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Coleção

HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA

Coordenação
Ellana de Freitas Dutra

François Hartog

Crer em história

TRADUÇÃO

Camila Dias

autêntica
Copyright © 2 0 1 3 Flammarion, Paris
Copyright © 2017 Autêntica Editora

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação
poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia
xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

COORDENADORA DA COLEÇAO HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA PROJETO GRÁFICO

Eliana de Freitas Dutra Diogo Droschi


EDITORA RESPONSÁVEL CAPA

fieyane Dias Alberto Bittencourt (Sobre obra de Anselm Kiefer


EDITORA ASSISTENTE
Foto: Cubo Branco [George Darreil])
Cecilia Martins DIAGRAMAÇÁO

REVISÃO DA TRADUÇÃO
Larissa Carvalho Mazzoni
Vera Cfiacham
REVISÃO

Lúcia Assumpção

D a d o s I i t e r n a c i o n a i s d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o (CIP)
( C â m a r a Brasileira d o Livro, SP, Brasil)

Hartog, François
Crer em história / François Hartog ; tradução Camila Dias. -- 1. ed. - Belo
Horizonte : Autêntica Editora, 2017. - (Coleção História & Historiografia)

Título original; Croire en l'histoire


Bibliografia.

ISBN 9 7 8 - 8 5 - 5 1 3 - 0 0 2 6 - 8

1. História - Filosofia 2. Historicidade 3. Historiografia I. Título. II. Série.

17-02878 CDD-901

Indices p a r a c a t á l o g o sistemático:
1. História : Filosofia 901

GRUPO AUTÊNTICA
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SUMARIO

Introdução
Ainda cremos em História? 09

Capítulo 1
A ascensão das dúvidas 31

Capítulo 2
Uma inquietante estranheza 85

Intermédio
Sobre três alegorias da História 119

Capitular)
Do l a d o ^ s escritores: os tempos do romance 127

Capítulo 4
Do lado dos historiadores: os avatares do
regime moderno de historicidade 175

Conclusão
O nome e O conceito de história 221

Referências 233

índice remissivo 245


CAPÍTULO 3

Do lado dos escritores:


os tempos do romance

A crença em história e a crença em literatura cresceram juntas.


A história moderna e a literatura moderna, sob a forma do roman-
ce, triunfam juntas. A ponto de fazer esquecer que a história do
romance começou bem mais cedo, assim como a da história, aliás,
que começou bem antes da formulação do conceito moderno de
história. Revelar o mundo, para os grandes romancistas do século
XIX, perceber seu caráter inédito, é justamente oferecer à leitura
um mundo dominado pela história, atravessado, en^hado^or ela,
A começar por uma Europa convulsionada pelos anos da Revolu-
ção e do Império. O século XIX, século da história e do romance,
viu então se impor essa dupla evidência: a da história, concebida
como processo, levada por um tempo ator, e vivida em modo de
(
aceleração; a do romance, convocado a revelar esse mundo novo.
Existem, portanto, dois "lados": aquele dos historiadores e da his-
tória tomando-se disciplina; e aquele dos escritores e do romance]
impondo-se como o gênero fundamental. Reconhecido desde há
muito tempo e amplamente explorado pela crítica literária, o lado
dos escritores vai, para tomar duas referências cômodas, de Balzac
a Sartre.
Mas uma tal evidência não se impôs de um dia para o outro.
Entre a Revolução e a Restauração, podemos seguir seu percurso.
Por várias vezes ainda, Chateaubriand tentou a via da epopeia; Balzac
só encontrou definitivamente seu tema no dia em que reconheceu
que devia escrever uma história da sociedade francesa. Walter Scott_^
pôde ser evocado tanto por Balzac quanto por Augustin Thierry,

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CRER E M HISTÓRIA

que reconheceu igualmente uma dívida em relação aos Mártires


1 (Martyrs) de Chateaubriand, enquanto que para Ranke, Walter Scott
li representava o que deveria, mais do que tudo, ser evitado. Em suma,
ao longo desse período, crença em História e crença em literatura
(especialmente sob a forma do romance) avançaram juntas, enquanto
se impunha uma nova história, levada por um tempo progressivo.
Atento às relações entre o romance e a História, Milan Kun-
dera assinala que o romancista não é "o criado dos historiadores".^'*''
'Não seria, aliás, fazer-se o criado de um criado, pois o historiador
por longo tempo esteve ele próprio no encalço do principe ou do
político, do filósofo e mesmo do poeta? Que se pense em Heródoto
perante Homero ou às discussões, já mais triviais, sobre poesia e his-
tória, encontradas no Capítulo 2. Além disso, o escritor, pelo menos
aquele que assume a tarefa de revelar o mundo, se ele caminha, é à
frente. E não se trata aí de vanguarda, mas disso apenas: o historiador
vem depois, não só cronologicamente, mas cognitivamente. Isso é
verdade para todos os praticantes das ciências humanas e sociais, de
quem se espera que reúnam, tanto quanto possam, as provas daquilo
que avançam. Eles são inevitavelmente como a coruja de Minerva,
que alça seu voo ao anoitecer: a abordagem reflexiva circunscreve
seu domínio. Enquanto o escritor pode se emancipar dela para cap-
tar aquilo para o que ainda não existem palavras e que, Hvro após
livro, ele vai tentar abordar com suas próprias palavras. Como um
trapezista sem rede de proteção.
Regime moderno de historicidade e romance andam, por
\^isso, de mãos dadas? Sim e não: é o que tentaremos compreender
neste capítulo. Sim, pois tudo começa por essa experiência irre-
futável e comum das sociedades europeias tomadas por um novo
tempo. E não, pois a literatura concentrar-se-á de preferência nas
íissura^ do regime moderno, em captar seus fracassos, apreender a
heterogeneidade das temporalidades em curso, para daí extrair um
dispositivo dramático e a ocasião de um questionamento da ordem
do mundo. Isso enquanto, na França, a história dos anos 1820, a
dos doutrinários e liberais, estará mais voltada e sendo levada por

'""^KUNDERA, 2011, p. 990.

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D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

uma teleologia do progresso, cuja encarnação política é a nação.


Para Milan Kundera, "o tempo de Balzac não conhece mais a feliz
ociosidade de Cervantes ou de Diderot. Ele embarcou no trem a
que se chama História. E fácil subir nele, difícil descer".^''^ A escrita
balzaquiana parte justamente dessa experiência da aceleração da
História: "Antigamente seu ritmo lento a tornava quase invisível,
depois ela acelerou o passo e subitamente tudo está mudando ao
redor dos homens durante suas v i d a s " . D e p o i s de Balzac, seu
passo se acelerou ainda mais e nós veremos como Chateaubriand,
Tolstói, depoig Musil e Sartre embarcaram no trem da História; ou
melhor, como procuraram, alternadamente, subir e descer dele.
Depois três romancistas contemporâneos, W. G. Sebald, Olivier
Rolin e Cormac McCarthy nos ajudarão a identificar o que está
dos dois lados, da literatura e da história, hoje.

O historiador dos costumes


Segue-se para o a u t o ^ e A comédia humana uma dupla tarefa:
retraçar, em primeiro lugar^as trajetórias aceleradas ou rompidas de
personagens que sobem muito alto ou caem muito embaixo, que sur-
gem subitamente na cena mundana para desaparecerem igualmente
rápido. Os novos-ricos — os Hulot, Camusot, Popinot, Nucingen
- , as grandes damas no zénite que desaparecem e depois renascem,
tal como a duquesa de Maufrigneuse, reaparecendo depois em 1830
como princesa de Cadignan. Há também os anacrônicos: aqueles
que se obstinam, apesar de tudo, a permanecer os mesmos, e que,
no entanto, recuaram vários séculos em alguns anos, tal como o
marquês^de Esgrignon em O gabinete das antiguidades {Le Cabinet des
Antiques). Ao mesmo tempo lamentáveis e ridículos, esses últimos
merecem, no entanto, respeito^^
Estar atento, em segundo Itígar, ao ^ a n o de fundo", que é
preciso apreender, porque tampouco ele vai durarTEETtramos, nota
ainda Kundera, na "época das descrições". Há, por exemplo, esses

2"KUNDERA, 2011, 643. Ver M O Z E T ; PETITIER, 2001.


^''»KUNDERA, Les Testaments trahis, 2011, p. 852, 953.

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CRER EM HISTÓRIA

salões de província, que são arcaísmos desgastados, mais ou menos


remendados, reconstituídos de uma época passada. Interiores, casas,
ruas, maneiras de ser, de falar, de se vestir figuram como vestígios
obsoletos, que logo desaparecerão. São todos anacronismos, sobre os
quais se detém longamente o romancista, apreciador dessa justaposição
ou desse emaranhado de temporalidades diferentes. Ao contrário do
historiador: mais o século avança, mais firmemente esse último ins-
creverá no frontão de seu templo: "Oanacronismo, eis aí o pecado".
Trabalhada pela história, a sociedade balzaquiana é toda atravessada de
tempos desarmônicos que se friccionam e se entrechocam, às vezes
tragicamente. Ante aos arcaísmos, existem as novidades, o gosto do
dia, os turbilhões da moda, as fortunas que se fazem e se desfazem.
O tempo de A comédia humana não é linear, mas fragmentado
em episódios, descontínuo. Sobe e desce do trem, e o viajante se
faz observador do simultâneo do não-simultâneo, dessas tempora-
lidades desarmônicas, desses personagens que dividem os mesmos
esçaços^jnas não vivem no mesrno tempo. Apresentando-se, no
Prefacio de 1842, como "o narrador dos dramas da vida íntima"
e "o arqueólogo do mobiliário social", Balzac queria escrever essa
história dos costumes que os historiadores jamais souberam conce-
ber, eles que se atêm a "secas e repulsivas nomenclaturas dos fatos".
"Assim retratada, a sociedade devia trazer consigo a razão de seu
movimento". Vem, enfim, a frase sempre citada: "A Sociedade
francesa ia ser o historiador. Eu devia ser apenas o escrevente",^'"
que se poderia glosar assim: eu não sou o escriba da Fortuna, como
Políbio queria ser, mas o da Sociedade; é ela que fala, e ela é o real.
Historiador dos costumes e do presente, eis o título que reivindico.
O Coronel Chabert {Le Colonel Chaberf) leva ainda mais longe
o conflito das temporahdades, quando o personagem homônimo
anuncia ao procurador DerviUe, que finalmente o recebe: eu sou
o coronel Chabert, "aquele que morreu em Eylau".^^° Ele se tor-
nou um anacronismo vivo, um sobrevivente, um fantasma, um

'"'BALZAC, 1951, p. 7.
Colonel Chabert, II, 1952, p. 1027. Publicado primeiro em 1832, Balzac o revisou
em 1835 e 1844. Ver JoëUe Gleize (2001, p. 223-235).

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D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

morío-testemunho. Ele não deveria estar lá, não deveria ter voltado,
pois, tal como descobre, não há mais lugar para ele na sociedade da
Restauração. Entre 1807 e 1818, data da sua reaparição, o mundo
mudou em tudo. A trajetória de sua vida o leva do anonimato do
início ao do final: do hospital que o viu nascer ao hospício de Bi-
cêtre, onde ele não é mais do que Jacinto. Entre os dois, ele vive
uma rápida ascensão - o nome, o título, o graü, o dinheiro - depois,
enquanto se apaga o sol napoleónico, ele perde tudo, até seu nome;
enquanto sua esposa, Rosina, também ela saída do mais baixo, passou
do "Palais-Royal" ao Faubourg Saint-Germain. Ela só tinha um
nome, ganha seu primeiro sobrenome, depois um segundo, o de
condessa Ferraud, que, de novo, é reconhecido e promete ser cada
vez mais bem-visto. Tampouco ela pode admitir o surgimento de
seu passado em seu presente, além disso aberto a esperanças ainda
maiores. Quando o infeliz Chabert toma plena consciência, ele
só pode constatar: "Fui enterrado sob os mortos, mas agora estou
enterrado sob os vivos [...], sob a sociedade inteira que quer me
desmoralizar".^^' Vem, enfim, depois de uma primeira cena que
lhe remove suas últimas dúvidas sobre os sentimentos reais de sua
mulher com relação a ele, sua resolução final de "continuar mor-
to".^^^ Impulsionado pela História, o coronel, barão do Império, é
também destruído por ela. Ela o acolheu e o abandonou. A ele não
é permitido reembarcar no trem do tempo.
Com O gabinete das antiguidades, publicado em 1839, Balzac
joga igualmente com descompassos dos tempos e efeitos do^ir^l-
tâneo do não-simultâneo. Porém, remonta ainda mais no tempo,
colocando frente a fi-ente os destroços do Antigo Regime e os
novos-ncos da nova sociedade. A cena se passa "numa das menos
importantes Prefeituras da França", no palacete D'Esgrignon, onde
se reúnem alguns raros sobreviventes dessa "verdadeira nobreza de
província", que nunca compreendeu que a feudalidade há muito
já não existia. Donde o "epíteto" de Gabinete das Antiguidades
atribuído a "esse pequeno Faubourg Saint-Germain da província"

'^^BALZAC, II, 1952, p. 1103.


^=^BALZAC, II, 1952, p. 1139.

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CRER EM HISTÓRIA

pelos que dele estavam excluídos.^^^ Ridicularizam ainda mais os


que bem gostariam de ser ali admitidos! Senhorita d'Esgrignon, a
filha do velho marquês, aparece a Emílio Blondet, de quem Balzac
fez o narrador da história, como "o gênio da feudaHdade".^®'*
O drama se desenrola em torno do jovem conde, o filho do
marquês, que é criado em defasagem completa com relação ao mun-
do parisiense onde ele ambiciona brilhar o mais rápido. Inculcou-se-
Ihe "o dogma da supremacia". Exceto o rei, todos os senhores são
seus iguais, e abaixo da nobreza, só existem os descendentes dos
Gauleses vencidos, ele ouviu muitas vezes.^^^ Balzac não hesita em
recolocar os francos contra os gauleses. Como o declara a duquesa
de Maufrigneuse, na ocasião de uma breve aparição na casa dos
Esgrignon, no final do romance: "Vocês estão loucos, então, aqui?
Vocês querem continuar no século quinze quando nós estamos
no dezenove? [...] Não existe mais nobreza, só aristocracia".^^®
O romance se conclui em 1830. Quando Carlos X parte para o
exílio, o marquês vai ao seu encontro e se junta por alguns instan-
tes ao "cortejo da monarquia vencida". Ele morre pouco depois.
"Os gauleses triunfam", foi sua última palavra. Quanto à senhorita
d'Esgrignon, ela aparece a Blondet, que a encontra na cidade pouco
depois, "como Mário nas ruínas de Cartago".^"
Da sua parte, Balzac, que reconhece o poder da História moder-
na, vê-se, depois de 1830, como um descrente: "Eu não partilho em
nada a crença em um progresso indefinido, quanto às Sociedades",
por isso "escrevo ao luar de duas Verdades eternas: a Religião e a
Monarquia".^^^ Desse duplo movimento de reconhecimento e de
recusa surge sua atenção às discordâncias dos tempos, às distâncias,
às discronias, enfim ao simultâneo do não-simultâneo. Poderosa
força cômica ou trágica, depende, da Comédia humana.

^^^BALZAC, Le Cabinet des Antiques, IV, 1952, p. 343.


BALZAC, IV, 1952, p. 342.
^^^BALZAC, IV, 1952, p. 354.
2^<>BALZAC, IV, 1952, p. 459.
'"BALZAC, IV, 1952, p. 463.
'^»BALZAC, I, 1951, p. 9.

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D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

O nadador entre duas margens


Antes de Balzac, houve Chateaubriand. Esse truísmo pretende
simplesmente lembrar que um primeiro encontro literário com a
História interveio com Chateaubriand. Nascido em 1799, Balzac
vem depois da Revolução, enquanto que, nascido em 1768, Cha-
teaubriand tem 20 anos em 1789: tendo a atravessado, ele pode
testemunhar (segundo a etimologia da palavra latina superstes, que,
lembremos, significa "testemunho"). Balzac faz parte dos jovens a
quem justamente Chateaubriand queria se dirigir no Prefacio Geral
de suas Obras completas: "Vinte e cinco anos se passaram desde o
início do século [...], os homens de 25 anos que vão tomar os nos-
sos lugares [...] não saíram das entranhas da antiga monarquia".^®'
Talvez, quando se interroga sobre as relações entre literatura e
história, não se pense imediatamente em Chateaubriand, pois ele
não assumiu nem ilustrou a grande via do romance. Porém, ele se
viu por longo tempo como historiador, antes de renunciar a sê-lo.
A escolha das letras fez desse cadete bretão, vencido da Revolução,
um escritor mais do que um marinheiro, ou seja, um homem que
iria viver de literatura, e ela não lhe deixou outra escolha senão
a de inventar uma forma inédita de escrita para consignar o que
primeiro se havia intitulado Memórias da minha vida. Em 1811,
ele quis ainda realizar dois projetos: uma história da França e suas
Memórias. Mas uma tal escolha implicava o abandono prévio da
"literatura": "E preciso deixar a lira com a juventude", ele confessa
em uma carta. O fracasso dos Mártires (Martyrs), que ele concebera
como uma grande epopeia moderna, acabou por convencê-lo de
que o gêHftero épico não era mais possível. É a História que deve
vir coroar suas Obras completas. Com as Memórias, ele quer prestar
contas de si a si mesmo. Mas a História da França não verá finalmente
o dia, e as Memórias da minha vida tomar-se-ão, depois de 1830,.
Memórias de além-túmulo.

CHATEAUBRIAND, 2003-2004, v. II, p. 1535.


"'^BERCHET in CHATEAUBRIAND, 2003-2004, Prefacio, p. XXI; Berchet,
2012, p. 528-531.

133
CRER EM HISTÓRIA

Para Chateaubriand, o encontro com a História foi tão pertur-


bador que ele começou por fugir! Donde o episódio de sua viagem
à América, e de sua busca do Selvagem. Mas a História não tarda a
se impor quando, exilado em Londres, ele se lança em seu primeiro
livro, Ensaio histórico sobre as revoluções antigas e modernas (Essai historique
sur les révolutions anciennes et modernes), para compreender o que está
em cursoíHe ainda crê então no paralelo e no grande modelo da
\histafta magistra vitae: o precedente esclarece. O livro permanecerá,
fe entanto, inacabado. E ainda essa grande referência clássica que ele
cita, em 1807, logo após o assassinato do duque de Enghien, num
artigo publicado no Mercure: "O historiador parece encarregado da
vingança dos povos. E em vão que Nero prospera. Tácito já nasceu
no I m p é r i o " . D e resto, o historiador marca o encontro: para a
posteridade, para o futuro. Já o historiador de Luciano de Samósata
devia escrever para o futuro, mas sem o dizer abertamente.^®^ Mas,
quando Chateaubriand retoma esse texto em suas Memórias, Napoleão
está morto, e "Tácito" tem uma cabeça grisalha.
C o m os quatro volumes de seus Estudos históricos {Etudes histori-
ques), publicados em 1831, ele coloca um ponto final na sua carreira
de historiador. Redigidos para a imprensa enquanto se desmorona
a Restauração, ele se sente mais do que nunca defasado ou "deslo-
^ cado": "Os Capet são banidos, e eu pubUco uma história na qual
. os Capet ocupam oito séculos".^®^ No prefacio, ele recapitula, num
modo mais seguro e distanciado, essas convulsões e esse ataque do
século pela História, e endossa igualmente o fato de que não será o
grande historiador que imaginara ser. Esse longo texto é um adeus à
história, e é também um amplo panorama historiográfico, o primeiro
do gênero: "os tempos em que viveitios são tão convincentemente
históricos que imprimem seu selo sobre todos os gêneros de trabalho
[...] Tudo assume hoje a forma da história, polêmica, teatro, roman-
ce, poesia". Quanto ã história propriamente dita, convém escrevê-la
de outra forma: "Uma grande revolução se realizou, uma revolução

""CHATEAUBRIAND, 2003-2004, livro XVI, cap. X.


"^"Ver supra, Capítulo 2, p. 115-116.
'"CHATEAUBRIAND, 1842, t. I, p. 2.

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D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

maior se prepara: a França deve recompor seus anais para colocá-los


em contato com os progressos da inteligência".^®'' Aí está o próprio
programa da nova escola histórica. Que não pode ser o seu.
Por certo, ele escreve: "Eu fiz história e eu podia escrevê-la",
mas finalmente ele não lhe dedica seus lazeres após seu recolhimento
de 1830. Por duas razões ao menos. A primeira é que o terreno se
encontra ocupado desde então pela jovem geração de historiadores
liberais, esses mesmos que, na claridade das manhãs dejulho, pu-
seram-se a "recompor os anais segundo os progressos da inteligên-
cia". Para eles, não há dúvida: o regime moderno de historicidade
se tomou uma evidência, um princípio de inteligibilidade de toda
a história da França. Enquanto Chateaubriand, se ele percebe, e
mesmo melhor do que muitos, a revolução concretizada e a que se
prepara, ele não pode se esquecer de onde vem: ele não renuncia
ã sua fidelidade out of date ao velho Carlos X, ele guarda algo do
antigo regime de historicidade, pois, ainda uma vez, sua escrita é esse
contínuo movimento de um a outro, do regime antigo ao regime
moderno.^''® Os primeiros veem em 1830 a realização da história, e
mesmo seu quase fim, enquanto que o segundo a vive como o fim
do fim. Um pouco como o velho marquês d'Esgrignon, mas sem
crer, um instante sequer, que os gauleses triunfam!
E m 1832, as Memórias de [sua] vida tornam-se Memórias de
além-túmulo. Com esses milhares de páginas, de agora em diante
escritas "sentado em seu caixão", ele não visa mais do que a "um
futuro além do túmulo" (Prefacio testamentário): "Eu representaria
na minha pessoa [...] a epopeia do meu tempo, sobretudo porque
vi acabar e começar um mundo [...] Encontrei-me entre dois sé-
culos como na^níluência de dois rios...".^^^ Ele recorre também
a uma outra expressão eloquente: essa será, ele avalia, "a história
levada de garupa pelo romance". Não existe trem do tempo ou da
História, mas "trem do mundo", ainda a cavalo, e os incessantes
deslocamentos de um eterno viajante.

CHATEAUBRIAND, 1842, p. 21-22.


HARTOG, 2012, p. 124-126.
CHATEAUBRIAND, 2003-2004, v. 1, p. 1542. Préface testamentaire.

135
CRER EM HISTÓRIA

Para o historiador moderno, a data discrimina o antes do depois;


ela é uma referência em uma evolução contínua, marca as etapas
de um progresso, e mesmo pontua uma perspectiva teleológica,
enquanto que o memorialista evoca as datas, e mesmo as multiplica
para seus efeitos de reverberação. Ele opera incessantemente curtos-
circuitos entre o passado e o presente. O primeiro se inscreve no
tempo chronos, o segundo, no tempo kairos. Um repara os rasgos do
tempo e procura reatar a continuidade, o outro dá lugar a essa outra
grande modalidade de relação com o tempo que é o simultâneo do
lüo-simi^tâneo. Chateaubriand inscreve essa experiência no cerne
de sua escrita e se faz cronógrafo, num sentido novo: seu objetivo
não é, como o historiador, estabelecer sincronismos, mas fazer surgir
anacronismos. Ele escreve o tempo, na realidade, "a anatomia",
mas não a frio sobre uma mesa de dissecação. O narrador fala do
além-túmulo, ele luta contra o tempo, ele ocupa, simultaneamente,
todas as posições, indo do passado ao presente e ao futuro, evocan-
do-os, opondo-os, esclarecendo-os e se convertendo a si mesmo,
página após página, num verdadeiro lugar de memória ambulante.
Julho de 1830 assume, sob vários aspectos, o papel de mo-
mento discriminante. Para os liberais, essa revolução marca o fruto
do "trabalho de séculos transcorridos": a França chega, enfim, ao
porto da mon^ar^[uia£onstit^^ e 1789 se completa. Do mesmo
modo, para Michelet (nascido em 1798), "o relâmpago de julho"
é esse instante que lhe permite abraçar com o olhar todo o curso
da história da França e de se comprometer a reatar "o fio da tradi-
ção, que, em todas as coisas, foi r o m p i d o " . E n q u a n t o que, para
Chateaubriand, essas jornadas marcam o início do velório de uma
monarquia expirante, cujos dois tempos fortes serão suas viagens
crepusculares a Praga, por uma causa a que ele continua apegado
sem mais poder acreditar nela, justamente porque ele acredita que
a História é esse movimento que não pode nem voltar para trás
nem se deter. Da mesma maneira, 1830 significa também uma
pausa para Balzac: "seu recuo para uma posição legitimista (a par-
tir de opiniões inicialmente liberais) se compreende como o luto

2^'MICHELET, 1974, p. 31-42.

136
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

de uma concepção voluntarista da História" e um adeus dado à


grande História.^^^
Chateaubriand reconhece toda a força do regime moderno de
historicidade e elege domicílio (sempre de maneira provisória) no
meio: entre o antigo e o novo regime de historicidade. Assim, ele
descobre a impossibiHdade de se tomar cóffípletamente historiador
e escolhe permanecer esse nadador entre duas margens ou na con-
fluência de dois rios do tempo, postura que torna possível, e mesmo
necessária, a escrita de Memória de além-túmulo, pela intervenção
dessa forma única onde, os tempos se interpenetrando, busca-se o
simultâneo do não-simultâneo.

" O oceano da história"


Chateaubriand recorria à imagem do rio correndo entre duas
margens. Com Tolstói, a história ganhou em potência, em extensão
e em enigma: ela se tomou um "qcejmp JirigindQ-se por sobressaltos
de uma de ^u^s margens, àjiutra!'. Tal é a imagem que organiza o
epílogo de Guerra e paz. Mas, em 1820, o oceano "havia recobrado
suas margens". "Ele parecia apaziguado, mas as forças misteriosas
que movem a humanidade (misteriosas porque nós ignoramos as leis
de seu movimento) continuam a agir".^®' Igualmente oceânico, o
livro é o romance verídico da História. Talvez a história seja como\
um romance, mas, sobretudo, só o romance é capaz de aproximar a
realidade da História, pois, por sua atenção aos detalhes, às incertezas,
ao aleatório, ele pode finalmente produzir um análogo de sua ines^
gotável complexidade. Enquanto os historiadores, atrás dos oficiais
de Estado, a deixam passar. Nunca uma batalha acontece segundo
os planos concebidos previamente. A guerra tem pouco a ver com
o jogo de xadrez, assim como explica o principe André a seu amigo
Pedro Bezukov: a comparação só é boa para os generais de gabinete,
que percorrem os campos de batalha sem nada ver. Aliás, quando
Pedro se encontra por acaso no epicentro da batalha de Borodino,

M O Z E T ; PETITIER, 2001, p. 10.


^-^'TOLSTOI, 1952, p. 1485.

137
CRER E M HISTÓRIA

ele compreende ainda menos do que Fabrício em Waterloo o que


está se passando ao seu redor. Com seu chapéu branco e seu traje
civil, ele é apenas um turista, que veio para ver e não vê nada, a não
ser as idas e vindas dos soldados apressados que ele se esforça, como
homem cortês que é, em atrapalhar o menos possível.^^° Para com-
preender plenamente um evento, combate ou outro, seria preciso,
I na realidade, poder escrever "a história de todos os indivíduos, sem
exceção" que participaram, e não somente a de "alguns personagens
isolados". Na falta do que, recorre-se a alguma "força compelindo
j os homens a tender suas atividades a um fim único"^^': o espírito de
conquista para os franceses, o sentimento patriótico para os russos
ou, sob uma forma maisfjbstrata amda/^ o poder.
Tolstói não reivindica uma vista do alto, essa visão de conjun-
I to procurada pelos historiadores desde Políbio, pelo menos: visão
divina ou ponto de vista da Fortuna. Ele não busca ver o conjunto,
mas ver tudo. Ele não quer ser Napoleão que, do alto de um cimo,
crê abraçar o campo de batalha, nem o oficial do Estado-Maior que
galopa ao longo das Hnhas, mas ele queria poder seguir cada passo
de cada soldado. Seu problema não é a distância impossível a cobrir
entre o particular e o geral, mas o de uma impossível totalização. "A
marcha da humanidade, determinada por uma quantidade incontável
de vontades individuais, escreve, é um movimento contínuo. O co-
nhecimento de suas leis é o objetivo da história. Mas para estabelecer
as leis desse movimento contínuo, soma de todas a vontades humanas,
a inteligência admite arbitrariamente unidades descontínuas". Ou ela
"escolhe uma série de acontecimentos contínuos, em detrimento das
outras séries, embora não haja e nem possa haver início de nenhum
acontecimento, e sempre um acontecimento decorre do outro sem
descontinuidade"; ou ela decide "considerar os atos de um só homem,
czar ou chefe do exército, como a soma das vontades de todos".^^^

""TOLSTÓI, 1952, p. 1033.


" ' T O L S T Ó I , 1952, p. 1568.
" ' T O L S T Ó I , 1952, p. 1070. Hugo, em Os Miseráveis, escrevia: "Eis, confusamente,
o que acontecia no ano 1817, hoje esquecido. A história negligencia quase todas
essas particularidades, e não poderia fazer de outro modo; o infinito a invadiria. N o

138
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

Em princípio, a história poderia ser cognoscível e, portanto,


praticável, mas nossa ignorância das leis de seu movimento faz com
que ela permaneça "misteriosa". Uma última maneira de explorar
esse mesmo enigma é a que leva a colocar o problema em termos de
fatahdade ou de liberdade na ação de um homem ou de vários: tal
é o objeto do Epílogo e do Apêndice de Guerra epaz. Examinando
os fatos e os gestos dos homens que acreditatam dirigir os aconte-
cimentos de 1805, 1807 e, sobretudo, 1812, Tolstói reconheceu a
ilustração de duas leis: a da "fatalidade, que, segundo [sua] convicção,
rege a história" e "esta lei psicológica que compele o homem que
realiza o ato menos livre a imaginar, mais tarde, toda uma série de
deduções que lhe permitem demonstrar a si mesmo que é livre".^^^
Para agir, eu preciso acreditar que a decisão de fazer, ou não fazer, e
minha. Essas duas leis, de alcances diferentes, permitem reconheceij
o caráter inelutável da história assim como a propensão (inevitável)
a crer que os homens, certos homens, a fazem, ou, pelo menos,
contribuem para fazê-la.
Em seu ensaio sobre Tolstói e a história, o filósofo e historiador
Isaiah Berhn introduziu a distinção, que se tomou famosa, entre
a raposa e o ouriço, recuperada do poeta grego Arquíloco: "Se a
raposa sabe muitas coisas, o ouriço sabe uma só, mas grande". Entre
os escritores e pensadores, os "ouriços" são, por exemplo, Platão,
Dante ou Hegel, e as raposas, Heródoto, Montaigne ou Balzac.
Aos primeiros, os sistemas e a busca da unidade, aos segundos,
a variedade e o gosto da multiplicidade. Ora, Tolstói seria um e
outro: naturalmente raposa, ele teria buscado tender a o u r i ç o . E
assim que Berhn entende sua filosofia da história, oscilando entre
a atenção aos detalhes mais tênues e a convicção de que existem

entanto, esses pormenores, que se dizem erroneamente pequenos - não existem


nem pequenos fatos na humanidade, nem pequenas folhas na vegetação — são úteis.
É da fisionomia dos anos que se compõe a figura dos séculos". Agradeço a Robert
Morissey por ter me assinalado essa aproximação.
' " T O L S T Ó I , 1952, p. 1620, ver supra, Introdução, p. 117-118.
""Isaiah Berlin, The Hedgehog and the Fox, An essay on Tolstoi's View ofHistory, London,
Weidenfel & Nicholson, 1953, p. 2-4. Ver também Pietro Citati (1987).

139
CRER E M HISTÓRIA

leis da história, mas que elas nos escapam. Quer seja nas passagens
narrativas ou nos desenvolvimentos reflexivos, o romance coloca e
recoloca incessantemente essa questão. Até no Epílogo, que justapõe
narração e reflexão.
Para dizê-lo de outro modo, a raposa, tal como Balzac, ou
Chateaubriand, é aquela que, no mundo histórico que ela procura
apreender, está particularmente atraída pelo simultâneo do não-
simultâneo ou preocupada, e mesmo ansiosa por lhe abrir espaço,
e mesmo por ainda lhe abrir um espaço. E nesse sentido, o ro-
mance se encarrega dessa dimensão da historicidade que a história
dos historiadores, atada ao regime moderno de historicidade, não
saberia assumir, ela que embarcou no trem do tempo. Desse novo
observatório, ela descobre uma paisagem inédita a descrever aos
outros viajantes, uma nova história a escrever. Tolstói dá a impres-
são de querer estar ao mesmo tempo no trem e fora dele. Mas seu
problema é mais complicado que o de Balzac. Donde a variedade
do romance que é ao mesmo tempo uma lição de história, uma
Hção sobre a lição e, talvez também, um fracasso de qualquer Ução.
De fato, bem no final do livro, o jovem Nicolau, filho do
príncipe André, tem um pesadelo que é também um sonho de gló-
ria. Ele se vê com um capacete "como desenhado nas estampas de
Plutarco". A visão de seu tio Pedro, que primeiro o acompanhava,
é substituída pela de seu pai morto que o "acaricia" e "o aprova".
"E eu peço a Deus apenas uma coisa, diz então o menino, que me
aconteça o que aconteceu com os grandes homens de Plutarco, e eu
faria como eles. Eu faria melhor do que eles. Todo mundo saberá,
todo mundo me amará, todo o mundo me admirará".^^^ Se há, no
entanto, uma forma de história denunciada por Tolstói, é aquela
(de Plutarco, a que quer e faz crer que os grandes homens fazem a
história. Ora, o jovem garoto está pronto a reativar o modelo e a
restabelecer o que eram, no início do romance, os sonhos de seu
pai, grande admirador de Napoleão. Tudo poderia então recomeçar,
com as mesmas ilusões, e o oceano sair, de novo, de suas margens.

" ^ t o l s t ó i , 1952, p. 1556.

140
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

"Que história estranha a História"


Se, com o século XIX, a História bem se tornou para todos
uma evidência, os historiadores e os escritores não se apropriam
dela da mesma maneira. Nesse jogo por e contra o, regime mo-
derno de historicidade, os primeiros estão mais do lado do "por"
(com o tempo como progresso), ao menos na primeira metade do
século, enquanto os segundos, que não são necessariamente contra,
mostram-se mais requisitados pelo descontínuo, mais atentos ao
anacronismo e às temporalidades desarmônicas, mais sensíveis aos
reflexos do simultâneo do não-simultâneo e aos dramas dos quais
ele é o prenúncio. Como se existisse uma espécie de divisão, pelo
menos até que Tolstói a faça estilhaçar.
Em seguida, com a guerra de 1914 e suas sequências, são prin-
cipalmente as imagens de destruição que se impõem. A famosa frase
de Valéry: "Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais"
exprime uma constatação e uma inquietude partilhadas. Decorre
então uma dúvida com relação à história dos historiadores, essa
justamente da qual usaram e abusaram os políticos, essa das lições da
História, mas não um questionamento do conceito de história em
si. Valéry queria vê-la entrar, enfim, na era do rigor e da precisão e
deixar o mundo da literatura; pior, de uma literatura que se ignora.
"Esse massacre absurdo e gigantesco, resume bem Kundera,
inaugurou na Europa uma nova época onde a História, ávida e
autoritária, surgiu diante de um homem e se apossou dele. E de
fora que, doravante, o homem será determinado em primeiro
lugar. Mais do que nunca, o romance se faz atento a essa m-
fluência da História^ tão ^derosamente explorada pela trilogia dos
Sonâmbulos (Somnambules) do vienense Hermann Broch. Publicado
em 1931, a obra segue a marcha da História entre 1888 e 1918,
onde ele reconhece a "degradação dos valores". Aos tempos mo-
dernos, que queriam se ver como o avanço da Razão, ele opõe
o diagnóstico de uma ascensão progressiva do irracional, da qual
1918 marca a fermata.

K U N D E R A , 2011, p. 1173.

141
CRER E M HISTÓRIA

Sobre essas transformações, o austríaco Robert Musil, que


combateu no fronte italiano, refletiu longa e intensamente. Escrito
do início dos anos 1920 até meados dos anos 1930, e permane-
cendo inacabado, O Homem {L'Homme sans qualités)
não descreve a catástrofe em si, mas se inicia antes da dissolução da
Áustria-Hungria, nomeada Cacânia, justo um ano antes, em 1913,
mas este antes é descrito como se um abismo o separasse do narra-
dor. ^^^ Depois de um minucioso e técnico boletim meteorológico,
o primeiro parágrafo do romance chega a essa irônica conclusão:
"Dito de outra forma [...] era um belo dia de agosto de 1913".
Para preparar a celebração do septuagésimo ano do reinado
do imperador Francisco José, que deve acontecer em dezembro
de 1918, instala-se um Comitê Patriótico. A questão é tão séria
que os alemães já preparam, para junho de 1918, o trigésimo ani-
versário do reinado de Guilherme II. Igualmente, primeira réphca
do lado da Cacânia: fazer de todo o ano de 1918 o ano jubilar do
Imperador da Paz! Esse Comitê preparatório, que se nomeia, a
partir então, Ação Paralela, põe-se a trabalhar, quer dizer, põe-se
à busca de uma grande idéia. Tudo é ensaiado, discutido, mas nada
avança e a derrota ameaça. Ulrich, que é o seu secretário, acaba
por propor "constituir o começo de um inventário espiritual ge-
ral! Nós devemos fazer mais ou menos o que seria necessário se o
ano de 1918 devesse ser o do Juízo Final, aquele onde o espírito
antigo se apagaria cedendo lugar a um espírito superior".^^® Pavor,
obviamente, da maior parte dos membros! As reuniões do comitê,

"'As duas primeiras partes do Homem sem qualidades são publicadas em 1930 e uma sequ-
ência, em 1932. Musil ainda trabalhava seu romance quando de sua morte súbita, em
1942, ocasião em que estava em exílio na Suíça. A primeira grande edição foi publicada
na Alemanha somente em 1952, incluindo rascunhos e esforçando-se para dar uma ideia
de conjunto do que poderia ter sido o romance. Ela foi criticada, outras se seguiram. E,
de todo modo, a partir dela que se desenvolveu a notoriedade crescente de Musil. Na
França, a magnífica tradução de Philippe Jaccottet (1957) contribuiu bastante para seu
sucesso. Sobre Musil, ver os numerosos trabalhos de Jacques Bouveresse, em particular,
a coletânea de dez estudos, La Voix de l'âme et les chemins de l'esprit (2001), assim como
as páginas que são dedicadas a ele por Maurice Blanchot em Le Livre à venir (1959).
"«MUSIL, 1995, I, p. 751.

142
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

com as discussões que decorrem, as sugestões que ele examina, são,


para Musil, o meio de se entregar a essa anatomia severa da época,
manejando o bisturi da ironia.
O tempo já se deslocava, por "incrível que possa parecer àqueles
que não viveram essa época", e mesmo, acrescenta Musil, com a
"rapidez de um camelo". Mas "não se sabia para onde ele ia".^^'
Algumas páginas adiante, o tempo se tomou urh "trem", a bordo do
qual se embarca como em uma casa móvel, sem que jamais se saiba
para onde "vão" os trilhos. "E além disso tudo, ainda se gostaria, se
possível, de ser uma das forças que determinam o curso do tempo".
Fazer a história, portanto. Antes, quando a necessidade de descer
do trem vos invadia, precisa Musil, "por nostalgia de estar parado",
"de permanecer imóvel", ou de "voltar ao ponto que precedia a má
bifurcação", bastava "abandonar o trem do tempo!". E, "quando o
império de Áustria existia ainda", "entrar num trem curto, e voltar
ã sua pátria".^®® Por contraste, a Alemanha é "o primeiro país onde
a velha civiHzação caíra sob as rodas dos Novos Tempos".^®^
Ulrich, o matemático, busca analisar o que ele percebe como
uma mudança de época. Mudança que está em curso e, portanto,
ainda pouco clara. Mas tudo se passa, apesar de tudo, como se o
jovem homem a considerasse já retrospectivamente: já sabendo, na
verdade, o que teria sido o Juízo Final de 1918. Quais são os traços
dessa mutação? O abandono da precisão, o recurso a conceitos
indistintos, a voga da intuição, o relativismo. Mas aos olhos de seu
amigo, Walter, Ulrich, crítico que é, não é menos representativo
dessa nova época, em que ele é justamente "o homem sem qua-
Hdades". Não que ele nãQ^enha quahdades, bem ao contrário, a
começar pela inteligência, mas "elas não lhe pertencem" realmen-
te. "Quando ele está com raiva, algo ri dentro de si. Quando está
triste, ele prepara alguma brincadeira". "Para ele, nada é estável".
Donde essa conclusão de Walter: "Ele havia compreendido que
Ulrich se reduzia a essa espécie de dissolução interior que é comum

'™MUSIL, 1995, p. 16.


'«»MUSIL, 1995, p. 40.
MUSIL, 1995, p. 646.

143
CRER E M HISTÓRIA

a todos os fenômenos contemporâneos".^®^ Sempre em busca de


uma ideia decisiva, o Comitê de organização está constantemente
confrontado com essa "dissolução" geral, na qual ele se perde sem
jamais avançar de fato.
Quando de uma recepção, estão reunidos, no salão da mentora
do comitê, jovens de "30, 35 no máximo", portanto "a extrema
ponta da vanguarda". A anfitriã, que esteve decepcionada pelos
encontros precedentes com "grandes homens", quer tentar outra
coisa. Segue-se um desfile satírico de um certo número de ismos da
moda. Entre eles, "dramatismo vital", o "tecnicismo", o "cubismo",
e o "acelerismo", cujos adeptos exaltam "o aumento maximum da
velocidade da experiência vivida fundada na biomecânica do esporte
e na precisão do t r a p e z i s t a ! T e r - s e - á reconhecido Marinetti e
seu Manifesto futurista, o trapezista a mais (ou Marinetti no papel de
trapezista!). Um outro personagem do romance, Arnheim, o gran-
de empresário, quer "se adaptar a uma evolução que ele adivinha
iminente". Preocupado em "viver com seu tempo", o que é bem
o mínimo para um homem de negócios, ele chega à conclusão de
que "a ideocracia está destronada". Dito de outro modo, não são
mais as ideias que conduzem o mundo e a História não segue mais
o desenvolvimento intelectual.
Quebrando por um instante o contrato sobre o qual repou-
sa o romance, Musil introduz então uma prova pelo pós-guerra.
Suponhamos, acrescenta, que o olhar de Amheim tenha podido
"antecipar" alguns anos, "ele já teria podido constatar que mil e
novecentos anos da moral cristã, uma guerra catastrófica com mi-
lhões de mortos e toda uma floresta de poesias alemãs cujas folhas
haviam murmurado o pudor da mulher, não haviam sido capazes
de retardar, nem ao menos de uma hora, o dia no qual os vestidos
e os cabelos das mulheres começaram a encolher e as moças euro-
peias, derrubando interdições milenares, apareceram um instante
nuas como bananas descascadas". Esforços conscientes não teriam
provavelmente jamais conseguido produzir uma tal "revolução" que

'"'MUSIL, 1995, p. 82.


'"'MUSIL, 1995, p. 505.

144
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

seguiu "o caminho dos alfaiates, da moda e do acaso". "Pode-se


mensurar com isso o imenso poder criativo da aparência, comparado
à teimosia estéril do c é r e b r o . R e c o n h e c e r a força da aparência à
custa da essência — do cérebro, da razão, do conceito - não é nada
menos do que uma clara tomada de posição sobre a-História e seu
modus operandi.
A História e a seu fazer, Ulrich dedica uma reflexão de uma
grande densidade na ocasião de um trajeto de tramway voltando
para casa, que se inicia com essas palavras: "Que história estranha a
H i s t ó r i a ! E i s uma outra versão do trem do tempo: a do tramway
que é a História! \
(Nossa história vista de perto, ele dizia, parece bem du-
ividosa, bem confusa, um pântano metade solidificado, e
I finalmente, por estranho que possa ser, um caminho passa
ainda assim por cima, e é precisamente esse 'caminho da
I história' que ninguém sabe de onde vem. A idéia de servir
de matéria-prima à história colocava Ulrich em furor. A
caixa brilhante e trepidante que o transportava parecia-lhe
uma máquina na qual algumas centenas de quilos de homem
i eram chacoalhados para serem convertidos em ílituro. Cem
janos antes, eles estavam sentados com as mesmas caras em
uma charrete, e em cem anos Deus sabe o que fará deles,
mas eles estarão sentados da mesma maneira, homens novos
em novos aparelhos.^®®
Dessa experiência histórica, ele tira várias conclusões sobre a
História universal. Sua maior parte "nasce sem autores. Ela não vem
de um centro, mas da periferia,,suscitada por causas menores". Segun-
do as circunstâncias, o homem pode tanto "comer gente" "quanto j
escrever A crítica da razão pura". A História universal procede da
mesma maneira que se transmite uma ordem no exército. Ulrich se
lembra, nesse momento, de seu periodo militar. A tropa marcha em
duas colunas; uma ordem circula de homem a homem a meia voz; e

^«''MUSIL, 1995, p. 512-513.


285MUSIL, 1995, p. 452.
^^^MUSIL, 1995, p. 452.

145
CRER E M HISTÓRIA

se essa ordem era no início: "O marechal à frente da coluna!", ela se


toma ao chegar "Marchar em tripla coluna!" No flindo, o "princípio
da História universal" não é "nada além do que o velho princípio
político do ramerrame da Cacânia". O que faz dela um Estado "su-
periormente inteligente"^^^: o ramerrame mais do que o trem.
Consequentemente, e para recorrer a uma outra imagem, uti-
lizada por Musil, "a trajetória da História não é a de uma bola de
bilhar que, uma vez lançada, percorre um caminho definido; ela se
parece mais com o movimento das nuvens, com o trajeto de um
homem errando pelas mas; desviado aqui por uma sombra, lá por
um gmpo de curiosos ou por uma estranha combinação de fachadas,
e que acaba parando num lugar desconhecido onde ele não espera-
va chegar".^®® Resumindo, não se pode dizer que as presunções a
favor de uma capacidade de fazer a História sejam muito elevadas,
mesmo se o percurso da História, como o da nuvem, obedecendo,
fundamentalmente, às leis da física, não é simplesmente errático.
Enfirn, uma tal História não pode senão escapar ao que Musil
chama del^jim^i^clássica"; essa ordem simples que permite dizer:
"Quando isso se passou, aquilo se produziu", justamente nomeado
também "fio da narrativa". Ora, deve-se bem reconhecer que "tudo
na vida pública já escapou à narração, e longe de seguir um fio,
espalha-se sobre uma superfície sutümente entrelaçada. No entanto,
na vida privada, gostar-se-ia de ainda poder se apegar a esse "fio",
pois "a maioria dos homens é, na sua relação fundamental com
eles mesmos, feita de narradores [...]. Eles gostam da sucessão bem
regrada de fatos porque ela tem todas as aparências da necessidade,
e a impressão de que sua vida segue um 'curso' é, para eles, como
ium abrigo no caos".^^^ Os personagens de Musil, a começar por
Ulrich, sabem ou descobrem que eles não podem mais organizar
sua vida segundo esse fio da narrativa clássica. Isso não funciona
mais. Não se pode mais crer e, no entanto, não se sabe contar de
outro modo. Outros, justamente, tentarão.

'«'MUSIL, 1995, p. 453.


'""MUSIL, 1995, p. 454.
'"'MUSIL, 1995, p. 816.

146
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

Esse diagnóstico sobre os poderes da narrativa distingue for-


temente Musil de Balzac ou, mesmo, de Tolstói. Para esse último,
o romance se aproxima tanto quanto possível do que poderia ser
uma verdadeira história. Por sua capacidade de apreender a História
juntando os fatos e gestos do último dos protagonistas e as forças
profundas que a modelam, o romance ganha de longe da história
superficial dos historiadores, a quem o real escapa. Para Balzac, se
a Sociedade fala, a arte do escrevente é de "surpreender o sentido
oculto nesse imenso conjunto de figuras, paixões e de acontecimen-
tos''.^®" Mas nenhuma dúvida venpaiiftar a capacidade da narrativa
de revelar exatamente esse real.'Musil ^ o pode mais alimentar a
mesma confiança nos recursos da naifativa. Muito menos porque
nessa nova época (mais uma vez mirada desde o depois da catás-
trofe, como desde uma outra margem do tempo) se caracteriza
pelo abandono da "elaboração dos pensamentos"^'* e a exaltação
da "experiência vivida".Nesse sentido, a incompletude final do
romance, apesar de seus milhares de páginas, diz muito também
sobre a incapacidade da narrativa, não somente de reencontrar ou
encontrar um "fio", mas mesmo de mostrar um real decomposto,
na sua própria fragmentação. O todo não forma mais um todo. A
escrita de Musil, que medita sobre o antes da catástrofe a partir do ;
seu depois, enquanto a Cacânia é engolida, busca compreender o que
se passou e não terminou: antes e depois do apocalipse. Num certo
sentido, têm-se aí todos os elementos do futuro linguistic turn, mzs
em toda a força de seu surgimento: num escritor; os historiadores, |
esses, chegarão bem depois. Exceto que, para Musil, o que está em
questão é menos a linguagem enquanto tal do que um certo estado
do mundo e das formas obsoletas de escrita. O que ele chama de
"a narrativa clássica".
Em O homem sem qualidades, existe, por certo, um trem do
tempo, mas não existe a faculdade de saltar dele. Não se sabe tam-
pouco para onde vão os "trilhos". Está-se, portanto, para além do

'"»BALZAC, 1951, I, p. 7.
'"MUSIL, 1995, p. 514.
'''MUSIL, 1995, p. 504.

147
CRER E M HISTÓRIA

jogo da literatura anterior do por e contra o regime moderno de


historicidade, que não mais convém de modo algum. Para Ulrich,
"todo progresso é ao mesmo tempo uma regressão. Na medida em
que não há nunca progresso senão num determinado sentido. E
como nossa vida, no seu conjunto, não tem nenhum sentido, ela
não conhece mais, no seu conjunto, verdadeiro progresso".^''^ Esses
anos antes da guerra, quer dizer, entre as duas guerras, atormentados
pelos movimentos, ávidos de deslocamentos, ansiosos por acelera-
ção, oferecem ao observador uma multiplicação de experiências do
simultâneo do não-simultâneo, enquanto o futurismo do regime
modemo de historicidade parece a caminho de perder o monopóho
que havia adquirido nas décadas precedentes. Um pântano meio
soUdificado sobre o qual passa, apesar de tudo, um caminho que
não se sabe para onde vai: assim parece a História.

" A historicidade refluiu sobre nós"


Entre o Jean-Paul Sartre de A náusea {La Nausée) e aquele que
funda, em 1945, Os tempos modernos {Les Temps modernes), existe a
aproximação e, em^seguida a catástrofe da Segunda Guerra Mundial.
Publicado ern 1938. apenas alguns meses antes da crise de Munique,
A náusea nos^ntéressa particularmente, pois AntoineRoquentin,
o personagem principal, é_um historiador. Ele acredita^^Tõü^^
história? Em todo caso, ele a faz, e vai justamente descobrir que não
pode mais fazê-la. Poderia ser uma maneira de resumir o romance.
Roquentin conduz, de fato, por muitos anos, pesquisas visando
escrever a biografia do marquês de RoUebon. Homem do século
XVIII, esse último supostamente atravessou a Revolução e o Im-
pério; homem perturbado, ele tem ao mesmo tempo um pouco de
TaUeyrand e de Fouché. Jogado em um calabouço em 1820, depois
de ter alcançado as mais altas honras, morre cinco anos mais tarde,
sem ter sido julgado. Não se pode dizer que, com um tal assunto,
Roquentin mostre um interesse pela grande História ou pelas forças
profundas que a colocam em movimento. Ele não está muito preo-

2''MUSIL, 1995, p. 610.

148
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

cupado, para dizer pouco, com o regime moderno de historicidade.


Seu universo histórico é o de uma biografia tradicional, ávida de
correspondências secretas, complôs e intrigas galantes. Mil milhas
distante da nova história econômica e social que buscam difundir os
jovem Annales. Estamos na narração clássica, a que não duvida de si
mesma e se remete ao "fio" da narrativa. Ora, uma das dimensões da
crise que Roquentin atravessa — essa náusea que o invade em certos
momentos - é justamente a súbita tomada de consciência, enquanto
trabalha na biblioteca, de que ele não pode mais escrever esse livro.
A história acabou! "Como, então, eu, que não tenho a força de reter
meu próprio passado, posso esperar salvar o de um outro?"^''' 0 ~
fio rompe, e como ele nota: "viver ou contar", é preciso escolher.
Quando se vive, nada acontece, "os dias se juntam uns aos outros
sem rima nem razão". Mas quando se "conta a vida", tudo muda.
Queremos que "os momentos se sigam e se o r d e n e m " . E l e faz,
por sua vez, uma experiência análoga a de Ulrich.
Invade-o subitamente a evidência de que só existe presente.
"Móveis leves e sólidos, incrustados em seu presente, uma mesa, uma
cama, um guarda-roupa - e eu. A verdadeira natureza do presente se
revelava: era o que existe e tudo o que não era presente não existia.
Nem um pouco. Nem nas coisas ou mesmo no meu pensamento
[...] Agora, eu sabia: as coisas são inteiramente o que elas parecem
— e atrás delas... não tem nada [...] O senhor RoUebon acabava
de morrer pela segunda vez".^'® Ele descobre ainda que RoUebon
era um áHbi: "Ele precisava de mim para ser e eu precisava dele
para não sentir meu ser". A descoberta do "Eu existo", com sua
perturbadora vacuidade, o separa definitivamente de RoUebon, do
passado em geral e de qualquer controle sobre a história. Existir é
estar presente: "A existência não tem memória; dos desaparecidos,
ela não guarda nada - nem mesmo uma lembrança".Eis aí ex-
pressões que hoje surpreendem, ou mesmo escandalizam, quando

''"SARTRE, 1938, p. 123.


''^SARTRE, 1938, p. 57, 58.
2'^SARTRE, 1938, p. 124-125.
'"SARTRE, 1938, p. 168.

149
CRER E M HISTÓRIA

a memória está em toda parte. Roquentin, por sua vez, descobre


que ele está "sozinho e livre". Nem passado, nem futuro, nem o
regime modemo, nem suas fissuras, não há senão o presente sozinho
e congelamento do instante. Antes de assumir seu título definitivo,
o livro tinha sido nomeado Melancolia (Melancholia) e, bem no início,
Contingência {Contingence).
E sim, bem no final do romance, escutando pela última vez o
velho ragtime que o toca tão fortemente, Roquentin entrevê uma
possível saída para a escrita de um livro, o qual ele não sabe, mas
tem certeza de que não poderia ser um livro de história: "A história
fala do que existiu — nunca um existente pode justificar a existência
de um outro existente".Como experiência filosófica, o existen-
cialismo é a de um presentismo integral, absoluto, mesmo se ele se
revela insustentável em toda sua pureza ou sua dureza, assim se deixa
entender o final do romance, onde alguma coisa do passado, o de
Roquentin pelo menos, poderia conseguir se insinuar, permitindo
que ele termine por "se aceitar".
Mas Sartre não terá que procurar por muito tempo que livro
escrever. Rapidamente a história destituída ressurge e, mesmo, im-
põe-se de fora.^'' Acabou a "calmaria enganosa". Com setembro de
1938, surge a crise de Munique e seus fracos alívios. A partir de 1942,
Sartre, engajado na redação dos Caminhos da liberdade (Chemins de la
liberte), dedica o terceiro volume, Sursis (Le Sursis), a esse episódio.
Escrito após a emergência do conflito, o romance é publicado em
1945. A ação se passa ao longo de uma semana, entre o 23 e o 30
de setembro de 1938, e coloca em cena vários personagens, histó-
ricos e de ficção, que, diante dessa irrupção da história, e do lugar
que é deles, encontram-se confrontados a escolhas. Passa-se em
uma semana da guerra à paz, isto é, na verdade, ao sursis. Mas não
se pode mais manter a ilusão "de ter uma história individual bem
compartimentada, escreve Sartre, [...] as divisórias se desmoronam.
O indivíduo, sem deixar de ser uma mônada, sente-se engajado em

''"SARTRE, 1938, p. 222.


"'SERVOISE, 2011, p. 57-59.

150
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

uma parte que o transcende. Ele permanece um ponto de vista sobre


o mundo, mas ele se surpreende em via de generalização e dissolu-
ção. E uma mônada que se embebe, que não deixa de absorver".
Para dar conta da "ambiguidade dessa condição", Sartre se inspira
no cinema e nas pesquisas de "romancistas da simultaneidade tais
como Dos Passos e Virginia Woolf
Onde quer que estejam, esses personagens são pegos por um
mesmo tempo. Donde o "simultaneísmo" da construção narrativa.
Sartre procede por justaposição, mostrando na mesma frase o que
se passa no mesmo momento em diferentes lugares e em diferentes
personagens: sem alíneas ou outros signos tipográficos. O leitor é
lançado num romance de "situação": "sem narradores internos ou
testemunhos oniscientes". Essa recusa de todo ponto_de vista de
cima, como "fora da História", significa passar "da mecânica new-
toniana à relatividade generalizada".^"'
O efeito de simultaneidade só existe para o leitor; os persona-
gens não sabem, evidentemente, de nada. Ainda que o tempo do
acontecimento se imponha a cada um deles, interferindo com as
temporalidades nas quais se organiza ou se desorganiza suas vidas. O
procedimento narrativo do simultaneísmo conduz à encenação do si-
multâneo do não-simultâneo. A cada um sua maneira de entrar nesse
tempo do sursis e de fazer face ao futuro que vem. "O sobrevoo que
gostam tanto de praticar nossos predecessores tomara-se impossível,
escreve Sartre, havia uma aventura coletiva que se desenhava no
futuro e que seria nossa aventura [...]; algo nos esperava na sombra
fiitura, algo que nos revelaria a nós meamos [...]; o segredo de nossos
gestos e de nossos mais íntimos cons^hos residia à nossa frente na
catástrofe à qual nossos nomes seriam ligados. A historicidade refluiu
sobre nós".^"^ Quando Sartre escreve, a aventura está presente (mas
ela ainda não terminou). Não impede que ele reinsira, por assim
dizer, futuro em seu romance - um futuro agindo, esclarecendo.

^»»SARTRE, 1981, p. 1911.


^"SARTRE, 1999, p. 236.
^"'SARTRE, 1999, p. 227.

151
CRER E M HISTÓRIA

Por certo não se trata do futurismo visionário, nem mesmo do bom


e velho regime modemo de historicidade, mas algo de sua estmtura
é reintroduzido na economia narrativa, não por fantasia do autor,
mas porque a História assim o quer. Roquentin parece a anos-luz,
mesmo que tenha sido preciso passar por essa experiência da rejeição
de toda a história, de se encontrar em estado de acolher livremente
a História que chega.
Em todos os seus textos dos anos seguintes, onde retoma o
engajamento e a literatura, Sartre dá forma e expressões a essa
experiência da guerra. Intervém primeiro, entre 1930 e 1938, a
descoberta da historicidade: o fato de se sentirem todos "bmsca-
mente situados", acompanhado de um lugar crescente da História
e, portanto, necessariamente, da dimensão do futuro. Se ninguém
I; escolhe sua época, resta "se situar nela". "O mundo e o homem se
Irevelam pelas ações. E todas as ações de que podemos [os escritores]
Íalar se reduzem a uma só: fazer História.^°^ Ou ainda: como "se
àzer homem em, pela e para a H i s t ó r i a " . A responsabilidade
lo escritor é, portanto, de "se engajar no presente", e de "querer
diariamente o futuro próximo": e não prever um futuro distante
que lhe permitiria julgar-se depois.^"^ Reunir, assim, o "dia a dia"
e "o futuro" exprime uma tentativa de conciliar o futurismo do
engajamento revolucionário e o presente do existencialismo, através
j do "projeto", pois um homem "é seu projeto, seu futuro".^"®
Depois da incerteza de A náusea, a via sartriana reata, portanto,
com uma crença forte em História. Se, com Ronquentin, surgiu
a experiência primeira da liberdade, Sursis está inteiramente no
encontro com a historicidade. Desde então, a questão se toma a da
articulação das duas. A resposta se encontra justamente na escolha de
"fazer a História", visando "contribuir ao advento futuro da socie-
dade dos fins". Ao escritor cabe passar da literaturado^xtsàqi^a,

'"^SARTRE, 1999, p. 247.


^»''SARTRE, 1999, p. 235.
SARTRE, 1999, p. 50.
^»^SARTRE, 1981, p. 1914.

152
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

nova, da praxis:\o fazer revela o ser.j É preciso que o romancista


'mergulhe as coisas na a ç ã o " S e a URSS reluz então como o
lugar de encarnação da esperança comunista, Sartre não marcha no
"futuro radioso". Para ele, presente e futuro se conjugam juntos
no projeto, mas se trata de um futuro próximo, "dia a dia". Com-
preende-se que se tenha podido deslizar, em 1968, dessa posição
sartriana ao slogan meio ingênuo, meio maroto do "tudo, agora".
Mas, já anteriormente, outras proposições são lançadas, outros
caminhos explorados. Do lado da literatura, vem o Nouveau Roman,
enquanto a lingüística e o estruturalismo, os retornos a Marx e a
Freud de Althusser e de Lacan transformam as ciências humanas.
Claude Lévi-Strauss se toma a referência. Se o conjunto deUneia a
conjuntura intelectual dos anos 1960, as posições de uns e de outros
são bastante diversas, mesmo se todos se encontram para criticar
Sartre, o escritor, o personagem público, enfim, a crer em Foucault,
"o último filósofo do século XIX". Analisando a paixão dos inte-
lectuais franceses pelo estruturalismo, François Furet desvelava um
substituto aos filósofos da história profundamente descreditados: "A
etnologia estrutural tirou uma parte de seu brilho oferecendo uma
anti-história". "Essa França, acrescenta, expulsa da história, aceita
melhor ainda expulsar a história."^°^
Segundo Alain Robbe-GriUet, que se autopromovera líder do
Nouveau Roman, o engajamento, para o escritor, não pode ser senão
"a plena consciência dos problemas atuais de sua própria lingua-
gem", o que é a única chance de "permanecer um artista" e "de
servir um dia talvez a alguma coisa - talvez^esmo à revolução".^"'
Entre a História e seu fazer, a distância, no mínimo, se acentuou.
Pois não convém mais ver a obra "como um testemunho de uma
realidade exterior", mas como sendo a si mesma "sua própria rea-
lidade". Enquanto que no romance tradicional, balzaquiano, por
exemplo, o tempo desempenhava o papel principal, ele "realizava

^»'SARTRE, 1999, p. 247.


^»«FURET, 1982, p. 40-42.
^»'ROBBE-GRILLET, 1963, p. 46.

153
CRER EM HISTÓRIA

O homem, ele era o agente e a medida de seu destino", "ele rea-


lizava um destino",^^" o universo da narrativa moderna (romance
ou filme) é aquele "de um presente eterno, sem passado, que se
basta a si mesmo a cada instante e que se apaga sucessivamente".^"
Destemporalizado, o tempo não "flui mais. Ele não realiza mais
nada".^^^ Pode-se dizer melhor que a narrativa à nova maneira é
presentismo puro, mas muito longe da experiência filosófica de
Roquentin. Não mais histórias, portanto, conclui, então Robbe-
GriUet; quanto à História, é primeiro tentando afastá-la que se tem,
eventualmente, uma chance de contribuir com ela.^^^ Eis aí uma
\
das sutilezas do momento.

"Você vem de lá"


Para concluir esse percurso sobre algumas das maneiras pelas
quais a literatura apreendeu e foi apreendida pela História, eu me
deterei em dois escritores contemporâneos que, nascidos depois da
Segunda Guerra Mundial, respectivamente em 1944 e 1947, co-
meçaram a publicar nos anos 1980. Um é alemão, W. G. Sebald; o
outro é francês, Olivier Rolin. Seus percursos são profundamente
diferentes, mas eles partilham esse "depois" e, cada vez mais clara-
mente, a mesma convicção de que eles "vêm de lá": desse desastre
que eles não conheceram diretamente. Anselm Kiefer, cujo Anjo
da História acabamos de interpretar, não diz outra coisa. Diante
dos "silêncios" do pós-guerra, quando eles estão na idade de se
tornar estudantes, Sebald deixa a Alemanha pela Inglaterra, onde
se estabelecerá definitivamente, enquanto RoHn inicia brilhantes
estudos, para depois optar pela militância maoísta e, mesmo, por
algum tempo, pela clandestinidade. Aproximá-los pode, à primeira
vista, surpreender: um encarna um escritor-memória (sintonizado,
portanto, com a ascensão da memória: ele publica seu primeiro

''"ROBBE-GRILLET, 1963, p. 167.


^»ROBBE-GRILLET, 1963, p. 165.
^"ROBBE-GRILLET, 1963, p. 168.
313
Ver supra. Capítulo 2, p. 87-88.

] 5 4
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

livro em 1988), o outro começou a escrever, em 1983, sobre as


ruínas de um engajamento cujo futurismo exacerbado, que eu
saiba, Sebald jamais partilhou. Rolin e seus camaradas começaram,
enfim, acreditando em História, quer dizer, na Revolução, e que-
rendo fazê-la. Fora de época, é verdade, mas eles queriam apagar
as traições e covardias, desejavam reatar com a Resistência e fazer
reviver as grandes figuras revolucionárias, impregnando-se dos
pensamentos do "Chairman Mao". Ei^m. queriam acreditar. No
entanto, mais a montante, no que fez escrever tanto Sebald como
Rolin, existe, creio, essa experiência do silêncio, da falta, de um
tempo desaparecido, detido. Sufocado em seu país, um escolheu o
exílio e o retraimento; o outro, sufocado também em uma França
onde se sucedera Viçhy, as guerras coloniais (que não diziam seu
nome) e o gaulismo sob o qual crescia um pompidolismo, acre-
ditou na ação e naquilo que era então a única maneira gloriosa de
fazer a História: a revolução. Rolin, como ele explicita por um de
seus personagens, nasceu "a meio caminho exatamente da Mãe das
derrotas e de Dien Bien Phu": 1947, de fato.^"
Sebald ou o tempo suspenso
Com W. G. Sebald, encontramo-nos de imediato em um
presente que dura ou que não passa; um tempo suspenso, produto
de uma catástrofe que aconteceu, mas que ele não conheceu direta-
mente, embora a ele se imponha cada vez mais claramente a idéia de
que é de lá que ele vem. Também se tomar escritor, relativamente
tarde (com 45 anos), será procurar os rastros de desaparecidos e se
fazer "caçador de fantasmas". Será sua razão de ser escritor: encontrar
a memória que ele não tem e preencher esse vazio com as histórias
de testemunhos fiáveis.^'^
Em algumas entrevistas, reunidas sob o título de A arqueologia
da memória {L'Archéologie de Ia mémoire), Sebald evoca sua experiência
do tempo. Penetrar o universo de Matthias Grünewald (o autor, no
século XVI, do célebre Retábulo de Issenheim) lhe interessa muito

' " R O L I N , 2002, p. 9.


' " S C H W A R T Z et ai, 2009, p. 89.

155
CRER EM HISTÓRIA

mais, diz ele, do que o presente, ele que se sente incapaz de conce-
ber o futuro.^" Num certo sentido, a Alemanha que ele deixou aos
20 anos não é seu país, mas por sua história desde o fmal do século
XVIII, ela é: "Herdei esse fardo e preciso carregá-lo, me agrade ou
não".^''' Sobretudo por ter vivido, primeiro em sua própria famíha,
essa "conspiração do silêncio", tão característica dos anos depois da
guerra, que foi a motivação profunda da sua partida para a Ingla-
terra. Donde, em seguida, uma vez passado da escrita acadêmica à
literatura, sua visita aos arquivos e sua busca de vestígios de toda a
sorte, sobretudo seu recurso às fotos que, diz ele, ao mesmo tempo
atestam "a veracidade da narrativa" e "detêm o tempo". Quando
vejo fotos ou filmes que datam da guerra, "parece-me que é dejá
que^u venho, por assim dizer, e que cai sobre mim, vinda de lá,
vinda dessa era de atrocidades que eu não vivi, uma sombra da qual
eu não conseguirei nunca me subtrair totalmente".
Publicado em 2001, Austerlitz, que não pontua nenhum capí-
tulo ou parágrafo, cobre, na verdade, um periodo de 30 anos: de
1967 a 1996. É, de fato, o tempo que transcorre - ou, antes, que
não transcorre — entre o primeiro e o último encontro do narrador
com Jacques Austerlitz, mas, tal como os dois protagonistas do ro-
mance, o leitor se encontra preso nesse presente continuado que é
o do narrador, quem, da primeira ã última linha, fala, observa, anota
e reporta as palavras de Austeriitz, sem interrupção nem corte. Na
arquitetura monumental do século XIX, que é seu objeto de estudo,
aquele sobre o qual ele acumulou notas, AusterÜtz decifra menos o
fliturismo que a atravessa do que a catástrofe que ela anuncia. "Essas
^construções hiperdimensionadas já projetam a sombra de sua des-
truição" e "elas são de início concebidas na perspectiva de sua futura
existência em estado de ruínas".^" Sebald encontra aí um tema de
conversas entre Hider e seu arquiteto, Albert Speer, a propósito da
grandeza das ruínas romanas. Em função dessa "teoria das ruínas",

^"SCHWARTZ et ai, 2009, p. 45, 163.


^"SCHWARTZ et ai, 2009, p. 53.
''«SEBALD, 2004, p. 53.
'"SEBALD, 2002, p. 27.

156
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

Speer de fato realizou ensaios sobre o que poderiam ser as ruínas


do futuro, aquelas justamente do Reich nazista. Pensar desde hoje
nas ruínas do futuro, pois todo império deve acabar um dia, é da'
responsabihdade dos fundadores, se eles querem não apenas entrar,
mas permanecer, na História.^^"
Uma conversa de Austerlitz com o narrador esclarece sua per-
cepção do tempo. Essa discussão se desenvolve, como por acaso, na
ocasião de uma visita ao Observatório Real de Greenv^ich, onde os
dois passam várias horas examinando os diversos instrumentos ligados
à medida do tempo: quadrantes, sextantes e outros cronômetros.
No Gabinete das Estrelas, Austerhtz, que nunca possuiu relógio ou
despertador, sempre refutou, diz ele, "o poder do tempo", onde ele
vê "a mais artificial das nossas invenções". Calculá-lo "a partir dos
anéis de crescimento das árvores ou do periodo que leva um calcário
a se desintegrar" não teria sido mais "arbitrário". Olhando o Tâmisa
da janela, ele recusa a ideia newtoniana do tempo que transcorre
como a correnteza de um rio. De onde ele viria e em que mar
desembocaria? Ele se pergunta. Quais seriam, pois, as margens do
tempo? Austerlitz não é, em nada, à la Chateaubriand, um nadador
entre as margens do tempo. Nenhuma dessas imagens é, e ojegime
modemo de historicidade não é para ele, não mais do que a História
que o acompanha. Ele acrescenta que, ao longo dos séculos e dos
milênios, o tempo não foi "síncrono" (por muito tempo "imóvel"
aqui e em "fuga desesperada" ali), pois desde há pouco somente que
se encontra "em expansão e se estende em todos os sentidos".^^^
Sincronização e ^eleração datam de ontem somente. Ele se quer,
por assim dizer, em posição de exterioridade em relação ao tempo,
do qual ele percebe as grandes pulsações modemas.
Pois, para Austerlitz, o tempo, de fato, "parou" nesse dia de
1939 quando ele deixou Praga em um Kindertransport organizado
pela Cmz Vermelha com destino a Londres. Mas ele só o com-
preendeu muitos anos mais tarde, quando, à procura de si mesmo,
retomou a Praga, onde, por sorte, sua antiga babá ainda estava lá.

^"'HELL (no prelo).


HELL, p. 123.

157
CRER EM HISTÓRIA

No entanto, essa experiência de retomo não desemboca de modo


algum na de um tempo reencontrado. Ao contrário. Quando Vera
- o nome de sua babá - lhe mostra uma foto de uma criança de 5
anos fantasiado de pajem, dizendo: "E você", ele fica estarrecido,
atormentado "por um sentimento avassalador de que se tratava de
um passado definitivamente perdido". O reconhecimento memorial^
não se opera. A via desse "pequeno prazer", de que fala Paul Ri-
cœur, permanece-lhe propriamente obstmída. No extremo oposto,
ele jamais experimentou tão fortemente, como diz, o sentimento
de sua inexistência.^^^ "Perfurado pelo olhar interrogador do pa-
jem que veio reclamar o que lhe é devido", ele se sente incapaz de
quitar essa dívida. A historicidade está obstada: a distância entre a
criança que ele era e o adulto que ele se tomou parece instranspo-
nível. Estimando não ter, desde então, mais nada a fazer em Praga,
ele vai à estação e toma um trem para a Alemanha, e é somente
no instante em que o trem passa Vltava que ele toma verdadeira
consciência de que, de fato, "o tempo tinha parado desde o dia de
sua primeira partida".^^^ O trem do tempo, tão presente nos ro-
mancistas para significar a marcha cada vez mais rápida da História,
como suas incertezas, parou. Ou, melhor, ele percorreu muito e
demasiados campos para que nele possamos embarcar com confiança.
Em Austerlitz, as estações são bem presentes e sempre inquietantes.
Da primeira, a de Anvers, até a de A^^^^itz, na qual se conclui o
romance, de onde provavelmente partiu seu pai e que sempre lhe
pareceu o lugar "de um crime não expiado".
Quanto ao presente, o olhar que Austerlitz tem sobre ele é
bem resumido na descrição pavorosa que ele faz de suas visitas à
nova Biblioteca Nacional da França, quando procura rastros de seu
pai. Nesse lugar que supostamente deve ser, segundo uma expressão
que ele detesta, "o santuário de todo nosso patrimônio escrito", ele
inicia uma longa conversa com um funcionário sobre "a deterioração

'''HELL, p. 221.
''^'HELL, p. 262.
'"'HELL, p. 343.

158
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

crescente da nossa capacidade de lembrar, correlata à proliferação


dos meios de informação, e sobre o desmoronamento [l'effondrement]
(é a própria palavra de seu interlocutor) da Biblioteca Nacional".
Para esse último, de fato, tanto o edifício quanto os procedimen-
tos, visando excluir o leitor, eram "a manifestação quase oficial
da necessidade cada vez mais declarada de acabar com tudo o que
mantém um elo vivo com o passado".^^®
Sebald o diz de uma outra maneira ainda, que nos permite
reencontrar o coronel Chabert. Uma manhã em que ele está na
BNF, Austerlitz, deixando suas pesquisas de lado, começa a 1er o
romance de Balzac. O que ele retém? Chabert se dirige, diz ele,
"como um fantasma" ao escritório de DerviUe. Vem em seguida a
evocação da vala, esse "fosso dos mortos", como a chama Balzac,
onde ele foi jogado. Essa leitura só faz reforçar a suspeita, já expressa
antes por Austerlitz, de que "a fronteira entre a vida e a morte é mais
permeável do que geralmente se acredita". O Chabert de Balzac era
um morto vivo, um excluído do tempo, enquanto que o de Sebald
é um mediador do tempo: ele testemunha que se pode passar de um
espaço a outro: "Não há senão espaços imbricados uns aos outros
[...], os vivos e os mortos em função dos seus estados de espírito
podem passar de um a o u t r o " . L o g o depois dessa leitura, Aus-
terlitz se depara com uma foto de um cômodo forrado de arquivos
onde estão hoje conservados os dossiês dos prisioneiros de Terezín.
Quando da sua visita à fortaleza, ele não tinha tido o "coração" de
entrar. Vendo essa sala de arquivos, vem-lhe "a obsessão" de que
seu "verdadeiro posto de trabalho deveriaTse encontrar lá", onde
tantas pessoas haviam sucumbido, e "o sentimento de culpa de não
ter ido".^^^ Seu posto de trabalho, que ele abandonou, sua tarefa, é
justamente que esses mortos possam, também eles, passar de um espa-
ço a outro. Ele encontra, assim, via Balzac, essa função de mediador
dos mortos e do historiador como homem da dívida. Mas com essa

''^HELL, p. 336.
'"^HELL, p. 221.
'"HELL, p. 333.

159
CRER E M HISTÓRIA

diferença considerável que, para Austerlitz, "o tempo absolutamente


não existe"; é ele, Austerlitz, que tem "o sentimento de não ter
lugar na realidade, de não ter existência"Ressuscitando-os, o
historiador de Michelet, cruzando e recruzando o Aqueronte, faz
com que os mortos se tomem bons mortos, mortos que cedem o
lugar aos vivos, enquanto esses últimos, em troca, lhes reconhecem
um lugar, o deles, em uma história que marcha e progride. Nada
disso em Sebald, para quem, na medida em que tempo parou e só
existe presente, o trabalho do escritor consiste em fazer voltar esses
mortos que primeiro se quis apagar e depois sepultar sob silêncio.
Sebald está mais do lado da antiga Mnemosine que de Clio.
Desse tempo suspenso ou desse presente que não avança, Sebald
dá um primeiro sinal que associa a vida de Austerlitz, tal como ele
a escreveu, à sua própria, marcada pelo "é daí que eu venho". O
romance se conclui, de fato, com esse retomo do narrador à fortaleza
de Breendonk, na Bélgica, já evocado no seu primeiro encontro
com Austerlitz, 30 anos mais cedo. Breendonk havia funcionado
como um campo de concentração entre 1940 e 1944. Jean Améry
foi intemado e torturado lá. Sentado à distância na beira do canal,
o narrador lê um livro que lhe havia sido oferecido por Austerlitz
{Heshel's Kingdom, de Dan Jacobson). A procura de vestígios de sua
família de origem lituana, Jacobson narra a sua visita ao IX Forte
de Kaunas, onde 30 mil pessoas foram assassinadas pelos alemães.
Nos porões, ele nota esse grafite: "Somos 900 franceses", depois
os nomes com um lugar ou uma data, entre os quais: "Max Stem,
Paris, 18.5.44".^^' Ora, essa data corresponde à data de nascimento
de Sebald, que, na Inglaterra, se fazia chamar Max. Derradeira forma
de dizer que de fato ele vinha de lá e que lhe compete ser o vicarious
witness desse Max que ele não conheceu.
Austerlitz toma, enfim, posição, em um momento preciso do
livro, sobre a questão do fazer história. Elias (é o nome que seus
pais adotivos deram à criança) acaba de saber que ele se chama, na
realidade, Jacques Austerlitz, do nome desse lugar da Morávia onde

'"'HELL, p. 221.
''"HELL, p. 350.

160
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

aconteceu uma batalha célebre. O professor de história, napoleaniano


fervoroso, narra a batalha à classe, ou melhor, ele encena esse dia 2
de dezembro de 1805, que, portanto, concerne quase diretamente a
Elias-Austerhtz.^^" Mas, apesar de sua ciência e de seu ardor, Hilary
(é o nome do professor), reconhece que "suas descrições são muito
sumárias". A esse ponto, e mesmo sem ser diretamente nomeado,
surgem, para o leitor, a evocação dessa mesma batalha por Tolstói,
ou suas interrogações sobre a História e suas críticas ruinosas do
que bem pode significar fazer história. Segundo Hilary, o professor,
relatar de maneira um pouco sistemática o que se passou nesse dia
necessitaria de um "tempo infinito". Somos obrigados a recorrer
a frases ridículas, como "a batalha estava indecisa". "Fazer história
era apenas se interessar por imagens preestabelecidas, ancoradas no
interior de nossas mentes, sobre as quais mantemos o olhar fixo,
enquanto que a verdade se encontra em outro lugar, em alguma
parte distante, em um lugar que ninguém ainda descobriu". De
todos os tempos, essas imagens "mobiliaram o teatro da história".^^^
E, portanto, radical insuficiência da história.
Rolin: de uma história a uma outra
"Por que cheguei em uma época em que eu estava tão desloca-
do?" perguntava-se Chateaubriand, em meio ã debandada em Paris
no momento do regresso da ilha de Elba, estando bem consciente
de que ele havia feito desse "deslocamento" o motor de tudo: de
sua carreira como de suas abdicações e, antes de tudo, de sua escri-
ta.^^^ Desse "deslocado", Olivier Rolin se apropria por sua vez, e o
reivindica mesmo para o escritor em uma conferência pronunciada
em 2001.^^^ Eu estava "dentro e fora do meu século", acrescenta
ainda Chateaubriand, o que ecoa essa frase do narrador de O tigre
de papel {Tigre en papier), sobre sua geração "fora do alvo", enquanto

Note-se que Napoleão ocupa um lugar importante em Sebald.


^^'HELL, p. 89.
'''CHATEAUBRIAND, 2003-2004, t. I, p. 1129.
"3ROLIN, 2011, p. 58.

161
CRER E M HISTÓRIA

outras "nascem em plena História", "em cheio no alvo".^^"* Rolin e


seus companheiros se descobrem dolorosamente exilados da História
enquanto que o "deslocado" de Chateaubriand se impõe porque
ele se encontra brutal e demasiadamente no alvo da História: entre
dois tempos, entre dois regimes de historicidade. Já além do regime
moderno, para a geração de Rolin.
Partamos dos comentários do narrador de Porto Sudão (Port-
Soudan), romance publicado por Rolin em 1994. Informado com
bastante atraso da morte de seu amigo A, ele volta brevemente à
Paris de Porto-Sudão, onde ele acabou "fracassando", depois de
anos de incerteza, que davam sequência, elas próprias, aos anos
em que A e ele haviam partilhado "grandes e vagas esperanças" de
mudar o mundo. A distância criada pelo exílio reforça ainda mais a
defasagem temporal. Tem-se aí, no modo narrativo, o análogo do
olhar distante do etnólogo. Quer se trate dos lugares (a Paris onde
ele viveu) ou das pessoas que ele encontra (aquela que foi compa-
nheira de A), o narrador se percebe como defasado e deslocado:
"ela era", essa jovem mulher, "daquele tempo em que não havia
mais tempo, nada senão um presente cintüante"^^® - daquele tempo,
portanto, que eu propus chamar de presentista, cedo diagnosticado
pelos personagens de Rolin. Quanto ao narrador, ele pertencia a
um tempo passado, aquele no qual se podia aspirar à coincidên-
cia de "um grande amor e de uma grande esperança humana".
Ele vinha, diz ele também, "de dois lados": o da literatura e o da
história.^^"' Por lado da Uteratura, ele entendia, aliás, Apollinaire e
Breton, mais do que o romance. O surrealismo passara por aí. O
I importante, no entanto, é a reafirmação do vínculo estreito entre a
' literatura e a história que - esse foi o ponto de partida deste capítulo
- partilharam, desde o século XIX, um destino comum.
^ Do corte que interveio entre esse tempo de antes e o depois,
não saberíamos nada de preciso, senão, de passagem, que a mística

''"ROLIN, 2011, p. 26.


"5ROLIN, 1994, p. 96.
'"ROLIN, 1994, p. 36.
'"ROLIN, 1994, p. 97.

162
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

de seus anos de juventude se havia corrompido em política.^^® Fa-


mosa, a fórmula é de Charles Péguy voltando ao caso que marcou
toda sua vida e do qual ele nunca se libertou: o caso Dreyfus.^^' Sem
dúvida, o narrador de Porto Sudão poderia fazer suas essas palavras
de Daniel Halévy a respeito do caso: "Uma única e temível crise
nos dominou e nos marcou".
Se passamos de Porto Sudão a Méroé, romance pubHcado qua-
tro anos mais tarde, em 1998, que traz de volta o leitor ao Sudão,
reencontraremos, por meio dos dois personagens do narrador e do
arqueólogo alemão, as interrogações sobre literatura e história, mas o
leitor só pode ficar surpreso com suas transformações. Vollender - é
seu nome (ou seja, aquele que termina tudo, aquele que coloca um
ponto final, em alemão?) — "suspeitava em mim a ausência de saber
histórico, mas o que eu receio naqueles que tentarão a aventura de
me ler é que ignorem o que é o tempo...". E Vollender explica ao
narrador: " E u J ^ a autópsia do tempo".
Em Méroé, de fato, a narrativa explora um novo encontro com a
História, e ele é inteiramente conduzido pela experiência de uma nova
percepção do tempo. Até então, os narradores de RoHn vinham de
uma história em relação direta com o regime modemo de historici-
dade, com a Revolução como figura central. Eles haviam participado
desse tempo de antes (tendo a "nostalgia de um tempo que se abriu
sobre vastos amanhãs", como lembra o narrador de Porto Sudão) e
haviam acreditado nessa história, que era simplesmente a História (ou
essa "mó da História", como a designa significativamente Vollender).
E os romances de Rolin, desde o primeiro que ê b publicou. Fenôme-
no futuro (Phénomènefutur), começavam depois: para além da raptura
e da destraição, em meio a minas e numa vontade desesperada e
sempre decepcionada de esquecimento. Vestidos com seu "smoking
de minas", os narradores se definem como seres "minícolas", mas a
poesia das minas não é verdadeiramente a sua seara.^'^'

''»ROLIN, 1994, p. 13.


'"Ver supra. Capítulo 1, p. 55.
'«ROLIN, 1998, p. 173.
'«ROLIN, 1987, p. 9, 214.

163
CRER EM HISTÓRIA

Se, de Porto Sudão a Méroé, trata-se sempre do Sudão, aquele onde


se passa Méroé é bem diferente. Mais precisamente, em Porto Sudão,
não se vai muito além do nome e de um deciframento das Instruções
náuticas, enquanto em Méroé, estamos de imediato em pleno coração
do país. "Porto-Sudão" não é mais do que o nome de um porto,
quase "engolido", nas sonoridades de onde aflora, nota o narrador,
"um quê de Rimbaud misturado com Conrad".^''^ Por outro lado, o
Sudão de Méroé está repleto de história e de tempo, mas são histórias
enterradas, de esquecidos e de vencidos, são apenas fragmentos de
tempos desarmônicos, segmentos de tempos, por assim dizer, anacrô-
nicos uns com relação aos outros. Até certo ponto, o tratamento do
Sudão por Rohn lembra o da América por Chateaubriand: a primeira
América, aquela que ele descobre em Ensaio histórico, não tem história,
e seus desertos, quase fora do tempo, são o refúgio da única liberdade
autêntica, enquanto a segunda, aquela descrita em Viagem à América,
apresentada em Obras completas, 25 anos mais tarde, revela-se, também
ela, plena de tempo. Encontram-se túmulos e ruínas, enquanto os
Selvagens não passam de moribundos às portas das cidades. E é essa
América que inventou a Hberdade política moderna.
Em Méroé, o porta-voz dessa transformação é o personagem
(no mínimo ambíguo) do arqueólogo VoUender, ao mesmo tempo
escavador obstinado e, sem dúvida, assassino. Ele se esforça, durante
anos, para trazer à luz o que, no fmal, vai sepultar para sempre. Ele
é, de fato, como seu nome indica, aquele que tudo termina. Ele
afirma querer transmitir suas descobertas, mas tudo nele se recusa
a isso. Não impede que haja, no fmal das contas, uma lição de
história do Dr. VoUender! Ele escolheu esse tema (os reinos me-
dievais do Sudão) ou esse tema o escolheu, porque ele vem de um
país, a Repúbhca Democrática Alemã (RDA), que está em vias de
desaparecimento sem deixar nenhum vestígio. Os arqueólogos do
futuro, se houver, não encontrarão mais nada. Vindo de um país
fantasma, ele dedicou sua vida a esse outro país fantasmático que é o
Sudão "onde ainda se encontram faraós quando o império romano
já está parcialmente demohdo pelos bárbaros. E", diz ele, "como

' " R O L I N , 1987, p. 55.

164
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

se a RDA continuasse a existir... no século X X V I I ! " . S o m o s aí


projetados em pleno simultâneo do não-simultâneo.
Mas para começar a ver alguma coisa, é preciso primeiro que
ele saia da História; esqueça aquela na qual ele foi educado, a do
regime modemo de historicidade, que tritura as civilizações uma
depois da outra, como uma "mó". Ela lhe parecia então, essa His-
tória, "a mais perfeita realização da Humanidade".^'*'' Além disso, a
Berlim do pós-guerra onde ele vivia, com suas minas escurecidas
e suas pilhas de escombros, era, ao mesmo tempo, "a capital dos
futuros radiosos": o do "sonho americano", de um lado, como o da
"revolução de Outubro e de sempre", de outro. Ali, os tempos do
Oeste e do Leste caminhavam igualmente para o progresso, e cada
vez mais rápido. O regime moderno havia retomado sua marcha
rápida e se acreditava em História,
Na cidade, um lugar, apesar de tudo, oferecia a possibilidade
de questionar novamente os esquemas temporais demasiado simples:
a ilha dos museus. Embarcado nessa "nave temporal", VoUender
vai, subindo o Nilo e descendo o tempo, encontrar "esse Egito
fantasma, africano e tardio, deslocado, mestiço, anacrônico", e
decidir então que ele se tornaria seu "país".^''® Esse relato de voca-
ção é também o de uma conversão: o arqueólogo se torna aquele
que exuma o tempo (o tempo é um corpo) e se dedica à autópsia
dos tempos (há "tempos ósseos", "cerebrais", "intestinais"). O
narrador, por sua vez, faz plenamente sua essa abordagem atenta
às "deformações do Tempo (com suas "cavidades", "catacumbas",
"desmoronamentos") e, na biblioteca deserta do museu de Cartum,
ele segue os vestígios precários (e fadados a um desaparecimento
próximo) daqueles núbios que, até o século XVI, ignorados por
todos e ignorantes do resto do mundo, persistiram "na sohdão de
um tempo que eles não partilhavam com mais ninguém".^''® Não
fora do tempo, eles viviam em um outro tempo: assíncronos.

^«ROLIN, 1998, p. 89.


^""ROLIN, 1998, p. 86.
3«ROLIN, 1998, p. 175.
ROLIN, 1998, p. 91.

165
CRER E M HISTÓRIA

Como Chateaubriand, o narrador de RoUn descobre o poder


do simultâneo do não-simultâneo, recusado e domesticado por
todos aqueles (inclusive ele) que acreditaram em História. Seguem-
se uma outra percepção das ruínas e uma outra forma de história,
na esteira de Vollender. Quanto à literatura, ela ressurge também
transformada. Abre-se, de fato, para ela, um novo espaço (mesmo
que o presente presentista a declare inútil), "Grande ressonância do
passado", ela "está voltada para o que desapareceu, ou para o que
bem poderia ter acontecido e não a c o n t e c e u " . A força singular
da escrita de Chateaubriand fora, nós o vimos, ter sabido ou podido
conjugar o poder novo da História apreendendo o mundo e o poder
da memória, que embaraça as hnhas, não cessando de jnterromper
o tempo chronos pelo tempo kairos. Com ele, o escritor tomava-se
esse nadador entre duas margens, "afastando-se com pesar da velha
margem", "nadando com esperança para uma margem desconheci-
da".^''® Ele stransformava propriamente em um lugar de memória:
não uma mina contemplando sua lenta decrepitude, mas esse ponto,
ele mesmo móvel, onde os fios do tempo se crazam e voltam a se
cmzar (trevo, passagem de nível), onde "as formas mutantes de sua
vida entravam umas nas outras", onde as datas se atraíam e se rever-
beravam, onde os lugares visitados jamais coincidiam exatamente
com eles mesmos, pois se insinuava a "oscilação do tempo".
Para os narradores de Rolin, não existe nem outra margem e,
nem mesmo, no momento onde tudo se interrompe, "os reflexos
de uma aurora", de onde eles não verão "o nascer do sol".^™ Nesse
sentido, eles não acreditam mais em História, mas, entre os primeiros
romances e Méroé, um deslocamento se operou. Apresentados como
"velhos dândis em escombros", vestindo seus "smoking de mínas",^^^
os primeiros narradores são personagens que estão no fundo do poço,
seres do fim. Para eles, ãcabo^para sempre o regime modemo de

^"'ROLIN, 1998, p. 96.


CHATEAUBRIAND, 2003-2004, t. 11, p. 1027.
' « C H A T E A U B R I A N D , 1969, I, p. 1063.
notemos, a última frase de Memórias de além-túmulo {Mémoires d'outre-tombe).
ROLIN, 1987, p. 9.

Ió6
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

historicidade e suas ilusões. O narrador de Méroé certamente não


está em plena forma, mas, no seu quarto de hotel dos Solitários, ele
escreve essa história, não que ele pense, como ele esclarece, "em
contribuir, assim, para a edificação das gerações futuras",^^^ mas isso
não o impedeí^le escreve. E, sobretudo, ele bem sabe que o mundo
não acabará corn ele.^^^ Com Méroé está colocada a questão de uma
transmissão: suspensa, no caso do narrador, que permanece isolado
na sua posição de "estrangeiro radical", buscada e violentamente
recusada no caso de VoUender. Nesse sentido, Méroé prepara e
torna possível o romance seguinte. Tigre de papel, onde Martin, o
personagem central, consegue falar a Marie de seu pai morto, que
havia sido o melhor amigo de Martin, e mesmo evocar seu próprio
pai morto na Indochina: o tenente que passa da Resistência a uma
guerra colonial. Ela é também a primeira a quem ele pode narrar seus
anos de engajamento: uma narrativa ao mesmo tempo distanciada
e sem menosprezo. Esses tempos justamente no quais ele acreditou
em História, em uma História amplamente sonhada.
Em suma, os personagens dos romances de Rolin quiseram
primeiro quebrar o tempo em dois, recolocando em marcha o fu-
turismo da Revolução, traído e esquecido por aqueles que ainda se
proclamavam seus depositários oficiais. Eles tentaram acreditar, até ã
cegueira, em História. Se a esperança estava presente, o desespero,
no entanto, nunca estava longe. Antes de, um pouco mais tarde,
procurar fervorosamente o esquecimento, mas um esquecimento
atravessado pela consciência de que seu "tesouro", mesmo sutil, ou
sua "herança", denegrida ou ridicularizada, não líavia sido prece-
dida de nenhum testamento, menos do que nunca. A esse ponto
poderia convir a fórmula de René Char, primeiramente retomada
por Hannah Arendt, sobre a herança (a da Resistência, no caso)
que não havia sido precedida de nenhum testamento.Mas ela
não basta, na medida em que a dificuldade é redobrada quando eles
percebem cada vez mais claramente que eles próprios vinham de

'^'ROLIN, 1998, p. 14.


''^'ROLIN, 1998, p. 58.
' " C H A R , 1983, p. 190; ARENDT, 1972, p. 11.

167
CRER E M HISTÓRIA

um tempo que não havia sido precedido por nenhum testamento


(o da Resistência, contra o qual se debatia Char, e do qual eles se
reivindicavam, eles que haviam nascido depois, os autênticos her-
i deiros) e aquele, bem mais repulsivo, da derrota e de tudo o que
se seguira, que nenhum testamento acompanhava, e com razão, e
que se marcava pelo silêncio que envolveu nossa infância. Ao que
\é preciso ainda acrescentar as expedições e derrotas coloniais, elas
próprias presas, engolidas nesse mesmo silêncio inicial.
Assim que o diz, magnífica e justamente, o narrador no final de
Méroé: "Parece-me que alguma coisa, uma onda sinistra, vem desse
tempo incrivelmente longínquo em que minha vida começava junto
às ruínas de Saint-Nazaire, na melancolia do estuário chuvoso", em-
bora na França do pós-guerra não tardaria a se manifestar a sede de
esquecimento e de consumo. E essa outra imagem ainda, para designar
o lugar ausente onde, no entanto, tudo começa: "Isso se conflinde em
minha lembrança com o pôr do sol numa paisagem esculpida por uma
tragédia que eu não conhecera, mas que eu sentia que marcaria minha
vida".^^® Assim começaram, para RoUn e o seus, como para Sebald
e Jacques Austerlitz, o exílio: das viagens etemamente recomeçadas
acompanhadas do sentimento persistente de "deslocamento". E dessa
ausência inicial se formou a possibilidade de uma escrita, impôs-se
uma necessidade de escrever. Nem a História, nem mesmo realmente
histórias (que esse "fio da narrativa" organiza, e que Musil já julgava
rompido), mas, a partir de paisagens de ruínas, a sombra trazida de
uma tragédia por muito tempo envolvida de silêncio.

Depois da história
Ao longo dos anos 2000, romances exploraram outras vias,
assumindo antes as representações apocalípticas do que a tragédia.
A questão não é mais saber se eles creem em ou na História: eles
se situam deliberadamente depois, uma vez advinda a catástrofe.
De que tempo é então feito esse depois? Ainda se trata de tempo?
Os Apocalipses "clássicos" o viam como todo um outro tempo...

'^^ROLIN, 1998, p. 254.

168
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

Penso, em particular, em dois romances americanos, amplamente


traduzidos pelo mundo: O homem que cai, de Don DeLiUo, e A estra-
da, de Cormac McCarthy, logo levado às telas.^^^ Eis dois escritores
pouco loquazes sobre si próprios e autores de uma obra importante.
Nascidos, respectivamente, em 1933 e em 1936, eles bem conhece-
ram o período do grande medo nuclear que simboliza, desde 1947,
o relógio do Juízo Final, cujo ponteiro dos minutos recua ou avança,
de acordo com a gravidade das críses. Mas, com esses dois Hvros,
trata-se de outra coisa: de um apocalipse que está aí, aconteceu. Não
é mais tempo de anunciá-lo, de imaginá-lo ou de tentar preveni-lo.
Encontramo-nos imediatamente no pós-catástrofe: logo depois, com
DeLillo - as torres do World Trade Center estão em chamas;^" em um
depois indeterminado com McCarthy, mas que já dura alguns anos.
Em A estrada, um mundo em ruínas, de onde toda vida desa-
pareceu, termina lentamente de morrer. Não existe mais calendário
ou cômputo, nada além de uma alternância de noites, sempre mais
escuras, e de dias, sempre mais cinzas. Tão densa é a camada de
cinzas e de poeira que os ventos frios não param de dispersar, que
o sol e a lua não são mais do que halos pálidos e que é preciso usar
máscaras. Sobre essa terra de desolação, destroços e cadáveres, ca-
minham, não devem parar de caminhar {to keep going), em direção
ao Sul, um pai e seu jovem filho, enquanto erram alguns miseráveis,
isolados ou em bandos, que abdicaram de qualquer humanidade.
Reina de novo um estado de guerra de todos contra todos, onde o
alimento ordinário é feito de carne humana. A regra é matar para
não ser morto. Só resta esperar que o último dos homens tenha
comido o último homem. Todos esses errantes em trapos, entre
os sem-domicílio e refugiados dos campos, são agora menos "so-
breviventes" do que "mortos vivos". Nesse tempo do pós, não há
nem passado nem futuro, nada aquém ou além do tempo presente:
"Cada hora. Não há mais tarde. Mais tarde é agora".^®** Os parágrafos

350DELILLO, 2008; MCCARTHY, 2008.


' " H A R T O G , 2010, p. 13-15.
'58MCCARTHY, 2008, p. 54.

1Ó9
CRER E M HISTÓRIA

se sucedem aos parágrafos, sem ligações, começando e terminando


de maneira abrupta. Vocabulário e sintaxe se empobrecem.
— Quais são nossos objetivos de longo prazo? pergunta um dia
a criança a seu pai.
— Onde você ouviu isso?
— Foi você que disse.
— Quando?
— Faz tempo.
Nos Apocalipses, o depois se abre sobre um outro tempo: o
da eternidade do reino de Deus. "Eu vi, escreve João, um novo
céu e uma nova terra", onde não é mais preciso que "brilhem o
sol nem a lua". Situado, por definição, antes, logo antes, ou se
apresentando sob a forma de profecia retrospectiva (como o livro
de Daniel), a narrativa apocalíptica calcula o tempo que falta antes
do fim e desdobra visões da passagem do antes ao depois, com as
catástrofes que o acompanham. O que acontece em A estrada? O
tempo da catástrofe deve durar para sempre ou, na falta de uma
nova Jerusalém, pode-se conceber uma luz (no fim da estrada)? Por
meio de algumas alusões bíblicas, McCarthy dá, nesse sentido, alguns
indícios contraditórios. No desvio da estrada e de um parágrafo, os
dois caminhantes encontram um mendigo que diz chamar-se Ehas
(sem dúvida, não é seu verdadeiro nome). Ora, é a única vez que
um nome próprio é atribuído, pois, nesse universo em abandono,
os nomes e sobrenomes não são mais correntes. Elias, no entanto,
não é um nome qualquer, sobretudo nesse contexto! Com ele se
evoca toda a tradição profética e apocalíptica: elevado ao céu, ele
é aquele que, de uma maneira ou de outra, deve voltar logo antes
do fim. Ora, o nauseabundo de McCarthy é um estranho profe-
ta. Desde sempre na estrada, diz, ele estima que "as coisas serão
melhores quando não houver mais ninguém". Quanto a Deus, a
resposta é clara: não existe, "e nós somos seus profetas".^^" Nesse
solilóquio que, intermitentemente o pai prossegue consigo mesmo,
trazendo-o a esse tempo de antes que ele não pode partilhar com

" ' M C C A R T H Y , 2008, p. 145.


'«'MCCARTHY, 2008, p. 155, 152.

170
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

seu filho, surge essa constatação: "Não existe grande livro" e teus
pais "estão mortos e enterrados".Ou seja, não há nem julgamen-
to, nem divisão entre os bons e os maus: nada além de um mundo
deixando de existir. Mas, inversamente, passa um raio de luz, do
qual o menino é, no sentido próprio do termo, o lar: ele "porta em
si o fogo".^®^ Essa criança do apocalipse (nascida com ele) é também
uma espécie de extraterrestre (alien) ou criança divina, "fiador" da
humanidade, em primeiro lugar, da de seu pai. Se o pai zela por seu
filho nessa guerra de cada instante, o filho cuida de seu pai contra
o esquecimento do que faz o homem. "Não é você que deve se
ocupar (to worry) de tudo", ele termina por lhe dizer. "Sim, sou
eu", responde a criança.^" Bem perto de morrer, o pai vê seu filho,
"olhando-o de algum inimaginável futuro, brilhando nesse deserto
como um tabemáculo". McCarthy exagera um pouco? Cabe a cada
um avaliar. O filho, em todo caso, sobrevive a seu pai e encontra
um casal que se parece muito com "gentios". Eles realmente o
são? Irão sobreviver, encontrar outros e formar o equivalente desse
"resto" (salvo da cólera de Javé), sempre discernido pelos profetas
e apocalipses? Em todo caso, a narrativa pende claramente para o
lado do filho e não para o de " E l i a s " . H a p p y end? Não, ainda
não, mas ao menos sua possibiHdade.
Cinqüenta anos separam a "estrada" de Cormac McCarthy
daquela de Jack Kerouac (nascido dez anos antes). A proximidade
dos títulos (pouco provável que seja por acaso) marca ainda mais a
diferença que os separa. A de Kerouac mobiliza e se abre sobre um
horizonte novo, celebra o movimento, a rapidez, os encontros. Ela
é inseparável do carro. Não há nada que D^ean goste mais do que
se sentar ao volante de um carro roubado e dar o fora metendo
o pé na tábua. A de McCarthy é desolação; o mar em direção ao
qual caminham seus andarilhos não se abre a nada, é apenas um

'"'MCCARTHY, 2008, p. 175.


'"'MCCARTHY, 2008, p. 246.
'"'MCCARTHY, 2008, p. 229.
'""•Um indício externo que leva a essa conclusão é a dedicatória do livro ao jovem
filho de Cormac McCarthy.

171
CRER E M HISTÓRIA

limite onde se quebram as ondas frias e cinzas. E, sobretudo, o pai


e o filho só têm por "veículo" um carrinho de supermercado, que
roda cada vez pior e que eles acabarão por abandonar. Eles devem
andar e andar sobre esse asfalto, testemunhando um mundo em vias
de desaparecimento. A destruição e o abandono não poderiam ser
mais marcantes. Os viajantes de Kerouac, pode-se notar, também
vivem dia após dia, sem um trocado, precariamente, de um porre
a outro; mas eles têm certeza do futuro, não de seus próprios, mas
do futuro enquanto tal. O presente deles não é o mesmo do que
o de McCarthy. De uma "estrada" a outra, o futuro se ecUpsou.
Elias responde a Dean.
A estrada enfim, pode ser lida também como uma aventura
|de Robson Crusoé invertida: um anti-Robinson. A morte de um
"mito. Pubhcado em 1719, no alvorecer do capitalismo triunfante,
o Robinson de Daniel Defoe, contando como o náufrago havia se
tomado mestre e detentor de seu império, é, segundo Michel de
i Certeau, "um dos raros mitos de que a sociedade ocidental mo-
Mema foi capaz".^*"^ Rousseau não o retivera como a única leitura
necessária e suficiente para Emile? Defoe descreve como Robinson
coloca sua ilha para trabalhar e recomeça a civilização: ele reinventa
o capitalismo e (re)coloca em marcha a História. Ele conta o tempo.
Enquanto que McCarthy descreve uma terra morta onde qualquer
acumulação se toma impossível, qualquer projeto, inconcebível. Para
Robinson, tudo se toma possível graças ao casco do navio, que lhe
fomece o "capital" inicial que ele fará fmtificar com ordem e mé-
todo. Chegando ao rio, os dois caminhantes de McCarthy também
encontram um casco. Mas a situação é totalmente diferente. Claro,
o pai o visita, claro, ele pega tudo o que pode, mas essa ocasião
inesperada intervém não no início da narrativa, mas no fim! Eis que
eles estão seguros de ter o que comer por alguns dias, mas, no fundo,
nada muda, pois não é o caso de se instalar, não é o caso de pegar
mais do que cabe no carrinho (que, aliás, será roubado, e depois
recuperado). Eles acabarão por abandoná-lo. De todo modo, um
carrinho de supermercado não basta para reinventar o capitalismo!

'^^DE CERTEAU, 1990, p. 201.

172
D O L A D O D O S ESCRITORES: O S T E M P O S D O R O M A N C E

Perdido na üha selvagem, Robinson tem horror do canibalismo.


Também a descoberta da pegada na areia lhe causa medos terríveis. O
antropófago ronda, mas, graças à superíoridade de suas armas de fogo,
ele pode mantê-lo no limite de seu mundo e, mesmo fazendo uma
boa ação, conseguir um escravo: o fiel Sexta-feira.- Em McCarthy,
a antropofagia está em toda parte; nenhuma fronteira subsiste entre
um exterior selvagem e um interior mais ou menos civilizado. A
única caça que perseguem desde então os raros sobreviventes, esses
selvagens vestidos de trapos, é o homem. Esse depois da História é
também um aquém da História.
Quando McCarthy escrevia sua ficção, ele não podia imaginar
a catástrofe que iria de fato acontecer em 11 de março de 2011: a
de Fukushima. Em Fukushima. Crônica de um desastre {Fukushima.
Récit d'un desastre), Michael Ferrier expõe uma seqüência de notas,
o mais próximo do que ele viu, ouviu e compreendeu do que se
p a s s o u . E m Tokyo primeiro, onde ele vive; na região devasta-
da, em seguida, que ele percorreu com uma camionete, carregada
de alimentos, medicamentos e roupas. Em alguns momentos suas
descrições lembram as de McCarthy. Quer se trate do barulho do
vento que nada mais detém, "deslize de um sopro sem fim sobre a
terra sem formas, o ruído mudo das coisas que já não são" ou do
dia que, amanhecendo, não o é de fato: "E numa névoa branca que
tem todas as características de um sepulcro, um lençol de bruma
e de orvalho. Ninguém mais acredita no céu azul".^^^ Ferríer leu
McCarthy? Eu o ignoro, e pouco importa, pois não estamos numa
competição entre o real e a ficção. Retenho, por outro lado, suas
maneiras análogas de procurar perceber esse depois da catástrofe,
que levou com ela todas as referências espaciais e temporais. Mesmo
as paisagens desapareceram.
Mas, com Fukushima, a essa primeira névoa, visível, junta-se
uma outra, imperceptível, inodora, a da contaminação radioativa,
da qual se pode mensurar a progressão e a intensidade. E que deve
durar bastante tempo, muito tempo. Inaugura-se aí, de fato, um

' " F E R R I E R , 2012.


'^'FERRIER, 2012, p. 104, 124.

173
CRER E M HISTÓRIA

tempo inédito, de um futuro já em parte determinado pela vida


dos produtos radioativos. Um futuro passado (mas não no sentido
de KoseUeck), um futuro que já veio, já passado, qu^* çonsrrange,
limita, ameaça p presente. Ou, igualmente, um futuro já presente,
instaurando um tempo que não é mais do que um presente destinado
a durar. Só existe o presente. Uma expressão se difundiu no Japão,
a de "meia-vida". EÍa designa o período ao fim do qual um desses
produtos ou dejetos radioativos "terá perdido a metade de sua efi-
cácia ou de seu perígo. Pode-se contá-la em dias, anos, séculos ou
milênios".^®® O plutônio tem uma meia-vida de 24 mil anos, pelo
menos, mas para o césio 135 ou o zircônio 93, contam-se milhões
de anos. Ferrier intitula a última parte de seu livro: "Meia-vida, ma-
nual de instruções". Ele a vê instalar-se pouco a pouco. A poluição
radioativa, escreve, "se funde, por assim dizer, com quietude nos
costumes, nos usos e até nas jurisprudências".^''' Em todo o caso,
viver em um regime de meia-vida, com o nuclear por horizonte
intransponível, seria, do ponto de vista do tempo, experimentar o
presentismo integral, habitado por um imaginário das catástrofes e
terrivelmente ansioso por comemorar.

'''FERRIER, 2012, p. 246.


'^'FERRIER, 2012, p. 248.

174
CAPÍTULO 4

Do lado dos historiadores: os avatares


do regime moderno de historicidade

De Chateaubriand e Balzac, vimos a que ponto os escritores


haviam sido tomados pelo tempo e se apropriado dele: para dizê-lo,
explorar suas discordâncias ou fendas e valorizar o simultâneo do
não-simultâneo. Não menos requisitados, os historiadores estiveram,
por sua parte, mais inclinados a apreender a marcha do regime mo-
derno de historicidade e a descrever as suas diferentes expressões ao
longo dos séculos XIX e XX. Para chegar a dizer que os homens
fazem História, foi preciso um longo caminho iniciado no Renas-
cimento e movido pela visão do homem como actor, ele faz e ele se
faz. Mas para que se pudesse crer em história, era preciso ainda que
o tempo se tomasse, por sua vez, um ator. O que aconteceu no final
do século XVIII. Do encontro e da interação entre os dois atores, o
primeiro tentando controlar o segundo ou se servir dele, resultava
a história efetiva. O regime modemo de historicidade se caracteriza
pela predominância da categoria futuro, por uma distância que vai
crescendo entre campo de experiência e horizonte de expectativa,
se retomarmos as megacategorias desenvol^àdas pelo historiador^
alemão Reinhart Koselleck.^^° O futuro é o te/o5.JDele, vem a luz
que ilumina o passado. O tempo não é mais um simples princípio
de classificação, mas ator, operador de uma lustória processo, que
é o outro nome ou o verdadeiro nome do Progresso. Essa história,
que os homens fazem, é percebida como se acelerando. Então se crê

'™KOSELLECK, 1990, p. 307-329.

175
CRER EM HISTÓRIA

em História: crença difusa ou refletida, mas compartilhada. Crê-se


também que os homens fazem a História. TocquevUle é quem, em
1840, formulou-a da maneira mais clara: "Quando o passado não
ilumina mais o futuro, o espírito anda nas trevas". Por essas palavras,
ele constata o fim do antigo regime de historicidade (quando a luz
vinha do passado) e fomece, ao mesmo tempo, a fórmula do regime
moderno, quer dizer, a chave de inteligibilidade do mundo desde
1789, onde é doravante o futuro que ilumina o passado e o caminho
da ação. Assim o espírito não anda, ou não anda mais, nas trevas.^^'
O regime moderno: versão forte e primeiras fissuras
A descoberta e a formulação da história processo, regida pelo
progresso, correspondeu ao tempo feliz, seguro de si e conquistador.
dasffilosofias daTiistória, das histórias universais ou da civilização.
Como o indicava François Guizot em seu curso na Sorbonne de
1828, "a idéia do progresso, do desenvolvimento, me parece a idéia
fundamental contida na palavra civilização"; ela comporta duas di-
mensões: o desenvolvimento da sociedade humana e o do homem
propriamente. Em suma, "é a idéia de um povo que marcha, não
para mudar de lugar, mas para mudar de estado". Tanto que teria
"uma história universal da civilização a escrever".^^^ Inaugurado em
meados do século XVIII, esse momento é, segundo Marcel Gauchet,
o da passagem da "condição política" à "condição h i s t ó r i c a " N ã o
esqueçamos, no entanto, que, para Leopold von Ranke, o pai sempre
celebrado da história modema, a visão hegeliana da História como
progresso do Espírito era insustentável, pois levava a considerá-la
como um "Deus em desenvolvimento". "Para mim, ele acres-
centava, creio no deus único que era, é e será, e creio na natureza

''' Segundo uma expressão de Julien Gracq, "a História é uma prescrição do Futuro
ao Contemporâneo".
="'GUIZOT, 1985, p. 58, 62.
'"GAUCHET, 2005, p. 9. Da condição histórica, ele distingue a condição poMtica, "nossa
condição permanente, aquela que nos liga a nossos predecessores e pela qual nós con-
tinuamos a pertencer à mesma humanidade, essa que permanece apesar da amplitude
da mudança e que define nossa identidade fundamental de atores do estar-juntos".

176
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

imortal do homem como indivíduo."^^'' Mas não deixa de existir,


por isso, uma história universal (que ele havia mesmo começado a
escrever na sua velhice), entendida simplesmente como a reunião de
acontecimentos de todos os tempos e de todas as nações; aí está uma
concepção clássica que se pode remontar até Diodoro Sículo, pelo
menos. Mas Ranke acrescentava uma dupla cautela: na medida em
que se possa tratá-los cientificamente e à condição de não separar a
investigação do particular do todo ao qual ele se vincula. Havia aí
matéria para recorrentes debates em tomo do geral e do particular.
A História, filosófica, universal, aquela sobre a qual viveu a
Europa modema, a ponto de tender a fazer dela a medida de toda
história — a verdadeira História —, tem por primeira característica o
papel atríbuído ao futuro: ela é futuro-centrada ou futurísta, quer
dizer, constmída do ponto de vista do futuro. Declarada assunto de
filósofo, a históría foi provavelmenfeTiííelhor expressão do regime
moderno de historicidade. Assim, ISchiUen na sua conferência de
1789, em lena, intitulada "O que é a~história universal e por que
estudá-la?" {Qu'est-ce que c'est I'histoire universelle et pourquoi 1'étu-
die-t-on?), representa a História na mesma postura de Zeus, quem,
do alto do Olímpio, contempla as batalhas dos aqueus e troianos:
A História observa com um olhar igualmente sereno tanto os
trabalhos sangrentos das guerras como a atividade dos povos
pacíficos que se alimentam inocentemente do leite de seus
rebanhos. Por mais desregrada que pareça a confrontação
da Hberdade humana com o curso do mundo, a História
observa com tranquilidade esse jogo confuso: porque seu
olhar, que alcança longe, descobre, já à distância, o objetivo
em direção ao qual essa liberdade sem regras é conduzida
pela cadeia da necessidade.
E ele coloca como uma evidência que "os povos descobertos
pelos navegadores são como crianças de diferentes idades circun-
dando um adulto".^'® Aceleração, atraso, avanço, mais tarde recu-
peração, tornam-se noções operatórias. De todas essas observações

""RANKE, 1854, p. 304-307.


"^SCHILLER, 1970, v. XVII, 1, p. 359-376.

177
CRER E M HISTÓRIA

e desses fragmentos de história, cabe à "intehgência filosófica fazer


um sistema". Pois só o filósofo possui verdadeiramente a capacidade
de abraçá-lo plenamente. Ele se dotou dessa visão sinóptica, da qual
Políbio esforçara-se para criar uma primeira formulação. Concebida
como "a explicitação do Espírito no tempo", essa história universal
vai, segundo Hegel, "de Leste a Oeste, a Europa é seu termo, a
Ásia, o começo".^^^
Progresso e Revolução

A expressão, provavelmente a mais emblemática, dessa que


se poderia chamar a versão forte e otimista do regime modemo
de historicidade irrompe na Exposição Universal de 1900, com
seu Palácio da Eletricidade, de estilo mourisco, resplandecente em
toda sua força durante a noite. Fascinado pela sala dos dínamos, o
historiador americano Henry Adams faz longas visitas a ela. "Fa-
miliarizando-se com a grande Galeria das Máquinas, ele começou
a sentir nos dínamos de 40 pés de comprimento uma força moral
quase parecida com aquela que os primeiros cristãos sentiram na
Cmz [...] Prontamente lhe vinha a vontade de rezar".^'^ Aí se é
tomado pela sacralidade do lugar e pelo mistério do progresso: o
grande dínamo da História. Para Herbert Spencer, que se dedicara
a produzir uma teoria do progresso, não haüenEüm mistério. O
progresso se define como "uma transformação do homogêneo em
heterogêneo" (quer se trate de indivíduos, de sociedades ou de civi-
lizações) e obedece a essa "lei universal", que quer que "toda causa
prodim mais de jum^eíeitQ.''- Entre os exemplos para ilustrar essa
lei, ele escolhe o da locomotiva: "Causa imediata do nosso sistema
de ferrovias, ela mudou a face do país, o caminho do comércio e
os hábitos de todos".^^®
De modo mais político, os discursos de Jean Jaurès participam
dessa mesma versão forte do regime modemo de historicidade, ex-

''^HEGEL, 1965, p. 280.


' " A D A M S apud GENTILE, 2011, p. 44.
''«SPENCER, 1891, p. 1, 43, 71.

178
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

primindo com eloquência sua filosofia do tempo, que se encontra na


sua maneira de escrever a história (sobretudo em sua História socialista
da Revolução francesa [Histoire socialiste de la Révolution française]) e,
evidentemente, na sua concepção de ação política. Frente a seus
adversários conservadores, ele reivindica a verdadeira "fidelidade"
ao passado com essa expressão: "É indo em direção ao mar que o
rio é fiel à sua fonte". E no que se refere à história: "É admirável ver
como a grande força histórica [a Revolução], que fez emergir um
mundo novo, ampUou ao mesmo tempo a inteligência dos mun-
dos antigos". Quanto ao presente: "Ele é apenas um momento na
humanidade que caminha", portanto, "nada de admiração beata",
para ele, pois "a França vai na direção de uma plena claridade que
ela ainda não atingiu, mas cujo pressentimento está em seu pensa-
mento".^^' Assim, o fijturo, como aprofiindamento e realização da
Revolução, é de fato o que vivifica e dá sentido ao passado como
ao presente. Dessa mesma versão forte participa plenamente o jovem
Jean-Paul Sartre:
Diziam-me sempre: o passado nos impele, mas eu estava
convencido de que o futuro me puxava; eu teria detestado
sentir em mim forças brandas em ação, o lento desabrochar
de minhas disposições. Eu havia inserido o progresso contí-
nuo dos burgueses na minha alma e o convertia num motor
a combustão; rebaixei o passado perante o presente e este
diante do futuro; transformei um evolucionismo tranquilo
em um catastrofismo revolucionário e descontínuo.^®"
Não poderia ter sido mais bem dito!
Progresso e revolução caminham juntos. Para Marx, as revo-
luções são "locomotivas" da história. A imagem do trem do tempo
ou da História é bastante soUcitada ao longo desse período. Os es-
critores sobem e descem do trem firequentemente. Concebida como
um desenvolvimento lógico, a revolução é trazida e levada pelo
futuro, de acordo com a ideia de Ferdinand Lassalle, para quem "as

'''JAURÈS, 2011, p. 210, 239-240, 249-250.


'»"SARTRE, 1964, p. 192.

179
CRER EM HISTÓRIA

revoluções se fazem, não são feitas" ou de Karl Kautsky, para quem


"nós caminhamos para uma era de revolução da qual não podemos
precisar o advento", sem excluir o messianismo de August Bebei,
anunciando, a seus aditores de 1891, que "poucas pessoas presentes
nessa sala não viverão esses dias".^^* Com a interpretação leninista,
ao contrário, alguma coisa muda na relação com o tempo. Para
acontecer, a revolução deve operar um salto fora do presente, sob
a ação de uma vanguarda revolucionária. Abrem-se então um outro
tempo e um novo futuro, promessas de um controle completo do
destino: acelera-se o fim do velho mundo. Pode-se acelerar o fim,
perguntavam-se as primeiras comunidades cristãs, vanguardas elas
também da Salvação?
Já antes da guerra de 1914, o regime moderno conheceu, por-
tanto, inflexões e reformulações que o tomaram capaz de atravessar
as crises e as inquietações, recorrendo ao evolucionismo e ao coringa
da Revolução. Esta última é concebida como auge do progresso ou
como além do progresso, mas, em todos os casos, como realização
da História; ela é esse ponto de vista sobre ela/a história, de onde
passa, sob o olhar do crente, a coorte dos séculos decorridos. Ao
mesmo tempo, a manifestação da dimensão propriamente econômica
dos fenômenos, o reconhecimento de uma história profundamente
entoada por modos de produção e lutas de classe, as reflexões so-
bre as crises econômicas, em breve o surgimento de uma história
econômica e social, levam ao estudo dos ritmos profundos das so-
ciedades. Se progresso existe, ele vem de longe, não é contínuo e
não se confunde com o que é imediatamente visível. Em suma, o
regime modemo adquiriu espessura e profundidade; o tempo que
o constitui não é de um só fluxo, quer se trate do passado ou do
futuro. O Quadro histórico dos progressos do espírito humano {Tableau
historique des progrès de Vesprit humain) de Condorcet ganhou em
consistência e complexidade.
No caso da França, a revolução está, ao mesmo tempo, atrás,
pois ela aconteceu, e adiante: a retomar. Encontra-se aí a incontes-
tável prova de que a história se pode fazer e ainda está por fazer. O

'«'GAUCHET, 2010, p. 99, 86.

180
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O REGIME M O D E R N O DE HISTORICIDADE

fracasso da revolução significou, para uns, que era preciso concluí-


la a fim de encerrá-la; para outros, que era preciso, ao contrário,
relançá-la para ultrapassar sua fase burguesa. Por um lado, ela foi a
ocasião de reativar e transpor o antigo e poderoso esquema cristão
do tempo, pontuado pelo já e o ainda não: ela aconteceu, assim
como o Redentor ^'á veio, mas ainda não realizou tudo, longe dis-
so. A esse esquema crístico virão se agregar variantes que mais ou
menos dele se apartarão.
Como os historiadores franceses, contemporâneos da instaura-
ção da Terceira República, se posicionam em relação ao futurismo
da história? São eles seus propagadores zelosos? Seguramente, eles
creem em História e na história, e ambicionam mostrar seu progres-
so. Péguy, que os critica fortemente, os acusa de ter feito dela "a
mestra de seu mundo"; eles que, preocupados com a exaustividade,
não ambicionam nada menos do que duplicar o real, arrogando-se,
assim, um verdadeiro poder (divino) de criação.^®^ Sem dúvida,
eles creem que se pode fazer a história, mas tudo se passa como se,
em suas práticas, eles se esforçassem em dissociar história e futuro,
embora a dimensão do futuro se encontre propriamente no cora-
ção do conceito modemo de história. Mais postulam fazer história,
isto é, uma história científica, mais eles são, com efeito, levados
a acentuar o passado e a insistir na necessária mptura prévia a ser
colocada entre o passado e o presente. Só existe história científica
do passado, repetem emulando, e, para fazer história, o historiador
deve começar por se abster de si próprio, quer dizer, abster-se do
presente.^®^ No limite, é preciso começar por fechar os olhos.
Enfatizando o método — na verdade, a crítica das fontes —, logo
eles foram tachados de positivistas por seus detratores mais jovens.
No início de sua busca por uma outra maneira de fazer história,
Lucien Febvre recusou-se a "aceitar com placidez a história dos
vencidos de 1870, suas pmdências trêmulas, suas renúncias a toda
síntese, seu culto laborioso, mas intelectualmente preguiçoso do

'»'Ver supra. Introdução, p. 13-14.


'"'HARTOG, 2001, p. 152-159.

181
CRER EM HISTÓRIA

'fato' e esse gosto quase exclusivo da história diplomática".^®'' Ele não


deixava de sublinhar que, na verdade, essa história "era apenas uma
deificação do presente com ajuda do passado, mas que ela se recusava
a vê-lo, a dizê-lo".^®® O passado tende, em suma, a prevalecer sobre
o futuro, levando ao mesmo tempo a "esquecer" o presente. Se de
fato a inteligibilidade vem sempre do futuro, não se faz muito caso
dele, ou melhor, faz-se como se o passado falasse sozinho, enquanto
a República é concebida como devendo ser o regime definitivo de
uma nação "cumprida". Nesse sentido, a história essencialmente
acabou. De modo que Febvre, evocando a situação da história no
final do século XIX, enumerava seus sucessos: ela havia "ganhado
a partida" e "fazia, uma a uma, a conquista de todas as disciplinas
humanas". Mas ele acrescentava "demais": ela "ganhou demais" a
partida, "ela adormeceu em suas certezas", "e cada ano que passava
dava à sua voz um pouco mais do som cavernoso de uma voz do
além-túmulo". Ela se congelava, repetia, não criava mais. E contra
essa história, segura de si mesma e esclerosada, que ele engajaria
seus "combates pela história".^®®
A "cunha" do caso Dreyfus
Mas, antes ainda, o caso Dreyfus tinha vindo de repente criar
problema, dividindo profundamente os historiadores.^®^ Pois ele
mostrava, mesmo àqueles que preferiam não ver, que o método
crítico não podia ser tudo (pois os dreyfusards e antidreyfusards o
reivindicavam igualmente). Obrigando um certo número dentre
eles a sair de seus gabinetes de trabalho para assumir publicamente
posição, ele fazia explodir, por outro lado, a sacrossanta separação
entre passado e presente. Eis que o próprio método poderia também
ter uma palavra a dizer nos conflitos do presente! O caso Dreyfus
mostrava, enfim, que a RepúbHca não estava tão segura quanto se
queria acreditar. Pode-se, de fato, reconhecer um papel matricial do

'«"FEBVRE, 1992a, p. v.
'«'FEBVRE, 1992a, p. 9.
'«'FEBVRE, 1992a, p. 24.
'«'Ver supra. Capítulo 1, p. 48-49.

182
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O REGIME M O D E R N O DE HISTORICIDADE

caso, do qual Madeleine Rebérioux, que se inscrevia, ela mesma, na


linha dreyfusarde, destacou justamente os elementos principais.^®® A
crise contribuiu para a emergência de uma história contemporânea,
preocupada em compreender a sociedade dando lugar à economia
e à sociologia. Enquanto a história se profissionalizou a título de
uma ciência do passado, especialistas estimaram dever aphcar seus
métodos de análise dos documentos do passado ao presente: o fal-
so incriminante de Dreyfus se decifra como um foro medieval. A
paleografia prevalece sobre a "ciência" de Bertillon, o especialista
patenteado do departamento de polícia.
Além disso, intervindo na mídia onde eles publicam cartas
abertas e assinam petições, os historiadores se tomam, sem que-
rer, personagens públicos. E se chegam até a depor em tribunal, é
certamente a título de sua especialidade, mas primeiro em nome
de sua consciência. Essa veia dreyfusarde ressurge em Pierre Vidal-
Naquet, no momento do caso Audin e na ocasião dos combates
contra o negacionismo, assim como na ocasião dos julgamentos
por crimes contra a humanidade (Barbie, Touvier, Papon). Como
sublinhou um livro coletivo, o caso Dreyfus marca um momento
de cristalização da forma Caso [Affaire]?^"^
Se ele sinaHza o triunfo púbUco do método critico, o caso sub-
linha também a sua insuficiência; senão, como expHcar que tantos
chartistes^'^ estivessem do lado "errado"? Dizer a verdade não basta.
As relações entre verdade, justiça e nação são decididamente mais
complexas. Para retomar a imagem proposta por Madeleine Re-
bérioux, o caso é como uma "cunha" que vem se cravar entre "os
valores ligados ao método histórico e a função nacional exercida pela
história". Por longo tempo em silêncio, Ernest Lavisse, o chefe oficial
dos estudos históricos, enxerga o perigo. Ele também convida, em
1899, a abandonar os termos "bárbaros" de dreyfusards e antidreyfu-

'»®REBÉRIOUX, 1979, p. 407-432.


'«'LOUÉ, 2007, p. 213-227.
''"Aluno da École de Chartes, instituição destinada à formação dos quadros científicos
de arquivos e bibliotecas, conferindo a seus alunos egressos o título de paleógrafos
ou arquivistas. (N.T.)

183
CRER EM HISTÓRIA

sards, convidando à reconciliação nacional: que todos, igualmente


"patriotas", ofereçam à "pátria o sacrifício de seus ó d i o s " . E l e faz
o que, para Péguy, é próprio do homem político: reconciliar. Razão
a mais para o homem dos Cahiers atacar a autoridade do historiador.
Desde 1892, Lavisse, aHás, engajou-se na sua grande História da França.
Concebida como história da nação "reaHzada", conduzida pela abor-
dagem crítica e inspirada pelo culto da pátria, ela lhe mobihza 20, e
mesmo 30 anos. Na seqüência do caso Dreyfus, vários historiadores
se engajaram na "obra de educação", envolvendo as universidades
populares, tais como Camille Bloch ou Gabriel Monod, que preside
por vários anos a universidade popular de Versailles.
O caso mostra também que se pode escrever história imediata
e que ela não está reservada somente aos profissionais: As Provas {Les
Preuves) de Jaurès, recebem críticas bastante positivas na Revue
historique, assim como a História do caso Dreyfus {L'Histoire de l'affaire
Dreyfus),de Joseph Reinach. Mas se publicam menos histórias do
que contra-histórias, que provêm da Unha antidreyfusarde. É preciso
mostrar que a "revisão" não é o apanágio dos dreyfusards somente. Está
em jogo algo como "à revisão, a revisão e meia": retomemos essa bela
palavra que eles confiscaram indevidamente e revisemos a sua revisão,
eles dizem! E ao que se dedica o Joseph Reinach historien. Révision de
l'histoire de l'affaire Dreyfus, de Henri Dutrait-Crozon, adomado com
um prefacio de Charles Maurras. PubUcado em 1905, é seguido em
1909 do Précis de l'affaire Dreyfus {Compêndio do caso Dreyfus), reeditado
em 1924 e depois em 1938. O termo "compêndio" exala sua erudição
alemã e parece significar: para revisar profimdamente, mobiUzemos
todo o aparelho formal da erudição. Dutrait-Crozon é de fato o
pseudônimo de dois coronéis da Ação firancesa, Frédéric Delebcque
e Georges Larpent. Ora, sabe-se a que ponto a história da Ação fran-
cesa está Ugada à do caso Dreyfiis. Do primeiro ao último dia, ela
não fez senão denunciar "o traidor judeu Alfi-ed Dreyfus" e, quando

'"'Emest Lavisse, La Revue de Paris, 1 de outubro de 1899, reimpressa em Savoir et


engagement, op. cit., p. 131.
"'JAURÈS, 1898.
' ' ' R E I N A C H , 1901-1911.

184
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

Maurras se ouviu condenar em 1945, ele exclamou: '"É a vingança


de Dreyfus". Ele não tinha esquecido nada, e aprendido pouco.
O revisionismo antidreyfusard marcou um tempo forte de uma
corrente que, na verdade, havia começado antes e prosseguiu muito
depois, até hoje. Desde 1866, ela se anunciava justamente como um
programa de "revisão histórica" com a fundação, nos meios católico
e legitimista, da Revue des questions historiques. Seu objetivo era então
lutar contra as "falsificações negativas" da história da França, quer
dizer, isso que se chamava de "o fetichismo revolucionário". Sur-
gido daí, Robert Faurisson assumiu o controle: do revisionismo ao
negacionismo, da "traição judia" à "mentira de Auschwitz".E, em
1980, Pierre-Vidal Naquet, o dreyfusard, se viu forçado a recuperar
essa hnha para enfrentar "o teste" do revisionismo e combater os
"assassinos da memória".^^® Depois, uma espécie de atalho se operou,
por um tempo, entre a virada linguística ou o "desafio narrativista"
e o revisionismo. O primeiro não arriscava a levar ao segundo? Ao
lhe conferir uma espécie de legitimidade, ou pelo menos, colocando
o real entre parênteses ou o declarando inacessível, não acabava se
privando do meio de recusar o negacionismo?^^''
Portanto, em menos de um século, a crença em história co-
nheceu certezas e dúvidas. A crença instituíra-se em disciphna que,
para triunfar, voltara-se cada vez mais unicamente ao passado: seu
domínio do saber. Mas uma crise, como a do caso Dreyfus, mostrava
que essa posição não era mais sustentável até o fim.

''O abismo da história"


A Grande Guerra desencadeia questionamentos múltiplos e
profundos das relações com o tempo e provoca um desses momentos
de parada que Hannah Arendt nomeou brechas (gaps) no tempo. O
que acontece então com a crença comum em História? Desde 1919,
Paul Valéry responde com a sua prosopopeia, logo famosa, sobre a

'""IGOUNET, 2012.
'«VIDAL-NAQUET, 1987.
'"•HARTOG, 2007, p. 104-108. Ver supra, Capítulo 2, p. 86.

185
CRER E M HISTÓRIA

decadência da Europa: "Nós, civilizações, sabemos agora que somos


mortais [...] Elam, Nínive, Babilônia eram belos nomes vagos [...]
Lusitânia é um belo nome também. E nós vemos agora que o abis-
mo da História é suficientemente grande para todo mundo". Dessa
destruição resulta que é tão difícil "reconstituir" o passado quanto
"construir" o futuro: "O profeta está no mesmo saco que o historia-
dor. Deixemo-los lá".^'^ Do lado dos escritores, Musil nos serviu de
referência e de guia.^'® A história faUu, essa história diplomática, aca-
dêmica "à la Bismarck", a única que Valéry conhecia, que pretendia
prever; essa fundada sobre o precedente e convencida de lições; essa
que pensava "em um amanhã, mas não um amanhã que não tenha
sido jamais apresentado". Também ela tinha por único resultado o de
fazer "entrar no futuro de costas"!^'' Pouco mais tarde, em 1931, ele
opõe à história repleta de eventos políticos uma outra, que não existe,
onde encontrariam lugar "fenômenos consideráveis", cujo "vagar de
sua produção os toma imperceptíveis".'""' Para aqueles que, como o
fiituro historiador Henri-Irénée Marrou, "nasceram para a vida in-
telectual na sequência das grandes matanças del914-1918[...], uma
ilusão se dissipara para sempre - a crença confortável e ingênua em
um progresso linear e contínuo que justificava a civilização ocidental
como o último estágio alcançado pela evolução da humanidade".
Spengler e Toynbee

Chocando-se com a negação que lhes trouxe a história real, as


filosofias da história universal perdem então sua evidência conquis-
tadora e otimista, trincam, acabam por se desagregar, mesmo se, na
Alemanha, teólogos e historiadores não abandonam a questão.''"^ A

'''VALÉRY, 1957, p. 988, 991.


"«Ver supra. Capítulo 3, p. 139 e ss.
'''VALÉRY, 1974, p. 1493.
"•»VALÉRY, 1960, p. 918-919.
"»»MARROU, 1968, p. 15.
"»^Na Alemanha, o historicismo, criticando a filosofia idealista da História, não
parou de trabalhar os limites de uma ciência da História, em que sentido e até

186
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O REGIME M O D E R N O DE HISTORICIDADE

Primeira Guerra Mundial terminou de fazer esses edifícios tremerem


em suas bases. Então, Theodor Lessing questiona a história em si,
mostrando que ela concerne não à ciência, mas à crença, no sentido
de ilusão, pois ela não faz nada além de dar sentido... ao que não
tem sentido. Escrito durante a guerra, seu Uvro é publicado em 1919
sob esse título eloquente, Geschiichte ah Sinnegebung des Sinnlosen (A
História como atribuidora de sentido ao que é desprovido dele).'*®^
Concebido desde antes da guerra, mas publicado somente em
1918, o pesado tratado de Spengler, A decadência do Ocidente. Esboço
de uma morfologia da história universal, tem a ambição de fundar uma
morfologia histórica comparada das civilizações. Spengler recorre,
como evocamos na introdução, à analogia, que é o instrumento da
história, e lança toda sua investigação a partir do paralelo, incontes-
tável segundo ele, entre os séculos do declínio da Antiguidade e a
fase que começa da história universal. O tempo se transforma então
em "lógica do destino", e esse novo olhar sobre a história, com
finalidade preditiva, tem a ambição de ser nada menos do que uma
"filosofia do destino", pois é certo que "nós não temos a liberdade
de escolher o ponto a alcançar", somente a de "fazer o necessário
ou nada".'^°'* Spengler recusa e refuta o otimismo racionalista do
Ocidente, partindo, como o notava Raymond Aron, de um de-
creto metafísico sobre a realidade das civihzações, que são como
mônadas, sem comunicação umas com as outras. Donde a questão
de princípio que se pode colocar: como ele pode saber, ele, que
pertence a esse momento preciso da civilização ocidental em que,
sempre, todas as culturas seguiram o mesmo caminho, o de uma
"sucessão orgânica rigorosa e necessária"?'^®^ Com que privilégio
pode-se gozar de uma tal visão, de cima e sinóptica?
Leitor inicialmente entusiasta dessa abordagem em termos de
civilização, Arnold Toynbee havia sido também diretamente atingido

que ponto ela pode sê-lo. Na França, a história metódica (mesmo se ela mantém
uma impregnação comtista) baniu toda filosofia da história.
-«»LESSING, 1919.
"""SPENGLER, 1948, t. II, p. 467, e supra. Introdução, p. 18-19
SPENGLER, 1948, t. I, p. 43.

187
CRER EM HISTÓRIA

pela guerra de 1914. Ele viu a morte bem real de vários de seus
colegas de Oxford e, mais amplamente, o que ele percebeu como o
suicídio da "marcha da Liberdade". "Nós também somos mortais"
(nós, indivíduos, mas também nossa civilização), diz ele, retomando
a expressão de Valéry para traduzir sua experiência desse mesmo
colapso. Helenista de formação, Toynbee parte, como Spengler, de
um paralelo entre a guerra do Peloponeso e a guerra de 1914, antes
de questionar o primado da civilização ocidental e de se lançar em
seu Estudo de história (Etude de Vhistoire), imenso percurso concebido
como um panorama comparado das civilizações, cuja publicação se
estende por quase 30 anos (de 1934 a 1961).'^°'' Sem jamais definir
realmente o que ele entende por civilização (a propósito do que,
no entanto, tudo se constrói), ele enumera 21 delas. Ele se atém à
"ilusão egocêntrica da civilização ocidental", seu provincialismo,
dir-se-ia hoje, ou ainda "à ilusão do Oriente imutável e ao pre-
conceito do progresso considerado como um movimento em linha
reta". O que distingue as sociedades primitivas das civilizações é, em
última instância, sua atitude em relação ao tempo. O mimetismo
ou faculdade de imitação é um traço genérico de toda vida social.
Nas primeiras, ele é voltado "para trás", em direção "ao passado" e
aos "ancestrais defuntos", enquanto que nas segundas ele é "voltado
para firente, em direção às personalidades criadoras: os pioneiros
Umas são estáticas, outras são dinâmicas. Toynbee havia lido As
duas fontes da moral e da religião (Les Deux sources de la morale et de la
religion), de Bergson. Se colocamos as diversas civilizações na escala
da duração da história da Terra e da humanidade, o tempo se torna
"relativo", embora se possa plenamente refletir fazendo valer sua
"contemporaneidade filosófica". Nada impede, portanto, de propor
uma analogia entre a situação em 1914 e a da Grécia no momento
da guerra do Peloponeso: seu passado poderia muito bem ser nosso
futuro. Por muito tempo focalizado na questão do declínio das civi-
hzações (sem por isso aderir à definição spengleriana da civilização
como estágio do declínio de uma cultura), Toynbee tomará cada

^TOYNBEE, 1933-1961. Os seis primeiros tomos foram pubücados entre 1933 e 1939.
TOYNBEE, 1951, p. 62.
]54

188
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O REGIME M O D E R N O DE HISTORICIDADE

vez mais distância, sobretudo depois de 1945, do detenninismoie


organicismo de Spengler e se esforçará por "reconclHar", abrindo
um espaço crescente à religião, "liberdade e necessidade".'*'®
O tempo moderno em questão
Outras dúvidas, menos radicais, e outras maneiras de se posicio-
nar em relação ao regime modemo de historicidade se exprimiram
nesses anos. Que se trate de uma critica do tempo do progresso,
de uma transformação da ideia de revolução, de um primeiro sur-
gimento da temática da memória coletiva, concorrente da história,
ou de uma necessária circulação entre passado e presente, tal como
irão preconizar os fundadores dos Annales.
Paralelamente ao que Paul Valéry analisou como uma "crise do
espírito", a Alemanha foi atormentada pela "crise do historicismo":
fenômeno cultural complexo, anterior à guerra, mas precipitado
por ela, e cujas expressões foram múltiplas. As criticas de Walter
Benjamin contra o tempo homogêneo, linear e vazio, e seu apelo a
um tempo messiânico tomaram-se as mais conhecidas.'"" A imagem
das revoluções como "locomotivas", ele substituirá por outra. No
final de 1929, "ano da grande virada", Stalin havia escrito: "Nós
caminhamos a todo vapor na via da industrialização, em direção ao
socialismo, deixando para trás nosso atraso 'rasso' secular".''^® Para
Benjamin, ao contrário, "pode ser que elas [as revoluções] sejam
o ato, da humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de
emergência".''" A revolução se torna aquüo que suspende a corrida
para o abismo. O recurso a um outro tempo histórico, o de uma
conjunção fulgurante entre um momento do presente e um mo-
mento do passado, é também uma fé em outra história que convida
a unir de outra forma presente e passado, sem para isso renunciar
à ideia de revolução, pelo contrário. Nessa constelação, o futuro,

"»«ARON, 1961, p. 21.


"'»BENJAMIN, 2001.
"'»De J. Stalin, "Discours prononcé à la conférence des marxistes spécialistes de la
question agraire", citado por Gauchet (2010, p. 315).
""LÔWYfljJMáBENJAMIN, 2001, e supra. Intermédio, p. 121-124.

189
CRER EM HISTÓRIA

no entanto, transfigurado, permanece a categoria diretora, abrindo


espaço ao simultâneo do não-simultâneo, que é a outra grande
modalidade de relação com o tempo.
A força da ideia de revolução é testemunhada também, mas em
sentido contrário, pelo oximoro, foijado nesses anos, "revolução
conservadora", que é uma singularidade da época da república de
Weimar. De fato, trata-se nada menos do que mobilizar a força atual
do conceito de revolução para recriar livremente um passado que
nunca existiu. Contra a tirania do futuro (e seus danos), volta-se para
o passado (e seus benefícios), operando-se "uma dupla radicaHzação
passadista e futurista", que age como uma dupla desorientação.
Uma outra critica, ou pelo menos uma clara insatisfação com
relação ao tempo modemo, exprime-se por um novo lugar reco-
nhecido ã memória, para além da história (a dos historiadores) ou
com uma postura crítica com relação a ela. Ao lado de Proust, de
Bergson"*" e sobretudo de Benjamin mais uma vez (com seu concei-
to de Eingedenken), tem-se o início de uma sociologia da memória,
desenvolvida por Maurice Halbw^achs, de 1920 até sua morte em
1944, enquanto que a guerra de 1914 precipitou as transformações
da sociedade. Para ele, toda memória coletiva tem "por suporte um
gmpo limitado no espaço e no tempo". Cada gmpo tendo "sua
duração própria", não existe tempo universal e único. Vista a partir
da memória, a história só pode se encontrar em posição de exteriori-
dade. Seus praticantes estabeleceram, aHás, que ela começava onde a
memória terminava. Halbwachs não diz nada diferente, mas insiste no
hiato que as separa. A memória coletiva centra-se nas semelhanças; a
história, procedendo por atalhos, faz surgir as diferenças. Ela "extrai
as mudanças da duração". A memória está no contínuo. Depois das
crises, ela se apHca em "reatar o fio da continuidade" e, mesmo se
"a ilusão" não dura, por algum tempo pelo menos, "imagina-se que
nada m u d o u " . E x i s t e aí uma clara crítica do fazer historíador da
históría ou uma clara demarcação de seus Hmites.

"'^GAUCHET, 2010, p. 425.


""AZOUVI, 2007.
HALBWACHS, 1997, p. 166, 134. Ver supra. Capítulo 2, p. 98-100.
]54

190
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O REGIME M O D E R N O DE HISTORICIDADE

Da universidade de Strasbourg, que voltou a ser francesa,


virá a resposta historiadora, profissional, de dois fundadores dos
Annales, Lucien Febvre e Marc Bloch, os quais, assim que foram
desmobilizados, receberam o chamado do decano Pfister. Alsaciano
e ex-aluno de Fustel de Coulanges, esse último preparou, desde
1917, a reabertura da universidade. Antes de tudo, exige Febvre
em sua primeira aula, é preciso começar por romper com todas as
instrumentahzações de que, nos dois campos, a história tinha sido
objeto. E a condição para poder visar a "um esforço de análise real-
mente desinteressado" e também a resposta, ao mesmo tempo ética
e metodológica, que ele dá à questão: "Tenho o direito de fazer
história num mundo em ruínas?". Sob essa condição expressa,
podemos voltar a fazer história.
Por outro lado, impehda pela jovem sociologia, uma história
econômica e social, atenta a outros ritmos do tempo, começou a
reivindicar um espaço. Desde 1903, François Simiand, discípulo
de Durkheim, convidou os historiadores a se desviar do acidental
e do individual para focar no regular, repetitivo, e no coletivo.'''^
Alguns se engajam, assim, na história dos preços. Ernest Labrousse
termina seu Esboço do movimento dos preços e das rendas na França do
século XVIII {Esquisse du mouvement des prix et des revenus en France au
XVIIIe siècle), em 1932. E a partir do esforço de extrair regularidades
que se coloca a questão da mudança histórica. A Revolução intervém
como a resultante de todos os movimentos da conjuntura ou ela é
o produto de um tempo anormal? O desafio não é pequeno: como
o fazer história pode melhor elucidar a História que aconteceu e,
ao mesmo tempo, esclarecer as condições de seu fazer presente?
Em seu breve aviso Aos leitores {Adresse aux lecteurs), na abertura
do primeiro número da revista Annales, Bloch e Febvre anunciam,
em 1929, a vontade de lutar contra o "divórcio" entre os historia-
dores "que aphcam aos documentos do passado seus bons e velhos

-»'^FEBVRE, 1920, p. 1-15.


"'''De François Simiand, "Méthode historique et science sociale", publicado em 1903
na Révue de synthèse, reeditado em 1960 nos Annales, Économies, sociétés, civilisations.
Sobre o momento Simiand, ver Jacques Revel (2006, p. 32-36).

191
CRER E M HISTÓRIA

métodos" e os homens "engajados no estudo das sociedades e das


economias contemporâneas". Sem negar as especializações, é preciso,
portanto, favorecer a circulação entre o passado e o presente, pois
"o futuro da história econômica depende disso, como também a
justa inteligência dos fatos que amanhã serão história".Além disso,
uma certa familiaridade com a história ajuda a convencer que o mais
próximo (no tempo) não é necessariamente o mais explicativo. O
combate principal se trava contra a ruptura entre passado e presente,
tomada o credo da história metódica, mas eles não mais pretendem,
desse modo e diferentemente do flindador da Revue historique em 1876,
contribuir "para a grandeza da pátria e para o progresso do gênero
humano".''^® Em suma, o futuro parece ter-se eclipsado, pelo menos
do espaço da ciência. Se ele permanece, sob a figura do progresso,
um valor para o cidadão, o historiador (republicano) não faz dele
o único dado da sua reflexão ou o princípio de inteligibihdade da
história. Por certo, trabalha-se para tomar permeável a fronteira entre
passado e presente: é o interesse bem compreendido do historiador,
como o do sociólogo e o do economista; reconhece-se e se assume a
presença da história na história. Mas, continua-se a se proteger, como
da peste, do anacronismo e se recusa toda postura de profeta (mesmo
do passado). Alguns anos mais tarde, em 1936, Febvre ia combater
esses novos "profetas" que são Spengler e Toynbee, suscitando "uma
atmosfera de excitação diante da ampla majestade da História", mas
cujos pesados maquinários produzem, no final das contas, pouca
substância para o historiador, "anaHsta e dedutivo". Spengler é um
"mágico", "um visionário perfeitamente adaptado às necessidades
da Alemanha conturbada" dos anos 1920. Para Toynbee, reveem
as mesmas palavras, "profeta", "mágico", "ilusionista". Contra esses
"fabricantes de Filosofias da História baratas", ele reivindica uma
nova maneira de fazer história relacionada com as ciências de hoje,
em particular a física, que, com a teoria da relatividade, acabam de
atravessar uma crise que sacudiu os próprios fiindamentos do saber.''''

""BLOCH; FEBVRE, 1929, p. 1-2.


"'®MONOD, 1876.
""FEBVRE, 1992b, p. 119-143.

1 9 2
DO LADO DOS HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

Reveladora é também a atitude de Raymond Aron, que pu-


blica, em 1938, a Introdução à filosofia da história (Introduction à la
philosophie de l'histoire). Se ele critica ferozmente a história positivista,
ele questiona também, senão a realidade, ao menos "a regularidade
do progresso"/^" Sobretudo, confiante na experiência de sua estadia
na Alemanha, ele conhece o historicismo e a crise que ele atravessa.
Para Aron, o historicismo é definido como "a filosofia do relativis-
mo". Ele corresponde a "uma época duvidosa de si mesma", a "uma
sociedade sem futuro", e se traduz pela "substituição do mito do
futuro pelo mito do progresso". "Ao invés do otimismo seguro de
que o futuro será melhor do que o presente, estende-se uma espécie
de pessimismo ou agnosticismo". Contra esse fatalismo, ele defende
a ideia de que "o passado diz respeito ao saber" e "o futuro, à von-
tade". Tampouco ele está "a observar, mas a c r i a r " . E l e partirá
para Londres, desde junho de 1940, juntar-se aos franceses livres
em torno do general de GauUe. Para ele, também, o historiador está
na história, ele não duvida que haja uma história, frequentemente
trágica, e escolhas a fazer. O homem tem uma história, ou melhor,
"é uma história inacabada".O fatalismo se revela ser, na realidade,
apenas a simétrica inversão do otimismo do futuro. Permanece, de
fato, a estrutura própria do regime moderno de historicidade - a
força indiscutível e esmagadora do futuro - , mas o sinal se inverte.

Depois de 1945: "todas as pontes foram rompidas"

O que se poderia pensar, depois de 1945, dessa história "inacaba-


da" que era o homem, para retomar a expressão empregada por Aron
em 1938? O que acontece com a crença em História e no tempo
como progresso? Houve uma forte consciência de que uma nova
brecha (gap) se abrira no tempo, senão a de um tempo desabado ou
bloqueado. Em O mundo de ontem (Le Monde d'hier), redigido antes

A R O N , 1986, p. 182.
« • A R O N , 1986, p. 377, 432.
A R O N , 2010, p. 179.

193
CRER E M HISTÓRIA

do seu suicídio no Brasil, em 1942, Stefan Zweig testemunhava as


rupturas que ele havia vivido: "Entre nosso hoje, nosso ontem e nosso
antes de ontem, todas as pontes foram rompidas". "Nossa herança
não é precedida de nenhum testamento", é a expressão paradoxal,
fogada pelo poeta René Char em Feuillets d'Hypnos (Folhetos de
Hipnos), publicado em 1946, onde ele buscava traduzir o que havia
sido a experiência da Resistência. Hannah Arendt logo a retomou,
pois, para ela, esse aforismo, por seu lado "abrupto", dava conta desse
momento no qual vem a se cavar um fosso entre passado e futuro:
estranho espaço de entre-dois onde os atores "tomam consciência
de um intervalo no tempo que é inteiramente determinado por
coisas que não são mais e por coisas que não são ainda" Indicando
ao herdeiro o que será legitimamente seu, o testamento é, de fato,
uma operação no tempo: "Ele atribui um passado ao futuro". Ele
nomeia, indica onde está o "tesouro" e o que contém.'*^'^ O simples
fluxo do devir toma-se tempo contínuo, pontuado entre passado
e futuro. Ele se faz, no sentido próprio, tradição. Hannah Arendt
aproxima a expressão da frase de Tocquevüle sobre o passado que
não mais ilumina o futuro, que significava o fim do antigo regime
de historicidade. Antes, quando se queria compreender o que se
passava, começava-se por se voltar para o passado, a inteligibilidade ia
do passado ao fiituro e a história estava aí para fomecer os exemplos.
Ela era, segundo a expressão de Cícero, magistra vitae. O testamento
precedia a herança e o passado tinha um flituro.
Mas, com a Revolução Francesa, essa relação com o tempo
havia deixado de ser operatória. E por isso que, atravessando o
Atlântico, Tocquevüle empreende uma viagem em direção ao flituro
visando iluminar o passado. Da América, mais avançada, toma-se
I claramente visível para o observador esse grande movimento de
nequalização das condições que está em curso, na França, desde
if.uís XIV e cuja Revolução não foi, enfim, senão um momento
kramático de aceleração. A inteligibihdade vem agora do futuro e
se o espírito não quer caminhar na obscuridade, ele deve procurar

"^ARENDT, 1972, p. 19. Ver supra. Capítulo 3, p. 167.


"^"ARENDT, 1972, p. 14.

194
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O REGIME M O D E R N O DE HISTOnCIOAOf

a luz do futuro. Levado pelo progresso, o futuro se encontra entiio


investido de um poder que, anteriormente, era o do passado. Toda
a economia da herança, da dívida e da transmissão se encontra trans-
formada. Tomamo-nos endividados, por assim dizer, com relação
ao futuro, cujo "testamento" se nos impõe: é o porvir que atribui
um futuro ao passado. Mas antes de poder formular essa inversão
de perspectiva, e de tirar dela todas as consequências heurísticas,
tomando possível a Tocqueville a concepção de seu livro (que
pertence, por sua família - como Chateaubriand, seu parente —, aos
vencidos da Revolução), será preciso quase meio século. Tocque-
ville encontrou um meio de superar a brecha e, ao mesmo tempo,
reduzi-la, olhando, desde o futuro, o lento e formidável avanço da
igualdade. Mesmo (já) se colocando do ponto de vista do imediato
pós-guerra, Char não pode ver nada de comparável, ou então ele
percebe somente a precipitação em direção ao esquecimento.
A recusa do regime moderno

A luz ainda pode vir do futuro? Aos que, como Spengler, depois
de 1914, respondiam não, reúnem-se os que, como Mircea Eliade,
denunciam "o terror da história" e procuram, primeiro para si mes-
mos, maneiras de sair do tempo. A expressão aparece, em 1944, em
seu Diário (Joumat), enquanto ele ainda se encontra servindo em Lisboa
como adido cultural. "Eu gostaria de poder escrever uma vez essa
coisa terrível: o terror da história [...] Não é verdade que o homem
tem medo da Natureza, dos deuses: esse medo é mínimo em relação
ao pavor que ele sofreu, durante milênios, em meio à história". Já nos
anos 1930, ele havia optado pela pré ou proto-história, conservada nas
lendas e no folclore das sociedades camponesas. Mas, depois de 1944,
ele se transforma francamente em "inimigo" da história. Aspirando
a se libertar da história, ele assinala seu "desgosto" crescente por ela
e denuncia "a queda na história". Estabelecido em Paris, onde ele
opera sua metamorfose em historiador das religiões, ele pubHca, em
1949, O mito do eterno retomo (Le Mythe de Vétemel retour).'^^^ Nesse

"25Sobre Mircea Eliade, ver Dan Dana (2012), Florin Turcanu (2003), Alexandra
Laignel-Lavastine (2002).

195
CRER EM HISTÓRIA

livro, o mais conhecido dos que ele escreveu, EHade se emprega em


generalizar ou universalizar a proposta, opondo as sociedades primi-
tivas àquelas que caíram na história. Um pouco mais tarde, Cioran,
seu companheiro dos anos 1930, escreverá também um Hvro que
é uma reflexão sobre a A queda no tempo (LM Chute dans le temps).'*^^
Segundo o esquema eliadiano, os povos primitivos vivem
no "paraíso dos arquétipos", praticam a regeneração periódica e,
assim, não deixam o tempo "se transformar em história". Entre
aqueles que estão expostos à história, a pior situação é a dos povos
que tiveram o azar de se encontrar, sem querer, no "caminho da
história". Eliade pensa, em particular, nos povos do sudeste da
Europa, tais como os romenos, vizinhos de impérios sempre em
expansão. Donde ocorre, para eles, sofrimento, terror e sacrifício.
A história não é nada além disso. A diferença do homem moderno,
o primitivo está, ao contrário, em um contínuo presente. "A cada
ano, existe a Hberdade de anular seus erros, de apagar a lembrança
da sua queda na história e de tentar de novo uma saída definitiva
do tempo". E difícil não pensar que essa frase vale também, senão
sobretudo, para o próprio EHade, tão pronto a "anular seus erros"
e ávido por maneiras de abolir o tempo.
Seu inimigo principal é o que ele nomeia historicismo, a saber,
Hegel, Marx e o existencialismo. O mito do eterno retorno tem por
subtítulo Arquétipos e repetições. Ora, desde a terceira linha do pró-
logo, ele informa ao leitor que, se não tivesse medo de se mostrar
demasiado ambicioso, teria dado ao livro um segundo subtítulo:
Introdução a umafilosofiada História.'^^ Difícil ser mais explícito: Ar-
quétipos e repetições se opõe a Filosofia da História; a filosofia da história
hegeliana toma-se uma filosofia da história, e Introdução substitui
(modestamente!) Lições (Lições sobre a filosofia da História, publicadas
depois da morte de Hegel). E o todo tem por característica essencial
ser uma crítica radical da História, concebida como uma queda no
tempo. Ele inverte a perspectiva ou recupera Hegel, valorizando

"'"CIORAN, 1964.
"^'ELIADE, 1949, p. 11.

196
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

a origem e as maneiras de retomar a ela. Em suma, Eliade é pro-


fundamente hostil ao regime moderno de historicidade, em um
periodo no qual a crença em História se encontrava, no mínimo,
abalada. Ele está longe de ser o único, e várias foram as maneiras de
exprimir essa recusa ou essas dúvidas nas sociedades europeias. Por
sua parte, Eliade, depois de ter ensaiado uma via política, optou pela
da "ciência". Ora, a origem, os arquétipos, a repetição, o arcaico, o
primitivo, o tempo quase imóvel ou a estmtura, ninguém negará que
esses temas estivessem na ordem do dia nos anos 1945-1970. Claro,
defender que eles só foram levantados ou tratados pelos "inimigos"
da história seria absurdo, mas contentemo-nos em notar que Eliade
estava lá, pronto: com seu material, sua teoria, suas obsessões - com
seu silêncio também sobre seu passado de engajamento na extrema
direita romena, no seio da tristemente famosa Guarda de Ferro. Por
todo um período ele se encontrou em sintonia com expectativas,
questões e não ditos.
Rumo a uma outra história (T945-T960)
O que acontece do lado dos historiadores, de quem notamos
que, em nome mesmo da história ciência, haviam tomado, há muito,
suas distâncias com relação ã versão otimista ou forte do regime
modemo de historicidade? Esses anos, paradoxalmente, são os de
uma crença reafirmada e de um programa reformulado. Sintomá-
ticas, nesse sentido, são as posições de dois deles, que se tomaram
muito próximos nesses anos do pós-guerra: Lucien Febvre e Fer-
nand Braudel. Desde 1946, Febvre, único diretor da revista depois
do assassinato de Bloch pelos nazistas, lança o Manifesto dos Novos
Anais {Manifeste des Annates nouvelles), com u m título muito claro,
"Face ao Vento" ("Face au Vent"), e dá um novo título à revista:
Economias, sociedades, civilizações {Economies, sociétés, civilisations).
Assinalava, assim, que o mundo havia entrado "em estado de ins-
tabilidade definitiva", onde as minas eram imensas, mas onde havia
"muito mais do que minas, e mais grave: essa prodigiosa aceleração
da velocidade, justapondo os continentes, aboÜndo os oceanos,
suprimindo os desertos, coloca bmscamente em contato gmpos
humanos portadores de cargas elétricas contrárias". A urgência, sob

197
CRER E M HISTÓRIA

pena de nada mais compreendermos do mundo mundializado de


amanhã, de hoje já, era de olhar, não para trás, para o que acabara
de acontecer, mas diante de si, para frente. "E findo o mundo de
ontem. Para sempre terminado. Se temos uma chance de escapar
ilesos — nós, franceses —, é compreendendo, mais rápido e melhor
que outros, essa verdade concreta. Abandonando o navio. Ao mar,
eu vos digo, e nadem com determinação". Estamos longe do nadador
entre duas margens de Chateaubriand. Estamos, antes, na urgência
de um salve-se-quem-puder generalizado.
Fazer face ao vento, isso quer dizer, para o historiador, expH-
car "o mundo ao mundo" e responder às questões que se coloca
o homem de hoje. Para o passado, não se trata senão de "bem
compreender em que difere do presente".Quanto à interrogação
sobre a, ou, antes, as civiHzações - o terceiro nível do subtítulo —,
ela vinha de mais longe: dos anos 1930. E, de fato, na ocasião da
primeira Semana de Síntese (Semaine de Synthèse), organizada em
1929 por Henri Berr, que a noção de civiUzação (assim como a
de evolução) havia sido inicialmente examinada. Encarregado do
relatório introdutório, Febvre havia conduzido a investigação até o
momento em que aparecem no uso corrente, ao lado da civilização
(cuja noção emerge no século XVIII na França e na Inglaterra), as
civiHzações no plural."*^'
Febvre e Braudel haviam se encontrado em 1937 no navio que
os trazia do Brasil. Em 1949, Febvre passa o bastão a Braudel em um
artigo programático intitulado: "Rumo a uma outra história" (" Vers
une autre histoire") e, significativamente, datada do Rio de Janeiro:
desde o Novo Mundo. Essa outra história, Febvre a vê se afirmar
em três direções: a do programa braudeliano tal como ele emerge

"^spEBVRE, 1992c, p. 35,40,41. O discurso de ChurchiU, pronunciado em Zurique em


19 de setembro de 1946, pretende dar a palavra de ordem do momento: "Nós devemos
todos virar as costas aos horrores do passado. Nosso dever é olhar para o fiituro. Se
queremos salvar a Europa dos males sem fim e de uma ruína sem consolo, nós devemos
fiindá-la sobre um ato de fè na femíHa europeia e sobre um ato de esquecimento de
todos os crimes e de todos os erros do passado".
"^'FEBVRE, 1930, p. 45. Ele retomará essa questão no prefacio a Gilberto Freyre.

198
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

da grande tese sobre o Mediterrâneo, que acabava de ser publicada-


a de uma história das civilizações, atenta à diversas historicidades*
e a de um engajamento do historiador no seu presente. Ele reitera
a necessária abertura para o mundo e para o futuro, defendendo
uma história que não se deixa esmagar pelo passado. Convém, ao
contrário, organizá-la "para impedi-la de pesar muito sobre os
ombros" dos vivos. "Esquecer [ele acrescenta] é uma necessidade
para os grupos, para as sociedades que querem v i v e r " . O futuro
está aí, ele bate à porta, enfrentá-lo se assemelha a uma operação
de sobrevivência, que é também a única maneira de atribuir ou
reatribuir sentido à prática da história e à História.
Nesse mesmo ano de 1949 (que é também o da publicação de
O Mito do eterno retorno, assim como de As estruturas elementares do
parentesco [Les Structures élémentaires de la parente]), Braudel publica
então O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II {La
Méditerranée et le monde méditerranéen à 1'époque de Philippe IT). Lon-
gamente preparado antes da guerra, retomado durante seus anos de
prisão, o livro-manifesto de uma "história estrutural" aparece, enfim.
Ele não se pronuncia diretamente nem sobre o período recente nem
sobre a força propulsora do futuro. Mas bem se sabe que o autor
é "pouco solicitado pelo acontecimento" e que o escalonamento
das três temporalidades dá o papel principal ã longa duração, a es-
sas "camadas de história lenta" que estão "no limite do movente".
Também ao "orgulhoso discurso unilateral do historiador alemão
Heinrich von Treitschke, 'Os homens fazem história'", ele opõe,
nós já o assinalamos, "a história também faz os homens e talha seu
destino" e, ao mesmo tempo, limita as suas responsabilidades.''^^
Eles têm pouco poder sobre ela. Se os pontos de partida de Febvre
e de Braudel se diferem no que concerne ao tempo da história, eles
concordam em evitar o passado recente e se encontram na ideia de
que para um "mundo novo" é preciso "uma nova história": a das
civilizações para um, a da longa duração para o outro e, por que
não, a longa duração das civüizações.

«"FEBVRE, 1930, p. 436-437.


«•BRAUDEL, 1969, p. 21.

199
CRER E M HISTÓRIA

Em 1950, Braudel, entrando no CoUège de France, pronuncia


sua aula inaugural. Ele a intitula "Posições da história" ("Positions
de rhistoire"). A um mundo novo, ele escreve, é preciso uma nova
história, ainda que o primeiro século XX "se evada". Essa mesma
que desenhou O Mediterrâneo e que logo sintetizará a noção de longa
duração, convocada a traçar seu caminho bem além do mundo dos
historiadores. Para apreender a insuficiência do acontecimento, que
brilha mas üumina pouco, ele utüiza a imagem dos vaga-lumes fos-
forescentes que, uma noite, perto da Bahia, envolveram-no.''^^ Mais
importante, no Brasil, ele teve a experiência do Adântico contem-
plado a partir das margens ocidentais, assim como, jovem professor
na Argélia, ele havia tido a experiência do Mediterrâneo a partir de
sua margem sul. Havia aí o início de um descentramento do olhar
histórico e de uma outra maneira de amarrar espaço e tempo. De
um deslocamento no espaço decorria uma outra avaliação do tempo
histórico e dos seus ritmos.''^^
Por seu turno, Claude Lévi-Strauss parte, igualmente, em
Raça e história (Race et histoire), publicado em 1952, das civilizações,
que devem ser vistas menos como escalonadas no tempo do que
distribuídas no espaço. Recusando o evolucionismo ordinário,
ele convida a fazer passar o progresso de "categoria universal" à
de uma simples "maneira particular de existência própria à nossa
sociedade". Ao longo de suas intervenções, ele não faz nada além
de questionar fortemente o regime moderno de historicidade.''^''
E fará o mesmo com a distinção, foqada um pouco mais tarde,
entre sociedades quentes e sociedades frias, cujo alcance, ele sempre
sustentou, é teórico. Se umas foram modeladas por certa tempo-
ralização (futurista) da história e mesmo fizeram dela um princípio
de desenvolvimento, as outras, não, ou ainda não, mas é certo que
todas são igualmente sociedades na história e sociedades produtoras
de história, embora com modos distintos de estar no t e m p o . T r a -

«^BRAUDEL, 1969, p. 23.


«'GEMELLI, 1995, p. 55-64.
«"LÉVI-STRAUSS, 1958, p. 368.
LÉVI-STRAUSS, 1973, p. 40-41.

200
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

tava-se menos de relativismo do que de abrir espaço a uma teoria


da relatividade suscetível de se aplicar ao mesmo tempo às ciências
físicas e às ciências sociais.'*^''
À Enciclopédia francesa

Para dar uma idéia do lugar reconhecido à história desde o


final do século XVIII, evocamos, no início deste livro, duas refe-
rências: os artigos "História" da Enciclopédia {Encyclopédie) (1751) e
do Dicionário (Dictionnairé), de Pierre Larousse (1865). Um terceiro
marco se oferece a nós: o vigésimo e último tomo da Enciclopédia
francesa (Encyclopédiefrançaise), publicado em 1960. A vasta empresa
fora lançada em 1932, por Anatole de Monzie e Lucien Febvre,
que a dirigira até sua morte. O último volume aparece sob a dupla
direção de Gaston Berger e Pierre Renouvin. Ela tem por título O
mundo em transformação (História, Evolução, Prospectiva) [Le Monde en
devenir (Histoire, Évolution, Prospective)]. N o Prólogo, Berger evoca
naturalmente Febvre: "Ele pensava que o livro no qual se falaria
de história deveria ir do passado ao presente". Era a lembrança da
própria escolha dos primeiros Annales recusando todo corte inicial
entre passado e presente. Mas Berger acrescenta: "Levar a investi-
gação até o futuro é avançar sobre a própria Unha por ele traçada.
O tempo é projeto tanto quanto memória".
De fato, por sua tripartição, o volume intenciona apreender, em
um mesmo conjunto, as três categorias do passado, do presente e do
fiituro. Uma vez indicado o objeto da história, trata-se de "ressaltar
tudo o que ela traz à inteligência do mundo contemporâneo". Na
segunda parte, dedicada à descrição desse mundo contemporâneo,
é "a própria evolução que deve aparecer", visando "fazer apreender
as transformações em curso". A terceira parte, enfim, "voltada para
o futuro - é o que sugere o termo de prospectiva - é uma reflexão
sobre a ação, sobre a natureza do tempo onde ela se desenvolve, sobre
as condições de sua eficácia, sobre sua preparação sistemática, sobre a
atitude que nos prepara melhor para ela". Berger acentua "a estreita
complementaridade" existente entre as três partes do livro. Uma vez

"•^LÉVI-STRAUSS, 1973, p. 396-397.

201
CRER E M HISTÓRIA

a palavra dada à retórica introdutória, não deixa de ser significativa


a preocupação em reatar a história ao fiituro, e não unicamente ao
presente, sem mesmo falar do passado, relançando sob o signo da
prospectiva, tudo somado, uma versão modesta e controlada do re-
gime modemo de historicidade. Berger fala, de fato, da "elaboração
de uma sabedoria" e das discipHnas que estão sendo organizadas, e
que devem nos ajudar a tomar "decisões razoáveis". A história, desde
que se inscreva nessa tripla perspectiva, tem seu lugar entre elas.
Cabe a Aron, autor da Introdução à filosofia da história {Introduc-
tion à la philosophie de l'histoire), abrir a primeira parte do volume.
Desse capítulo dedicado ao "objeto da história" (L'objet de l'his-
toire), retenhamos apenas, para nosso propósito, essa constatação de
uma extensão da crença em história ou ao menos na existência de
uma história. "A humanidade inteira está entrando nessa forma de
consciência histórica característica do Ocidente modemo", escreve,
que se apresenta sob "o tríplo aspecto: liberdade na históría, recons-
tração científica do passado, significação humanamente essencial
da transformação". Um paradoxo constitutivo desse "homem do
Ocidente", tomado por modelo mesmo quando detestado, é que ele
é "ao mesmo tempo curíoso do seu passado tal como aconteceu e
preocupado com um futuro radicalmente novo. Em outros termos,
ele é ao mesmo tempo historiador e revolucionário". Atitudes nada
"incompatíveis", acrescenta Aron, pois "o historiador, enquanto
tal, não está condenado à negação do inédito". De modo que "o
conhecimento histórico, corretamente utilizado, nos ajuda a com-
preender como veio a ser o mundo tal como nós o vemos. Mas,
longe de nos ensinar que não há nada de novo sob o sol, ele nos
obriga a reconhecer o que nunca v i m o s " . T a l é o caso da "revo-
lução ligada ao carbono, ao petróleo e ao átomo", que abre "uma
era radicalmente nova da aventura humana". Trata-se igualmente
de negociar uma articulação entre passado e futuro.
Marrou, que adiante no volume se interroga sobre os "Ümites às
contribuições da história", enumera três atitudes equivocadas em relação
a ela. Existem aqueles que a evocam com "dogmatismo", os marxistas,

""Vol. XX, seção 4, p. 10.

202
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O REGIME M O D E R N O DE H I S T O « C I O A M

para quem ela é o equivalente do que era ofatum antigo, e que se pre-
cipitam à ação com um "ardor implacável". Aqueles que, na esteira de
Nietzsche, deploram o fardo excessivo e paralisante que ela fez pesar
sobre o presente e que sonham com novos começos. Aqueles, enfim,
mais numerosos hoje, que desenvolvem uma atitude desdenhosa em
reação a ela, destacando "a incerteza" e a "vaidade" de suas conclusões.
Reatando, segundo Marrou, com o pirronismo do século XVII, eles
exibem um ceticismo alternadamente cínico ou desabusado."*^® Con-
tra esses excessos de honra e indignidade, ele retoma, por sua vez, os
temas desenvolvidos, pouco antes, em Do conhecimento histórico {De la
connaissance historique) (1954) e defende uma história concebida como
conhecimento autêntico e verdadeiro do passado humano.

Posições da história

O que mudou entre a "situação" dos anos 1950-1960, quando


se reformulava o conceito de história, e a de hoje? Tudo ou quase
tudo: o mundo "novo" que Braudel via surgir em sua aula inaugural
não existe mais. Quais são então as "Posições" da história hoje? Se-
guimos, no primeiro capítulo, a ascensão das dúvidas e vimos como,
passando da história à memória, havíamos deslizado da história juiz
à história julgada. Eu gostaria aqui de voltar a esse mesmo período,
mas interrogando-o de maneira diversa: perscrutando a evolução dos
príncipais conceitos que levaram as reformulações do pós-guerra.
Da longa duração ao fudo-acontecimento
Comecemos, dado o lugar considerável que ela teve, pela no-
ção de longa duração. Descrita por Braudel como "essas camadas
da história lenta", "no Umite do movente", não seria ela, em outros
termos, o equivalente da visão de história descrita por Kundera e
evocada acima, ao falar desse "massacre absurdo e gigantesco", que
havia "inaugurado na Europa uma nova época onde a História, au-
toritária e ávida, surgia diante de um homem e se apoderava dele"?"*^'

"»Vol. XX, seção 18, p. 8.


«'Ver supra. Capítulo 3, p. 141.

203
CRER EM HISTÓRIA

Nascido em 1902 no leste da França, Braudel enfrentou, de


fato, a Primeira Guerra Mundial e atravessou a Segunda como pri-
sioneiro em um Oflag na Alemanha. A expressão "os homens fazem
a história", como já observamos, ele preferia opor "a história faz
também os homens e talha seus destinos".'*''" Se ele tinha essas reservas
sobre o fazer a história, não tinha, ao contrário, nenhuma dúvida
sobre a existência da História em si, nem sobre o interesse de fazer
a história de suas estruturas mais profundas, de onde se esperava o
nível mais explicativo. Até o final dos anos 1970, muitos historia-
dores partilharam essa maneira de fazer a história e promoveram o
que, por um tempo, se nomeou a "nova história" e se apresentou
como uma outra maneira de fazer a história.
A longa duração não tem mais valor de frente pioneira; ela é,
na melhor das hipóteses, como uma escala de análise entre outras.
Sobretudo, aquele que Braudel havia relegado ao polo oposto, o
acontecimento, voltou ao primeiro plano, a ponto de não se ver
outra coisa: é preciso sempre consumir, "produzir" acontecimento.
Na versão negativa, ele vem também sob a forma de catástrofe.
Entramos, como às vezes se diz, no tempo das catástrofes, que tam-
bém parecem obedecer à lei da aceleração. Essa multipUcação do
acontecimento é bem o indício de uma nova relação com o tempo,
ele mesmo percebido como um objeto a consumir cada vez mais
rapidamente. Os "eventos" fazem parte agora do cronograma de toda
empresa e das obrigações de toda instituição que se preze. Como
melhor se assegurar de não estar atrasado do que criando a si mesmo
o acontecimento? Triunfa o tudo-acontecimento que, notemos, vai
de par com o tudo-patrimônio, o tudo-memória e a comemoração.
Mas de que surgimento se trata ou como o acontecimento se mostra,
apesar de terem mudado as condições de visibilidade?
Pode-se situar o retomo, pelo menos na França, em 1968: os
eventos do mês de maio, logo conhecidos por "Maio de 68". O
acontecimento, alguns proclamaram, triunfou sobre a estmtura!
Muito simples: pois, para anunciá-lo, devem-se aproximar os termos
e opô-los. O aqui e o imediato do "tomar a palavra" de Maio de 68

"""BRAUDEL, 1969, p. 21.

204
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

são inseparáveis das mídias: o rádio, transmitindo-a, suscitando-a,


transforma-a em palavra ativa, constituindo-a, ao mesmo tempo,
em primeira narrativa do acontecimento/'^^ Mais amplamente, o
acontecimento modemo inclui a representação que ele faz de si
mesmo enquanto ele ainda está acontecendo, e ainda inscreve no
espaço público sua autocomemoração imediata. A queda do muro
de BerHm, para o resto do mundo, são as imagens da queda. As câ-
meras de televisão e, agora, os celulares, transformando as condições
de visibilidade dos acontecimentos, banalizaram essa característica.
Mas em um regime de visibilidade generalizada, quando se
pode ver tudo, o perigo é de não se ver absolutamente mais nada.
Nada além de imagens que se seguem umas às outras: um fluxo
de imagens que aniquila o tempo do comentário e o recuo da
análise, e que joga somente com as emoções do espectador: em-
patia, identificação, deploração. O evento que levou mais longe as
possibilidades dessa nova economia do acontecimento foi o 11 de
setembro, com o encadeamento de duas sequências: com o primeiro
avião batendo contra a primeira torre, estamos ainda em um acon-
tecimento "clássico", enquanto que o segundo, as câmaras tendo
o tempo de se fixar, mostra-se, em tempo real, um evento global,
que se repetirá à exaustão nas telas do mundo inteiro num eterno
presente. Mas com a multiplicação do acontecimento, é também
e, paradoxalmente, a crença em História que se vê substituída por
uma crença em Acontecimento, abrindo apenas sobre si mesmo e
desencadeando imediatamente ondas de comentários tautológicos.
Sem contar o círculo de especialistas, que se alternam nas "edições
especiais" e outras "Breaking News" das redes de televisão.
Civilização / Modernização / Modernidade
A noção de civilização foi varrida pelo avanço da noção de
globalização, enquanto que a de modernização foi rademente rebai-
xada. Quanto ao Selvagem, na sua acepção lévi-straussiana, como
objeto "bom a ser pensado", ele está totalmente desacreditado. Ele
pertence às velhas luas do estmturalismo, às variações eurocêntricas

«•DE CERTEAU, 1994; N O R A , 2011, p. 35-57; DOSSE, 2010.

205
CRER E M HISTÓRIA

sobre a alteridade, em suma, a tudo o que hoje é rejeitado como


uma posição culturalista. Para os adeptos dessa corrente da antro-
pologia, é preciso, inclusive, desfazer-se do conceito de cultura e
se concentrar somente sobre a contemporaneidade da situação de
interlocução entre o etnólogo e seus "informantes".
Apareceu, no entanto, no fmal dos anos 1990, uma tese que
relançava a abordagem pelas civiHzações, mas de um modo defensivo,
colocando-se no campo da Realpolitk. Lançado por um politólogo
americano famoso, Samuel Huntington, o conceito de "choque"
(clash) de civiHzações fez bastante barulho.'*''^ Com razão, o poHtó-
logo francês Pierre Hassner o quaHficou de Spengler do pós-guerra
fria"!'^'*^ Huntington recorre a essa abordagem para compreender o
mundo do final do século XX e do início do XXI, onde, ele escre-
ve, "a cortina de veludo das culturas substitui a cortina de ferro da
ideologia".'^'*'' Convicto de que "paradigmas" mesmo simplificados
onde "mapas" são indispensáveis para quem queira compreender o
mundo ou a fortiori agir sobre ele, o poHtólogo cita então Braudel
com aprovação, subHnhando ser preciso começar por saber reconhe-
cer, sobre um mapa-múndi, quais civilizações - essas reaHdades en-
globantes e de longa duração - existem hoje.'*' ® Graças ao paradigma
civiHzacional, pode-se, por exemplo, fixar onde termina a Europa (lá
onde termina a cristandade ocidental e onde começam a ortodoxia e
o Islam). De uma tal abordagem, resulta, segundo uma definição, em
suma, pouco original, que "as civiHzações formam as tribos humanas
mais vastas", e que o choque de civiHzações não é nada além de um
"conflito tribal em escala global".'*'^® Tal ordem internacional é ao
mesmo tempo geradora de instabiHdade (conflitos tribais, mas em
uma escala global) e "uma barreira contra uma guerra mundial".

""'HUNTINGTON, [1996] 2000.


""'HASSNER, 1994, p. 263.
"""HUNTINGTON, 2000, p. 178.
""^HUNTINGTON, 2000, p. 42.
""^HUNTINGTON, 2000, p. 22.
""'HUNTINGTON, 2000, p. 10.

206
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

Findo o tempo das conquistas, Huntington convida a uma guerra


de posições, reciclando, à escala das civilizações, a teoria obsoleta
do containment.
O que fazer, de fato? Tomar consciência de que o mundo está
se tomando "mais moderno e mais ocidental" e que, se existem
civilizações, a ideia de que o mundo constituiria "uma só e mesma
civilização universal não é defensável". Donde essa mensagem aos
americanos: "A sobrevivência do Ocidente depende da reafirmação
pelos americanos de sua identidade ocidental; os ocidentais devem
admitir que sua civilização é única, mas não universal, e se unir
para recobrar força contra os desafios colocados pelas sociedades
não ocidentais".'*''® Mais uma vez? Huntington visa, na verdade, a
"um inimigo interior", a saber, os defensores do multiculturalismo,
que na herança ocidental só enxergam os crimes do Ocidente. Eles
querem "livrar os americanos de uma herança europeia vergonhosa
e procuram a redenção nas culturas não europeias". E lembrar então
o lema dos pais fundadores: e pluribus unus. Se a América devesse
um dia se dividir entre uma pluralidade de civilizações, ela não seria
mais os Estados Unidos, mas se tomaria as Nações Unidas.
Vê-se, portanto, que o objetivo principal de Huntington era
chamar ã preservação, proteção, revigoramento da civilização oci-
dental, a partir dos Estados Unidos.'''" Essa atitude, onde transparece
um medo do futuro, convida a se fechar sobre si mesmo, abando-
nando o resto. Além disso, se as civilizações são de fato essas "tribos
humanas" mais vastas, e se o choque de civiHzações se explica como
"um conflito tribal em escala global", a renúncia ao universalismo é
o preço a pagar pelo Ocidente para melhor se defender, quer dizer,
para melhor proteger uma América que, reafirmando fortemente seu
pertencimento à civiHzação ocidental, poderá escapar, em casa, da
armadilha mortífera do multiculturalismo. Se a civilização ocidental
é única, ela não é universal.''^"

""«HUNTINGTON, 2000, p. 18.


" " ' H U N T I N G T O N , 2000, p. 461, 470.
"'»HUNTINGTON, 2000, p. 17-18 c passim.

207
CRER EM HISTÓRIA

A existência das civilizações (no plural) contradiz as pretensões


universalistas e não há, portanto, nem civiUzação universal (noção
falsa e perigosa) nem história universal. Na sua robusta simplicidade
spengleriana, a tese pôde convir a muitos no Norte como no Sul.
"Civilização" era um conceito futurista (caminha-se para ela)
e um conceito normativo (existem graus de civilização). Elemento
central do regime modemo de historicidade (lembremo-nos de
Guizot), ela evocava um tempo aberto sobre o futuro e progressivo.
O mesmo para a "modemização", que se Umitava, se quisermos,
ao segmento mais recente do processo de civiUzação, e concedia
mais importância ã aceleração. A modernização era a forma con-
temporânea de civilização. Era então a belle-époque dos planos e da
futurologia. Segundo a etimologia latina da palavra, "moderno"
significa, de fato, recente e, portanto, do agora. Entre 1950 e 1970,
o conceito-chave de modemização foi um imperativo, uma palavra
de ordem, um projeto que todo o mundo poderia subscrever: a Leste
como a Oeste ("o futuro radioso" frente ao "sonho americano")
entre os ex-colonizados como entre os ex-colonizadores. Mas essa
unanimidade, que na verdade recobria profundos mal-entendidos,
desintegrou-se. Logo se falou menos de modemização e mais de
modernidade. Uma é o caminho e a marcha, a outra é o resultado:
eis então ao que conduz a modemização. A modemidade é como
o balanço que se pode elaborar ou, de maneira mais crítica ainda,
o inverso do quadro resultante da modemização. O inventário da
modemidade, realizado (do exterior ou da periferia) pelos antigos
colonizados, desemboca num questionamento da modernização: de
seus pressupostos, de seus não-ditos, de suas destmições e de seus
crimes. Da sua maneira de ver, de dizer, de organizar o mundo
desde o centro e para o seu próprio benefício.
Se remontamos longe no tempo, a ideia de modemidade, assim
questionada, poderia desconstmir ao mesmo tempo os conceitos
de modemização e de civilização. Para não renunciar completa-
mente ao conceito de modemidade, alguns propuseram multiplicar
a modernidade, identificando "modemidades múltiplas", outros,
mais radicais, arriscaram "modemidades altemativas". Mas se isso
conduz a uma proposição do gênero "existem múltiplas maneiras

208
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O REGIME M O D E R N O DE HISTORICIDADE

de ser moderno" ou, no limite, "a cada um sua modernidade", se-


gue-se que a noção de moderno perde toda sua pertinência. O que
há então de "modemo" em uma modernidade alternativa? O que
sobra ou qual a origem? A modemidade foi igualmente questionada
a partir do "centro", quer dizer, na Europa e, mais globalmente, a
Oeste. O que se nomeou pós-modernismo começou como uma
crítica do moderno e uma revelação do que havia sido a verdadeira
face da modernidade e de seus malefícios.
Claro, as duas vias dessa crítica, a conduzida a partir da "pe-
rífería" e a movida a partir do "centro", distinguidas por simples
comodidade, são indissociáveis uma da outra, mesmo que seus
contextos respectivos de elaboração e seus campos de aplicação não
sejam estrítamente os mesmos. No que conceme à carga temporal
dos conceitos, e mais amplamente, ã relação com tempo, passar de
"modemização" à "modemidade" e a "pós-modemo" é, mesmo sem
que se perceba, renunciar ao tempo. "Modemização" e "civilização"
são conceitos teleológicos; o objetivo a atingir nomeia o processo:
o futuro está em obra. Nada parecido com "modemidade", que
designa o estado moderno, "moderno" sendo ele mesmo tomado
como absoluto. Pois "modemo" não foi plenamente dinâmico e
futurísta a não ser enquanto ele teve um face a face com quem
disputar: o antigo ou um antigo.''®^
Globalização, História global
Já abalada pela crítica da modemidade, a noção de moder-
nização foi, mais recentemente, deposta pela de globalização. O
conceito designa bem um processo: o global avança, como uma
onda, até cobrír tudo. A globalização tem por objetivo um mundo
globalizado. Mas, ã diferença dos conceitos precedentes, ele não traz
consigo nenhuma carga temporal específica: ele é espacial, e não
temporal, ou, melhor, destemporalizado.''^^ Ainda que todo mundo
concorde que a globalização não ocorrerá de um dia para o outro.

H A R T O G , 2008, p. 19-23.
"^'Em se tratando de reconhecer como sendo do globo, pertencimento comum e parti-
lhado, a palavra cosmopolita o dizia, em grego, é verdade, mas de maneira mais política.

209
CRER E M HISTÓRIA

e até mesmo que ela jamais se concluirá completamente, essa é uma


outra questão. Ela visa ser sempre mais englobante e aproximar o
máximo possível do tempo real: a ubiquidade e a instantaneidade
são suas palavras de ordem. Procurando superar sempre mais as
limitações do espaço e do tempo, ela se desdobra em uma espécie
de presente permanente. O passado não tem curso e o futuro tam-
pouco: só importa colocar-se em posição de ser sempre mais rápido,
de ser aquele que chega primeiro, quer dizer, na verdade, aquele
que reage mais rapidamente. Nessa corrida de velocidade, são os
computadores que ganham, e são os mais recentes e mais potentes
que têm a última palavra.
Do ponto de vista da história, as criticas da modernidade e o
fenômeno da globalização conduziram a questionamentos e refor-
mulações. Entre essas últimas, com uma bibHografia em expansão
muito rápida, contam-se, ao menos, a connected history, a shared
history, e a global history. D o lado dos questionamentos, as subaltern,
depois os post-colonial e os cultural studies lançaram o movimento e
convocaram a uma "provincialização" da Europa, da qual o livro
de Dipesh Chakrabarty se tomou o porta-bandeira.'*^^ Vista de fora,
a Europa (mas o que é então essa Europa reduzida a alguns traços
essenciais?) perde a excepcionaHdade da qual, desde o século XVIII
pelo menos, ela fez, no sentido próprio do termo, seu fundo de co-
mércio. Sobre essas bases podem se engajar a constmção de histórias
altemativas ou se exprimir, às vezes, recusas da história, contestada
como invenção ocidental que os colonizadores trouxeram em suas
bagagens. Existem inúmeras formas, mais ou menos elaboradas, mas
elas têm por traços comuns a pretensão de restabelecer, encontrar
uma continuidade com origens desaparecidas, apagadas e, no entan-
to, sempre presentes. E, hoje, reencontradas e reconhecidas como
patrimônio, esses traços desenham uma identidade autêntica: pré-
-hispânica, pré-colonial, primeira, autóctone. Os fundamentalismos
religiosos (em particular o islamismo radical) são, antes, a expressão
de uma recusa da história atrelada a uma maneira de estar à vontade

CHAKRABARTY, [2000] 2009.

210
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

no presente da globalização. O tempo das origens que se pretende


reinstalar certamente nunca existiu sob essa forma. Estamos, do
ponto de vista do tempo, do lado das revoluções conservadoras,
conjugando passadismo e futurismo.
Enfim, vindo não de um historiador, mas de um antropólogo
habituado a fazer amplas comparações, foi editado um Uvro que
leva a questão a um passo além. Com O roubo da história {Le vol
de l'histoire), ]a.ck Goody pretendeu, de fato, demonstrar como a
Europa impôs a narrativa de seu passado ao resto do m u n d o . E l a
se apropriou da história, impondo sua própria história como a única
história verdadeira. Portanto, ela falsificou a sua história e mutilou a
dos outros. O argumento se desenvolve em um duplo registro: o de
uma ampla comparação entre a Ásia e a Europa (a Eurásia desde a
idade do bronze) e o de uma crítica a autores que, no entanto, não
têm fama de serem os mais caseiros: Braudel, Needham, Elias ou
Finley. Não, a Europa não inventou o amor, a democracia, a Uber-
dade ou o capitaUsmo de mercado, mas tampouco o etnocentrísmo,
repete Goody. Penetrando no ateliê do historiador, ele constata
que, confiscando o tempo e o espaço, monopolizando os conceitos
históricos, a Europa "distorceu muito" nossa compreensão da Ásia.
Na medida em que nenhum corte do tempo é natural, não mais
no Oeste do que no Leste, é preciso comparar mais amplamente,
partindo de mais longe (de onde irradia a revolução urbana da idade
do bronze), com o objetivo de "retificar", e assim "reorientar" a
história mundial."*®®
Inscreve-se nessa perspectiva a estimulante pesquisa feita por
Romain Bertrand sobre o "encontro" entre holandeses, malaios e
javaneses no final do século XVI e início do XVII. Bertrand "aposta"
na simetria, conferindo "uma igual dignidade documental ao con-
junto dos enunciados presentes".'*®^ "O que foi um evento" para os
holandeses, sua chegada em Java, escreve ele, "não suscitou o míni-

"^''GOODY, 2010.
"^^GOODY, 2010, p. 19, 23.
BERTRAND, 2011, p. 14.

21 1
CRER E M HISTÓRIA

mo movimento narrativo entre os poetas da corte e os cronistas de


Bantem e de Mataram. O encontro, no seu início, não foi, portanto,
um 'lugar em comum'; por um lado, porque ele consistiu em uma
coexistência (e não uma fusão) de cenas historiográficas, por outro,
porque ele nunca se reportou às mesmas evidências".'*^' Diferentes são,
de fato, as experiências do tempo de uns e de outros e, diferentes, seus
horizontes de expectativa. Mas foram sobretudo as histórias modemas,
habitadas pelo conceito modemo de história, que aprofundaram as
distâncias, concluindo que o pequeno espaço atribuído aos primeiros
europeus nas crônicas de Bantem e Mataram se devia à incapacidade
inata de seus autores de compreender a realidade do que se passava.
Bertrand sugere, de fato, que tanto os escritos malaios da época, assim
como as narrativas históricas europeias, estavam implementando,
na mais completa ignorância uns dos outros, uma forma de historia
magistra, à procura de exemplaridade.'*®® Não a mesma, claro, pois
a exemplaridade europeia era, ela mesma, um misto de elementos
antigos e cristãos, mas a malaia como a europeia pertencem ainda ao
que se pode chamar, de maneira bastante ampla, de antigo regime
de historicidade. Em seu hvro Hhas de História (Des Mes dans l'histoire),
Marshal SahHns já havia proposto, para dar conta dos encontros ao
mesmo tempo reais e desperdiçados entre ingleses e maoris, a noção
de working misunderstandings, de mal-entendidos produtores de efeitos
em uns como em outros.'*®' Não se trata de se refiigiar em alguma
incomensurabilidade das culturas, pois ingleses e maoris, holandeses e
javaneses competem efetivamente uns com os outros; simplesmente
as referências mobilizadas, as categorias soHcitadas para apreender o
acontecimento e lhe dar sentido não são análogas nem homólogas.
Como o historiador pode admitir essa ambição ou enfi-entar
o desafio da simetria? Uma vez que a vista do alto, tal como a do
Zeus antigo, lhe é vedada, a tarefa obriga, em termos de encami-
nhamento documentário, a dar "um passo para o lado" ou, para

""BERTRAND, 2011, p. 445.


"'«BERTRAND, 2011, p. 316-320.
"''Sobre Marshal Sahhns e a história "heróica", ver Hartog (2012, p. 38-42).

212
D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

mobilizar uma outra imagem, "a navegar incessantemente entre os


mundos, sem se ancorar mais do que o necessário em um ou em
outro"/''° Essa história, diz ainda Bertrand, no "nível das ondas",
se quer atenta às "situações" e às "interações", pois "compete aos
atores e somente a eles enunciar o que os unia e os separava". O que
ela pode esperar mostrar? "Que Java não foi a beneficiária passiva
da 'modernidade europeia', mas que ela abrigava os possíveis de
uma outra H i s t ó r i a " . O programa é ao mesmo tempo simples em
sua formulação e muito exigente em sua realização. Existe sempre,
portanto, uma história (não necessariamente com um H maiúsculo),
mas ela implica um outro fazer história. Certamente.
Vem-me, apesar de tudo, ao espírito, a famosa declaração
inaugural de Heródoto, que anunciava querer tratar "em paridade"
(homoiôs) tudo o que os gregos e os bárbaros haviam realizado de
grandioso. Longe de mim a ideia de me comprazer em uma variante
do "nada de novo"! Sobretudo porque a declaração herodotodiana
repousava sobre uma ilusão propriamente helenocentrista, a da falsa
simetria do par gregos-bárbaros. Enquanto a simetria reclamada por
Bertrand vem da história das ciências e serve primeiro a sair da ilusão
da divisão entre Eles e Nós, ela mesma distantemente herdada da
visão grega do mundo. Mais profundamente, Heródoto mesmo,
escolhendo nomear sua investigação historiê, fazia sua ou reativava
algo da antiga função da histôr. Esse último intervinha menos como
testemunho do que como avalista do que havia sido acordado
entre duas partes na ocasião de um litígio: no próprio momento,
mas, mais ainda, para o futuro, para ser capaz de fazer memória e
de representar o papel de "registro vivo".''®^ Assim, na história do
conceito de história, existe essa camada muito antiga, que é a da
preocupação, senão a da exigência de se levar em consideração os
dois lados. Vêm então as duas questões, nunca encerradas, da auto-
rização e do ponto de vista: o que autoriza aquele que se nomeará

"«"BERTRAND, 2011, p. 321.


"«•BERTRAND, 2011, p. 22.
"«'HARTOG, 2005, p. 247-248.

213
CRER E M HISTÓRIA

historiador a ocupar essa posição de intermediário e como ver os dois


lados? Como "navegar" entre os dois, sem "se ancorar mais do que
o necessário", para retomar o vocabulário marítimo de Bertrand?
É a históría global uma subdisciplina, uma metadiscipUna ou,
simplesmente, o novo nome da história, na medida em que todo
tema, antigo ou contemporâneo, pode assumir, de agora em diante,
uma abordagem global, ou mesmo mereceria ser revisitado à luz
dessa abordagem? Do que se trata em primeiro lugar? De dissipar as
certezas ilusórias da história ocidental que havia imposto ao resto do
mundo a narrativa de sua longa marcha adiante, desde pelo menos
as Grandes Descobertas, ao mesmo tempo em que se coloca como
padrão de todo discurso histórico verdadeiro. A partir daí pôde-se
engajar um paciente trabalho de recomposição atento às situações,
às conexões, às interações.
Ela se distingue da história total ou da 'síntese' das velhas
gerações na medida em que ela constrói seu questionário
desde um ponto de observação situado, e que não é evi-
dentemente o ponto de vista do universal; ela não pretende,
portanto, reformular uma grande narrativa explicativa do
conjunto. O vocabulário não deve induzir ao erro: global
não significa totalizante.''^^
Em um texto publicado em 2006 na abertura do novo Journal
of Global History, Patrick O'Brien utilizava a palavra "restauração": a
história global visa restaurar, quer dizer, reparar, reabiUtar, recolocar
em marcha uma história que tinha se enveredado pelo caminho er-
rado. Essa história renovada repousa "sobre a capacidade de construir
e de negociar metanarrativas, que se baseiam numa erudição séria,
sabendo abrir-se a uma perspectiva cosmopolita, e que encontram as
demandas de um mundo em processo de globalização".'*^'* Goody se
propõe a "retificar".

^^DOVKl; MINARD, 2007, p. 21.


""O'BRIEN, 2006, p. 3-39. Ver também, alguns anos antes, do mesmo O'Brien
(2001, p. 15-33), onde ele começa por indicar que não há espaço para se preocupar
com minúcias sobre as distinções entre história universal, mundial, global. A história
global, segundo ele, acentua "as comparações e conexões".

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D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

Da mesma maneira, revisitando um objeto que não poderia


ser mais clássico ou arbitrário, um século, o XV nesse caso, os
autores de um grande trabalho coletivo querem mostrar dele uma
"apreensão mais justa" Para "abraçar a história do mundo durante
o século XV", eles reivindicam um "descentramento do olhar" e
uma "reflexividade critica", assim como uma atenção aos possíveis
que não aconteceram/''^ Pois pode ter havido outros séculos XV e
outras mundializações. Está aí um traço recorrente das proposições
atuais, não somente no campo da história global: Walter Benjamin
o havia já evocado. Paul Ricoeur insistiu sobre isso.
Além disso, ao lado da história global entendida no sentido
amplo — visando articular "as esferas diferentes de atividades sociais,
no cruzamento de escalas de interações geográficas e de temporali-
dades múltiplas" -, desenvolveram-se, de maneira mais específica,
os estudos dos processos de mundialização, tendo, como central,
a questão do capitalismo. Eles se dividem em diferentes correntes,
que reconhecem por pais fundadores Braudel e WaUerstein, ou,
remontando mais longe, Weber, Marx e Adam Smith.'*^^ Todos,
pelo menos no início, pertencem à esfera do conceito modemo de
história e se inscrevem plenamente do campo do regime modemo
de historicidade. Esses nomes são, de fato, todos de heróis epônimos
da história modema. Mas levando em conta o "contexto global",
o estudo dos processos de mundialização, ele também, retifica,
formula e prolonga.
Jack Goody é o que vai mais longe, pois a retificação que ele
propõe é também uma destituição da história, a discipUna modema,
que explicou a Europa pela Europa. Também, à perspectiva histórica,
ele propõe substituir por uma outra: "antropológica". Ela teria a
vantagem de mostrar "o desenvolvimento das sociedades humanas,
desde a idade do bronze, como elaboração contínua de uma cultura
urbana e mercantil", com, seguramente, as fases de "intensificação",

"o^BOUCHERON, 2009, p. 19.


" « B O U C H E R O N , 2009, p. 24.
""BEAUJARD; BERGER; NOREL, 2009, p. 7-32, 18 para a citação.

215
CRER E M HISTÓRIA

mas sem essas "descontinuidades" brutais (do tipo invenção do


capitalismo) pelas quais se interessa a história/'^®
Desde a publicação de O roubo da história, apareceram obras que
colocam, não tanto a questão da existência de uma história global
(tida por um dado), mas a de saber o que pode ser uma história
global da história e como escrevê-la. Ou seja, uma reflexão de se-
gundo grau sobre o global. Pode-se citar Georg Iggers e Q. Edward
Wang, Uma história global da historiografia moderna {A Global History
of Modem Historiography) e, mais recentemente, o livro de Daniel
Woolf, Uma história global da história {A Global History of History)
Todas essas investigações críticas, todas essas pesquisas visando a
outras maneiras de escrever a história pressupõem que existe algo
que é comumente partilhado e que se pode chamar de "história".
Para fazê-lo é preciso começar por sair do conceito moderno de
história, aquele que, justamente, se tinha dado como História e se
apresentava como referência universal, para estabelecer quem estava
ou não estava na história e para medir a que distância esta ou aquela
população distante se encontrava (ainda) da verdadeira história.
Vem, em seguida, um segundo momento: dar ao nome história
um sentido mais amplo. Fala-se então de "consciência histórica"
ou de "cultura histórica". Melhor, lembra-se que não existe grupo
humano que não se interesse pelo seu passado, e mesmo reivindica
esse "fato da natureza" que reconhece no ser humano um ser que
se lembra e que se comunica com seus semelhantes.'''" Em suma,
o conceito modemo de história, descido do pedestal sobre o qual
ele havia se empoleirado, entra na fila e se toma um momento de
uma longuíssima história dos modos de relação com o passado e dos
seus usos. Resumindo, tudo isso não é o fim da história, quando
muito o da História (entendida como esse conceito modemo), a
exemplo da fábula da rã que se acreditava tão grande como o boi,
a eternidade além do mais! Desse modo, ainda cremos na história

GOODY, 2010, p. 416-417.


"''IGGERS; WANG, 2008; WOOLF, 2011.
"™WOOLF, 2011, p. 1-2.

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D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O REGIME M O D E R N O DE HISTORICIDADE

(poupemo-nos do H maiúsculo) que, ao fmal, reganharia uma outra


forma de evidência (por certo, menos gloriosa e imperiosa): globa-
lizada, quer dizer, fragmentada e multiplicada, liberada da ilusão de
um singular coletivo, a História, atingindo o plural de suas formas e
a variedade de seus usos, cognitivos, lúdicos, políticos. E as jovens
gerações de historiadores estão, portanto, abarrotadas de trabalho
e as gerações de leitores curiosos têm muito o que ler, do que se
instruir e se divertir.
Então está tudo resolvido? Pressentimos que não, pois seria
precipitar as coisas. E certo que descentrar o olhar sobre a história
é esclarecedor, mas não resolve tudo. Basta mudar o sentido da pa-
lavra, abrindo amplamente seu conceito, para nos recolocarmos de
pé? A cada um sua história ou sua memória, em suma, com todas
as misturas ou graus que se queiram. De todo modo, o conceito
moderno de história, em si, não saiu pronto numa bela manhã do
final do século XVIII, da cabeça de um professor alemão nos arre-
dores de Gõttingen; ele foi o resultado de uma elaboração lenta e
complexa e era inseparável desse tempo ativo e ator marcado pela
aceleração e onde o futuro vinha ocupar o primeiro lugar. O que
havia de modemo na história modema era precisamente que ela
iluminava o passado a partir do futuro e desenvolvia uma série de
conceitos temporalizados, que foram operadores poderosos, tais
como de civilização, revolução ou de modemização. Enquanto
que a história antiga, pelo menos essa que vinha do que chamo de
antigo regime de historicidade, iluminava o presente pelo passado.
Ela não era menos história; era, aliás, o nome que havia recebido
na Grécia entre os séculos V e IV antes da nossa era, mas ela foi
pouco a pouco se tomando uma outra forma de história: uma forma
ultrapassada e um estado concluído.
No decorrer dos últimos 30 ou 40 anos, a mudança mais
notável foi o recuo do futuro (sobretudo na Europa), várias vezes
encontrado nas páginas precedentes. Falou-se da crise do futuro,
do seu fechamento, enquanto, simultaneamente, o presente tendia
a ocupar todo o espaço. Essa transformação de nossas relações com
o tempo veio a desenhar uma configuração inédita, que propus
nomear presentismo.

217
CRER E M HISTÓRIA

Esses deslocamentos, e mesmo essa inversão, evocados aqui


de maneira esquemática, significam um fenômeno duradouro ou
transitório? Ninguém sabe, mal começamos a tomar consciência
dele. No mínimo, atravessamos uma situação intermediária: o
conceito moderno de história (centrado no futuro) perdeu sua
eficácia para dar sentido a um mundo que, ou bem se absorve
inteiramente apenas no presente ou, cada vez mais claramente, não
sabe como resolver suas relações com um futuro percebido sob o
modo de ameaça e da catástrofe que se aproxima.''^* Um futuro,
não mais indefinidamente aberto, mas um futuro cada vez mais
restrito, senão fechado, do fato, em particular, da irreversibilidade
gerada por várias de nossas ações. Poderia, aHás, reemergir aí alguma
coisa do "terror" da história na maneira eliadiana.''^^
Forjada na Europa, hgada à sua expansão e à sua dominação,
essa História moderna (prestes a se tornar antiga) não deixou
por isso, sob formas diversas e por múltiplas interações, de reger
o mundo, oscilando entre sentido, falta de sentido e ciência da
História. Nesse conceito não acreditamos mais, ou não verdadei-
ramente, mas continuamos a fazer uso dele; ele está aí, familiar
ainda e um pouco antiquado, agora incerto, mas sempre disponível,
até, pelo menos, que um outro venha assumir o seu lugar. Ou,
mais provavelmente, esperando que uma nova acepção venha a se
justapor às precedentes. Os políticos não hesitam em mobilizá-lo,
as mídias também, a literatura interroga-o, e os historiadores, não
deixando de trabalhá-lo, continuam a crer em seus poderes cog-
nitivos. Eles creem sempre que a história está por fazer, e nisso
se aplicam, mesmo se eles não mais se pronunciam muito sobre
o fato de decidir quem fez e quem faz essa história ou, melhor,
essas histórias.
Dispomos, aliás, sempre da velha palavra história que, vinda
da Grécia, traduzida e retraduzida em tantas línguas ao longo
dos séculos, voltou à circulação, por assim dizer, para designar

"'•Ver "Penser la catastxophe", Critique, agosto-setembro de 2012, assim como Mi-


chaèl Foessel (2012, em particular o capítulo primeiro).
""'Ver supra. Capítulo 1, p. 79.

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D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE

as maneiras diversas de dar lugar ao acontecido, ao passado do


mundo. A história global da história se concentra, no momento,
em fazer inventários fundamentados. Quanto à palavra globaliza-
ção, conceito mais descritivo do que analítico, destemporalizado,
como notamos, é também uma maneira de dizer que, se existe
história, ela se produz em toda parte e em lugar nenhum, que o
Oeste não tem mais, em todo o caso, o seu monopólio (se um
dia teve, embora o tenha acreditado) e que, a cada dia mais, a
velha Europa se dá conta de que a vê passar pela sua janela. Para
ela, a História não avança, e mesmo recua. A crença na Europa,
que parecia poder ser o novo nome da História — uma história a
fazer e voltada para o futuro —, erodiu. "Europa" podia substi-
tuir, pensou-se, "Nação" e "Revolução", ambas falidas. Mas se
"Revolução" permanece, por agora, um nome quase vazio, não
é o mesmo para "Nação", que é objeto de uma renovada crença,
cujo traço principal é a volta a uma identidade a encontrar ou
a preservar, antes das vicissitudes passadas e além das incertezas
presentes. Passou-se da Nação projeto ã Nação patrimônio, do
futurismo ao presentismo, da história à memória.
A História, no entanto, "reiniciou sua marcha", escutou-se
recentemente, mas, dessa vez, na margem sul do Mediterrâneo.
Quase imediatamente foram mobilizadas as expressões "primavera
árabe" e "revoluções árabes", vindas diretamente de 1848 e de
sua grande esperança de fazer História, sustentada pelo futurismo
do regime moderno de historicidade. "A História está em marcha
no mundo árabe", afirma, notadamente, o historiador Jean-Pierre
Filiu, acrescentando: "o segundo Renascimento apenas começou".
Esse segundo Renascimento, ele o concebe como "democráti-
co".'*''^ Desejemo-lo. O filósofo Alain Badiou, por sua vez, vê O
despertar da história {Le Réveil de Vhistoire) Alexandre Adler, do
lado da geopolítica, analisa O dia em que a história recomeçou {Le

™FILIU, 2011, p. 11, 215; VERNEREN, 2011, p. 78; ADLER, 2012: "Comme le
printemps des peuples de 1848, qui bâtit en quelques semaines la scène nouvelle
de l'Europe, c'est un nouveau Moyen-Orient qui émerge".
"'"BADIOU, 2011.

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CRER E M HISTÓRIA

jour où l'histoire a recommence)O único ponto que me interessa


aqui é essa imediata certeza da História, essa evidência muito
comumente partilhada: a História retomou sua marcha, aquela
inaugurada em 1789, aquela conduzida justamente pelo con-
ceito moderno de história. Ninguém pensaria em sustentar que
não se passou nada de importante. Mas qual pode ser o alcance
dessa nomeação imediata, sua eficácia para a ação em curso, sua
capacidade de descrever adequadamente, de fazer compreender
e prever, se é verdade, por outro lado, que o tempo do mundo,
o dos mercados, o das mídias, como o das redes sociais, aquele,
sobretudo, da política, é o presentismo do instante? A História,
com ou sem maiúscula, o dirá!

"'ADLER, 2012.

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