navio. O menino abriu um sorriso.
Um chapéu enorme de palha que parecia um disco voador levou a
mulher sorridente de medidas avantajadas vestindo um maiô poá com
baldinho e pazinhas nas mãos até o cobertor.
O garoto olhou para o alto, para o céu azul e ponderou se aquela era
a mesma cor do mar. Dúvida que sanaria naquele mesmo dia se o
monstrengo não tivesse cismado em não sair do lugar. Talvez ele tivesse
medo de maresia ou monstros marinhos.
De nada adiantaria ficar remoendo seu azar, então saiu pela porta
e, imediatamente sentiu algo gelado, muito gelado atingir seu corpo. A
camiseta colou ao peito, a bermuda pesou e ele soltou um grito
estridente. Não tinha percebido a serpente fazendo seu caminho pelo
jardim, nem a corajosa encantadora de cobras que a segurava
firmemente e ria. Ele precisava fugir daqueles monstros antes que...

Página 25
Dia de Sol Margarete Bretone

Antes que nada!


Correu em direção ao perigo, sentindo a água já não tão gelada
tentar impedir seus movimentos. Pegou o cobertor voador o enrolando
no braço, ele teria que servir como escudo, e protegeu o rosto ainda
querendo saber qual era a cor do mar, mas primeiro precisava vencer
alguns monstros pelo caminho.

Página 26
See you soon! Anton Roos

Margarete Bretone fc
Margarete Bretone é paulistana, caçula em uma família de quatro
irmãs, atriz e tem três livros publicados em formato de e-book na
Amazon, Um emprego para Alice, EntreLaços e Nicole.

livros

Um emprego para Alice


EntreLaços
Nicole

Página 27
Photo by Jennie Clavel on Unsplash
See you soon! Anton Roos

see you soon!

Não ter percebido a bocarra se fechando, nem o mastigar violento e


esfomeado, disseram-me depois, salvou minha vida. Se tivesse notado a
aproximação do gigante marinho, o desespero e a certeza da morte me
fariam sucumbir. A energia que empreenderia para me afastar e lutar
com o animal ameaçado de extinção, destruiria qualquer chance de
sobrevivência. Assim, além de uma fisgada cortante na musculatura da
coxa direita e a estranha percepção de o mar a minha volta ser tingido
de vermelho, aos poucos, são raras as lembranças que guardo daquele
início de tarde no litoral catarinense.
Minha última vez à beira mar tinha sido na adolescência. Excursão
do colégio. Garrafão de vinho escondido no fundo do ônibus. A Cibele
forçando a janela e ameaçando pular. O professor Sílvio puxando ela

Página 28
See you soon! Anton Roos

pelos cabelos. Um pneu furado no meio da noite. Chuva. Galera


vomitando no corredor.
Aquela vez tinha tudo para ser diferente. Era terça. O Igor e a
Dandara iam visitar alguns imóveis. Não entrei em detalhes. Era a vida
deles. Eu só precisava de algumas horas. Depois do feriado eu iria para
Londres. Seis meses, com boas chances de prorrogar a estadia por mais
seis. O Abelha, esse sim, não sei o que estava fazendo conosco. Ele usava
dreads no cabelo e uma camiseta do Bob Marley. Antes da calmaria
sempre vem a tempestade. Devia imaginar. Mas foi tudo tão rápido.
Porra, eu só queria ter algo para recordar. See you soon, Brazil! Tipo
isso. Mas, a cagada foi minha. Confesso. Não prestei atenção, nem no
primeiro, nem no segundo alerta. No rádio ligado durante o trajeto entre
a cidade e o mar, tampouco na maldita placa que proibia a entrada de
banhistas. Entrei exibido com minha sunga cheirando a naftalina,
desejoso de tornar aquela passagem pela praia uma razoável lembrança
dos meses mais quentes da temporada ou, no meu caso, na última foto
que se tira de um filme de trinta e seis poses e primeira que se guarda no
álbum. Foi o Abelha quem viu primeiro. Vá lá, seja por esse motivo que
ele tenha ido com a gente. Ser o meu salvador particular. Não fosse meu
estado letárgico, talvez eu tivesse visto o maluco de dread no cabelo
andando sobre as águas do litoral. Os vultos e as vozes dos salva-vidas,
turistas, enfermeiros, médicos, nunca mais me abandonaram. São eles
que me despertam toda vez que me deparo com uma daquelas
máquinas pega-pega de souvenires. Por mais que use todas as moedas
do mundo, jamais conseguirei arrancar os segundos que antecederam o

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See you soon! Anton Roos

ataque. Da perna, não guardei recordação. Nem a cicatriz no joelho, nem


a tatuagem de um centauro segurando um arco e flecha, mas meu
cérebro ainda teima que a maldita perna continua a existir. Sinto
cócegas onde não há nada. Dessa vez, preferi o silêncio. Convenci o Igor
a vir comigo. A Dandara ficou cuidando dos gêmeos. Não lembro dos
nomes. Um menino e uma menina. Três meses.
— Sabe que fim levou o Abelha? — perguntei, no caminho.
— Pior que não — respondeu ele. — Por que quer saber? — indagou.
— Coisa minha — disse.
— Ia adiantar de quê tu saber onde diabos está o Abelha?
Fiquei quieto.
O Igor estava sendo camarada demais bancando meu motorista
particular e no fundo eu não fazia a mínima ideia do que esperar exato
um ano depois do ataque.
Quando chegamos, o Igor perguntou se eu precisava de ajuda. Disse
que não.
— Me dá umas duas horas. É só o que eu preciso.
As muletas afundaram na areia. Custei a me acostumar com a
novidade. Transferi toda força do corpo para a perna boa. Não havia
mais nenhuma placa de alerta. O tubarão, aparentemente,
desaparecera. Da água e do imaginário dos moradores e turistas. Antes a
perna de um adulto que a vida de uma criança ou duas. Meu corpo
mutilado não contribuía em nada para que o aglomerado de turistas,
comerciantes e transeuntes sentissem um mínimo de compaixão. Para

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See you soon! Anton Roos

eles não importava o que eu sentia ou o que vivi e não conseguia


lembrar ou esquecer.
Uma criança construía castelos na areia. Improvisava um reino,
talvez mágico. Distante. Fazia de uma boneca sua princesa ou rainha. É
provável que ao me ver acovardado debaixo da aba de um boné
esportivo, tenha guardado na memória a imagem da aberração
desfalcada de uma das pernas e não dos prazeres que a beira-mar
proporciona — ou, deveria proporcionar. Pobre garotinha.
— Ei — eu disse. — Deixa eu ver o que tem aí?
Ela hesitou. Procurou pelo guarda-sol da família, talvez, pelo
consentimento de algum rosto conhecido. Responsável. Repeti o
chamado.
— Não precisa ter medo.
Ri.
Acanhada, ela se aproximou. Numa das mãos, segurava a boneca,
na outra, uma pá. Deixou o balde para trás.
— Tem nome? — perguntei, apontando para a boneca.
A menina fez sinal de negativo com a cabeça.
— Você só faz castelos ou é boa em fazer bolos de aniversário na
areia, também?
Estendi minha mão. Ela me entregou a princesa de mentirinha.
— É seu aniversário? — Quase não escutei sua voz.
— Meu? Não, não — respondi. Em seguida, fiz de conta que a boneca
caminha sobre a minha perna esquerda. A menina riu.
Afinei a voz.

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See you soon! Anton Roos

— O que temos aqui? Um homem de uma perna só. Ó, mas não é


triste? Você não sente pena dele? Não tem medo dele? Acho que
devíamos dar uma das minhas pernas para ele, o que me diz? Hein? —
disse, virando o rosto da boneca para a menina.
Ela olhou para o cotoco. Para o vazio. Depois mirou meus olhos.
Assentiu com a cabeça. Em seguida, levou as mãos ao rosto. Não quis
ver. Arranquei a perna de plástico da boneca. Em seguida, a menina
pegou o brinquedo desmembrado e correu. Pisou em cima do castelo. A
pá escapou, caindo na areia fofa. Ela se abaixou para pegar. Voltou a
correr. O reino se desmanchou. Fechei os olhos, empinei o peitoral. A
garotinha sumiu da minha vista. Apertei a perna de plástico da boneca
até quase se desmanchar entre meus dedos. Abaixo da virilha, senti uma
comichão. Uma abelha pousou na ponta da cadeira de plástico. Não
fosse o vazio, poderia jurar que ela estava em cima da perna que perdi,
nas mesmas águas que um maluco de dread no cabelo ousou imitar
Jesus.

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See you soon! Anton Roos

Anton Roos fc
Jornalista, embora não atue na área há três anos. Atualmente, mora
em Dois Irmãos/RS onde é professor de inglês. É autor de alguns
livros independentes, entre eles "A gaveta do alfaiate" (2014) e
"Quando os pelos do rosto não roçam no umbigo" (2016).
Recentemente lançou "Aulas de natação e outros contos", coletânea
de contos anteriormente publicados nas coletâneas "A natureza das
coisas breves" (2017), organizado por Tiago Novaes, "Contos de
Mochila" (2018) e "Banquete" (2019) ambos publicados pela Editora
Metamorfose.

livros
Aulas de natação e outros contos
Quando os pelos do rosto roçam no umbigo
A gaveta do alfaiate

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Photo by Francesco Califano on Unsplash
See you soon! Anton Roos

a cada um seu
fa rd o
O patrão precisava de alguém que estivesse disposto a enfiar-se
naquele macacão felpudo, colocar aquela peruca com forro de espuma e
que, tal qual uma peça de costela embrulhada em papel celofane,
permanecesse ali, na frente da loja, cozinhando por algumas horas.
Demoraram a encontrar um corajoso ― ou louco ― e, em cima da hora,
sem outra opção, o primeiro candidato foi logo efetivado.
Ele, que só estava ali porque também não tinha outra opção, desde
as nove da manhã estava fantasiado, balançando uma placa com o novo
slogan e observando as pessoas passarem indiferentes. Uma ou outra
criança animava-se ao avistá-lo, mas todas se mantiveram de mãos
dadas com as mães; nenhuma criou coragem para largá-las e aproximar-
se um pouco mais. O que não causava surpresa nenhuma, afinal, aquele
rosto vermelho de ressaca, coberto de rugas ― por onde escorriam rios

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A cada um seu fardo Rodrigo Domit

de suor, e o olhar desesperado, voltado para os carros passando na


rua e, de vez em quando, para o relógio-termômetro da praça, não
inspiravam lá muita confiança. Além disso, aquele corpo todo, muito
magro, tremia inteiro, incontrolável.
Às duas da tarde, parou para o almoço. Ali mesmo, nos fundos da
loja, recebeu uma quentinha com arroz, feijão e mistura. O moço até
perguntou se ele queria salada, mas disse não fazer muita questão.
Comeu pouco, menos da metade, e largou a quentinha aberta no canto
da escada; sabia que logo o vira-lata que espreitava se banquetearia.
Chamou de volta o moço que cuidava das coisas e pediu um
adiantamento, coisa pouca, com a desculpa de aproveitar o resto da
pausa para resolver um assunto na vizinhança. Aquele moço bem
apessoado, de camisa, calça e sapato ― já com a gravata um pouco
frouxa, tinha cara de cansado, olheiras fundas e suava bastante. Após
procurar um pouco na carteira, tirou dali uma nota das curtas, mas que
resolveria o problema do palhaço.
Com a nota no bolso, na frente da loja, ele reparou novamente no
relógio-termômetro, fez as contas com certa dificuldade e concluiu que
dava tempo. Partiu para a esquerda, cruzou a avenida, margeou a praça
equilibrando-se sobre o meio-fio ― um de seus passatempos prediletos
― e foi dar com os cotovelos no balcão verde-claro do boteco do Seu
Coisinho, que era o nome que ele dava para todos os donos de bar. Esse
Seu Coisinho, como todos os outros, tinha bigode, mas era mais gordo
que a média e usava uma camisa azul sobre uma camiseta branca um

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A cada um seu fardo Rodrigo Domit

tanto justa. Naquele caixote dois por três, o calor era tanto que o suor já
manchava a camisa.
Duas doses depois, o palhaço retornou à loja e já era outro sujeito,
não tremia mais a mão. O vermelho do rosto abria espaço para um
sorriso desalinhado e, além de segurar a placa, agora ele dançava.
Estava tão empolgado ― e, ainda por cima, vestido de palhaço ― que
resolveu animar a plateia. Dirigia-se aos pedestres cantando e contando
piada, tropeçava nas próprias pernas e cambaleava. Perdia a peruca e,
ao tentar recuperá-la, derrubava a placa; e acabava, por fim, lutando
para resgatar ambas e permanecer em pé.
Seria um perfeito Carlitos, não fosse o cheiro de caninha e os gestos
bruscos, desmedidos e um tanto ameaçadores. As mães, assustadas,
atravessavam a rua falando para as crianças não olharem. Os pedestres
passavam com pressa, evitando que fossem abordados. Quando não
podiam evitar, até o empurravam, antes que ele continuasse a borrifar
saliva para todos os lados enquanto falava alto demais, quase gritando.
Os dois seguranças, também cansados, embrulhados em ternos
escuros e suando a bicas, não demoraram a perceber a confusão se
formando, mas só tomaram uma atitude quando o patrão ordenou ao
moço que cuidava das coisas, pelo rádio, que cuidasse daquilo também;
e logo. Mesmo sem ser visto pelo vidro escuro, aquele senhor com nó
duplo na gravata, ainda engomada, conseguia ver tudo lá de sua sala
com ar-condicionado. Sem outra opção, o moço chamou os seguranças,
que pegaram o palhaço pelos braços.
Ao saber que estava dispensado, ele subitamente parou de sorrir,

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A cada um seu fardo Rodrigo Domit

fez as vezes de arrependido, triste, e pediu para que o soltassem. Logo


que lhe afrouxaram as amarras, zarpou a sapatear, cantarolando
novamente.
Enquanto os seguranças andavam atrás dele, as crianças e mães
permaneciam estáticas, em um fino equilíbrio: os primeiros tentavam se
aproximar, elas só queriam distância. Ele deu uma volta por toda a loja,
com o moço tentando convencê-lo a devolver a fantasia e partir,
prometendo que ele receberia todo o valor combinado. Por fim, ele
resolveu equilibrar-se novamente no meio-fio; e desafiou os seguranças,
seus perseguidores, a arriscarem-se na travessia.
As crianças riam da situação e as mães, no fim de tarde, já um tanto
cansadas, castigadas pelo sol forte e pelas tarefas diárias, deixavam-nas
deslizar pelas mãos suadas para aproveitar o pequeno espetáculo. Os
seguranças, no entanto, já se sentindo ridicularizados, foram avisados
pelo rádio de que, se não dessem conta do palhaço, podiam ir embora,
levando junto o circo todo. Naquele momento, eles perderam a
paciência e, sem ver outra opção, tentaram agarrá-lo.
Foi o balanço da corda bamba; as mãos suadas deslizaram pela
fantasia, sem conseguir segurá-la. O palhaço cambaleou, girou os braços
para trás e, por fim, estatelou-se na pista. O motorista do ônibus,
apressado e estressado, por ter que fazer o trabalho dele e do cobrador
ao mesmo tempo, embrulhado em seu uniforme, trancado naquela lata
velha com dezenas de pessoas, também suava muito; e, bem na hora do
acidente, por um azar do palhaço, usava as costas da mão para enxugar
a testa.

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Minhas Pernas R.Tavares

Rodrigo Domit of
Nascido no Paraná, Rodrigo Domit vive atualmente em Santa
Catarina. É autor dos livros Colcha de Retalhos e Ruínas da
Consciência. Teve contos e poemas publicados em coletâneas e
revistas do Brasil, de Portugal e da Alemanha.

livros

Colcha de Retalhos
Ruínas da Consciência

http://rodrigodomit.blogspot.com

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Photo by Gabriel Ramos on Unsplash
Minhas Pernas R.Tavares

escolhas
Os últimos raios do pôr do sol iluminavam um kitnet do edifício
Copan. Deixavam o ambiente cinza e dourado pela pouca luz da janela.
Na pia, as panelas cheias d’água recebiam os ‘plings’ das gotas que
caíam da torneira. Esse era o único som no pequeno apartamento.
Sobre a mesa de canto os dois pratos ainda estavam cheios de
comida; o almoço ainda esperando.
À beira da enorme janela fechada estava Ana envolta de um
cobertor de estampa infantil. Semblante desfalecido, rosto em lágrimas,
segurando uma caneca de chá. O vapor subia lentamente.
Olhava os carros nas ruas centrais de São Paulo no trânsito do
horário de pico. O mar de lanternas vermelhas lá embaixo serpenteava e
fluía feito corrente de rio feroz. “Ah, paulistanos, por que a pressa em

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Escolhas Marcel Ahless

voltar pra casa? Não tem liberdade maior do que estar fora dela e da
vida que ela dá”, pensou Ana.
Atrás dela, próximo à mesa, a sombra no chão causada pela viga
da janela encobria o corpo sem vida de um homem. Ela não olhava para
ele diretamente. Diversas vezes ameaçava virar para conferir o corpo. A
mistura de sentimentos embrenhava confusão, arrependimento e dor.
O reflexo de Ana na janela lançava um olhar de acusação; julgando
suas ações: “o que você fez?” Sua vida toda era reproduzida no vidro, e
não foi nada legal de ver. Todas as cenas revelaram que nunca estivera
feliz, sequer havia percebido em seus vinte e sete anos que a vida é
realmente um ator ruim caminhando pelo palco de lá para cá, como diria
Skakespeare.
Dúvidas infantis vieram à mente em forma de experiências vividas
nos primeiros anos. Essas lembranças a trouxe de volta às poucas horas
anteriores. Moravam juntos havia um ano no apartamento exíguo.
Naquela tarde Rogério chegou de uma curta viagem de três horas de São
Paulo, quando ela preparava o almoço.
Ela não o amava mais; não sabia como dizer… havia sido criada
para sustentar o casamento a todo custo. Ana se esforçava para amá-lo.
Havia coisas nele pelas quais ela era apaixonada, mas muitas outras a
decepcionavam.

Rogério chegou. Encontrou a mesa pronta com dois pratos. Não


lembrava se havia dito a ela que chegaria para o almoço. Homens
confusos destroem suas próprias estruturas mentais. A beijou por

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Escolhas Marcel Ahless

instinto e, por instinto, ela desviou o rosto. Nos milésimos de segundo


em que ela ia para a pia, um mundo de traições passou pela cabeça de
Rogério. “Esse almoço não é pra mim…”, pensou ele. “Não disse que
voltaria. Tá me traindo, essa vagabunda. Deve ser com Robson, eu vi
como se olham… é com ele, tenho certeza. Quero só ver esse
desgraçado aparecer aqui, mas ela vai ver que ninguém mente pra
mim…”
A puxou pelos cabelos e jogou-a de encontro ao armário. Com
uma faca na mão, ameaçando-a; estuprou-a violentamente. Ela chorava,
apelando que parasse, mas a raiva o havia deixado cego e surdo.
Ao terminar, virou-se esquecendo a faca sobre o armário. Seu
celular tocou a notificação de mensagem. Pegou do bolso da calça ainda
aberta e leu:
“Amor, chega pro almoço?
Tô preparando. Hoje faz um ano que viemos morar aqui.
Traz um vinho”

Os pais de Ana sempre a ensinaram que casamento é para a vida,


mas também ensinaram que ela não deveria aceitar que a
machucassem. A faca agora estava em posse de Ana. Ela fincou nas
costas do seu companheiro, perfurando o pulmão.
À beira da enorme janela fechada estava Ana envolta de um
cobertor de estampa infantil. Semblante desfalecido, rosto em lágrimas,
segurando uma caneca de chá e seus pulsos a sangrar.

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Escolhas Marcel Ahless

Marcel Ahless c
Eu queria ser Ernest Hemingway, para ter escrito "Paris é uma
Festa"; o agente duplo de Graham Greene em "O Fator Humano" ou
qualquer personagem da cabeça de Gustave Flaubert, só para ter
uma chance com Emma Bovary, mas eu sou apenas eu: dúbio duplo
que, metade de mim vive sonhando, e a outra metade é apenas
uma incerteza…

livros
Escolhas, publicado na Amazon.
Antologia de poesia "Homens Feitos de Letras", Editora Giostri
Antologia de poesia "Além da Terra, Além do Céu", Editora Chiado
Antologia "Contos Brasil", Editora Trevo
Menção Honrosa no "Concurso Internacional de Contos Vicente
Cardoso", publicação de 2019;

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Photo by Sergio Souza on Unsplash
Escolhas Marcel Ahless

sibipiruna

A tarde quente de janeiro era a prova de que os verões na região


não mudaram, pelo menos era a sensação dos filhos quando se
despediram da mãe, deixando-a na varanda da frente observando o
horizonte, onde dali a pouco o sol se esconderia:

Eu queria tanto que ela viesse com a gente. Não entendo

porque tem que ficar aqui sozinha nesse lugar desolado. Foi o que

disse Alice, a filha caçula, quando julgou estar longe o suficiente para
que a mãe não a ouvisse.

Você sabe o quanto já tentamos, Alice. Ela se recusa a deixar a

casa e o sítio. No fundo, acredita que nosso pai possa voltar e que
precisa estar aqui para recebê-lo.

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Sibipiruna Neuceli Maria da Silva Candido

Já faz 20 anos, João. Ele não vai voltar. Onde quer que tenha ido.

A mãe precisa compreender, de uma vez por todas, que ele nos
abandonou. Às vezes, eu a odeio por não querer mudar as coisas. Essa
casa, essas lembranças, tudo precisa ser esquecido...Acredita que ainda
diz “boa noite” a ele? Ouvi essa noite ― disse entrando no carro.

Parem com isso! Silvia, esposa de João, chamou a atenção

dos filhos que começavam uma briga por algum motivo banal.

Deixe os garotos se entenderem sozinhos, Silvia... João,

sorrindo, sempre amenizava a situação.

Na casa, a mãe sentou-se na cadeira da varanda e ficou observando


o carro que sumia ao longe, deixando uma espessa nuvem de poeira por
onde passava. A brisa nas folhas da sibipiruna amenizava o calor
infernal. No chão um tapete de flores amarelas enfeitava a entrada da
casa. Aquela árvore fazia parte da vida da família. Nascera do nada,
como dizia dona Ana. Fora providência divina porque fazia uma sombra
exatamente na frente da casa onde as crianças brincavam. Volta e meia
subiam em seus galhos aproveitando as aventuras da infância. Quem
não gostava disso era seu Aníbal, o pai dos meninos. Era um homem
rude, estava sempre longe de casa, chegava bêbado e brigando com a
mulher e os filhos. As crianças quando o viam, saiam correndo e
procuravam se esconder, ao máximo, da presença do pai. Porém, às
vezes, entretinham-se nas brincadeiras e não percebiam a aproximação
dele a não ser quando ouviam os gritos:

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Sibipiruna Neuceli Maria da Silva Candido

Cambada de preguiçoso! Vão procura o que fazê...ou arrebento o

lombo do`cês era um deus nos acuda e todos corriam para perto da

mãe em busca de proteção, enquanto o pai continuava vociferando.

Vô cortá essa maldita árvore e aí quero ver gente vagabundeando em


cima dela.

Absorta nas lembranças, dona Ana nem prestou atenção ao pôr do


sol, esperando o calor amenizar, sob a brisa da sibipuruna para poder
deitar . Os filhos, quando foram embora, um a um, insistiram para que
ela vendesse o sítio e fosse para a cidade, viver com eles. Mas decidiu
que não iria. Não poderia. Ali estava sua vida. Ali plantara seus sonhos e
enterrara seus sofrimentos. Vivia naquele rincão esquecido por Deus
desde o dia do seu casamento, quando começou seu sofrimento. Aníbal,
o marido, não lhe poupou um dia de desgosto. E, com a vinda dos filhos,
as coisas só pioraram, pois além de se proteger, temia por eles.
Nesse entardecer, enquanto observava o horizonte e a sibipiruna,
recordou uma estranha noite de verão, há vinte anos.

O calor não dera refresco mesmo com a chegada da noite. As


crianças tinham ido dormir, dona Ana deixou-lhes a janela aberta para
que o frescor da noite pudesse entrar. Foi para seu quarto e a voz
engasgada de seu Aníbal reclamava o tempo todo. A lua estava clara e
iluminava parte da casa por onde seus raios conseguiam se esgueirar. A
janela aberta emoldurava o seu clarão. Ao longe podia-se ouvir um

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Sibipiruna Neuceli Maria da Silva Candido

trovão sinalizando que o tempo mudaria. Na madrugada, seu Aníbal se


levantou e foi para o quintal. Ele sempre fazia isso nas noites em que o
calor deixava a cama insuportável.
Dona Ana viu o marido se levantar, mas, cansada como estava,
entrou numa espécie de cochilo. Passado não mais que uma hora,
acordou com o barulho e os respingos da chuva. Levantou-se para fechar
a janela das crianças e quando saiu do quarto apurou os ouvidos e
percebeu outro som. Achou estranho. Eram pancadas fortes. Foi até a
sala e abriu a porta. Visualizou o marido, debaixo da chuva, com o
machado em punho cortava a sibipiruna. Ficou perplexa com a cena. Por
que tanta maldade?!

Pela manhã, dona Ana colocou a mesa, acordou as crianças e foi ao


quintal chamar seu Aníbal para tomar o café antes de ir para roça, como
fazia todas as manhãs. Os dois meninos maiores iam para a escola
montados num cavalo alazão bem manso e a menorzinha, Alice, então
com três anos, ficava em companhia da mãe. As crianças não viam o pai
porque ele saía para a roça antes mesmo que terminassem de vestir a
roupa e nesse dia não foi diferente.
João, ao adentrar a cozinha, exclamou:

Que fogaréu! referindo ao fogo aceso no fogão de lenha. O

que está queimando?

Coisas que não prestam mais respondeu a mãe.

O cheiro é ruim completou o menino.

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Sibipiruna
Sibipiruna Neuceli Maria da Silva Candido

Cheiro de coisa velha e sem serventia.

Ao saírem se depararam com os galhos da sibipiruna pelo chão.


João voltou correndo chamando pela mãe e a encontrou à porta
fazendo-lhe sinal que ficasse quieto e fosse para a escola. Com lágrimas
nos olhos e choro entalado na garganta ele obedeceu.
Na volta da escola perceberam, ao longe, que algo estava diferente.
A casa cheia de gente e o carro da polícia ao pé do que sobrara da
árvore. A mãe veio ao encontro deles, com os olhos vermelhos de choro
dizendo-lhes que o pai desaparecera. Já haviam procurado por todos os
cantos, mas não encontraram nem rastros porque a chuva forte da noite
os apagara..
Foi um dia inteiro de buscas, mas quando o povo da cidade soube
que as roupas de seu Aníbal também tinham sumido, concluiu que o
homem partira por vontade própria e desistiu da procura. Durante uma
semana, algumas pessoas ainda vieram ver como a família estava, mas,
com o passar dos dias, as visitas foram rareando até se findarem por
completo. Dona Ana, agora, era pai e mãe da família, tomou a frente na
roça e na casa. Trabalhou muito, passou por necessidades, mas os filhos
não. Fez o que pôde, até vê-los crescer e cuidar de suas próprias vidas,
sem precisar dela.
Ainda sentada olhando para a sibipiruna, a velha senhora sorriu
satisfeita. A noite chegara de vez, levantou-se foi até a árvore que
sobrevivera aos maus tratos sofridos naquela noite e se erguera muito
mais frondosa que antes, apanhou algumas flores do galho mais baixo e
foi para dentro. Fechou a porta, encaminhou-se para o quarto e pela

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Sibipiruna Neuceli Maria da Silva Candido

janela aberta viu a lua esplendorosa. Ouviu um trovão fundo e pensou:


“Lá vem chuva, e das fortes.”
Sentou-se na cama com a flor ao lado.

Boa noite, Aníbal. Está com muito calor?

Levantou-se, foi até a gaveta da cômoda e pegou um martelo em


meio às roupas, afastou a cama, abaixou-se, acariciou uma das tábuas
do assoalho em que o prego parecia meio solto. Com o auxílio do
martelo desprendeu dois pregos e levantou a tábua. Debaixo, num
buraco, um saco amarrado pela boca. Retirou o saco e o abriu. Dentro,
cinzas. Bastantes cinzas. Mergulhou as mãos no material e sorriu:

Com calor, Aníbal? Nossa árvore enviou flores para comemorar

seu aniversário de morte.


Colocou o cacho de flores amarelas dentro do saco, fechou-o e o
guardou novamente. Voltou a tábua ao lugar, bateu o prego com o
martelo e foi dormir.
Lá fora, a chuva mansa batia no telhado em ritmo tranquilo e caía
forte no chão, de onde exalava um gostoso cheiro de terra molhada,
contribuindo para um sono tranquilo daquela velha e cansada senhora.

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Sibipiruna Neuceli Maria da Silva Candido

Neuceli Maria da Silva Candido fc


Nascida em 01 de maio de 1973 na cidade de Turiúba, interior
paulista. Com formação em Letras e Pedagogia, professora desde
1996, apaixonada pela educação, acredita que só através dela o
mundo pode ser melhor. A leitura e a escrita são paixões desde a
infância povoada de histórias que os pais contavam.

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Photo by Niko Photos on Unsplash
Sibipiruna Neuceli Maria da Silva Candido

o s e q u e s t ro
Neno reuniu os outros três na casa do Tonho, uma das poucas de
madeira da rua, o que fazia com que o calor ficasse intenso, mas a única
que tinha um quartinho da bagunça nos fundos que oferecia
privacidade. Neno apresentou a intrigante proposta, e logo vieram os
avessos:
— Não vai dar certo, nem a pau! — reclamou Beleza, suando.
— Tá louco, Neno, pirou de vez? — indagou Serjão limpando a testa
molhada.
— Eu tô com você, brother! Partiu! — para espanto de todos,
afirmou Tonho.
— Outro maluco! — revoltou-se Serjão.
— Não vai dar certo, véio! — insistiu Beleza.

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O sequestro Jeff Ferreira

Neno estava preparado para ouvir esse tipo de resposta, afinal


conhecia cada um e não era de hoje. Viu os três ainda em fraldas.Todos
nasceram e cresceram juntos, ali no Pirajura, eram crias do bairro. Os
quatro frequentavam o Dana Raquel Trindade, aprenderam tabuada
juntos, assim como o uso incorreto da crase. Para Neno era fácil saber
quais as virtudes e defeitos de cada integrante de seu mote. Sabia que
Beleza, o mais novo, por questão de meses, era o mais medroso, tinha
medo do Incrível Hulk, e um pavor indescritível e incompreensível da
Pantera Cor-de-Rosa! Seu apelido veio de sua mãe, chamada Ana Lua,
uma hippie que topava qualquer parada. Já tinha sido detida por portar
alucinógenos numa rodoviária em Corrientes, na Argentina, fugido de
carona com um caminhoneiro uruguaio e presa por acender um baseado
em praça pública em Carmo do Rio Claro. Foi liberada três dias depois
pela defensoria pública de Bauru com a apelação de que era mãe
solteira e tinha um filho pequeno para cuidar. Beleza vinha de “Maluco
Beleza”, a canção do Raul, e ter uma mãe descolada fez de Beleza um
caretão. Ele afirmava ter mudado, mas na verdade ainda era o medroso
de antes. Tonhão, o “Porraloca”, sempre apoiou Neno no que fosse:
roubar manga da Dona Leonina, nadar no tubão da Campel, colar em
provas de ciências do professor Geraldão e tantas outras aventuras. Esse
sim era parceiro. Via em Neno o irmão que não tinha. Serjão era o cara
ético, honesto, o certinho. Aos olhos de todos, o “fresco”, mas era gente
boa, gente finíssima e tinha muitas habilidades: fazia carrinhos de
rolimã, daqueles com freio para a segurança; era um mestre na arte de
“varetar bambu” para as pipas; fazia o ioiô dormir e manobrava o peão
O sequestro Jeff Ferreira

como ninguém, mas ninguém o suportava. Era um chato de galocha e


vivia dando palpites a fim de roubar a brisa dos outros: “não cole na
prova, estude”, “cuidado ao nadar no tubão, usem boia”, “não roubem
manga, peçam para a Dona Leonina”. Sempre advertia os amigos, mas
no final sempre entrava nas bagunças também.
Neno era o mais maduro e dominava a oratória como um Felipão
dos anos 90:
— Senhores, o plano não é fácil, eu assumo. Porém o resultado
positivo pode fazer com que todos presentes aqui nesta sala resolvam,
definitivamente, suas miseráveis vidas! — O buço pingava suor.
— Você está louco! — Disse Serjão abanando-se com um dos papéis
do mirabolante plano.
— Não vai dar certo, não vai! — Gritava Beleza, num misto de medo
e alteração de humor devido ao estonteante calor.
— Pessoal, por favor! — acalmava Neno. — Que é arriscado, eu sei,
que é difícil, todos sabemos. Mas esse plano não nasceu ontem, já está
comigo há muitos meses, e cada dia que passou eu o aperfeiçoei, visto
que agora está no gatilho! No ponto, meus manos! E o divido com vocês,
meus melhores amigos.
— Amigo que é amigo não convida para esse tipo de coisa! —
Enfureceu-se Serjão.
— Não vai dar certo! — Continuava Beleza, ainda com tom de voz
elevado.
— Vocês sabem que podemos ter o que quisermos com o sucesso
do sequestro?
O sequestro Jeff Ferreira

— Conseguiremos ser presos, isso sim!


— Não vai dar certo!
— Galera, ei, escuta aqui! — Tomou as rédeas o Tonho, batendo
palmas para chamar a atenção. — Todo mundo aqui deve algo ao Neno,
todo mundo minimamente deve respeito ao Neno. Ele sempre ajudou
cada um de vocês quando mais precisaram. Se pudesse, ele se
transformaria num ventilador só para refrescar cada um de nós. Se ele
chamou vocês aqui é porque o cara realmente precisa de vocês. Beleza,
você lembra quando íamos para escola, na quarta série, e você teve
aquele imprevisto? Chegou a perder bermuda e cueca por causa do chá
seca barriga de folhas peruanas que sua mãe preparou na noite anterior,
lembra? Já estávamos na metade do caminho para a escola e você não
podia faltar, era dia prova de matemática, e o que o Neno fez? Arrancou
o calção dele e te deu, o cara voltou para casa, só de cueca, perdeu a
prova, mesmo tendo bombado no bimestre anterior, e até hoje não sei o
que ele disse para os pais dele. O cara te salvou! Ele não merece tua
ajuda agora?
— É... — Beleza suspirou pensativo — Eu topo então, mas isso não
vai dar certo!
— E você, Serginho? Deveria ter vergonha nessa cara de bunda,
lembra quando o Neno dava os lanches dele para você, na segunda
série, sempre que o Rubão pegava teu dinheiro? Ou aquela vez que o
Neno te levou nas costas depois que você torceu o tornozelo
atravessando o córrego do Biruta, no dia que tivemos que sair correndo
da torcida do Vila Dois lá no campão do Bela Vista? E quando o Neno
O sequestro Jeff Ferreira

correu Pirajura toda, descalço no chão quente, atrás daquele pipa


vermelho-escura com o brasão do Vasco que seu pai fez e o Zé da Rosa
cortou num relo? Ou lembra aquela vez que...
— Chega, cara! — gritou Serjão. — Que o Neno é amigo de verdade
não tenho dúvida nenhuma, mas sequestro, véio?
— Se a casa cair, Serjão, você sairá impune, como sempre saiu,
brother. Eu fazia a bagunça na escola, aprontava todas, você até
ajudava, mas nunca visitou a sala do diretor André! — amenizou Neno. —
Lembra quando eu e você subimos no telhado da casa do Seu Ticão para
pegar a bola de capotão do Beleza, e sua pisada quebrou a Brasilit da
garagem? Quem foi pego fui eu e segurei a bronca, não te entreguei!
— Tá! Ok, Neno, vamos nessa, brother, mas ainda acho loucura e
antiético!
Nesse ponto o sorriso no rosto de Neno era mais evidente que
dinheiro sujo escondido, e, juntando as palmas das mãos e levemente se
curvando, numa espécie de reverência, agradeceu os muchachos, porém
sem perder tempo e foco, logo seguiu para o objetivo principal da
reunião:
— Recapitulando, pessoas — prosseguia Neno eufórico. — Vamos
pegar os quatro grandes jogadores do futebol brasileiro, donos de
habilidades indiscutíveis e de fortuna impensável. Divino, maior
campeão nacional, o Doutor, ídolo das conquistas impossíveis, o Rei, o
matador, maior goleador que esse país já viu, e o Mestre, o grande
estrategista das quatro linhas!
O sequestro Jeff Ferreira

— E com eles em cativeiro, pediremos resgate e conseguiremos o


que quisermos! — disse animado Tonho.
— Não vai dar certo, mano! — Suspirou quase que inaudível Beleza.
Neno repassou o plano e o papel de cada membro da gangue,
estava tudo certo e o sol alaranjado baixava no horizonte encerrando
aquele dia quente e iniciando uma noite mais fervente ainda. Se
despediram e cada qual partiu para sua casa.

O tempo passou rápido como as orientações médicas num


comercial de medicamento na TV aberta. O plano já estava
esquematizado há mais ou menos dois meses, antes do verão chegar.
Serjão, Tonho, Beleza e Neno já haviam conversado e reconversado.
Todos os detalhes, dos mais simples aos mais sórdidos estavam
discutidos. Naquela altura do campeonato, todos já estavam com os
planos traçados por Neno em sujas folhas de papel sulfite na cabeça.
E chegou o dia. Os quatro criminosos rumavam para o desfecho
daquele plano milgrau, como a sensação térmica do momento. Andando
como que em câmera lenta, um ao lado do outro, num imenso corredor,
eram quatro homens e um segredo. Cada qual no seu posto, Neno
confirmou a notícia de que os quatro futebolistas estavam reunidos na
mesma sala, havendo apenas uma pessoa fazendo a guarda. Cinco
minutos depois não estavam mais, Serjão, o ético, conseguiu afastá-lo
com um telefonema falso, algo envolvendo espinha de peixe, infarto, pai,
tio, carros esportivos e aparelhos de DVD. Quando a sala de fato ficou
desvigiada, Beleza rompeu seu medo, entrou na sala para check-up,
O sequestro Jeff Ferreira

constatou que a barra estava limpa e deu sinal para os outros três que
adentraram rapidamente no recinto. Numa ação tão rápida quanto uma
piscadela de um olho só, cada um pegou um:, Neno foi no Divino; Tonho,
sem hesitar, pegou o Mestre;. Beleza, morrendo de medo e com seus
pensamentos carregados com a frase “não vai dar certo”, foi no Doutor e,
culpando a si próprio pelo ato criminal, Serjão capturou o Rei. Os quatro
fugiram correndo em trotes usainboltianos, escondendo-se nas sombras
sem deixar rastros. Depois de doze minutos, que mais pareceram doze
meses, estavam no esconderijo nos fundos da casa de madeira de
Tonho, suando cachoeiras. Eles comemoraram efusivamente, se
abraçaram e cumprimentaram-se. De pé, encaravam os sequestrados:
quatro figurinhas raras da série melhores do mundo do futebol,
roubadas do riquinho Jurandir, fã incontestável do esporte, que ao
voltar para a sala após descobrir que o telefonema era fajuto se deparou
com um bilhete com a letra de Neno. Sem dúvida alguma, daria tudo o
que tinha e o que não tinha para reaver suas preciosidades roubadas da
quente sala de geografia do colégio municipal Camilo Sosa, ali mesmo
no bairro de Pirajura, neste solstício de verão.
O sequestro Jeff Ferreira

Jeff Ferreira c
Natural de Umuarama-PR e vive no interior de São Paulo, em
Jaguariúna, há mais de vinte anos. Formado em Engenharia de
Controle e Automação, mas é aficionado pela literatura e pela
música, juntou as duas paixões em seu projeto Submundo do Som,
um site para falar sobre o tema e que resultou na publicação de 3
livros, se tornando um especialista no assunto.

Photo by Feliphe Schiarolli on Unsplash


O sequestro Jeff Ferreira

dalit

Estávamos os dois ali, um na frente do outro, sem bem saber o que


fazer. Ela segurava a porta pra mim, eu estava prestes a sair. Mas
hesitava. Ela sorriu:
— O quê? — ela perguntou.
Eu olhava pra ela:
— Não sei — eu disse, sorrindo. Mas nós dois sabíamos o quê, mas
não sabíamos o como agir.

Passamos horas juntos, conversamos sobre tudo, mas


principalmente sobre nossas experiências prévias, com outras pessoas,
em diferentes culturas. Agora, parado ali, em frente a ela, muitas coisas
me passavam pela cabeça, principalmente a história que
Dalit Marcelo Mendes

compartilhávamos, desde quando nos conhecemos até aquele


momento.

No dia em que nos conhecemos, eu estava fazendo o meu então


tradicional monólogo sobre relacionamentos e experiências, com vários
toques de autocrítica e flagelação. A plateia ria.
Ela, discretamente, concordava com várias coisas que eu dizia.
Falou também um pouco da sua história, uma relação que havia
acabado há pouco. Eu ainda não sabia sobre todos os detalhes e toda
carga cultural por trás daquele modesto momento de empatia.

Sinceramente, naquela ocasião eu estava mais preocupado comigo,


remoendo minhas próprias dores.
Naquela primeira vez, sua presença era leve, quase imperceptível.
Não exigia muita atenção. Sua beleza, discreta. Seus olhos, apesar de
profundos, estavam distantes, talvez contemplando ainda o que havia
acontecido consigo mesma.
É que ainda não tinham o peso de olharem pra mim.
Mas ali, na porta do seu apartamento, vendo aqueles mesmos
olhos, eu, enfim, a abraço, um abraço sem peso, sem pressão.
Ela é pequena e magra, leve como uma pena. Mas não é esse o
problema. O problema é que ela não sabe se entregar a um abraço cheio
de segundas intenções, apesar de contidas.
Dalit Marcelo Mendes

Ela tem esse mecanismo de defesa que a faz meio que se encolher
passivamente no meu abraço de gigante, em relação ao seu corpo
esguio.
Seus olhos penetram os meus, quando nos separamos. De novo,
aqueles olhos negros, tão gigantes e tristes, que fazem você sentir
vontade de protegê-los.
Mas não sou mais, nem quero ser, um príncipe encantado.
Mesmo assim, sempre nos encontrávamos e dividíamos o
platonismo da nossa relação. Depois da noite daquele abraço, aliás, ela
me agradeceu pelo meu autocontrole, não com todas essas palavras,
mas com muitos subentendidos.

Nós dois entedíamos tudo, mas tudo ficava implícito. Entendíamos


principalmente o que não havia sido.

Eu às vezes dizia que não a merecia, que não era adequado para
ela, brincando. Ela sorria toda vez. Mas de um jeito diferente, quase
subentendido. Talvez com um prazer novo, o prazer de ser e se sentir
desejada.
Essa era toda intimidade que a nossa situação permitia.
Num dos nossos encontros, ela me mostrou vídeos online, nos
quais mães ofereciam seus filhos em casamento.
Nos vídeos, os candidatos a marido pareciam todos muito tímidos,
olhando pra baixo, curvados, quase derrotados, por assim dizer.
Dalit Marcelo Mendes

Resignados. As mães falavam por eles, seguras de que eles são a melhor
opção para qualquer moçoila solteira.
Em um deles, talvez o mais memorável, enquanto o rapaz se
retorcia, a mãe descrevia suas qualidade e adicionava que ele só faria
sexo na posição papai e mamãe.
Eu juro.
Era a única posição aceitável para a tradicional família indiana.
Ríamos, mesmo sabendo que também éramos, de alguma forma,
alvo da piada.
Mas parados ali, na porta do seu apartamento, minha mente
repassava toda nossa história em minutos, mas eu vivo por esse
momento como se fossem horas. É aquele momento antes do beijo, do
carinho, da aproximação. Mas essas coisas não vêm. Só o
constrangimento de reconhecer o desejo e reprimi-lo.

— Eu sou um dalit — falei. Rimos mas também sabíamos que


éramos amados. Ela sorriu daquele jeito. Tinha que voltar pra casa,
rumo a sua nova vida, organizada ao redor de um marido que já
esperava por ela.
Quando enfim ela se foi, o verão apenas começava. Nos
despedimos com outro abraço desengonçado.
Felicidade Verdadeira Mario Sergio Ribeiro

Marcelo Mendes ot
Escritor de final de semana que espera resultados de escritor em
tempo integral. Lançou uma coletânea de contos sob o título Poesia
Brasileira e Outras Histórias (Design, 2010) e tem diversos artigos
sobre literatura publicados pelo mundo.

livros

Poesia Brasileira e Outras Histórias

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Photo by Saksham Gangwar on Unsplash
Felicidade Verdadeira Mario Sergio Ribeiro

felicidade
ve rd a d e i ra

Nove e vinte e três da manhã. O sol estava impiedoso. Ivonésio


acordou sete minutos antes do despertador, com o pescoço pastoso de
suor, sentindo-se severamente castigado pelo intenso calor de
dezembro. Sentia-se frustrado pelo fato de ter que tomar uma ducha
antes de ir trabalhar. Havia se banhado antes de dormir justamente para
ganhar tempo ao despertar. Uma das coisas que ele odiava no verão era
essa, ter que tomar dois banhos.
Vestiu o uniforme de garçom, preparou rapidamente um café de
coador extremamente amargo e deixou sua modesta casa, rumo à
labuta. Ivo, como o apelidara Lilo, seu vizinho de dez anos, seu único e
melhor amigo, era só mais um rapaz latino-americano, infeliz, levando
uma vidinha mais ou menos. Não porque ele não possuía um carro

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Felicidade Verdadeira Mario Sergio Ribeiro

importado, muito menos pela derrota do seu time, pois ele nem sequer
levava futebol a sério, mas porque a tal felicidade nunca o havia visitado.
Trabalhava duro como garçom em um restaurante mal iluminado,
abafado e quente como vapor de asfalto. Sr. Vinte, o proprietário,
ganhara esse apelido por acender charutos com notas de vinte quando
perto de mulheres bonitas ― quase sempre vinte anos mais novas que
ele. Às vezes ele bebia uma, duas, três, dez, vinte doses de vodka
durante o expediente e desmaiava atrás do balcão, sobrecarregando Ivo
com todo o trabalho, pois além das tripas que ele fazia de coração para
entregar um serviço impecável, precisava fechar as mesas, acelerar as
lesmas da cozinha, e na pior de todas as hipóteses, até ― argh! ― limpar
o vômito do patrão. Ivo, ao fim de seu expediente, deixou o restaurante e
imediatamente praguejou a temperatura infernal que fazia naquele
iluminado e inquisidor dia de extremo calor.
Todos os dias, em sua hora de almoço ou na hora da volta, ele
apostava no bicho, pois tinha a esperança de ganhar um bom dinheiro
para tirar férias de seis meses e ficar em casa assistindo Mazzaropi,
tomando água de coco gelada e jogando dardos. Por ser um rapaz
solitário, costumava jogar dardos sozinho, e até realizou alguns
campeonatos.
Ivo possuía quatro luvas. Uma vermelha, uma verde, uma rosa-
choque e uma preta. Usava-as na mão esquerda, enquanto lançava os
dardos com a outra. Cada luva simbolizava um time, cuja pontuação ele
marcava em uma pequena lousa afixada à parede. Às vezes, Lilo
aparecia e sugeria que ele o convidasse para jogar, mas Ivo nunca

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Felicidade Verdadeira Mario Sergio Ribeiro

permitiu, pois tinha medo que Lilo, por acidente, furasse os próprios
olhos com as pontas agudas dos dardos. Ivo não apreciava agir daquela
forma, mas sabia que era o mais prudente a ser feito.
Perto das sete, nos dias de calor, Ivo sentava-se no meio-fio da
calçada de sua casa com um baralho em mãos e fingia treinar alguns
truques de mágica, quando sua intenção, na verdade, era assistir sua
vizinha Helô passando, na volta do trabalho, desfilando em seus
shortinhos, fazendo com que ele não odiasse o verão por breves
instantes. Esses segundos valiam, para ele, mais que um campeonato de
dardos, e muito, muito mais que “O lamparina”, seu filme favorito.
Aqueles eram os momentos de seu dia que mais se aproximavam
daquilo que costumeiramente chamamos de felicidade.
Antes de dormir, com a sensação de missão cumprida, Ivo tomou
uma xícara de café com leite bem quente, escovou os dentes, vestiu seu
pijama de girafas e foi para a cama. Deitado, com a cabeça apoiada no
antebraço, olhava para o teto com um sorriso abobalhado no rosto,
pensando as melhores coisas possíveis sobre ela, até adormecer.
Todo santo dia, Ivo seguia a mesma rotina: Trabalho, calor, patrão
bêbado, jogo do bicho, dardos, Helô, café com leite, pijama e cama.
Numa segunda-feira tempestuosa, ganhou quarenta mil no jogo do
bicho, porém não exprimiu nenhum esboço de felicidade. No dia
seguinte, utilizou mil reais do prêmio para retirar todos seus dentes do
siso, que haviam nascido bem tortos e frequentemente espetavam a
gengiva. Quando saiu do consultório dentário, tomou um sorvete de

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Felicidade Verdadeira Mario Sergio Ribeiro

maracujá e apressadamente voltou para casa a fim de jogar dardos,


contrariando as orientações de repouso da cirurgiã dentista.
Como era seu dia de folga e dentro de sua casa estava um forno,
nem mesmo a chuva o impediu de sentar-se no meio-fio. Lilo aproximou-
se e perguntou:
— Por que você fica todo dia sentado aqui sozinho?
Ivo, que considerava Lilo seu melhor amigo, passou o braço em
volta de seu pescocinho esguio e contou-lhe toda a verdade sobre como
o verão o deixava irritado, sobre como seu chefe o tirava do sério e, por
fim, sobre toda a admiração que sentia por Helô. Lilo abriu um enorme
sorriso quando Ivo confidenciou o que sentia por ela, pois tinha uma
dica preciosa para dar ao tão infeliz amigo:
— Ontem eu ouvi a Helô falando pra minha mãe que ela gosta
mesmo é de cartola.
Ivo bateu com os nós dos dedos carinhosamente três vezes na
cabeça do amigo, como sinal de agradecimento pela informação, mas
rapidamente franziu intensamente o cenho, pois Helô passara toda
sorridente sob a sombra de um guarda-chuva empunhado por um
bonitão e já nem chovia mais. Pela primeira vez na vida, Ivo
experimentou o ciúme e se recolheu rapidamente, batendo a porta,
mesmo sem se despedir do amigo. Naquela noite ele não tomou seu café
com leite, não escovou os dentes, não tomou banho, não vestiu seu
pijama de girafas e foi se deitar muito, muito chateado. Na manhã
seguinte, sem tomar café e nem escovar os dentes, foi trabalhar
totalmente descontente da vida.

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Felicidade Verdadeira Mario Sergio Ribeiro

Seu patrão gritava mais do que de costume e estava conseguindo


tirá-lo do sério, e, embora não transparecesse, Ivo se contivera para não
acertar em cheio uma singela cadeirada na careca rugosa e rosada do Sr.
Vinte. Na hora do almoço, Ivo, sob um sol de trinta e seis graus,
caminhou até a loja de chapéus e comprou a mais brilhosa e elegante
das cartolas, a qual decidira daquele momento em diante, tirar somente
na hora de dormir. Tudo o que ele mais queria era impressionar Heloísa e
tomá-la das garras daquele bonitão bronzeado.
Finda a hora de almoço, voltou ao serviço, mas seu patrão se
enfureceu e não permitiu que ele continuasse atendendo os clientes com
aquela cartola ridícula na cabeça, o que suscitou uma discussão
calorosa entre ambos. Quer dizer, calorosa por parte do Sr. Vinte, que
rosnava para Ivo, que nem se deu ao trabalho de mudar sua expressão
facial. Descontente, pediu as contas e o patrão começou a ofendê-lo com
palavras vulgares. No ápice de sua fúria, Ivo pegou de uma das mesas
um frasco de pimenta do reino, despejou todo seu conteúdo no piso do
salão e foi embora. Sr. Vinte tentou agredi-lo, mas estava
completamente bêbado e nem sequer conseguiu sair de trás do balcão.
Durante a semana, Ivo procurou emprego em agropecuárias,
supermercados, outros restaurantes e até mesmo em um hospital, mas
foi negado por todos por conta da cartola.Triste com a vida, passou um
café amargo e ficou sentado no meio-fio, sem seu baralho, com a cartola
na cabeça, esperando por sua musa que não tardou a passar abraçada
com o bonitão do guarda-chuva. Isso foi muito para Ivo, que, enfurecido,

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Felicidade Verdadeira Mario Sergio Ribeiro

destruiu seu jogo de dardos, ateou fogo em suas luvas e jogou todas as
cartas de seu baralho pela janela.
De pijama e cartola, saiu cedo de casa na manhã seguinte e
comprou um quebra-cabeça de cinco mil peças, decidido a ficar
trancado até montá-lo todo. Oito horas depois, havia menos de trinta
peças encaixadas e, desapontado, abandonou a decisão. À mesma hora
de sempre, Ivo se sentou no meio fio e logo Lilo apareceu. Ivo havia
prometido que o ensinaria a dançar twist e decidiu colocar as aulas em
prática. Naquele dia, Heloísa voltava sozinha para casa e repugnou
aquela cena por completo, pois julgou que Ivo estava embriagado,
dando mau exemplo a uma criança. Furioso consigo mesmo por ter
passado uma má impressão, Ivo chutou seu latão de lixo e entrou, mais
uma vez sem se despedir de Lilo.
Após muitos dias testemunhando a tristeza e o desamparo de seu
amigo, Lilo decidiu convencê-lo a lutar pelo que almejava, ou seja, a ir
até a casa de Heloísa e convidá-la para jantar. Pela manhã, Lilo o
acompanhou a uma loja de roupas, ao cabeleireiro e à loja de perfumes.
À tarde, ficaram ensaiando, de frente para o ventilador, a melhor forma
de se fazer o convite. Às vinte horas, depois de ter ingerido dois ou três
calmantes naturais, Ivo respirou fundo cinco ou seis vezes e pôs-se a
caminhar em direção à casa de sua musa. No momento em que ela
atendeu a porta, ele se pôs a revelar tudo o que sentia, desde o
princípio. Aproveitou a ocasião para se explicar sobre a dança estranha
que ela o vira fazendo na rua, e por fim a convidou para jantar.

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Felicidade Verdadeira Mario Sergio Ribeiro

Helô, pega de surpresa, parou para refletir sobre aquele inusitado


convite por alguns momentos. Ivo estremecia ansioso dos pés à cabeça,
mas no momento em que ela sorriu e lhe respondeu que sim, sentiu um
calor intenso percorrendo toda a extensão de seu corpo, e por instantes
achou que iria entrar em combustão. Ela entrou para se arrumar. Ele
ficara à porta, em êxtase, agradecendo mentalmente ao amigo por ter
lhe deixado saber que ela gostava de cartolas.
Ivo levou Helô ao Fulci & Bava, o mais chique restaurante italiano da
cidade de Vagarosa. Helô pediu um Gnocchi alla sorrentina e Ivo, uma
porção de batatas ― que nem estava no cardápio, mas a casa
improvisou e atendeu a demanda, mesmo assim.
Ele pediu uma garrafa do mais fino vinho francês, o que deixou o
clima mais intimista para que ambos pudessem se conhecer melhor
entre tímidos sorrisos.
Tudo correra muito bem durante o jantar, mas na volta para casa
Ivo sentiu seu mundo desabar, pois o bonitão bronzeado aguardava, em
pé, à porta da casa de Helô. Ela o recepcionou com um forte abraço e um
beijo estalado em sua bochecha. Ivo levou suas mãos às costas e as
fechou em punho, guiado pela insegurança que o aterrorizava àquele
momento. Helô fez sinal para que ambos entrassem. Ivo hesitou, mas
acabou aceitando o convite.
O bonitão disse:
— Helô, você vai ter uma bela surpresa ― e foi ao banheiro.
O coração de Ivo palpitou. Estava muito desconfortável em meio
àquela desagradável situação, mas no momento em que o bonitão

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Felicidade Verdadeira Mario Sergio Ribeiro

voltou do banheiro, todo maquiado, trajando um vestido cor-de-rosa e


uma peruca chanel loira, toneladas saíram de seus ombros. O bonitão
era uma drag queen chamada Tereza Sentoq, e estava ali apenas para
revelar o figurino de sua performance à sua melhor amiga. Quando
Tereza foi embora, Helô ligou seu radinho e colocou um samba. Ivo
adorou aquela sonoridade e se pôs a batucar no braço do sofá.
— Isso que tá tocando é o quê?
E ela respondeu:
— É Cartola! Adoro cartola, pra mim ele é o maior compositor que o
Brasil já teve.
Envergonhado, Ivo rolou os olhos para cima, e ao perceber o papel
de bobo que vinha fazendo, tirou a cartola. Considerando que a noite
estava muito quente, ele sugeriu que fossem para fora para que ele
pudesse ensinar uns truques de mágica.
Ela levou seu radinho para que continuassem ouvindo música. Ele
trouxe seu baralho reserva e o que havia sobrado da garrafa de vinho.
Passaram a madrugada toda sentados no meio-fio, bebendo vinho no
gargalo, jogando conversa fora, rindo, gargalhando, e por fim contando
estrelas, deitados bem juntinhos na calçada. Foi nesse dia que Ivonésio
descobriu o verdadeiro significado da palavra felicidade.

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Minhas Pernas… R.Tavares

Mario Sergio Ribeiro fc


Graduado em Comunicação Social pela UNIMEP, assíduo
frequentador da biblioteca pública municipal. Jovem autor tem a
escrita como hobby desde os sete anos de idade e é também um
exímio colecionador de livros, discos e filmes. Ainda em 2020, o
autor lançará seu primeiro livro, intitulado “O que terá acontecido
ao Rato Herman?”, uma fábula distópica e cartunesca recheada com
humor sarcástico e críticas sociais.

Photo by Dawid Zawil A on Unsplash


Minhas Pernas… R.Tavares

Minhas pernas
Minhas pernas desacostumadas ao sucesso esqueceram de
pedalar

Era verão de 1993 e mais uma vez eu era a atração da rua Luiz
Mércio Teixeira. Todos já sabiam, deviam estar acostumados, mas
mesmo assim perto das cinco da tarde a gurizada parava de jogar taco e
sentava no meio fio, em frente a Igreja do Sétimo dia não sei de quem,
pra assistir meu suplício.
Todas as tardes, quando o sol já estava um pouco mais fraco, eu
abandonava os quadrinhos e saía de casa com o mesmo objetivo. Ao
lado, sempre estavam meus pais e meu irmão. Será que não estava na
hora de eles desistirem daquilo? Eu colocava uma roupa velha, que
pudesse sujar, umas joelheiras do time de vôlei do colégio e um capacete
Minhas Pernas… R.Tavares

verde, que parecia da Segunda Guerra, e ia pro combate.Com as mãos


pequenas empurrava a Caloi branca com detalhes em vermelho, herança
do irmão colorado, e seguia para a via sem calçamento. Não conseguia
nem olhar pros guris da rua, tinha vergonha. As meninas, mais
compreensíveis, seguiam suas brincadeiras de corda e assistiam meu
vexame diário apenas com o canto dos olhos.
Naquele dia, com o céu pintado de rosa, daqueles em que as
nuvens parecem ter se esparramado, como se tivessem passado uma
vassoura de guanxuma para limpar o salão, eu senti que conseguiria.
Levei a bicicleta pra rampa da garagem, posicionei de um jeito que o
próprio declive me impulsionasse. Passei a perna direita por cima e me
acomodei no banco, que fazia questão de deixar na posição mais baixa,
com medo de me machucar.
Segurei firme os punhos emborrachados do guidom, até que as
juntas dos dedos embranqueceram. Testei os freios e encarei meus
inquisidores. Impulsionei-me, dei uma pedalada e deixei que a bicicleta
ganhasse velocidade ao descer a lomba, senti quando a roda encostou
no chão de terra e aproveitei aqueles momentos de glória. Podia
adivinhar os meninos surpresos, as gurias pulando e deixando a corda
cair, sentia o olhar deles todos presos na minha nuca.
No êxtase do equilíbrio, esqueci por completo que o impulso não
duraria para sempre, as pernas desacostumadas com o sucesso
esqueceram de pedalar e num primeiro buraco senti que a bicicleta
perdia a estabilidade. O guidom passou a balançar desordenado e, com
medo do pior, apertei as duas alavancas do freio. Podia adivinhar as
Minhas Pernas… R.Tavares

risadas e apenas fechei os olhos antes de cair no chão – queria me


enterrar num buraco, quebrar um braço, ou qualquer coisa mais grave.
Quando pensei que escutaria os deboches de sempre, foram os
gritos que me abriram os olhos. Todos gritaram pare, cuidado, me
encolhi ainda mais e só entendi o que estava acontecendo quando senti
que o carro freou encostado à bicicleta. Pelo silêncio de todos, pensei
que tinha morrido. Até que, em seguida, meus pais correram pra me
abraçar, e o resto das crianças explodiu em aplausos e gritos de alívio.
Meu espólio de guerra foram apenas uns arranhões no queixo e o gosto
de terra na boca.
Daquele dia em diante, foi determinada a minha vitória e pude ficar
lendo meus gibis até mais tarde.
Minhas Pernas… R.Tavares

R.Tavares ofc
R. Tavares nasceu em Bagé, em 1986. Reside atualmente em Porto
Alegre e é autor de Ainda que a terra se abra, Andarilhos, Noite
Escura, Contos Sangrentos e A tropeada. É também o idealizador e
curador do FestFronteira Literária, festival de literatura que ocorre
anualmente em sua cidade natal.

livros
Ainda que a terra se abra
Andarilhos
Noite Escura
Contos Sangrentos
A Tropeada

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Minhas Pernas… R.Tavares

do pampa
ao mar
A porta do refrigerador antigo exibia o cartão postal recebido há
anos atrás, afixado por um pequeno imã cinza escuro. No retângulo
acartonado, a areia branca dividia espaço com dois tons de azul
divisando o mar do céu. À direita, um coqueiro repleto de frutos e do
lado esquerdo letras amarelas informavam o nome da praia, em curva:
“Aracaju”.
Maria Goreti sabia descrever os detalhes daquela imagem, ainda
tão fascinante mesmo depois de tanto tempo. Não se tornara invisível,
como tantos outros objetos pelos quais passamos os olhos no cotidiano;
cada vez que olhava sentia o mesmo impacto. Viu-se inúmeras vezes
correndo de pés descalços sobre o chão fofo e claro até chegar ao mar,
onde a onda bateria de leve em seus pés e ela sentiria uma alegria
imensa. Depois, curvaria o corpo até aquele vai-e-vem para oferecer seus
Do pampa ao mar Caroline Rodrigues

dedos por onde a água passaria calmamente e, de tão cristalina, ela


veria peixinhos, que tentariam beliscar de leve seu corpo, curiosos. O sol
estaria escaldante, então, uma água de coco seria trazida até ela por seu
marido. Eles ficariam sentados em uma cadeira espreguiçadeira de pano
colorido, sentindo a brisa leve, enquanto procuravam o fim daquela
vastidão.
Nos últimos tempos, tornara-se doloroso demais acompanhar os
momentos imaginados ao lado dele naquela aventura e o devaneio era
cortado pela certeza de que aquilo jamais aconteceria. O marido Plínio
falecera, há dois anos, em um acidente de caminhão, numa cidade
nordestina, para onde costumava viajar. O cartão postal fora enviado por
ele, em sua primeira viagem. No verso, a habitual economia de palavras:
“Cheguei bem. Diz pros guris cuidar dos bichos”. Aquele era o primeiro
cartão que Goreti recebia na vida.
Viviam em uma pequena fazenda no interior do Rio Grande do Sul,
onde também havia vastidão, mas de campo, sendo também impossível
divisar seu final. No horizonte, somente uma árvore aqui, outra acolá, ou
cercas e animais que as pessoas trouxeram tentando preencher um
pouco daquele vazio. Ela chegou lá no dia do seu casamento, quando foi
morar com o marido agricultor. Tiveram seis filhos, quatro meninos e
duas meninas. Cedo, aprenderam os ofícios do pai e da mãe,
respectivamente, e quando o pai recebeu a proposta de trabalhar como
caminhoneiro, foi fácil aceitar pois já havia quem cuidasse de tudo por
ali. Era um dinheiro bom, não dava para recusar.
Plinio não era muito dado a conversas alongadas e Maria Goreti

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Do pampa ao mar Caroline Rodrigues

não conseguia arrancar muitas informações sobre os lugares que ele


conhecia em suas viagens. Isso deu espaço de sobra para imaginação e
fantasia. Ele dizia que um dia, quando as meninas pudessem ficar
sozinhas em casa, ele a levaria junto, mas isso acabou nunca
acontecendo pois sempre havia um imprevisto a ser resolvido na
fazenda. Em casa, ela comentava com as meninas como deveria ser
lindo ver o mar, tão diferente daquilo que ela conhecia ali, de onde
nunca havia saído. Onde estavam, precisariam viajar em torno de 600km
até a praia mais próxima, no litoral sul do estado.
A notícia da morte do marido veio da empresa que o contratava
para fazer os fretes. Eles se responsabilizaram por transportar o corpo do
marido até a cidadezinha, mas os trâmites demoraram e o velório teve
que ser apressado, de caixão fechado. Era difícil crer que dentro daquele
invólucro de madeira estivesse o seu marido e por nada no mundo
deixaram com que ela tirasse a prova. Deixou-se ficar sentada ao lado
dele, o olhar perdido na vastidão de pessoas que vieram saber do trágico
acontecimento. Muitos, nem sequer o conheciam, mas assim é enterro
em cidade do interior, onde esse tipo de notícia se alastra como praga
em lavoura.
Os dias e meses seguintes ao evento foram de completa tristeza
para Maria Goreti. Nessa época, dois dos seis filhos continuavam na
fazenda e assumiram todo o trabalho. As duas filhas e dois dos filhos já
haviam se casado e moravam em cidades próximas. Vinham, com a
frequência possível, visitá-la. Sentavam-se na varanda, tomando
chimarrão, e Goreti lamentava a morte do marido antes que ela pudesse

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Do pampa ao mar Caroline Rodrigues

ter ido com ele conhecer o mar. Passava os dedos sobre a imagem do
cartão postal, que trazia consigo quase o tempo todo.
Dois anos e meio depois do ocorrido, a filha mais velha veio com a
surpresa: ela, o marido e o filho estavam a caminho da praia e a mãe iria
junto. Ela precisaria pegar poucas roupas pois ficariam somente o final
de semana.
― Mas eu não tenho roupa de banho.
Neste momento, o menino entregou para a avó um pacote de
presente. De dentro dele, Maria Goreti retirou um maiô colorido.
Posicionou-o na sua frente e, satisfeita com o que via, abriu um largo
sorriso e abraçou a filha, que recebeu o gesto com estranheza e alegria.
Levantou-se para deixar sua bolsa preparada para a viagem que
começaria na madrugada seguinte.
Dentro do carro, as horas se arrastavam. Maria Goreti tentava se
distrair, olhando pela janela a mudança de relevo. Levou crochê para
fazer durante o trajeto, mas logo nos primeiros quilômetros sentiu-se
enjoada. O menino, ao seu lado, dormiu a maior parte do tempo. Vez que
outra conversavam amenidades.
Viajaram o dia inteiro, entre paradas para banheiro e comida, e
chegaram ao litoral no final da tarde. Cada um que saía do carro
alongava os membros o máximo possível; era o corpo cobrando por
aquela imobilidade inusitada. Os olhos de Goreti buscaram o horizonte
no final da rua e ela viu, ao longe, em um pequeno espaço emoldurado
por dois prédios, o mar. A brisa soprava com força e tinha um cheiro
desconhecido. Os espaços entre os paralelepípedos do calçamento eram

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Do pampa ao mar Caroline Rodrigues

preenchidos por uma areia tão fina quanto a que ela imaginava.
Depois de deixarem as coisas no hotel, decidiram que ainda dava
tempo para ir até a beira da praia, só para matar a curiosidade da avó.
Maria Goreti levava uma bolsa a tiracolo e usava um vestido comprado
há anos quando achou que acompanharia o marido em uma das
viagens. Conforme caminhava, a brisa ia se transformando em um vento
cada vez mais forte, que vinha de frente para eles. Ao final da rua, havia
dunas dos dois lados e à frente, uma grande extensão de areia até
chegar ao mar. Goreti estranhou aquele tom escuro de areia que deixava
o chão duro. Vez que outra, minúsculos grãos de areia voavam formando
caminhos mais claros que, ao bater nas pernas, pareciam pequenos
chicotes. E os coqueiros, onde estavam? Ali, não havia nenhum.
Avançaram em direção ao mar. Será que estavam no lugar certo? A água
ali não era nem um pouco cristalina. De qualquer forma, ela estava
determinada a fazer o que viera fazer.
Pisou na faixa molhada de areia e esperou a água vir. Estranhou as
cócegas debaixo dos pés e caminhou para trás. Viu a areia se mover e
pequenos bichos brancos desaparecerem para dentro dela. Voltou e
aguentou firme até que a onda bateu em seus pés. Era tão gelada que
sentiu o corpo todo arrepiar. O vento contínuo tornava tudo ainda mais
difícil. Avançou um pouco mais e pegou um copo de dentro da bolsa.
Quando a onda veio, encheu o copo e levou à boca. A filha olhou
espantada e se preparou para avisar, mas ao mesmo tempo, Goreti
cuspiu com força o conteúdo, fazendo uma careta.
― Aquele sem-vergonha nunca me disse que era salgada!

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Do pampa ao mar Caroline Rodrigues

Caroline Rodrigues ofc


Caroline é professora e tradutora de língua inglesa. Sua formação
em língua portuguesa contribui para revisões, leituras críticas e
escritos. É colunista no portal Escrita Criativa e escreve, quando dá
tempo, no seu blog (Caroline Rodrigues). Concluiu o Curso Livre de
Formação de Escritores, da Metamorfe Cursos e teve textos
publicados em duas coletâneas da Editora Metamorfose. Em
novembro deste ano, lançará seu primeiro livro.

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Photo by Vernon Raineil Cenzon on Unsplash
Do pampa ao mar Caroline Rodrigues

a m o re s l í q u i d o s
Os últimos dias haviam sido maravilhosos.
Se conheceram na praia, apesar de serem da mesma cidade. Ela
tinha recém colocado os pés no litoral e resolveu aproveitar o restinho
de sol à beira-mar. Levou apenas a canga, o celular e a cerveja gelada
comprada pelo caminho. Soltou a canga na areia e se sentou,
observando o mar enquanto ouvia um rock antigo nos seus fones. Por
isso não ouviu ele gritar quando o cachorro se soltou da coleira e passou
correndo por ela, derrubando a cerveja.
Ele passou logo em seguida. Pegou o cachorro pela guia quando já
estava quase entrando na água. Ela ainda tentava, em vão, se limpar da
cerveja e areia jogadas em si e na canga, quando ele voltou pedindo
desculpas pelo estrago. “Não foi nada”, disse embora estivesse
contrariada.

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Amores Líquidos Mariane Lima

“Dá um mergulho, eu cuido das tuas coisas” ele sugeriu.


Não soube bem ao certo porquê, mas confiou que ele não ia sair
correndo com o seu celular. Ao voltar do mar, viu que ele tinha duas latas
de cerveja e um sorriso no rosto. Conversaram. Estavam ambos
passando o final de ano na casa dos pais. Nenhum dos dois muito feliz
com a situação. Trocaram telefones e combinaram de se encontrar na
praia, depois da meia-noite.
Quando deu meia-noite e quinze, ela estava nervosa. “E se ele fosse
um doido varrido?” pensava. Tinha acabado de conhecê-lo, afinal de
contas.
A outra opção, no entanto, era passar mais algumas horas em casa
ouvindo a família brigar por causa de política. Lembrou-se do que ele
tinha dito, “Vamos aproveitar o melhor da situação”. Trocou a sandália
por um par de chinelos e foi caminhando até o local marcado, perto de
onde acontecia o show de fogos. Não sem antes deixar o contato dele
com sua prima, por segurança.
Quando chegou, ele já estava lá. De pé, perto do palco, onde a
banda tocava uma música bem brega de final de ano. Ele abriu um
sorriso. Acolhedor e encantador.
“Lembrei que você disse que gostava de Eisenbahn” ele disse
estendendo-lhe uma latinha. Começaram reclamando da família, mas
logo encontraram outros assuntos. Gostavam das mesmas músicas, dos
mesmos filmes, tinham as mesmas ideologias. Estavam sentados na
praia quando ele lembrou “eu não pulei as sete ondinhas, e tu?”. Ela
sorriu meio contrariada. “Sete ondinhas?”

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Amores Líquidos Mariane Lima

“Vamos, vai ser legal!” falou já se levantando. Ele estendeu a mão


para ela, ainda sentada, e ela não conseguiu recusar. A mão dele na dela,
foi a primeira vez que se tocaram. Ele começou a correr e ela o
acompanhou, rindo. Próximos ao mar, largaram os chinelos, os celulares
e as latinhas e caminharam juntos. “Um pedido para cada onda, não
esquece” disse ele olhando fundo nos seus olhos. “Eu vou pular uma
onda para cada artigo que quero publicar esse ano” falou antes da
primeira onda chegar. Ela não conseguiu pensar em nada. Só queria
estar ali, naquele momento, de mãos dadas com ele. Quando contaram
a sétima onda, ele se virou de frente para ela, puxando-a mais perto pela
mão e a beijou.
“Talvez Iemanjá tivesse adivinhado um de seus desejos”, ela
pensou.
Abraçados, caminharam de volta. Pegaram seus pertences e
sentaram mais próximos do palco, onde o show já ia terminando. Entre
beijos e conversas o restinho da madrugada se passou. Moravam na
mesma cidade e tinham muito em comum, apesar de habitarem em
bolhas muito diferentes.
“30 anos aqui, como eu nunca encontrei esse cara antes”, ela
pensava.
Viram juntos o sol do ano que se iniciava nascer na praia e parecia
que aquele dia duraria, senão para sempre, pelo menos o ano inteiro. A
virada de ano determina os outros 364, acreditava ela.
Nos dias que se seguiram, tiveram um namorico digno de
adolescente, por mais que ambos já passassem dos 30. Com direito a

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Amores Líquidos Mariane Lima

beijos na praça, noites no centrinho da cidade litorânea e cigarros


avulsos comprados no boteco ― os dois eram ex-fumantes.
Quando chegou a hora de ela voltar para casa, ela o convidou para
dar uma última volta e deram os últimos beijos vendo o sol se pôr na
beira da praia, onde haviam se conhecido. Ela pegou a estrada mais
tarde do que deveria e encarou o trânsito do início da semana, mas
havia valido a pena. Continuaram se falando, por mensagens, trocando
indicações de filmes e livros.
Dois dias depois, ele também estava na cidade.
“Estava com saudades” ele disse. Ela quis acreditar. Marcaram de se
encontrar.
Ela estava nervosa. Haviam adiado a recompensa por bastante
tempo. E se o sexo fosse ruim? E se quando chegassem no quarto desse
tudo errado? As expectativas estavam muito altas.
Quando ele chegou na casa dela, ela percebeu que ele também
estava nervoso. A vontade era de se atracar aos beijos aos quais havia se
acostumado na praia, mas cumprimentaram-se de forma estranha, com
um beijo que não foi nem no rosto, nem na boca. A pequena subida de
elevador pareceu longa diante da ansiedade. Ao entrarem, ela foi logo
servindo os copos de cerveja. Bebeu o dela rapidamente e o convidou
para um crivo. Acenderam os últimos que ela tinha em casa, encostados
na janela. Ali, em meio a fumaça, se beijaram, desejosos, para o alarde
dos vizinhos, deixando os cigarros esquecidos.
Voltaram para a cozinha, para encher os copos, tentando se distrair
com qualquer coisa, mas ela não conseguia mais tirar as mãos dele. O

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Amores Líquidos Mariane Lima

queria mais perto, queria seus beijos. Depois do segundo copo, foram
para o quarto, ainda tomados pela ansiedade de terem um ao outro. Os
beijos dela arrepiavam o corpo dele inteiro, a língua dele a fazia tremer.
“Valeu adiar a recompensa” ela falou, nua, deitada contra peito
dele antes de se entregar aos sonhos. E era verdade. Passados os
primeiros beijos, ainda nervosos, a noite havia sido maravilhosa.
Dormiram abraçados a noite inteira. E ao acordar, transaram de
novo e de novo até acabarem as camisinhas. Quando acordaram do
último cochilo, já de manhã, ele lhe deu um beijo rápido e pôs-se de pé a
se vestir. Ela queria mais, mas não ousou dizer.
Já vestida, na porta do quarto, o observava enquanto ele se vestia.
Ele colocava o cinto quando seus olhos se cruzaram. Ela sustentou o
olhar como se fosse um desafio. Ele tentou, mas abaixou seus olhos
castanhos escuros para fechar a fivela e ela teve a certeza que jamais os
veria novamente.

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Mariane Lima

Mariane Lima ofc


Comunicadora, formada em RRPP, com passagens por letras e
cinema. Idealizadora da @EscritorPublicado e @EscritorBrasileiro,
revisora, ghost writer e rata de oficinas de escrita, tentando libertar
os textos de ficção (aos poucos) da gaveta. Editora da Subtextos.
Teve conto “Roletas” publicado pela seleção off flip de 2018 e posta
crônicas no medium.

Livros

Coletânea Prêmio Off Flip de Literatura [2018]

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Photo Mariane Lima
Mariane Lima

Edição
Mariane Lima
Revisão
Caroline Rodrigues
Curadoria
R.Tavares

Um projeto de

ofc

ofc

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o trabalho dos escritores

Foto capa: Ethan Robertson

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