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Coordenação
Ellana de Freitas Dutra
François Hartog
Crer em história
TRADUÇÃO
Camila Dias
autêntica
Copyright © 2 0 1 3 Flammarion, Paris
Copyright © 2017 Autêntica Editora
Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação
poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia
xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
REVISÃO DA TRADUÇÃO
Larissa Carvalho Mazzoni
Vera Cfiacham
REVISÃO
Lúcia Assumpção
D a d o s I i t e r n a c i o n a i s d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o (CIP)
( C â m a r a Brasileira d o Livro, SP, Brasil)
Hartog, François
Crer em história / François Hartog ; tradução Camila Dias. -- 1. ed. - Belo
Horizonte : Autêntica Editora, 2017. - (Coleção História & Historiografia)
ISBN 9 7 8 - 8 5 - 5 1 3 - 0 0 2 6 - 8
17-02878 CDD-901
Indices p a r a c a t á l o g o sistemático:
1. História : Filosofia 901
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SUMARIO
Introdução
Ainda cremos em História? 09
Capítulo 1
A ascensão das dúvidas 31
Capítulo 2
Uma inquietante estranheza 85
Intermédio
Sobre três alegorias da História 119
Capitular)
Do l a d o ^ s escritores: os tempos do romance 127
Capítulo 4
Do lado dos historiadores: os avatares do
regime moderno de historicidade 175
Conclusão
O nome e O conceito de história 221
Referências 233
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'"'BALZAC, 1951, p. 7.
Colonel Chabert, II, 1952, p. 1027. Publicado primeiro em 1832, Balzac o revisou
em 1835 e 1844. Ver JoëUe Gleize (2001, p. 223-235).
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morío-testemunho. Ele não deveria estar lá, não deveria ter voltado,
pois, tal como descobre, não há mais lugar para ele na sociedade da
Restauração. Entre 1807 e 1818, data da sua reaparição, o mundo
mudou em tudo. A trajetória de sua vida o leva do anonimato do
início ao do final: do hospital que o viu nascer ao hospício de Bi-
cêtre, onde ele não é mais do que Jacinto. Entre os dois, ele vive
uma rápida ascensão - o nome, o título, o graü, o dinheiro - depois,
enquanto se apaga o sol napoleónico, ele perde tudo, até seu nome;
enquanto sua esposa, Rosina, também ela saída do mais baixo, passou
do "Palais-Royal" ao Faubourg Saint-Germain. Ela só tinha um
nome, ganha seu primeiro sobrenome, depois um segundo, o de
condessa Ferraud, que, de novo, é reconhecido e promete ser cada
vez mais bem-visto. Tampouco ela pode admitir o surgimento de
seu passado em seu presente, além disso aberto a esperanças ainda
maiores. Quando o infeliz Chabert toma plena consciência, ele
só pode constatar: "Fui enterrado sob os mortos, mas agora estou
enterrado sob os vivos [...], sob a sociedade inteira que quer me
desmoralizar".^^' Vem, enfim, depois de uma primeira cena que
lhe remove suas últimas dúvidas sobre os sentimentos reais de sua
mulher com relação a ele, sua resolução final de "continuar mor-
to".^^^ Impulsionado pela História, o coronel, barão do Império, é
também destruído por ela. Ela o acolheu e o abandonou. A ele não
é permitido reembarcar no trem do tempo.
Com O gabinete das antiguidades, publicado em 1839, Balzac
joga igualmente com descompassos dos tempos e efeitos do^ir^l-
tâneo do não-simultâneo. Porém, remonta ainda mais no tempo,
colocando frente a fi-ente os destroços do Antigo Regime e os
novos-ncos da nova sociedade. A cena se passa "numa das menos
importantes Prefeituras da França", no palacete D'Esgrignon, onde
se reúnem alguns raros sobreviventes dessa "verdadeira nobreza de
província", que nunca compreendeu que a feudalidade há muito
já não existia. Donde o "epíteto" de Gabinete das Antiguidades
atribuído a "esse pequeno Faubourg Saint-Germain da província"
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leis da história, mas que elas nos escapam. Quer seja nas passagens
narrativas ou nos desenvolvimentos reflexivos, o romance coloca e
recoloca incessantemente essa questão. Até no Epílogo, que justapõe
narração e reflexão.
Para dizê-lo de outro modo, a raposa, tal como Balzac, ou
Chateaubriand, é aquela que, no mundo histórico que ela procura
apreender, está particularmente atraída pelo simultâneo do não-
simultâneo ou preocupada, e mesmo ansiosa por lhe abrir espaço,
e mesmo por ainda lhe abrir um espaço. E nesse sentido, o ro-
mance se encarrega dessa dimensão da historicidade que a história
dos historiadores, atada ao regime moderno de historicidade, não
saberia assumir, ela que embarcou no trem do tempo. Desse novo
observatório, ela descobre uma paisagem inédita a descrever aos
outros viajantes, uma nova história a escrever. Tolstói dá a impres-
são de querer estar ao mesmo tempo no trem e fora dele. Mas seu
problema é mais complicado que o de Balzac. Donde a variedade
do romance que é ao mesmo tempo uma lição de história, uma
Hção sobre a lição e, talvez também, um fracasso de qualquer Ução.
De fato, bem no final do livro, o jovem Nicolau, filho do
príncipe André, tem um pesadelo que é também um sonho de gló-
ria. Ele se vê com um capacete "como desenhado nas estampas de
Plutarco". A visão de seu tio Pedro, que primeiro o acompanhava,
é substituída pela de seu pai morto que o "acaricia" e "o aprova".
"E eu peço a Deus apenas uma coisa, diz então o menino, que me
aconteça o que aconteceu com os grandes homens de Plutarco, e eu
faria como eles. Eu faria melhor do que eles. Todo mundo saberá,
todo mundo me amará, todo o mundo me admirará".^^^ Se há, no
entanto, uma forma de história denunciada por Tolstói, é aquela
(de Plutarco, a que quer e faz crer que os grandes homens fazem a
história. Ora, o jovem garoto está pronto a reativar o modelo e a
restabelecer o que eram, no início do romance, os sonhos de seu
pai, grande admirador de Napoleão. Tudo poderia então recomeçar,
com as mesmas ilusões, e o oceano sair, de novo, de suas margens.
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K U N D E R A , 2011, p. 1173.
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"'As duas primeiras partes do Homem sem qualidades são publicadas em 1930 e uma sequ-
ência, em 1932. Musil ainda trabalhava seu romance quando de sua morte súbita, em
1942, ocasião em que estava em exílio na Suíça. A primeira grande edição foi publicada
na Alemanha somente em 1952, incluindo rascunhos e esforçando-se para dar uma ideia
de conjunto do que poderia ter sido o romance. Ela foi criticada, outras se seguiram. E,
de todo modo, a partir dela que se desenvolveu a notoriedade crescente de Musil. Na
França, a magnífica tradução de Philippe Jaccottet (1957) contribuiu bastante para seu
sucesso. Sobre Musil, ver os numerosos trabalhos de Jacques Bouveresse, em particular,
a coletânea de dez estudos, La Voix de l'âme et les chemins de l'esprit (2001), assim como
as páginas que são dedicadas a ele por Maurice Blanchot em Le Livre à venir (1959).
"«MUSIL, 1995, I, p. 751.
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'"»BALZAC, 1951, I, p. 7.
'"MUSIL, 1995, p. 514.
'''MUSIL, 1995, p. 504.
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mais, diz ele, do que o presente, ele que se sente incapaz de conce-
ber o futuro.^" Num certo sentido, a Alemanha que ele deixou aos
20 anos não é seu país, mas por sua história desde o fmal do século
XVIII, ela é: "Herdei esse fardo e preciso carregá-lo, me agrade ou
não".^''' Sobretudo por ter vivido, primeiro em sua própria famíha,
essa "conspiração do silêncio", tão característica dos anos depois da
guerra, que foi a motivação profunda da sua partida para a Ingla-
terra. Donde, em seguida, uma vez passado da escrita acadêmica à
literatura, sua visita aos arquivos e sua busca de vestígios de toda a
sorte, sobretudo seu recurso às fotos que, diz ele, ao mesmo tempo
atestam "a veracidade da narrativa" e "detêm o tempo". Quando
vejo fotos ou filmes que datam da guerra, "parece-me que é dejá
que^u venho, por assim dizer, e que cai sobre mim, vinda de lá,
vinda dessa era de atrocidades que eu não vivi, uma sombra da qual
eu não conseguirei nunca me subtrair totalmente".
Publicado em 2001, Austerlitz, que não pontua nenhum capí-
tulo ou parágrafo, cobre, na verdade, um periodo de 30 anos: de
1967 a 1996. É, de fato, o tempo que transcorre - ou, antes, que
não transcorre — entre o primeiro e o último encontro do narrador
com Jacques Austerlitz, mas, tal como os dois protagonistas do ro-
mance, o leitor se encontra preso nesse presente continuado que é
o do narrador, quem, da primeira ã última linha, fala, observa, anota
e reporta as palavras de Austeriitz, sem interrupção nem corte. Na
arquitetura monumental do século XIX, que é seu objeto de estudo,
aquele sobre o qual ele acumulou notas, AusterÜtz decifra menos o
fliturismo que a atravessa do que a catástrofe que ela anuncia. "Essas
^construções hiperdimensionadas já projetam a sombra de sua des-
truição" e "elas são de início concebidas na perspectiva de sua futura
existência em estado de ruínas".^" Sebald encontra aí um tema de
conversas entre Hider e seu arquiteto, Albert Speer, a propósito da
grandeza das ruínas romanas. Em função dessa "teoria das ruínas",
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'''HELL, p. 221.
''^'HELL, p. 262.
'"'HELL, p. 343.
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''^HELL, p. 336.
'"^HELL, p. 221.
'"HELL, p. 333.
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'"'HELL, p. 221.
''"HELL, p. 350.
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Depois da história
Ao longo dos anos 2000, romances exploraram outras vias,
assumindo antes as representações apocalípticas do que a tragédia.
A questão não é mais saber se eles creem em ou na História: eles
se situam deliberadamente depois, uma vez advinda a catástrofe.
De que tempo é então feito esse depois? Ainda se trata de tempo?
Os Apocalipses "clássicos" o viam como todo um outro tempo...
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seu filho, surge essa constatação: "Não existe grande livro" e teus
pais "estão mortos e enterrados".Ou seja, não há nem julgamen-
to, nem divisão entre os bons e os maus: nada além de um mundo
deixando de existir. Mas, inversamente, passa um raio de luz, do
qual o menino é, no sentido próprio do termo, o lar: ele "porta em
si o fogo".^®^ Essa criança do apocalipse (nascida com ele) é também
uma espécie de extraterrestre (alien) ou criança divina, "fiador" da
humanidade, em primeiro lugar, da de seu pai. Se o pai zela por seu
filho nessa guerra de cada instante, o filho cuida de seu pai contra
o esquecimento do que faz o homem. "Não é você que deve se
ocupar (to worry) de tudo", ele termina por lhe dizer. "Sim, sou
eu", responde a criança.^" Bem perto de morrer, o pai vê seu filho,
"olhando-o de algum inimaginável futuro, brilhando nesse deserto
como um tabemáculo". McCarthy exagera um pouco? Cabe a cada
um avaliar. O filho, em todo caso, sobrevive a seu pai e encontra
um casal que se parece muito com "gentios". Eles realmente o
são? Irão sobreviver, encontrar outros e formar o equivalente desse
"resto" (salvo da cólera de Javé), sempre discernido pelos profetas
e apocalipses? Em todo caso, a narrativa pende claramente para o
lado do filho e não para o de " E l i a s " . H a p p y end? Não, ainda
não, mas ao menos sua possibiHdade.
Cinqüenta anos separam a "estrada" de Cormac McCarthy
daquela de Jack Kerouac (nascido dez anos antes). A proximidade
dos títulos (pouco provável que seja por acaso) marca ainda mais a
diferença que os separa. A de Kerouac mobiliza e se abre sobre um
horizonte novo, celebra o movimento, a rapidez, os encontros. Ela
é inseparável do carro. Não há nada que D^ean goste mais do que
se sentar ao volante de um carro roubado e dar o fora metendo
o pé na tábua. A de McCarthy é desolação; o mar em direção ao
qual caminham seus andarilhos não se abre a nada, é apenas um
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CAPÍTULO 4
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''' Segundo uma expressão de Julien Gracq, "a História é uma prescrição do Futuro
ao Contemporâneo".
="'GUIZOT, 1985, p. 58, 62.
'"GAUCHET, 2005, p. 9. Da condição histórica, ele distingue a condição poMtica, "nossa
condição permanente, aquela que nos liga a nossos predecessores e pela qual nós con-
tinuamos a pertencer à mesma humanidade, essa que permanece apesar da amplitude
da mudança e que define nossa identidade fundamental de atores do estar-juntos".
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'«"FEBVRE, 1992a, p. v.
'«'FEBVRE, 1992a, p. 9.
'«'FEBVRE, 1992a, p. 24.
'«'Ver supra. Capítulo 1, p. 48-49.
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'""IGOUNET, 2012.
'«VIDAL-NAQUET, 1987.
'"•HARTOG, 2007, p. 104-108. Ver supra, Capítulo 2, p. 86.
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que ponto ela pode sê-lo. Na França, a história metódica (mesmo se ela mantém
uma impregnação comtista) baniu toda filosofia da história.
-«»LESSING, 1919.
"""SPENGLER, 1948, t. II, p. 467, e supra. Introdução, p. 18-19
SPENGLER, 1948, t. I, p. 43.
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pela guerra de 1914. Ele viu a morte bem real de vários de seus
colegas de Oxford e, mais amplamente, o que ele percebeu como o
suicídio da "marcha da Liberdade". "Nós também somos mortais"
(nós, indivíduos, mas também nossa civilização), diz ele, retomando
a expressão de Valéry para traduzir sua experiência desse mesmo
colapso. Helenista de formação, Toynbee parte, como Spengler, de
um paralelo entre a guerra do Peloponeso e a guerra de 1914, antes
de questionar o primado da civilização ocidental e de se lançar em
seu Estudo de história (Etude de Vhistoire), imenso percurso concebido
como um panorama comparado das civilizações, cuja publicação se
estende por quase 30 anos (de 1934 a 1961).'^°'' Sem jamais definir
realmente o que ele entende por civilização (a propósito do que,
no entanto, tudo se constrói), ele enumera 21 delas. Ele se atém à
"ilusão egocêntrica da civilização ocidental", seu provincialismo,
dir-se-ia hoje, ou ainda "à ilusão do Oriente imutável e ao pre-
conceito do progresso considerado como um movimento em linha
reta". O que distingue as sociedades primitivas das civilizações é, em
última instância, sua atitude em relação ao tempo. O mimetismo
ou faculdade de imitação é um traço genérico de toda vida social.
Nas primeiras, ele é voltado "para trás", em direção "ao passado" e
aos "ancestrais defuntos", enquanto que nas segundas ele é "voltado
para firente, em direção às personalidades criadoras: os pioneiros
Umas são estáticas, outras são dinâmicas. Toynbee havia lido As
duas fontes da moral e da religião (Les Deux sources de la morale et de la
religion), de Bergson. Se colocamos as diversas civilizações na escala
da duração da história da Terra e da humanidade, o tempo se torna
"relativo", embora se possa plenamente refletir fazendo valer sua
"contemporaneidade filosófica". Nada impede, portanto, de propor
uma analogia entre a situação em 1914 e a da Grécia no momento
da guerra do Peloponeso: seu passado poderia muito bem ser nosso
futuro. Por muito tempo focalizado na questão do declínio das civi-
hzações (sem por isso aderir à definição spengleriana da civilização
como estágio do declínio de uma cultura), Toynbee tomará cada
^TOYNBEE, 1933-1961. Os seis primeiros tomos foram pubücados entre 1933 e 1939.
TOYNBEE, 1951, p. 62.
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DO LADO DOS HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE
A R O N , 1986, p. 182.
« • A R O N , 1986, p. 377, 432.
A R O N , 2010, p. 179.
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A luz ainda pode vir do futuro? Aos que, como Spengler, depois
de 1914, respondiam não, reúnem-se os que, como Mircea Eliade,
denunciam "o terror da história" e procuram, primeiro para si mes-
mos, maneiras de sair do tempo. A expressão aparece, em 1944, em
seu Diário (Joumat), enquanto ele ainda se encontra servindo em Lisboa
como adido cultural. "Eu gostaria de poder escrever uma vez essa
coisa terrível: o terror da história [...] Não é verdade que o homem
tem medo da Natureza, dos deuses: esse medo é mínimo em relação
ao pavor que ele sofreu, durante milênios, em meio à história". Já nos
anos 1930, ele havia optado pela pré ou proto-história, conservada nas
lendas e no folclore das sociedades camponesas. Mas, depois de 1944,
ele se transforma francamente em "inimigo" da história. Aspirando
a se libertar da história, ele assinala seu "desgosto" crescente por ela
e denuncia "a queda na história". Estabelecido em Paris, onde ele
opera sua metamorfose em historiador das religiões, ele pubHca, em
1949, O mito do eterno retomo (Le Mythe de Vétemel retour).'^^^ Nesse
"25Sobre Mircea Eliade, ver Dan Dana (2012), Florin Turcanu (2003), Alexandra
Laignel-Lavastine (2002).
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"'"CIORAN, 1964.
"^'ELIADE, 1949, p. 11.
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para quem ela é o equivalente do que era ofatum antigo, e que se pre-
cipitam à ação com um "ardor implacável". Aqueles que, na esteira de
Nietzsche, deploram o fardo excessivo e paralisante que ela fez pesar
sobre o presente e que sonham com novos começos. Aqueles, enfim,
mais numerosos hoje, que desenvolvem uma atitude desdenhosa em
reação a ela, destacando "a incerteza" e a "vaidade" de suas conclusões.
Reatando, segundo Marrou, com o pirronismo do século XVII, eles
exibem um ceticismo alternadamente cínico ou desabusado."*^® Con-
tra esses excessos de honra e indignidade, ele retoma, por sua vez, os
temas desenvolvidos, pouco antes, em Do conhecimento histórico {De la
connaissance historique) (1954) e defende uma história concebida como
conhecimento autêntico e verdadeiro do passado humano.
Posições da história
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H A R T O G , 2008, p. 19-23.
"^'Em se tratando de reconhecer como sendo do globo, pertencimento comum e parti-
lhado, a palavra cosmopolita o dizia, em grego, é verdade, mas de maneira mais política.
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"^''GOODY, 2010.
"^^GOODY, 2010, p. 19, 23.
BERTRAND, 2011, p. 14.
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CRER E M HISTÓRIA
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D O L A D O D O S HISTORIADORES: O S AVATARES D O R E G I M E M O D E R N O DE HISTORICIDADE
™FILIU, 2011, p. 11, 215; VERNEREN, 2011, p. 78; ADLER, 2012: "Comme le
printemps des peuples de 1848, qui bâtit en quelques semaines la scène nouvelle
de l'Europe, c'est un nouveau Moyen-Orient qui émerge".
"'"BADIOU, 2011.
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"'ADLER, 2012.
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