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Leandro Duarte Rust

A Reforma Papal (1050-1150)


Trajetórias e críticas de uma história
Ministério da Educação
Universidade Federal de Mato Grosso
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José Serafim Bertoloto (Técnico Administrativo)
Maria Santíssima de Lima (Técnica Administrativa)
Raysa Alana Pinheiro de Moraes (Discente)
Leandro Duarte Rust

A Reforma Papal (1050-1150)


Trajetórias e críticas de uma história

Cuiabá
2013
© Leandro Duarte Rust, 2013.

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Esta obra foi produzida com recurso do Governo Federal.


Para meus pais, Marta e Sidônio.
Agradecimentos

Tenho muito a agradecer por este pequeno livro.


A Maria Filomena Coelho e Claudia Bovo. É simplesmente impossível,
para mim, separar o pensamento que preenche as páginas a seguir dos anos de
interlocução que tenho partilhado com essas historiadoras.
A Marcelo Cândido pela maneira generosa como converteu a
supervisão de meu estágio de pós-doutoramento na Universidade de São
Paulo em uma experiência de debates sobre História Política da Idade Média.
Sem dúvida, este livro carrega as marcas dos diálogos vividos no âmbito do
Laboratório de Estudos Medievais da USP ao longo de 2012.
A Anderson dos Reis e Bruno Álvaro, minha gratidão pelas pacientes
leituras dos manuscritos. Confiei-lhes a primeira versão de minhas ideias, quando
elas não passavam de pensamentos sinuosos e repletos de irregularidades, e
recebi-as de volta lapidadas pela crítica franca e sempre propositiva.
A minha equipe de trabalho no Vivarium. Os meses de preparação desta
obra foram marcados por um asfixiante acúmulo de funções administrativas.
Se não desisti de garimpar valiosas horas de pesquisa no chão duro da gestão
universitária, foi graças ao convívio com Allan Regis, Alex Simoni, André
Marinho, Cassianna dos Santos, Douglas Martins, Jéssika Rodrigues, Kathelina
Santos, Larissa Gregório, Natalia Madureira, Pollyana Lima, Tiago Vieira, Rafael
Marcos e Vítor Meireles.
Um agradecimento especial a Cândido Rodrigues, responsável direto
pela viabilização desta obra, e a Nicole Rust, a quem deverei sempre a primeira
impressão deixada por este livro nos olhos do leitor.
Por fim, o agradecimento mais importante é aquele que não sei pôr
em palavras. A Alice, minha esposa: não posso, simplesmente, ser-lhe grato.
Gratidão é coisa muito miúda para a única pessoa que sabe a medida em vida
implicada em cada uma dessas páginas. A você, a melhor parte de mim por não
desistir de resgatar-me, todos os dias, do historiador que eu insisto em tentar ser.
Lista de Abreviaturas

AASS Acta Sanctorum. Antuérpia, 1734.

BAC Biblioteca de Autores Cristianos. Madrid, 1944-.

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Sons, 1891-1905.
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HARDY HARDY, Thomas Duffus (Ed.). Willelmi


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Const. Constitutiones et acta publica imperatorum et
regum
Dt. MA. Deutsches Mittelalter. Kritische Studientexte
Epp. Epistolae (in Quart)
Epp. Kaiserzeit Die Briefe der deutschen Kaiserzeit
Epp. sel. Epistolae selectae
Fontes iuris Fontes iuris Germanici antiqui in usum scholarum
separatim editi
Ldl Libelli de lite imperatorum et pontificum
10
LL Leges (in Folio)
SS Scriptores (in Folio)
SS rer. Germ Scriptores rerum Germanicarum in usum
scholarum separatim editi.

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SG Studi Gregoriani

SGA Studia Gratiana

WATTERICH WATTERICH, Johann Matthias (Ed.). Pontificum


Romanorum Vitae qui fuerunt inde ab exeunte
saeculo IX usque ad finem saeculi XIII. Leipzig:
1860-1862.

11
Sumário

Prefácio......................................................................................................................... 15

Introdução.................................................................................................................... 19

Parte I
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública....... 23

Parte II
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade......... 55

Parte III
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade......................................... 83

Parte IV
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade..................................... 115

Parte V
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo.......................... 147

Parte VI
O sentimento político: sobre linguagem e poder................................................ 177

Posfácio....................................................................................................................... 205

Referências................................................................................................................. 213

13
Prefácio

Este livro é sobre história e sobre historiadores no tempo. Leandro


Rust, seu autor, apresenta-nos um exercício historiográfico que, para além
de abordar um dos temas fundamentais da política da civilização cristã
ocidental – a Reforma Papal –, permite refletir sobre a construção da
história e, por meio da narrativa, acompanhar a saga desse conceito no
qual se assenta, ainda hoje, nosso imaginário com relação ao poder.
A maneira como o autor escreve história envolve-nos em uma
trama tecida no tempo e, com habilidade, o texto esquadrinha as lógicas
que deram forma às diferentes maneiras de explicar e de dar sentido à
construção do poder pontifício no Ocidente medieval. Ao virar das
páginas, logo no primeiro capítulo, somos cativados por um enredo
povoado de personagens-historiadores que vão desfilando por essa história
do Papado, cujas análises e modelos interpretativos são decifrados na
perspectiva do presente de sua elaboração. O autor permite-nos descobrir
a velha máxima, “o historiador é filho de seu tempo”, aplicada à Reforma
Papal.
Nesse sentido, o subtítulo do livro, “trajetórias e críticas de uma
história”, cumpre o que promete e, para ser coerente, o autor não reduz
seu papel à crítica, mas quer também fazer parte da trajetória do conceito,
perfeitamente consciente da influência que o tempo em que vive imprime a
sua Reforma Papal. Deve-se destacar o respeito que demonstra pela “velha’’
historiografia do Papado. Ao contrário de um (mau) gosto recorrente
entre aqueles que se acham destinados a revolucionar a historiografia, do
alto da soberba que avaliza a crítica à cegueira e incompetência intelectual
de positivistas/marxistas/estruturalistas/etc. que os antecederam, este
livro quer compreender a historiografia, historicamente. O propósito não
é, portanto, revisionista, não pretende ser nem superação nem julgamento
dos pares.
Leandro Rust estuda o Papado medieval há vários anos. Sua tese
doutoral, transformada recentemente em livro (Colunas de São Pedro:
o Papado na Idade Média Central. São Paulo: Annablume, 2011), bem
como vários artigos especificamente dedicados a aspectos históricos e
15
historiográficos sobre o tema, dão lastro à obra que agora apresenta-se.
Há tempo que se sentia falta de um estudo de crítica historiográfica sobre
a Reforma Papal. Desde 1964, quando Schafer Williams dedicou um dos
volumes dos Problems in European Civilization a essa questão, sob o título
The Gregorian Epoch: reformation, revolution, reaction?”, não se tem notícia
de iniciativas deste tipo. Ainda assim, deve-se ressaltar que Williams
ateve-se ao formato da coleção, sem poder analisar com profundidade
as aproximações/afastamentos entre as diferentes abordagens. Ao
contrário, na proposta de Leandro Rust, é possível perceber esses aspectos
referidos, além da indicação da permanência de importantes pilares
sobre a concepção do poder, embora os grandes modelos interpretativos
apresentem-nos sob uma aparência de ruptura.
Aos olhos dos historiadores, o Papado medieval e a construção de
seu poder têm muitas caras. A Reforma, como motor, poderia ser explicada
por uma natureza ontológica própria da aristocracia cristã, consciente da
necessidade de recuperação da virtude primitiva, que seria abraçada por
uma espécie de partido reformador. Sobre o mesmo aspecto, mas com
atores radicalmente distintos, o movimento careceria de liderança clara,
teria origens populares e difusas. A divisão entre clérigos e laicos, que para
alguns historiadores chegou mesmo a significar a essência da Reforma,
para outros não passava de ficção sem qualquer base empírica, uma vez que
as duas categorias surgiam misturadas em todas as etapas dessa história. O
fato é que o poder da Igreja institucionalizada parecia tão arrebatador que
a Reforma transformou-se em Revolução: a Revolução Papal.
Somente uma revolução, uma ruptura, com as características das
grandes revoluções da contemporaneidade, estaria à altura das profundas
transformações que passaram a ser atribuídas aos atores políticos
medievais responsáveis pela separação entre Igreja e Estado, e pela
superação da desordem feudal. Mesmo quando se inseriu a Revolução nos
avatares da política que alimentava as redes clientelares nobiliárquicas, ela
caracterizava-se como contrária ao mundo medieval. Em outra direção, e
inspiradas pela Revolução Feudal, as explicações dos historiadores deram
protagonismo aos de baixo – a multidão –, organizados em comunidades
de aldeia que engrossavam as teorias do encelulamento, exigindo das
ordens superiores padrões de conduta de acordo com a moral cristã.
Essa irrupção teria sido canalizada e liderada pelo Papado revolucionário
gregoriano, apoiado em uma eficiente estrutura jurídica e administrativa
que se transformaria em referência política do Estado moderno ocidental.
16
Enfim, idas e vindas historiográficas que Leandro Rust encarrega-se de
costurar aos debates e às inquietações do presente dos que escreveram
essas histórias. Há, entretanto, um fio condutor que os une: a experiência
do Papado como anúncio (origens) da Modernidade.
O autor crê que é possível interpretar a política papal dos séculos
XI e XII de forma diferente: nem reforma, nem revolução. Ao longo de três
capítulos, que configuram um belo exercício para entender a política em
épocas pré-modernas por meio de lógicas que respeitam a alteridade, o livro
segue um roteiro que, embora use conceitos já trilhados anteriormente,
foca-os com outras lentes. Já muito foi dito sobre a importância do
sagrado para a política da Igreja na Idade Média, mas não da forma
como Rust o faz. Amparado, linha a linha, por farta documentação, ele
consegue alcançar outro significado, que, longe de reforçar a imagem de
um Papado que controla e define o sagrado, desvela as tensões políticas
das quais o sagrado participa. Da mesma forma, o autor retoma a famosa
explicação sobre a decisiva importância da cultura jurídica escrita para a
centralização papal.
Ao refazer os percursos políticos e textuais dos principais
acontecimentos dessa época, sobretudo os que dizem respeito aos
embates entre o Papado e o Sacro Império, desvela-se a inter-relação
entre a voz papal e a política, afastando-se, portanto, do célebre programa
jurídico reformador. E, o que é mais surpreendente: os argumentos
pontifícios não rompem com a tradição e com a oralidade. Outra janela
em direção à política medieval e à maneira como os historiadores olham
para a paisagem é aberta por Rust ao analisar o caso do arcebispo de
Braga, Maurício Burdino. Sua trajetória política adquire contornos
completamente diferentes: ora aprisionada nas fronteiras do nacionalismo
e do espírito da história oitocentista, ora enredada em complexas ligações
cuja geopolítica ainda não sabemos decifrar, embora possamos intuí-la
espalhada vigorosamente pela Europa.
Por último, destaca-se o ponto alto do livro. Um refinado
exercício de erudição que possibilita compreender o conceito de política
para a Idade Média. Evidentemente, não se trata de dar conta do campo,
mas de mostrar os meandros. Rust parte do “desejo”, um sentimento que
se tornou motor da vida cristã – fundamental para a perda do Paraíso
–, retomado como teologia política por alguns dos maiores pensadores
medievais ligados ao Papado e que aparece com força na vida política. Nas
palavras do autor:
17
No instante em que o desejo começava a consumir
desgovernadamente a habilidade de decidir, ele
deixava de ser questão pessoal e tornava-se político.
Pois sua ação devastava a vida comum, despertava
a indiferença perante as regras e as proibições.
Ele entorpecia o discernimento e semeava uma
incapacidade de distinguir os lugares e as funções
cabíveis a cada pessoa no interior da sociedade cristã.
[...] tornavam compreensível aos homens de sua época
a causa da inadequação pública de um cristão, fosse
ele um rei ou um “povo”: ao desejar, eles tornavam-
se incapazes de obedecer, pois teimavam em optar,
escolher. Gravada como voluntas, desiderium,
concupitus ou libido, aquela era a ideia cabível para
descrever o que levava o “outro” a agir quando o que
se esperava dele era passividade [...] Os partidários
papais operavam aqui uma transfiguração histórica.
Convertiam a negação social da autoridade, sua falta
e seu vazio, em uma presença semântica: a visão de
um arqui-inimigo metafísico, “o desejo”. (p. 195-198).

Tais conclusões devem-se à reflexão crítica dedicada aos


documentos e à historiografia, o cerne da metodologia de Leandro Rust.
O resultado aponta para o entendimento da política na Idade Média como
teologia política e não como teoria política. Entretanto, a teologia, quando
se faz política, não se deve dissolver na dimensão simbólica espiritual;
para o historiador, ela encarna-se e toma várias formas no cenário da luta
pelo poder.

Brasília, 20 de outubro
de 2013.

Maria Filomena Coelho


Universidade de Brasília

18
Introdução

A ideia é conhecida. Em linhas gerais, eis o que ela sugere: durante


os séculos XI e XII o Papado tornou-se o centro difusor de uma nova atitude
perante o mundo. A novidade estava no objetivo assumido: corrigir, de modo
rigoroso e integral, os comportamentos que diariamente violavam os preceitos
da religião cristã. Algo de grande envergadura histórica teria se passado em
Roma, onde alguns homens do clero teriam decidido tomar as rédeas do poder
e fundar um governo eclesiástico que regesse a sociedade, já que sua capacidade
de influenciar os reis e instruir os nobres encontrava-se reduzida. Era preciso
regê-los, corrigi-los, limitar-lhes o raio de ação, fazê-los obedecer diretamente
à voz eclesiástica, sem intermediários ou barganhas. Os papas tornaram-
se legisladores e cercaram-se de recursos materiais e humanos para impor
a vigência de suas leis. A autoridade reivindicada pelo líder da igreja romana
excedia as prerrogativas de bispo. O papa agia como um rei que considerava
todo cristão um súdito de uma monarquia pontifícia. O poder tinha um novo
ápice; a sociedade, uma nova ideologia. Aí está a ideia: Reforma Papal é o nome
que se dá a essa ascensão do Papado.
Trata-se de uma das imagens mais bem-sucedidas dos estudos
medievais. Tal é seu êxito que arriscaríamos uma aposta: é possível estudar a
fundo os séculos XI e XII e não mencioná-la? Muitos diriam que não. E têm
certa razão. Afinal, em linhas gerais, essa expressão alcança uma amplitude
máxima. Simplesmente tudo parece dizer-lhe respeito, já que os clérigos
romanos supostamente pretendiam reformar a sociedade inteira. Todo o clero
estava em sua mira, pois a rotina dos sacerdotes passou a ser vista como celeiro
de práticas introleráveis. A nobreza era igualmente visada, especialmente em sua
confusa relação com as funções e os patrimônios religiosos. Os reis eram motivo
de atenção cuidadosa, em função dos atritos surgidos no entrosamento com o
novo monarca eclesiástico. Damas ou não, as mulheres eram reenquadradas,
assim como os guerreiros e os mercadores. As maneiras de conviver recebiam
novas orientações, dissessem respeito à riqueza ou à sexualidade, aos ritos ou ao
conhecimento, ao espaço ou ao tempo, à morte ou à superstição, à virtude ou ao
pecado. A Reforma teria impulsionado a catolicização da sociedade.
Este livro tem um único propósito: auxiliar o leitor a refletir sobre a

19
pertinência da ideia de Reforma Papal. Para isso, compusemos seis capítulos
que podem ser repartidos em dois conjuntos. Os dois primeiros, intitulados
“A história como reforma” e “A história como revolução”, compõem o primeiro
grupo. Por meio desses textos, buscamos apresentar as duas correntes que
disputam pela definição da ideia de Reforma Papal: o prisma da Reforma
Gregoriana e o da Revolução Papal. Frequentemente, ao usar a expressão que
dá título a este livro, os historiadores aderem a uma dessas duas perspectivas.
Entretanto, ambas partilham de uma mesma característica: a escrita da história
é conduzida por uma reflexão política orientada para a Modernidade. A ênfase
sobre o passado como uma via reformadora e o olhar que o considera um
processo revolucionário têm isto em comum: ambos fazem da historiografia um
exercício de elaboração de uma teoria política. Cada perspectiva formula uma
compreensão sobre quem exerce o poder, como o faz e quais as razões para tal
conduta. Observar as trajetórias seguidas pela Reforma Papal por aqueles dois
caminhos conceituais ajuda-nos a expor esse sentido eminentemente político da
reflexão histórica sobre a Idade Média.
Os quatro capítulos seguintes são exercícios de crítica acerca de
preceitos básicos da Reforma Papal. O primeiro a ser abordado é a sacralidade
atribuída ao Papado reformador. Com base na espiritualidade, os integrantes do
poder pontifício teriam formulado um bem articulado “projeto ou programa
reformador”. Sua experiência religiosa teria sido dominada pela função de
ordenar o convívio social, por uma notável articulação coletiva e um expressivo
consenso entre os integrantes e os colaboradores da suposta monarquia papal.
Tais são os temas debatidos no capítulo 3, “As pegadas do sagrado”.
Outro ponto basilar da Reforma Papal – sustentado pelas correntes
interpretativas estudadas nos primeiros capítulos – é o do suposto surgimento
de uma nova cultura jurídica na segunda metade do século XI. Para implantar o
arrojado “programa de reformas”, os papas teriam investido na criação de novos
recursos institucionais capazes de traduzir suas decisões em intervenções sobre
o cotidiano cristão. Entre esses recursos, estaria o inédito predomínio da norma
escrita sobre as práticas de oralidade e os costumes senhoriais. A Reforma trouxe
consigo um novo direito. Problematizar essa drástica mudança é o objetivo que
define o capítulo 4, “A excomunhão do rei”.
A nítida separação entre os reformadores romanos e aqueles
caracterizados como seus inversos, os “antirreformadores”, é abordada no
capítulo 5, “A maldição do antipapa”. Nesse caso, as páginas foram reservadas
para problematizar como a divisão dos medievais em grupos opostos atende
a exigências do nacionalismo moderno. A argumentação gira em torno do
20
tratamento historiográfico oferecido a um personagem singular, o “antipapa”
Maurício Burdino.
A obra encerra-se com o estudo da linguagem mobilizada por dois
“reformadores” para caracterizar o sentimento de “desejo”. A maneira como
Pedro Damião e Bernardo de Claraval, notórios por seu engajamento no exercício
do poder papal, qualificavam aquele aspecto da natureza humana proporciona
ao historiador uma profícua oportunidade para analisar a complexidade da
linguagem acionada pelos partidários do Papado. Sobretudo, para problematizar
sua recorrente caracterização como discurso moralizador em sentido estrito.
Mesmo nos momentos em que envolvia questões estritamente morais ou
teológicas, os movimentos linguísticos eram orientados por exigências de uma
consciência política. Eis o argumento central do capítulo 6, “O sentimento
político”.
Todos esses textos estão unidos pelo mesmo propósito: auxiliar o leitor
perante os desafios de familiarizar-se com as trajetórias e os limites da ideia de
Reforma Papal.

Cuiabá, 19 de setembro de 2013.

21
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

Parte I
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

A história como reforma:


Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

A Reforma Gregoriana envelheceu. Quando refletimos sobre essas


duas palavras presentes em um argumento, vemos uma ideia enfraquecida, sem
firmeza explicativa, cujas articulações teóricas parecem ranger após décadas de
críticas. E como costuma acontecer quando se lida com a velhice, esquecemos
que ela um dia foi jovem, vigorosa. Esquecemos, sobretudo, que um dia os
historiadores desejaram-na intensamente, como a razão de sua redenção. Muito
antes de tornar-se essa velha dama conceitual, a Reforma Gregoriana ganhou
projeção na escrita da história como o símbolo de uma maneira renovada de
tratar o passado, de compreendê-lo em sua efetiva abrangência.
Eram os anos 1920. Havia quase uma década, o francês Augustin Fliche
dedicava-se ao estudo da época do papa Gregório VII (1020?-1085). Era mais um
em uma multidão de autores. Afinal, o século XI havia se tornado um “grande
tema” entre os intelectuais, e o papa destacado como sua figura-síntese despertava
o interesse das elites letradas na Europa e nos Estados Unidos. As monografias,
biografias e obras históricas sobre o pontífice multiplicavam-se quase ano a
ano. Todavia, eram repetitivas, “apegadas à análise dos fatos, e as controvérsias
teológicas, relegadas a capítulos à parte, permanecem, por assim dizer, isoladas.”
(FLICHE, 1924, p. vi-vii).1 Os historiadores pareciam simplesmente não
perceber que apresentavam aos leitores uma humanidade mutilada quando
cortavam e separavam as ações do líder medieval daquilo que as havia originado,
o pensamento religioso. Até mesmo os estudos mais exaustivos falhavam em
recuperar a inteireza do passado. E por mais que reluzissem, as assinaturas de
um Carl Mirbt (1894), um Félix Rocquain (1881), um Abel-François Villemain
(1874) ou um Johannes Voigt (1815) não ofuscavam o fato de que seus esforços
tinham resultado em compêndios de grandes rubricas históricas, mas não em
uma visão de conjunto bem articulada.
Era necessário, segundo Augustin Fliche, encontrar uma perspectiva
que permitisse ver a totalidade da Idade Média. Isto é, restaurar a unidade
histórica entre atos e doutrinas, acontecimentos e consciências. Foi quando ele
encontrou a Reforma Gregoriana.
O conceito apontou para uma nova direção. Juntas, aquelas duas palavras
realçavam um desejo de corrigir a sociedade, acalentado por muitos clérigos
como a lógica que regulava as decisões e as lutas políticas daquela época. Graças a

1 Todas as traduções de obras em língua estrangeira são de nossa autoria.


25
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

essa sugestão, Fliche acreditava ser capaz de ver além das opiniões contraditórias
que povoavam a Sé romana no século XI. A diversidade de julgamento e as
constantes polêmicas que volta e meia surgiam no interior do clero pontifício
eram superficiais, não passavam de ocorrências momentâneas, pontuais. Pois
todas emanavam de uma unidade essencial, da devoção àquele ideal de extinguir
os delitos, reformar os costumes e endireitar as regras morais cristãs. Professado
por todos os integrantes do Papado, esse desejo reformador teria evoluído em
Roma. Lá, uma intensa produção de coleções canônicas e textos doutrinários
o racionalizou, até fazer dele a força que movia uma renovada consciência a
respeito da liderança e dos deveres do clero perante o mundo. Aprimorada ao
longo de anos, essa consciência cresceu pelas mãos de Gregório VII e tornou-
se um ousado programa de correção e aperfeiçoamento da vida em sociedade.
Após a morte do papa, tal programa teria sido adotado como a doutrina político-
religiosa oficial dos homens que se sentavam no trono de São Pedro.
O autor não teve dúvidas: reconhecer a centralidade da Reforma na
experiência dos medievais significava entender “em que medida os eventos
provocaram a formação das teorias e as teorias agiram sobre a marcha dos
eventos.” (FLICHE, 1924, p. vii). Uma nova história era possível e Fliche lançou-
se a escrevê-la. Assim nasceu a obra La Réforme Grégorienne.

A Reforma como éthos político

Publicado em 1924, o primeiro volume de La Réforme Grégorienne é


inteiramente dedicado ao desafio de encontrar a unidade de pensamento em
meio à diversidade palpável de indivíduos, convicções e orientações ideológicas
que se abrigaram no interior do Papado medieval. A Roma registrada pelas
evidências documentais era uma encruzilhada de visões religiosas. As fontes
históricas, especialmente as crônicas, registraram a agitação da cidade eterna,
convertida pelas constantes chegadas e partidas de eminentes figuras eclesiásticas
em centro de criação das ideias religiosas medievais. Levadas até o Lácio como
bagagens de vidas, as inspirações reformadoras mesclavam-se, mas nem sempre
se harmonizavam.
Essa intensa realidade era algo recente. As narrativas da época são
quase unânimes ao apontar o ponto de virada do qual surgiu aquela Roma que
fervilhava de devoção. Esse marco foi o ano de 1046. Alguns meses antes do
Natal, o imperador Henrique III (1017-1056) atravessou os Alpes e marchou
rumo à Península Italiana. À frente de uma imensa coluna militar, ele deixou
Pávia e rumou para o sul. A viagem seguia um itinerário político, ao longo

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A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

do qual o imperador destituiu bispos, recompensou bons vassalos, sufocou a


insatisfação dos rebeldes. Até chegar a Roma. Com “as ambições políticas à frente
dos interesses religiosos”, Henrique interferiu na política local e “entronizou
à força” um papa, de sua escolha (FLICHE, 1924, p. 110-111). Clemente II (?-
1047) foi o primeiro de quatro dignitários para os quais Henrique assegurou,
sucessivamente, o trono de Pedro.
Embora a “igreja romana estivesse doravante em escravatura, pois
o papa era uma emanação do imperador” (FLICHE, 1924, p. 111), os novos
bispos tornaram-se símbolos de uma autoridade restaurada, rejuvenescida e
logo cercaram-se de zelosos reformadores da Igreja. Uma a uma, as eminentes
vozes clericais da época ganharam as estradas em direção às colinas romanas,
onde formaram a cúpula dirigente do Papado. Entre esses virtuosos que
teriam projetado Roma como santuário da fé reformadora, estavam Azelin de
Compiègne (1010?-1054?); Humberto de Moyenmoutier (1015?-1061); Hugo
de Rémiremont (1020?-1099?), Hildebrando de Soana (futuro papa Gregório
VII), Frederico de Liège (1020?-1058), Pedro Damiano (1007-1073) e Anselmo
de Lucca (?-1073).
Por meio deles, diferentes métodos de educação religiosa chegaram
até Roma. Juntos, aqueles reformadores formavam um caleidoscópio de
compreensões sobre a fé. Carregando marcas do ascetismo e do rigor moral do
monasticismo beneditino, alguns deles defendiam que o clero venceria o combate
contra os vícios de seus rebanhos a partir do momento em que se espelhasse no
comportamento dos monges. Outros discordavam desse juízo, convencidos da
superioridade da liderança episcopal tal como ensinada nas cidades da Lotaríngia,
cujos sacerdotes eram provas vivas de que o preparo intelectual, a disciplina
moral instigada pelo celibato e o senso de subordinação hierárquica faziam dos
bispos os mais qualificados para purificar a sociedade cristã. As divergências não
paravam por aí. Havia quem vislumbrasse no imperador um aliado e protetor e
quem o condenasse como tirano da Igreja. Para alguns, a bênção de um sacerdote
maculado pela simonia2 era espiritualmente nula, ao passo que outros tinham a
certeza de que a graça divina estava ali, pois ela permanecia intacta até mesmo
nos gestos de um clérigo corrompido. Enfim, as visões sobre as relações entre
Igreja e sociedade eram fragmentadas e contraditórias: os integrantes da Santa

2 Esse era o nome reservado para um modo de tratar os bens eclesiásticos. Associa-se à figura de
Simão Mago, descrito nos Atos dos Apóstolos (8: 9-24) oferecendo dinheiro a Pedro em troca
de dons espirituais. A tradição cristã designava “simonia” a corrupção moral do clero, não só
por meio de dinheiro, mas também, segundo a formulação do papa Gregório Magno (540-604),
quando a ordenação de um prelado envolvia a concessão de presentes, o pagamento por serviços
prestados ou, simplesmente, favores ou acordos.
27
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Sé frequentemente encontravam a fé olhando para direções diferentes (FLICHE,


1924, p. 39-128).
Mas, então, qual a explicação para a unidade do pensamento reformador
papal? De que modo o historiador pode encontrar coesão institucional em meio
a tantas divergências pessoais? A resposta do medievalista francês: colocando
a espiritualidade em perspectiva histórica e desvendando sua progressiva
unificação. Católico fervoroso, Fliche operava um salto de pensamento ao fazer
com que sua própria fé convivesse com uma constatação de historiador, a de que
as crenças na verdade revelada mudam pelos séculos afora. A verdade religiosa
é um processo de autocompreensão entre os homens e não uma essência eterna.
O pensamento religioso, ele admitiu, possui vida no tempo, transforma-se por
ritmos próprios. No caso estudado por ele, isso significava dividir a história em
dois períodos.
A primeira etapa era extensa, pois correspondia ao processo de
formação das ideias gregorianas. Transcorria desde o século X e definia-se pelo
contato e pela aproximação de diversos elementos teóricos da religiosidade
medieval até culminar no pontificado de Leão IX (1002-1054). Foi então que
o “método loreno” de governo episcopal articulou-os, amarrando-os a certos
princípios fundamentais: a autoridade apostólica como a instância máxima
dos assuntos da Igreja, acima, inclusive, da voz imperial; a igreja de Roma na
condição de verdadeira guardiã da tradição dos santos padres; a reforma moral
como meio da restauração do direito canônico e do primado da norma escrita.
Com Leão IX, o Papado imprimiu uma lógica especificamente romana aos
objetivos da Reforma, distinguindo-a de projetos anteriores, especialmente
aquele defendido pelos abades de Cluny. Fliche (1924, p. 147) não fez rodeios
em sua avaliação: “a obra rascunhada por alguns bispos isolados do século X,
por alguns soberanos animados por piedosas intenções no início do XI, adquire,
daqui em diante, um caráter universal [...]. A Reforma era uma e era romana.”
O pontificado leonino foi decisivo. Ao final dele, a Sé romana era vista
como a “mãe de todas as igrejas”. Mas a Reforma passaria por ele incompleta,
pois o papa “se deteve no meio do caminho” (FLICHE, 1924, p. 158). Ele não
ousou desafiar o predomínio do poder temporal sobre os assuntos da religião
cristã. Isso só ocorreria com a ascensão de Gregório VII, em abril de 1073. Aqui
começa a segunda fase da Reforma Gregoriana. As decisões desse pontífice
recombinaram “as teorias de bispos e monges, alguns originários da Itália e outros
de partes do antigo reino da Lorena” (FLICHE, 1924, p. 366), interligando-as em
uma inédita agenda de alianças e compromissos em prol do triunfo do poder
espiritual. A Reforma tornava-se uma declaração de guerra contra o imperador
e o domínio laico. Ficava cada vez mais nítido que Fliche considerava Gregório
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A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

o centro de um vasto movimento de transformações políticas e religiosas. Para


o autor, aquele papa estava rodeado por escritores e polemistas que esboçaram,
corrigiram e desenvolveram o programa reformador romano já fundamentado
por Leão IX. Mas, no momento analisado pelo autor, os propósitos finais e os
meios de ação ganharam outra grandeza, conforme a personalidade do novo
líder romano, que, “segundo os documentos verdadeiramente históricos, era,
acima de tudo, uma alma fervorosa, muito dedicada ao ideal cristão” (FLICHE,
1924, p. 383).
Gregório tornou-se o pivô da consciência religiosa partilhada
pelos mais destacados eclesiásticos do século XI porque assumiu plenamente
o enfrentamento com os poderosos laicos. Apenas sob seu exemplo, dizia
Fliche, os reformadores reconheceram que a ruína das instituições clericais era
consequência da ascendência dos reis e senhores feudais sobre bispos e abades.
A obstinada campanha daquele papa contra o influente lugar dos laicos na
condução dos assuntos espirituais abriu os olhos dos homens da Igreja. Somente
então, eles perceberam como a lembrança das intervenções carolíngias, apesar de
difusa, impulsionava os nobres a usurpar prerrogativas clericais. Assim as práticas
nefastas infiltravam-se na Igreja: como um assalto laico à santa autoridade. Para
alimentar o jogo feudal de favores e pactos exclusivamente pessoais, a nobreza
simplesmente tomava tudo. Quando não controlava as funções religiosas,
empossando parentes e aliados entre os dirigentes de igrejas, passava a vendê-las
ou trocá-las por vantagens materiais. Se já era quase impossível encontrar entre
o clero quem seguisse o celibato ou a retidão apostólica, isso ocorria porque
os nobres haviam convertido os sacerdotes em testas de ferro da glorificação
dinástica. O senso hierárquico desmoronou, pois as identidades religiosas,
encravadas nos patrimônios senhoriais, não ultrapassavam o âmbito local
(FLICHE, 1924, p. 17-38). As descrições flicheanas a respeito do desgoverno
feudal e de seus efeitos – a crise moral que se abateu sobre a sociedade – remetem
ao estilo de Proudhon (TOUBERT, 1986, p. 11). Que tremenda ironia! O elogio
ao governo estatal composto por Fliche em sua obra lembra os jogos de palavras
de um arauto oitocentista do anarquismo.
Dominada e retalhada por linhagens feudais, a cristandade teria
naufragado na crise eclesiástica e moral, que se arrastava desde muito antes do ano
mil. Mas, somente com as ações de Gregório VII, os reformadores perceberam
que a real causa daquela atmosfera nefasta era a ausência de uma distinção clara
entre clérigos e laicos. Não havia, portanto, outro caminho a tomar. Para restaurar
a Igreja, era necessário reformar os costumes e restabelecer a separação entre os
membros de seu corpo institucional e os que professavam seus ensinamentos.
Tal divisão era apontada como a base ética que a sociedade teria perdido. Eis o
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

que isso queria dizer: apenas quando reconhecessem os padres como seus juízes
morais, os laicos respeitariam a exclusividade eclesiástica sobre os ofícios e os
bens que integravam o sacerdócio. Somente desse modo, a fronteira entre os dois
grupos seria restabelecida e a ordem, restaurada.
A Cúria romana deveria assumir as rédeas da autoridade e viabilizar
os meios para uma unidade de ação que alcançasse todos os clérigos e monges e
fosse capaz de submeter todas as igrejas e mosteiros ao governo papal, apartando-
os da tirania das nobrezas. Para emancipar o clero e resgatar o convívio cristão
da anarquia feudal, era preciso centralizar os poderes eclesiásticos e enfrentar
qualquer laico, ainda que se tratasse do imperador em pessoa. A Reforma exigia
um Estado.

A Sé gregoriana ou o fardo do Estado involuntário

O Papado gregoriano estava diante de uma missão improvável. O


último organismo estatal tinha desaparecido havia mais de um século. Desde o
colapso do Império Carolíngio, os medievais conheceram apenas as desordens
e as “práticas escandalosas do regime feudal” (FLICHE, 1924, p. 29). Extinta a
hegemonia dos reis carolíngios, perdeu-se a estrutura administrativa capaz de
impor limites às vontades individuais e forçá-las ao consenso. Não havia quem
pudesse aplicar a lei em escala pública e, assim, conter a pressão dos interesses
particulares. A escolha dos bispos, por exemplo, deixou de ser uma liberdade
assegurada à comunidade cristã pelo direito e pela tradição e foi convertida em
privilégio dos príncipes temporais. Sem o Estado, “a igreja se tornou vítima da
engrenagem feudal” (FLICHE, 1924, p. 30).
Na ausência de um poder centralizado, a estabilidade social desfez-
se. Das Ilhas Britânicas ao Mediterrâneo, o vácuo político foi ocupado pela
livre vazão das destrutivas rivalidades e ambições da nobreza. No entanto, a
questão não deve ser encarada nos termos de tudo ou nada, como se sugerisse
o raciocínio “com o Estado, a paz; sem ele, a catástrofe”. Para Fliche, a ordem
estatal falhava, especialmente quando violava as fronteiras entre o secular e o
espiritual: “as origens primeiras da usurpação que foi cometida em desprezo
às regras canônicas e à tradição remontavam à época carolíngia.” (FLICHE,
1924, p. 17). Contudo, ainda que imperfeita, a organização estatal era a última
barreira antes da queda coletiva na desordem e na anarquia. Suas amarras
administrativas e jurídicas impediam os poderosos de devorar o ordenamento
social, desfigurando os limites que separavam clérigos e laicos.
Sem o Estado, a ação social ficava, de uma vez por todas, entregue
ao apetite dos sentimentos, dos desejos, das paixões, que alimentavam a
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A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

arbitrariedade e a violência entre os homens. Os valores individuais eram


sequestrados por propósitos imediatos. Sem um ordenamento jurídico
centralizado, as vontades perdiam o conteúdo racional do senso de dever e
dependência mútua. Era esse senso o que impedia os homens de serem apenas
para si mesmos e os reequilibrava moralmente como partes encaixadas de uma
comunidade. Quando o Império Carolíngio ruiu, tudo o que restou foi a crise,
tão grave quanto prolongada.
Por isso, após “ter hesitado e tateado por algum tempo, a Santa Sé
foi obrigada a recorrer a um remédio radical” (FLICHE, 1924, p. v): saltar ao
primeiro plano político, assumir as competências jurídicas e administrativas
estatais e domesticar as consciências, relembrando todos os homens de que toda
transgressão encontrava sempre um juiz. Em outras palavras, diante da falência
dos grandes poderes, a Igreja romana viu-se forçada a assumir a responsabilidade
pela definição dos papéis sociais. Coube a ela preservar, com o pesado braço
da lei canônica, a separação das prerrogativas e dos deveres entre os clérigos e
os laicos. Aos olhos de Fliche, restou aos eclesiásticos assegurar que as relações
coletivas convergissem para o campo da ação racional. Ou, em outras palavras:
coube ao Papado salvaguardar o espaço público.
Valendo-se dessa argumentação, o medievalista francês endossou e
encorpou uma opinião conhecida: a de que as razões primitivas da Reforma
Gregoriana não deveriam ser tomadas por um projeto especificamente político.
Não se tratava de ambições temporais. As exigências reformadoras arrastaram
o papa para o conflito necessário, mas não premeditado, entre o regnum e o
sacerdotium. Antes de Fliche, a ideia havia sido anunciada por James Pounder
Whitney, em Pope Gregory VII and the Hildebrandine ideal (1910), que retomou
o argumento em 1932, com a publicação dos Hildebrandine essays. Além disso,
em 1921, os irmãos Carlyle – Sir Robert Warrand e Alexander James – haviam
empenhado o quarto volume de sua A History of Mediaeval Political Theory in
the West para “entender a real natureza do grande conflito e escapar à viciosa
concepção que o vê como representativo de mera agressão eclesiástica ou mera
tirania secular.” (CARLYLE; CARLYLE, 1921, p. 25). Mas foi com Fliche que a
interpretação ganhou robustez. Sua análise demonstrava que a exaltação política
da Sé apostólica – estopim do conflito com o Império sobre o poder de dispor das
funções episcopais – não era uma finalidade em si. A transformação do Papado
em um Estado era, isto sim, a condição para viabilizar e coordenar as reformas
que assegurariam a ordem pública, a integridade eclesiástica e a retidão moral
coletiva.
Os séculos XI e XII não poderiam ser explicados como “Querela das
investiduras” ou como “conflito entre o reino e o sacerdócio”. Pensar assim seria
31
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

apequenar o significado histórico daquela época, pois ambas as expressões


nomeavam apenas o mesmo capítulo de um processo mais vasto e complexo,
qual seja: a evolução e a gradativa radicalização das ideias reformadoras. Era
compreensível o fascínio dos historiadores pela luta entre papa e imperador.
Afinal, quando colidiram, as vozes de Gregório VII e Henrique IV provocaram
um imenso impacto sobre o mundo medieval. As excomunhões e as deposições
cresceram em escalas jamais vistas, as guerras e as invasões assolaram os
dois lados dos Alpes. Mesmo nas igrejas mais distantes do palco do conflito,
compunham-se tratados contra o “falso papa” ou o “rei tirano”.
Da literatura polêmica ao sangue vertido em batalha, o exercício do
poder e da autoridade ganhava novas medidas, e sua legitimidade tornou-se
outra. Todavia, advertiu Fliche, era preciso não se deixar impressionar. Deter
os olhos naquela disputa significava renunciar à visão de conjunto. Para o
historiador, havia algo mais importante que o estudo minucioso dos eventos e de
seus desdobramentos pontuais: compreender como as doutrinas reformadoras
engendraram um governo sacerdotal sobre a cristandade. Responder a esse
desafio é o propósito do segundo volume de La Réforme Grégorienne (FLICHE,
1926).
Nessas outras páginas escritas por Fliche, o governo sacerdotal
figura como o último estágio da Reforma. Trata-se da grande obra gregoriana.
Suas características definidoras eram nítidas: “o fortalecimento da autoridade
pontifícia e o enfraquecimento dos poderes locais.” (FLICHE, 1926, p. 239).
Gregório havia percorrido duas vias para chegar a esses resultados.
A primeira consistiu em assegurar o alinhamento de certos príncipes
temporais com as causas eclesiásticas. Alternando a indulgência e o pulso
firme, “aspirando unicamente a fazer reinar a paz e na paz prosseguir sua obra
reformadora com o benevolente apoio do poder temporal” (FLICHE, 1926, p.
128-129), o papa buscou a aliança dos reis da França e da Inglaterra. Porém,
seu maior objetivo era agrupar os poderosos da Península Italiana em redor da
autoridade romana. Se a política pontifícia mostrou-se infrutífera ao norte, onde
os bispos lombardos permaneciam majoritariamente leais ao imperador – apesar
do apoio da Condessa Matilda de Canossa (1046?-1115) –, um êxito não menos
decisivo despontou ao sul com a reaproximação dos príncipes normandos da
Calábria e Sicília. Ao renovar sua fidelidade ao bispo romano, Ricardo de Cápua
(?-1078) e Robert Guiscard (1015-1085) “submeteram a Itália meridional à
influência do Papado.” (FLICHE, 1926, p. 131).
A segunda via foi trilhada quando Gregório tomou medidas para
tornar mais eficaz a aplicação universal das decisões romanas. Para isso, recorreu
sistematicamente a dois instrumentos de ação sobre as igrejas locais: de um lado,
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A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

os concílios gerais ou provinciais; do outro, os legados apostólicos. Estes últimos


eram indivíduos pessoalmente designados pelo papa e despachados para
diferentes regiões com a missão de preparar e supervisionar o cumprimento das
decisões apostólicas. Gregório não foi o primeiro papa a fazê-lo. Ao contrário:
aqueles recursos institucionais integravam a política papal muito antes de 1073.
Ele próprio havia sido legado apostólico de três pontífices – Leão IX, Vítor II
(1018-1057) e Estevão IX (1020-1058). Mas, afirmou Fliche, ao ser eleito,
Hildebrando colocou aquelas práticas a serviço de uma lógica incomum. Na
mente daquele novo sucessor de São Pedro, reduzir a distância institucional
entre a Cúria e as dioceses cristãs significava “enfraquecer o poder dos primados,
metropolitanos e bispos.” (FLICHE, 1926, p. 205).
Enquadrar os grandes prelados e ensinar-lhes a acatar a supremacia
romana, eis aí as funções maiores dos legados. Dos clérigos incumbidos da
missão de representá-lo em lugares e ocasiões em que não podia estar presente,
Gregório esperava total fidelidade: “confiança e obediência, tal é o duplo mote
de ordem. Desde que o legado aparecia em nome do papa em uma diocese, a
autoridade do comum desaparece perante ele e todas as decisões tomadas por
ele têm força de lei.” (FLICHE, 1926, p. 212). Personagens antigos, os legados
tornaram-se os agentes por excelência da centralização romana, pois permitiam
que a autoridade absoluta reivindicada pela Santa Sé encarnasse em diferentes
pontos da cristandade. Do espírito de Gregório, a Cúria herdaria características
governamentais: as ações papais passaram a ser pautadas pela extensão geográfica,
pela continuidade temporal e pela rígida fixação dos escalões hierárquicos.
Nascia a monarquia papal, cuja parafernália burocrática passaria a pesar sobre
as igrejas locais por meio da autoridade interventora dos legados, “desejada e
meticulosamente perseguida pelo papa.” (FLICHE, 1926, p. 227).
A tempestade política dos anos 1080-10853 desvelou a realidade
por trás das cartas papais: o bispo de Roma era a testa de um Estado. Da viva
comoção provocada pela solene condenação de Henrique IV à trágica sorte
de Gregório VII, que morreu em Salerno mastigando a amarga notícia de que
havia outro sentado em seu trono apostólico, seguiu-se um dramático curso de
experiências que levaram o velho papa a proclamar os princípios do governo
sacerdotal. Foi quando emergiu a “tese gregoriana”, ponto de culminância de
toda a Reforma: o governo sacerdotal tinha sua origem no primado romano e

3 Período em que as diferenças entre Papado e Império agravaram-se por meio de excomunhões,
declarações mútuas de deposição, expedições militares e conflitos ao longo da Península Italiana
até culminar na tomada de Roma por Henrique IV, seguida pelo exílio e morte de Gregório VII
em 1085.
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

no poder universal do Apóstolo; portanto, todos os demais poderes estavam


sob a direção apostólica. Realezas eram análogas aos bispados, pois aqueles que
os detinham de maneira imprópria, fosse um monarca tirano ou um prelado
insubordinado, encontrariam a excomunhão e a deposição. A Reforma assumiu
plenamente sua identidade, que veio à tona em uma instrução pública endereçada
a Herman, bispo de Metz, em 1081. Dessa vez, o pensamento papal foi expresso
em um latim firme, extenso, solidamente escorado em argumentos patrísticos,
não como os enunciados soltos do Dictatus Papae4 de 1075 (FLICHE, 1926, p.
389-409).
O pontificado gregoriano terminou em ruínas, com seu líder
salmodiando no exílio que “os príncipes das nações e os príncipes dos sacerdotes
uniram-se contra Cristo, filho do Todo Poderoso, e contra o apóstolo Pedro.”
(FLICHE, 1926, p. 420). Mas os lamentos do velho bispo eram o canto de triunfo
da Reforma. A Sé romana finalmente desafiou os poderes temporais e, ao fazê-lo,
abriu caminho para restaurar a distância entre os clérigos e laicos, fundamento
de uma ordem pública e racional. Nisto, concluiu Augustin Fliche, reside o
legado de Gregório VII: ter assegurado, pelo exemplo do sacrifício político, que
as ideias impulsionadoras de tal sucesso alcançassem um aspecto ainda mais
dogmático e sintético, que assegurasse sua transmissão às gerações posteriores.

A história como pensamento em ação

Fliche levou 13 anos para escrever o terceiro volume de La Réforme


Grégorienne. Os volumes anteriores foram concluídos em 1923. O último foi
assinado somente no inverno de 1936. As 300 páginas finais não deixariam
margem para dúvidas: para o autor, a dinâmica histórica dos séculos XI e XII
residia nas batalhas do intelecto.
A Reforma não seguiu Gregório até o túmulo. Mas cuidado. Nada de
precipitações – sugeria Fliche. Pois isso não queria dizer que ela sobreviveria à
morte de seu arquiteto. Para tanto, os perpetuadores da obra gregoriana deveriam
sair vitoriosos do confronto com a furiosa oposição antigregoriana. Afinal, anos
de correções morais e punições disciplinares, sustentadas como ensinamentos
da supremacia papal, produziram um exército de clérigos e monges suspensos,
depostos, quando não marcados pela excomunhão e colocados porta afora
do convívio cristão. A oposição manifestava-se desde antes, crescendo à

4 Frequentemente mencionado como “memorando” ou “conjunto de princípios do papa”, o


Dictatus é considerado a carta magna da “ideologia papal”. Com base nele, Gregório VII teria
estabelecido uma relação de 27 postulados definidores da autoridade pontifícia. Cada postulado
é formulado de modo sucinto, tópico, compreendendo entre uma e três linhas em escrita cursiva.
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A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

medida que o movimento reformador ganhava espaço. Os legados singravam


pela cristandade, deixando um rastro de desobediência aos preceitos papais,
reação comum aos descontentes por terem sido punidos. Falecido o papa,
os antagonismos acirraram-se de vez. Especialmente porque o imperador
sustentava um antipapa, que galvanizava a lealdade do clero enfurecido.
A partir de 1080, uma incessante elaboração de “tratados, cartas
e panfletos surgiu para assegurar o triunfo do antipapa.” (FLICHE, 1937,
p. vi-vii). Saindo em defesa de seu mentor, os gregorianos não deixaram por
menos e compuseram textos envolventes, que narravam longamente como o
papa havia empenhado a própria vida pela liberdade da Igreja. Entre golpes e
contragolpes de escrita, uma intensa atividade literária instalou-se na ordem do
dia, disseminando uma nova atmosfera intelectual. A oposição antigregoriana
foi parte criadora de uma evolução do pensamento político e religioso. A defesa
da causa régia conduziu Henrique IV e seus partidários a “reivindicar para a
autoridade monárquica uma independência total a respeito da autoridade
espiritual.” (FLICHE, 1937, p. 322). Arruinar as pretensões papais era tarefa
dificílima, que exigiu um engenhoso empenho coletivo. Era preciso percorrer
densas florestas de manuscritos antigos à caça de argumentos canônicos,
jurídicos e históricos suficientemente sólidos para sustentar um “absolutismo
imperial” (FLICHE, 1937, p. 322). As consequências foram duradouras: pelas
mãos dos escritores antigregorianos, o direito romano entrou em cena, escalado
para exaltar o dominium mundi dos imperadores.
Eis a função daquele demorado terceiro volume: “fixar a fisionomia
das doutrinas, perceber suas nuances, recolocá-las nos meios onde ganharam
a luz do dia, perscrutar as intenções e tendências daqueles que as enunciaram.”
(FLICHE, 1937, p. vii). O autor tinha pela frente uma longa jornada. Pois era
imensa a paisagem intelectual a ser percorrida em um só livro. Fliche, porém,
encontrou um atalho no itinerário de investigações traçado por Paul Fournier.
Em 1932, esse professor honorário da Faculdade de Direito da Universidade de
Paris publicou a Histoire des Collections Canoniques en Occident depuis les Fausses
Décrétales jusqu’au Décret de Gratien. Elaborada em colaboração com Gabriel
Le Bras, a obra narrava, metodicamente, a formação das principais coleções
canônicas medievais, de meados do século IX, época carolíngia, ao contexto do
século XII, era do “direito canônico clássico.” (FOURNIER, 1932).
Embora esquemática – e por vezes formalista –, a publicação foi
uma contribuição fundamental, pois prosseguiu a história das fontes do direito
canônico de Frierich Maassen (1888), que se deteve precisamente no século
XI. Suas quase mil páginas compunham uma minuciosa cartografia da vasta
paisagem intelectual que Fliche pretendia analisar. Todavia, o último volume
de La Réforme Grégorienne excedeu a simples exploraçãos dos quadrantes
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

daquele mapa. O autor conferiu vida aos quadros estáticos de Fournier. Na


escrita flichiana, as ideias estão em movimento. Envolvidas pela espiral das
lutas políticas, elas escapavam às molduras dos códigos legislativos. Vista assim,
a produção literária dos polemistas move-se, contraindo-se ou estendendo-se
segundo a pulsação dos confrontos pelo poder. Os exemplos são muitos, mas
basta-nos um. Observe-se. Ao escrever a apologia Defensio Heinrici Regis em
1084, certo “Pedro Crassus” fez da última década vivida por ele um drama e do
rei germânico, seu Hamlet:

Gregório não é considerado senão indiretamente à parte,


Henrique permanece no primeiro plano e, seja qual for o conteúdo
do desenvolvimento, o autor não tem outra preocupação a não
ser convencer seus leitores da legitimidade do poder e dos atos do
soberano, a respeito do qual ele professa a mais cega admiração.
(FLICHE, 1937, p. 99).

Ao passo que os bispos, aliados do mesmo homem exaltado por


Crassus, contrairiam a verve antipapal dos imperiais. Apesar de tomados por viva
indignação, eles abstinham-se em momentos cruciais: “não queriam abandonar
o rei, mas não podiam silenciar as reprovações íntimas que se insinuavam nos
recantos de sua alma; desejavam o restabelecimento da paz entre Gregório
e Henrique”. Hesitantes, exigiam que “se buscasse com um ardor inquieto as
razões de ordem canônica que poderiam iluminar uma escolha tão penosa e
delicada.” (FLICHE, 1937, p. 143). Os aliados imperiais não formavam um
bloco de ideias homogêneas, uniformes como um pensamento liso e monótono.
Fliche demonstra que os grupos partidários de Henrique IV moviam-se com
certa autonomia, assumiam posicionamentos diversos e, por vezes, discrepantes,
como “Pedro Crassus” e o episcopado imperial.
Ambos compunham a literatura antigregoriana, cuja pluralidade
demonstrava como o pensamento era capaz de deslocar as fronteiras demarcadas
pelos fatos. As páginas finais escritas por Fliche coroavam o parâmetro
historiográfico que estruturou toda a obra: abarcar a cultura escrita produzida a
respeito do programa reformador de Gregório VII era a forma mais confiável para
captar o sentido das relações de poder no século XI. Em textos como o Adversus
Simoniacos5 e o Tractatus pro Clericorum Connubio6, criados para defender ou

5 Escrito por volta do ano 1057 pelo cardeal Humberto de Silva Cândida (1015?-1061), O
Libri tres Adversus Simoniacos é comumente considerado a obra que modelou, em termos
doutrinários, o radicalismo gregoriano perante a investidura de bispos pelos poderes laicos. O
Adversus costuma figurar ainda como uma das fontes formadoras do pensamento e do chamado
“programa reformador” de Gregório VII.

6 O Tractatus pro Clericorum Connubio é usualmente classificado como uma obra “antigregoriana”.
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A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

arruinar a Reforma romana, estava depositada a medida da abrangência e da


intensidade das transformações protagonizadas pela Sé romana. A realidade
política estava ancorada no pensamento religioso, pois o poder comportava-se
conforme as lições do intelecto.
Após os últimos retoques, La Réforme Grégorienne tornou-se uma
síntese sedutora. Comparada às obras que a precederam, ela oferecia uma
leitura abrangente, mais sensível à dinâmica histórica. Embora crispadas por
um indisfarçável tom apologético – por vezes, quase sermonístico –, suas
argumentações buscavam superar a descrição factual e desvendar o fundamento
das experiências sociais que uniam indivíduos e sociedade. Pois, na trilogia
flichiana, as ações sociais pressupõem sistemas de valores conscientemente
partilhados. Se o objeto da ciência histórica é o homem, neste caso ele o é como um
ser intelectual. A cada página, o autor apostou que uma lógica coesa comandava
o alinhamento entre as atitudes e as consciências, e destas com as instituições.
Entretanto, tal lógica era um fenômeno difuso e só o historiador versado no
mapeamento das racionalidades poderia notá-la. Dito de outra maneira: Fliche
demonstrou que a realidade era intelectualmente mediada. As ideias eram
a razão do político. Sem elas, as ocorrências do poder não passariam de um
amontoado de fatos, um ajuntado disforme de vontades e atos, intoleravelmente
pontuais, perigosamente aleatórios.
Vislumbrando um pouco mais de perto, é possível compreender por
que o conceito de Reforma Gregoriana apoderou-se da escrita da história –
não só da medieval. Herdeiro do século XIX, ele foi publicado por Fliche com
características inovadoras.
Primeiramente, a perspectiva de síntese. Para compreender o
passado, o historiador deveria estar atento às junções entre os comportamentos
coletivos e as doutrinas religiosas, ter bom olho para identificar as conexões
que entrelaçavam as instituições e a vivência do sagrado. A publicação acenou
aos leitores com a possibilidade de capturar uma unidade da sociedade feudal e
ultrapassar as abordagens vigentes, demasiado apegadas ao tema de um duelo
Estado versus Igreja e limitadas a estudos superficiais e descritivos. Assim, quanto
mais os historiadores convenceram-se de que o futuro de seu ofício dependeria
da habilidade para compor sínteses históricas (BERR, 1946; FEBVRE, 1970;
BLOCH, 1999), mais razões surgiram para justificar a incorporação desse
conceito aos estudos do passado. A seu modo, La Réforme Grégorienne travava

Nesse texto, escrito na Normandia por um clérigo italiano em aproximadamente 1065, o


autor assume a defesa do casamento clerical, apoiando-se em cânones e livros patrísticos para
demonstrar que medidas tomadas por Leão IX e Nicolau II em prol do celibato contrariavam os
ensinamentos da tradição cristã.
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

uma batalha pela ciência histórica, evocando uma “nova concepção de história,
muito diferente daquela do século passado que não pôde se elevar acima do
horizonte dos fatos.” (FLICHE, 1950, p. 370).
Em segundo lugar, estavam certas lições de método. Desde os
primeiros trabalhos (1915; 1916a; 1916b; 1916c; 1917; 1920), Fliche endossava
a premissa da existência de uma história religiosa como um campo autônomo
de investigações. Mas a irredutibilidade dos fenômenos religiosos – o que
justificava a especificidade daquele domínio de estudos – impunha certas
exigências que La Réforme Grégorienne tornou um pouco mais explícitas. Para
apreender o passado, era preciso articular diferentes tipologias documentais. O
usual recorte monográfico, pelo qual o pesquisador debruçava-se sobre uma
fonte e empreendia a exegese minuciosa do texto ali abrigado, era insuficiente.
O historiador completo era mais que um erudito de manuscritos. Ele deveria
ser capaz de sincronizar os sentidos contidos em fontes diversas, porém coevas.
Por mais que variassem ou divergissem, cartas, tratados, crônicas, diplomas e
penitenciais eram fragmentos desproporcionais de um pensamento em comum.
No entanto, o aspecto sistêmico que os unia não era autoevidente. O historiador
deveria intervir sobre a documentação, manipulá-la por dentro, para, em
seguida, recompor a unidade religiosa que a atravessava como essência interior.
Embora se declarasse em favor da renovação da história eclesiástica – como fez
no artigo Où en est l’histoire ecclésiastique médiévale, orientations et méthodes –,
Fliche contribuiu para colocá-la em transição rumo a um paradigma maior, o da
história religiosa (DURAND, 2009, p. 44).
Ao perceber essas características, talvez possamos compreender melhor
por que La Réforme Grégorienne foi a obra que projetou Augustin Fliche. Antes
dela, seu autor era reconhecido como um dos muitos ex-alunos de Émile Mâle
e Ferdinand Lot, cujo ingresso na universidade de Montpellier em 1919 lhe
rendera artigos bem acolhidos, mas carentes de repercussões duradouras. Depois
de publicar os primeiros volumes da trilogia, laureado com o Prêmio Saintour, o
nome Fliche passou a ser uma referência sem a qual a história religiosa dos séculos
X, XI e XII parecia simplesmente lacunar. Antes de ser concluída, La Réforme
Grégorienne atraiu a atenção de Gustave Glotz, que confiou ao autor daquela
obra a responsabilidade sobre um volume da já célebre coleção editada por ele
sobre história geral. Assim surgiu L’Europe Occidentale de 888 à 1125 (FLICHE,
1930), cuja resenha foi assinada pelo historiador belga François-Louis Ganshof
(1933, p. 1174-1178), autor do volume anterior – Les Destinées de l’Empire en
Occident de 395 à 888. Daqui em diante, a ascensão. Tendo acumulado prestígio,
Fliche diversificou sua pauta de interesses: escreveu sobre história regional,
galicanismo, cruzadas, Inocêncio III, concílios (VIROLLEAUD, 1951).
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A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

A consagração veio nas décadas seguintes, em uma Europa destroçada.


Juntamente com um eclesiástico, monsenhor Victor Martin, professor de direito
canônico e teologia em Strasbourg, Fliche dirigiu uma falange de renomados
pesquisadores na elaboração da série Histoire de l’Église depuis les origines jusqu’à
nos jours. À medida que eram publicados, os 24 volumes7 ganhavam as prateleiras
de bibliotecas e as vitrines de livrarias nos dois lados do Atlântico, estampando
dois mil anos de história em francês, mas também nas línguas para as quais
foram traduzidos: inglês, espanhol, italiano. Fliche, pessoalmente, reservou para
si a autoria de três volumes, o oitavo – intitulado La Réforme Grégorienne et
la Reconquête Chrétienne –, o nono – publicado como Du Premier Concile du
Latran a l’Avènement d’Innocent III (1123-1198) – e o décimo – batizado de La
Chrétienté Romaine (1198-1274). O primeiro era a continuação extraoficial da
famosa trilogia sobre Gregório VII, ao passo que os outros dois expandiam o
alcance de suas teses, que passavam a cobrir a história religiosa ocidental do
século XI ao XIII. Além de dilatada, a interpretação ganhou maior robustez,
encorpada pelas contribuições de discípulos devotos: Raymonde Foreville, Jean
Rousset, Christine Thouzellier e Yvonne Azais.
Carregada nos ombros de tamanha fortuna acadêmica, La Réforme
Grégorienne tornou-se a mais influente síntese sobre o Papado medieval
produzida no século XX. Seus ecos podem ser ouvidos em uma miríade de
interpretações, sobretudo quando folheamos manuais de história religiosa como
os de Alberto Gutiérrez (1983), Knowles e Obolensky (1972),8 Jacques Paul
(1988) e Jean Chélini (1991). A conclusão impõe-se: “não podemos subestimar
a eficácia da imagem da Reforma Gregoriana fixada por Fliche.” (TOUBERT,
1986, p. 10).

7 Transformados em 36 pela Editorial Cultural y Espiritual Popular (Edicep), de Valência, que


acrescentou milhares de imagens e uma diagramação mais elaborada.

8 Na obra de Knowles e Obolensky, cuja primeira edição data de 1968, encontramos uma avaliação
que retrata o significado assumido pela perspectiva sugerida por Fliche: “O grande movimento
de reforma que se verificou na Igreja ocidental e se estendeu pelo espaço de cem anos, é muitas
vezes deturpado pelos historiadores, e mal compreendido por seus leitores [...]. No passado a
atenção era com frequência dirigida quase exclusivamente para o conflito entre o papado e o
Império, e mais particularmente para um ponto do conflito, a luta das investiduras leigas. Só nos
últimos cinquenta anos é que esta grande polêmica [...] passou a ser encarada mais corretamente
como um dos aspectos de um amplo movimento de reforma moral, disciplinar e administrativa,
que atingiu toda a sociedade, e não apenas o papado e o clero” (KNOWLES; OBOLENSKY,
1972, p. 179).
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

A réplica

“Tampouco podemos superestimá-la.” Concluíam os leitores que
chegavam à linha final de Libertas. Kirche und Weltordnung im Zeitalter des
Investiturstreits, livro escrito por Gerd Tellenbach em 1936. Afinal, ali estava uma
refutação das teses flichianas. Não que a crítica da Reforma Gregoriana tenha
sido o motivo criador daquelas páginas. Porém, mesmo à sombra de outras
prioridades, a réplica era mordaz. Especialmente, porque vinha sob o embalo
da insatisfação inclemente de Erich Gaspar, o erudito alemão que, entre 1920
e 1923, concluiu a primeira edição moderna das epístolas de Gregório VII e a
incorporou à prestigiada coleção Monumenta Germaniae Historica.
Cioso quanto aos olhares acadêmicos lançados sobre o papa, cujas
cartas em latim havia editado, Gaspar (1924, p. 28) acompanhava de perto
seu colega francês: “Augustin Fliche tem publicado uma série de artigos sobre
Gregorio VII durante a [Primeira] Guerra, [...] sua biografia de Gregório VII na
coleção ‘Les Saints’ ainda não está disponível na Alemanha”. Mas não gostava do
que lia. Além de apologético, o autor coroado pela Académie des Inscriptions et
Belles-Lettres pecava pela soberba cega que caracteriza quem se apaixona pelas
próprias ideias. Curta, proclamada em um breve anexo, a sentença de Gaspar
era fulminante: Fliche simplesmente não teria enxergado a luta historicamente
travada entre dois antigos sistemas eclesiásticos, o modelo feudal de igrejas
próprias (Eigenkirche) e o episcopal de igrejas autônomas, pois “ele olhava através
dos olhos de reformador da igreja” (GASPAR, 1924, p. 28). Se não caíssem nas
armadilhas criadas pela familiaridade católica dos argumentos, os historiadores
reconheceriam que o francês buscava um novo polimento para ideias já
enferrujadas: “assim é sua ‘nova’ concepção sobre Gregório VII, [...] [porém]
esse ponto de vista ‘novo’ é basicamente o mesmo e pode ser encontrado no
velho Gfrörer, Fliche aparentemente não sabe.” (GASPAR, 1924, p. 28).
Gaspar, provavelmente, referia-se aos densos volumes de Papst Gregorius
VII und seiner Zeitalter, publicados pelo professor e bibliotecário em Stuttgart,
August Friedrich Gfrörer, entre 1855 e 1861. Se a relação estiver correta, a
opinião fazia mais que contestar o caráter inédito do pensamento flichiano.
Ela o marcava como artigo de antiquário, como produto de uma erudição
conservadora, desbotada em termos políticos e acadêmicos. Esse raciocínio
ganha força quando ouvimos as ressalvas metodológicas de Gaspar (1924, p.
28): “Fliche faz a tentativa de demonstrar [suas ideias] em termos concretos,
compreensíveis em evidências literárias. Mas ele cita exemplos esparsos a partir
das cartas de Gregório VII.” O francês teria escrito uma história conveniente à
Igreja, sacrificando os rigores da ciência histórica.
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A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

O resultado, afirmou Tellenbach esticando a crítica, era uma miopia


histórica crônica. A começar pelo reconhecimento do protagonista daquele
passado. Era incorreto remontar a atuação de Gregório VII a uma descoberta
pessoal de antigos padres da Igreja, como Santo Agostinho. Aquele papa não era
particularmente notável por sua fidelidade à tradição: “ele era um revolucionário
em seu coração; ‘reforma’ no sentido habitual da palavra, o qual implica um
pouco mais do que a modificação e o melhoramento das formas existentes, não
poderia satisfazê-lo.” (TELLENBACH, 1959, p. 164). As polêmicas atitudes do
pontífice perante a sociedade cristã não eram suficientemente explicadas pela
Reforma Gregoriana. Antes de tudo, porque Gregório não se deparou com um
mundo em crise.
Em nenhum momento, Tellenbach recorre à comodidade explicativa
oferecida por categorias genéricas como “anarquia feudal”. No século X visto por
ele, não há crise, seja ela política ou moral. Longe de responder a um contexto de
declínio dos poderes públicos, as ações gregorianas emergiram numa época em
que a dinastia dos sálios – fundada com a ascensão do rei Conrado II (990-1039)
– fortalecia a autoridade imperial como regime teocrático. A glorificação dos reis
atingia seu ápice. Os monarcas, figuras supremas para os laicos, ocupavam um
lugar ao lado dos mais altos postos do sacerdócio ou mesmo acima deles. Todas
as formas de hierarquia, secular ou espiritual, decorriam dos direitos divinos que
os sucessores de Carlos Magno ditavam após a cerimônia de coroação. Vivia-
se “num período em que as igrejas da Europa eram parte integral do Estado e
permaneciam sobre controle régio.” (TELLENBACH, 1959, p. 60).
Não é demais enfatizar. O historiador alemão encontrou ordem e
estabilidade onde Fliche enxergou o desmoronamento quase completo das
instituições. Na perspectiva de Tellenbach, o Papado não teria sido forçado
por deploráveis circunstâncias a reagir contra algum suposto vacuum político,
que ameaçaria toda a sociedade e, com ela, a própria Igreja. Pelo contrário: a
Sé romana digladiou-se com uma robusta ideologia estatal propagada por um
poder centralizado e capaz de impor suas decisões por extensas paisagens. O
antagonismo entre eles ocorreu porque os reformadores romanos lançaram-
se à ação para fazer valer um princípio fundamental: quem ministrava os
sacramentos ocupava um elevado ofício, acima do qual não havia ninguém mais
além de Deus. Um sacerdote era superior a um monarca.
No entanto, doutrina alguma explicaria como a defesa desse princípio
saltou para a afirmação gregoriana de uma inédita supremacia temporal. As
ideias até então existentes não poderiam ter gerado a nova postura, pois “na
primeira metade do século XI, a Igreja ainda não desejava governar o mundo
[...]. Um pio sentimento de que os decretos de Deus eram inescrutáveis
41
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

conduziam os homens a aceitar o Estado e o governante como um dom da graça


ou da ira de Deus.” (TELLENBACH, 1959, p. 68). A natureza sacramental dos
imperadores e o controle senhorial sobre as igrejas tinham atravessado, quase
inquestionáveis, muitos séculos. Em Roma, os papas seguiam considerando sua
autoridade complementar àquela do monarca. Portanto, a perspectiva flichiana
deveria ser corrigida, pois o pensamento eclesiástico não teria causado a ruptura
gregoriana. Ele sequer a teria anunciado. Como, então, explicar aquela brusca
guinada da história?
Pela potência imprevisível e criadora do próprio curso dos eventos.
Nada havia sido premeditado. Os reformadores foram dragados por um
terremoto político e, para adaptar-se à nova realidade, multiplicaram as
atividades realizadas no interior da Igreja romana. Isso, por sua vez, empurrou-
os para reivindicações cada vez mais extremas. Em poucas décadas, uma espiral
de tensões provocou ações que “subitamente, infalivelmente e instintivamente
colocaram o toque final a mil anos de especulação sobre a natureza da hierarquia
cristã e levaram à conclusão de que a ordem existente na Igreja e na sociedade
deveria ser posta de lado como contrária à vontade de Deus”. A frase sacada
logo em seguida desfechava um golpe seco e irônico contra a trilogia de Fliche:
“muito mais que uma sabedoria terrena teria sido necessária para antever esta
revolução.” (TELLENBACH, 1959, p. 97).
Definida como a mobilização coletiva e duradoura pela restauração de
uma idade de ouro da fé cristã, a Reforma Gregoriana nunca teria existido. O
que ocorreu no século XI, diz Tellenbach, foi outra história. Em poucos anos,
os graves atritos acumulados com o poder imperial em função do controle das
investiduras eclesiásticas estouraram como uma luta política de magnitude
máxima. Protagonizado pelo imperador Henrique IV, esse confronto levou
o Papado a medir forças não apenas com um homem, mas sim com a ideia
de poder secular. Os êxitos duramente obtidos pelo Papado forjaram o novo
entendimento acerca da “correta ordem de mundo.” (TELLENBACH 1959, p.
126-161), cuja defesa e implantação eram, agora, condição de sobrevivência de
um poder pontifício contestador.
Para o autor, o nervo das mudanças na segunda metade do século
XI não era a Reforma moral, mas a derrubada do controle laico sobre ofícios e
patrimônios clericais. A fé reformadora existia e deviam-se a ela os principais
êxitos na organização e na consolidação das unidades diocesanas. Esse processo,
entretanto, não era novo. Sua história era longa e já transcorria muito antes do
surgimento dos gregorianos. Portanto, a reviravolta histórica protagonizada pelo
Papado deveria ter outra explicação. Sobre a qual Tellenbach não titubeou: a
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A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

ascensão da Sé romana após os anos 1050 era um fenômeno originariamente


político, que ganhava sentido por meio de uma linguagem religiosa.
Gregório VII teria sido movido por razões terrenas. Suplantava-se o
argumento flichiano da politização involuntária do pontífice e de seus aliados.
Entre os integrantes da Cúria, não havia qualquer antinomia entre os interesses
puramente religiosos e os da vida secular. Ao contrário. Reinava entre eles a
certeza de que o mundo era um campo de testes da religião: “não pode haver
dúvidas [de] que o poder político exercia atrações sobre uma natureza como a
de Gregório.” (TELLENBACH, 1959, p. 156).
As décadas passaram-se e o historiador alemão não recuou. Manteve
o cerco ao conceito de Reforma Gregoriana até o fim da vida, como registram
alguns capítulos de Die westliche Kirche vom 10. bis zum frühen 12. Jahrhundert,
publicado em 1988. A tradução para o inglês sob o selo da Universidade Cambridge
conferiu maior visibilidade à crítica, que seguia incisiva: “o que a reforma da
igreja no século XI realmente era é usualmente definido de modo tão inadequado
que só se pode descrevê-la como uma fórmula vazia.” (TELLENBACH, 1993,
p. 158). Faltavam à expressão referências concretas. Especialmente porque não
havia uma correspondência direta entre o vocabulário dos prelados medievais e
o dos historiadores. Neste sentido, “é significativo que o próprio Gregório VII só
usasse a palavra ‘reformare’ raramente e nunca a palavra ‘reformatio’: ‘reformare’
ocorre apenas quatro vezes em todas as 350 cartas preservadas em seu registro
e sempre em conexão com a reforma de igrejas individuais.” (TELLENBACH,
1993, p. 160).
O léxico indicava que os gregorianos não se distinguiram pelo ímpeto
reformador. Isso não significa desfigurar sua religiosidade. Sim, eles foram
reformadores. Mas aquela era uma característica comum aos círculos eclesiásticos
da época. Na realidade, a própria história do cristianismo podia ser descrita
como uma permanente sequência de recomeços religiosos. As preocupações
morais do clero papal do século XI eram mais uma entre inúmeras recorrências
de uma busca coletiva pela purificação ou redenção. A identificação com a
possibilidade do renascimento espiritual ainda na vida terrena fundamenta as
formas de conscientização no seio da religião cristã, especialmente entre seus
grupos dirigentes. Por essa razão, a ideia de Reforma atravessou os séculos. Era
possível traçar a genealogia de suas definições, pois desde os textos paulinos
ela assumia diferentes ênfases em ideias como perfectibilidade, ordem, pureza
ou liberdade. Antes de ser gregoriana, a Reforma era um fenômeno ancestral,
tradicionalmente cristão – enfatizou Tellenbach, seguindo de perto os argumentos
de outro autor alemão, Gerhart Ladner. Radicado em Los Angeles, Ladner fez a
excepcionalidade religiosa dos gregorianos murchar quando publicou The Idea
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

of Reform: its Impact on Christian Thought and Action in the Age of the Fathers,
em 1959.
Para legitimar seu inédito poder, os gregorianos foram levados a
tentar assumir o controle sobre a produção dessa consciência cristã. A ruptura
vivida por Gregório VII foi uma disputa pela memória social. Pressionados,
os reformadores romanos impuseram certa triagem ao registro do passado,
reinventando-o retrospectivamente. Suas narrativas sobre o curso de eventos que
os levaram àquela nova posição política manipularam a forma como o passado e
o presente eram lembrados. Era preciso separar sua trajetória em um “antes” que
exigisse suas drásticas ações e um “depois” que testemunhasse os benefícios de
tal iniciativa. Para isso, o passado assumiu uma reputação denegrida, rebaixado
como período de delitos e mazelas de toda sorte, uma época inadmissível para a
fé cristã. Os reformadores romanos converteram o tempo que os antecedeu em
um passado sombrio que justificava e enaltecia sua polêmica ascensão política.
Os gregorianos manipularam a maneira de lembrar aquilo que havia ocorrido.
Falar em Reforma Gregoriana significava, na imensa maioria dos
casos, reproduzir esse corte memorialista. Afinal, a expressão não nos fala de
“uma” reforma: ela destaca “a” Reforma por excelência. Assim, tal como muitos
medievais, somos convencidos de que o aparecimento de Gregório VII foi
um divisor de águas, um novo começo que alterou todo o estado vigente de
organização da Igreja cristã. Em suma, a perspectiva flichiana costuma fazer
os historiadores assumirem, de modo acrítico, o ponto de vista criado pelos
ocupantes da cúpula papal em fins do século XI para justificar suas atitudes
como o “novo começo” de tudo (HOWE, 2005, p. 21-35).
A explicação da dramática ascensão do Papado durante as décadas de
1050 e 1080 estava longe de ser esgotada. Havia muito a ser descoberto. Apesar
de toda tinta vertida em páginas e mais páginas de monografias e teses, os
historiadores ainda tateavam os diversos fatores da vida política daquele tempo
que se amalgamaram para formar o momento crítico em que governou Gregório
VII. Era preciso reabrir a história.

O outono de um conceito

Embora aquartelada nas historiografias francesa e ibérica, a Reforma
Gregoriana passou a ser alvo de intenso revisionismo. A perspectiva de Fliche
ganhava popularidade, alcançando um público cada vez maior de historiadores,
teólogos, filósofos, religiosos. O sucesso, entretanto, atraía olhares para o
conceito e, com eles, mais críticas. Reposicionado no cenário acadêmico, o
“momento gregoriano” despertou novos interesses, multiplicando as pesquisas
44
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

e as diferenças de abordagens. O que significa dizer: mais investigações, mais


divergências. A insatisfação cresceu entre os medievalistas. Em pouco tempo,
as lacunas atribuídas à Reforma formavam uma longa lista de promessas de
pesquisa. Numa tentativa de saná-las, Giovanni Battista Borino fundou os Studi
Gregoriani, em 1947.
O primeiro volume contou com a participação de Fliche, que tentou
inserir-se no espírito da obra, reduzindo a escala das observações em um curto
texto sobre a penitência de Canossa (FLICHE, 1947, p. 373-386). Porém, outro
aspecto salta aos olhos na estreia dos Studi: a preponderância de autores italianos
e alemães. O significado era claro: “a vida e o tempo de Gregório VII, apesar de
tudo o que foi escrito sobre eles, permanecem um campo no qual há um trabalho
muito necessário e laborioso a ser feito. O presente volume prova que eruditos
de grande competência estão engajados nesta tarefa.” (KNOWLES, 1950, p. 116).
O maciço predomínio de textos escritos nos idiomas dos principais críticos de
Fliche foi uma marca em todos os 14 volumes da série – o último lançado em
1991.
Os Studi reuniram um grande número de pesquisas em prol de uma
causa comum. Isto é, aprofundar a investigação sobre as realidades locais da
Reforma. Era preciso colocar à prova as teses construídas em obras de síntese.
Não se podia mais escapar à indagação: as experiências religiosas que os
pesquisadores encontravam na “alta política” dos papas e imperadores retratava
o que era vivido nas igrejas e comunidades de uma Europa altamente ruralizada?
A pergunta era crucial e desafiou o conhecimento histórico, submetendo-o a
uma prova de “tudo ou nada” ao pôr em xeque a realidade social das ações
reformadoras. Acaso estariam os historiadores debatendo um movimento que só
dizia respeito à alta cúpula das elites medievais? As normas declaradas em Roma
alcançavam o dia a dia das populações europeias? E, nesse percurso do “centro”
até o “interior”, não ocorriam variações? Nada era transformado, adaptado ou
perdido no caminho? Em síntese: a Reforma Gregoriana havia sido vivida pelas
pessoas comuns? (BORINO, 1947-1961). Questionamentos decisivos, para
os quais não havia respostas satisfatórias. Lacuna que o próprio Fliche havia
admitido quando redigiu Les études d’histoire ecclésiastique régionale: lacunes et
moyens d’y remédier” (1936, p. 169-178).
A obra coletiva surgiu para revelar a complexidade e a diversidade
das inserções locais dos movimentos reformadores. Sua principal ênfase
insistia no impacto dos poderes diocesanos sobre o ordenamento jurídico
proclamado por meio das coleções canônicas e dos grandes textos doutrinais
romanos. Estimulando a elaboração de recortes monográficos, priorizando a
documentação produzida em âmbito regional – como os cartulários –, a nova
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

série de publicações ofereceu substanciais contribuições para a compreensão dos


desafios implicados no estudo dos séculos XI e XII. Neste sentido, o aparecimento
dos Studi pode ser considerado uma refundação historiográfica. Sob uma
aparente fidelidade às abordagens tradicionais, eles marcavam o “abandono [...]
da valorização frequentemente excessiva da posição pessoal de Gregório VII no
movimento reformador.” (TOUBERT, 1986, p. 16).
Desde então, a sorte do conceito Reforma Gregoriana seria outra.
Sua credibilidade passou a ser seriamente ameaçada. Basta ouvir as posições
assumidas por dois leitores da série italiana. O primeiro é Raffaelo Morghen.
Iminente historiador italiano, professor na prestigiada Università della Sapienza
em Roma e presidente do Istituto Storico Italiano per il Medioevo, Morghen
minou um dos alicerces do conceito, o postulado de uma unidade de pensamento
sob o programa reformador romano:
O programa gregoriano não surge idealizado de uma única vez
nem formulado em um único momento como expressão teórica
de um plano de ação preconcebido, que os representantes mais
destacados do pensamento e da política da Igreja deveriam
realizar para a reforma do costume eclesiástico e afirmação da
independência do clero face ao poder laico. Ele foi, sobretudo,
o fruto de uma longa e complexa experiência de contrastes e
de tentativas fracassadas de acordo entre o Papado e o Império.
(MORGHEN, 1962, p. 125).

O segundo é Walter Ullmann. Figura emérita da historiografia sobre


o pensamento político medieval, esse professor de Cambridge seguia uma
premissa diferente da adotada nos Studi. A resposta, pensava Ullmann, não
estava em “olhar para baixo”. O âmbito local não detinha as chaves explicativas
da Era Gregoriana. A correção de rumos a ser imposta aos estudos históricos
implicava o contrário: “olhar ainda mais para cima”. Isto é, os historiadores
deveriam aventurar-se nas alturas da sofisticada racionalidade política que
movia os líderes da Igreja romana, homens excepcionalmente letrados.
Porém, se as concepções de investigação histórica divergiam, as críticas
realizadas pelo célebre autor de A History of Political Thought: the Middle Ages
convergiam para a mesma direção seguida pelo programa científico dirigido por
Borino: restaurar a amplitude dos domínios de ação vinculados ao poder papal.
Eis uma amostra da áspera avaliação de Ullmann (1955, p. 262):
A designação do Papado como um Papado Reformador de Leão
IX em diante expressa a visão falaciosa de que com a ascensão deste
papa a era da “Reforma” começou. Se, de fato, a “Reforma” era o
que distinguia o Papado Hildebrandino, pode-se ser perdoado
46
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

por perguntar por que este epitheton ornans não é concedido aos
imperadores imediatamente anteriores a este período. Este ponto
de vista, que vê o Papado como um mero “Papado Reformador”,
restringiria seus objetivos à remoção de certos males e abusos: o
Papado da segunda metade do século XI realmente não almejava
nada mais alto do que um fim estéril e negativo?

A Reforma Gregoriana chegou aos anos 1970 com a reputação de


modelo teórico arbitrário. Alguns anos antes, tinha sido publicado Immunità
Vescovili ed Ecclesiologia in Èta “Pregregoriana” e “Gregoriana”. O emprego
das aspas só realçava o quanto o autor, o professor italiano Ovidio Capitani,
considerava aquela separação pouco confiável. Vistos em conjunto, os sete artigos
que compunham a obra formavam uma demonstração cabal do simplismo por
trás da ideia de que a ascensão de Leão IX impusera uma clivagem radical aos
princípios reformadores. Quem o afirmava defendia uma leitura evolutiva da
história, cuja função era transmitir a impressão de que a ação reformadora
havia avançado para uma forma plena no pontificado leonino, o primeiro a
supostamente engajar-se na defesa de uma completa separação entre clérigos e
laicos (CAPITANI, 1966, p. 1-2).
Já era tempo – dizia Capitani, como se citasse os Studi Gregoriani – de
reconhecer a complexidade e a multiplicidade de todos os problemas colocados
pela transformação da sociedade ocidental entre os séculos X e XII. As novas
pesquisas deveriam “operar uma soldagem entre o testemunho teórico e o
‘programa’ gregoriano e a evolução da vasta e complicada fenomenologia da vida
econômica e social.” (CAPITANI, 1966, p. 9). Não era historicamente relevante
falar de um “programa reformador” sem devolvê-lo à pluralidade de relações
que tornara possível. A unidade gregoriana de pensamento, tão enfatizada
por Fliche, seria um obstáculo conceitual caso direcionasse a análise científica
para um suposto conjunto de princípios religiosos, fazendo os historiadores
pressuporem um firme consenso onde havia divergências marcantes e até
mesmo antagonismos irredutíveis. Na realidade, a nova orientação de pesquisa a
ser seguida ficava resumida na formulação radical feita por John Gilchrist (1970,
p. 1-10): “houve um movimento reformador gregoriano no século XI?”.9
O pontificado gregoriano precisava ser destronado nas interpretações
do passado. Pois a compreensão histórica era levada a supervalorizar as crenças
e ações de Hildebrando de Soana, fazendo dele o referencial de comparação
para todos os demais sujeitos sociais vinculados à Cúria romana. A noção de
Reforma Gregoriana havia sido edificada sobre uma clara premissa: Gregório

9 Ver ainda Capitani (1965, p. 454-481).


47
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

VII teria sido o reformador completo, e qualquer atuação pelas causas da Igreja
cristã entre 1050 e 1150 deveria ser medida e avaliada à luz do que ele havia feito
e pensado. Longe de ser mera semântica ou uma simples escolha de palavras, o
emprego do adjetivo “gregoriana” implicava juízos de valor e tornava a mente
dos historiadores receptiva a comparações anacrônicas. Isso acarretava sérias
consequências para a explicação histórica: a biografia papal predefinia as formas
de periodização, encorajava leituras teleológicas, quando não determinava a
ordem das causalidades.
Com a figura do papa removida do centro da história, as dimensões
da Reforma, até então ofuscadas pelo protagonismo de Gregório, revelaram seus
contornos. O esforço para “religar a história da instituição eclesial à história
geral das formas e estruturas de poder no interior da Cristandade dos séculos
XI e XII” (TOUBERT, 2002, p. 1434) rendia frutos. Ficava cada vez mais nítido
que a visada dos historiadores em relação aos movimentos de reforma concebia
as formas institucionalizadas de ação como os fatores historicamente centrais.
Entretanto, advertiu Giles Constable (1996, p. 86-87), seria mais próximo das
realidades da vida medieval pensar segundo um modelo diferente, que fosse
capaz de captar a vasta variedade de experiências religiosas e a legítima aceitação
social de uma diversidade de condutas e normas.
O Papado não foi um “foco” reformador, como algum ponto de
origem a partir do qual uma nova religiosidade era propagada para o restante
da cristandade. Aquilo que nos habituamos a nomear como “reforma” era um
descentrado processo histórico, coextensivo a todo o tecido social: “antes de existir
um centro, havia a reforma, embora local, popular, confusa, frequentemente
desorganizada e sujeita a uma variedade de usos por diferentes facções e grupos.”
(HOWE, 1997, p. 160).
Ambientados ao novo modo de pensar o passado, os historiadores
investiram contra outro símbolo da Reforma Gregoriana: o “partido reformador
romano”. Não era possível continuar admitindo sua existência como um grupo
político-religioso singular. Aquilo que era atribuído aos gregorianos como
marca distintiva de sua identidade institucional podia facilmente ser encontrado
noutros círculos eclesiásticos, inclusive entre os que se aliaram às campanhas
antigregorianas de Henrique IV. Se o combate à simonia definia a lealdade a
Gregório VII, como explicar que o arcebispo Gilberto de Ravena, intransigente
perante qualquer acusação de simonia, não tenha assumido a causa gregoriana?
Se a intransigência com o casamento eclesiástico era um dos aspectos que
mantinha unido o clero papal, por que os cardeais Hugo Cândido e Beno
desertaram da Cúria papal, já que partilhavam da mesma repulsa? Os grupos
formados ao redor de Gregório e Henrique não eram blocos separados por
48
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

atitudes religiosas diferentes. Tampouco havia homogeneidade no interior de


cada um deles. A Reforma estava presente nos dois lados (TELLENBACH, 1993,
p. 157-184).
Mas havia mais. Giovanni Miccoli, Constance Bouchard e John Howe
foram ainda mais longe e contestaram a rígida fronteira entre clérigos e laicos
demarcada pela Reforma Gregoriana. Seus estudos sobre o patronato religioso
praticado pela nobreza na Itália e na Borgonha contestaram a delimitação
da espiritualidade e da ação reformadoras como “matéria especificamente
eclesiástica”, cujos sujeitos históricos só seriam encontrados em meio aos
sacerdotes e aos monges. A imagem dos laicos como fator de resistência – quando
não de aversão – às reformas era insustentável. A imbricação social entre os altos
escalões laicos e eclesiásticos era evidente, e a condução dos assuntos religiosos
era decidida sob a égide de valores aristocráticos: “nos séculos XI e XII, os líderes
da igreja e os líderes da sociedade eram social e biologicamente os mesmos.
Bispos e abades eram quase invariavelmente os irmãos de duques e condes,
membros de famílias poderosas orgulhosas de suas heranças.” (BOUCHARD,
1987, p. 247).
As nobrezas eram vitais para o êxito de quaisquer iniciativas religiosas.
Portanto, a dicotomia eclesiásticos-que-reformam versus laicos-que-sofrem-a-
reforma carecia de respaldo documental. O poder e o patrimônio senhoriais
não eram razões de desordem e de anarquia, mas os fundamentos políticos e
materiais da efetivação das ações reformadoras. As reformas dependiam dos
laicos e de seu exercício do poder local. Frequentemente, eram eles que detinham
os recursos e a influência necessários para que as palavras proclamadas em um
concílio ou anunciadas em uma epístola papal se tornassem rotinas efetivamente
incorporadas ao cotidiano (MICCOLI, 1999, p. 47-73; HOWE, 1988, p. 317-
339). Em farta medida, a Igreja reformada era uma “igreja em poder dos laicos”.

A Reforma Gregoriana e um catolicismo autoritário

Após uma trajetória de intensas revisões, a Reforma Gregoriana


chegou ao século XXI alquebrada. Seu sucesso decorreu tanto de atributos
intelectuais quanto da razão política que lhe serviu de espírito: demonstrar que
as instituições católicas eram fundamentais para a preservação da ordem pública.
Era uma mensagem poderosa, especialmente durantes as primeiras décadas do
Novecentos.
Escrita ao longo de uma década, a obra máxima de Fliche surgiu em
uma atmosfera de falência da sociedade liberal. Os dois primeiros volumes
remontavam ao pós-guerra; o terceiro, à lenta recuperação após a bancarrota
49
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

financeira de 1929. A trilogia era o exercício de maturidade de um pensamento


formado sob o fim da Belle Époque. As certezas do declínio e da decadência
rondavam os historiadores europeus, que projetavam sobre o passado um olhar
perturbado por traumas coletivos. Arquiteto de nações antes de 1914, o Velho
Mundo testemunhava a ascensão de novas potências como os Estados Unidos
e o Japão, enquanto contabilizava milhares de mortos em meio ao carrossel
das medidas econômicas: os surtos inflacionários e os arrochos deflacionários
subiam e desciam sobre a vida coletiva.
Nesse contexto, Fliche agiu como grande parte da intelectualidade de
sua época: culpou o individualismo liberal pela “crise da civilização”. Nas páginas
escritas por ele, os indivíduos são fontes de instabilidade social. A livre realização
do interesse pessoal é uma força predatória, cujo potencial destrutivo aumenta
na mesma proporção que os indivíduos possuem recursos materiais e influência
política para perseguir seus interesses – como no caso dos nobres feudais. Da
legitimação plena dos anseios particulares só poderia advir uma concorrência
desordenada, cuja escalada desenfreada não cessaria a não ser por meio do
catastrófico triunfo da lei do mais forte. A anarquia feudal flichiana estampa a
reprovação do historiador em relação à imposição do indivíduo como instância
social irredutível.
Os Estados secularizados não eram capazes de conter a miséria humana
criada pelo individualismo. Ao contrário. Orientados para a soberania material,
os governos europeus arrastaram a sociedade para o desastre da guerra total. A
promessa de prosperidade plena inscrita na cartilha da laicização política não se
cumpriu, pois era próprio do espírito laico – atestava o catolicismo de Fliche –
desconhecer limites, desrespeitar toda fronteira social. A marcha daquele espírito
era visível durante o período 1870-1910. Primeiro, o foro eclesiástico foi abolido,
abrindo terreno jurídico para a emancipação civil de populações não católicas.
Em seguida, o matrimônio foi arrancado ao controle clerical e declarado matéria
de códigos civis. Em vários países, medidas como essas encorajaram o amplo
confisco do patrimônio eclesiástico, a supressão do ensino religioso e até mesmo
das faculdades de teologia.
Na Alemanha de Bismark, tribunais eram estabelecidos com poder
para encarcerar o episcopado. Na França, sob a bandeira da liberdade universal
de consciência, o regime republicano transferiu o controle sobre bens religiosos
para associações culturais presididas por leigos. Outrora considerado “o país
mais católico da cristandade”, Portugal instituiu o divórcio, aboliu o delito de
opinião em assuntos religiosos, restringiu procissões e o uso de vestes religiosas.
Conhecido como “mata-frades”, o novo ministro da justiça e dos cultos
era acusado de declarar que o catolicismo estaria extinto em duas gerações
50
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

(MARTINA, 1996, p. 49-112). Na Itália, os Estados Papais haviam desaparecido,


e o pontífice declarava um dever católico abster-se das eleições.
Para um católico como Fliche, a laicização desfigurou as identidades
sociais passo a passo, até não restar, entre os europeus, o reconhecimento de
limite algum. Ela os deixou cegos para qualquer limite social ou jurídico perante
o qual deveriam deter-se e recolher a vontade de decidir. O conceito Reforma
Gregoriana restituiu algo que era demolido desde meados do século XIX: a
separação sociológica entre clérigos e laicos.
A trilogia flichiana apelou à história para encontrar uma possibilidade
de salvação da ordem pública europeia. Para isso, projetou a história medieval
como um precedente da capacidade da Santa Sé de resgatar a sociedade da
anarquia e da desordem. Em outras palavras, a Idade Média foi transformada em
origem da tradição reformadora recentemente proclamada por Leão XIII (1810-
1903). Mas, como portadora de um modelo de sociedade, a Reforma Gregoriana
está fundamentada em premissas políticas autoritárias das décadas de 1920 e
1930. Ao menos três características conferem ao pensamento de Fliche esse tom
autoritário.
A primeira delas é o princípio tácito de que a ordem pública existe
somente por meio da administração estatal. Sem um aparato de governo, não
há espaços decisórios orientados para o bem comum e o equilíbrio entre os
interesses privados. Os movimentos anárquicos intrínsecos ao mundo da vida
só podem ser contidos e racionalizados pela ação formal de um aparato estatal
– eis um tipo de raciocínio autorizado pela trilogia flichiana. Contudo, não se
trata de qualquer governo: essa ação será mais eficaz e duradoura se decorrer de
um poder verdadeiramente moral, fundado por regras universais cuja verdade
está acima das contingências e das circunstâncias, ou seja, a Igreja católica. A
ordem pública flichiana não coincide com a sociedade, mas a toca em todas as
dimensões. Ela não é a coletividade, tampouco um espaço determinado em seu
interior. Tal ordem é um modo vigente de interação. Ela é um estágio de vigência
de princípios em máxima visibilidade social, no qual as competências individuais
estão normatizadas e os papéis sociais, regulamentados. Esse ordenamento, no
entanto, não é espontâneo.
Ele é alcançado mediante a imposição de códigos jurídicos sobre
as consciências. O Estado deve intervir no cotidiano e reformar os modos de
contato entre os indivíduos. Esse processo ordenador não é um movimento que
emerge da sociedade. Ele não nasce das interações comuns e vai expandindo-
se, crescendo gradativamente através de associações familiares, corporativas
ou mesmo classistas. Na escrita de Fliche, a racionalidade pública não é um
fenômeno social, mas institucional. O campo de seu aparecimento é determinado
51
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

por uma dicotomia. De um lado, a sociedade; do outro, o governo estatal. Não há


instâncias intermediárias. E o mais importante: tal separação é uma polarização
política. No que diz respeito à capacidade de racionalizar a vida comum, o
aparato governamental é o centro da ação, todo o restante é uma periferia onde
reinam as tendências para cometer toda sorte de abusos, usurpações e violações.
Ao defender a importância da Reforma Gregoriana, Fliche concebeu a sociedade
como uma massa a ser politizada e unificada; matéria a ser transformada pela
tomada do poder por parte de um partido dotado de ação programática – como
fez o “partido gregoriano” ao apoderar-se da Igreja romana.
A ideia formada a respeito do direito pode ser considerada outro
aspecto autoritário da trilogia de Fliche. Sua leitura ensina que a lei não é um
acordo entre vontades, mas uma racionalidade universal e ideal a ser realizada.
E mais: em La Réforme Grégorienne, a lei aparece como a principal sentinela da
paz entre os homens, como o meio de dissolução da dominação social. Assim
como o foi para Carl Schmitt, na tese Der Wert des Staates und die Bedeutung
des Einzelnen (1914), para Fliche somente uma instância era capaz de traduzir o
direito em realidade, o Estado. O mundo jurídico dos reformadores gregorianos
teria sido inteiramente político. Por trás de toda norma, cânone ou carta redigida,
havia uma decisão soberana, tomada por um grupo que se tornara o detentor do
poder. Por isso, a trajetória dos gregorianos lembra a de um “partido” moderno
em sua escalada ao poder. Na perspectiva flichiana, a ascensão dos reformadores
romanos é contada assim.
Nascidos num mundo fragmentado pelo feudalismo, eclesiásticos
muito diferentes puseram-se em marcha para Roma. Eles tinham algo em
comum. Seus espíritos haviam sido tocados pela mesma vontade de poder. Em
seu íntimo, aqueles homens devotados às causas da fé cristã estavam unidos por
um desejo de assumir o poder da Cúria papal, onde estavam os principais postos
de tomada de decisão sobre a vida cristã. Uma vez controlada aquela instância
decisória, eles seriam capazes de definir e impor sobre toda a cristandade novas
regras e leis que a regenerassem. Em Roma, essa “vontade de poder” traduziu-se
em uma unidade ideológica. Surgia o suposto “projeto reformador”. O programa
reformador romano nasceu, sob esse ponto de vista, como uma sincronia dos
princípios ideológicos comuns fincados por aquela “vontade de poder”.
Além disso, seu nascimento tinha um dirigente máximo, Hildebrando
de Soana: muito antes de tornar-se Gregório VII, ainda nas décadas de 1050
e 1060, Hildebrando foi o grande articulador daquele “programa” e o homem
responsável por sua unidade de ação. Guiados por essa liderança, os cléricos
apoderaram-se da Cúria, derrubaram a hegemonia política existente (o governo
da aristocracia romana). Após eliminar a “oposição interna”, os reformadores
52
A história como reforma: Augustin Fliche e a salvação da ordem pública

lançaram-se à implantação em larga escala de seu suposto programa de ação.


Visto assim, pela ótica da Reforma Gregoriana, o triunfo dos reformadores
desenha, em plena Idade Média, uma trajetória característica de um partido
político das décadas de 1920 e 1930.
Segundo Fliche, os gregorianos tomaram o poder movidos por uma
vontade política espontânea, genuína, orgânica, diante de suas esperanças
e angústias religiosas. Como desfecho desse processo, a doutrina jurídica
implantada pelo partido – novo caso, “os reformadores” – é intrinsecamente
legítima. Afinal, ela resumiria o interesse geral por ser o único meio capaz
de refundar os equilíbrios sociais ao educar as consciências nas virtudes da
autoridade e da religião: a hierarquia, a obediência, a disciplina, a moralidade. As
leis gregorianas eram as únicas que verdadeiramente perduravam. Comparadas
a elas, todas as demais iniciativas jurídicas eram precárias, efêmeras. Mesmo o
imperador, figura dotada da maior autoridade e dos melhores meios materiais,
era incapaz de superar “a carência da reforma cluniacense e as decepções da
reforma episcopal”; pois, bastava a simples “mudança de soberano [...] para
realçar a vaidade e a inutilidade da obra alcançada por príncipes animados por
excelentes intenções” (FLICHE, 1924, p. 92, 100).
A doutrina legal gregoriana teria sido incomum. O solo que a gerava
não era a terra ácida do convívio ordinário, mas a personalidade no titular do
poder. A lei reformadora era um ser moral, pois carregava o caráter de seus
idealizadores. As coleções canônicas criadas para levar adiante a transformação
da realidade resultavam da razão excepcional de alguns homens, sobretudo
Gregório VII: “o programa de vida cristã que Gregório VII traça [...] é expressão
de sua própria piedade.” (FLICHE, 1926, p. 93). Em vários momentos, a escrita
flichiana lembra o culto autoritário da liderança que se espalhou pela Europa
nas décadas de 1920 e 1930 (ARENDT, 2009, p. 133-137). Não importava o que
fizesse, o Gregório vislumbrado pelo medievalista francês o faria de dentro das
relações de poder, nunca de cima, sequer de fora: “sua prodigiosa personalidade
[...] domina toda a história religiosa e política do fim do século XI.” (FLICHE,
1926, p. 90).
Por fim, a terceira característica autoritária: em Fliche, a dinâmica da
política radica na oposição amigos versus inimigos. É uma hostilidade inter-
humana que influencia as escolhas, a opção por um partido, o engajamento no
conflito. Se os agentes da Reforma moviam-se na paisagem histórica, intervindo
em situações concretas, formando alianças, implicando a si mesmos em
disputas locais, era, segundo o olhar flichiano, porque sentiam a necessidade de
contrapor-se a seus inimigos, isto é, pessoas, ações ou ideias que ameaçavam a
integridade da ordem pública implantada pelo Estado recém-conquistado em
53
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Roma. A Reforma Gregoriana teria sido a couraça de legalidade assumida pela


“monarquia papal” para defender-se de seus adversários.
A compreensão de Fliche está estruturada com base nessa dualidade.
Não é casual que os livros de sua trilogia carreguem nos títulos as palavras
“gregoriano” e “antigregoriano”. Por isso, a Reforma só encontra seu auge e sua
verdadeira natureza histórica com Gregório VII: pois teria sido esse o papa
responsável por desmascarar e expor publicamente o inimigo da ordem estatal
romana, o poder imperial. Afinal, foi Gregório – e mais ninguém – que chegou
ao ato extremo de excomungar e depor o imperador Henrique IV por intervir
sobre a Igreja cristã. Se Fliche tomou o nome desse pontífice para batizar o
fenômeno histórico que estudava, não foi, simplesmente, porque sofria de uma
idolatria biográfica incurável ou porque cultuava o papa medieval como um
católico excepcional. A resposta para a escolha de nomear a Reforma do século
XI como “gregoriana” não é tão simplória. Um sentido político orientava o olhar
do medievalista. Fliche pensou a história segundo a exigência teórica de uma
compreensão autoritária das relações de poder.
Gregório VII era o soberano, o líder máximo das ações reformadoras.
Não somente em razão de sua fé ou de seu caráter. Mas, sobretudo, porque foi
ele quem definiu com clareza o “inimigo dos reformadores”, aquele contra quem
se devia exercer o poder. Como dissemos acima, Fliche reverenciava a liderança
política do papa, cujo caráter extraordinário e cuja superioridade resultavam
dessa qualidade de soberano (SCHMITT, 2007, p. 62). Essa ação soberana é o
fator que consolida e arremata o “projeto reformador”. Afinal, ao reconhecer
seu máximo inimigo comum, os homens da Cúria teriam adiquirido plena
consciência dos valores partilhados e, então, colocados em risco. O medo da
perda e da derrota agigantou-se com Gregório VII. Esses sentimentos aguçaram
a percepção dos reformadores a respeito dos ideais a serem defendidos coletiva
e publicamente.
Há uma teoria política abrigada no interior do conceito de Reforma
Gregoriana. Nas tramas explicativas formuladas com base nele, as instituições
geralmente têm preeminência sobre a sociedade. O Papado não possui nada
em comum com qualquer círculo laico a sua volta, ou mesmo com a maioria
do clero – corrompido pelos vícios feudais. A ascensão do governo sacerdotal
frequentemente aparece como o cumprimento de um projeto legislador racional
e total. A história, por meio do estudo da Idade Média, proporciona um
precedente da salvação autoritária da ordem pública.

54
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

Parte II
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

A história como revolução: a Idade Média e a


essência da Modernidade
O conceito Revolução Papal ganhou forma como o século XX,
tragicamente. Ele surgiu em 1931, modelado pela experiência de um veterano
alemão da batalha de Verdun, sob os ecos da Grande Depressão. Eugen
Rosenstock-Huessy formulou-o enquanto tentava desvendar o real caráter
do nacionalismo. Os terríveis embates provocados nos espíritos europeus por
aquele sentimento, cuja ânsia mal ordenada por liberdade e soberania havia
devorado milhares de vidas, teriam aparecido pela primeira vez no século XI
com Gregório VII, o “papa revolução” (Papstrevolution).
Teria sido o pontífice o responsável por instaurar a tensão entre o
espiritual e o temporal, convocando as populações cristãs a resistir ao imperador
e a sua autoridade supostamente universal. Com os olhos fixados na eternidade,
o papa tornou-se um agitador. Fez estremecer os padrões da cultura existente ao
pregar o desejo por um novo período de vida na terra. Suas decisões cravaram nas
mentes de seus contemporâneos o anúncio de uma nova era, de um novo tempo,
que faria justiça ao passado e resgataria o futuro. A interminável saga política
para renovar a vida na terra teve início na Idade Média, como uma luta religiosa
declarada pelo papa. No século XI, os italianos foram os primeiros mobilizados
para reorientar a vida comum e o futuro a ela reservado; os russos, os últimos em
1917. A sina revolucionária da sociedade ocidental tinha berço medieval, como
concluiu Die Europäischen Revolutionen (Rosenstock-Huessy, 1931).10
Leitura arrebatadora, a obra escrita por Eugen Rosenstock-Huessy
assemelha-se a uma filosofia da história. Como uma síntese hegeliana do espírito
revolucionário ao longo dos séculos, sua narrativa grandiosa afastou-a dos
domínios da pesquisa histórica sobre a Idade Média. Não faltou, inclusive, quem
definisse sua abordagem historiográfica como messiânica (CRISTAUDO, 2012).
Mas seu pioneirismo não seria apagado. Afinal, Die Europäischen Revolutionen
introduziu no vocabulário dos historiadores uma noção destinada a ser uma
grande fortuna intelectual ao longo do século XX: a ideia da Revolução Papal.

10 O autor, por sinal, possuía uma clara definição para o termo revolução: “Uma revolução,
portanto, é o mais importante fato para a compreensão, porque ela retira nossas mentes dos
trilhos. Por definição, uma revolução munda o processo mental do homem.” (Rosenstock-
Huessy, 2001, p. 17).
57
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Desterrados do tempo

Quase 30 anos depois, em 1958, as páginas iniciais de Church, Kingship


and Lay Investiture in England (1089-1135) fizeram de Norman Cantor o
primeiro medievalista a assumir o desafio de atribuir um caráter de verdadeira
“revolução mundial” ao conflito entre Gregório VII e o imperador Henrique IV.
Há tempos, o papa era lembrado com a reputação de revolucionário.
Não apenas por Rosenstock-Huessy. Em 1890, por exemplo, Odon Delarc
iniciou sua famosa trilogia sobre “São Gregório VII” comparando-o a
Napoleão I: “homem do Midi, Bonaparte chega então ao poder, ele identifica
com sua causa os princípios da revolução francesa, ele os endossou como
Hildebrando endossou aquelas da reforma de Cluny”. Ambos morreram
exilados, rogando ao futuro para que lhes fizesse justiça. Porém, apesar de seus
destinos, o “novo mundo que eles haviam preparado se tornou uma poderosa
realidade” (DELARC, 1890, p. xii). Como Delarc, muitos já haviam admitido o
temperamento revolucionário do pontífice medieval (VOIGT, 1815; BROOKE,
1939; DAWSON, 1948; TELLENBACH, 1959). Mas foi Cantor quem tentou
desvendar os desdobramentos da revolução por trás do badalado protagonista.
Segundo ele, Gregório teria sido o principal promotor de uma nova
ideologia, o semeador de um vasto sistema de explicação do mundo que se
alastrou feito erva daninha: invadindo velozmente o terreno de princípios
cultivados por séculos como verdades vitais. Aquilo que os historiadores
conheciam como “Controvérsia das Investiduras” – o conflito entre o papa e
o imperador pelo poder de regular o ingresso nas funções episcopais – havia
sido algo maior, um movimento de crítica total da sociedade existente. Gregório
VII deveria ser considerado o líder de uma ampla mobilização, instaurada para
recriar o modo de viver, o mentor da primeira grande revolução da história
ocidental.
Instigado pela leitura de Gerd Tellenbach, Cantor desafiava o estrondoso
sucesso alcançado pela noção de Reforma Gregoriana modelada havia pouco
mais de 30 anos por Augustin Fliche. Tarefa árdua. Pois a interpretação formulada
por aquele autor francês ao longo de três densos volumes havia conquistado
um grande público ao situar a “Controvérsia” em uma perspectiva de passado
inovadora. Historiador experiente, Fliche tinha jogado com o tempo. Ele
recombinou a duração da vida dos medievais com uma tese instigante: Gregório
e seus partidários viveram no século XI, mas o sentido histórico de suas ações
existia desde muito antes. Tendo assumido o papel de reformadores da sociedade
cristã, aqueles prelados viviam como se respirassem ares antigos, sentindo
a presença viva de tradições religiosas que muitos de seus contemporâneos
58
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

haviam sepultado. Os gregorianos partilhavam a moral inicial de Cluny, eram


os principais herdeiros de um ascetismo ancestral, fundado sobre os escombros
da Era Carolíngia. Mas a alma de suas ações era uma aspiração política ainda
mais remota, quase imemorial: separar o regnum e o sacerdotium, conforme
ensinamentos que empoeirados manuscritos lotaríngios atribuíam ao papa
africano Gelásio I (410?-496).
Escrevendo na época em que as ciências sociais convenciam os
historiadores a soltar “o fio cronológico puro e simples” de suas narrativas para
“buscar os agrupamentos explicativos e dotados de coerência” (SIMIAND, 2003,
p. 113), Fliche fez da explicação da Reforma Gregoriana um desafio de longa
duração.11 Contudo, seu maior mérito historiográfico foi seu pior equívoco
histórico. Ao menos era isso o que pensava Norman Cantor. Para ele, Fliche
insistia na continuidade, quando deveria ter reconhecido a extraordinária
ruptura que a documentação cintilava perante seus olhos. Os reformadores que
lideraram o Papado entre 1050 e 1080 não foram os guardiões de velhos modelos
comportamentais. Eles não agiam como perpetuadores de um pensamento
político de séculos atrás ou como a ponta de lança de projetos morais enraizados
no monasticismo da Alta Idade Média. O medievalista canadense não teve dúvida:
os gregorianos teriam trazido o radicalmente novo para a história. As crônicas
e epístolas da época os retratavam como “revolucionários que conscientemente
se puseram a destruir o antigo sistema medieval de relações igreja-estado e a
estabelecer uma nova ‘correta ordem no mundo’.” (CANTOR, 1958, p. 5).
Os historiadores não deviam deixar-se impressionar pelas crenças
daqueles homens, sempre devotados à época dos “Santos Padres da Igreja”. Não
nos enganemos: os aliados de Gregório VII não eram movidos por compromissos
com a tradição. Ao contrário, eles inauguraram uma nova fase na trajetória da
Igreja. Suas vidas cravaram uma cisão entre passado e presente, desde então
irreconciliáveis. Subitamente, seus atos converteram todas as facetas da vida
recebida dos antepassados em uma “velha ordem”. Na contramão das certezas
de Fliche, Norman Cantor não concebia os reformadores como restauradores
do passado. Ele os encarava como homens da transformação, os desafiantes
do mundo, um tipo incomum de clérigos que viveram a tradição como fardo
histórico.

11 Como vimos no capítulo anterior, embora La Réforme Grégorienne tenha sido um ponto de
culminância de perspectivas oitocentistas, resumindo um legado historiográfico deixado pelo
século XIX, sua abordagem caracterizava-se por características cada vez mais valorizadas
na primeira metade do século  XX como traços distintivos de uma “Nova História”: a longa
duração processual e a síntese histórica. A nosso ver, a proeminência de tais características
permitiu a incorporação do conceito a concepções de história que proclamavam a ruptura com
a historiografia do Oitocentos, caso dos Annales.
59
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

As discordâncias, porém, não pararam por aí. A ideia da Revolução


Papal propunha não apenas outra temporalidade para o século XI – contrapondo
a ruptura à continuidade –, mas também uma racionalidade diferente para os
sujeitos históricos. Vejamos.
Sob a perspectiva da Reforma Gregoriana, os homens que assumiram
a direção dos assuntos papais a partir dos anos 1050 trouxeram para Roma
uma mentalidade exigente. Suas ações devem ser vistas como tentativas de
transformar em hábito e rotina concepções já acabadas sobre a ordem clerical
e os poderes laicos. O envolvimento dos reformadores em litígios seculares não
deve ser considerado imprevisto ou acidental: eram testes que eles assumiam
conscientemente – quando não provocavam deliberadamente.12 As intervenções
gregorianas teriam sido conduzidas por uma espiritualidade resoluta, austera e
engajada. Quando aqueles prelados posicionavam-se perante uma questão ou
um impasse, fosse ele clerical ou laico, mantinham firme obediência a princípios
morais fixados de antemão, ditados por um arrojado programa reformador das
condutas coletivas (FLICHE, 1926, p. 103). Fundadores de uma “Igreja Militante”
(Ecclesia Militans), os gregorianos raramente eram surpreendidos pelo sinuoso
curso dos acontecimentos, pois traziam em suas mentes a medida certa para
enquadrar o convívio humano. Cada tratado, cânone ou bula redigida era uma
tentativa de domar a realidade pela força do pensamento que partilhavam como
fé. A conclusão impõe-se: a religião reforma o fluxo da vida, pois a racionalidade
antecede a prática. A história é a busca pela ordem.
Ao passo que, sob o ponto de vista de Cantor, a relação inverte-se.
As ideias revolucionárias do papa Gregório não possuíam precedentes, elas
simplesmente inexistiram até que um curso implacável de eventos as teria
chamado à vida. Seu ingresso na Cúria romana, como auxiliar de Leão IX
(1002-1054), coincidiu com uma dramática convergência de transformações da
realidade peninsular. Sua vida como parte do séquito papal faria parte de uma
virada, pois o Papado, bruscamente arrancado à secular hegemonia religiosa das
famílias romanas, teria sido arrastado por uma impiedosa torrente de conflitos

12 O processo de amadurecimento do “programa reformador” e de sua formulação engajada e


pragmática teria alcançado seu termo apenas com Gregório VII: “Sem dúvida, outros haviam
traçado o projeto: antes dele, Pedro Damião tentou a reforma moral de um clero corrupto e de
um episcopado devorado pela cupidez; antes dele, Wazo de Liège, seguindo a doutrina do ‘De
Ordinando Pontifice’, ousou proclamar perante Henrique III que o soberano pontífice só pode
ser julgado por Deus e que os imperadores estão submetidos aos bispos, mas todas estas ideias
esparsas e por vezes mal definidas, Gregório VII, com sua surpreendente facilidade de adaptação
e pôr em ação, reuniu em uma vigorosa síntese e as marcou com o selo da unidade romana, ao
mesmo tempo, com uma coragem que jamais negou, ensaiou sua realização prática.” (FLICHE,
1926, p. 421).
60
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

locais em direção a uma crise inimaginável com o imperador. No bojo dessa


imprevisível escalada de antagonismos, a visão gregoriana acerca da “correta
ordem do mundo” emergiu. Se ela já habitava o espírito do futuro papa, certamente
estava oculta de sua consciência. Seu temperamento extremista e inflexível não
decorria de espiritualidades do claustro ou de projetos reformadores: eram as
marcas de nascimento carregadas por ideias paridas em um ambiente instável
e violento.
O maior símbolo dessa ruptura era, segundo Cantor, o próprio Dictatus
Papae, documento com o qual Gregório, em algum momento entre os anos 1074
e 1075, sumariou os princípios definidores da autoridade e das prerrogativas
papais. Embora remetesse o texto a uma matriz teológica agostiniana, Cantor
não economizou palavras para destacar sua dimensão única e revolucionária:
“O Dictatus Papae foi um documento extraordinário e extremamente radical, e
é inconcebível pensar que Hildebrando fosse tão ingênuo para não perceber que
ele causaria grande sensação.” O medievalista não parou aí. Ao longo dos anos, o
pontificado gregoriano assumiu um temperamento político ainda mais arrojado
que as simples formulações daquele documento: “os eclesiásticos e os reis da
Europa ocidental aprenderiam que a ideologia papal era, acima de tudo, mais
radical.” (CANTOR, 1993, p. 258-259).
Forjadas de chofre, recriadas no calor dos eventos, as queixas
gregorianas contra o domínio dos laicos sobre as igrejas cresceram de maneira
impremeditada até se tornarem um ultimato à ordem estabelecida. Pressionado
pela violenta oposição das aristocracias, o clero papal se viu forçado a elevar o
tom da proclamação da liberdade eclesiástica perante qualquer poder laico. Isso
fez a ideia inflar, saltando para a inesperada negação do caráter sacramental dos
reis – colocados pelos reformadores no mesmo nível dos interventores laicos.
As realezas protestaram, esbravejaram contra o rebaixamento de seus coroados,
pois o rei, ungido do Senhor, não poderia ser chamado de laico. Imediatamente
atingida, a corte imperial acusou o papa de injúria e heresia. Encurralado,
Gregório revidou, radicalizando: converteu a causa da liberdade clerical na
subordinação de todos os governantes seculares à voz apostólica. O desfecho,
aqui, é outro: perpassada por episódios imprevisíveis, a força bruta das relações
de poder teria operado uma revolução na compreensão do real. A história é
efeito da tragédia, como concordaria o italiano Glauco Maria Cantarella (2005).
Impelida pelo duro confronto com o real a tomar a compreensão do mundo pela
raiz, a ação gregoriana teria seguido o padrão das demais “revoluções mundiais”.
A comparação é arriscada, mas Cantor (2002) não hesitou em levá-la adiante.
Tal como nas revoluções liberais do século XVIII ou na revolução
comunista de 1917, os reformadores romanos estariam unidos apenas por
61
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

metas imediatas e limitadas. À medida que a revolução prosseguiu, eles teriam


se separado em dois grupos políticos, um moderado, outro radical. Assim
como no mundo moderno, os radicais teriam estado à frente do movimento
por um período curto, mas cuja duração teria sido suficiente para estremecer
a “velha ordem”. Os moderados, por sua vez, teriam tentado freá-los, alertados
pelo catastrófico desprezo daqueles extremistas a respeito das consequências de
colocar o poder a serviço de ideais utópicos. Mas, concluiu Cantor (1958, p. 8-9):
“como nas modernas revoluções mundiais, os radicais perderam sua liderança
não para os moderados de seu próprio grupo, mas antes para os políticos, os
estadistas práticos (‘practical statesmen’), que proclamaram a suspensão da
revolução.” Este teria sido o papel de Urbano II (1042-1099), cujo governo teria
reunido os cacos do velho sistema e os sucessos da revolução em um novo pacto
pela estabilidade do exercício do poder eclesiástico.
Eclipsadas pelas obras de Walter Ullmann (1949; 1955; 1961; 2003a)
– em muitos aspectos, mais inclinadas a ver a história como uma “batalha do
intelecto” –, as ideias de Cantor chegaram à beira do esquecimento. Sua obra
continuou a ser estudada, evidentemente. Não como uma alternativa para
compreender a Reforma Gregoriana, mas limitada à condição de contribuição
à história da Inglaterra na passagem entre os séculos XI e XII. Seu lugar na
genealogia historiográfica da Revolução Papal por pouco não foi perdido. Se
Cantor destacava-se no apanhado de modelos explicativos da época gregoriana
realizado por Schaffer Williams (1964), 34 anos depois, Kathleen Cushing
(1998), aparentemente, não se lembrava dele.
Mesmo quando pensavam a seu modo, arriscando-se à comparação
entre Gregório VII e Lênin, os historiadores sequer o mencionavam (MORRIS,
2001, p. 81). Talvez não se tratasse de omissão ou negligência. A visão de Cantor
alcançou um público fabuloso; especialmente, quando foi reeditada no best-
seller The Civilization of the Middle Ages, de 1963. A razão que fez o interesse
por sua obra desfalecer parece repousar em outro lugar. Ela provavelmente está
em seu próprio texto, repleto de aspectos controversos, incômodos. Sobretudo
a premissa fundamental que o sustenta: a imagem dos gregorianos unidos pela
negação do mundo feudal.
Os reformadores eram filhos de tempos senhoriais. Ainda jovens,
foram acolhidos em escolas urbanas ou mosteiros como dádivas vivas oferecidas
por famílias de destaque local. O sangue da linhagem e a posição eclesiástica
combinavam-se, tornando suas vidas elos privilegiados na dominação das
populações rurais. Eles viveram como sacerdotes ou monges em lugares onde
a fé era nutrida por remessas periódicas de dons aristocráticos, fossem eles a
proteção armada, a garantia da imunidade fiscal ou as doações patrimoniais
62
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

realizadas para aplacar o ardor da devoção ou o temor da morte (HOWE, 1988;


1997).
Oriundos de diferentes paisagens, os reformadores cresceram
aprendendo que os senhores de armas e terras eram essenciais para o bom
estado das coisas santas. Essa lição prática era confirmada pelos manuscritos
com letras rituais. Das histórias moralizantes de Gregório I (540-604) às cartas
dos contemporâneos, o pastor ideal era apresentado como homem de virtudes
espirituais tanto quanto aristocráticas: católico na fé, casto, paciente, obediente,
temperante, letrado e humilde; porém, igualmente hospitaleiro, protetor de seu
patrimônio, provedor de seu séquito, afeito ao manejo da espada (OTT; JONES,
2007, p. 2; REUTER, 1992; SMITH, 2011). A voz verdadeiramente apostólica
ecoava da garganta daquele que zelava pela salvação das almas sem descuidar
da proteção dos homens que lhe juravam fidelidade. A proeminência moral era
inseparável do ordenamento das relações familiares. O cuidado religioso era, em
si, uma administração doméstica (SESSA, 2012; DEMACOPULOS, 2013).
Não aos olhos de Cantor. Cada página de Church, Kingship and
Lay Investiture in England apoia-se na imagem dos gregorianos como sujeitos
históricos opostos à sociedade feudal. O pertencimento cultural daqueles
homens a sua própria época teria sido desfeito por uma nova identidade, que
teria provocado um revés em sua condição senhorial e os colocado à margem da
compreensão aristocrática de mundo, cujos interesses eles passariam a enxergar
“de fora”. Pairando sobre os grupos sociais, os reformadores surgem na escrita
da história alheios aos valores que governavam o dia a dia medieval. Com a
mente repleta de ideias inovadoras, eles teriam protagonizado uma espécie de
emigração cultural, renunciando às raízes nobiliárquicas para começar uma
nova vida, que os teria feito sentir a lógica da dominação tradicional como fonte
de vícios, transgressões e mazelas. Enquanto seus contemporâneos almejavam
recrutar santuários e lugares santos para seus patrimônios, conforme o exemplo
dos antepassados, os reformadores trovejavam, condenando aquela mesma
prática como corrupção da integridade material das igrejas. Os vínculos de
vassalagem entre clérigos e laicos, respeitados como legítimos e invioláveis,
tornavam-se, na retina reformadora, laços espúrios, cuja existência contaminava
a hierarquia eclesiástica.
Os gregorianos teriam vivido seu próprio tempo a contrapelo. Nessa
perspectiva, suas práticas sociais pouco tiveram de medieval. Eles teriam sido
expatriados de uma era que estava por vir, na qual a Igreja e a sociedade não
seriam regidas pela inconstância de códigos orais, das relações interpessoais,
dos mandos patrimonialistas. Desterrados de um futuro idealizado, eles teriam
vivido para instaurar o predomínio das normas escritas, da distinção formal entre
63
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

pessoas e funções, da impessoalidade de bens, direitos e cobranças. Desapegados


do mundo em que cresceram, os reformadores romanos teriam se aproximado
por reconhecerem uns nos outros um agudo inconformismo perante as práticas
sociais mais caracteristicamente senhoriais. Estavam, assim, unidos pela certeza
de que o modo de vida encimado pelas elites era a principal fonte de desordens
e arbitrariedades de sua época.
Caracterizados por Cantor, os reformadores assumem uma força
histórica antiaristocrática, antifeudal. Gregório VII teria sido o líder maior de
uma comunidade política inteiramente moderna, que teria se lançado a uma
tomada revolucionária do poder para erradicar por completo o arcaísmo da
nobreza feudal. Porém, é preciso ser direto quanto à amplitude dessa crítica. Não
se trata de reclamar, com o dedo em riste, contra a Revolução Papal porque ela
projeta um pensamento político oitocentista nas mentes e ações dos integrantes
de uma corte medieval – afinal, nenhum historiador pode escapar à sina de
presentificar o passado. O aspecto a ser destacado é outro, de fato, grave para a
compreensão histórica: o conceito implica uma negação sociológica, pois induz à
certeza de que uma sociedade dominada por elites senhoriais é incapaz de mover
positivamente os equilíbrios internos de uma época. A ação revolucionária brota
de um estado de crise; surge para resgatar a vida comum do desgoverno que se
dissemina quando as relações sociais são reduzidas à clivagem entre guerreiros
e camponeses. O conceito, portanto, nega a possibilidade histórica de atribuir
às elites senhoriais o papel de protagonistas na estruturação da ordem social
reformada, pois as define, de antemão, como grupos retrógados, opostos ao
dinamismo histórico. Não há outra versão a ser contada: a nobreza teria sido
o arqui-inimigo das mudanças desejadas por Gregório tanto quanto daquelas
idealizadas por Robespierre ou Lênin. O século XII teria anunciado combates
que se repetiriam sem trégua até o Novecentos.
A ascensão da Sé romana no século XI não foi um fenômeno feudal,
mas resultou de aspectos que, pouco a pouco, suplantaram as lógicas políticas
medievais. Ressaltado por Cantor no fim da década de 1950, esse princípio é
a razão de ser do conceito Revolução Papal. Sua aplicação carrega, até hoje, o
sentido seminal de destacar o Papado como poder de vanguarda na superação
dos limites da sociedade senhorial. E se Church, Kingship and Lay Investiture
in England não caiu em desuso, esquecida nas prateleiras da velha história, é
porque a obra ganhou importância quando vista em retrospectiva, como estudo
que o posterior sucesso da Revolução tornou possível reivindicar e valorizar
como precedente fundador.

64
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

A sina da crise

Nas décadas seguintes, o conceito tomou fôlego, reanimado,


principalmente, por Karl Leyser. Em 1994, a publicação de Communications and
Power in Medieval Europe – coleção lançada em duas partes, The Carolingian
and Ottonian centuries e The Gregorian revolution and beyond – conferiu maior
visibilidade à maneira como os historiadores da Germânia medieval dilatavam
o cenário das transformações revolucionárias identificadas por Norman Cantor.
A crise que capturou o Papado teria sido muito maior. Sua magnitude, conforme
eles asseguraram, ultrapassou o raio de alcance das instabilidades italianas.
As igrejas peninsulares – entre elas a de Roma – integravam um
colossal “sistema imperial de igrejas” (Reichkirchensystem), cuja diversidade
regional era capitaneada pela figura imperial (TELLENBACH, 1993; REUTER,
1982; ALTHOFF, 2003; WOLFRAM, 2006). As tensões e os desafios vividos
na Santa Sé eram sintomas de impasses muito mais abrangentes. Estendendo-
se das franjas do Mar do Norte às costas do Mediterrâneo, tal “sistema” foi
profundamente abalado, na segunda metade do século XI, por uma onda de
mudanças que culminou na revolta da nobreza saxônica entre 1073 e 1088.
Prolongadas por quase duas décadas, as virulentas guerras saxônicas
marcaram o colapso da ordem aristocrática coroada pela renovatio imperii de
Oto III (980-1002). Reverenciado quando se trata de tentar compreender essa
época (HAVERKAMP; VOLLRATH, 1996), Karl Leyser avaliou-a deste modo:
os conflitos expunham mudanças profundas da dinâmica social, escrevendo
com sangue a transição de toda a Germânia para um novo tempo. Cada vez mais
acirradas, as rivalidades no interior da nobreza imperial provocaram a formação
de redes clientelares de uma extensão incomum, que ultrapassou a fronteira
dos pactos familiares habituais para recrutar apoio em setores sociais até então
excluídos dos conselhos de guerra.
As alianças enfraqueceram tradições, espalhando com grande rapidez
novas formas de associação entre as elites eclesiástica e laica. Sob o tormento
dos campos assolados em batalha, as comunidades rurais teriam sido forçadas
a romper a passividade e o isolamento. Ao passo que os grupos urbanos,
impulsionados para o primeiro plano do suporte econômico das incursões,
figurariam como as artérias do êxito militar (LEYSER, 1994, p. 23-24). As
consequências foram duradouras. Ancorado em uma sociedade transformada,
um novo regime emergiu para a história. Sua principal manifestação política,
segundo Thomas N. Bisson (2009, p. 227), havia sido a emergência de lideranças
provinciais inéditas, encarnadas em príncipes-senhores que reivindicavam
uma autoridade para atuar em nome dos assuntos do reino com poderes régios
65
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

separados do próprio monarca. “A revolta saxônica marca um grande ponto de


virada”, resumiu Timothy Reuter (2006, p. 383).
Os estudos sobre a Germânia medieval retocavam o conceito da
Revolução Papal, que ganhou cores ainda mais vivas como parte de um ambiente
revolucionário maior. Para demonstrá-lo, basta seguir Leyser em um raciocínio
que lembra muito o clássico Origins of Modern Germany, publicado por
Geoffrey Barraclough pela primeira vez em 1946: se os reformadores romanos
cruzaram as fronteiras da ordem política encimada pela autoridade imperial, foi
porque as encontraram minadas por outra força revolucionária, as aristocracias
provinciais germânicas, singularmente zelosas de suas liberdades. O feudalismo
não havia penetrado na Germânia. Lá, a vassalagem era a marca da servidão, não
o símbolo da honra dos livres. Enquanto na Gália o poder público esfacelava-
se em minúsculas castelanias, do outro lado do Reno a posição dos nobres era
ampliada e fortalecida, aguçando a certeza de que corria pelas veias dos bem-
nascidos o dever de resistir ao mau rei para salvaguardar a unidade do reino:
“Os efeitos totais dessas mudanças na constituição da igreja germânica não se
tornaram evidentes até 1075” (BARRACLOUGH, 1963, p. 90), quando jorraram
sobre a política papal.
Como herdeiros de uma cultura política oitocentista, tendemos a
superestimar o protagonismo histórico do Papado. Alimentamos a aptidão para
encaixotar toda a política do século XI sob o signo do conflito entre o regnum e o
sacerdotium, supostamente deflagrado pela personalidade vulcânica de Gregório
VII e por sua convicção acerca da supremacia do pontífice sobre os reis. Mas é
preciso ver sua tempestuosa relação com Henrique IV como um dos muitos elos
de um vasto processo de transformação das aristocracias germânicas e, com elas,
dos próprios círculos episcopais e monásticos imperiais, nichos da elaboração de
concepções sobre os espaços públicos e a autoridade régia (LEYSER, 1994, p. 24).
Trata-se do próprio ambiente intelectual onde a lógica das ações pontifícias foi
gerada. Afinal, quando declarou a excomunhão do monarca, Gregório “reviveu
velhas animosidades e reabriu antigas feridas” (BARRACLOUGH, 1963, p. 97).
As longas lutas travadas no interior da Germânia afetaram a mobilidade
social. Abriram caminho para grupos subalternos, que avançaram até funções
militares específicas, de status elevado, em tudo decisivas para a expansão dos
senhorios territoriais. Aos olhos das linhagens tradicionais, uma antiga regra do
mundo foi quebrada quando os postos mais honrosos deixaram de ser apanágio
dos homens de alto nascimento, dos únicos que podiam ostentar longas linhas
de ilustres ancestrais. O significado social da nobreza foi ampliado e transferido
para um grupo numeroso e heterogêneo, o dos ministeriales (LEYSER, 1982,
p. 161-190). Eles lutavam na cavalaria, moravam entre os muros de fortalezas,
66
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

encarregavam-se de jurisdições senhoriais, ofereciam seu patronato às igrejas.


Mas não eram livres – não como os nobres. Não detinham fortunas fundiárias;
nos banquetes, não se sentavam à mesa principal; as causas pelas quais
sangravam raramente eram próprias. Sua ascensão envolveu as elites imperiais
em “uma das mais significantes trocas culturais dos séculos XI e XII” (ARNOLD,
1981, p. 13-14).13 Significante e traumática. Pois, enfrentando o risco de ser
sobrepujada por figuras que até então desprezava como servis, a alta nobreza
reagiu drasticamente: declarou uma encarniçada oposição à Coroa, acusando o
rei de ser o maior favorecido por aquelas mudanças.
A guerra mergulhou toda a Germânia em uma realidade desafiadora.
A frequência e a intensidade das campanhas seguiam o ritmo da transformação
da sociedade. Mais brutais, as batalhas provocavam igualmente um duelo de
valores e princípios. Buscando na escrita um sentido para os tormentos das
guerras, cronistas como Bruno de Magdeburg (?-1084?) e Bernoldo de Constance
(1054-1100)14 criaram uma memória das desavenças e dos ódios que saturaram
as relações entre o rei e as nobrezas. Se preferirmos os termos hegelianos de Karl
Leyser, isso significa dizer que a produção literária estimulada pelo clamor da
guerra operou “um alargamento da consciência e das faculdades de percepção
entre o estrato até então silencioso da massa de ‘laboratores’, sem privilégios,
integrou os desenvolvimentos revolucionários despertados pela profundidade e
amplitude do grande conflito no Reich” (LEYSER, 1994, p. 15).
A nova consciência nobiliárquica repercutiu na busca pela reforma da
Igreja, já que, cada vez mais, os prelados imperiais agiam como se sua liderança
espiritual não pudesse erguer-se acima das redes familiares que os prendiam.
Engrandecer suas igrejas era, sobretudo agora, uma forma de honrar as próprias
linhagens. Firmadas no quadro da nobreza ampliada, as relações de parentesco
renovaram os sentidos do celibato. A neutralidade sexual do clero tornava-se

13 Conf. ainda os estudos de Arnold (1991, p. 67-72), Freedman (1999, p. 178-180) e Reuter (1979,
p. 295-305).

14 Mediada pelo peso das ações militares, a relação entre a ascensão de grupos “não livres” e
a produção da literatura polemista ocorre de forma direta no pensamento de Karl Leyser:
“A sociedade mudou ao se tornar maior e mais diversificada. O ‘laboratores’, as fileiras mais
baixas da sociedade rural, foram classificados de maneira complexa. Livres e não-livres se
fundiram ou, ao menos, eram muitas vezes difíceis de distinguir. Os dependentes agrários
ingressaram nos horizontes do pensamento de seus senhores como nunca antes. [...] Mesmo
os ‘milites’ deviam frequentemente ser recrutados desta reserva de potencial humano. Em
uma emergência, príncipes e nobres não podiam se permitir ser muito exigentes sobre as
origens sociais de seus guerreiros. [...] De mãos dadas com as operações militares, durante os
anos 1080, ocorria um grande diálogo de escritos em potencial; igualmente revolucionário
em sua densidade.” (LEYSER, 1994, p. 13-14).
67
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

um ponto fixo no movente cenário dos laços familiares. Petrificado em uma


identidade constante, o clérigo era mais facilmente reconhecido como voz
de orientação nas interdições matrimoniais e sucessões dinásticas (LEYSER;
SMITTH, 2011, p. 24). Vejamos outro exemplo. A condenação da simonia
ajustava-se aos interesses da honra doméstica, pois era o correlato da aversão ao
perjúrio, crime maior de um vassalo. O simoníaco, que trapaceara para ingressar
na Igreja, desonrava a aliança estabelecida entre Deus e os homens, modelo
supremo para todas as alianças, incluindo o juramento feudal. Virtude terrena
e espiritual, a lealdade tinha muitas máscaras e todas deviam ser preservadas
(AGAMBEN, 1991; RAMSEYER, 2006).
Dos campos de cadáveres à retórica das crônicas, a guerra alterou
definitivamente as percepções da legitimidade. A conclusão foi retomada por
Ian Stuart Robinson (2003, p. 104), na biografia Henry IV of Germany: “foi na
Saxônia oriental, portanto, que o rei encontrou seus inimigos mais implacáveis.
Não menos importante, foi aí que ele primeiro adquiriu a reputação de tirania
da qual nunca mais poderia se livrar”. Logo, se houve uma teocracia papal no
século XI, sua existência não decorreu de doutrinas triunfais da soberania
clerical – como haviam pensado Henri-Xavier Arquillière e Marcel Pacaut, em
L’augustinisme politique (1934) e La théocratie (1957), respectivamente. Mas,
sim, da chance real de um inédito arbítrio romano sobre assuntos germânicos.
A revolta saxônica abriu enormes fendas na sacralidade imperial e, através delas,
a condenação pública do rei como tirano escoou para todos os lados. Debilitada
simbolicamente, desgastada a ponto de não ser restabelecida nem mesmo pelas
vitórias militares, a Coroa não inibiu o apelo das elites a outras autoridades –
como a romana (ROBINSON, 1978a). O Papado não cooptou os revoltosos como
instrumentos da causa reformadora. Foram os nobres insurgentes que, em sua
resistência e verve, pressionaram o pontífice para pesar a mão em excomunhões
contra o herdeiro imperial.
Ao contrário do que postulava La Réforme Grégorienne de Augustin
Fliche, o poder dos papas não era o centro aparentemente natural de ordenamento
da política imperial. Os rumos da própria Igreja romana faziam parte de um
cenário ainda maior. Os sucessores de São Pedro não foram personagens
elevados acima das cabeças dos contemporâneos, mas vozes misturadas ao
alvoroço dos inúmeros “desenvolvimentos dramáticos que levariam às Guerras
Saxônicas” (WEINFURTER, 1999, p. 138). A conclusão de Karl Leyser (1994,
p. 19) é sucinta e emblemática: “sem este amontoado de homens e mulheres no
qual todas as ordens sociais atuaram em conjunto, a luta contra a simonia, o
casamento clerical e, ao fim, pelo próprio poder, teria sido inconcebível”.
68
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

Além de reposicionar o Papado na história, evidenciando sua situação


secundária no curso de certos acontecimentos, a publicação de Communications
and Power in Medieval Europe trouxe outra contribuição memorável: conferiu
à Revolução Papal um conteúdo propriamente senhorial. Na perspectiva de
Leyser, a ascensão da ação reformadora só pode ser explicada se restituída às
alianças e redes clientelares nobiliárquicas que ligavam Roma ao outro lado
dos Alpes, verdadeiro epicentro de toda a política imperial. Ainda assim, a
Revolução permanecia caracterizada como um fenômeno avesso ao mundo
medieval. Afinal, resultava de uma crise sistêmica, prolongada pelos empenhos
da alta nobreza para evitar o desaparecimento do mundo conhecido por ela.
Finalmente, era possível redescobrir a política papal. Os historiadores
tinham agora meios para perscrutar seus limites, suas fragilidades, seus
retrocessos e, sobretudo, sua dependência de outras forças sociais. Mas a
imagem dos gregorianos movendo-se pelas brechas abertas por um estado de
crise das nobrezas germânicas lembrava a fórmula criadora das ideias de Cantor.
Era impossível escapar à certeza de que havia uma incompatibilidade política
entre o Papado e as elites feudais, pois o enfraquecimento destas últimas teria
sido a condição da ascensão do bispado romano. Enquanto as terras imperiais
– incluindo a Península Itálica – estiveram cobertas por uma densa hegemonia
nobiliárquica legitimada pelo rei, a liderança pontifícia permaneceu modesta,
embaralhada entre os diversos movimentos reformadores que eclodiam da
Gália à Saxônia. Por essa razão, é praticamente impossível rastrear o curso das
inflamadas ideias gregorianas até antes de 1050: sua perspectiva e sua orientação
perdiam-se na densa paisagem de uma dominação cultural ancestral.
O fermento revolucionário das ações gregorianas residia em convicções
de um tipo não aristocrático. As instabilidades imperiais colocaram novos
agentes de poder em cena. O monopólio político das nobrezas ruiu. As grandes
mobilizações não eram mais efeitos de uma verticalidade social vertiginosa, pela
qual as mudanças eclodiam sempre no topo da sociedade, entre as elites, para,
em seguida, reverberar embaixo, nas massas rurais de sua base. A crise imperial
marcou uma era de transição para uma nova sociedade, na qual o Papado teria
despontado como vetor de superação. Tal como na escrita de Norman Cantor,
a Revolução Papal marca um salto sociologicamente qualitativo, demarcando
o surgimento histórico de uma sociedade mais dinâmica porque menos
aristocrática. A civilização de um novo tempo, menos arcaica e estratificada, foi
identificada pelo medievalista alemão como a “Europa Latina” (LEYSER, 1986).
Talvez esse tom sociológico emprestado por Leyser à análise da
Revolução Papal expressasse outra vinculação historiográfica: a essa altura de
69
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

sua trajetória intelectual, o conceito havia sido incorporado em outra paisagem


histórica, ainda mais extensa que o conjunto dos territórios imperiais. Uma
influente literatura recrutou-o como etapa de um processo de mudança global
do Ocidente: a Revolução Feudal.

A multidão entra em cena

Convencidos por Georges Duby (1953; 1977; 1980) de que os eventos


ocorridos por volta do ano mil eram irrupções repentinas provocadas pelo
deslocamento tectônico das estruturas da vida cotidiana, muitos medievalistas
iniciaram uma busca pela profundidade social da Reforma. A premissa de
escavar as camadas documentais e encontrar os vestígios do substrato coletivo,
anônimo e de longa duração das ações religiosas romanas impôs-se como
máxima metodológica.
O expoente desse ambicioso mapeamento sociológico das batalhas
gregorianas pela liberdade da Igreja (libertas ecclesiae) foi o britânico Robert Ian
Moore. Esboçada em Family, Community and Cult on the Eve of the Gregorian
Reform, artigo de 1979, e por fim concluída em The First European Revolution,
livro publicado em 2000, a hipótese de Moore amadureceu pela aproximação
intelectual com o medievalismo francês.15 Cada vez mais familiarizado com o
dever de considerar as estruturas, os conjuntos e os movimentos involuntários
que unem imaginários e práticas coletivas, o britânico chegou à fórmula que
definiu a Reforma do século XI como movimento de normatização e proteção
da vida comunitária feudal. Toda a sociedade pulsava através da espiritualidade
reformadora, não apenas as elites eclesiásticas.
Pensemos nos termos de Moore. Algumas décadas após o ano mil, a
Igreja romana foi forçada a tomar parte nas mobilizações coletivas que tentavam
responder à anarquia e à confusão que a crise do regime político carolíngio fazia
grassar por toda a Europa Central e Mediterrânica. As elites eclesiásticas eram
pressionadas para adequar a religião cristã às características da nova civilização
que raiava entre as décadas de 970 e 1050. A paisagem ocidental era agora povoada
por novas formas de habitação, criadas por uma demografia de encelulamentos e
encastelamentos (MOORE, 2000, p. 30-64). Constantemente em fuga, gerações
de camponeses afluíram para locais como castelos, igrejas, mosteiros, santuários

15 Tendo em vista o vocabulário incorporado por Moore na confecção do próprio texto, bem
como as citações e referências recorrentes, destacamos – além da importância seminal de
Georges Duby – os seguintes autores como influência do medievalismo francês sobre sua obra:
Fossier (1982), Bonnassie (1975), Toubert (1973), Poly e Bournazel (1980).
70
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

em busca da proteção oferecida pela sombra intimidadora das muralhas ou pelo


temor reverencial que toma conta de quem pisa em solo sagrado. São muitas as
razões que as faziam debandar. Fala-se em necessidade alimentar, em assaltos
de povos invasores, na dominação predatória dos senhores, mas igualmente em
uma sobrevivência itinerante, na multiplicação de terras livres, na busca ativa
pela conquista de espaços (MOORE, 2000, p. 30-64).
Seja como for, a massa de homens e mulheres encontrou abrigo na
solidariedade propiciada por agrupamentos aldeões numerosos e compactos.
Ali, naquelas células sociais das quais nasceriam as paróquias, encontraram
a segurança material que os antigos bem-nascidos não mais podiam prover.
Pois os condes e os duques mostravam-se incapazes de conter seus castelões.
Até então submissos, os pequenos senhores de castelo impuseram-se por
toda parte, cobrindo o Ocidente como um enxame de exploradores brutais,
impiedosos. Sua ascensão instaurou uma nova forma de poder senhorial, que
aumentou a exploração de pequenas zonas territoriais (seigneurie foncière) com
o exercício de prerrogativas judiciais usurpadas da Coroa e seus antigos agentes
públicos (seigneurie banale) (MOORE, 2000, p. 45-51). Em busca de proteção,
as populações camponesas formaram densos agrupamentos, frequentemente
chamados de “aldeias”.
A nova densidade demográfica acarretou consequências duradouras,
historicamente determinantes. Sustentou um novo sistema de produção
agrícola, alavancando o intenso progresso material que permitiria o triunfo
global europeu por mares e oceanos dos séculos afora – tese recentemente
retomada por Jérôme Baschet em A civilização feudal: do ano mil à colonização
da América (2006). No curto prazo, no entanto, ela provocou impactos certeiros
sobre as relações de poder. A nucleação demográfica redimensionou as formas
de sociabilidade e conscientização das populações rurais. A silenciosa massa
de laboratores ganhou voz e ação. Vivendo em agrupamentos empenhados por
uma salvação comum, a população rural converteu-se em um sujeito social
imprevisto e, amiúde, incontrolável. Nas palavras de Moore (1979, p. 49), “uma
das mais óbvias novidades do século XI é o aparecimento da multidão no palco
dos eventos públicos”. É impossível – segundo o autor – contemplar os eventos
do século XI sem admitir o medo gerado pela convulsão social e a realidade das
forças de indignação popular.
Reagindo à fúria da exploração feudal, as populações campesinas
reorganizaram-se. A terra passou a ser a primeira razão para discussões em
assembleias aldeãs permanentes. As estruturas familiares mudaram, pois o
parentesco – consanguíneo e espiritual – teria se consolidado como a principal
estratégia de controle da circulação de bens e de sua integridade patrimonial
71
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

por parte dos grupos rurais. A distinção de papéis entre os exploradores fez-se
urgente para as comunidades agrárias: separar os senhores de castelos em clérigos
e laicos, marcá-los em funções diferenciadas, era crucial para clarear a ordem da
vida, normalizá-la impondo limites aos apetites de exploração – especialmente
daqueles que deveriam viver para os bens espirituais, desapegados das riquezas
deste mundo. Com isso, as multidões da economia rural passaram a reconhecer
direitos de posse, propriedade e cobrança quando exercidos mediante a adesão a
certos códigos de conduta e de moral sexual (MOORE, 1998, p. 179-208; 1992,
p. 308-326).
Embora lideradas por uma instituição, como o Papado, as reformas
religiosas eram linguagens da veloz ascensão social do populus fidelis. Afinal,
“nada mais expressa claramente o caráter revolucionário do pontificado de
Gregório VII que sua disposição para invocar a opinião e a pressão populares
contra a hierarquia sobre a qual ele mesmo presidia” (MOORE, 2000, p. 14).16
Sitiadas pelo clamor que ecoava em campo aberto, as instituições clericais –
entre as quais estava a Sé romana – passaram a renegociar as formas de viver o
sagrado. A Revolução Feudal produziu um Papado revolucionário.
Pelos olhos de Moore, as reformas do século XI não apenas deixavam
de eclodir de pontos específicos – para se tornarem um espectro de fenômenos
sociais –, como não mais poderiam caber na moldura de “assuntos clericais”. Cada
ação gregoriana era movida por forças subterrâneas e coletivas. A condenação
do casamento clerical por Nicolau II (1010-1061) encontrava eco na expectativa
socialmente difusa de que o celibato fosse uma referência particularmente
eficaz para clarear e fortalecer os laços de parentesco nas comunidades cristãs
(MOORE, 2000, p. 15, 88).
Quando cruzou montanhas para dedicar igrejas aos santos por meio
de liturgias espetaculares, Leão IX fez mais do que consagrar o patrimônio
eclesiástico e declará-lo inviolável como se o vestisse com couraças celestiais. Suas
viagens atraíam uma crescente expectativa social em relação ao sagrado, tentando
saciá-la em fontes específicas: os ritos, os altares e as relíquias autorizados pelo
clero (MOORE, 1997; 2000, p. 14, 124). Ao pregar a primeira cruzada no vale

16 O esclarecimento da frase por Moore (2000, p. 14-15) é crucial e não deve ser deixado de
lado: “Estas frases não implicam, em si mesmas, que Gregório VII chamou as massas à revolta.
Quando se dirigia ‘ao povo’ de uma diocese ele tinha em mente a aristocracia local, e ‘fideles’ no
contexto destas cartas é geralmente tomado em um sentido secular para significar detentores
de terras, que representavam a sociedade respeitável mais do que a população como um todo.
Todavia, é suficientemente claro que tais apelos possam ter levado a isso, e que os Patarinos
também se denominassem ‘fideles’ implica ao menos um grau de descuido por parte de Gregório
[...]”
72
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

do Loire, o papa Urbano II alistou para a guerra santa um “entusiasmo popular”


há muito tempo inflamado na Gália pelos concílios da “Paz de Deus”. Dirigido
aos senhores de armadura, o clamor foi ouvido por comunidades rurais, que
se puseram em marcha para Jerusalém como espíritos vingadores, pilhando e
devastando, isto é, descarregando pelo caminho “as aflições e os ressentimentos
causados pelas maciças transformações na distribuição do poder e da riqueza”
(MOORE, 1992, p. 322).17
Os gregorianos aspiravam ao impossível. Miravam ser reconhecidos
por multidões como os portadores da autêntica autoridade da unidade cristã,
ainda que suas visões de fé e suas posições de poder fossem “irreconciliáveis
com os interesses materiais e a crescente consciência política da pequena
comunidade” (MOORE, 2000, p. 101). Suas definições da “vida verdadeiramente
apostólica” discordavam daquelas reclamadas pelos movimentos populares. E
não seria necessário muito tempo para que as divergências aflorassem como
contradições agudas, incontornáveis. Assumindo o campo oposto de ação,
os reformadores redescobriram o ímpeto evangélico de seus rebanhos como
um desafio a suas prerrogativas pastorais e a seus privilégios hierárquicos. A
“traição do povo” foi declarada apostasia. Antes encorajada, a busca popular
por uma sociedade purificada passou a ser suspeita de heresia. Anunciada em
sermões, apregoada em púlpitos, mercados e estradas, a esperança milenarista
pelo amanhecer de uma era de liberdade e justiça resultaria em uma sociedade
ainda mais hierárquica, mantida por alianças mais íntimas entre a Igreja e os
poderosos locais (MOORE, 2000, p. 102-111; 2011, p. 125-134).
Com os escritos do medievalista britânico, os gregorianos tornaram-
se parte de uma ruptura histórica máxima e impetuosa. Limitada ao punhado
de décadas que abraçaram o ano mil, a cronologia poderia insinuar-se modesta.
Mas a ambição explicativa contida em seu interior é imensa: demarcar o período
da definitiva superação dos quadros sociais do mundo antigo e do nascimento
da Modernidade e seu agente político capital, a multidão (WEST, 2013, p. 2). Em
Moore, o conceito de Revolução Papal tem nova magnitude. Escritas com uma
notável desenvoltura, suas páginas deixam uma lição cabal: se os historiadores
da Germânia medieval tinham desvendado a crise revolucionária que havia
radicalizado as ações gregorianas, os estudiosos da virada feudal haviam
decifrado um enigma ainda maior, o processo social revolucionário que teria
gerado a surpreendente lógica reformadora professada pelo clero papal.
Na superfície das linhas, Robert Moore (1984b, p. 36-49) confessava a
influência do medievalismo francês. Mas, nas entrelinhas, ocultava um propósito

17 Ver ainda Moore (1984a, p. 47-68; 1997, p. 16-25, p. 19, 23, 64).
73
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

que dominou a historiografia britânica de sua época. Dominou-a e consagrou-a a


partir da década de 1960. Difícil lê-lo e não associar sua insistência na multidão/
revolução à “história vista de baixo” pelo marxismo inglês. Não é descabido
afirmar que sua perspectiva esteve empenhada em reservar para a Idade Média
um lugar de destaque na lista de conflagrações populares que autores como
Edward Thompson (1998; 2001, p. 185-203) e Eric Hobsbawm (1997; 1998, p.
216-231) asseguravam formar o coração da história.18 Na realidade, The First
European Revolution remete, especificamente, a outro pioneiro dessa renovada
história social: George Rudé.
Bastam retoques mínimos, pinceladas conceituais quase soltas,
e a sociedade feudal de Robert Ian Moore pode figurar como a gênese dos
movimentos populares “Igreja e Rei” descritos por Rudé. Só é preciso olhar
em retrospectiva a partir do ponto de observação do autor de The Crowd in
History. Segundo ele, nos países europeus em que a “classe média era mais
fraca e a influência da igreja católica era forte, houve comunidades urbanas e
camponesas que demonstraram notável resistência” (RUDÉ, 1991, p. 48) aos
princípios republicanos e liberais disseminados por volta de 1800. Nutridas de
conservadorismo, essas comunidades opuseram às campanhas revolucionárias
uma “positiva hostilidade”, regrada por um firme senso de legalismo cristão
sempre pronto para amotinar-se. E não somente contra os inimigos declarados.
Os movimentos desse tipo eram arriscados, imprevisíveis como “uma arma de
dois gumes, cuja tendência social popular poderia levar a situações curiosas e
ambivalentes” (RUDÉ, 1991, p. 150-151) quando terminavam por pressionar –
ou até mesmo hostilizar – os interesses daqueles que defendiam abertamente,
sobretudo o clero.
Aí está a característica essencial das multidões que ampararam a
Revolução Papal: uma ambivalente defesa da normatização das comunidades
rurais sob a unidade das elites cristãs. Moore complementava a abordagem
de Rudé, como se apresentasse o princípio da trajetória histórica dos grupos
descritos pelo marxista britânico. O medievalista parece religar o passado
medieval e o moderno, até então separados pelas jurisdições profissionais da
historiografia inglesa. A Idade Média de sua obra desempenha com coerência o
papel de “prólogo” dos movimentos populares estudados por Rudé ou mesmo
por E. Thompson. O “povo cristão” descrito por Moore encaixa-se facilmente
na posição de origem da multidão conservadora descrita pelos marxistas,
como se seu estudo esclarecesse que as turbas e os motins religiosos dos séculos
XVIII e XIX haviam nascido de um passado revolucionário. Ocorreu – assim

18 Conf. também Kaye (1984; 2000).


74
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

nos permite pensar o medievalista – que os séculos passaram, e outras forças


sociais mais dinâmicas surgiram, ultrapassando a multidão na vanguarda social
da cristandade. As comunidades que pegavam em armas “pela igreja e pelo rei”
no alvorecer da Era Industrial tentavam impedir o desabamento da ordem social
duramente fundada por seus longínquos ancestrais medievais na “Primeira
Revolução Europeia”.
Sejamos claros. Moore simplesmente não menciona Rudé em parte
alguma de The First European Revolution. Sequer o relaciona nas referências
bibliográficas arroladas ao final. Mas a complementariedade de suas ideias e de
seus pressupostos é tão consistente, tão contundente que nos parece plausível
sugerir que o medievalista leu a sociedade feudal pelas lentes da história social de
Rudé. Sem dúvida, a afirmação merece aprofundamento e exige demonstrações
sistemáticas e detalhadas. Contudo, por hora, o argumento pode ser assim
fundamentado: a “multidão medieval” de Moore e os “motins ‘Igreja e Rei’”
de Rudé alinham-se em uma coerente explicação sobre a dinâmica histórica
da classe revolucionária. Elas se encaixam como partes de uma sequência
explicativa que Marx e Engels (1997) tornaram célebre. Isto é, de que a classe
revolucionária, depois de romper com a sociedade antiga, ergue uma nova
ordem social, cuja preservação cobra um preço: a transição ideológica da ação
revolucionária para a política conservadora, isto é, contrarrevolucionária (Ver:
MARX & ENGELS, 1997). Tal seria o caso. Antes revolucionária, a “multidão
feudal” de Moore transformou-se, séculos depois, nos reacionários “montins
Igreja e Rei” apontados por Rudé.
Antepassado de movimentos populares da Modernidade europeia,
a multidão feudal desloca para um segundo plano histórico as relações
internobiliárquicas de poder, efetivo sustentáculo da política papal dos séculos
XI e XII.19 O modo como ela é apresentada leva os historiadores a imaginarem
as comunidades medievais como defensoras de uma agenda reformadora,
espontaneamente direcionada para a busca de garantias institucionais. Lógica
que parece adequada para os séculos XVII e XVIII, mas não para antes disso.
Afinal, ela implicaria, entre outras coisas, uma integração comunicacional e
ideológica semelhante àquela da cultura literária do Antigo Regime, quando
a imprensa catapultou a circulação de panfletos, livretos e opúsculos (GRAFF,
1981; CHARTIER, 2004).
Moore (1975, 1977, 1987) sabia disso. Ou, ao menos, parece ter sentido
as exigências históricas aí embutidas, já que recorreu ao tema que o projetou, as

19 Como acreditamos ter demonstrado em estudo anterior (RUST, 2011a).


75
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

“heresias populares”, para sustentar a imagem de uma Europa medieval formada


por comunidades textuais. Vejamos sua argumentação:

[...] no século IX, o ensino era firmemente controlado por bispos,


mas eles, a princípio, não lhe restringiam o acesso. No século
XI, as asserções cada vez mais estridentes da presença da heresia
entre a população eram seguidas, desde o início, pelo pressuposto
de [...] tentativas não autorizadas para adquirir e transmitir o
letramento. (MOORE, 2000, p. 15, 19).

O autor tinha toda a razão. Sacado do latim clerical, o nome “heresia”


recaía sobre grupos que demonstravam uma nova vivência cotidiana da cultura
escrita (BILLER; HUDSON, 1994; KARAN-NUNN, 2003; FRASSETTO, 2006;
FEROS RUYS, 2008). Entretanto, uma dúvida inquietante persiste: os grupos
marcados na história com a reputação de heréticos são indicadores adequados
de uma difusão “popular” do letramento? Podemos considerar sua “associação
mediada pelo conhecimento textual” (MOORE, 1996, p. 37) como amostra de
uma realidade cultural mais abrangente, referente ao espectro continental de
comunidades rurais medievais?
Não, em nossa opinião. Na época de Gregório VII, o próprio Papado
estava imerso em regimes de oralidade.20 Mas não é essa constatação – a de
que a voz prevalecia sobre a letra até mesmo em uma corte de homens letrados
como o clero papal – que nos faz olhar o pensamento de Moore com ressalvas.
A razão maior para tanta cautela é a consequência que o autor britânico extrai
dessa argumentação. Seu raciocínio surpreende. A ideia de uma disseminação
da cultura textual entre os rustici desdobra-se na imagem do populus fidelis
organizado e inflamado, cujos novos meios de mobilização teriam convertido
a defesa dos princípios reformadores em um processo de enfraquecimento do
poder nobiliárquico. Não é demais insistir: os “movimentos populares” teriam
forçado o recuo da dominação social da nobreza em pleno apogeu da época
feudal. Antes que chegasse o vazio da página final, The First European Revolution
encorajou os historiadores a falarem, sem rodeios, de uma “marginalização da
aristocracia guerreira”, embora como “um processo mais sutil e menos completo
do que a dos pobres” (MOORE, 2000, p. 15, 177).
O estudo da Revolução Feudal embalou ganhos historiográficos
(BISSON, 1994; BARTHÉLEMY; WHITE, 1996; REUTER, WICKHAM;
BISSON, 1997). O alargamento da perspectiva histórica, a descoberta da
dinâmica social por trás da linguagem das reformas religiosas, a capacidade

20 Ver capítulo 4.
76
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

de revelar imbricação onde antes via-se a dicotomia entre clérigos e laicos são
algumas das contribuições de autores como Moore. Mas, no que diz respeito à
Revolução Papal, a força interna do conceito persistia a mesma, magnetizando
nossa compreensão com a certeza da incompatibilidade sociológica entre o
predomínio aristocrático e o dinamismo político ocidental. A multidão entrou
em cena para atuar como a protagonista que as elites feudais, a priori, eram
incapazes de ser.

A Idade Média, apesar de medieval

Foi nos domínios dos estudos jurídicos que o conceito de Revolução


Papal alcançou sua versão historiográfica mais ousada. Os créditos, nesse caso,
devem ser oferecidos ao norte-americano Harold J. Berman. Formado no bojo
da história constitucional inglesa, Berman conferiu maior consistência histórica
a uma tese de F. W. Maitland (1993), de 1911: a afirmação da supremacia papal
sobre a Igreja do século XI teria sido o impulso primordial para a definição da
identidade jurídica da cultura ocidental. Desenvolvido ao longo dos volumes
de Law and Revolution (BERMAN, 1983; 2006), o argumento ganhou forma
contundente. Observemos.
Na década de 1070, a emancipação das igrejas do controle secular,
como pretendeu o papa Gregório VII, teria exigido a descoberta de novas
formas de legitimidade, capazes de justificar o inédito lugar que o clero medieval
e sua autonomia institucional ocupariam na geografia dos poderes terrenos. Os
fundamentos dessa legitimidade desafiadora teriam sido estabelecidos graças a
uma complexa engenharia jurídica. A obstinada defesa da liberdade eclesiástica
teria forçado a transformação da Igreja romana em uma majestosa corte de
juristas. Mudança que, por sua vez, teria empurrado os demais poderes da
cristandade em direção a uma adaptação similar. Desde então, as reivindicações
envolvendo questões eclesiásticas deveriam ser decididas segundo uma literatura
jurídica sistemática, manejada por homens versados na perícia das leis.
O surgimento dessa nova “ciência jurídica” marcaria o desaparecimento
dos direitos de matriz étnica na história europeia. A galáxia medieval de ordens
jurídicas locais, criadas por laços de sangue e ancestralidade tribal (folklaw),
teria sido definitivamente eclipsada pelo nascimento de um novo astro solar: “o
direito, erudito, sofisticado, sistematizado” (BERMAN, 1983, p. 51), necessário
para preservar a inédita unidade legal, corporativa e material proclamada
pela autoridade apostólica. Assim, Berman restituía ao Papado o mesmo
77
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

protagonismo atribuído por Norman Cantor, mas posteriormente dissolvido em


uma massa de agitações populares pela historiografia da “transformação feudal”.
Segundo o jurista americano, não podemos perder de vista que as
gerações clericais que ocuparam a Cúria romana entre 1050 e 1080 constituíram
as forças cegas de uma vanguarda histórica. Sem a orientação de precedentes,
guiadas por seu dramático espírito de libertação, elas se lançaram à luta política
de uma maneira que se repetiria com Martinho Lutero, Robespierre ou Lênin:
1) suas decisões puseram em xeque a totalidade das experiências sociais; 2) eles
imprimiram uma surpreendente rapidez às mudanças em curso; 3) recorreram
à violência para levar a termo a sociedade idealizada em suas mentes; 4)
precisaram persistir somente por pouco tempo, pois bastou uma curta duração
para que superassem as utopias iniciais, irrealizáveis, e reafirmassem os
princípios da revolução em compromissos viáveis de poder (BERMAN, 1983, p.
99-107). A aparente simplicidade desse raciocínio escalonado, quase composto
sob o compasso de ideias crescentes, escondia um projeto de descolonização do
conhecimento. Os historiadores, disse Berman (1983, p. 520), deveriam libertar
o estudo do passado do uso de categorias ultrapassadas, pois a Era Gregoriana
teria sido “a mudança total, que visou não só um novo céu, mas também uma
nova terra. O Conflito das Investiduras era apenas parte dela. A Reforma
Gregoriana era apenas parte dela”.
A inconfundível lista de características revolucionárias lembra o
conhecido Sobre a revolução, de Hannah Arendt. De fato, a leitura de Law and
Revolution sugere que tenha sido a leitura da filósofa alemã que convenceu
Harold Berman a admitir que “todas as revoluções modernas são essencialmente
cristãs em sua origem” (ARENDT, 1988, p. 21). Se Berman folheou o célebre
texto de Arendt, o aspecto que capturou seu olhar foi, sobretudo, outro. A escrita
da filósofa parece ter ludibriado as críticas de Berman ao materialismo histórico,
levando-o a “marximizar” a Revolução Papal, isto é, explicá-la como fenômeno
decorrente de uma consciência de classe. Pensemos com seus próprios termos.
Em poucas décadas, Roma estendeu sobre a cristandade a apertada
malha de uma unidade clerical translocal. Alçada ao primeiro plano dos assuntos
religiosos, a lei canônica tornou-se o veículo de expressão e fortalecimento “da
nova consciência social que emergiu durante o século XI” (BERMAN, 1983, p.
107). A força simbólica impregnada nos textos conciliares e nas cartas papais
superou a dispersão geográfica e a heterogeneidade cultural das elites eclesiásticas
ocidentais, unindo-as com uma nova identidade. Corporativa, essa identidade
teria sido definida por um exigente senso de responsabilidade quanto à reforma
do mundo secular. Mas não só. O novo clero, que a liderança papal arrancou
78
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

das entranhas do arcaico corpo de poderes feudais, era caracterizado ainda por
um novo sentido de tempo histórico, “incluindo os conceitos de modernidade
e progresso” (BERMAN, 1983, p. 107). O texto apresenta uma frase capaz de
resumir toda a argumentação com a feroz clareza de uma revelação: “a auto-
consciência corporativa do clero poderia ser chamada de ‘consciência de classe’
nos dias de hoje” (BERMAN, 1983, p. 107).
Energizado pela Revolução, calejado pelo enfrentamento com o
status quo dos reis e dos nobres, esse senso de unidade corporativa cresceu sem
cessar. Em poucos anos, atingiu a magnitude de uma certeza inegociável, um
reto princípio que passou a pulsar no espírito gregoriano como missão de vida:
cabia aos clérigos garantir que seu entendimento sobre os assuntos terrenos
fosse reconhecido como a verdade a respeito dos homens e do mundo. A
consciência de classe engendrou sua ideologia, o pensamento reformador. Eis
o repertório de ideias que unificou o clero pontifício. Os projetos da Reforma
abafaram suas rivalidades internas ao convencê-los de que ali, entre eles, estavam
os defensores dos únicos valores universalmente válidos (MARX; ENGELS,
2007, p. 50), os guardiães dos interesses verdadeiramente comuns aos cristãos.
Quem desconhecia sua palavra vivia em desordem e erro. Quem a desobedecia
desgraçava sua existência em pecados, à sombra da perdição.
Por isso, os gregorianos elaboraram um instrumento capaz de instruir
todos os fiéis, educando-os na verdadeira gramática de sua vida terrena: a lei
canônica. Positivada como texto, ela passou a fundar a existência coletiva.
Reconhecida como uma espécie de arca da verdade, proclamada como enunciado
autoexplicativo, a lei sancionada pelos sucessores do “primeiro apóstolo” foi
convertida no principal meio de “regulação das relações sociais” e estabelecimento
de “formas deliberadas e programáticas de justiça e paz” (BERMAN, 1983, p.
107, 118). Celebrada no altar de magníficos concílios, compilada como sagrada
doutrina em volumosas coleções, a lei canônica ritualizou o espírito de mudança,
como se canonizasse a certeza de que o convívio cristão era mutável e que, de
tempos em tempos, devia ser ajustado. A religião assentou a consciência do
tempo no cerne dos sistemas legais ocidentais (BERMAN, 1993).
O direito canônico temporalizou os gregorianos. Graças a ele, ganhou
vida um novo entendimento sobre a sociedade, no seio do qual a veneração pela
imobilidade da tradição passou a ser balanceada pela “preocupação com o futuro
das instituições” então existentes. O convívio cristão passou a ser considerado
algo dinâmico, desafiando a visão vigente, “relativamente estática” (BERMAN,
1983, p. 112). Por certo, as cartas ditadas pelos líderes da Revolução Papal não
revelam o desejo de inaugurar o novo ou algo radicalmente outro, mas o intuito
79
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

de restaurar a sociedade: “Gregório VII, assim como Cromwell, alegava que não
estava inovando, mas restaurando antigas liberdades” (BERMAN, 1983, p. 112).
Contudo, adverte Berman, não devemos deixar-nos levar pela ênfase
ideológica, a qual oculta a realidade que a fundamenta precisamente quando
revela verdades com obstinação. Afinal, a mesma tradição exaltada pela
linguagem reformadora só poderia ser estabelecida por meio da superação do
passado imediato, que permanece atado ao horizonte do vivido como “costume”.
Exaltando remotas origens patrísticas, os gregorianos condenavam os costumes
feudais e a memória dos últimos mortos. Por essa razão, eles se opuseram ao
único passado vivenciado pela esmagadora maioria de seus contemporâneos. Em
uma sociedade tradicional – em que a lei prevalecente é aquela que se reconhece
como habitual –, a ruptura drástica surge quando se semeia a discórdia entre a
autoridade e o costume, como fez o papa Gregório VII, para quem “Cristo disse
‘Eu sou a verdade’. Ele não disse ‘Eu sou o costume’” (BERMAN, 1983, p. 112-
113).
Da liturgia à propriedade episcopal, dos sacramentos aos
procedimentos de justiça, a religiosidade gregoriana deslocou o modo de vida das
comunidades cristãs, desencaixou-o de sua antiga estabilidade. A fé reformadora
deixou os tradicionais padrões de conduta desnudos de legitimidade. Para
restaurar a ordem, os integrantes do Papado tentaram vestir a sociedade com
a extensa e sofisticada cultura das normas que cerziam na corte dos papas,
nas escolas catedrais, nas audiências públicas. A lei escrita tornou-se o ponto
de equilíbrio para as divergências sociais provocadas pelo clero em busca de
autonomia. A Revolução deixou um legado de tensões entre os valores seculares
e espirituais. Contudo, foi dela que a sociedade medieval herdou as instituições
legais e governamentais capazes de solucionar tais tensões e balancear as duas
esferas – a eclesiástica e a laica – no interior de um mesmo sistema de poder
(BERMAN, 1983, p. 115). Passo a passo, as ideias de Harold Berman (1983, p.
113) caminharam para um desfecho inevitável: “a Revolução Papal deu à luz o
moderno Estado ocidental – do qual o primeiro exemplo foi, paradoxalmente,
a própria igreja”.
Profundamente influenciado pela famosa “biografia do homem
ocidental” escrita por Eugen Rosenstock-Huessy (1993) em 1939, Harold Berman
fez da Revolução Papal um episódio capaz de unificar a história. Características
que marcariam a organização social de um gigantesco leque de nações,
esparramadas pelas mais diferentes regiões da Modernidade capitalista, estavam
contidas na política protagonizada pelos papas do século XI: o predomínio
da lei escrita na racionalização da interação social, a centralização do poder,
80
A história como revolução: a Idade Média e a essência da Modernidade

a burocratização das formas de dominação. Nas palavras do próprio autor: “A


primeira das grandes revoluções da história ocidental foi a revolução contra a
dominação do clero pelos imperadores, reis e senhores, e pelo estabelecimento
da Igreja de Roma como uma entidade legal e política independente, corporativa,
sob o Papado.” (BERMAN, 1983, p. 520).
Na conclusão apoteótica, reencontramos o cerne do conceito de
Revolução Papal, a característica essencial presente em todas as perspectivas
sumariadas neste capítulo: a valorização paradoxal da Idade Média. Afinal,
o conceito converte o Papado em vórtice da dinâmica histórica social
precisamente porque o apresenta desembaraçando-se do mundo a sua volta. A
Idade Média deveria ser reconhecida como berço da política ocidental porque
teria representado o período em que a Europa deixou de ser medieval. Não se
trata de dialética, mas sim de uma fórmula linear, que equaciona toda a história
com base em um padrão de mudanças, a secularização da política. O Papado
de mil anos atrás surge como a força desbravadora de um avanço irresistível, de
uma marcha em direção ao aprimoramento das relações de poder por meio da
emancipação da Igreja.
Em sua busca pela libertação, dizem os historiadores, a Igreja teria
descentrado o homem medieval ao agravar a crise de antigos padrões culturais
evidenciada nas guerras saxônicas. Teria encorajado a inédita possibilidade de
autolegitimação popular, quando aliou sua voz aos anseios que as multidões
erguiam do chão dos dominados. Por fim, teria disseminado uma nova forma
de utopia, tangível e mundana, quando lavrou em texto canônico as promessas
de resgatar toda a sociedade das arbitrariedades cotidianas. Emancipação,
contradição, crise, autolegitimação, utopia. A Revolução Papal faz da história a
trama de um enredo só, a longa e penosa conscientização acerca do progresso
rumo à vida política de nossa época. Ela nomeia o compromisso de explicar a
natureza da Modernidade, finalidade à qual subordina todas as possibilidades
de passado. Tudo aquilo que não condiz com esse modelo deve refluir para a
posição de obstáculo, força retrógrada. Ela faz com que nossas experiências
coletivas não possam ter outro passado senão aquele que antecipa o mundo
que vemos e sofremos. Nesse sentido, há na Revolução Papal algo idêntico ao
conceito de Reforma Gregoriana e que os une no interior da ideia de Reforma
Papal.
Ambas reduzem o passado a uma unidade taxativa, hermética,
negando positividade histórica a grupos e ações sociais que não anunciem
a Modernidade industrial. No que diz respeito à sociedade da época do papa
Gregório VII, a busca para restituir as experiências possíveis da condição
81
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

humana, ampliando a complexidade da trajetória dos homens no tempo, passa


por aceitar a possibilidade teórica de que a política papal dos séculos XI e XII
não seja explicada nem como reforma, nem como revolução. Mas, sim, como
uma alteridade histórica que parece ainda não ter alcançado uma identidade
conceitual.

82
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

Parte III
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

As pegadas do sagrado:
o político como religiosidade

Coexistindo na historiografia como adversários jurados, a Reforma


Gregoriana e a Revolução Papal mantiveram sempre algo comum: uma teoria
implícita do sagrado. Nas duas abordagens, o clero papal é caracterizado pela
mesma experiência acerca da essência da religião. Nos dois casos, os eclesiásticos
vinculados ao poder papal surgem descritos com base em uma postura
reincidente. A religião os teria dotado de um horizonte global de sentidos sobre
a sociedade a sua volta. Os historiadores quase se engalfinhavam ao tentar
explicar o processo gerador das convicções reformadoras. Os pesquisadores
que as explicavam como o último estágio da evolução do pensamento religioso
sentiam-se afrontadas pelos autores que as definiam como repercussões políticas
de acontecimentos inesperados.
Porém, nisso todos concordavam: a partir de meados do século XI, ao
interpretar o sagrado, os homens da Igreja romana encontraram na religiosidade
a gramática cultural capaz de conjugar todas as relações sociais de seu tempo.
A fé então experimentada por eles reduzia a diversidade incomensurável do
mundo, fazendo-a caber no interior de uma poderosa síntese semântica. Os
clérigos romanos eram capazes de falar da totalidade social. A sacralidade
tornou-se sua esfera originária de vivências; nela, estavam gravados todos os
índices comportamentais de sua época, tanto os concretos quanto os possíveis
ou idealizados.
A religião dos reformadores possuía a realidade – sugere a historiografia.
Afinal, por meio dela eles modulavam o passado, o presente e o futuro dos
modos de vida cristãos, determinando todas as separações entre o aceitável e o
desviante, a regra e a exceção. Quer tenha sido gerada de maneira progressiva ou
revolucionária, com ou sem a esteira de uma crise, a espiritualidade reformadora
tornou-se um acervo completo de orientações sobre a sociedade. Por essa razão,
ao investigar os episódios que envolveram o Papado medieval, o historiador
deveria “focalizar o poder e o sagrado mais do que invocar a dicotomia mais
familiar de ‘igreja’ e ‘estado’” (MILLER, 2005, p. 5). A consciência acerca do
sagrado desdobrou-se em um vasto empreendimento de dominação político-
religiosa do mundo.
A ordem sagrada em que acreditavam os integrantes da Cúria romana
praticamente não era afrontada pelas forças desordenadoras que surgiram
dos contatos humanos ao longo do tempo. A combinação entre a percepção
85
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

trágica do pecado e uma fé triunfante teria sido capaz de capturar tudo, dos
gestos às coisas, e integrá-los conforme uma ordem religiosa já conhecida.
Nessa espiritualidade superordenadora, nada teria havido de precário. Nenhum
desencontro duradouro ou desencaixe ruidoso teria persistido em seu interior.
Partilhada dentro do Papado medieval, ela simplesmente parece não ter ficado
face a face com o risco da refutação empírica ou de cair em uma situação
marginal. Os historiadores discordavam sobre o processo que havia levado a sua
vitória sobre o mundo social, mas ninguém ousou duvidar de seu triunfo.
O sagrado teria proporcionado aos integrantes da Sé romana uma visão
estruturante sobre as identidades e as relações coletivas. Com olhos elevados
para as coisas santas, os partidários de Leão IX ou de Gregório VII teriam
pensado e agido sempre com a finalidade intrínseca de separar os vivos por
meio da oposição entre o profano e o sagrado. Eles teriam vivido a religião como
portadora de uma lógica separatista, orientada para distinguir os laicos, que se
dedicavam a atividades pecaminosas, manchadas pelo profano, dos clérigos, os
únicos verdadeiramente autorizados a manejar os rituais e as fórmulas capazes
de apagar aquelas máculas. A religião tornou-se o filtro do conjunto social.
Totalizar e separar para então mediar. Essa teria sido a lógica
fundamental para a união dos gregorianos. O que os levava a destacar pessoas,
lugares e objetos como sagrados não era uma intenção de isolá-los, como se os
desejassem inacessíveis, distantes do toque dos demais. A cúpula papal protegia o
sagrado para assegurar que ele chegasse ao profano sem ser corrompido. Somente
os sacerdotes, instruídos no domínio ritual e na exegese oficial da sacra escritura,
auxiliares escolhidos por Cristo, poderiam manejar aquela energia terrível e
avassaladora, dosando sua presença no interior das comunidades. Atentos à
vida secular, os reformadores teriam desejado santificar a existência comum
subordinando-a à liderança clerical. A insubstituível mediação sacramental
teria sido o fundamento da superioridade eclesiástica sobre os demais poderes e
instâncias sociais. Estaríamos diante, portanto, de uma tentativa de monopolizar
a gestão do sagrado.
Reformador ou revolucionário, o discurso do poder pontifício
teria sido constituído, a partir de 1050, por essas características essenciais: a
capacidade totalizadora de converter a sociedade em seu campo de atuação; a
eficácia simbólica para integrar as ocorrências do mundo aos preceitos religiosos;
a orientação para uma dicotomia mediada entre clérigos e laicos. Lancemos um
olhar um pouco mais detido sobre o tema.

86
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

O labirinto do sagrado

Quase 20 anos passaram-se, mas o monge ainda recordava a sensação


de pânico. Era assombrado pela própria memória, que insistia em guardar a visão
do céu noturno colorido pela luz avermelhada que havia subido dos campos
em chamas. Era impossível esquecer aqueles dias intermináveis de florestas
arrasadas, searas incendiadas, aldeias destruídas. A desgraça fora trazida das
regiões do norte pelo rei germânico. Duas décadas haviam transcorrido desde a
terrível quaresma de 1083. Mas Bernoldo acalentava a lembrança das terras ao
redor de Roma ardendo sem trégua. Enternecido por relatos de sofrimento,21
recriava em sua mente as cenas do exército imperial tentando estrangular a
Cidade Eterna com um cinturão de destruição. O monarca pretendia sufocá-la
até ter seus habitantes de joelho, forçados a aceitar o julgamento do bispo que
reverenciavam como santo padre. Dentro das muralhas, porém, grande parte
da população seguia leal ao homem acusado de ser um “falso pontífice”. Os
romanos escolheram resistir ao cerco, por isso sentiram o rei fustigar sua cidade
com tormentos.
Mas, à medida que escrevia suas recordações, Bernoldo parecia enxergar
algum sentido consolador nas calamidades. Ele empregava as palavras como se
visse nas aflições de Gregório VII as provações que selam o caminho dos eleitos –
como assegurava o Velho Testamento. Roma era a nova Jerusalém; o Império, um
novo Israel. A desolação sobreveio para ensinar aos homens o arrependimento
por tantas iniquidades cometidas. Acumulados, os pecados dos antepassados
fizeram a ira de Deus trovejar sobre sua cidade-santuário. O pontífice, como o
profeta Daniel, sabia que a passagem para a redenção era edificada pela guerra e
pela desolação. Por isso, sofria, resignado (LERNER, 2011, p. 7-28; DEMPSEY,
2011, p. 217-252).
Por mais horrível que tivesse sido a perseguição, as atribulações
revelavam que os céus justificavam a causa do pontífice encurralado. Dizia-se,
lembrava Bernoldo, que após fecharem o cerco, soldados imperiais tentaram
abrir uma brecha na defesa romana: atearam fogo em alguns casebres próximos
à basílica de São Pedro, apostando que isso atrairia as guarnições, deixando

21 Além de ter frequentado Roma entre 1078 e 1085, Bernoldo conhecia o Liber Ad Amicum
escrito por Bonizo, bispo de Sutri que, meses antes do cerco aqui relatado, fora capturado pelas
tropas de Henrique IV, permanecendo em cativeiro por quatro anos, experiência que marcou
profundamente sua versão dos fatos. Sobre a prisão de Bonizo ver ainda: Benzo de Alba. Ad
Heinricum IV imperatorem libri VII. MGH SS 11: 664; Bernoldo de Constance. Chronicon. MGH
SS 5: 437. Conf. também: Robinson (2004a, p. 59), Weinfurter (1999, p. 131-158), Eads (2003,
p. 355-388).
87
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

os muros desprotegidos. Em meio à correria e ao desespero, Gregório teria


caminhado até as chamas, tracejado no ar o sinal da cruz e miraculosamente
extinguido o incêndio.22 Os ataques não cessaram. A paz com o rei Henrique IV
seguiu improvável, os campos continuaram a ser tragados pelo fogo e a cidade,
consumida pelo anseio de rendição, que, poucos meses depois, prevaleceu.
Todavia, o milagre que teria frustrado a armadilha imperial era relatado como
indício de que a aliança entre o papa e Deus estava intacta.
O pontificado de Gregório terminou em desastre, uma trágica e
prolongada derrota política. Quando morreu em Salerno, evocando aos céus
a justiça dos desterrados, deixou um testamento de amarguras. Os romanos
foram traumatizados pelo sangrento resgate que garantiu sua fuga. Para
salvá-lo das tropas imperiais, os normandos que cavalgaram até o Castelo de
Sant’Angelo saquearam todos os lugares por onde passaram e, em seguida,
atearam fogo. Quem permaneceu na cidade encontrou outro bispo sentado no
trono apostólico, coroado com o nome de Clemente III (1025?-1100). A maior
parte dos cardeais gregorianos debandou em busca de refúgio. Da Toscana a
Benevento, as facções pró-imperiais foram fortalecidas. O desastre ficou visível
nos vários impedimentos encontrados pelos partidários de Gregório para eleger
seu sucessor. A demora arrastou-se por meses e, quando por fim foi contornada,
resultou no tumultuado pontificado de Vítor III entre 1086 e 1087. As áreas no
centro e no norte da península permaneceram hostis aos gregorianos durante
grande parte do governo de Urbano II (1042-1099), entre 1088 e 1099, papa
forçado a viajar constantemente para lugares como a Gália (ROSA, 2008;
SOMERVILLE, 2011; HAMILTON, 2003).
Mas, nas décadas seguintes, formou-se em torno do papa a memória
de um passado triunfal. Seu pontificado passou a ser lembrado como a época
em que o sagrado, após uma longa ausência, havia retornado à causa da Igreja
de Roma, recompensando quem suportara anos de sofrimentos. Assim como na
memória de Bernoldo, essa certeza povoou a imaginação de Paulo de Bernried
(1082?-1145?), mais de 40 anos depois da morte de Gregório. Concluída por volta
de 1128, sua Vita Gregorii VII Papae narrou episódios em que forças espirituais
surgem testemunhando a favor das decisões do polêmico bispo romano. É o que
ilustra seu relato sobre o sínodo de Utrecht, reunido por Henrique IV em 27 de
março de 1076, no calor da famosa sentença de excomunhão lançada pelo papa
sobre seus ombros. Vejamos.

22 A narrativa do milagre encontra-se em Chronicon (BERNOLDO DE CONSTANCE, MGH SS


5, p. 437), ao passo que as passagens de Bonizo que aparentemente fundamentaram a memória
de Bernoldo estão em Liber ad Amicum (BONIZO DE SUTRI, MGH SS 9, p. 613, 635). Ver
ainda o estudo de Cowdrey (1998, p. 220).
88
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

A excomunhão decretada pelo papa não intimidou o rei. Com a


notícia da sentença cruzando montanhas, Henrique dirigiu-se à igreja de
Utrecht. Surgiu majestático, à frente de um séquito vasto e esplêndido, reunido
para que o monarca comparecesse à celebração da Páscoa acompanhado da
pompa que anunciava o sucessor imperial. O destino escolhido era emblemático.
Relicário da memória de seu primeiro bispo, São Willibrod, missionário que
faleceu no século VIII e era lembrado como “apóstolo dos frísios”, a igreja de
Utrecht impressionava. Era uma imponente edificação em estilo românico,
cravada no centro de um arrojado alinhamento arquitetônico com as igrejas
vizinhas que desenhava no espaço a forma de uma grande cruz. Lá estavam
enterrados o coração e os intestinos de Conrado II, avô de Henrique e fundador
da linhagem reinante. A guarda das entranhas multiplicava as doações e
transferências patrimoniais dirigidas ao bispado local pela Coroa. É provável
que o aparecimento dessa igreja, um símbolo dinástico, como o cenário para a
terrível história a ser contada, demonstrasse o empenho do biógrafo papal para
convencer seus leitores de que a perfídia não estava apenas nos atos de Henrique
IV, mas corria no sangue dos sálios.
Dentro do santuário, sob o impressionante domo que abrigava os
restos mortais de seu antepassado, o rei ordenou o início da celebração. Então,
“certo bispo – não é correto chamá-lo assim, pois, em verdade, é um herético
e simoníaco – se preparou para celebrar a missa”. Após a leitura do Evangelho,
o prelado subiu ao púlpito e começou seu sermão. “Cego em seu coração e
de mente doente, ele imediatamente irrompeu em blasfêmias contra o papa
Gregório, a respeito das quais, por seu carácter excessivamente horrível, é melhor
permanecer em silêncio.” Deus, todavia, não silenciou. A blasfêmia não escapou
à atenção divina, que a puniu imediatamente com um “temível milagre diante
dos olhos do rei e de todos”.
“Antes que o jubiloso dia da Páscoa terminasse, os céus ressoaram”,
continuou o biógrafo. Um trovão estalou pelo ar e as nuvens despejaram fogo
sobre a terra. A igreja e todas as casas preparadas para a recepção do monarca
foram rapidamente devoradas pelas chamas, “transformando a felicidade dos
homens ímpios em lamentações”. A fúria divina atingiu o bispo blasfemo no
altar, mas não o matou imediatamente. Gravemente queimado, ele agonizou por
semanas. No entanto, antes de seu último suspiro, desabafou para os auxiliares
que o acompanhavam no leito de morte:

[...] me vejo arrebatado desta vida, preso a amarras de fogo,


arrastado por hediondos fantasmas. Mas, vá e diga ao rei para
corrigir a vergonhosa ofensa que ele cometeu contra Deus, contra

89
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

o bem-aventurado Pedro e seu vigário, para que ele não me siga


até os confins do inferno.

Revelada a verdade, o bispo faleceu. O biógrafo, por sua vez, enfatizou


o caráter exemplar daquele fim terrível: “todos os homens que leram estas
palavras, se preferem ter a companhia de Gregório na ressurreição, tomem
cuidado com as línguas dos detratores, que sofrerão os tormentos do inferno”. 23
A história desse milagre punitivo era antiga. Ela parece ter circulado
com o pontífice ainda vivo. Assim sugere a leitura da crônica deixada por um
contemporâneo de Gregório, Bertholdo (1030-1088), monge na abadia de
Reichenau. Segundo ele, Henrique viajou até Utrecht para celebrar a Páscoa.
Não bastasse o fato de, mesmo excomungado, pôr os pés em uma igreja, o rei
cometeu a injúria de reunir em um santuário consagrado ao apóstolo Pedro os
“cúmplices vindos de todas as partes para sua rebelião e desobediência”. Sua
ousadia despertou “o desprezo de Deus e São Pedro”, provocando o fogo que
“miraculosamente” consumiu toda a igreja, “construída há muito tempo com
grandes custos e grande esforço”.24
A morte do bispo de Utrecht – cujo nome era Guilherme – seria

23 “Interea Dominus Magnum miraculum in Regis et omnium oculis fecit: quo cognito, multi eum
reliquerunt. Nam post excommunicationis diem, Paschalis dici solemnitate, cum regio apparatus
et comitatu pompaticae multitudinis, ad Ecclesiam, divinitus sibi clausam, venire nequaquam
abhorruit. Jussu itaque Regis quidam Episcopus si fas est, imo haereticus et Simoniacus, ad Missae
se praeparavit officium. Tandem perlecto Evangelio ex more facturus popularem sermonem
Pontifex idem, pulpitum conscendit. Parum autem de tractatu locutus Evangelico, statim se ad
blasphemiam Papae Gregorii caeco corde menteque vesana prorupit, quae pro nimio sui horrore
silentio praeterire complacuit. Difficile est enim ut bene sibi conscientium probitatem, obtrectantium
lingua non mordeat, et iniquorum evadat opprobria, cui est amica justitia. Verumtamen eadem
blasphemia qualis in oculis Domini fuerit, continuo sequens ultio, si perpendatur, innotescit.
Nam Paschalis diei gaudio nondum finito, subito coelum fragore intonuit, in quo ignis descendere
coelitus visus est; qui omnem illam ecclesiam, omneque domos regali receptui praeparatas,
repente consumpsit, et laetitiam profanorum in moerorem commutavit: Episcopum vero illum
blasphemum, subito percussum, divina ultio interemit. Se aatequam vitam penitur exhaleret,
ministros suo exitio praeparatos, quales essent, compulsus est dicere: Video me, inquit, igneis
loris astrictum, tetris trahentibus imaginibus ex hac vita convelli: sed tamen ite, et dicite Regi ut
flagitium, quod in Deum, et B. Petru, ejusdem Vicarium commisit, emendet; ne me praeeuntem ad
inferi loca sequatur; et haec dicens, exspiravit. Hoc exemplo commoniti, hortamur et obsecramos
omnem hominem linguis, si mavult consortium habere cum Gregorio in ressurrectione vitae, quam
cum detrahentibus supplicium subire.” (PAULO DE BERNRIED. S. Gregorii VII papae vita. PL,
v. 148, col. 76B-77A).

24 “Apud Traiectum tex pascha egit, collectis undecumque illuc non parvis suae rebelionis et
inoboedientiae complicibus. Ibi tunc aecclesia, quam episcopus jam diu maximis inpensis et studii
construxerat, a Deo et Sanco Petro despecta, igne ultore mirabiliter conflagravit.” (BERTHOLDO.
Annales. MGH SS 5, p. 283).
90
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

lembrada como um aterrorizante ensinamento divino a respeito dos castigos


que aguardavam quem se opunha ao Papado. Ninguém devia deixar-se enganar
pelas aparências terrenas: as vitórias obtidas neste mundo não passavam de
miragens fugidias. Afinal, como registrou Lamberto (1024?-1088), monge de
Hersfeld, a vida do bispo desfez-se em um piscar de olhos. A figura soberba
que, do púlpito, tomou a palavra e declarou o pontífice “traidor e falso-apóstolo”
tornou-se, na manhã seguinte, um agonizante que urrava para ser reconhecido
inocente.25 Escrevendo pouco depois, nos anos 1090, outro religioso, Hugo de
Flavigny (1064?-?), descreveu a cena com linhas vivas: um mês após ter sido
“atingido pela punição divina”, o bispo espalhava o pavor entre os fiéis toda vez
que eram ouvidos seus terríveis gritos de “estou queimando, estou queimando!”.
Aquela apavorante agonia era o exemplo da morte abominável destinada aos
que tinham optado por viver deploravelmente, ou seja, injuriando a autoridade
apostólica.26
Os suplícios do corpo eram somente um lampejo dos flagelos
reservados por Deus aos adversários do papa. É novamente Paulo de Bernried que
nos conta outro episódio, no qual as punições eternas eram reveladas aos santos
por meio de visões. Trata-se de uma história envolvendo Hérluca, asceta falecida
em 1127 ou 1128. Segundo o que lhe contou um monge, Paulo afirma que, certo
dia, a bem-aventurada mulher estava sentada com suas companheiras, virgens e
viúvas. Como de costume, elas reuniam-se para praticar algum trabalho manual
e, assim, disciplinar o espírito. Em certo momento, estando todas imersas nos
afazeres, Hérluca olha pela janela e cai em prantos, dizendo como se apontasse
para algo lá fora: “Ai, Ai! Teria sido melhor para aquele homem se não tivesse
nascido”. Repentina, a reação sobressaltou as outras mulheres. Uma delas, “certa
nobre chamada Hadewiga”, não conteve o susto e perguntou o que a santa havia
visto para comovê-la tanto. Com o rosto coberto de lágrimas, Hérluca respondeu
que havia visto a alma do padre de Rott sendo levada por demônios. Enquanto
arrastavam o sacerdote para o inferno, as criaturas de Satã zombavam dele.

25 “Studio partim regis multa in iniuriam Romani pontificis omnibus pene diebus solemnibus
inter missarum solemnia rabido ore declarabat [...] adulterum et pseudoapostolum appelans
[...] sanctissimo et apostolicarum virtutum viro, graves contumelias, sciens et prudens innocenti,
irrogasset.” (LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5, p. 244).

26 “Percursus est enim a Deo plaga insanabili, ita ut cum horrore et stupore mirabili clamaret: ardeo,
ardeo quia corpus vivificat, incendium illi poenamque pariebat, quo exarserat in eo sicut ignis in
spinis, ut manifesta in eo fieret ultio Domini [...]. Miseram vitam miserabili morte finivit.” (HUGO
DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8, p. 458-459). Hugo de Flavigny data o sínodo de Utrecht
em 1080.
91
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

O padre – esclarece Paulo de Bernried – tinha sido notoriamente


desobediente aos decretos de Gregório, pois era um “nicolaíta que, escravizado
pelos desejos carnais, contaminou a igreja daquele lugar chamado Rott”.
Entretanto, prossegue o autor do relato, ao ouvir o relato da visão de Hérluca,
a nobre foi tomada por misericórdia e desejou que aquilo não fosse verdade.
Com a firmeza da revelação, a santa rebateu, sugerindo: “envie alguém para
inquirir sobre a verdade da questão”. O mensageiro então enviado encontrou a
criadagem clerical em luto e regressou dizendo que o sacerdote havia falecido no
exato momento em que a bem-aventurada virgem olhou pela janela e viu a alma
ser carregada por espíritos malignos.27
A época de Gregório VII – que pode ser recortada de 1050 a 1085, se
aí incluirmos o período de sua atuação como diácono e legado papal – provocou
o florescimento de uma intensa atividade literária. A maior parte dela de
caráter polemista, ou seja, empenhada em justificar ou inculpar seu pontificado
(ROBINSON, 1978a; STOCK, 1983). Um dos efeitos mais visíveis da “guerra
de propaganda” deflagrada entre os aliados papais e os partidários imperiais foi
promover a relação pessoal com o sagrado atribuída ao bispo de Roma para
o primeiro plano das polêmicas. As estórias de milagres e eventos prodigiosos
envolvendo o velho bispo multiplicaram-se. O contraste com épocas anteriores
é sensível, sobretudo na primeira metade do século XI, quando a Sé de Roma,
controlada pelas poderosas famílias da aristocracia local, teria ficado em poder
de “mercenários, não pastores” (JL 4333).
Distinguido de seus predecessores, Gregório VII tornou-se tema de
uma memória duradoura, que o implicava no íntimo convívio com as forças

27 “Illa quoque visio non indigna commemoratione videtur, qua dilectus Deo et hominis, benedictae
memoriae Adalbertus monachus, et ipse contumelias et terrores ab adversariis Gregorii nostri
propter obedientiam decretorum ejus passus, eamdem Herlucam vidisse referebat de quodam
Nicolaita, qui carnalibus desideriis inserviens ecclesiam illam contaminaverat, quae est in loco
qui dicitur Rota. In illa namque confinia, hoc est in confinio Noricorum et Alamannorum quos
Lycus fluvius disterminat, non procul destinabat mansiones ejusdem venerandi senis et beatae
Virginis, multumque se invicem in Christo diligebant, quia excellentem Dei gratiam in se mutuo
recognoscebant. Ita ergo dilectus dedilecta narrabat. Beata Herluca inter socias virgines et viduas
quadam die ex more sedebat, et operi manuum juxta consuetudinem suam diligenter incumbebat;
cum ecce subito per fenestram prospiciens, miserabiliter lamentari coepit et vociferari dicens: Vae,
vae! Melius homini illi erat, si natus non fuisset. Cumque nimis attonita quaedam illustris femina,
nomine Hadewiga, interrogasset eam quidam vidisset, unde tantum commota fuisset? Mortuus
est, inquit, infelix Presbyter illud de Rota, et anima ejus ab angelis Sathanae sublata portatur ad
inferna: vidi enim eos praetereuntes cum insultatione, et animam comitantem cum ejulatione. Illa
optante hoc verum non esse, Mittatur, inquit, qui veritatem inquirat. Missus nuntius familiam
lugentem invenit; et eadem hora comperit mortuum, qua beata Virgo spiritum ejus viderat a
malignis spiritibus asportatum.” (PAULO DE BERNRIED. S. Gregorii VII papae vita. PL, v. 148,
col. 78B/C).
92
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

espirituais – celestiais para uns, infernais para outros. Séculos depois, por
exemplo, nas distantes décadas de 1550 e 1560, protestantes como John Foxe
(1517-1587) e Matthias Flacius (1520-1575) redigiram relatos sobre como o
líder medieval era capaz de lançar labaredas pelas mangas das roupas e abrigar
uma hoste inteira de demônios na biblioteca. Por volta de “fins do século
XVI, a imagem de Gregório como mago e necromante havia se tornado bem
estabelecida em histórias evangélicas sobre o Papado” (PARISH, 2005, p. 137).
Provavelmente, o “papa diabólico” imaginado pelos quinhentistas foi inspirado
em registros do século XI, uma vez que conhecemos as acusações de homicídio e
de necromancia disseminadas por Guido de Osnabrück, no Liber de Controversia
de Hildebrandi et Heinrici (1085), e pelo episcopado imperial reunido no sínodo
de Brixen, em junho de 1080.28
A Santa Sé não deixou por menos. Por decisão de Gregório XIII (1502-
1583), toda a cristandade deveria aceitar seu predecessor homônimo como
santo. Pois a santidade era a única explicação para o corpo do papa exilado
por Henrique IV continuar intacto. Era uma iniciativa marcante. O fim de um
silêncio incomum para a Igreja católica: durante 65 anos, entre 1523 e 1588,
ninguém foi elevado à santidade pela Cúria. A declaração da santidade papal
faria parte da ofensiva romana pela reconquista do sagrado. Em 1588, Diego
de Alcalá foi proclamado santo; Jacinto de Odrovaz, em 1594; em 1606, foi a
vez de Raimundo de Peñaforte ser inscrito no rol celestial; em1606, Gregório.
Um século depois, a definição do dia 25 de maio como data universal da “Festa
de São Gregório VII”, obra de Bento XIII em 1728, consagraria a identidade do
pontífice medieval mais venerado entre os católicos (CHADWICK, 1981, p. 294).
A santificação papal repercutiria na historiografia moderna: as principais fontes
documentais empregadas pela Cúria para embasar o processo de canonização
seriam consagradas pelos historiadores como os registros escritos mais valiosos
da época, caso do Liber ad Amicum de Bonizo de Sutri (1045?-1091?).
Os apelos gregorianos ao sagrado formam um espectro de referências
documentais de notável complexidade. Outro bom exemplo pode ser encontrado
entre os registros do Concílio romano de 1078. Durante as deliberações, o papa
solicitou que fossem examinadas as notícias de milagres ocorridos nos túmulos
de Cêncio (?-1077?) e Erlembaldo (?-1075). Ambos eram laicos. Segundo muitos
historiadores, essa era uma condição social incomum para um santo no século

28 GUIDO DE OSNABRÜCK. Liber de Controversia de Hildebrandi et Heinrici. MGH Ldl 1, p.


462-470. Sobre o sínodo de Brixen, ver: Die Briefe Heinrichs IV. MGH DM, 1, p. 72; Decretum
Synodi. MGH LL 2, p. 51-52; Annales Augustani. MGH SS 3, p. 130 (HEFELE; LECLERCQ,
1912-1915, v. 4:2, p. 269-272)
93
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

XI. Ser laico bloqueava o caminho que levava à santidade, pois assim eram
identificados os supostos inimigos da liberdade da igreja (VAUCHEZ, 1991;
2009; STRICKLAND, 2007; WEINSTEIN; BELL, 1982).
O primeiro era um aristocrata local, quer havia herdado do pai,
João Tionísio, o disputado título de prefeito de Roma. Nos últimos dez anos, a
linhagem de Cêncio tinha se revelado uma aliada insubstituível da autoridade
romana. Não só pela lealdade, mas, principalmente, por manter o governo
citadino longe das mãos dos Stephani, proeminente família local declaradamente
hostil à Cúria. Em 1073, quando rumores espalharam pelas vielas de Roma que
o prefeito pensava em renunciar ao mundo e ingressar em um monastério,
Gregório reagiu com veemência: a vida contemplativa permaneceria um
propósito fora de lugar para Cêncio enquanto suas ações fossem necessárias no
comando da cidade (COWDREY, 1998, p. 326-328). Tendo desistido da ideia,
o aristocrata apoiou o papa incansavelmente, até o verão de 1077, quando seus
rivais emboscaram-no. O destino do Stephani que o matou foi trágico. Acabou
arrastado para fora da fortaleza da família e linchado pelos romanos. Cêncio,
por sua vez, foi sepultado em mármore no interior da basílica de São Pedro. Aos
prelados reunidos no concílio, Gregório afirmou que seu antigo prefeito havia
sido coroado com o martírio por Cristo, que “notabilizou seu sepulcro com vinte
milagres enumerados e aprovados” 29 pela assembleia clerical.
O segundo a ter sua santidade examinada era uma figura ainda mais
controversa. Erlembaldo era cavaleiro e herdou do irmão, Landulfo, a liderança
dos patarinos – grupo de milaneses condenados como hereges e excomungados
pelo episcopado da Lombardia em 1057.30 Desde então, muito havia acontecido.
Enquanto as relações entre o Papado e o bispo de Milão tinham se deteriorado
em compasso acelerado, Erlembaldo manteve a postura de advogado da
subordinação do clero ambrosiano ao primado apostólico. Na batalha travada
entre Roma e Milão pela sujeição hierárquica desta última, o cavaleiro milanês
declarou-se a favor da superioridade romana. As provas de lealdade renderam-
lhe a guarda do “estandarte de São de Pedro” e a honra de defensor de todo
o patrimônio papal, símbolos da estreita aliança mantida com Alexandre II
(1015?-1073).

29 “Dominus noster Jesus Christus martyrio coronavit, eiusque sepulchrum continuo viginti
miraculis, in Synodo numeratis et probatis, illustravit.” (PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii
VII papae. PL 148, p. 83B).

30 ARNULFO. Gesta Archiepiscoporum Mediolanensium. MGH SS 8, p. 18-22 (HEFELE  ;


LECLERCQ, 1912, 4:2, p. 1126-1132; COWDREY, 1968, p. 25-48).
94
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

Não obstante sua devoção política, Erlembaldo era um santo


improvável e, para muitos, inaceitável. Homem de armas, viveu à custa de muito
sangue derramado – uma boa parte dele de sacerdotes da Lombardia – e morreu
tratado pelos milaneses como traidor (PATSCHOVSKY, 2003, p. 31). Fim brutal,
que o papa converteu em martírio. Na versão de acontecimentos apresentada no
concílio de 1078, a multidão de milaneses furiosos é descrita como um “exército
de conspiradores” que, sem motivo algum, atacou Erlembaldo e assassinou-o
em plena rua: “desnudado, esquecidos seu nascimento e dignidade, [...] ele
foi deixado insepulto por um dia inteiro. Mas, à noite, ele foi honrosamente
sepultado por homens pios [...] e em seu sepulcro uma grande maravilha é
operada até hoje por Deus.” 31
Essa não foi a única vez em que a reivindicação gregoriana de
sacralidade ficou a poucos passos da heresia. Em meados dos anos 1050, quando
era apenas um subdiácono na hierarquia romana, Hildebrando – futuro Gregório
– foi complacente com a compreensão de Eucaristia defendida por Berengário
de Tours (1000-1088?) nas páginas de De Sacra Coena. A obra justificava que
Cristo não estava fisicamente (substancialiter) presente na hóstia consagrada.
Combatido por homens da envergadura filosófica de um Lanfranco de Bec
(1005?-1089), Berengário acabou condenado como herege e reiteradamente
forçado à retratação em concílios pontifícios: nas assembleias de Roma e
Vercelli, ambas em 1050; e novamente em Roma, em 1059 e 1079.32 Ainda assim,
Hildebrando sustentou uma postura ambígua perante o caso.
O próprio sentenciado registrou a forma como o subdiácono mostrava-
se simpático, talvez o único homem da Cúria a tratá-lo com mansuetude
apostólica. É Berengário quem nos diz que o legado conteve-se por temor,
fazendo calar a aprovação dada por seu espírito em razão de receios. Ele não
parecia disposto a assumir publicamente o partido de alguém acusado pelo clero
papal de difundir uma doutrina errônea sobre o mistério da paixão de Cristo. Ao

31 “Post pascha vero derepente congregato exercitu et multitudine coniuratorum Herlimbaldum


nihil mali suspicantem invadunt eumque bellare temptatem in media platea interficiunt aliosque
persecuntur et depredantur eumque ignominiose nudatum, obliti generis eius et dignitatis, ad
ignominiam totius christianitatis per totum diem relinquunt inhumatum. Nocte vero a religiosis
viris apud Sanctum Dionisium eum honore sepultus est; ad cuius sepulchrum magna mirabilia
usque hodie operatur Deus.” (BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1, p. 604-605).

32 Para as condenações de Berengário nos concílios de Roma (1050), Vercelli (1051) e novamente
Roma (1059 e 1079), consultar Vita Leonis IX Papae. PL 143, p. 490-495; Gregório vii. Das
Register. MGH Epp. Sel. 6, p. 425-429; Hugo de Flavigny. Chronico. MGH SS 8, p. 443; Mansi 19,
p. 759- 770, 773-774, 900; MANSI 20, p. 516-526.
95
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

escrever uma carta em nome de Godofredo Martel, conde de Anjou, o próprio


Berengário censuraria Hildebrando por agir como Pôncio Pilatos.33
A questão é escorregadia. Aparentemente, o homem que depois
tornou-se Gregório VII não deixou em lugar algum uma opinião doutrinária
sobre a Eucaristia. Por outro lado, não faltam historiadores (MONTCLOS,
1971) que acusem Berengário da presunção de supor que as figuras mais
proeminentes de seu tempo concordavam instintivamente com ele. Contudo,
fica a certeza bem documentada acerca da benevolência gregoriana recebida por
um homem excomungado em razão da maneira como concebeu a presença do
Salvador entre os fiéis (RADDING; NEWTON, 2003, p. 1-32). Os adversários
do pontífice jamais esqueceram. Muitos nunca o perdoaram por isso. Em
1080, dezenas de bispos imperiais repudiaram-no como o “antigo discípulo do
herético Berengário, pois colocou em dúvida a fé católica e apostólica sobre o
corpo e o sangue do Senhor”. 34 Em 1067, outro episódio recolocou o Papado
na encruzilhada entre o sagrado e a heresia. Naquele ano, um grupo de monges
vallombrosianos foi até Roma. Eles levaram consigo uma oferta espantosa. Para
provar que o bispo de sua diocese, Pedro Mezzabarba (?-1071?), era culpado de
simonia, um deles caminharia com pés nus sobre o fogo agarrado à certeza de
que a justiça divina protegeria a integridade de seu corpo.
Àquela altura dos acontecimentos, o conflito arrastava-se havia anos.
Os beneditinos acusavam o bispo de Florença de ter barganhado o cuidado das
almas com uma formidável soma de dinheiro fornecido pela câmara de Pavia.
As denúncias circulavam como parte de uma agressiva campanha iniciada para
convencer os florentinos a rejeitar os sacramentos ministrados pelo superior
eclesial. Mercados, ruas, praças, por todos os lados, era possível ouvir os
sermões dos vallombrosianos contra o poder episcopal, cada vez mais afamado
de submergir a igreja local em corrupção e ambições mundanas. Embora a
pregação fosse uma das mais altas prerrogativas clericais da época, a palavra
não bastou aos acusadores, que se lançaram a gestos extremos. Os monges
assumiram a administração dos sacramentos em três igrejas da cidade. Mas,

33 As referências de tolerância por parte de Hildebrando tratam, especialmente, do Concílio de


Tours, 1054 (BERENGÁRIO DE TOURS. De Sacra Coena adversus Lanfrancum, liber posterior.
Editores A. F. e F. TH. Vischer. Berlin: Haude et Spener, 1834, p. 49-50). A carta enviada por
Berengário em nome de G. Martel está em BERENGÁRIO DE TOURS. Briefe. MGH Brief. der
Zeit Heinrichs IV, p. 149-151.

34 “[...] catholicam atque apostolicam fidem de corpore et sanguine Domini in questionem


ponentem, heretici Berengarii antiquum discipulum.” (DECRETUM SYNODI. MGH Const.
1, p. 119).
96
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

para a consternação de todos, quem aí era batizado não recebia a bênção com
o crisma, pois o óleo da unção era impuro, já que havia sido consagrado por
Mezzabarba. Ao agir assim, os vallombrosianos demonstravam que a ordenação
do bispo era nula: ele era incapaz de transmitir a graça divina àquilo que
consagrava (D’ACUNTO, 1993, p. 290-301).
A questão passou a causar grande comoção nos citadinos. Os monges
evocavam os laicos, rogando-lhes que também vigiassem o cumprimento
sacerdotal dos preceitos de uma vida apostólica. Cada vez mais inflamadas, as
pregações não cessavam. Nem mesmo quando chegou de Roma uma ordem
expressa que proibia os beneditinos de deixar a clausura para proclamar a palavra
em meio aos fiéis (JL 4552). A verve monástica não cedeu sequer com a chegada
do cardeal Pedro Damião (1007-1072?). Investido da missão de pôr um fim à
luta, Damião acolheu as denúncias, porém com visível antipatia pela escolha
dos beneditinos de invocar o “povo florentino” (populus florentinus) como juiz
da moralidade clerical. Mezzabarba, por sua vez, retaliava. Enviou homens
armados à abadia para capturar João Gualberto, o fundador de Vallombrosa.
O rapto falhou. Apesar da destruição levada à casa dos religiosos, os cavaleiros
retornaram sem o líder monástico. O bispo, então, foi mais longe e empenhou
a própria fortuna para consolidar a fundação de um monastério que rivalizasse
com o prestígio espiritual de seus acusadores (DAMERON, 1991; JESTICE,
1997, p. 233-243; CORNELL; ZORZI, 2000).
Tendo obtido entre os laicos e uma boa parte do clero de Florença a
aprovação para que o impasse fosse julgado em Roma, os monges viajaram ao
Lácio, onde se ofereceram para provar a justiça de suas acusações por meio de um
ordálio do fogo. No entanto, não encontraram os aliados esperados. Alexandre
II proibiu a prova corporal.35 Diante do parecer desfavorável do pontífice, a
situação dos monges complicou-se. A Cúria não via com bons olhos aquela
flagrante desobediência hierárquica e considerava a conduta dos beneditinos
um exemplo inaceitável de desacato à autoridade episcopal. Além disso, era
impossível julgar a questão sem levar em conta o interesse demonstrado por duas
figuras: Rainaldo (?-1075?), bispo de Como, e Godofredo (997?-1069), duque
da Lorena. O primeiro compareceu ao concílio e descarregou a indignação
do episcopado lombardo perante o extremismo daqueles monges. Quanto ao
segundo, basta isso: Godofredo sustentava o bispo florentino e Alexandre devia-
lhe seu pontificado (D’ACUNTO, 1993, p. 288-303).
Os vallombrosianos chegaram às colinas romanas como defensores
da fé cristã e estavam prestes a deixá-las como transgressores da boa ordem da

35 ANÔNIMO. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1107.


97
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Igreja. Seu temor deve ter crescido quando Pedro Damião tomou a palavra. O
cardeal foi implacável:
Agora me dirijo aos meus irmãos monges, com quem, acredito,
esta disputa começou. Eles dizem que bispos como estes são
incapazes de abençoar o crisma, dedicar igrejas, conferir ordens
clericais ou celebrar missas em qualquer momento. [...] É o bispo,
por suas palavras, que conclama o Senhor sobre um homem, mas
é o Senhor que realiza a eficácia da bênção. Portanto, o efeito da
bênção não depende dos méritos do bispo [...]. A Santidade é
odiosa se ela recai em heresia [...]. A pureza excessiva [...] arrasta
para a contaminação na imundície herética. [...] Pois declarar algo
como ilícito, quando ele é permitido, e, ao fazê-lo, vangloriar-se
de serem os defensores da justiça, os levará a serem julgados como
inimigos da Igreja. Podemos adequadamente comparar este tipo
de homem a sapos ou gafanhotos, pois ele agora devasta a Igreja
assim como anteriormente esses animais foram pragas no Egito.36

Contrariando suas expectativas, os religiosos viram-se acuados “como


ovelhas entre lobos”.37 As reprovações do cardeal – um eremita, como seu
líder! – eram duro golpe para aqueles homens, que envelheciam convictos de
viver a perfeição da pureza cristã. A relutância do papa soava como disparate:
como podia negar a súplica de quem tinha renunciado ao mundo para travar a
grande batalha pela salvação humana? Segundo a Vita Sancti lohannis Gualberti,
os ânimos fervilharam, e o alvoroço tomou conta da assembleia. Que só não
estourou em golpes sobre os monges porque foi contida por Hildebrando, que

36 “Hinc ad commonachos meos articulum transfero, a quibus profecto procedere totam


hanc iurgandi materiam non ignoro. Dicunt enim quia per huiusmodi sacerdotes nec
crisma confici, nec aecclesia dedicari, nec clericalia iura conferri, nec missarum ullo
umquam tempore potuerunt solemnia celebrari. [...] Sacerdos quippe Dominum super
hominem verbis invocat, sed ipse supere um Dominus benedictionem efficaciter format.
Effectus itaque benedictione non in merito sacerdotis constat [...]. Odiosa sanctitas
quae in heresim labitur [...]. Nimia certe mundicia in hereticae contagiones [...]. Qui
dum perhibent no licere quod licet, ac per hoc iactant se defensores esse iustitiae, hostes
adiudicantur aecclesiae [...]. Huiusmodi quippe genus hominum ranis sive locustis
merito comparatur, quia sicut Aegyptum illa tunc animalia percusserunt, ita per hos
nunc vastatur aecclesia.” (PEDRO DAMIÃO. Briefe 146. MGH Epp. 3, p. 533-542).
As palavras transcritas acima não foram proferidas por Damião no concílio de 1067,
mas, na realidade, enviadas ao populus de Florença na forma de epístola. Porém,
acreditamos ser historicamente plausível considerá-las um indicador fidedigno da
posição defendida pelo cardeal na assembleia.

37 ANÔNIMO. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1107.


98
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

ergueu a voz em defesa dos vallombrosianos.38


Uma vez mais, o arquidiácono surgia tomando o partido de um
controverso apelo ao sagrado. E o mais importante: sua posição parece ter
propiciado uma súbita reviravolta de papéis. Após ficarem a um passo da
condenação como inimigos da Igreja, os monges retornaram para Florença. Nos
meses seguintes, Mezzabarba apostou alto e perdeu: mais uma vez recorreu à
violência. Amparado nos recursos do marquês local, expulsou os cônegos que
haviam se abrigado de sua autoridade no oratório da igreja principal. Aquela
desastrosa medida arruinou a legitimidade do bispo e, somada à blindagem
oferecida por Hildebrando, encorajou os vallombrosianos a realizar o malvisto
ordálio.
Em 13 de fevereiro de 1068, um deles, chamado Pedro, jurou por sua
alma a culpa de Mezzabarba e, em seguida, andou “doze longos passos através
de brasa e chama”. Saiu ileso.39 Pressionado pela notícia daquele impressionante
“juízo de Deus”, Alexandre não teve escolha a não ser banir o bispo de
Florença.40 O que ocorreu no mês seguinte, durante o concílio quaresmal
romano. Destituído, Mezzabarba buscou refúgio em Lucca, acolhido pelo duque
Godofredo. Provavelmente, aguardava que ele o reconciliasse com o pontífice
e revogasse a sentença. Empenhado em restabelecer o bispo sobre o qual havia
depositado parcelas importantes do controle sobre os territórios toscanos,
Godofredo refutou o valor da prova do fogo.41 Contudo, seus esforços foram
inúteis (CUSHING, 2005, p. 740-757; McCREADY, 2011; RANFT, 2012, p. 141-
184).
Projetado pela “eficácia propagandística da prova do fogo” (D’ACUNTO,
1993, p. 307), o monge Pedro – que a tradição católica moderna eternizaria como

38 “Cum itaque pene omnes furerent contra monachos et dignos morte iudicarent eos, qui temerarie
contra prelatos ecclesiae armari auderent [...]. Interea suxerrit in concilio quidam vir egregius ex
excellentissimus alter Gamaliel, scilicet Ildebrandus monachus et archidiaconus ecclesiae Romanae,
qui non pedetemptim ratiocinando, sede aperte atque fortissime defendit monachos contra omnium
opinionem.” (ANÔNIMO. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1107).

39 “Per ignem et flammam 12 pedum longam pertransiit.” (BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5, p.


306).

40 A epístola enviada pelos florentinos ao papa, bem como uma detalhada narrativa
de todo o conflito, pode ser encontrada em: André de Strumi. Vita sancti lohannis
Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1096-1100. Ver ainda: Annales Altahensis Maiores. MGH
SS rer. Germ. 2, p. 74. Para referência geral ao concílio: Hefele e Leclercq (1912,
4:2, p. 1266); Capitani (1966); Mann (1925, 6, p. 302).

41 BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5, p. 273-274.


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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

“Pedro Ígneo” – conquistou a reputação de campeão da fé.42 Quatro anos depois,


vestiu o pomposo título de cardeal bispo de Albano (MICCOLI, 1960, X-178).
Por sua vez, Pedro Damião, apontado pelos historiadores como um “líder da
reforma papal” (FORNASARI, 1996; D’ACUNTO, 1999), amargou uma derrota
espinhosa. Revés que feriu gravemente sua identificação com a política pontifícia,
como ele mesmo confessou ao papa:
Deixei o sínodo, que era presidido pela autoridade de vossa
santidade, tão desgastado e exaurido, com meu espírito tão
oprimido [...], que ele não poderia ser atenuado pelas chuvas
da contrição nem soerguido do desânimo pela graça da íntima
contemplação. [...] Por esta razão, estabeleci para mim o princípio
de que, enquanto viver, ausentar-me-ei completamente dos
sínodos romanos, exceto se uma necessidade inevitável me
compelir.43

Entre milagres punitivos e visões a respeito da danação clerical,


santos controversos e ordálios indesejados, a sacralidade associada a Gregório
VII por seus partidários surge na documentação atravessada por tensões. Ela
traz um inquietante sentido de equilibrar-se no limite do consenso, marcada
por lembranças de guinadas bruscas e direções contraditórias. Por vezes, temos
a impressão de que se retrata uma Igreja descentrada, repleta de conflitos e
desencontros. Tais características são como traços que desenham uma imagem
diferente do Papado medieval, tradicionalmente visto como instituição
suprema e compacta. O que narramos até este ponto remete-nos a um círculo
institucional caracterizado por oscilações e fragilidades, um tanto incompatível
com a imagem de uma cúpula capaz de irradiar uma dominação religiosa bem
articulada sobre as consciências, como um núcleo originário do suposto “projeto
reformador” que abarcou o século XI. O sagrado vivido pelos gregorianos é um
desafio e tanto para o historiador: como explicá-lo?

42 Virum religiosissimum. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1, p. 612; Referência
ainda em: PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii VII papae. PL 148, p. 58.

43 “Ita nimirum a synodo, cui vestrae sanctitatis auctoritas praefuit, contritus nuper et arefactus
abscessi, ut mens mea tot oppressa negociis, more silicis obdurata, nec per imbrem se cumpunctionis
emolliat, nec se quantumlibet super se gratia intimae contemplationis attollat. [...] Quapropter haec
apud me diffinita sententia est, quia de caetero, nisi me necessitas inevitanda compellat, donec
advixero Romanis me conciliis funditus absentabo.” (PEDRO DAMIÃO. Briefe 164. MGH Epp.
4, p. 166-167). Para uma crítica da relação entre Pedro Damião e a Reforma Cristã, ver Bovo
(2012).
100
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

Um pouco de teoria

Quando se trata de compreender o que chamamos de sagrado, é difícil


pensar em um ponto de partida para o pensamento que não as ideias de Émile
Durkheim. Há um século, o grande nome da sociologia francesa propôs uma
conceituação sistemática do sagrado, cujo rigor alcançou rápida notoriedade
entre as chamadas Humanidades. E não era para menos. Quando publicou
Les formes élémentaires de la vie religieuse: le système totémique en Australie, no
distante ano de 1912, Durkheim trouxe ao público uma síntese exaustiva das
contribuições mais inovadoras de seu tempo. Nessa obra, “a teoria do sagrado
e da religião atinge uma amplitude e uma sistematização que encontram pouco
equivalente na literatura sociológica” (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p.
180).
Influenciado pela leitura das conferências sobre a religião dos semitas
elaboradas por William Robertson Smith, teólogo e orientalista escocês falecido
em 1894, o autor de O suicídio ressaltou a ambiguidade como traço essencial
da vivência do sagrado. Segundo ele, as forças religiosas são de duas espécies
e encontram-se universalmente repartidas entre dois domínios opostos.
Algumas são sublimes, benfazejas, cultuadas como “guardiãs da ordem física e
moral, dispensadoras da vida, da saúde, de todas as qualidades que os homens
prezam”. Outras desassossegam o convívio coletivo com a certeza de que viver é
ser rodeado por potências sombrias, “más e impuras, produtoras de desordens,
causas de morte, de doenças, instigadoras de sacrilégios” (DURKHEIM, 1989,
p. 485).
Desde os tempos primitivos, as sociedades conferem inteligibilidade
aos fenômenos do mundo e aos movimentos da interação humana classificando-
os nessas duas categorias de forças e de seres. A existência social é repartida em
dois domínios, entre os quais reina um contraste tão completo quanto os homens
podem suportar, mesmo que em alguns casos eles terminem por transformá-lo
em um antagonismo radical. O sagrado é o nome que cabe a esse conjunto de
experiências extraordinárias que se complementam pela dissociação. Designa,
portanto, um universo incomum sempre duplo, no qual o impuro contrasta e
realça o valor único da pureza, ao passo que a sensação de tornar-se puro, por
sua vez, ensina o temor da impureza. A sacralidade pressupõe uma variedade
elementar, o fasto e o nefasto.
A vida religiosa é composta por esses dois polos porque a vida social
divide-se em dois estados: “entre o sagrado fasto e o sagrado nefasto há o mesmo
contraste que entre os estados da euforia e de disforia coletivas. [...] A unidade
101
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

e a diversidade da vida social é que constituem, ao mesmo tempo, a unidade e a


diversidade dos seres e das coisas sagradas.” (DURKHEIM, 1989, p. 490).
Ainda que a síntese durkheiminiana seja apresentada assim, de
maneira generalista e simplória, é possível divisar os contornos de suas
contribuições decisivas. A definição aí estampada distanciava-se das perspectivas
que concebiam o sagrado como força imanente ao espírito, que misteriosamente
eclodia e impressionava consciências séculos afora. Desde então, mais do que as
formas, era possível investigar os conteúdos propriamente sociais do sagrado.
Durkheim apontava uma direção para sondar como as ideias religiosas emergiam
das relações que envolviam indivíduos e sociedade. Em sua teoria, o sagrado é
uma razão social, dotada de dinâmica e de diferentes estágios de realização.
Leituras posteriormente propostas, como a conhecida abordagem
de Mircea Eliade, não alcançaram a mesma profundidade e estacionaram
em uma hermenêutica muito atenta às especificidades e descontinuidades
das experiências religiosas, mas que reiteradamente resultou em abordagens
descritivas. A famosa conceituação do sagrado como hierofania, proposta pelo
autor romeno, por pouco não se tornou uma forma retórica pouco propícia à
análise:
O homem toma conhecimento do sagrado porque este se
manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do
profano. A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado,
propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não
implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que
está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de
sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões
– desde a mais primitiva às mais elaboradas – é constituída por
um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das
realidades sagradas. (ELIADE, 2001, p. 17).

Eliade afirma que não é preciso saber o que é o sagrado. Basta-nos


a consciência de sua revelação. Não precisamos defini-lo para identificar suas
manifestações na história: a capacidade de reconhecê-lo assemelha-se a uma
faculdade universal, uma fenomenologia cuja inteligibilidade é inata tanto ao
praticante quanto ao observador (DUDLEY, 1977; RENNIE, 1996).
Voltemos a Durkheim. Por outro lado, sua teoria parece presa a um
cipoal de laços funcionalistas. Sua teoria da religião é um sistema bem articulado,
no qual as crenças e os comportamentos encaixam-se para gerar alguma utilidade
social ou não fazem sentido. As experiências simbólicas surgem determinadas
por finalidades sociais. Tal característica fez da síntese durkheiminiana alvo de

102
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

severas críticas, que a desqualificavam como um rígido esquema intelectual que


simplificava a complexidade dos seres humanos ao ceifar qualquer margem de
autonomia para a dimensão cultural implicada em sua coexistência.
Não foram poucos os críticos que enxergaram na sacralidade elementar
apresentada por Durkheim uma maneira de reduzir a imprevisibilidade da
interação humana a grandes movimentos impessoais, excessivamente genéricos.
Desse ponto de vista, o sociólogo teria formulado uma teoria abstrata demais,
que perdia de vista as instabilidades e tensões das experiências sociais, bem
como suas rupturas e sua adaptabilidade (MOL, 1979; LEHMANN, 1995;
PICKERING, 2001, v. 3; FISH, 2005). A mesma característica louvada por
muitos como mérito insuperável foi desaprovada por inúmeros outros como
excesso abusivo: “o vigoroso espírito de sistema traz às elaborações teóricas um
quadro tão exigente, do qual podemos, conforme o humor do dia, admirar a
lógica ou lamentar as exigências” (ISAMBERT, 1976, p. 39).
Porém, diante dos dilemas que cercam essa complexa teoria geral da
religião, um princípio parece-nos imprescindível, ao menos para a compreensão
dos relatos gregorianos: o sagrado provém da interação social. É um modo
singular de edificar posicionamentos em meio ao inesgotável fluxo de desafios
produzidos pelas relações coletivas. O essencial da definição reside no significado
do adjetivo “singular”. A atenção deve convergir para ele. Afinal, ele marca a
ideia de que lidamos com uma modalidade específica de mobilização humana:
o sagrado emerge da busca ou expectativa pela resposta social eficaz. Essa é a
premissa, por exemplo, que funda o conceito de “mana”, emprestado de Hubert
e Mauss por Durkheim e inscrito no cerne da natureza atribuída ao sagrado: “o
mana é a força por excelência, a eficácia verdadeira das coisas, que corrobora sua
ação mecânica sem aniquilá-la. É ele que faz com que a rede apanhe, que a casa
seja sólida [...]. No campo, ele é a fertilidade; nos remédios, ele é a virtude salutar
ou mortal.” (HUBERT; MAUSS, 1902-1903, p. 111).
À primeira vista, essa definição que fala em “mana” pode soar
esotérica ou até de ordem emocional, como advertiram Lévi-Strauss (2002, p.
11-45) e Smith (2002, p. 188-211). Mas não nos acomodemos à superfície do
pensamento. Pois, em seu núcleo, a definição contém uma valiosa proposição:
o sagrado é a participação simbólica exigente, aquela movida para encontrar
a prática mais forte, capaz de restaurar a unidade que se vive como perdida,
ameaçada ou cindida. Essa participação pode ser exclusivamente simbólica,
mas a eficácia almejada deve produzir resultados necessariamente sociais. O
sagrado não é estático, inato ou definitivo, uma vez que deriva da busca por
referenciais simbólicos plenos, que proporcionem experiências de segurança em

103
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

face das tensões e dos riscos impostos pela vida em sociedade. O raciocínio que
se desenha é este: existindo no tempo, a realidade social muda sem cessar; as
mudanças trazem novos riscos e tensões; inéditas, as instabilidades exigem do
sagrado outras respostas.
O acionamento do sagrado é um fenômeno histórico, pois decorre de
combinações mutáveis – porque finitas – entre pressões sociais e possibilidades
simbólicas. Ele é, como frisou Roger Caillois, a resposta eficaz que o devir social
torna reversível, movente. Como propriedade de objetos, seres, lugares ou
períodos, alcança a estabilidade sem escapar à exigência de transformação: “nada
há que não possa tornar-se sua sede e revestir-se assim aos olhos do indivíduo
ou da coletividade de um prestígio sem igual. Nada há, igualmente, que não
possa ver-se desapossado dele. É uma qualidade que as coisas não possuem por
si mesmas.” (CAILLOIS, 1988, p. 20).
Insistamos no argumento: aquilo que é vivido como consagrado
estimula a conduta humana de maneira drástica, como se a eletrificasse. Por meio
da busca ou do temor da eficácia última, o sagrado é experimentado como força
decisiva, uma descarga de pavor e veneração: “é do sagrado, com efeito, que o
crente espera todo o socorro e todo o êxito. Sob a sua forma elementar, o sagrado
representa, acima de tudo, uma energia perigosa, incompreensível, arduamente
manejável, eminentemente eficaz.” (CAILLOIS, 1988, p. 23). Se buscarmos
outra via de conceituação, como a que foi delineada por Rudolf Otto (2007),
reencontraremos o aspecto essencial: o sagrado – que o autor preferiu designar
de numinoso – é o despertar do estado psíquico para a presença da ação eficaz.
A formação luterana levou Otto a ver nessa experiência a origem do sentimento
de criatura. Isto é, a nascente desse assombro que é para o homem a sensação de
estar cercado por uma realidade misteriosa e absoluta. O numinoso repercute a
emoção implacável de perceber-se inferior por inteiro, dependente até a medula
de algo maior, supremo, majestático. Porém, Otto (2007, p. 55) também ressalta
que consagrar é sentir o contato com uma “energia, simbolicamente expressada
na vivacidade, paixão, vontade, força, comoção, excitação, atividade, gana.
Trata-se daquele aspecto que, ao ser experimentado, aciona a psique da pessoa,
nela desperta o zelo”. Parece razoável dizer que o teólogo luterano descreveu
um estado psicológico provocado pela experiência de travar contato com algo
capaz de cortar e separar a linha da vida de uma vez por todas: uma ação que os
homens acreditam – e vivem como – eficaz em termos de vida e morte.
Sacralizar não pressupõe, obrigatoriamente, crer em uma divindade
ou na alma. É um processo que pode ocorrer em desacordo com os limites do
religioso – conforme sustentou Franco Ferrarotti (1983) no instigante Il paradosso

104
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

del sacro.44 Sua demarcação depende de outro fator, incomensuravelmente


mais amplo: o engajamento dos homens no empirismo social, entendido
simplesmente como a busca por respostas práticas – ainda que enunciadas pelo
simbolismo de origens fabulosas e misteriosamente inacessíveis. A eclosão do
sagrado aparentemente pressupõe o impulso para – ou tão só a acolhida de – um
desejo de chegar a resultados efetivos para a vida social em meio às pressões e
ambivalências da realidade (GIRARD, 1990, p. 45-47).
O sagrado é a transfiguração simbólica da ação socialmente eficaz. Eis
tudo o que pretendemos reter da teoria de Durkheim. Requisitamos para nossa
tentativa de explicação apenas esse axioma sociológico elementar, deixando
de fora aspectos mais complexos e, ao mesmo tempo, mais representativos do
pensamento formulado por um dos fundadores da sociologia atual. O caráter
totalizante do conceito de religião; a imagem das crenças como categorias
coletivas dotadas de uma obrigatoriedade inerente que arrebata as consciências
individuais como uma força externa; a dicotomia entre sagrado e profano
e – princípio do qual mantemos maior distância – o primado das formas de
solidariedade na constituição dos grupos sociais: todos esses princípios teóricos
são deixados de lado em nossa análise. Retendo apenas o postulado elementar,
voltemos nossas atenções para o Papado medieval.

O sagrado gregoriano

Entre as décadas 1050 e 1080, oriundos de paisagens variadas, forçados


ao contato com diversas outras regiões, os dirigentes eclesiásticos chamados
gregorianos partilhavam a realidade de uma política problemática, angustiante.
Lidando com a divergência de suas próprias opiniões, pelejando com o consenso
quebradiço que nascia em meio à variedade de suas trajetórias de vida, todos
enfrentavam a difícil situação de defender uma Igreja divorciada de suas antigas
bases materiais. Pois o Papado era uma instituição capaz de exercer uma
dominação social severamente limitada, em razão da hostilidade declarada nos
círculos aristocráticos vizinhos.
Desde 1046, quando o bispado romano passou a ser ocupado por
uma sucessão de líderes estranhos às forças senhoriais do Lácio, a Sé apostólica
tornou-se alvo de intensa oposição local. Valendo-se do terror das espadas e da
influência da parentela, numerosas linhagens peninsulares investiram contra o
patrimônio episcopal: assumiram o controle de terras, estradas, pontes e igrejas;
retiveram rendas vitais como os dízimos; sustentaram a obstinação de bispos

44 Ver também: Melotti e Solivetti (2009).


105
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

e abades; fisgaram o exercício de magistraturas urbanas; fomentaram levantes,


emboscadas, sequestros contra os papas e seus séquitos.
O tempo agravou o conflito. À medida que outros grupos políticos
envolveram-se, as disputas alastraram-se pela península até transpor os Alpes. O
Papado, é bem verdade, conquistava outros aliados; mas multiplicava as fileiras
de seus adversários – quando não produzia antagonistas numa velocidade
ainda maior. Em diversos momentos, como em 1061-1063 e 1081-1085 – ou
depois, em 1111-1117 –, os conflitos alcançaram a dimensão de catástrofes,
com as rivalidades aristocráticas dividindo a unidade eclesiástica em partidos
inconciliáveis: os “cismas” motivados pelo controle da autoridade pontifícia
tornaram-se não apenas frequentes, mas penosamente demorados. As disputas
arrastavam-se por anos, o que significava um alto dispêndio aos patrimônios das
famílias envolvidas. Muitas delas foram à bancarrota. Durante a segunda metade
do século XI, os papas administraram a fragilidade material (RUST, 2011a).
Essa dura realidade selou o modo como os eclesiásticos vinculados
ao pontificado de Gregório VII concebiam e relembravam o lugar do sagrado
em suas vidas. Trata-se de um conjunto de experiências religiosas, específicas e
recorrentes. Eis alguns aspectos que a distinguiram.
Em primeiro lugar, a combatividade. As relações gregorianas com a
sacralidade eram experiências de busca por soluções eficazes para os conflitos
protagonizados pelo bispo de Roma, especialmente os enfretamentos com o
Império. Em muitos casos, tratava-se de um engajamento literário. Ao relatar
as punições enviadas pelos céus contra os adversários do Papado, autores como
Bernoldo e Paulo de Bernried buscavam na memória escrita a arma capaz de
conquistar a adesão de seus contemporâneos. O sagrado gregoriano é uma
arena de conflitos, onde vemos um espetáculo narrativo de punições, golpes,
retaliações, dor e, com alguma frequência, sofrimento e morte.
Todavia, o tom aguerrido que caracteriza seus relatos sobre milagres
punitivos ou visões sobre a danação clerical não deve ser confundido com
algum belicismo genérico de uma suposta “psicologia coletiva da Idade Média”
(FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 221-244; ASTON, 1993; LE GOFF, 1994, p. 101-
104). O sentido prioritário daqueles textos não era o de afirmar o poder dos
homens da Igreja sobre o restante da sociedade – como insiste a perspectiva
atrelada à ideia do belicismo como “mentalidade”. O plano narrativo pouco
assemelha-se à fala de uma identidade clerical de grande envergadura coletiva,
supostamente empenhada em ensinar aos laicos e heréticos a superioridade “da
cultura clerical” por meio de exemplos terrivelmente moralizantes.
É preciso cuidado com o tom triunfal daquelas histórias. Ele não parece

106
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

ressoar uma hegemonia social. Brilha na escrita para ofuscar as marcas da derrota:
sua função é a de reluzir para negar o fracasso. A combatividade gregoriana surge
dominada por um cenário mais fragmentado que o de uma “ideologia da ordem
clerical”, perpassada de ponta a ponta por enfrentamentos imediatos: as batalhas
que a constituem possuem um feitio de rivalidades internas às elites. Sua lógica
está repleta de tensões internobiliárquicas, talvez mesmo intranobiliárquicas, e
apenas secundariamente interclassistas. As histórias que lhe dão vida dramatizam
o universo de uma elite eclesiástica dividida por antagonismos: tal é o caso da
visão atribuída à santa Hérluca, cujo tema é a desobediência do clero diocesano às
decisões do papa. Quando alargamos o escopo de observação, constatamos que
os registros documentais vão além e apresentam cisões em âmbito ainda menor,
a própria cúpula papal. As divergências entre Pedro Damião e Hildebrando a
respeito dos vallombrosianos retratam uma esfera eclesial em que a produção do
consenso esbarrava em graves dificuldades.
Antes de delinear um empenho coletivo para defender a unidade
da Igreja contra as pressões de grupos externos, as narrativas do sagrado
gregoriano testemunham a duradoura realidade de um bispado trespassado por
muitas rivalidades domésticas e pressionado pela concorrência entre facções.
A combatividade resultava de uma política descentrada, em que o poder de
decisão era orientado para interesses locais. As punições divinas relatadas na
documentação expressam o desejo dos gregorianos de encontrar uma solução
eficaz para as desgastantes divergências e hostilidades presentes no interior da
própria elite clerical. Lembrar que a justiça divina nunca falhou em redimir os
homens leais a Gregório e em corrigir seus opositores, por vezes cobrando-lhes
a própria vida, significava preservar uma memória capaz de orientar a adesão
política. As narrativas demonstravam que Deus recompensava quem lutava e
resistia pelo papa.
Esses registros não eram únicos, tampouco excepcionais. Vários
aspectos narrativos que os compunham vinham de séculos antes e podem ser
encontrados numa constelação de relatos espalhados pela imensa geografia do
Ocidente cristão. Não se trata, portanto, de insinuar uma ruptura histórica como
o “nascimento” de uma nova espécie de sensibilidade religiosa. O que propomos
é outra ideia. Os gregorianos distinguiram seu olhar a respeito do sagrado porque
a fragilizada posição da Igreja romana pesou sobre suas experiências, refratando
o modo como vivenciavam as tradições cristãs. Os milagres punitivos, como o
relatado a respeito do bispo de Utrecht, não eram uma novidade do século XI.
Porém, o sentido que lhes foi atribuído era singular: relembrar desfechos que
dessem por encerradas as disputas aristocráticas provocadas pelo poder papal.

107
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

O argumento talvez ganhe força se relembrarmos as santidades


laicas de Cêncio e Erlembaldo. Os milagres relatados neutralizavam a ameaça
que pairava sobre duas alianças vitais para o Papado. As mortes do prefeito
romano e do cavaleiro milanês abalavam a já frágil estabilidade política das
ações pontifícias. A interrupção violenta de duas vidas sobre as quais a palavra
papal estava diretamente empenhada ameaçava-a de dissolução. Não se tratava
apenas de aliados, mas do significado maior que encarnavam. Destacados como
os sustentáculos da autoridade apostólica em cidades que conviviam com cismas
- isto é, com uma ordem eclesiástica cindida -, aqueles homens deveriam ser
lembrados como garantias vivas de que a verdade e a justiça estavam do lado
de Gregório VII. Suas mortes, porém, eram episódios desgastantes, capazes de
perturbar a segurança e a confiança no interior da cúpula romana. O sagrado
revertia este significado. Sacralizado, o desaparecimento brutal daqueles homens
foi recolocado como exemplo sublime de martírio, da entrega total que se faz
pela causa verdadeira. A sacralização de suas mortes era uma resposta simbólica
capaz de esconjurar o fantasma da derrota e tranquilizar as consciências como
prova de o papa agia segundo a vontade dos céus.
O risco de dispersão política que rondava os gregorianos forçou uma
abertura de fronteiras da santidade. Eles moveram o sagrado para incluir aí
leais combatentes da causa papal: laicos envolvidos em conturbados conflitos
contra outros grupos clericais. A energia empenhada para celebrar o martírio
e os milagres de Cêncio e de Erlembaldo apresenta um Papado diferente
daquele que, “no século XI, teria rebaixado a condição de laico, [...] sob uma
rígida regulamentação de esferas de atividades na sociedade cristã. Segundo
esta lógica, restaria, fundamentalmente, uma única ordem, a dos clérigos e
sua exclusiva posse do sagrado” (IOGNA-PRATT, 2002, p. 17-18). Aquela
santidade não retratava uma sólida hegemonia cultural. Era mais uma tentativa
de salvar uma instituição da ruína política. A combatividade que os gregorianos
expressaram no sagrado – com seus diversos episódios simbólicos de coerção,
castigos e vinganças – exigia flexibilidade para negociar a inclusão dos aliados
que surgiam no caminho de suas lutas senhoriais, por mais inesperado que fosse
seu perfil. A santidade cultuada pelos gregorianos desafia a lógica separatista
atribuída à reforma pelos historiadores: onde está a rigidez do protagonismo
religioso exclusivamente clerical? O que nos leva à próxima característica.
Em segundo lugar, um sentido político prepondera sobre esses
relatos, sobretudo os dedicados à memória de milagres papais. A lembrança
de acontecimentos prodigiosos era um acerto de contas com as derrotas
institucionais. O sagrado foi uma resposta à perda dos meios políticos e materiais

108
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

necessários para ser reconhecido como autoridade. Vejamos.


O caso da milagrosa intervenção de Gregório VII no incêndio provocado
pelas tropas de Henrique IV ilustra o argumento de maneira sintomática. Na
trama do relato, o recuo das chamas perante o gesto do sinal da cruz provava
que Deus permanecia do lado do papa. Todavia, a prova veio no limiar do
aniquilamento. Quando ela ocorreu, na própria história, a resistência romana
era dada como perdida, prestes a cair na armadilha imperial. A permanência dos
citadinos na defesa do papa estava por um fio. A exaltação espiritual do pontífice
ocupa um lugar secundário, ou melhor, a narrativa coloca-a a serviço de outro
propósito: é a salvação da obediência dos romanos que justifica a interferência
divina. Crer no milagre supostamente ocorrido na Quaresma de 1083 era uma
forma de declarar o apoio ao papa na disputa travada com o imperador pela
adesão do “clero e povo romano” (cleros et populus romanus).
Luta longa, sinuosa, repleta de retrocessos para ambos os lados.
Engana-se quem suspeita que essa imagem derive de alguma fonte imperial,
como se tal caracterização fosse mais prejudicial a Gregório que a Henrique
IV. Na realidade, ela pode ser encontrada em um documento como o Liber ad
Amicum, composto por Bonizo de Sutri, cujo fervor pela defesa de Gregório
transformou-o em “um escritor sem escrúpulos para falsificar fatos que não
serviam à sua opinião” (POOLE, 1917, p. 12). Por um lado, o imperador pelejava
com o fracasso. Como quando tentou “ganhar o favor do povo” ao jurar que
aceitava receber a coroa das mãos de Gregório. Embora não tenha resultado
em uma posição mais favorável, a promessa levou “clérigos e laicos a implorar
ao papa, em meio a um dilúvio de lágrimas, que tivesse piedade de sua terra
nativa, quase em ruínas”.45 Por outro lado, o desgaste do pontífice não era menor.
Quando lançou mão das rendas destinadas aos altares e aos pobres para custear
a defesa urbana contra o cerco imperial, Gregório encontrou viva indignação
entre os cardeais. Alguns deles, entre os quais aliados proeminentes, foram até
o campo inimigo e protestaram junto ao rei (ZAFARANA, 1966, p. 399-403;
COWDREY, 1996, p. 153).
A história do milagroso combate ao incêndio está carregada deste
aspecto: mantida a duras penas, equilibrada no limite entre a adesão e a sedição,
a legitimidade oferecida pelos romanos era preservada graças a esforços
excepcionais, extraordinários. Ali estava uma obediência que balançava, quase
além do alcance humano.

45 BONIZO DE SUTRI. Liber ad Amicum, MGH SS 9, p. 630- 638. No verão de 1083, Henrique
IV firmou o pacto secreto com uma expressiva parcela da aristocracia romana pelo qual se
comprometia a ser coroado por Gregório ou por outro papa escolhido com seu conselho.
109
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

São políticos os referenciais históricos que definem o sentido


predominante daquela história, o qual dificilmente será compreendido em sua
especificidade se for tratado como um produto de redes e interações inteiramente
simbólicas. Perderíamos de vista características importantes do sagrado
reverenciado pelos gregorianos se o concebêssemos, por exemplo, segundo a
definição de religião proposta pelo célebre antropólogo Clifford Geertz (1989,
p. 104-105): “um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas [...]
disposições e motivações nos homens [...], vestindo essas concepções com tal aura
de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas”.
Nos casos aqui debatidos, as crenças na sacralidade eram impulsionadas por
fatos políticos, por dilemas envolvendo a legitimidade do poder papal. Nelas, os
sujeitos históricos encontravam possibilidades para posicionar-se a respeito de
acontecimentos impostos por relações de poder que abrangiam a obediência e a
resistência, o consenso e o dissenso.
A produção da crença – e das tais “disposições e motivações” de que fala
Geertz – não deve ser reduzida a induções simbólicas. O comportamento religioso
não cabe dentro da imagem de experiências estruturadas por símbolos, como se
as finalidades implicadas no envolvimento social resultassem de significados que,
por um movimento autônomo, condensam-se e ativam o engajamento (ASAD,
1993; SCHILBRACK, 2005). Como “modelo interpretativo” da existência
coletiva, o sagrado gregoriano não era capaz de totalizar as relações cotidianas, já
que era constantemente sacudido pelas guinadas e rupturas das relações de poder.
No caso da memória criada em redor da figura de Gregório VII, essa produção
decorria, em primeiro lugar, de disposições políticas que atingiam os sujeitos
sociais como restrições ou vantagens concretas, pressionando a inteligibilidade
do mundo. A fragilidade política do Papado cultivava a intensidade do apelo ao
sagrado.
Para o estudo do poder papal do século XI, a fórmula que vê a “esfera
política como província do religioso” (LE GOFF, 1990, p. 220) mostra-se
reducionista. Ela encoraja uma visão da história como movimento pelo qual as
ações simbólicas capturam e domesticam as ocorrências factuais, incluindo-as
em um horizonte global de sentidos pré-configurados. O mundo dos símbolos,
neste caso, não tem apenas uma relativa autonomia sociológica – premissa
com a qual concordamos, diga-se logo. Ele ganha uma expressiva preexistência
aos eventos em si. Sob tal perspectiva, deixaríamos escapar aquele que talvez
seja o mais importante aspecto dos casos analisados: as clivagens políticas
engendravam dimensões simbólicas próprias, que alteraram os “modelos
culturais” recebidos da tradição. A política pontifícia movia os referenciais então
existentes de sacralidade.
110
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

Por fim, esse sagrado gregoriano era utópico. Seus relatos projetavam
inversões de estados de força desfavoráveis ao exercício do poder pontifício.
As histórias prodigiosas contadas por Bernoldo de Constance e por Paulo de
Bernried combinavam as duas atitudes de uma razão utópica: a negação do
momento vivido e a promessa de sua superação. Não se tratava de mera fantasia,
de imaginar uma situação irrealizável, a respeito da qual só se poderia especular.
Utópico, aqui, não significa escapismo ou evasão do real. Utilizamos o termo para
dizer precisamente o contrário: a formulação de um desejo aplicado de mudar
as relações coletivas. As narrativas recorriam ao passado para reposicionar
simbolicamente o presente vivenciado pelos autores. Uma vez assegurada a
memória de que as derrotas não foram definitivas, o envolvimento político dos
contemporâneos poderia ser resgatado para novos rumos.
Insistamos: o adjetivo “utópico” não deve remeter, aqui, a uma leitura
presa a sua raiz etimológica, a ideia grega de “não lugar”. Pois designa, acima
de tudo, o empenho simbólico de escritos para reinstalar a Igreja de Roma em
um novo lugar político, no qual a certeza de que as decisões e ações do papa
haviam sido eficazes encorajaria a aceitação e a obediência. Sacamos essa palavra
para destacar como os relatos apresentavam um Papado capaz de ultrapassar
sua condição material: a escassez de recursos, a sufocante resistência senhorial,
os trágicos desastres militares. O profundo sentido existencial que carregava
as histórias de visões e milagres era capaz de persuadir leitores e ouvintes,
convencendo-os a vislumbrar uma realidade vitoriosa por trás da fragilidade
política. Assim, os gregorianos encontraram no sagrado um poderoso estímulo
de mobilização, um recurso privilegiado para angariar o apoio de um bispado
continuamente encurralado por severas restrições de meios de ação. Por meio
daquelas histórias, era possível contestar com eficácia as amargas derrotas
sofridas pela cúpula eclesiástica que defendiam, pois, a seus olhos, a realidade
era outra.
O discurso gregoriano não era soberano. Repleto de apelos por
uma certeza maior que o declínio, quase se pode ouvi-lo ressoar como toque
de recolher para recompor. Sua narrativa é atravessada pela tensão da espera.
Espera pela superação daqueles desfechos trágicos. Espera alimentada pela
certeza dos autores de que a justa autoridade – a pontifícia –, redimida pelos céus,
ressurgiria içada muito acima das pretensões de seus inimigos. As narrativas
visam reverter certas posições, mais que reforçá-las. Desse modo, é preciso
redobrar os cuidados quando se pretende ler esses registros documentais como
uma “ideologia religiosa”. Tal seria o caso, por exemplo, se conduzíssemos seu
exame segundo as coordenadas teóricas de um autor como Maurice Godelier.

111
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Vejamos.
Segundo o antropólogo francês, “o sagrado é certo tipo de relação
dos homens com a origem das coisas tal que, nessa relação, os homens reais
desaparecem e em seu lugar aparecem seus duplos, os homens imaginários”
(GODELIER, 2001, p. 259). Com base nesse enunciado, o pensamento de
Godelier ramifica-se em muitas direções, gerando uma grande variedade de
desdobramentos e implicações. Porém, tudo depende desta ideia fundamental:
o sagrado é um mecanismo cultural de inversão das relações dos homens com
o mundo. Ao consagrar objetos, seres ou lugares, os sujeitos sociais encobrem o
funcionamento real do que passam a venerar. A produção da crença envolve as
relações sociais de opacidade.
Admirando ou temendo, os homens convertem-se em estrangeiros
da própria humanidade. Pois separam-se de sua própria participação no
aparecimento das coisas e dos fenômenos que consideram divinos, especiais ou
só incomumente poderosos. Do ponto de vista do autor d’O enigma do dom,
sacralizar é recalcar para além da consciência o papel ativo dos homens nas
origens da sociedade: “o sagrado rouba à consciência coletiva e individual algo
do conteúdo das relações sociais.” (GODELIER, 2001, p. 261). O homem deixa
de reconhecer-se como coautor da vida coletiva.
A fórmula é requintada, mas não é nova. O sagrado aliena aquele que
crê ao apagar a presença humana na origem das transformações sociais. Aplicada
às relações de poder, a conclusão remete aos argumentos de Marx e Engels em A
ideologia alemã (2007): como repertório de “falsas impressões” sobre o mundo,
o sagrado desmobiliza, imobiliza. Sua finalidade, por conseguinte, é conservar as
posições sociais, mantendo a desigualdade existente entre elas. Já que “deixa nas
sombras, recalcada em pontos cegos toda uma parte da realidade” (GODELIER,
2001, p. 268-269), o sagrado legitima correlações de forças já estabelecidas.
Assegura o consentimento de quem sofre, mas não desvenda a realidade.
É aí que a conceituação parece não calhar. Os relatos prodigiosos dos
gregorianos não parecem “roubar algo do conteúdo da sociedade”: eles acentuam-
no, potencializam-no precisamente por reabrir as disputas pela legitimidade,
pelo consenso e pela persuasão. O seu caso não era o de homens que “podiam se
reencontrar no sagrado, mas não podiam mais nele reconhecer-se, reconhecer-
se como autor, fabricante, em suma, origem” (GODELIER, 2001, p. 269).46 Sem
dúvida, em suas narrativas, as origens da mudança passavam a ser de outra
ordem, divina ou infernal. Mas o desaparecimento do elemento humano dessa
origem não significava, necessariamente, a diminuição de sua presença ativa no

46 Ver igualmente Godelier (2007).


112
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

curso dos acontecimentos – como quis o antropólogo francês. A transfiguração


da origem das coisas não é uma sentença de imobilização política dos sujeitos
sociais, como se ela congelasse sua capacidade de apropriação simbólica e, em
especial, imobilizasse seu engajamento social. Godelier percebeu no sagrado
crenças que reforçam superioridades sociais ao camuflá-las. Ao crer no sagrado,
os partidários de Gregório VII encontraram uma plataforma de resistência e,
nela, novas possibilidades de engajamento contra a derrocada política. No
sagrado estava a crítica ao estado de coisas circundante e a promessa de sua
superação.
A expressão “sagrado gregoriano” faz sentido na medida em que realça
uma Igreja descentrada, tomada por particularidades, fragilizada por tensões
internas à elite, propensa a negociar a separação entre clérigos e laicos e dirigida,
em momentos decisivos, para uma ortodoxia repleta de riscos e desacordos. Essa
incursão conceitual expõe as incongruências de definições generalistas, como as
que insistem em colocar o poder dos papas como uma instância capaz de definir
os horizontes globais dos significados religiosos vivenciados na sociedade
medieval. Essa expressão empresta um tom de ironia a essa conclusão. Afinal, o
“sagrado gregoriano”, cuja aparência é a de um nome que reforça a unidade da
política papal – como se nos levasse a ver “a” unidade religiosa da Cúria romana
–, age em sentido oposto. Desmistifica elementos das leituras canonizadas
por certas fórmulas historiográficas, que vão da antiga “Reforma Gregoriana”
e chegam à recente “Revolução Papal”, caracterizando o Papado como eixo de
uma centralização não só da vida institucional das igrejas cristãs, mas da própria
cultura ocidental no século XI.

113
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

Parte IV
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

A excomunhão do rei:
o direito canônico e a oralidade

Reformadora ou revolucionária, a história do Papado entre 1050 e 1150


é explicada pela ascensão de uma cultura jurídica definida pela descoberta da lei
escrita (GILCHRIST, 1970, p. 7). Impregnadas pela percepção trágica de viver em
uma época de pecados graves e cada vez mais generalizados (FOULON, 2008, p.
595), gerações de integrantes da Cúria romana teriam recorrido a uma eficácia
punitiva proporcionada apenas por normas escritas. A política papal teria sido
um empreendimento de culpabilização coletiva. A percepção das circunstâncias
e dos efeitos dos pecados teria sido aguçada pela religiosidade reformadora,
impulsionando um vasto empenho de classificação e criminalização das falhas
coletivas. A inquietação provocada por essa consciência renovada acerca do
agravamento dos vícios no interior da Igreja teria exigido medidas drásticas.
Para reedificar a ordem eclesial conforme desejavam, os gregorianos não
poderiam tomar suas decisões à maneira feudal: confiando na memória criada
pela tradição oral e pelos costumes.
A oralidade e o costume descentralizavam. A lei consuetudinária,
segundo a feliz expressão cunhada por Esther Cohen (1993, p. 8), “não devia sua
autoridade a governante algum”. Sua aplicação não pertencia a clérigos, regentes
ou eruditos, e sim aos laicos cujas vozes ecoavam experiências comunitárias. O
fundamento último do enlace gerado por essa forma de lei repousava sobre a
palavra falada e o gesto. Seu predomínio cultural acarretava implicações políticas:
o triunfo do âmbito local sobre a autoridade. A liturgia, a educação, a moral
clerical, os comportamentos laicos, todos eram regidos por hábitos e valores
locais. Era assim que as práticas mundanas infiltravam-se entre o clero. Todavia,
o governo papal instituído por volta de 1050 teria superado essa fragmentação
ao encontrar um meio para restabelecer a unidade social da Igreja: convertê-la
em uma gigantesca comunidade textual irradiada a partir de Roma.
Desde então, cada questão trazida à alçada romana tornava-se
um litígio vinculado a um referencial textual. Quando uma audiência papal
pronunciava-se sobre conflitos entre monges e bispos pela prerrogativa de
dispor dos bens monásticos, ela o fazia por escrito e o decreto tornava-se modelo
para arbitrar todos os casos semelhantes. Quando esclarecia a respeito do poder
deliberativo dos reis nos procedimentos da eleição episcopal, o pontífice defendia
uma verdade que podia ser verificada em algum manuscrito da era carolíngia
ou mesmo anterior. Para punir clérigos que violavam o celibato, a autoridade
117
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

petrina redigia o princípio e fazia-o ecoar pelos cânones de concílios e sínodos.


A decisão tomada a respeito de um parentesco inaceitável para um casamento
era registrada em texto solene e fixada como memória a ser resgatada toda vez
que um nobre se arriscasse em núpcias suspeitas de pecado.
Decisões tomadas no interior da Península Italiana teriam ecoado por
todo o Ocidente como interferências em larga escala no cotidiano de populações
esparramadas por um continente de paisagens (ASCHERI, 2013, p. 49). O
argumento desenha na mente do leitor um quadro conhecido. Por toda parte,
bispos e abades foram surpreendidos por exigências e sanções que sufocavam
sua autonomia e separavam-nos dos interesses laicos. Alijados de seus privilégios
locais, eles deveriam aderir incondicionalmente às leis anunciadas como uma
espécie de constituição da ordo clericorum, a ordem clerical. A ação reformadora
era a força edificadora de um aparato eclesiástico transregional unido pela
lealdade aos textos promulgados em Roma.
O Papado teria dotado a realidade de índices escritos. Seu maior
poder teria sido o de obter o reconhecimento social para a nova eficiência
simbólica dos textos, convertendo-os em principal parâmetro de orientação dos
comportamentos coletivos. Estaria em curso uma transformação jurídica de
grande envergadura histórica, “que pode ser vista como um desposar definitivo
das formas escritas da lei e uma renúncia às abordagens anteriores que dependiam
extensivamente da contínua adaptação das tradições orais” (LANDAU, 2004, p.
113; KARRAS; KAYE; MATTER, 2008, p. 4). A letra teria substituído a voz como
veículo da verdade revelada. No interior da cúpula romana, o sagrado deixava de
ser vivido, acima de tudo, como um mundo falado (MELVE, 2007, p. 70).
Será?

Papa, com a graça dos textos

Os indícios de um crescimento da atividade escrita no exercício


do poder pontifício durante a segunda metade do século XI são, de fato,
abundantes. A começar pelo Dictatus Papae, cujo texto relacionou os princípios
fundamentais da autoridade apostólica segundo o entendimento de Gregório
VII (1020?-1085). Há ali uma inequívoca declaração sobre a importância dos
registros textuais para a manutenção da ordem nos quadros da Igreja: “que
nenhum capítulo e nenhum livro seja considerado canônico sem sua [ou seja,
do papa] autorizada permissão.”47

47 “Quod nullum capitulum nullusque liber canonicus habeatur absque illius auctoritate.”
(GREGÓRIO VII. Reg. 2: 55a. MGH. Epp. sel. 1: 205).
118
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

Muitas passagens documentais apontam para uma valorização do


letramento. Ao escrever o Micrologus de Ecclesiasticis Observationibus, em
1086, Bernoldo de Constance (1054-1100) lembrava que o falecido Gregório
sonhava ser um erudito desde a infância. Quando garoto, em Roma, o futuro
papa teria estudado “todas as tradições apostólicas” e submetido suas conclusões
a minucioso exame.48 Hildebrando era lembrado como homem de letras
não somente pelo monge de Constance. Em 1059, quando relatou o êxito de
uma viagem como legado a Milão, Pedro Damião (1007-1072?) agradeceu ao
arquidiácono um conselho que julgou decisivo:

[...] tu sabiamente, após pesar com cuidado muitas outras


questões e estender uma caridade que supera todas as coisas, me
solicitou que percorresse os decretos e as vidas dos pontífices
romanos para que extraísse e reunisse em pequeno volume de
um novo estilo de compilações tudo que parecesse se referir à
autoridade da Santa Sé de modo especial.49

O próprio Damião pode ser considerado um símbolo do modo como


os integrantes do Papado atrelavam a força da autoridade ao domínio da cultura
escrita. Ao escrever a vida de São Romualdo (956-1027), o cardeal narrou um
episódio em que o eremita, fundador da Ordem dos Camaldulenses, profere
uma frase característica da cultura clerical abrigada em Roma após a década de
1040. Eis a cena.
Buscando um lugar onde pudesse cultivar “frutos para as almas”,
Romualdo – narra Damião – mudou-se para o gélido Val di Castro. Isolado por
florestas e montanhas, o santo construiu pequenas celas onde ele e seus discípulos
oravam e pranteavam como serafins pela salvação dos homens. Entretanto,
seu ardor angelical despertou a fúria do clero local. Romualdo reprovava
publicamente os sacerdotes das proximidades. Todos, ele afirmava, haviam sido
ordenados em troca de dinheiro e deveriam ser considerados hereges, a não
ser que renunciassem. Ao ouvir os rumores sobre as perturbadoras pregações

48 “Reverendae inquam memoriae Gregorium Papam imposuit qui sub decem suis antecessoribus,
a puero Rome nutritus & eruditus, omnes Apostolicas traditiones diligentissime investigavit
investigatas studiosissime in actum referre curavit.” (BERNOLDO DE CONSTANCE. Micrologus
De Ecclesiasticis Observationibus, cap. 14, p. 37).

49 “Hoc tu suptiliter, ut et alia multa perpendens, frequenter a me karitate, quae superat omnia,
postulasti, ut Romanorum pontificum decreta vel gesta percurrens quicquid apostolicae sedis
auctoritati spetialiter competere videretur, hinc inde curiosus excerperem, atque in parvi voluminis
unionem nova compilationis arte conflarem.” PEDRO DAMIÃO. Die Briefe 65. MGH Briefe d. dt.
Kaiserzeit 4:2, p. 229.
119
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

do eremita, os clérigos tramaram um plano para matá-lo. Mas antes que a


oportunidade letal surgisse, os dois lados encontraram-se. Sem vacilar, o santo
encarou-os e encurralou-os com uma frase desafiadora: “tragam-me os livros
dos cânones e provem pelo testemunho de suas próprias páginas se as coisas que
digo são verdade”. Depois de examinar os livros cuidadosamente, os prelados
reconheceram seu crime, o qual lamentaram profundamente.50 Os textos teriam
reeducado aquelas mentes corrompidas, gravando nas consciências sacerdotais
uma lição definitiva sobre a retidão necessária ao cuidado das almas.
Como o relato de Pedro Damião, a história do Papado “reformador”
está repleta de episódios nos quais a Cúria vale-se das palavras escritas para fazer
ver o pecado. Grande parte deles envolve os concílios anualmente realizados em
Roma, durante a Quaresma. Se em 1075, por exemplo, os 50 bispos e uma multidão
de presbíteros e abades51 reunidos na majestosa basílica de Latrão proibiram a
investidura laica foi graças ao “muito ilustre empenho do papa Gregório para
apaziguar [...] as presunçosas crueldades de inumeráveis escândalos da Santa
Madre Igreja e [...] recordar as admiráveis constituições canônicas e dos santos
padres” – segundo o cronista Bertholdo.52
O biógrafo papal, Paulo de Bernried, lembrava a excomunhão ditada
nesse mesmo concílio contra os integrantes do clero, que, “conscientemente,
mantinham-se desobedientes aos julgamentos sinodais dos santos Padres e seus
decretos”.53 Essa e outras decisões proclamadas na assembleia foram pessoalmente
enviadas por Gregório VII para as terras imperiais. Seu principal destinatário
era Sigfried, o arcebispo responsável pela enorme malha de igrejas subordinadas

50 “[...] precipue seculares clericos qui per pecuniam ordinati fuerant, durissima severitate
corripiebat, et eos, nisi ordinem sponte desererent, omnino damnabiles et hereticos
asserebat. Qui novam rem audientes, occidere illum moliti sunt. Per totam namque
illam monarchiam usque ad Romualdi tempora, vulgata consuetudine, vix quisquam
noverat symoniacam heresem esse peccatum. Qui dixit eis: ‘Canonum mihi libros afferte,
et utrum vera sint quę dico, vestris attestantibus paginis comprobate’. Quibus itaque
diligenter inspectis, et crimen agnoscunt et errata deplangunt.” (PEDRO DAMIÃO. Vita
beati Romualdi, p. 75).

51 HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 435.

52 “Synodus Romae [...] a papa Gregorius summo conatu colligitur, ob sedandas quomodolibet tot sine
numero sanctae matris aecclesiae scandalorum presumptuosas inmanitates, (...) rememorandas
observabiles canonicasque sanctorum patrum constitutiones”. (BERTHOLDO. Annales. MGH SS
5: 277).

53 “Sententia anathematis data est in omnes simoniacos et nocolaitas haereticos, qui in erroris sui
secta indurati, synodalibus Sanctorum Patrum definitionibus et decretalibus eorum statuis scienter
inobedientes [...].” PAULO DE BERNRIED. S. Gregorii VII papae vita. PL, vol. 148, p. 55.
120
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

à cidade de Mainz. Como metropolitano, afirmou o pontífice, cabia a Sigfried


incutir obediência perante os decretos romanos nos espíritos dos bispos locais,
embora estes fossem muitos e dispersos.
A obrigação imputada ao arcebispo era um fardo. Seu cumprimento
esbarraria na falta de auxiliares, em longas e desgastantes viagens, na resistência
do clero em reconhecer uma autoridade distante. O papa sabia disso. Por isso,
comunicou-a por meio de uma “carta especial, selada com nosso selo, para
que possas mais segura e corajosamente obedecer nossas ordens”.54 Era preciso
multiplicar os cuidados, pois a tarefa tornar-se-ia ainda mais árdua quando
Sigfried pousasse os olhos sobre a mensagem contida no interior das cartas:
“quanto àqueles que desrespeitarem nossas constituições, ou antes, a dos santos
padres, que o povo de forma alguma receba suas ministrações”.55 Senhor da
palavra, o arcebispo deveria ensinar a seu clero que os textos enviados de Roma
eram guardiões da autoridade apostólica. Desrespeitá-los era desobedecer ao
papa em pessoa.
Sigfried seguiu as orientações à risca. Reuniu um sínodo em Mainz
e comunicou a seus sufragâneos das determinações enviadas pelo papa por
escrito. A reação do clero foi tempestuosa. Os bispos e sacerdotes irromperam
em protestos, vociferando contra a tirania romana. Ao ver o plenário da igreja
sobressaltado por berros e punhos em riste, o arcebispo chegou a temer por sua
vida. Acuado, Sigfried prometeu jamais ocupar-se daquelas ordens papais.56 Ano
após ano, ao celebrar os concílios na basílica de São Salvador – em Latrão –, o
papa reunia uma multidão eclesiástica e confirmava “os decretos apostólicos”.57
Em 1080, por exemplo, a assembleia viu-se diante de uma delicada questão. Era
preciso combater as falsas penitências, inescrupulosamente espalhadas por toda
a cristandade por trapaceiros da fé. Para esclarecer qual era a verdadeira maneira
de redimir-se das faltas cometidas perante Deus, os padres conciliares apoiaram-
se em um sólido respaldo textual.

54 “[...] ob eadem causam speciales litteras cudere bulla nostra impressas collibuit, quarum fultus
auctoritate tutius animosiusque preceptis nostris obtemperares [...].” (GREGÓRIO VII. Epistolas
Vagantes, p. 18-22).

55 “Statuimus etiam ut si ipsi contemptores fuerint nostrarum immo sanctorum patrum


constitutionum, populus nullo modo eorum officia recipiat.” (GREGÓRIO VII. Epístola 6.
Epistolae Vagantes, p. 14).

56 BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5:278; HEFELE-LECLERCQ, 5:1, p. 133-134.

57 ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 712-713.


121
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Primeiro definiram como penitente aquele que se dedica à realização de


boas ações com o coração contrido, pois só assim seria possível afastar o espírito
das iniquidades geradas por um algum mal, “como um homicídio premeditado
ou um perjúrio realizado em razão de cobiça de honra ou dinheiro”. Afinal, “se
o ímpio tiver sido convertido de todas as suas iniquidades e tiver mantido todos
os mandamentos, ele viverá e a vida não será morta”. O cânone ancorava-se na
autoridade do livro de Ezequiel (18:21). Mas não só. Em seguida, surge uma
referência ao Evangelho de Mateus (15:14): as obras piedosas não poderiam ser
realizadas sob a orientação de um padre iletrado. Afinal, “se o cego conduz o
cego, ambos caem em uma cova”. A verdadeira penitência implicava a orientação
espiritual daqueles “instruídos na religião e nos ensinamentos das escrituras, que
são capazes de indicar o caminho para a verdade e a salvação”.58
Além dos decretos conciliares, o registro da correspondência
gregoriana preservado pela chancelaria romana está repleto de referências
a “cânones sagrados” (sacri canones), a “cânones santos” (sancti canones) ou
à “autoridade dos cânones” (auctoritas canonum); além de diversas alusões
aos “decretos dos santos padres” (patrum decreta), aos “decretos dos santos
cânones” (decreta sanctorum canonum), às “leis divinas” (divina leges), bem
como à “escritura” ou “lei de Deus” (scripta/lex Dei) (BLUMENTHAL, 1998,
p. 201-218). Não é difícil compreender a razão disso. As epístolas eram um
dos principais meios de difusão social da autoridade papal. A intensa troca de
cartas possibilitava estabelecer e manter contatos que formaram uma “rede de
amizades” junto à qual Gregório encontrou sustentação política para atravessar
os tempestuosos anos de conflito aberto com o Império (ROBINSON, 1978b, p.
1-22). O conhecimento das tradições escritas era uma condição crucial para a
legitimação da autoridade papal.
No entanto, talvez seja entre os vestígios documentais deixados pelos
legados papais que possamos encontrar os indicadores mais expressivos da
complexidade dessa cultura letrada das práticas jurídicas romanas. Quando
dirigia a palavra aos poderosos de uma província, os enviados apostólicos

58 “Hec est enim vera penitentia, ut post commissum alicuius gravioris criminis, utpote meditate
homicidii et sponte commissi seu perjurii pro cupiditate honoris aut pecunie facti vel aliorum his
similium, ita se unusquisque ad Deum convertat, ur relictis omnibus iniquitatibus suis deinde
in fructibus bone operationis permaneat. Sic enim Dominus per prophetam docet: “‘si conversus
fuerit impius ab omnibus iniquitatibus suis et custodierit universa mandata mea, vita vivet et non
morietur”. ’. [...] Unde inter omnia vos hortamur atque monemus [...], in quibus nec religiosa vita
nec est consulendi scientia, qui animas hominum magis ad interitum quam ad salutem ducunt
teste Veritate que ait: “‘Si cecus cecum ducat, ambo in foveam cadunt’, sed ad eos, qui religionem
et scripturarum doctrina instructi viam veritatis et salutis vobis ostendere.” (GREGÓRIO VII.
Epístola 14a. Das Register. MGH Epp. Sel., 7, p. 481-482; MANSI, 20, p. 533).
122
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

asseguravam que suas decisões rediziam a “autoridade canônica e os decretos


do bem-aventurado papa Gregório”.59 Mas não só. Os homens recrutados pelo
Papado possuíam um domínio notável do antiquíssimo acervo de interpretações
escritas a respeito das verdades reveladas. Ao presidir os sínodos regionais que
julgavam o modo de vida do clero local, os legados citavam as decisões do concílio
realizado na Calcedônia no ano de 451 (MANSI, 19, p. 925-926); resgatavam a
legislação elaborada pelos concílios de Toledo entre 527 e 653 (MANSI, 20, p.
399); referiam-se com frequência à Regra de São Bento (MANSI, 19, p. 848; 20,
p. 399, 1123).
Nas igrejas e nos monastérios onde os legados eram bispos ou abades,
havia cópias de dezenas de cartas atribuídas a Santo Ambrósio (340-397), a
São Jerônimo (347-420) e a Santo Agostinho (354-430), além de transcrições
das obras filosóficas de Boécio (480-524) e Macróbio (370?-440?) (RENNIE,
2010, p. 105-110). As poucas epístolas ditadas por eles e preservadas até hoje
permitem afirmar que conheciam o conjunto de decretais escrito no século IX
sob o pseudônimo “Isidoro Mercator” (designadas, desde o século XVI, como as
Pseudo-Isidorianas) e que estavam familiarizados com o Decretum redigido por
Burchardo (950?-1025), bispo de Worms, provavelmente em 1023 (RHGF, 14,
p. 773-803). O exercício das prerrogativas legatinas exigia apelos a um passado
preservado como texto, para colocar os antigos dizeres da autoridade cristã a
serviço dos propósitos acalentados no presente.
Era sagrada a palavra que podia ser vista, testemunhada pelos olhos.
Maculá-la era profanar a própria fé. Até mesmo os adversários de Gregório
pensavam assim. Após negar o pontífice e desertar da Cúria, o cardeal Beno
liderou uma campanha para demonstrar que o papa havia abraçado a heresia,
tal como seu antecessor Libério (310-366), corretamente banido do episcopado,
séculos atrás, pelo “justo imperador” Constâncio II (317-361).60
O cardeal dedilhou um rosário de razões para incriminar seu antigo
senhor. Entre elas, estava uma denúncia emblemática: a de fraudar a pureza
das constituições católicas, conspurcando os santos ensinamentos da Igreja:
“em razão do erro renovado por escrito por Hildebrando e seus discípulos, ele
foi justamente excluído da Sé Romana por sentença divina como restaurador
de tantos erros”. A habilidade da escrita era um gesto divino, um sacramento.
Profaná-la era conspirar contra a graça celestial. Por isso, Deus estava do lado do

59 “Quod praeceptum canonicalis auctoritas & beati Gregorii decreta corroborant”. (MANSI 20, p.
397).

60 GESTA ROMANAE ECCLESIAE CONTRA HILDEBRANDUM. MGH Ldl 2: 373.


123
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

rei Henrique, que não havia recusado o chamado para agir severamente contra
“Hildebrando e seus discípulos, corruptores dos escritos”.61
Os ataques de Beno realçavam ainda mais que o Papado havia assumido
a dianteira na produção e ampliação das fontes textuais do direito canônico. A
Cúria romana ocupou lugar de destaque na sistematização dos procedimentos
jurídicos necessários, sobretudo, ao exercício da função episcopal. É o que
demonstram ainda as compilações realizadas pelos cardeais Atto (Breviarium)
e Deusdedit (Collectio Canonum), além da coleção Diversorum Patrum
Sententiae, conhecida como os “Setenta e quatro títulos” (ASCHERI, 2013, p.
55-69; MELVE, 2007, p. 25-27; ROBINSON, 1978a, p. 39-49). Quando não
abrigava novas obras canônicas, a cúpula papal tornava-se o modelo para sua
elaboração, como no caso da Collection Canonum, a coletânea elaborada pelo
bispo Anselmo de Lucca (1036-1086). A conclusão de Kathleen Cushing (1998,
p. 143) sobre o significado histórico dessa atividade legisladora permanece atual.
Segundo a autora, tais coleções eram obras de cunho político – não simplesmente
“jurídicas”. Integravam exercícios abertos de compreensão dos conflitos sociais;
eram práticas de legitimação de relações sempre cambiantes entre clérigos e
laicos. Por meio delas, eram formulados e repensados ideais sobre a sociedade
cristã e a Igreja.
Porque eram mais complexas que meros conjuntos de prescrições e
regulamentos, tais coleções canônicas proporcionavam fundamentos ideológicos
para as decisões papais. Especialmente aquelas promulgadas em plenários. Um
exemplo são as medidas declaradas em outubro de 1106 pelo concílio de Guastalla,
presidido por Pascoal II (1070-1118). Dos sete cânones então aprovados, um foi
inteiramente dedicado a impedir que os laicos se apoderassem dos bens da Igreja.
Para reforçar a medida, os padres conciliares lembraram que a proibição não era
nova: desde os tempos dos mártires romanos, sabia-se que os laicos não têm
qualquer competência eclesiástica, quer sobre a função sacerdotal, quer sobre
os patrimônios a ela vinculados. Assim atestavam os “escritos do papa mártir
Estevão”.62 Estevão, pontífice morto em 257, era mencionado por Deusdedit
em duas passagens da Collectio: precisamente para fundamentar as noções de

61 “Hildebrandus, Turbanus, Anselmus Lucensis episcopus, Deusdedit in compilationibus suis


fraudulentis [...]. Cuius errorem quia Hildebrandus cum discipulis suis scripto renovavit, merito
a sede Romana divina sententia tanti erroris renovatorem exclusit. [...] Titulus iste Hildebrandum
et discipulos eius scripturarum perversores manifeste detegit.” (BENO DE SS. MARTINO E
SILVESTRO. Contra Epistolam Hildebrandi III. MGH Ldl 2: 399). Todos os negritos são nossos.

62 “Nullus laicorum ecclesias vel ecclesiarum bona occupet vel disponat. Sicut enim beatus Stephanus
papa martir scribit [...].” (BLUMENTHAL, 1978, p. 69).
124
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

liberdade e imunidade dos bens clericais.63 O concílio citou a obra jurídica do


cardeal para embasar um princípio político.
A influência da coleção canônica não se esgotava aí. O sexto cânone de
Guastalla complementou a proibição ao determinar a excomunhão do clérigo,
abade ou monge que tivesse obtido igrejas de mãos laicas. A decisão, conforme
o texto aprovado pelos padres conciliares, não deveria causar surpresa. Não se
tratava de uma inovação. Eles acreditavam que apenas seguiam à risca o que
recomendavam “as prescrições dos santos apóstolos e o artigo do concílio
antioqueno”.64 Para insuflar autoridade a uma medida punitiva apontada contra a
própria hierarquia eclesiástica, o concílio tentou envolver a ordem de excomunhão
com o respeito reverencial que se costumava demonstrar pelas origens. Para isso,
a sanção foi colocada sob a égide das Constituições Apostólicas (mencionadas
como “prescrições dos santos apóstolos”), redigidas no século IV, e do concílio
realizado em 341, na cidade de Antioquia, pelo papa Júlio I (300-352). Era,
novamente, na coleção de Deusdedit que os padres conciliares baseavam-se, já
que era a única compilação canônica da época em que a prescrição apostólica e
o decreto antioqueno apareciam juntos (BLUMENTHAL, 1978, p. 70).
Os exemplos podem ser facilmente multiplicados. Contudo, não é
preciso. Os que constam das páginas anteriores são suficientes para ilustrar como
é praticamente impossível escapar da seguinte constatação: entre as últimas
décadas do século XI e as primeiras do XII, o exercício do poder papal consistia
em manejar a palavra escrita. É plausível, inclusive, definir a Cúria romana como
uma “comunidade textual”, mesmo que isso implique caracterizá-la como um
espaço de ações dependentes de uma legitimidade que só podia ser encontrada
por meio de uma cultura livresca.
No entanto, cuidado. É preciso redobrar a atenção. Lembremos as
breves páginas introdutórias deste capítulo e veremos que não se trata somente
dessa ideia. Ela está lá, sem dúvida. Porém, está encapsulada no interior de
outra, muito mais abrangente e contundente. Pois a historiografia fala da
cultura jurídica da “Era Gregoriana” como ruptura histórica. Os historiadores
costumam tratar a segunda metade do século XI como o ponto de virada em
que a lógica escrita teria iniciado um processo de substituição das formas legais
orais e consuetudinárias.
Essa dicotomia está implantada nos estudos históricos desde antes
do surgimento da clássica trilogia de Augustin Fliche. Sua consagração parece

63 CARDEAL DEUSDEDIT. Collectio Canonum, 3:47, 4:54.

64 “Si quis clericus, abbas vel monachus per laicos ecclesias obtinuerit, secundum sanctorum
apostolorum canones et Antiocenii concilii capitulum excommunicationi subjaceat.”
(BLUMENTHAL, 1978, p. 69).
125
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

ter sido obra de Paul Fournier (1917), que identificou na obra reformadora
a inauguração da “idade clássica”, na qual a lei criada no interior da Igreja foi
progressivamente racionalizada e sistematizada até atingir a forma madura de
uma ordem jurídica canônica com o surgimento do ilustre Decreto (Concordia
discordantium canonum) de Graciano, por volta do ano 1140. Daí em diante,
essa ordem expande-se por toda a cristandade mediante a multiplicação das
cortes legais, das escolas citadinas, das magistraturas, até culminar, por volta de
1200, em uma judicialização da vida cotidiana.
Essa periodização mantém-se firme até os dias de hoje. Basta ler
as páginas escritas por um dos principais especialistas em história do direito,
Peter Landau. Segundo o jurista alemão, antes da época gregoriana, a lei era,
principalmente, uma matéria de tradição oral, sem nenhuma forma escrita
permanente. Menos de cem anos depois, já no século XII, as regras eclesiásticas,
em particular, e também a lei secular, dependiam de normas escritas fixas. Essas
leis, segundo Landau (2004, p. 143-144), distinguiram e remodelaram campos
da vida social “que, anteriormente, possuíam uma existência legal rudimentar”.
A conclusão a que chega o autor lembra Harold Berman: “o período entre os
pontificados de Gregório VII e Inocêncio III viu a profissionalização de uma
Europa judiciária”. É essa dicotomia, que estabelece as lógicas jurídicas orais e
as formas legais escritas em campos jurídicos opostos e rivais, que pretendemos
colocar em dúvida a seguir.

A voz, medida máxima do poder

Fevereiro, 1076. Pelas câmaras iluminadas, nos corredores estreitos,


por toda parte do palácio apostólico, eram ouvidas notícias perturbadoras. Dizia-
se que o rei germânico fizera ouvidos surdos às exortações papais e promovera
um homem seu a arcebispo de Milão. Mais grave ainda: a igreja ambrosiana
não teria sido o único caso a ressentir o papa. Comentava-se que em Fermo
e Spoleto, duas igrejas próximas de Roma, Henrique IV tomara as rédeas da
autoridade e empossara no episcopado homens inteiramente desconhecidos por
Gregório VII (COWDREY, 1998, p. 129-130; CANTARELLA, 2005, p. 136-157).
A Cúria estava tomada de murmúrios sobre as reações do pontífice,
que “tinha ido da tristeza à ira” (COWDREY, 1998, p. 131). Aos novos bispos
elevados pelo monarca, Gregório endereçou cartas amenas, solicitando provas
de amizade e respeito.65 Quanto ao rei, todavia, a postura foi outra. Entre o clero

65 GREGÓRIO VII. Epístolas 8 e 9. MGH Epp. sel. 3: 259-263.


126
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

papal, o alvoroço das conversas entreouvidas excitava a memória da grave decisão


tomada pelo papa poucos meses antes, em dezembro. Afrontado, Gregório
decidiu enviar três religiosos até a corte imperial. O grupo levou uma carta, cujas
linhas gravavam uma repreensão, dirigida ao mandatário germânico por manter
entre seus conselheiros homens excomungados por Alexandre II (1015-1073).
Assim como o próprio pontífice, muitos da Cúria acreditavam que as ações
régias, violadoras da ordem da Igreja, eram consequências daquele convívio
maldito, que os afastava de Deus. Henrique deveria banir os excomungados de
seu séquito e proceder à penitência.66 A carta, entretanto, não dizia tudo. Aos
emissários foi confiada uma mensagem oral. Essa claramente ríspida: “a menos
que exclua os excomungados [...], ele [o rei] deverá ser separado da igreja e
partilhar a companhia [...] daqueles que escolheu ao invés de Cristo”.67
Mas o que incendiou o palácio papal com boatos veio a seguir.
Perturbado “por tão grave injúria”,68 Henrique reagiu de forma drástica.
Convocou arcebispos, bispos e os príncipes do reino até Worms, para um solene
pronunciamento. Quando chegaram a Roma, as notícias daquela assembleia
causaram viva comoção. O rei havia acusado o homem que se sentava na cadeira
de São Pedro de ter sido eleito de maneira irregular e manter relações suspeitas
com a condessa Matilde de Canossa (1046?-1115), sua suposta amante. Isso não
era tudo. Dizia-se que Henrique havia se referido ao papa como “falso clérigo”,
que atacava todas as leis divinas com as injúrias mais arrogantes e os abusos mais
amargos porque pretendia separar o reino da Itália da unidade imperial. Em
Worms, o monarca apelou aos grandes do reino para que julgassem o homem
que se dizia “Gregório VII” por sua real natureza: a de um impostor da fé. E foi
ouvido: com o consentimento deles, o papa foi condenado como simoníaco e
deposto.69 Pouco depois, os bispos do norte da península seguiram a decisão
imperial: reunidos em Piacenza, juraram pela “própria boca” e com as mãos
sobre os Evangelhos que não mais reconheceriam Hildebrando como papa.70

66 GREGÓRIO VII. Epístola 10. MGH Epp. sel. 3: 263-267.

67 “Postremo nisi excommunicatos a sua participatione divideret nos nichil aliud de eo iudicare aut
decernere posse nisi quod, separatus ab ecclesia, in excommunicatorum consortio foret cum quibus
ipse potius quam cum Christo partem habere delegeret.” GREGÓRIO VII. Epistolae Vagantes, p.
38.

68 LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5: 242.

69 “[...] papam quase simoniacum communi consenso damnaret, eoque deposito [...]”. . HENRIQUE
IV. Epístola a Gregório. MGH Const. 1: 109. BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico.
MGH SS 5: 351.

70 BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5: 282.


127
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Agora, em meio ao furor das notícias que se espalhavam durante a


Quaresma, havia chegado o momento da retaliação papal. À frente do concílio
tradicionalmente reunido na basílica de Latrão, o papa anunciou: o rei perdeu
seu poder. Gregório empunhou a palavra e removeu a autoridade transmitida
a Henrique pela coroa de seu pai. O monarca deveria, de uma vez por todas,
superar as limitações de sua razão débil e reconhecer que não era intocável neste
mundo, como se seu ofício tivesse sido instituído diretamente por Deus. Eis o
registro da decisão papal:
Bem-aventurado Pedro, príncipe dos apóstolos, nós te
imploramos, inclina teus misericordiosos ouvidos para nós e
escuta-me, teu servo, quem tu alimentaste desde a infância e até
este dia livrou das mãos dos homens iníquos que me odiaram, e
ainda odeiam, por minha fidelidade a ti. Tu és minha testemunha,
e minha senhora a Mãe de Deus e o bem-aventurado Paulo teu
irmão entre todos os santos, que tua santa Igreja romana me
arrastou contra minha vontade para seu governo, que eu não
o tomei por rapina, para ascender a tua sé, que eu desejei antes
terminar minha vida em exílio do que tomar teu lugar pelo artifício
secular da glória deste mundo. Eu acredito ser por tua graça e
não por minhas obras que te agradou, e ainda agrada, que o povo
cristão especialmente confiado a ti deverias ser especialmente
obediente a mim através de teu vicariato, que me foi entregue.
E por tua graça, o poder me foi dado por Deus de atar e desatar
no céu e na terra. Então, fortalecido por esta confiança, para a
honra e proteção de tua igreja, em nome do Deus onipotente,
Pai, Filho e Espírito Santo, através de teu poder e autoridade,
eu nego ao rei Henrique, filho do imperador Henrique, que se
ergueu com inaudita soberba contra tua igreja, o governo de todo
o reino dos Germanos e da Itália; eu absolvo todos os cristãos
do vínculo de qualquer juramento que eles tenham prestado ou
venham a prestar a ele; eu proíbo a qualquer um de servi-lo como
rei. Pois é adequado que ele, que busca diminuir a honra de tua
igreja, deva perder a honra que aparenta possuir. E porque ele
desprezou obedecer como um cristão, e não retornou ao Deus
que ele abandonou ao manter contato com excomungados e, tu és
minha testemunha, ao menosprezar as admoestações que enviei
para sua salvação, e ao desprezar a tua igreja por meio de uma
tentativa para dividi-la separando-a, em teu nome, eu ato-o com
o vínculo do anátema, e ato-o com a confiança em ti de que os
povos possam saber e aprovar que tu és Pedro, e sobre esta rocha
o Filho do Deus vivo construiu sua igreja e os portões do inferno
não prevalecerão contra ela.71

71 “Beate Petre apostolorum princeps, inclina, quesumus, pias aures tuas nobis et audi me servum
tuum, quem ab infantia nutristi et usque ad hunc diem de manu iniquorum liberasti, qui me
pro tua fidelitate oderunt et odiunt. Tu michi testis es et domina mea mater Dei et beatus Paulus
128
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

Digamos logo o argumento a ser defendido: essa sentença é um texto


dominado por um regime de oralidade, cuja principal característica é uma
presentificação da experiência jurídica. Vejamos.
Se a afirmação de que “as grandes questões da reforma eram
fundamentalmente questões do direito canônico” (KUTTNER, 1956, p. X)
continuar inteiramente aceitável, a decisão a respeito de Henrique IV será uma
questão assaz embaraçosa. Pois, se por um lado, o texto traduzido acima era
uma “grande questão” do pontificado gregoriano, por outro, é quase improvável
caracterizá-lo como matéria do direito canônico. Isso se por “direito canônico”
entendermos a cultura jurídica escrita então sistematizada nas coleções canônicas
que circulavam entre os integrantes da Cúria.
Sem dúvida, a sentença de excomunhão e deposição contava com o
respaldo textual. Vários trechos remetem à Bíblia, embora sem menções diretas
ou explícitas. A passagem “quem tu alimentaste desde a infância e, até este dia,
livrou das mãos dos homens iníquos” pode ser associada ao livro de Jó (16:11)
ou aos Atos dos Apóstolos (2:23). Ao defender-se dizendo “não o tomei por
rapina, para ascender a tua sé”, Gregório poderia ter em mente uma advertência
de Filipenses (2:6). Quando afirmou “eu acredito ser por tua graça e não por
minhas obras que te agradou”, pareceu citar um versículo de Romanos (11:6).
Por fim, certas linhas, que desde o século III são tratadas pelos bispos de Roma
como insígnias de suas atribuições, provêm do Evangelho de Mateus: “por tua
graça o poder me foi dado por Deus de atar e desatar no céu e na terra” (16:19),
“tu és Pedro, e sobre esta rocha o Filho do Deus vivo construiu sua igreja e os

frater tuus inter omnes sanctos, quod tua sancta Romana ecclesia me invitum ad sua gubernacula
traxit et ego non rapina arbitratus sum ad sedem tuam ascendere potiusque volui vitam meam in
peregrinatione finire quam locum tuum pro gloria mundi seculari ingenio arripere. Et ideo ex tua
gratia, non ex meis operibus credo, quod tibi placuit et placet, ut populus christianus tibi specialiter
commissus mihi oboediat specialiter pro vice tua michi commissa. Et michi tua gratia est potestas a
Deo data ligandi atque solvendi in celo et in terra. Hac itaque fiducia fretus pro ecclesie tue honore
et defensione ex parte omnipotentis Dei Patris et Filii et Spiritus sancti per tuam potestatem et
auctoritatem Henirico regi, filio Heinrici imperatoris, qui contra tuam ecclesiam inaudita superbia
insurrexit, totius regni Teutonicorum et Italie gubernacula contradico et omnes christianos a
vinculo iuramenti, quod sibi fecerunt vel facient, absolvo et, ut nullus ei sicut regi serviat, interdico.
Dignum est enim, ut, qui studet honorem ecclesie tue imminuere, ipse honorem amittat, quem
videtur habere. Et quia sicut christianus contempsit oboedire nec ad Deum rediit, quem dimisit
participando excommunicatis meaque monita, que pro sua salute misi, te teste, spernendo seque
ab ecclesia tua temptans eam scindere separando, vinculo eum anathematis vice tua alligo et sic
eum ex fiducia tua alligo et sic eum ex fiducia tua alligo, ut sciant gentes et comprobent, quia tu es
Petrus et super tuam petram filius Dei vivi edificavit ecclesiam suam et porte inferi non prevalebunt
adversus eam.”   GREGÓRIO VII. Reg. 3: 10a. MGH Epp. sel. 1: 270-271; MANSI, 20: 467-469.
Como se pode notar, as oscilações de concordância verbal constam do texto latino.
129
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

portões do inferno não prevalecerão contra ela” (16:18).


Aí está a memória escrita acionada para a elaboração da controversa
sentença. Em vez de ressoar o passado, de armar-se de precedentes ancestrais,
Gregório formulou sua decisão com o modo característico dos regimes de
oralidade: integrou o precursor do lugar ocupado por ele ao horizonte da
experiência vivida no instante da fala. Dito de outro modo, o papa presentificou
a figura do apóstolo Pedro. Não há distância temporal palpável entre a sentença
contra o rei Henrique e o seguidor de Cristo a quem é atribuída a fundação
do episcopado romano. Gregório dispôs da sentença como um “testemunho
de consciência” (teste conscientia nostra)72 e seu confessor era o próprio Pedro.
Não era necessário revirar bibliotecas em busca de um precedente guardado em
algum cânone ancestral ou relatado em cartas antiquíssimas. O apóstolo havia
participado daquela decisão pessoalmente.
Da primeira à última linha, o texto da condenação é um instante
determinado, um momento único do encontro entre o enunciador, o papa,
e seu ouvinte, o apóstolo. O lugar jurídico da excomunhão, isto é, a instância
que lhe infundia a persuasão e o senso de dever, era a própria pessoa do papa.
Afinal, a mediação entre a transgressão e a punição resultava do emprego da
voz, não das autorizações oferecidas em textos passados. Gregório conhecia
profundamente os registros sobre os precedentes para a controversa medida que
acabara de anunciar. Basta ler a carta enviada ao bispo Hermann de Metz, em
agosto de 1076, para perceber sua familiaridade com a tradição escrita criada em
razão das implicações de punir um rei daquela maneira. Àqueles que diziam não
ser correto que um monarca fosse excomungado, ele replicou dizendo: “deixe
que leiam sobre o que o bem-aventurado Pedro ordenou ao povo cristão na
ordenação de São Clemente sobre aquele que eles saciam não possuir os favores
do pontífice”.
Após mencionar a carta de Clemente I aos Coríntios, Gregório
continuou: “que eles ponderem por que o papa Zacarias depôs o rei dos Francos
e absolveu todo o povo franco dos laços de juramento que haviam lhe prestado.”
Nesse ponto, a carta evocou a aprovação do papa Zacarias (741-752) à deposição
de Childerico (714-754), o último rei merovíngio. O papa prosseguiu. Quem o
contestava devia ler o Registro de Gregório I (540-604), no qual estava escrito
como o papa havia excomungado reis e duques que contrariavam suas palavras
e disposto de seus ofícios. Por fim, uma referência ao caso mais ilustre, ocorrido
no ano 390: “e não os deixe negligenciar que o bem-aventurado Ambrósio não
somente excomungou Teodósio, não apenas um rei, mas verdadeiramente um

72 GREGÓRIO VII. Epistolae Vagantes, p. 38.


130
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

imperador em conduta e poder, mas o privou de permanecer no lugar dos


padres na Igreja”.73
Bispo de Milão, Ambrósio (340-397) era uma leitura cara à
espiritualidade do papa. Provavelmente, ao lidar com o rei germânico, Gregório
VII acreditasse seguir os mesmos passos daquele prelado. Como Teodósio (347-
395), no Natal de 390, Henrique IV cederia e cumpriria penitência pública
por suas falhas. Antes de concluir a carta ao bispo de Metz, o pontífice, um
novo Ambrósio, citaria o De Dignitate Sacerdotali: “se comparares a honra e a
excelência episcopais ao esplendor dos reis e o diadema dos imperadores, os
deixará muito mais inferiores do que se comparares o metal de chumbo com
esplendor do ouro”.74
No momento mais crítico de seu pontificado, no instante em que selou
o destino do rei e de todas as almas abrigadas no interior do Império, Gregório
não recorreu ao prestígio ou à força persuasiva de qualquer uma dessas – e de
tantas outras – referências conhecidas por ele. O gesto extremo de aplicação da
autoridade papal não carregava o peso de princípios recolhidos pacientemente
junto à tradição escrita. O ato que afirmou a superioridade papal não era um
texto guarnecido por páginas veneráveis. No instante crucial, a verdade surgiu
como gesto de devoção, um apelo pessoal dirigido em viva voz aos ouvidos de
São Pedro, cuja presença fazia-se palpável.
Poucos meses depois, Gregório enviou ao “reino dos teutônicos”
uma nova carta. Havia chegado a seus ouvidos a notícia de que, entre aqueles
fiéis, muitos questionavam se o rei havia sido justamente excomungado ou se a
decisão procedia de uma deliberação adequada e investida de autoridade legal
(auctoritate legale). Talvez o texto apresentado tenha encorajado as contestações.
O papa, então, tratou de dissipá-las. Onde quer que fosse lida a nova epístola,
seria ouvida a garantia de que o monarca havia sido excomungado por sentença
conciliar (synodali iudicio) e após o exame “do que a autoridade divina ensina,

73 “Legant itaque, quid beatus Petrus in ordinatione sancti Clementis populo christiano preceperit
de eo, quem scirent non habere gratiam pontificis. [...] Considerent, cur Zacharias papa regem
Francorum deposuerit et omnes Francigenas a vinculo iuramenti, quod sibi fecerant, absolverit.
In registro beati Gregorii addiscant, quia in privilegiis, que quibusdam ecclesiis fecit, reges et duces
contra sua dicta venientes non solum excommunicavit sed etiam, ut dignitate careant iudicavit.
Nec pretermittant, quod beatus Ambrosius non solum regem, sed etiam re vera imperatorem
Theodosium moribus et potestate non tantum excommunicavit, sed etiam, ne presumeret in loco
sacerdotum in ecclesia manere, interdixit.” (GREGÓRIO VII. Epístola 02. MGH Epp. sel. 4:294).

74 “Honor iniquiens et sublimitas episcopalis, si regum fulgori compares et principium diademati,


longe erit inferius, quam si plumbi metallum ad auri fulgorem compares.” (GREGÓRIO VII.
Epístola 02. MGH Epp. sel. 4:294)
131
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

decreta e julga segundo a voz dos santos padres”.75


Não, o papa não recuou em seu modo de agir. Meses depois, seguia
acreditando que a decisão entregue pela boca como testemunho de consciência
era superior a qualquer sentença escrita: “se, que Deus proíba, tivermos atado o
rei ao vínculo [do anátema] de tal modo, sem a razão suficiente ou o ordenamento
[legal] adequado, nossa sentença, como insistem os santos padres, não deve ser
ignorada: ele deve buscar a absolvição com toda humildade”.76 Antes de render-
se à escrita, a justiça entrega-se à voz. Isso bastava.

As excomunhões e as práticas jurídicas

Comparemos a decisão de fevereiro de 1076 e outra “grande


excomunhão” vivida por Hildebrando: o anátema lançado por Leão IX sobre
Miguel Cerulário (1000?-1059), patriarca de Constantinopla.
Em 1053, Miguel, primaz da Nova Roma, denunciou os “sacerdotes
francos e seu pontífice” por celebrar a Eucaristia como os judeus, isto é, com
o pão ázimo. A queixa não era simples discórdia sobre minúcias litúrgicas,
mas uma verdadeira declaração de guerra a respeito da sagrada comunhão. O
prelado grego bradava que os ritos latinos falhavam em renovar a aliança com o
Salvador: ao utilizar um pão não fermentado em suas celebrações eucarísticas,
eles cultuavam um símbolo sem vida, pelo qual era rememorado o luto pelas
atribulações do povo de Israel. A Páscoa cristã, ao contrário, deveria celebrar
a alegria e a fecundidade, aspectos da vida que o fiel reencontrava ao sentir o
fermento, calor do próprio pão. O pão ázimo era como o sal, desprovido de vida,
pálido, árido e, amiúde, imundo.77 A Eucaristia dos francos afastava de Cristo.
Era enganosa. Gravadas em cartas, as acusações circularam pelo Mediterrâneo
até chegarem às mãos de Humberto da Silva Cândida.
Agitado pela leitura, o cardeal traduziu o texto do grego para o latim,
apresentando-o ao papa Leão IX em seguida. Por meses, a correspondência
entre o pontífice, o patriarca e o imperador Constantino IX (1000-1055) saltou

75 “[...] quod divina auctoritas doceat, quod decernat, quod consona sanctorum patrum voce iudicet
[...].” (GREGÓRIO VII. Epistolae Vagantes, p. 40).

76 “Quamquam etsi nos, quod Deus auertat, non satis de gravi causa aut minus ordinate eum
huiusmodi vinculo ligaverimus, sicut sanctis patres asserunt, non idcirco spernenda esset sententia,
sed absolutio cum omni humilitate querenda.” (GREGÓRIO VII. Epistolae Vagantes, p. 40).

77 CARTA DE LEÃO DE ÁCRIDA A JOÃO DE TRANO. (WILL, 1861, p. 61-64).


132
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

ao primeiro plano dos assuntos romanos. Porém, cada carta trocada parecia
plantar a semente de um novo desentendimento. A crise avolumava-se. Da
chancelaria romana partiam longos sermões sobre a “língua transitória neste
mundo e as argumentações humanas da nova presunção e inacreditável audácia
da repreensão sobre a celebração da paixão do Senhor com o ázimo”. Os latinos
acreditavam ser preciso opor-se com pulso firme às opiniões que chegavam das
“partes orientais, ou dos próprios gregos, onde diversos erros emergiram ao
longo do tempo para corromper a virgindade da Igreja católica”,78 de acordo com
a epístola a Miguel, patriarca de Constantinopla, compilada por Will (1861, p.
65-85). Por sua vez, os gregos não recuaram um palmo no terreno teológico e
rebateram aquelas tentativas sorrateiras de associá-los à heresia e ao Anticristo.
O studium de Niceia, símbolo inaugural do credo cristão, reagiu à maneira dos
veneráveis padres da época de Constantino I (272-337): publicou um extenso
libelo contra os latinos, revisando seus erros a respeito da Eucaristia.79
Com as discordâncias multiplicadas, Leão despachou um grupo de
legados para o Bósforo. Era janeiro de 1054.80 Entre os homens pessoalmente
encarregados de convencer o imperador da arrogância de Cerulário, estavam o
próprio Humberto; Frederico de Liège, chanceler romano; e Pedro, arcebispo
de Amalfi (?-1063). A amistosa recepção oferecida por Constantino IX por
pouco não foi esquecida. A passagem dos legados seria lembrada pelos debates
insolúveis entre argumentos entrincheirados. Nesse ínterim, o papa faleceu, em
abril. Sem se deixar abater, os enviados de Roma tomaram a medida extrema. Em
16 de julho, no momento em que o clero preparava a basílica de Santa Sofia para
a liturgia do sábado, os legados entraram na igreja. Atraindo todos os olhares,
Humberto atravessou o majestoso átrio e depositou no altar principal a bula de
excomunhão do patriarca e de seus partidários. Eis um trecho:
Que os gloriosos imperadores, clero, senado e povo desta cidade
de Constantinopla, assim como toda a Igreja católica, saibam que

78 O primeiro trecho citado contém pequenas adaptações de: “[...] nova praesumptione, atque
incredibili audacia, nec auditam nec convictam palam damnasse, pro eo máxime quod de azymis
audeat commemorationem Dominicae passionais celebrare [...]. O segundo trecho está contido
em: “Praeterimus nominatum replicare nonaginta et eo amplius haereses ab Orientis partibus,
vel ab ipsis Graecis, diverso tempore ex diverso errore ad corrumpendam virginitatem catholicae
ecclesiae”.

79 O “Libelo contra os latinos dos presbíteros e monges de Niceia” também pode ser consultado
no volume editado por Will (1861, p. 127-136).

80 A “Carta de Leão IX a Constantino Monomaco” também aparece na edição de Will (1861, p.


85-89).
133
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

temos precebido aqui um grande bem, já que nós regozijamos


no Senhor, tanto quanto um grande mal, já que lamentamos em
sofrimento. Portanto, quanto às colunas do poder imperial e a
seus honrados e sábios cidadãos, esta cidade é cristianíssima e
ortodoxa. Contudo, quanto a Miguel, chamado patriarca por um
abuso do termo, e aos apoiadores de sua loucura, inúmeros joios
de heresias são diariamente semeado em seu meio.
Porque, como simoníacos, eles vendem a dádiva de Deus; como
valesianos, eles castram os seus e os promoveram não apenas ao
clero, mas ao episcopado; como arianos, eles batizam aqueles
já batizados no nome da Santa Trindade, sobretudo os latinos;
como donatistas, eles reivindicam que à exceção da Igreja grega,
a Igreja de Cristo e o batismo tinham perecido no mundo; como
nicolaítas, eles permitem e defendem os casamentos carnais dos
ministros do sagrado altar; como severianos, eles dizem que a lei
de Moisés é amaldiçoada; como pneumatomachoi ou theomachoi,
eles excluíram a proveniência do Espírito Santo pelo Filho; como
maniqueus, entre outros, eles declaram que o pão fermentado se
faz animado; como nazarenos, eles preservam a pureza carnal
dos judeus a tal ponto que se recusam a batizar bebês agonizantes
antes de oito dias de seu nascimento e, ao recusar comunicar-se
com mulheres grávidas ou menstruadas, eles as proíbem de ser
batizadas se são pagãs; e porque eles cultivam seu cabelo sobre
a cabeça e suas barbas, eles não recebem em comunhão aqueles
que tonsuram seu cabelo e raspam suas barbas segundo a prática
decretada pela Igreja romana. [...]
Portanto, porque nós não toleramos este inaudito ultraje e injúria
da primeira e santa Sé apostólica, e porque nos preocupamos que
a fé católica não seja arruinada de muitas formas, pela autoridade
da santa e indivisa Trindade e da Sé apostólica, cujos enviados
somos nós, e por todos os padres ortodoxos dos sete concílios e
por toda a Igreja católica, nós subscrevemos o seguinte anátema
que o venerável papa proclamou sobre Miguel e seus seguidores,
a não ser que eles se arrependam.81

81 “Quamobrem cognoscant ante omnia gloriosi imperatores, clerus, senatus et populus hujus
Constantinopolitanæ urbis, et omnis Ecclesia catholica nos hic persensisse magnum unde
vehementer in Domino Gaudemus bonum, et maximum unde miserabiliter contristamur, malum
Nam quantum ad collumnas imperii et honoratos ejus cives sapientes Christianissima et orthodoxa
est civitas. Quantum autem ad Michaelem abusive dictum patriarcham, et ejus stultitiæ fautores,
nimia zizania hæreseon quotidie seminantur in medio ejus. uia sicut Simoniaci donum Dei
vendunt; sicut Valesii hospites suos castrant, et non solum ad clericatum, sed insuper ad episcopatum
promovent; sicut Ariani rebaptizant in nomine sanctæ Trinitatis baptizatos, et maxime Latinos;
sicut Donatistæ affirmant, excerpta Græcorum Ecclesia, Ecclesiam Christi et verum sacrificium
atque baptismum ex toto mundo periisse; sicut Nicolaitæ carnales nuptias concedunt et defendunt
sacri altaris ministris; sicut Severiani maledictam dicunt legem Moysis; sicut Pneumatomachi, vel
Theumachi absciderunt a symbolo Spiritus Sancti processionem a Filio; Sicut Manichæi inter alia,
quodlibet fermentatum fatentur animatum esse; sicut Nazareni carnalem Judæorum munditiam
adeo servant, ut parvulos morientes ante octavum a nativitate diem baptizari contradicant, et
134
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

Diferentemente do caso gregoriano, a bula de excomunhão atribuída


a Humberto de Silva Cândida possuía profundidade temporal. Ela mergulhava
no passado para inscrever as acusações de Cerulário no rol de heresias já
combatidas pela fé católica. “Donatistas”, “valerianos”, “arianos”, “severianos”: os
nomes de grupos religiosos dos primeiros séculos percorrem o texto formando
um índice de nomenclaturas que só poderia advir do profundo conhecimento
da história eclesiástica e seus Annales. Nos erros dos bizantinos, desaguavam
mazelas e sacrilégios acumulados na senda do tempo. As opiniões ultrajantes do
patriarca continham vícios que persistiam desde os primórdios, como chagas
cravadas no corpo do “povo cristão” por ímpios que a morte já havia levado
desta vida (WHALEN, 2007).
A sentença de 1054 era obra de uma consciência apurada a respeito
da trajetória da doutrina cristã no tempo. Em sua trama discursiva, recordar
as heresias era uma maneira de sinalizar o caminho que levava até as chaves de
libertação da verdadeira religião: “os sete concílios”. É preciso estar atento a essa
referência. Ela consiste em uma fórmula teológica estratégica. Dizê-la significava
capturar simbolicamente a figura do patriarca grego. Pois Cerulário deixava de
ser simplesmente um contemporâneo de Leão IX. Ele era muito mais que isso.
Segundo os romanos, ele era o herdeiro de uma estirpe infame. A bula rasgava
o véu das circunstâncias momentâneas para trazer à tona a verdadeira origem:
o patriarca era o sucessor de heresiarcas como Ário (256-336), Macedônio (?-
360), Nestório (386?-451?), Eutíquio (512?-582). Homens cujos ensinamentos
foram condenados pelos sete concílios ecumênicos reunidos em Niceia,
Constantinopla, Éfeso e Calcedônia entre os séculos IV e VIII. Cerulário era
uma criatura dos séculos.
A excomunhão dos gregos ecoou verdades que atravessaram gerações.
Já a de 1076 era um testemunho de uma comunhão pessoal, imediata. Os
legados leoninos recordaram a obra dos Pais da Igreja e recrutaram a história
cristã em defesa de sua controversa punição. Mais de 20 anos depois, desafiado
a justificar um anátema ainda mais grave, Gregório VII voltou os olhos para
o próprio peito e reencontrou a presença do apóstolo Pedro, que “o alimentou

mulieres in menstruo vel in partu periclitantes communicari, vel si paganæ baptizari contradicant,
et capilos capitis ac barbæ nutrientes eos, qui comam tondent, et secundum institutionem Romanæ
Ecclesiæ barbas radunt, in communione non recipiant. [...] Unde nos quidem sanctæ primæ
apostolicæ sedis inauditam contumeliam et injuriam non ferentes, catholicamque fidem subrui
multis modis attendentes, auctoritate sanctæ et individuæ Trinitatis atque apostolicæ sedis, cujus
legatione fungimur; et cunctorum orthodoxorum Patrum ex conciliis septem atque totius Ecclesiæ
catholicæ anathemati, quod noster reverendissimus papa itidem Michaeli et suis sequacibus, nisi
resipiscerent, denuntiavit, ita subcribimus.” BULA DE EXCOMUNHÃO CONTRA MIGUEL
CERULÁRIO E SEUS SECTÁRIOS. (WILL, 1861, p. 153-154).
135
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

desde a infância e até aquele dia o havia livrado das mãos dos iníquos”. Para
expulsar o rei da unidade cristã, Gregório precisou falar e sentir-se ouvido.
Para sentenciar o patriarca da “Nova Roma”, os legados de Leão IX tornaram-se
guardiões e cumpridores da verdade contida em páginas ancestrais. Ao contrário
do que afirmou Walter Ullmann (2003a, p. 148-160) no conhecidíssimo livro A
short history of the papacy in the Middle Ages, a lei canônica não era o único
fundamento para a reivindicação gregoriana de uma jurisdição sobre os assuntos
de toda a Igreja. Para Gregório VII, bastava o poder da voz.

A oralidade textual

Ao presentificar a experiência que o autorizava, o papa tornou a


excomunhão alheia ao processo de sua própria elaboração: seu texto não apresenta
vestígios das deliberações e consultas dirigidas ao concílio que a aprovara.82
Quanto a isso, o papa e o monarca agiam de maneiras opostas. Algumas semanas
antes, Henrique havia justificado a decisão de depor o pontífice alegando: “reuni
uma assembleia geral com todos os principais homens do reino, segundo sua
súplica.” 83 Se o rei ergueu a boca contra o céu e renegou o papa – como diz o
bispo Bonizo de Sutri com inconfundível tom apologético84 –, ele o fez acatando
a “justa opinião” dos primeiros entre os germânicos: “visto que sua sentença
parece justa e correta diante de Deus e dos homens, eu igualmente concedo meu
consentimento, revogando de ti toda prerrogativa do Papado, o qual tu aparentas
manter, e ordeno-te a descer da Sede da cidade”85, disse Henrique, por carta, ao
“falso pontífice”.

82 Cf. Bernoldo de Constance (Chronicon, MGH SS 5, p. 433-439); Bertholdo (Annales, MGH SS


5, p. 278-283); Bonizo de Sutri (Liber ad Amicum, MGH Ldl 1, p. 606-607); Bruno de Merseburg
(De Bello Saxonico, MGH SS 5, p. 353); Hugo de Flavigny (Chronicon, MGH SS 8, p. 435);
Lamberto de Hersfeld (Annales, MGH SS 5, p. 243).

83 “[...] generalem conventum omnium regni primatum ipsis supplicantibus habui.” (HENRIQUE
IV. Epístola a Hildebrando. MGH Const. 1, p. 109; BRUNO DE MERSEBURG. De Bello
Saxonico. MGH SS 5, p. 351-352; MANSI 20, p. 471-472).

84 BONIZO DE SUTRI. Liber ad Amicum. MGH Ldl 1: 606.

85 “Quorum sententiae, quia iusta et probabilis coram Deo hominibusque videbatur, ego quoque
assentiens, omne tibi papatus ius, quod habere visus es, abrenuntio, atque ut a sede Urbis [...].”
(HENRIQUE IV. Epístola a Hildebrando. MGH Const. 1, p. 109; BRUNO DE MERSEBURG. De
Bello Saxonico. MGH SS 5, p. 351-352; MANSI 20, p. 471-472).
136
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

Gregório, por sua vez, sequer evocou a aprovação da Igreja romana,


embora tivesse o hábito de fazê-lo. Três meses antes da excomunhão, o papa
enviou à Corte imperial uma carta e uma mensagem oral que corroeram as já
frágeis relações entre os dois poderes. O rei era duramente repreendido por
conviver com excomungados e imiscuir-se nas eleições episcopais. Gregório
explicou assim a severidade carregada por suas palavras: “quando, neste ano,
reuniu-se na Sé apostólica um sínodo, o qual a disposição divina desejou que
presidíssemos e no qual alguns de teus fiéis súditos estiveram presentes, nós
reconhecemos que o estado da religião cristã tinha sido enfraquecido [...].”86 Em
fevereiro de 1076, porém, diante do desafio maior de legitimar um veredicto
ainda mais grave, o papa não mencionou a aprovação ou o consenso de bispos e
religiosos. É o que demonstra outro documento, a bula redigida para anunciar a
publicação da sentença. Vejamos.
A sentença era uma experiência pessoal. Porém, não isolada ou
estranha às demais consciências. Gregório tinha certeza de que todos os
verdadeiros cristãos partilhavam de sua decisão. Se as ações do rei eram
intoleráveis e merecedoras da mais grave punição não era por ultrajarem regras
canônicas, mas porque provocavam “tristeza e lamentação por parte de todos os
fiéis,” os quais, segundo o papa, deviam “estar aflitos pelas injúrias que têm sido
infligidas sobre [Pedro]”, já que eram “feitos participantes dos sofrimentos”.87
Não só o apóstolo, mas todos aqueles que acalentavam a fé correta estavam
presentes no gesto de devoção do papa. Reparar as angústias para as quais foram
espiritualmente arrastados os “verdadeiros cristãos” era razão suficiente para
justificar o ato de excomungar e remover do trono o sucessor de Carlos Magno.
Uma fórmula idêntica registrou a decisão papal de relançar a mesma
sentença sobre Henrique em 1080:
Bem-aventurado Pedro, príncipe dos apóstolos, e tu, bem-
aventurado Paulo, doutor dos povos, sejam condescendentes,
eu peço, a inclinar vossos ouvidos para mim e com clemência
compreender-me. Porque vós sois discípulos e amantes da
verdade, ajudais que eu diga a vós a verdade isenta da toda

86 “Congregata nanque hoc in anno apud sedem apostolicam synodo, cui nos superna dispensatio
presidere voluit, cui etiam nonnulli tuoroum interfuere fidelium, videntes ordinem Christiane
religione multis iam labefactatum temporibus [...].” (GREGORIO VII. Epístola 10. MGH Epp.
sel. 1:266)

87 “[...] omnibus tamen fidelibus [...] dolendum foret et gemendum [...] cogitandum vobis est, quantum
nunc de irrogata sibi iniuria dolere debeatis. [...] socii passionum efficiamini.” GREGÓRIO VII.
Bula Audistis. MGH Epp. sel, liber III, p. 254-255; Cf. Hugo de Flavigny. Chronicon. MGH SS, t.
VIII, p. 442.
137
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

falsidade, para que meus irmãos encontrem consolação no


melhor em mim e saibam e compreendam que com confiança
em vós, após Deus e sua mãe, a sempre virgem Maria, eu resista
ao fraco e injusto, e ainda que eu preste auxílio a vossos fiéis.88

A nova sentença traz um aspecto muito importante. Após interpelar


diretamente os apóstolos Pedro e Paulo, Gregório prossegue uma narrativa em
que reconta sua trajetória. O relato inicia-se assim:

[...] vós sabeis que não desejava ingressar nas ordens sagradas
e que parti relutante através das montanhas com o senhor
papa Gregório [VI]; contudo, mais relutante retornei com meu
senhor Leão [IX] para sua igreja especial; [...] extremamente
relutante, com grande sofrimento, gemido e pranto, eu, embora
inteiramente indigno, fui colocado em vosso trono.89

Desse ponto, o texto prossegue, fato após fato, até a decisão da


excomunhão proclamada pela primeira vez na Quaresma de 1076 e sacada
novamente em 1080. Em nossa opinião, o sentido dessa narrativa é inteiramente
oral. Ainda que relatados em ordem cronológica e dispostos como uma sucessão
de causalidades, os acontecimentos não configuram, no texto, um conjunto
de experiências pretéritas, findas, distanciadas em passado. Enunciados por
expressões que as caracterizam como algo ainda presente – “digo isto” (hec ideo
dico), “mantive estas coisas” (et hec ideo detinui), “assim acredito” (sicut credo) –
os episódios seguem inscritos no momento vivido. A narrativa gregoriana não
modula uma experiência de passado. Tudo nela é presente, contemporâneo,
sincrônico. Uma vez rememorado, cada episódio é instantaneamente reintegrado
a um todo vital. Da elevação ao Papado à desobediência do rei, as ocorrências

88 “Beate Petre princeps apostolorum et tu beate Paule doctor gentium, dignamini, queso, aures vestras
ad me inclinare neque clementer exaudire. Quia veritatis estis discipluli et amatores, adiuvaret,
ut veritatem vobis dicam omni remota falsitate, quam omnino detestamini, ut fratres mei melius
michi adquiescant et sciant et intellegant, quia ex vestra fiducia post Deum et matrem eius semper
virginem Mariam pravis et iniquis resisto, vestris autem fidelibus auxilium presto.” (GREGÓRIO
VII. Registros sinodais. MGH Epp. sel. 7, p. 483-487; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH
SS 8, p. 451-453; MANSI 20, p. 534-536).

89 “Vos enim scitis, quia non libenter ad sacrum ordinem accessi; et iavitus ultra montes cum domino
papa Gregorio abii, sed magis invitus cum domino meo papa Leone ad vestram specialem ecclesiam
redii, in qua utcunque vobis deservivi; deinde valde invitus cum multo dolore et gemitu ac planctu
in throno vestro valde indignus sum collocatus.” (GREGÓRIO VII. Registros sinodais. MGH Epp.
sel. 7, p. 483-487; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8, p. 451-453; MANSI 20, p.
534-536).
138
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

mencionadas são matérias que preenchem o horizonte do vivido. Nenhuma delas


está fechada, terminada como se tivesse ficado para trás. Todas elas persistiam
como testemunho de uma consciência que via a si mesma como forçada a julgar
a conduta do rei.”90
Embora relembre que a primeira excomunhão havia sido uma decisão
sinodal, essa nova sentença em nenhum momento é atribuída a algo que não
seja o espírito do pontífice. Tal como ocorrera em fevereiro de 1076, o texto não
deixa transparecer os vínculos com o espaço institucional de sua aprovação.
Não que os concílios fossem secundários ou de pouca importância.
Sua realização era “uma das mais características instituições do Papado”
(ROBINSON, 2004b, p. 318). O comparecimento aos concílios papais era parte
da obediência devida ao senhor e bispo de Roma. Exigência que Gregório
parece ter estendido a Henrique IV. Pois, conforme consta do texto de 1080,
a excomunhão que recaía sobre os ombros régios havia sido provocada pela
maneira como o rei havia minado a possibilidade de uma assembleia imperial
presidida por legados papais. Observemos.
Desde março de 1078, as terras da Germania eram reclamadas por
dois monarcas. O herdeiro de direito, Henrique, enfrentava um concorrente,
que reivindicava a Coroa com o apoio, sobretudo, da nobreza saxônica. Rodolfo
de Rheinfelden (1025?-1080), duque da Suábia, foi declarado rei dos teutônicos
em Forchheim, “na presença de alguns legados da Sé romana”.91
A guerra assolou as regiões do Império. Em Roma, ouviam-se notícias
sobre o ódio e o terror que se espalhavam pelo reino dos sálios. Algumas
delas devem ter sido contadas a Gregório por Bertholdo de Constance, que
cruzara os Alpes ainda no início de 1079. Seu relato, registrado nos Annales,
era apavorante. Segundo ele, à medida que os exércitos moviam-se, um rastro
de igrejas arruinadas surgia na paisagem. Quem buscou refúgio nos templos,
tentando escapar da terra “desgraçadamente incendiada”, encontrou o horror. As
“sagradas vestimentas” eram arrancadas dos corpos dos sacerdotes e pisoteadas.
Seminus, os padres eram açoitados à vista de todos. Nem os corpos santificados
eram respeitados: as relíquias dos mártires e dos santos eram tomadas dos altares
e arremessadas sobre o chão “emporcalhado e ensanguentado com os cadáveres
banalmente despedaçados”. Perto de Altorf, terra de origem de Leão IX, a imagem
do crucifixo foi impiedosamente mutilada. Em outros lugares, arrancavam-se

90 ZUMTHOR, 2005.

91 “[...] in presentia quorundam Romanae sedis legatorum.” (EKKEHARD DE AURA. Chronicon


Universale. MGH, SS 6, p. 202). Ver igualmente: Tellenbach (1993, p. 242-244), Cowdrey (1998,
p. 168-171) e Robinson (2003, p. 171-185).
139
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

a cabeça, as mãos e os pés da figura do Salvador. Se havia mulheres entre os


refugiados, eram violadas “nas igrejas como em um prostíbulo”. Aquelas que não
eram violentadas até a morte, eram levadas cativas.92
Em agosto, os exércitos chocaram-se em Mellrichstadt. A batalha foi
tão sangrenta quanto inconclusa. Os dois lados deixaram o campo de batalha
declarando-se vencedores, porque o desastre podia ser encontrado em meio
a ambos. Incerta fit victoria: “a vitória fez-se incerta” – resumiu Ekkahard de
Aura.93 As perdas, entretanto, eram visíveis. Apesar da multidão de massacrados,
havia um imenso contingente de prisioneiros, entre os quais podiam ser vistos
o legado papal na região, o arcebispo de Mainz, o bispo de Worms. Destino
temerário, mas ainda assim preferível ao do arcebispo de Magdeburg, morto por
camponeses enfurecidos.94
Impressionado pelas notícias e pressionado a declarar um lado vencedor,
Gregório convocou um concílio para novembro. Ele se lembraria da assembleia no
momento em que ditou a excomunhão de 1080. Voltemos ao texto da bula papal.
Ao confessar-se aos santos Pedro e Paulo, Gregório dizia que naquela ocasião
havia decicido que a paz seria estabelecida em uma “assembleia nas partes além
das montanhas”. Contudo, suas intenções logo foram frustradas. Surgiram tantos
empecilhos que o papa passou a desconfiar de que a realização do concílio fosse
deliberadamente adiada. Ao perceber que o “lado mais injusto não desejaria que
tal assembleia fosse reunida onde a retidão pudesse ser mantida”, disse Gregório,
excomungou “todas as pessoas, quer fossem homens do rei, do duque, de um
bispo ou de qualquer um que pudesse impedir que a assembleia ocorresse”.95 Os

92 “Ecclesias quippe, ad quas cum rebus suis conservandis terrae inquilini confungerant, miserabiliter
sacrilegi et praesumptuosi incederant, depraedati, sunt; sacerdotes sacris vestibus indutos, seminudos
et miserrime vapulatos proculcaverant; altaria sactorum reliquiis inde ablatis destruxerant; super
ea, quod a paganis inauditum est, cacaverant, carnibus praedae in frusta dilaniatis superinpositis
ea cruentaverant, mulieres quas in aecclesiis ceperant, inpudenter illic velut in prostibulo
constupraverant; stabulum equis et animalibus suis, nec non latrinas in eis erexerant. Mulieres
item ad usque mortem constuprando nonnullas oppresserant; plerasque viriliter tonsuratas ac
vestitas, captivas abduxerant: ligneam Christi crucifixi imaginem apud Altorf, et alibi etiam, capite
manibus et pedibus detruncaverant abscisis.” (BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5, p. 313).

93 EKKEHARD DE AURA. Chronicon Universale. MGH. SS 6, p. 203.

94 Ver também: Leyser (1994, p. 69-70), Cowdrey (1998, p. 182-183) e Robinson (2003, p. 181-
183). O principal relato da batalha é: BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico. MGH SS
5, p. 353.

95 “Tandem, aspirante Deo sicut credo, statui in eadem synodo: in partibus ultramontanis fieri
colloquium, ut illic aut pax statueretur aut, cui amplius justitia faveret, cognosceretur. Ego enim,
sicut vos mihi testes estis patres et domini, usque hodie nullam partem disposui adjuvare nisi
140
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

concílios, portanto, eram espaços imprescindíveis do poder papal. Colocar-se


no caminho de sua realização era desacatar a autoridade apostólica de maneira
direta. Ainda assim, eram espaços em disputa. Por isso, Gregório viu-se forçado
ao ato extremo: acionar sua voz, única e pessoal, e endireitar a questão. A voz era
uma garantia política ainda mais segura que os concílios. Ao menos era assim
que Gregório VII agia.
Os textos da condenação régia são incomuns. A afirmação tem como
referência, em primeiro lugar, o próprio Registro oficial da correspondência
gregoriana. As demais ações corretivas ou mesmo outras excomunhões não
apresentam um discurso de presentificação como o que encontramos nas
sentenças de 1076 e 1080. Aí estão os únicos textos redigidos como uma fala
pessoal dirigida aos apóstolos. É expressivo que, ao formular a decisão mais
grave, o pontífice não tenha lançado mão de qualquer alusão patrística ou
conciliar.
O contraste com outras epístolas pode ser facilmente realçado.
Em dezembro de 1075, quando repreendeu Henrique por associar-se a
excomungados e interferir na eleição do bispo de Milão, Gregório justificou-se:
“oprimidos pelos perigos e a manifesta ruína do rebanho do Senhor, recorremos
aos decretos e ensinamentos dos santos padres”.96 Os decretos em questão
eram cânones de um concílio reunido em Constantinopla nos anos de 869 e
870. Meses depois, em julho, ele dirigiu-se “a todos os que viviam no Império
Romano” e, para exortá-los a resistirem ao rei, recorreu a trechos do Moralia in
Job e de cartas de Gregório I (540-604).97 Em setembro, o pontífice amparar-se-ia
na autoridade dos distantes concílios de Agde (506) e de Arles (524) para proibir
que um clérigo muito jovem fosse elevado a bispo da diocese de Dol.98 Em
outubro, a fim de esclarecer por que não poderia livrar da excomunhão o bispo
de Utrecht, nem mesmo se o prelado morresse, Gregório tomou emprestadas

eam, cui plus justitia faveret. Et quia putabam, quod injustior pars colloquium nollet fieri, ubi
justitia suum locum servaret, excommunieavi et anathemate alligavi omnes personas sive regis sive
ducis aut episcopi seu alicujus hominis, qui colloquium aliquo ingenio impediret, ut non fieret.”
(GREGÓRIO VII. Registros sinodais. MGH Epp. sel. 7, p. 483-487; HUGO DE FLAVIGNY.
Chronicon. MGH SS 8, p. 451-453; MANSI 20, p. 534-536).

96 “[...] concussi periculo et manifesta perditione Dominici gregis ad sanctorum patrum decreta
doctrinamque recurrimus [...].” (GREGÓRIO. Epístola 10. MGH Epp. sel. 1, p. 266).

97 GREGÓRIO. Epístola 01. MGH Epp. sel. 1, p. 290.

98 GREGÓRIO. Epístola 04. MGH Epp. sel. 1, p. 300.


141
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

palavras escritas no século V pelo papa Leão I (400-461).99 Dias depois, uma
citação do mesmo papa surgiu na carta que recomendava aos bispos toscanos a
restauração do bispo de Siena, injustamente associado a Henrique IV.100
Nada de semelhante há nas excomunhões do rei Henrique. Redigidas
como atos de fala, elas reportam apenas a passagens bíblicas, provavelmente
ditadas de cor. O que não quer dizer que a forma de proceder adotada por
Gregório fosse exceção. Pelo contrário. Ele reproduziu um modo de acionamento
da autoridade que acreditamos ter sido partilhado por diversos integrantes do
Papado. Seu contato com esse modelo de ativação da autoridade era antigo e
remontava à memória do homem que um dia ele chamou de “meu senhor” e
serviu fielmente quando era um modesto capelão romano: o papa Gregório VI
(1000?-1047). Vejamos.
Em 1044, o Papado foi atingido por grave crise. As rivalidades entre
Tusculanos e Crescenzii – duas famílias aristocráticas de imprecisas ramificações
parentais que lutavam pelo controle de Roma – acirraram-se. O conflito provocou
a fuga do pontífice reinante, Bento IX (1012?-1085). Com a Sé romana vaga, um
rival foi aclamado como Silvestre III (1000-1050?). Porém, antes de fugir, Bento
entregou sua dignidade a outro, um presbítero que assumiu o nome apostólico
de Gregório VI. Em poucos meses, o trono de Pedro era reclamado por três
papas. A disputa, todavia, não durou muito, pois todos foram removidos pelo rei
Henrique III pouco antes do Natal de 1046.
Precisamente nesse ponto, a documentação bifurca-se. Uma parcela
das fontes atesta que os três eclesiásticos receberam o mesmo tratamento: foram
depostos como invasores da Igreja romana, os dois últimos no sínodo presidido
por Henrique em Sutri, e o primeiro em um concílio realizado em Roma. Essa
versão é endossada pela Gesta Hamburgensis Ecclesiae Pontificum, pela Chronica
do Analista de Saxo, pelos Annales de Lamberto de Hersfeld, pelo conhecido
De Ordinando Pontifice, entre outros.101 Um segundo conjunto de documentos
insiste que, diferentemente de seus rivais, Gregório VI não teria sido deposto,
mas abdicado. Sua destituição aparece como renúncia voluntária no Liber ad

99 GREGÓRIO. Epístola 06. MGH Epp. sel. 1, p. 303-304.

100 GREGÓRIO. Epístola 08. MGH Epp. sel. 1, p. 306.

101 ADÃO DE BREMEN. Gesta Hamburgensis Ecclesiae Pontificum. MGH SS rer. Germ. 2: 148;
ANNALES AUGUSTANI. MGH SS 3, p. 126; ANNALES CORBEIENSES. MGH SS 3, p. 6;
ANNALES ROMANI. MGH SS 5, p. 468-469; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6, p. 687; DE
ORDINANDO PONTIFICE. MGH Ldl 1, p. 8-14; HERMANO DE REICHENAU. Chronicon.
MGH SS 5, p. 126; LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5, p. 154. Ver ainda:
GREGOROVIUS, p. 47-57; MANN, 5, p. 238-269; POOLE, 1917, p. 1-30.
142
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

Amicum de Bonizo de Sutri, na Chronica de Bernoldo de Costance, na Chronica


Casinensis e nos Dialogi do papa Vítor III.
Segundo esta última perspectiva, após ouvir os “homens religiosos”
reunidos pelo rei em Sutri e tomar conhecimento dos tristes fatos envolvidos em
sua eleição, o outrora presbítero teria condenado a si mesmo:

“Eu, Gregório, bispo, servo dos servos de Deus, julgo-me


merecedor de ser removido do ofício de bispo de Roma, em razão
da mais perversa venalidade da heresia simoníaca que, através
dos ardis do antigo inimigo, rastejou para minha eleição”. E ele
acrescentou: “Isto vos agrada?” Eles replicaram: “O que agrada a
ti, nós confirmamos”.102

Para a historiografia, Gregório foi deposto e os relatos “que falam


em abdicação devem ser dispensados como falsificações tendenciosas”
(TELLENBACH, 1959, p. 177). Ou seja, essa versão infundada não passaria de
uma manobra, que teria sido formulada para criar um passado conveniente.
Pois muitos integrantes do Papado durante as décadas de 1060 e 1070 estavam
associados ao presbítero deposto. O cardeal Pedro Damião, por exemplo, aclamou
a eleição de João Graciano como Gregório VI.103 Hildebrando, que futuramente
se inspiraria naquele homem e retomaria seu nome como “Gregório VII”, era seu
capelão e seguiu-o no exílio imposto por Henrique III (JEDIN, 1980, p. 254-255;
COWDREY, 1998, p. 21-26; CANTARELLA, 2005, p. 81-99).
Ao que parece, trata-se mesmo de uma “falsificação”. Todos os
propagadores da versão da abdicação eram papistas: Bonizo, bispo de Sutri e
fervoroso defensor da “causa hildebrandina” contra Henrique IV; Desidério
(1026-1087), abade de Monte Cassino eleito pontífice no final da vida como
“Vítor III”; Bernoldo de Constance, apologista de Gregório VII; e Leão de
Marsica (1046-1116), monge em Monte Cassino e, como tal, subordinado a
Desidério. Todos estavam comprometidos com a defesa do governo do qual
participavam Damião e Hildebrando. Nenhum desses escritores poderia ser
considerado confiável em relação a esse evento, pois todos teriam fraudado a

102 “Ego Gregorius episcopus, servus servorum Dei, propter trupissimam venalitatem symoniace
hereseos, que antiqui hostis versutia mee electioni irrepsit, a Romano episcopatu iudico me
submovendum’. Et adiecit: ‘Placet vobis hoc?’ Et responderunt: ‘Quod tibi placet et nos firmamus’.
”  (BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl. 1, p. 586). Outras fontes para a versão
da abdicação: BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH SS 5, p. 423; CHRONICA
MONASTERII CASINENSIS. MGH SS 7, p. 682; VÍTOR III. Dialogi. PL 149, p. 1003-1005.

103 PEDRO DAMIÃO. Briefe 14. MGH Epp. 1, p. 142-145.


143
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

verdade em prol da reputação do establishment papal (BORINO, 1916; POOLE,


1917, p. 7-16; CAPITANI, 1966, p. 1-51; VACCA, 1993, p. 157-166; MELVE,
2007, p. 122-157).
Precisamente por isso, tal versão é valiosa: por oferecer a medida
da legitimidade do poder para integrantes do próprio Papado. A “manobra”
documental era impulsionada por um desejo de distinguir os três homens
removidos da Igreja romana em 1046. Os papistas reconheciam que Gregório
havia incorrido em simonia. Mas asseguravam que ele ignorava que o tivesse
feito. Seu envolvimento no acordo em dinheiro que lhe garantiu a Sé apostólica é
apontado como direto, mas comandado pela inocência. Desconhecer-se faltoso
distinguia-o dos rivais. Os três eram infratores. Os três haviam maculado a
Igreja barganhando a eleição com dinheiro ou influência familiar. Mas um deles,
inconsciente de suas ações, não havia deixado o domínio da legalidade, apesar
de simoníaco. Eis o fundamento lógico da versão da abdicação: por não estar na
mesma ilicitude de seus rivais, Gregório não poderia ter sido deposto, como eles
o foram.
Para os autores papistas, a fronteira da legitimidade das ações
pontifícias não era demarcada por atos cometidos, mas antes pelos estados
de consciência que conduziam tais atos. As falhas de conduta não decorriam
puramente de ações, mas da intencionalidade. Era precisamente um desses
“estados de espírito” – o da ausência de motivação ou intenção simoníaca –
que demonstrava a legalidade de Gregório VI aos olhos de figuras importantes
no interior da Cúria romana. Por essa razão, os relatos papistas descrevem-no
realizando não só um gesto de renúncia ao poder, mas um exame confessional
com o qual teria acatado a solicitação do plenário conciliar de “refletir sobre teu
caso em teu próprio peito e julgar a ti mesmo por tua própria boca”.104
As sentenças de excomunhão declaradas sobre Henrique IV
empregaram a mesma medida de legalidade articulada por aqueles escritores
para garantir a Gregório VI um bom lugar junto à memória eclesiástica. Gregório
VII foi fiel à cena que testemunhou em Sutri quando era um jovem capelão: uma
autoridade tracejava a linha divisória entre o lícito e o ilícito não apenas por
regras de conduta e fatos, mas pelo testemunho de sua consciência, ao confessar
os valores que guiavam suas decisões. Sua maneira de acionar o poder capaz
de punir demonstrava que a expansão das formas escritas do direito não havia
forçado um recuo imediato da oralidade como prática jurídica legítima.
O modo de proceder do papa permite outra conclusão: a multiplicação
dos acervos de textos canônicos conhecidos criou uma “oralidade textual”. Ao

104 “Cui illi respondentes dixerunt: ‘Tu in sinu tuo collige causam tuam, tu proprio ore te iudica’.”
(BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl. 1, p. 585-586).
144
A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade

invés de enfraquecer, a cultura escrita fortaleceu os usos da voz politicamente


qualificada. A oralidade presente nas decisões papais da segunda metade do
século XI extrai uma força renovada da chance de ser guardada em texto. A
diversificação dos registros escritos ampliava os campos de atuação da voz.

145
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

Parte V
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

A maldição do antipapa:
sobre historiografia e nacionalismo

Roma, 1117. Um clérigo recém-chegado do extremo da cristandade


proclamou-se o detentor do legado gregoriano. A cidade estava em polvorosa,
tumultuada pelas falanges de soldados trazidos pelo jovem rei Henrique V (1086-
1125) para convencer o traumatizado Pascoal II (?-1118) a coroá-lo “imperador
dos romanos”. Aterrorizado pela lembrança do sequestro e dos meses como
prisioneiro daquele mesmo rei, o papa fugiu. A maior parte da Cúria imitou
o exemplo e seguiu-o até Benevento. Os cardeais desertaram de seus altares.
O prefeito romano era agora um aristocrata que havia liderado uma violenta
rebelião contra Pascoal. Em meio a esse vendaval de perturbações, o prelado
apareceu. Ele tinha viajado desde o norte da Península Ibérica, da longínqua
cidade de Braga, onde era arcebispo.
Tendo chegado à cidade dos apóstolos um ano antes, para defender
o patrimônio de sua igreja, ele estava agora à frente do altar da basílica de São
Pedro, erguendo a coroa que um dia havia pertencido a Oto III para depositá-
la solenemente sobre a cabeça de Henrique. Após a coroação, o jovem rei
reconheceu-o como papa legítimo, embora Pascoal ainda vivesse. Na Cúria,
ele foi visto como traidor e excomungado, mas, de algum modo, enxergava a si
mesmo como o continuador da obra de Gregório VII, cuja memória reivindicou
quando decidiu que seria chamado “papa Gregório VIII”.
O nome desse eclesiástico era Maurício Burdino (?-1137). Sua
elevação ao Papado ainda é um enigma. Especialmente porque os historiadores
silenciaram acerca de uma das principais tentativas de esclarecê-la: o estudo
realizado pelo francês Pierre David em 1947.

O enigma de Pierre David

Dois anos após o fim da Grande Guerra, David publicou Études


historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe siècle. À primeira vista, uma
obra amparada em padrões intelectuais ultrapassados para sua própria época:
seus numerosos estudos individualizados formavam um espesso compêndio
de recortes monográficos, salomonicamente repartidos entre a escrupulosa
crítica documental e o estudo de grandes personalidades da política portuguesa.
Contemporâneo de Marc Bloch e Ernst H. Kantorowicz, Pierre David parecia
149
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

encastelado numa escrita oitocentista sobre o passado. No entanto, seu castelo,


os Études historiques, abrigava uma valiosa tese para os estudos medievais.
No penúltimo capítulo dessa obra, o autor fez sua atenção recair
inteiramente sobre uma figura controversa: Maurício Burdino, o arcebispo de
Braga elevado a sumo pontífice em 1118, ou antes, o “antipapa”, já que fora
escolhido em oposição a Gelásio II, eleito pelo colégio de cardeais como sucessor
de Pascoal II. Até então, os historiadores consideravam-no um personagem
menor do passado medieval, cujo maior feito teria sido uma desventurada
oposição à “Reforma Gregoriana”. Instigado pela oferta imperial de sentar-se no
Trono de Pedro, Maurício teria se prestado ao papel de testa de ferro do sucessor
imperial, Henrique V, a quem se aliou contra a irreversível maré histórica
provocada pelas ideias de Gregório VII. No tabuleiro político da “Questão das
Investiduras”, o arcebispo tornou-se um peão sacrificado pelo rei germânico e
acabou arrasado pela torrente de vitórias gregorianas.
Não aos olhos do medievalista francês. Para Pierre David, era preciso
repensar a importância e o papel desempenhado pelo antipapa nos rumos
da política pontifícia que despontava no século XII. Afinal, razões de grande
envergadura histórica deviam estar por trás daquela inesperada aclamação.
Embora as lacunas documentais fossem gigantescas, era necessário supor que
apenas uma poderosa trama de motivações teria feito daquele arcebispo, recém-
chegado das extremidades do mundo, o protagonista das revolucionárias relações
de força travadas entre Papado e Império. Era forçoso decifrá-la e desvendar o
enigma oculto pela ascensão pontifícia de Burdino. Após dobrar páginas e mais
páginas de argumentos consistentes, David embaralhou sua conclusão junto a
juízos morais e avaliações psicológicas, bem ao gosto dos eruditos do Oitocentos.
Ainda assim, seu ponto de vista era inovador:
Nós pensamos, com efeito, ter provado que Maurício Burdino
não foi o ambicioso sem consciência que certos historiadores
pretendem ver nele. Qualquer que tenha sido a condição
que desempenhou em sua atitude, o amor mais ou menos
inconsciente pelas grandezas, não nos dá o direito de recusar-
lhe um desejo sincero de servir à causa da Igreja. Neste tempo,
as velhas fórmulas desintegraram-se em toda parte para deixar
florescer a liberdade da função espiritual; Maurício talvez não
estivesse suficientemente a par das teorias e dos precedentes que
reservavam ao imperador alemão um papel na eleição pontifícia.
Ao mesmo tempo, sem dúvida, ele figurava entre aqueles que, para
além do rigor das primeiras fórmulas gregorianas, entreviram
e sustentaram um acordo possível que asseguraria inteiramente
a liberdade da Igreja, concedendo aos príncipes temporais as
garantias legítimas de fidelidade da parte dos grandes bispos

150
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

feudatários. Uma fórmula deste tipo, já aplicada na França e na


Inglaterra, seria adotada por Calisto II na Concordata de Worms,
apenas quatro anos mais tarde. Mas, para concluir a paz com o
Império, era necessário um papa cuja eleição fosse imaculada de
toda influência imperial. Maurício pôde ceder ao desejo de ser o
homem deste acordo, o inaugurador desta paz. (DAVID, 1947, p.
499-500).

Desde o século XVIII, o arcebispo de Braga era exaustivamente


caracterizado pela historiografia como “intruso na política pontifícia”. Era
isso o que tentava amenizar a Vita Mauritii Burdini Archiepiscopi Bracarensis,
composta por Étienne Baluze e publicada por Giovanni Mansi (1761, p. 137-
148). Geração após geração, os estudiosos habituaram-se a vê-lo figurar na
“Querela das Investiduras” como mero títere imperial: sujeito inteiramente
manobrado por Henrique V (SCHWAIGER, 2003, p. 750-751). A elevação
de Burdino ao trono petrino foi continuamente classificada como um “gesto
escandaloso” (BOWDEN, 1840, p. 365), um “golpe de audácia” (LOUGHLIN,
1907, p. 407), um “ato de loucura criminosa” (DAVID, 1947, p. 442) perpetrado
pela corte germânica em sua insensata busca pela coroa que um dia pertencera
a Oto III. A atuação desse “ambicioso lacaio do rei teutônico” teria sido um fato
marginal na história; um lance de oportunismo sem maiores consequências, a
não ser para o próprio arcebispo e para a constituição de sua memória histórica.
Não foi o que sugeriu Pierre David. Desafiando a historiografia vigente,
o francês viu em Maurício Burdino um precursor do Pactum Callixtinum, mais
conhecido como a “Concordata de Worms”: o acordo de 1122 que teria selado a
conciliação entre o Papado e o Império a respeito das investiduras eclesiásticas.105
Oriundo de uma diocese longínqua, o eclesiástico de Braga teria influenciado a
política papal decisivamente. Sua consagração como (anti)papa Gregório VIII
teria sido, na realidade, a efetivação de uma alternativa real para o radicalismo
dos princípios que desde o fim dos anos 1070 inflamavam a discórdia entre os
papas e os monarcas da cristandade. Burdino teria encarnado a possibilidade
de uma ampla conciliação entre a autoridade pontifícia e a hegemonia imperial.
Sua entronização seria o marco de uma reviravolta: a superação da fase
“revolucionária” das reformas romanas e a consolidação de uma nova economia
de poderes, baseada em um compromisso envolvendo a Igreja de Roma, as
Monarquias e o próprio Império.

105 Na perspectiva então predominante entre os estudos medievais, a Concordata não apenas
assinalava uma mudança política capital, como costumava ser enaltecida como uma das grandes
vitórias da diplomacia papal medieval. Tal era a posição assumida por Hugues (1935, v. 2, p. 292)
e Tellenbach (1959, p. 122-124). Exceção seja feita a Cecka (1934).
151
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Sugerir isso no contexto em que os medievalistas inclinavam-se ao


paradigma da Réforme Grégorienne, consagrado por Augustin Fliche, era incitar
a subversão intelectual e contestar um amplo modelo explicativo do passado. A
ascensão do arcebispo de Braga deveria ser vista como um fator implicado no
“Fim da Era Gregoriana”: se essa conclusão vingasse, o debate que se formava
acerca das conexões entre as “reformas eclesiásticas” e a “teocracia gregoriana”
poderia ter seguido rumos muito diferentes.
Com os anos 1930, o significado político do Pactum Callixtinum – a
“Concordata” – tornou-se questão central para os historiadores. Muitos eruditos
eram mobilizados pelo desafio de dimensionar as consequências do compromisso
de 1122. Após a publicação de Lo Scisma del MCXXX, por Pier Palumbo (1942),
consolidou-se a tese de que a concórdia formalizada pelo pacto quanto aos
procedimentos de investidura eclesiástica exigia a completa redefinição da
política papal. Afinal, a fonte das tensões que moviam os pontificados desde a
época do Gregório VII havia sido anulada. O regnum e o sacerdotium não eram
mais adversários, mas aliados. A cristandade vivia um novo amanhecer político:
as prioridades do chamado “programa reformador” seriam alteradas, pois os
desafios da “Reforma Gregoriana” teriam ficado para trás (PALUMBO, 1942;
KLEWITZ, 1957; PACAUT, 1957; SCHMALE, 1961).
Se a perspectiva de Pierre David tivesse frutificado, talvez hoje, nós
historiadores fôssemos levados a redesenhar alguns contornos do passado,
corrigindo o silêncio presente em descrições como esta:
A operação de transformar a Igreja de Roma em vértice
indiscutível de toda a cristandade católica remonta a Gregório
VII no fim do século XI. Muitos bispos experimentaram opor-
se, mas a questão foi encerrada em 1122, com a Concordata de
Worms entre o papa Calisto II e o imperador Henrique V: os
dois grandes poderes universais reconheceram-se mutuamente.
(SERGI, 2005, p. 80-81).

Sob o prisma proposto por David, o envolvimento de Burdino nos


assuntos papais foi importantíssimo. Apesar da lúgubre derrota na disputa
pela Igreja romana, as ações do bispo ibérico teriam sido o fio da meada de
uma ampla mutação da eclesiologia ocidental no século XII. À sombra da
reputação de “usurpador”, sua trajetória política seria o indício de mudanças
de grande repercussão. Essas provocações ficam mais nítidas se dispostas
como questionamentos: a súbita ascensão do metropolitano de Braga teria
sido o resultado de uma vinculação profunda e ainda mal conhecida entre
as igrejas ibérica e romana? As relações de poder vivenciadas na Hispania
152
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

teriam funcionado como um “modelo” para uma visão conciliatória a respeito


da “Igreja” e do “Império”? Nesse caso, a realidade do distante Condado
Portucalense teria influenciado a reformulação do governo pontifício nos anos
1120? Aquela franja territorial ao norte da Península Ibérica, berço da atuação
eclesiástica do antipapa, teria sido nicho de relações sociais que inspiraram a
superação dos princípios hierocráticos, propiciando novas ideias a respeito da
“autoridade espiritual”, da “ordem clerical”, “dos poderes temporais”? Dito com
palavras mais habituais e ideologicamente incômodas: aquela “região periférica”
teria conduzido politicamente o “centro” eclesiástico da cristandade?
Embora de modo tácito, a resposta de Pierre David para o “Enigma
de Maurício Burdino” expunha diversas imprecisões do velho modelo
historiográfico da “monarquia papal” e do corolário de uma cristandade
concebida como conjunto de províncias eclesiais que orbitavam ao redor de um
astro-rei: Roma. A trajetória do desafortunado antipapa seria a chave explicativa
para pensar de modo diferente. Seguindo seus passos, os historiadores poderiam
vislumbrar a autonomia e a complexidade dos laços que ligavam uma “igreja
local” como Braga à estruturação do governo dos papas.
Laços característicos de uma integração política que não caberia
dentro das usuais fórmulas de “subordinação ou dependência periférica”. A
“imperdoável ambição” daquele prelado poderia ser o indício mal compreendido
de uma dinâmica organizacional estranha a nosso olhar acostumado aos
modernos aparelhos de Estado. Compreendê-la exigiria uma disposição para
aventurar-se por novas possibilidades de estudo. Na realidade, podemos ir
mais longe. Pensadas ao extremo, esticadas até as últimas consequências, essas
conjecturas insinuam a possibilidade de pôr à prova algo maior: as ideias
iluminista e romântica de “Europa”, sempre carregadas da supervalorização de
aspectos e figuras historicamente associados à França, Inglaterra e Alemanha
(CHABOD, 1961; DUROSELLE, 1965).
Mais intrigante do que essa “tese” proposta por Pierre David foi seu
naufrágio em um mar de silêncio. Não que os Études historiques tenham sido
uma obra marginalizada. Na realidade, seu sucesso foi instantâneo. Assim o
provam as entusiasmadas resenhas a ela dedicadas por Yves Renouard (1948) e
Charles Verlinden (1950). Assinadas por autores renomados, as duas avaliações
saudaram a perícia com que o abade manejava o método da crítica documental,
em especial ao explorar a autenticidade do Paroquial Suevo do século VI.
As resenhas antecipavam o reconhecimento que seria obtido por aqueles
minuciosos exames de textos medievais. Todavia, elas igualmente prenunciavam
a receptividade que aguardava as conclusões sobre o caso do antipapa Burdino:
153
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

nenhuma menção, nem mesmo o menor dos comentários. A conduta fez-se


regra entre os historiadores, notadamente os portugueses. Há mais de meio
século, eles exaltam incessantemente aquilo que reconhecem como “História
Nacional” no livro de Pierre David, mas emudecem por completo quando se
trata da “tese” acerca do arcebispo de Braga e sua enigmática projeção sobre o
Papado.
Maior do que o “enigma” enfrentado pelo abade francês foi a charada
criada pela recepção de sua obra. Pois como explicar que potencialidades
historiográficas tão notáveis tenham passado despercebidas por gerações de
pesquisadores? Por que tantos investigadores talentosos e experimentados
deixaram-nas inexploradas, suspensas numa espécie de vazio, como se
simplesmente não fizessem parte dos Études historiques? Por que as instigantes
ideias sobre o antipapa Burdino parecem permanentemente exiladas, empurradas
para além do interesse dos historiadores?

A fronteira nacional como limite do discurso histórico

O novelo de respostas começa a ser desembaraçado quando


percebemos que tal silêncio não foi o preço cobrado pela negligência, tampouco
por algum desconhecimento. Ele decorreu, na realidade, de um olhar seletivo,
de uma escolha. Silenciar foi uma opção. Era a conduta correta a ser adotada,
aquilo que se esperava do “bom historiador”, conforme ensinara um respeitado
erudito: Carl Erdmann.
Em meio à agitação intelectual dos anos 1920, o jovem estudioso alemão
surgiu na cena acadêmica com um projeto audacioso: reunir e editar toda a
documentação papal de que se tinha notícia a respeito de Portugal, notadamente
sobre o século XII. A coleção veio a público ostentando o prestigioso selo da
Academia de Ciências de Göttingen. Com o aparecimento de Papsturkunden in
Portugal (1927), vieram as credenciais de refundador de um domínio de estudos:
o lugar da Ibéria na história do Papado, ou vice-versa.
Pouco depois, em 1936, buscando uma compreensão que abarcasse
todo o universo documental já desbravado, Erdmann compôs Das Papsttum und
Portugal in ersten Jahrhundert der portugiesischen Geschichte.106 Com pouco mais
do que algumas dezenas de páginas, esse estudo colocou a eficácia metodológica
alemã e seus respeitáveis parâmetros científicos a serviço de uma hipótese há
muito tempo acalentada por pensadores portugueses: o princípio de uma

106 A edição consultada aqui é a de 1996, em português.


154
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

indissolúvel ligação histórica entre a Igreja de Braga e a independência política


lusitana. A ideia pode ser assim dedilhada: meneando as difíceis negociações
com os interesses papais, resistindo às pretensões de Toledo e Compostela em
nome do desejo de agrupar todas as dioceses do ancestral Condado Portucalense,
os arcebispos bracarenses fizeram da luta pela autonomia de sua igreja a lenta
construção de uma unidade territorial. Suas atuações impulsionaram a distinção
daquelas villas frente aos senhorios próximos, ao mesmo tempo em que a
vinculavam a algo mais imediato e concreto que o universalismo hierocrático
irradiado de Roma. A Ecclesia organizada em torno de Braga modelou uma
identidade coletiva, demarcou-a nos limites territoriais da península e, assim,
fundamentou a constituição do reino português.
Segundo Erdmann, a liderança bracarense imprimiu sobre a sociedade
portuguesa uma irreversível tendência à centralização, que se efetivou por meio
da capacidade de seus arcebispos de dotar aquelas regiões de uma hierarquia
eclesiástica integrada sob um único primaz, artífice da uniformidade de
linguagem, disciplina e credo. Para isso, uma a um, os prelados de Braga viram-
se forçados a tomar a iniciativa e enfrentar todos os litígios em que sua igreja
estava envolvida. Decididos a defender todos os privilégios de sua posição, até
mesmo alguns já esquecidos, colocaram-se a caminho de Roma. Era preciso
provocar o reconhecimento romano para sua causa, pois ele traria consigo as
garantias de uma voz superior, apostólica e catholica. As viagens à Península
Itálica repetiram-se durante décadas a fio, até novembro de 1114, quando
Maurício obteve um privilégio “definitivo” de Pascoal II:
Maurício provou naquele momento crítico a sua habilidade. Vai
a Roma e consegue de Pascoal II [...] não só o reconhecimento
do seu ponto de vista na questão de Coimbra e Zamora, mas
também na anulação dos direitos de legado que o arcebispo de
Toledo exercia sobre a província de Braga. Um mês depois recebe
novo privilégio que lhe confere o título, longamente ambicionado,
de arcebispo. É preciso lembrar que no privilégio que recebeu em
1109, era intitulado apenas coepiscopus, como seu predecessor.
Só agora é reconhecido como metropolitano independente e
exclusivamente responsável perante a Santa Sé. O último vestígio
da subordinação ao primado de Toledo desaparece, e na realidade
já durante os trinta anos seguintes não há questão jurisdicional de
Toledo sobre Braga. (ERDMANN, 1996, p. 26).

A elegante escrita de Das Papsttum é entrecortada por trechos como


esse. Neles, o autor atribuiu a Maurício papéis decisivos na constituição da “Igreja
portuguesa”. Alguns deles narram episódios em que o arcebispo aparece como
um hábil negociador político, capaz de percorrer com desenvoltura a tênue linha
155
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

que separava a concessão e o domínio, a fraqueza e a concretização da vontade,


como quando ele contornou a rivalidade com o bispo de Compostela, Diego
Gelmirez, para atraí-lo a uma aliança contra Bernardo de Toledo (ERDMANN,
1996, p. 24-25).
Todavia, ao longo de sua escrita, Erdmann não foi capaz de conter um
sentimento quase palpável de reprovação ao arcebispo. Tão logo seu olhar sobre
a história das relações entre o Papado e Portugal recaiu sobre aquele prelado,
o erudito alemão julgou-o. Antes de proporcionar ao leitor a chance de avaliar
o episcopado, ainda nas primeiras linhas de sua argumentação, o medievalista
alemão assumiu o papel de juiz e sentenciou o homem que tentava compreender
como “espírito inquieto”, que, apesar de “certa habilidade” para negociações,
não tinha “mão firme” para lidar com as questões políticas. E assim martelou a
imagem de um personagem que, nos momentos decisivos, manteve-se sempre
“ao lado do partido mais fraco, e o seu procedimento custou à igreja portuguesa
uma boa parte das vantagens adquiridas” (ERDMANN, 1996, p. 20-21).
Bastam umas linhas introdutórias para o leitor saber o que esperar da
trajetória de Burdino e antever seu lugar na história. As análises de Erdmann
transcorrem sob essa forte orientação teleológica, como se fossem guiadas por
esta máxima: não importam os sucessos ou as decisões traçadas por aquele
arcebispo, desde o início, tudo o que ele alcançou estava manchado pelo destino,
pela inescapável propensão para promover somente a si mesmo. Índole que
permaneceu latente por todo o período “português” de sua história. Até o
instante em que Burdino ocupou-se estritamente dos assuntos peninsulares,
aquele caráter foi uma força represada. Porém, como tal, em um momento
inevitável, jorraria, apoderando-se da vida do arcebispo.
Entre sucessos provisórios e fraquezas duradouras, as escolhas
de Maurício teriam se somado até cumprir um funesto desfecho: o súbito
recrutamento pelo “lado mais fraco” da “Querela das Investiduras”. Segundo
Erdmann (1996), a história do arcebispo de Braga deveria ser estudada em duas
partes distintas. A certa altura dos acontecimentos, um breaking point estalou,
uma guinada tão repentina quanto fatídica. Essa ruptura teria ocorrido como
um evento que quebrou o tempo, dividindo-o em duas etapas, separadas por um
contraste completo: um “antes” português e um “depois” romano.
O divisor de águas teria sido o encontro de Maurício Burdino com o
rei germânico, ocorrido, provavelmente, em 1116, durante uma viagem a Roma
para obter a confirmação das prerrogativas metropolitanas frente às exigências
do primaz de Toledo e às pretensões dos bispos de Compostela, Coimbra
e Porto. Algo passou com o arcebispo na Península Itálica e pôs do avesso a
156
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

lealdade e os princípios eclesiásticos até então acalentados em seu espírito. Ao


aderir aos planos de Henrique V e coroá-lo imperador, Burdino não somente
teria abandonado a causa de Pascoal II – do qual tinha sido protegido e legado
apostólico – como teria virado as costas por completo às questões portuguesas.
Esse foi o postulado fixado por Erdmann (1996, p. 29-30, grifo nosso) em sua
conclusão sucinta e taxativa:

[...] em março de 1117, na igreja de São Pedro, coroou o


imperador Henrique V, o que representava um ato de rebelião
contra o Papa, que pouco depois replicou com a excomunhão.
Passado mais um ano, Maurício sentava-se em pessoa como
antipapa na cátedra de S. Pedro. Não obstante a Hispânia em
geral ter pouquíssimo que ver com o cisma das investiduras, é
a segunda vez que encontramos um arcebispo de Braga do lado
do antipapado, apesar do insucesso que o bispo Pedro havia tido
em tempos com Guiberto. Através da história de Braga, Maurício
já se tinha familiarizado, como se vê, com a idéia do cisma. Se a
história bracarense pode explicar de certo modo a sua atitude
neste caso, o papel que tomou em Roma não tem nada que ver
com Portugal.

Erdmann demarcou uma fronteira histórica. A seus olhos, Burdino


cruzou a linha que separava dois universos políticos diferenciados. Sua ilegítima
elevação ao governo da Santa Sé funcionou como uma espécie de “segunda vida
clerical”. Já não se tratava mais de um prelado ibérico, menos ainda português.
Roma fez dele um forasteiro da própria vida. Por que o arcebispo de Braga tomou
o partido imperial contra o sucessor de Pascoal II? Que razões colocaram-
no no centro da chamada “Reforma Gregoriana”? Se seguisse a orientação de
Erdmann, o conhecimento histórico terminaria num beco sem saída quando
tentasse oferecer respostas para tais perguntas. Observemos.
Com exceção da educação em Cluny, a existência clerical de Burdino
transcorreu inteiramente nos solos da Hispania. Suas experiências sociais,
políticas e até mesmo sua espiritualidade foram constituídas pelo pertencimento
aos espaços ibéricos. Ora, se a luta entre o Papado e o Império “nada tinha a
ver com os assuntos portugueses”, simplesmente não podemos evocar nenhuma
causalidade dessa ordem, que implicasse o pertencimento coletivo da trajetória
do “antipapa”, para explicar seu envolvimento. A conclusão pode ser dita de
modo mais simples: à luz do pensamento de Erdmann, não foi o arcebispo
de Braga que tomou parte naquela disputa, pois aquela identidade ficou pelo
caminho no momento em que Burdino deixou-se levar por algum motivo
que só lhe dizia respeito. Maurício teria sido elevado a papa não por ser um
157
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

arcebispo ou um líder religioso, mas por ser uma figura conveniente, cooptada
pela nobreza romana para seu jogo de interesses junto ao Império (ERDMANN,
1996, p. 43-66). Ao estudioso, portanto, restaria apenas atribuir o engajamento
do arcebispo de Braga a certos traços de personalidade – ou deveríamos dizer
“falhas de caráter”?
Com isso, a explicação histórica recai na perspectiva insistentemente
cultivada pela própria historiografia eclesiástica desde 1580, quando o cardeal
Cesare Baronio publicou os Annales Ecclesiastici: a deflagração daquela disputa
pela dignidade papal era, acima de tudo, uma corrosão espiritual, um rompante
pecaminoso de ambição, a vã glória provocada por vícios de fé (BARONIO,
1869, t. XVII-XVIII).107
Diante do caso de Burdino, os medievalistas invocam argumentos
proclamados pela memória católica: um falso pontífice é, antes de tudo, um falso
cristão. Talvez isso ajude a compreender a sensação de familiaridade que percorre
a leitura de algo como o Agiologio lusitano dos sanctos e varoens illustres em
virtude do reino de Portugal. Nessas páginas de uma ortodoxia jesuítica, datadas
entre 1647 e 1669, o padre Jorge Cardoso atribuiu o “antipapado” do bracarense à
corrupção da índole espiritual e da obediência hierárquica: “desvanecido com o
favor e graças do imperador Henrique, ele se levantou contra Pascoal II e Gelásio
II, verdadeiros pontífices, [...] aqui teve origem aquele célebre prolóquio entre
os nossos: Bachara voluit esse Romam [Braga deseja ser Roma]” (CARDOSO,
1666, t. III, p. 37). Razões que o secularizado mundo burguês converteria em
falhas pessoais, em um desastrado cálculo de individualismo político. Essa
versão, por sua vez, é encontrada na Storia degli antipapi concluída em 1859 pelo
Monsenhor Daniello Zigarelli, camareiro de Pio IX; bem como na Historia da
Egreja Catholica em Portugal que o presbítero José de Sousa Amado publicou
em 1871.
A presença dessa interpretação nessas obras é o sinal da intercessão
mantida entre a memória clerical católica e a consciência histórica oitocentista:
vinculação maior do que admitiam as “escolas historiográficas científicas”. Mais
de uma década depois, Erdmann desposou novamente tal perspectiva, por meio
da publicação do livro intitulado Maurício Burdino (Gregório VIII), um dos raros
estudos inteiramente dedicados ao antipapa. Sua conclusão é de uma clareza
meridiana:
A vida de Maurício Burdino careceu de humana grandeza e
de idéias diretrizes. Uma situação desagradável que ele, como

107 Ver igualmente: Labbe e Cossart (1671-1672); Hardouin (1714-1715); Anastasio (1754);
Mansi (1758-1798); Rust (2011b, p. 266-292).
158
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

arcebispo, criara, levou-o a embainhar a espada e a tentar fortuna


como aventureiro, na qualidade de antipapa. A habilidade para
as coisas práticas e, ao que parece, também a astúcia ajudaram-
no a desempenhar um papel, que prometia ser muito brilhante,
nas questões internas de Roma, sem, contudo, nelas conseguir
penetrar. Quando sua estrela declinou no horizonte, todos o
repudiaram. Afinal, só por um acaso é que ele foi personalidade
histórica. (ERDMANN, 1940, p. 71).

“Aventureiro” e “fraco”. A aliança com o imperador é tomada por


Erdmann como o signo de uma página de vida virada pela cobiça. O pacto,
subitamente, deu início a outra história, na qual as ações do arcebispo surgem
aparentemente descoladas de seu passado ibérico. Retratado como se tivesse
desertado da Igreja e da própria biografia portuguesa, Maurício passa a figurar
na história em um vazio político e religioso, a respeito do qual só nos resta o
silêncio, disfarçado de julgamento moral: “Maurício conseguiria subir a esse
cargo [o papal] unicamente devido à aliança passageira do imperador [...];
desfeita ela, o antipapa tornava-se supérfluo e foi votado ao esquecimento”
(ERDMANN, 1940, p. 70).
Eis a resposta para a inação dos historiadores perante a “tese” de
Pierre David. Eles incorporaram e respeitaram a fronteira traçada por Carl
Erdmann. Para um interessado na política papal, o surgimento de Gregório
VIII era explicado conforme instruía a memória clerical moderna. Isto é,
como um êxito efêmero, quebradiço, obra de um oportunista, um arrivista
que assumiu inteiramente o papel de marionete dos interesses imperiais. Para
quem investigava o “lado português” da questão, simplesmente não faria sentido
continuar no encalço daquele personagem fora da península, pois a história
lusitana não o seguiu até o pontificado.
A aliança com a corte imperial foi convertida em uma espécie de
“barreira histórica”, um limite entre dois “universos” políticos distintos, cada
qual com diferentes motivações, interesses singulares, lógicas particularizadas.
Demarcação que a historiografia portuguesa reafirmou e fortaleceu com o
endosso de décadas de grandes trabalhos. Sobretudo porque, em pouco tempo,
a inviolabilidade dessa linha divisória foi assegurada pelo pioneiro da história do
clero secular português: o cônego Avelino de Jesus da Costa (COELHO, 2006, p.
213; MARQUES, 1993, p. 285-304).
Ao longo de sua prodigiosa produção bibliográfica, que alcança a
marca de mais de 350 trabalhos publicados, o interesse do cônego pelo arcebispo
Maurício estende-se apenas até o envolvimento com a corte imperial, ou seja,
o suposto momento em que ele “deixou de ser parte do clero português”. Na
159
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

realidade, a seleção de temas e as ênfases de estudo adotadas pelo padre Avelino


sugerem uma classificação dos arcebispos de Braga segundo uma ordem de
relevância para a história portuguesa. Trata-se de uma avaliação dispersa,
implícita, não necessariamente declarada, na qual o governo de Burdino figurava
como capítulo menor entre duas épocas louváveis, providenciais: a primeira seria
formada pelos episcopados de Pedro I, que durou de 1071 a 1090, e de Geraldo
de Moissac, iniciado em 1096 e concluído em 1108; ao passo que a segunda
corresponde ao longo governo de João Peculiar, arcebispo entre 1139 e 1175.
Embora tenha se tornado um dos principais difusores da obra de Pierre David
– como demonstra seu estudo de 1965 –, Avelino de Jesus da Costa ajudou a
tecer a cortina de silêncio que ronda o a trajetória de Burdino. Ele assim o fez ao
estender um vigoroso respaldo intelectual às ideias de Erdmann. Na condição
de arcebispo de Braga, Burdino era um tema cabível a um estudioso português:
jamais como antipapa.
Nada do que dissemos até este ponto deve sugerir que a historiografia
portuguesa foi indiferente ou negligente perante o arcebispo de Braga. Ao
contrário. Graças a ela, esse personagem tornou-se alvo de atenções incomuns
para alguém que passou à história como “invasor e usurpador da Sé de Pedro”.
Burdino é um dos poucos antipapas do século XI e do XII a ter reconhecida
a atuação como clérigo reformador, algo há muito negado pelos historiadores,
de modo geral, a todos os adversários do “partido gregoriano” associado a
pontífices como Urbano II ou Pascoal II. Se o nome “Burdino” remete-nos
não apenas à disputa pelo Papado, mas também à espiritualidade cluniacense,
à romanização da liturgia peninsular, às peregrinações à Terra Santa, ao lugar
das relíquias na religiosidade ibérica, à defesa das liberdades eclesiais (libertas
ecclesiae), à expansão do monasticismo e até à estruturação senhorial de igrejas
da região da Galícia, esse reconhecimento é devido a uma longa linhagem de
estudiosos portugueses, formada por Francisco de S. Luís (1872, p. 114-134),
Antônio de Vasconcelos (1924), José Augusto Ferreira (1928), o próprio Avelino
de Jesus da Costa (1960-1961, p. 221-243), José Marques (1988; 1990; 1996;
2000), Saul António Gomes (2007, p. 101-120), José Mattoso (1982, p. 55-221),
Maria Cristina Almeida e Cunha (2005), Maria Teresa N. Veloso (2006), Luís
Carlos do Amaral (2008) e tantos outros.
No entanto, é preciso ver com clareza o objeto de estudos dessa
historiografia. Suas atenções permanecem inteiramente atadas às dignidades
de bispo de Coimbra e arcebispo de Braga. Ambas concebidas como poderes
circunscritos a esferas regionais de inserção e atuação políticas. Se um agente
histórico ou mesmo algum feixe de interações sociais são vistos extrapolando
160
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

esse perímetro “local”, eles simplesmente parecem não mais lhes dizer
respeito. Deixam de ser assunto seu. Mas isso porque o raio geográfico dessa
regionalidade aparentemente determina o próprio alcance histórico de ações
sociais e simbólicas vividas por homens e mulheres daqueles séculos. Dito de
outra maneira: essa noção de “regional” funciona como uma verdadeira divisão
sociológica do mundo medieval. Ela aparentemente delimita não apenas uma
espacialização da identidade, mas até onde poderiam chegar as motivações, as
finalidades, enfim, a própria racionalidade dos agentes históricos.
Essa separação surge mantida pela vinculação de uma alegada
unidade territorial a certos polos de autoridade, vislumbrados como autores e
mantenedores da “região”. Trata-se de um jogo de espelho entre o feiticeiro e
seu feitiço: um centro de poder como Braga é vislumbrado como o realizador
histórico de uma regionalidade europeia, mas essa mesma identidade local
que ele constrói delimita a dimensão e a eficácia de suas relações. Com isso,
o postulado de Carl Erdmann pode ser preservado. Afinal, não requer muito
esforço o exercício de demonstrar como tal referência revela-se harmonizada
com suas conclusões. Basta pensar com os termos propostos pelo historiador
germânico: quando tomou parte de questões da autoridade imperial e decidiu
permanecer na Península Itálica, Burdino teria aderido a outro centro de poder
e, por conseguinte, a outra identidade regionalizada. Ele teria cruzado aquela
divisão sociológica, deixando para trás todo seu passado português, local.
Aderindo a uma nova autoridade, o arcebispo fincou raízes numa nova região e,
com ela, numa nova política.

A linguagem nacionalista como teoria política

Mas o problema persiste. Se o prestígio das obras de Erdmann eclipsou


a “tese” de Pierre David, envolvendo-a num silêncio ensurdecedor, o que explica
essa opção unânime pelo primeiro? Por que a explicação proposta pelo francês,
bem provida de discordâncias sistemáticas e consistentes, sequer parece ter
sido notada? Por que sua provocação ao duelo de ideias nem mesmo arranhou
o consenso historiográfico vigente? A resposta não parece estar na própria
qualidade dos trabalhos em questão. Pois os dois historiadores cercaram-se de
amplo respaldo documental e desenvoltura argumentativa. Não nos parece,
portanto, tratar-se de uma questão de produção historiográfica, mas sim de
certas especificidades que definiram a recepção a tal produção. Indo direto
ao ponto: o emudecimento dos estudiosos portugueses diante do “Enigma de
161
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Burdino”, preservado como obediência à magistral opinião de Erdmann, era


uma obrigação intelectual imposta pelo forte sentido de nacionalismo que
perpassava sua cultura historiográfica.
O olhar do erudito alemão atendia às expectativas nacionalistas da
intelectualidade portuguesa. Sobretudo, porque oferecia mais um precedente
medieval para uma forma de pensamento oitocentista profundamente
entranhada na vida política lusitana: a preservação de um nacionalismo
religioso, declaradamente católico. Diferentemente do que se passou em países
como a França – onde o patriotismo chegou a impor-se como a “religião da
modernidade”, derramando sobre os espaços públicos uma religiosidade própria,
cívica e propensa a severo radicalismo anticlerical –, em Portugal a fusão entre
identidade política e catolicismo manteve-se palpável, encorajada pelas reações
antinapoleônicas (BARKER, 2009, p. 169-208; MAR-MOLINERO, 2002, p. 83-
104).
Mais tarde, o próprio republicanismo lusitano seguiu carregado de
identificação católica, apesar de suas orientações político-partidárias muitas
vezes contraditórias e de ter sua particular “questão religiosa” a respeito do
cerceamento da inserção pública dos poderes clericais. É o que revela um
episódio crucial na formação do projeto político republicano: a comemoração do
tricentenário da morte do poeta Luís de Camões em 1880. As celebrações foram
marcadas pela propaganda republicana, que idealizou e divulgou o centenário
como um símbolo nacional. Mesmo num nítido dobre positivista, essa exaltação
do nacionalismo esteve repleta de acontecimentos que demonstravam como o
republicanismo permanecia impregnado de elementos do catolicismo, incluindo
aí desde a ampla formalização estética e literária do “espírito apostólico” que
dera vida aos Grandes Descobrimentos até o solene cortejo que realizou a
transladação dos ossos de Camões e Vasco da Gama para a Igreja de Santa Maria
de Belém, elevando o mosteiro dos Jerônimos – e antigas freguesias imperiais – a
panteão nacional português (CATROGA, 2010a).
Ao longo dos anos 1920 – época da permanência de Carl Erdmann em
Coimbra –, o conservadorismo religioso transformou-se na própria linguagem
da radicalização do nacionalismo partidário. Basta uma rápida leitura do
Programa do nacionalismo lusitano, de João de Castro Osório (1922, p. 58), para
notá-lo:
O nacionalismo entende que deve organizar também dentro
do Estado a vida religiosa do povo português. A religião é uma
necessidade social absoluta, presa a todas as actividades da Nação.
[...] O desenvolvimento de um espírito nacional é sempre paralelo
ao desenvolvimento de uma religião. [...] Deve pois ser um dos
162
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

cuidados do nacionalismo a protecção à religião tradicional e à


defesa contra qualquer outra religião estranha ou nova. [...] A
civilização portuguesa criou-se amparada pelo espírito católico.
A ação portuguesa fez-se amparada pela fé catholica. Por isso o
nacionalismo português tem que ser catholico – catholico por
necessidade social.

À luz desse nacionalismo propenso a aproximações com os espaços


eclesiásticos, a versão dos fatos oferecida por Erdmann exibia-se coerente
e pertinente. A premissa de uma clara distinção entre os “assuntos locais” da
Sé de Braga e a “alta política das investiduras” que se desenrolava nas terras
italianas consagrava uma Igreja do norte ibérico como força motriz da gênese da
identidade portuguesa. Quando indagassem que causas tinham tornado possível
às elites da Galícia descobrir novas semelhanças entre si, priorizando-as em face
das condições sociais mais gerais, como a de “senhores feudais” ou mesmo a de
cristãos, os historiadores não poderiam deixar de reconhecer o peso da liderança
sacerdotal. Isso era evidente por demais, já que os próprios reis de Leão teriam
feito soar o alarme a respeito das “tendências autônomas das famílias condais
portucalenses, a que a restauração da metrópole eclesiástica de Braga dava corpo
e enquadramento institucional” (MARQUES, 1990, p. 21).
Os laços de comunhão religiosa atados àquele arcebispado formaram
o liame que uniu diferentes comunidades senhoriais num mesmo pertencimento
territorial. A unidade do patrimônio eclesiástico e a padronização de ritos, da
disciplina e das normas canônicas teriam criado um sentimento de irmandade
que pouco a pouco sobrepôs a suposta unidade peninsular. Portanto, o coração
patriótico do recente Portugal batia graças a antigas fibras de religiosidade
clerical. Essa era uma ideia muito comum no nacionalismo oitocentista, como
demonstrou Eric Hobsbawm (1990, p. 82-83). E era também um postulado
aplicável por inteiro às ideias de Erdmann: ao intrometer-se nos assuntos de
outra Sé – mesmo que tenha sido a Cúria pontifícia –, Burdino teria operado
um “salto” entre duas identidades, a portucalense e a romana. Teria deixado de
ser “português” quando começou a olhar seu arcebispado de cima, de algum
patamar inaceitavelmente “supranacional”. Pois a Nação era já uma Igreja.
Se redobrarmos a atenção sobre esse postulado de Erdmann, é quase
possível ouvir os ecos da voz de Alexandre Herculano (1842, p. 1), que, na
introdução de sua História de Portugal, exortava seus leitores à “conveniência
de separar da história de Portugal tudo o que é rigorosamente alheio a ela”. Tal
semelhança indica uma convergência importante: a história da igreja de Braga
como elo genético da independência do reino português foi o ponto de encontro
de duas tradições intelectuais. Tal interpretação permitiu a união entre o
163
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

nacionalismo da historiografia portuguesa e a herança hegeliana da consciência


histórica na qual Erdmann foi formado. Expliquemos.
A busca pelas razões de origem das entidades políticas marcava a
filosofia da história de matriz germânica. Especialmente a de Hegel, que concebeu
os Estados como vértices da racionalização das condutas coletivas, como
consumações da “unidade ética” de toda a realidade histórica. Na perspectiva dos
Grundlinien der Philosophie des Rechts, o surgimento da unidade estatal emergia
como início da caminhada gradual e necessária por meio da qual os povos
cumpriam os princípios essenciais de seu espírito coletivo e, entre acelerações
e retrocessos, triunfos e fracassos, alcançavam a consciência de si. Esta, por
seu turno, expressar-se-ia mediante a percepção adquirida pelos indivíduos
acerca das faces da soberania estatal: a interna, decorrente do prevalecimento
do direito constituído sobre a configuração de cada povo, e a externa, que diz
respeito a um mútuo reconhecimento das particularidades entre os diferentes
Estados. As realidades estatais não derivariam, portanto, de algum “contrato
social”, mas da irreversível e universal pluralidade da racionalidade que subjaz
no interior humano e que se exterioriza como reconhecimento mútuo do dever,
da liberdade, da inviolabilidade do consenso público, da integridade do “eu” na
cidadania (HEGEL, 1997, p. 216-318).108
Partilhado por medievalistas alemães da geração de Erdmann
(KANTOROWICZ, 1998; SCHRAMM, 1983), esse ânimo hegelianista enraizava
as noções de “consciência” e “continuidade” como categorias centrais para a
inteligibilidade das relações de poder de uma época. E parece-nos que Erdmann
– e com ele, a historiografia portuguesa – cobrou à trajetória eclesiástica de
Maurício Burdino o preço por afrontá-las: o envolvimento do metropolitano
na disputa entre Papado e Império provaria que ele não tinha consciência
do movimento de totalização da identidade portuguesa – “fim absoluto da
História”109 –, cuja continuidade ele comprometeu ao desobrigar-se perante os
assuntos da Sé de Braga, deixados à deriva no leito do tempo.
Tal compreensão atendia à expectativa do republicanismo português
de encontrar na história episódios que atestassem a progressiva configuração
de uma “alma nacional” no bojo de uma Europa cada vez mais cosmopolita.
Esse anseio é visível, por exemplo, na resposta oferecida por Teófilo Braga (1843-
1924), chefe do governo provisório em 1910-1911 e posteriormente presidente

108 Ver ainda Rosenfield (2003, p. 101-145).

109 Conforme o filósofo: “O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade
que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si para si: esta
unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel.” (HEGEL, 1997, p. 217).
164
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

da República, à pergunta “o que vem a ser uma nação?”: “vontade coletiva, una
e indivisível do consenso de sua existência coletiva e coexistência orgânica de
todas as suas sinergias”, amalgamadas “em uma consciência de continuidade
histórica, e mesmo de uma missão” (CATROGA, 2010, p. 100).
Quanto ao fato de essa “consciência coletiva” ter sido galvanizada
por uma liderança clerical nos primórdios de sua formação, não havia motivo
para embaraços. Tal aspecto era algo facilmente assimilável a uma concepção
positivista de história. Afinal, ressoando pela cultura jurídica e sociológica
portuguesa das primeiras décadas do século XX, as teorias de Auguste Comte
forneciam o modelo científico de um “plano geral do desenvolvimento histórico”.
Nele, as sociedades partiam de primórdios dominados por aspectos teológicos
e sacerdotais, mas subiam nos ombros do tempo, evoluindo para estágios
superiores, estatais e secularizados (CATROGA, 1977). Se as contestações a tal
“lei do progresso histórico” não eram incomuns, nem por isso eram suficientes
para minar sua influência no ambiente acadêmico – como demonstra a atuação
do círculo historiográfico sediado na Universidade de Coimbra entre as décadas
de 1890 e 1940.
O nacionalismo intelectual lusitano era um ambiente propício ao
florescimento das ideias de Erdmann e do tom hegeliano dado ao papel da
Igreja de Braga na constituição do nascente reino português. Reino que surgia
concebido como Estado no qual a comunidade eclesiástica teria desempenhado
o mais exemplar papel político já concebido pela filosofia de Hegel (1997, p. 236-
243):
Nisto reside uma relação entre o Estado e a comunidade
eclesiástica, que é simples de determinar. Parece pertencer à
natureza das coisas constituir um dever do Estado, assegurar à
comunidade todas as garantias e proteção para que ela realize os
seus fins religiosos. Mais do que isso: sendo a religião o elemento
que melhor assegura a integridade do Estado na profundidade
da consciência, poderá ele reclamar de todos os cidadãos que se
liguem a uma comunidade religiosa, embora não importe qual
[...]. Se a comunidade eclesiástica possui uma propriedade, se
efetua os atos culturais e tem para isso indivíduos a seu serviço,
logo transita do domínio da interioridade para o do mundo e,
portanto, para o do Estado [...]. O cisma das Igrejas não é e nem
foi uma infelicidade para o Estado, que, muito ao contrário, por
intermédio dele pôde vir a ser o que era o seu destino: a razão e a
moralidades conscientes de si mesmas.

165
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Agora, observe-se a conclusão a que chega Das Papsttum:

Castela e Leão separados, Portugal um estado fortemente


acrescido e de importância – que sentido tinha a sujeição da
Igreja portuguesa à de Castela que agora nem sequer era vizinha?
Só podia conseguir-se a paz, reconhecendo Portugal como um
estado independente e com tantos direitos como os seus vizinhos.
(ERDMANN, 1996, p. 71).

As semelhanças entre as conclusões do historiador alemão e o


“sistema de Hegel” são, realmente, extensas, reluzentes. Como se demonstrasse
historicamente a plausibilidade das ideias de seu ilustre compatriota, Erdmann
oferece-nos uma história das relações entre o Papado e Portugal em que a
emancipação hierárquica de Braga – uma forma de “cisma” – teria favorecido
o Estado com a firme coesão identitária de uma comunidade eclesiástica. A
centralização religiosa e a integração cultural viabilizaram a unificação territorial,
dando vida ao exemplo de racionalização e objetivação ética da ordem estatal
pelo cristianismo institucionalizado, conforme idealizara o próprio autor da
Phänomenologie des Geistes (HÖSLE, 2007; AVINERI, 1972). Todo esse processo
culminou em uma constatação crucial: a luta pela autonomia eclesiástica de
Braga colocava em jogo a própria soberania portuguesa. A história era escrita
com a certeza de que, à medida que as prerrogativas dos bispos bracarenses
conquistavam espaço, o próprio poder da realeza ganhva novas garantias para
seu fortalecimento.
Isso não significava afirmar que o Estado havia crescido a partir
da religião ou da Igreja. Hegel não corroborava tal ponto de vista, tampouco
Carl Erdmann. Tratava-se, isto sim, de reconhecer como o fortalecimento de
uma solidariedade eclesial teria contribuído para a objetivação da unidade do
espírito, embasando a coesão moral (eticidade) constitutiva da sociedade civil e
da própria ordem estatal, cuja existência e justificação independem das religiões.
Tratava-se, por assim dizer, de uma afinidade histórica entre formas comunitárias
autônomas, cabendo à doutrina da Igreja desposar a responsabilidade civil – não
de alguma forma de dependência ou mesmo de complementaridade. O próprio
Hegel (1995, p. 328) já havia estabelecido o argumento na Encyclopädie der
philosophischen Wissenschaften: “A religião é, para a consciência-de-si, a base da
eticidade e do Estado. [...] É o enorme erro de nosso tempo querer considerar
esses inseparáveis como separáveis um do outro, mesmo como indiferentes um
ao outro.”
À luz dessa combinação de filosofia política hegeliana e nacionalismo
português, a trajetória de Maurício Burdino violava outra noção seminal da
compreensão de mundo dos estudiosos: a ideia de liberdade. Examinemos.
166
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

A história como história da liberdade

Hegel é responsável direto pelo fato de o conceito de liberdade ter-se


emancipado do ideal de livre-arbítrio no bojo do pensamento político moderno.
Uma a uma, até culminarem em Grundlinien der Philosophie des Rechts, suas
obras foram afrouxando os nós de imanência com os quais a doutrina cristã
atava a ideia de libertas ao sinuoso movimento interior da alma conhecido
como “vontade”. Ela não mais deveria ser simplesmente confundida com uma
faculdade da razão ou com a possibilidade de ordenar a própria vida pelo poder
da escolha. Tampouco conheciam seu verdadeiro significado aqueles que,
como John Locke e Jean-Jacques Rousseau, retratavam-na como a ausência de
restrições ou coerções físicas a um “estado natural” do homem (PATTEN, 1999).
Embora reconhecesse que a liberdade retirava do livre-arbítrio sua
forma de excelência e que sem a vontade humana, ela pouco mais seria que
um nome vazio, o filósofo, por fim, assegurou que a condição livre torna-se
concreta, real e histórica, ao substanciar-se num conjunto ético de hábitos,
costumes, tradições, leis e instituições. Ou seja, ao coletivizar-se. Pela pena do
ilustre pensador alemão, a ideia de liberdade foi empurrada para uma drástica
exteriorização. Ou melhor, para uma intensa politização, já que “livre” seria
a condição daquele que se situa num modo concreto de interdependência
axiológica e decisória. Na ótica hegeliana, a liberdade é sempre irreversivelmente
paradoxal ou, se preferirmos, dialética, por ser compreendida como a preservação
de si na identificação com o “Outro”, sem jamais diminuir ou distorcer sua
alteridade. Foi o que deixaram claro certas passagens célebres de Grundlinien
der Philosophie des Rechts: “somente assim se realiza a verdadeira liberdade:
pois, já que ela consiste na identidade de mim como o outro, então eu só sou
verdadeiramente livre quando o outro também é livre, e é reconhecido por mim
como livre.” (HEGEL, 1997, p. 202).110
Em termos menos fenomenológicos, pode-se afirmar que liberdade
não é autonomia ou independência puramente. Mas a realização das reflexões do
ego sobre as possibilidades de dissipar todas as restrições oferecidas pela natureza,
pela necessidade, pelos desejos ou impulsos, sendo tais reflexões possíveis
apenas por meio da interdependência social, da projeção de si no contato e no
conhecimento do “Outro”. A liberdade não está em uma pessoa (persona), como
uma potência dada, pronta, já determinada, à qual restaria apenas cumprir uma
predestinada realização. Ela radica nas mediações concretas que dão forma ao
infindável fluxo de determinações e indeterminações dos vínculos humanos.

110 Ver ainda Westphal (1992, p. 3-73).


167
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Ela advém do bem-estar moral alcançado pela consciência, não de um modo


isolado ou meramente particularizado, mas condicionado pela existência alheia.
A liberdade em Hegel é política não na medida em que pressupõe certa forma de
soberania, quer do indivíduo, quer de um governo, mas ao implicar a convicção
de que a realização da consciência moral de cada um ocorre em face dos deveres
do pertencimento coletivo, da existência em comunidade. O homem torna-
se livre, de fato, mediante o direito e sua forma suprema, a ordem estatal: “o
indivíduo obtém sua liberdade substancial ligando-se ao Estado” (HEGEL, 1997,
p. 216).111
Os domínios estatais, dimensionados de modo simultaneamente
territorial e legal, delimitam o campo legítimo de realização da vontade livre
dos indivíduos. Se empenhada fora do Estado, de seu território e de sua lei, a
liberdade torna-se negativa, sucumbe a uma lógica errática e enganosa. Ainda
que se aventure além do limite das instituições existentes, movido pelo desejo
de estabelecer uma nova ordem, o indivíduo termina por desencilhar uma fúria
destruidora, que repousa em toda subjetividade alheia a um espaço estatal.112
Resta perguntar: as ações de Burdino teriam sido avaliadas segundo tal
medida de liberdade? O vislumbre nacionalista que o descrevia extrapolando a
fronteira da nascente ordem estatal portuguesa teria favorecido uma explicação
fundamentada nessa causalidade hegeliana? Isto é: que seu comportamento
decorria de um mau uso da “vontade livre”, de uma racionalidade política ineficaz,
viciada, porque exterior a um domínio estatal? Tal nos parece, efetivamente, ter
sido o caso. Sendo o pensamento hegeliano não apenas filosofia política, mas
igualmente um modelo de interpretação historiográfica (REIS, 2011, p. 33-123;
IGGERS, 1968), sua definição de “liberdade” pode ter definido o conceito de
ação social aplicado ao “primeiro século da história portuguesa” por Erdmann.

111 Cf. também Nuzzo (2001, p. 111-124).

112 “É a liberdade do vazio. Pode ela manifestar-se como uma figura real, e torna-se uma paixão.
Caso se mantenha, então, simplesmente teórica, temos o fanatismo da pura contemplação
hindu; caso de volta para a ação, teremos, tanto em política como em religião, o fanatismo
de destruição de toda a ordem social existente, a excomunhão de todo indivíduo suspeito de
querer uma ordem, o aniquilamento de tudo o que se apresente como uma organização. Só na
destruição esta vontade negativa encontra o sentimento da sua existência. Pensa que quer um
estado positivo, o estado, por exemplo, da igualdade universal ou da vida religiosa universal,
mas não pode querer efetivamente a realidade positiva pois esta sempre introduz uma ordem
qualquer, uma determinação singular das instituições e dos indivíduos, e é, precisamente,
negando esta especificação e determinação objetiva que a liberdade negativa se torna consciente
de si. O que julga querer talvez não seja mais do que uma representação abstrata, a realização
do que julga querer talvez não seja mais do que uma fúria destruidora.” (HEGEL, 1997, p.14).
168
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

Tudo do que precisamos é pensar segundo os termos hegelianos.


Mesmo exilado na Gália, Gelásio II permaneceu na territorialidade do governo
papal (a própria cristandade latina, universalmente reivindicada pela autoridade
apostólica) e sob o eficaz amparo da lei canônica – conduzida pelo colégio
cardinalício, sua elevação cumpria as determinações da bula In Nomine Domini,
promulgada em 1059 por Nicolau II para regulamentar a escolha dos papas.
Gregório VIII, por sua vez, surge como um personagem duplamente deslocado,
que estava fora não apenas dos domínios espaciais de seu pertencimento
político (a “Igreja portuguesa”), mas igualmente da legalidade canônica (já que
contrariava a deliberação dos cardeais e, como tal, o cânon eleitoral).
Isso talvez explique por que o medievalista alemão jamais viu Gelásio
abandonado pela “reta razão política”, mesmo quando banido para as incertezas
do exílio; ao passo que concebeu Gregório agindo sempre de modo torto,
equivocado, inábil do princípio ao fim, fazendo com que até seus triunfos fossem
sempre efêmeros:
Em suma: apesar de exilado, Gelásio desenvolveu, com energia
e tato político, intensa atividade, capaz de abranger todo o orbis
christianus, para combater o adversário, a princípio com cautela,
em seguida com crescente severidade, mas sempre calculista,
e acabou por vencer. Entretanto, Maurício, juntamente com
Henrique V, dominava Roma. Não faltaram espaventosas
procissões de S. Pedro para Latrão e vice-versa, nem outras festas
do mesmo gênero, uma repetição da coroação imperial, etc. O
antipapa deve ter pregado com brilho e anunciado a paz para o
império [...]. Enganar-nos-íamos, porém, julgando que tudo lhe
corria à medida dos desejos. [...] Empenhava-se em conquistar
partidários, mas não à maneira de Gelásio, mobilizando a
opinião pública do mundo inteiro contra o rival. Pelo contrário,
procurava, muito pela calada, com paz e sossego, assegurar
a adesão de particulares, distribuindo ou prometendo lucros
àqueles com quem estava relacionado pessoalmente. [...] Era um
processo de pequena envergadura e que revelava timidez. Podia
desistir de vencer o adversário. (ERDMANN, 1940, p. 50-66).

Fruto da obstinada luta para manter o lugar espontaneamente designado


dentro da ordem estatal da monarquia pontifícia, a consciência política de
Gelásio exibe as mais finas qualidades de uma legítima “vontade livre” hegeliana:
o equilíbrio moral, a determinação do “eu” pela universalidade, a escolha que se
realiza pela racionalidade do dever. Nascida da suposta deserção da embrionária
unidade nacional portuguesa, a opção de Gregório VIII é apresentada de forma
diametralmente inversa, como um perfeito avesso: é inautêntica, farsesca em
169
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

seu engajamento ético-religioso, afastada do universal por obra de uma triste


individualidade, que se deixou esvaziar pela pretensão de sobrepor propósitos
arbitrários ao direito de uma comunidade eclesiástica já instituída, o Papado.113
Erdmann chega a sugerir que o próprio imperador percebia o quão
débeis eram as aspirações que aquele arcebispo estupidamente tentava semear
no chão de uma pátria que não era sua. Henrique V – disse o historiador – não
se importava muito com o cisma. De certo modo, ele ordenara a Maurício que o
coroasse, “mas, no fundo, considerava-o uma nulidade”. Afinal, o rei germânico
tinha plena consciência de que a um cisma “nas regiões que lhe interessavam,
portanto a Alemanha e a Itália, estava naturalmente indicado um alemão ou
um italiano”. Nunca um estrangeiro. A única conveniência em promover aquele
“estranho e apátrida” era que, “no momento oportuno, ele poderia ser lançado à
margem sem ruído” (ERDMANN, 1940, p. 43-44).
É preciso ser enfático quanto ao que acaba de ser afirmado. Essas
ideias fazem-nos ver, em plena Idade Média, um imperador proclamando a
divisão da Ecclesia cristã como um sonoro “blefe”, no qual arriscou sua sorte
com um arcebispo que padecia da rejeição como estrangeiro muito mais que do
reconhecimento como eclesiástico cristão! E assim varremos para baixo de um
tapete cultural tipicamente modernista – “o estranhamento do não nacional” – o
fato de Burdino ter sido um reformador de Cluny, um aliado de reis e do próprio
Papado de Pascoal II!
Antes de tudo, a liberdade de Burdino revela-se culpada. Ela é acusada
de apoiar-se numa fé tacanha, numa espiritualidade sem brio. A ineficiência em
assegurar sua posição de poder refletia um modo acanhado de viver o sagrado.
Aparentemente, suas escolhas políticas não eram adequadas aos espaços
públicos porque sua religiosidade era doméstica demais, excessivamente “calada”,
aninhada na “paz e sossego” de assuntos particulares. É o que deixa transparecer,
uma vez mais, a avaliação de Erdmann (1940, p. 66) a respeito de uma epístola
enviada por Maurício a Gonçalo, bispo de Coimbra, na qual o arcebispo:

113 O fragmento supracitado parece ser uma ilustração histórica de várias passagens dos princípios
hegelianos da Filosofia do Direito, como esta: “Se o Estado é o espírito objetivo, então só como
membro é que o indivíduo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o
verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, e o destino dos indivíduos está em participarem numa
vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades têm o seu ponto de partida
e o seu resultado neste ato substancial e universal. Considerada abstratamente, a racionalidade
consiste essencialmente na íntima unidade do universal e do indivíduo e, quanto ao conteúdo no
caso concreto de que aqui se trata, na unidade entre a liberdade objetiva, isto é, entre a vontade
substancial e a liberdade objetiva como consciência individual, e a vontade que procura realizar
os seus fins particulares; quanto à forma, constitui ela, por conseguinte, um comportamento que
se determina segundo as leis e os princípios pensados, isto é, universais.” (HEGEL, 1997, p. 217).
170
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

Afirma a muita estima que lhe tem e declara não acreditar que
o destinatário fosse anteriormente de opinião adversa. Depois
de o exortar a velar pela igreja de Coimbra, oferece-lhe os seus
bons serviços de papa: se precisar de alguma coisa, que venha
imediatamente a Roma. Que diferença dos manifestos belicosos e
certos da vitória, de Gelásio!

O antipapa foi julgado culpado da carência de gênio e da incapacidade


religiosa na exata proporção inversa com que a historiografia cultuava seu
homônimo, Gregório VII. Ele parece ter sido avaliado pela mesma medida
histórica com que os estudiosos exaltavam o heroísmo e a destemida bravura
política de Hildebrando: como virtudes alimentadas por uma fé inquebrantável,
íntegra como uma devoção mística. Burdino foi o irônico avesso de Gregório
VII, cuja lembrança tentou associar a si ao reivindicar o mesmo nome apostólico.
A “timidez” de sua vontade livre era o inverso do espírito gregoriano, sempre
“dotado de uma resistência fanática” a ponto de fazer todas as decisões de
seus antecessores parecerem fracas em comparação com os princípios de sua
consciência, um “sopro mundial-histórico que deixou o Ocidente em chamas”,
conforme a descrição oferecida nos idos de 1860 por Ferdinand Gregorovius
(1905, p. 168-199), em Die Geschichte der Stadt Rom im Mittelalter. Palavras
que conferiam cores épicas a um retrato já delineado por ninguém menos que
Leopold von Ranke (1847, p. 20): “Gregório era [...] obstinado em sua adesão a
consequências lógicas, irremovível em seus propósitos”.
Essa imagem continuou a marcar a formação intelectual da geração de
Erdmann, encorpada pelos dez gigantescos volumes do Pabst Gregorius VII und
sein Zeitalter, de August Friderich Gfrörer (1855-1861), pela maestria de Gerold
Ludwig Meyer von Knonau (1890-1909) ao redigir as páginas de Jahrbücher
des Deutschen Reiches unter Heinrich IV und Heinrich V e por outros autores
(PASTOR, 1891-1908; STADTWALD, 1996). Portanto, era comum que a mente
de um medievalista alemão dos anos 1920 fosse embalada pelo objetivo de
explicar a política papal com base em “perfis espirituais”, vocações, pietismos
(OESTREICH, 1921, p. 35-43). Se a espiritualidade de Hildebrando de Soana
era a energia que movia o inédito protagonismo histórico de suas decisões; a
boa lógica ditava que a derrocada do arcebispo Burdino, um coadjuvante do
passado, também possuía seu quinhão de causas religiosas: no caso, lacunas de
espiritualidade.
Essa fundamentação teológica da ação política é uma implicação
característica da conceituação hegeliana a respeito da liberdade. Nos quadros
do hegelianismo, a condição de “livre” não passa de categoria abstrata,
condicionada e relativa, até que o “Eu” situe-se numa eticidade concreta. Isto é,
171
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

em relações morais objetivas; não meramente subjetivas ou lógicas, mas práticas


e contingentes. Essa consciência ética, que toma forma através de hábitos,
costumes, tradições e normas, realiza-se efetivamente no curso histórico do
mundo dentro dos Estados. Afinal, “o Estado é o desenvolvimento e a efetivação
da eticidade”. No entanto, essa efetiva percepção moral da vida atualiza-se no
espírito por meio da verdade absoluta e universal revelada pela visão religiosa:
“a substancialidade da eticidade mesma e do Estado é a religião”. Logo, “o Estado
repousa na disposição ética, e esta na religião. Sendo a religião a consciência da
vontade absoluta, o que deve valer como direito [...] e lei, no mundo da vontade
livre, só pode valer enquanto tem parte naquela verdade, está subsumido sob ela,
e resulta dela” (HEGEL, 1995, p. 328).
Isso faz da religião um fator insubstituível no controle dialético da
vontade individual e de sua efetiva educação pelas ideias de bem e justiça. Pelos
ensinamentos da fé, a liberdade é orientada em direção à responsabilidade civil,
incorporando um conteúdo moral verdadeiro e prático. A religiosidade figura no
pensamento hegeliano como suporte necessário da vida ético-política, pois é ela
que inflama o sentido do cumprimento do dever perante as normas estabelecidas.
Ao indivíduo, a própria consciência basta para formar um juízo acerca das leis
existentes, e até mesmo para apreciar seu valor e sua utilidade; mas ela não é
suficiente para garantir a obediência. É a religiosidade que marca com fogo a
aptidão para a autorrealização no bem comum, para alcançar o bem de si por
meio do outro, para fazer de seu próprio modo de vida um testemunho das leis
e das instituições.114 Integrar um Estado é formar parte de uma comunidade de
crentes. Afinal, ao comprometer sua vontade com os deveres intrínsecos a uma
ordem estatal, o indivíduo encontra a libertação de sua consciência, finalmente
dotada das ferramentas adequadas para romper os grilhões da dependência dos
instintos naturais e dos tormentos que eles causam à racionalidade. É aí que
ele se liberta, igualmente, de uma subjetividade vaga, indeterminada, alheia a
propósitos e a aspirações maiores do que a simples existência (HEGEL, 1997, p.
144).
Como bem resumiu Maria de Lourdes Alves Borges (1998, p. 274),
essa “Filosofia do Direito e da Política” impõe ao raciocínio uma exigência
lógica: pressupor que a ruína política esconde, via de regra, a ausência profunda
de uma vida religiosa plena e genuína. Afinal, “sem uma verdadeira religião,

114 “A moralidade objetiva é a idéia da liberdade enquanto vivente bem, que na


consciência de si tem o seu saber e o seu querer e que, pela ação desta consciência,
tem a sua realidade. Tal ação tem o seu fundamento em si e para si, e a sua motora
finalidade na existência moral objetiva. É o conceito de liberdade que se tornou mundo
real e adquiriu a natureza da consciência de si.” (HEGEL, 1997, p. 141).
172
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

não é possível uma verdadeira política, sem o princípio da liberdade subjetiva


efetivado numa consciência moral religiosa, a política e suas leis tornam-se letra
morta”.
A liberdade é religiosamente moral, sob o risco de ser politicamente
ameaçadora. Um ser-fora-da-fé é, inapelavelmente, um ser-fora-da-lei. O
pecado contra a religião é um crime contra a boa ordem estatal. Esse parece
ser precisamente o postulado teórico que orientou a compreensão histórica do
antipapado de Burdino, notadamente para explicar seu desfecho. O raciocínio
em questão segue o seguinte curso: a desobediência hierárquica do arcebispo, o
imperdoável desvio cismático que perpetrou contra a autoridade de Gelásio II,
era prova de tanta fé quanto poderia acalentar um perjuro. Ao deixar-se seduzir
pelas promessas de Henrique V, Maurício revelou uma religiosidade fraca,
inconstante, volúvel. Seu espírito não retinha o mandamento da obediência, não
possuía confiança no dever moral objetivo. Carente de eticidade, sua vontade
livre estava condenada a ser trágica, em tudo prejudicial ao exercício do poder,
incapaz de despertar em seus contemporâneos o sentido do dever, ou seja, a
própria legitimidade de suas decisões.
Sob essa teologia política, afinada com o consenso de uma óbvia
preeminência de causalidades religiosas na “Idade da Fé” que existiu há mil
anos, esconde-se um modelo interpretativo idealista e atemporal em muitas
proposições. Disfarçado de opção heurística, esse modelo povoa a Idade Média
com formas abstratas, modeladas por lógica persuasivas, pois contemporâneas a
nós mesmos, historiadores. Portanto, enquanto julgamos realçar as motivações
mais genuinamente “medievais”, nós, medievalistas, propagamos o paradigma
filosófico da história universal como o progresso dialético da consciência
da liberdade. Cujo movimento ideal ganha contornos mais humanos com
nosso desventurado antipapa: as reformas do heroico Gregório VII surgem
como a poderosa “tese” que foi confrontada por Maurício Burdino, “antítese”
simultaneamente religiosa e política que acabou superada pela virtuosa
liberdade política de Gelásio II, “síntese” do espírito da época. A contradição
ganha biografias, rostos e paixões. A dialética faz-se homens, vontades e vozes.
Hegel faz do passado sua imagem e semelhança.

A Idade Média na história dos historiadores

A herança hegeliana conciliou as ideias de Carl Erdmann com a busca


nacionalista da historiografia portuguesa pela gênese de sua independência
estatal. Essa convergência, por sua vez, ergueu o alto muro intelectual que
173
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

obstruiu a visão das conclusões de Pierre David. Juntos, hegelianismo e


nacionalismo aquartelaram as provocações do abade francês atrás de espessas
paredes de silêncio. Isso mostra como temas de nossos estudos históricos,
aparentemente colhidos de maneira segura junto aos vestígios documentais de
uma época inegavelmente distante, estão já prefigurados por teorias explicativas
do mundo formuladas na e para a Modernidade. Como disse Quentin Skinner
em “Os historiadores e a liberdade” (1999, p. 93), “é notavelmente difícil evitar
cair sob o feitiço de nossa própria herança intelectual”. Pois nossas pesquisas não
estão imunes à ação naturalizadora dos contextos. Ao contrário, elas são parte
de nossas respostas para a mais cotidiana das necessidades sociais: demonstrar
e reforçar a plausibilidade do contexto ao qual pertencemos, do mundo que nos
rodeia. Dessa maneira, “quando refletimos sobre nossos conceitos normativos,
é fácil nos deixarmos enfeitiçar pela crença de que as maneiras de pensar sobre
eles que nos foram transmitidas pela corrente principal de nossas tradições
intelectuais devem ser as maneiras de pensar sobre eles” (SKINNER, 1999, p.
93).
Nenhum historiador jamais escapou ou escapará a essa aporia. A
subjetividade e a partilha de interesses, veias pelas quais a contemporaneidade
pulsa sob nossas ideias, não são empecilhos, mas condições para a análise
científica. Isso, desde que não nos percamos na precipitada polêmica que dispõe
o estudo passado entre extremos: de um lado, a visão de que ele é inteiramente
“inventado” pela linguagem do historiador; do outro, a convicção de conhecer
seguramente o que se passou guiado pela precisão documental. Em ambos os
casos, mutilamos a consciência histórica. Pois nossa capacidade de dizer algo
de válido e verificável sobre o passado depende sempre de uma compreensão
que se desenrola em dois atos inseparáveis: 1) conhecer a historicidade do real
(negligenciada pela primeira opinião e sua absolutização da linguagem) e 2)
conhecer a historicidade intrínseca ao pensamento conjugado para explicar o
passado (o que acaba obliterado pelo segundo ponto de vista e sua premissa de
que as fontes são antídoto para quaisquer efeitos discursivos).
Não basta realçar o contraste entre as muitas épocas e conscientizar-se
de como as coisas mudam e diferenciam-se. Devemos refletir sobre a condição
histórica inexcedível da própria compreensão. É preciso ser historiador dos
vestígios do passado tanto quanto de nossos pensamentos e do mundo que
eles carregam aonde quer que cheguem, incluindo a explicação do passado. O
mundo estudado pelo historiador só ganha forma quando vem à linguagem,
que, por sua vez, só tem sua verdadeira existência no fato de que nela o mundo é
representado (GADAMER, 2005, p. 571-572).
Nossas interpretações são sacrifícios hermenêuticos. Delineamos
a imagem do que ocorreu, daquilo que ficou para trás nas correntezas do
174
A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo

tempo e da própria vida, projetando antecipações preconcebidas que cortam e


distinguem os sentidos de nossos objetos. Vemos o passado pela lente de nossos
preconceitos. A consciência verdadeiramente histórica não é aquela que almeja
a neutralidade irreal e impossível ditada pelo desejo de pôr o estudioso entre
parênteses. Tampouco é a ideia do conhecimento como um projeto livre, no
qual as coisas mesmas são determinadas por situações meramente linguísticas,
discursivas. Não. A razão histórica é aquela maneira de pensar por meio da qual
percebemos nossa incessante permanência numa tradição de opiniões correntes
e preceitos seculares, que realçam nossa própria temporalidade e deixam ver a
insuperável distância temporal perante o passado.115
Nas palavras de Hans-Georg Gadamer (2006, p. 67), “o tempo não
é um precipício que devamos transpor para recuperarmos o passado; é, na
realidade, o solo que mantém o devir e onde o presente cria raízes”. A distância
temporal não é distância a ser transposta ou vencida, na busca por pensar
uma época com os conceitos e representações que lhe foram “próprios”. Essa
distância é o real estranhamento perante as possibilidades de compreensão
da variação da existência: a incorporação de novas diferenças de sentidos, a
incessante multiplicação viva de elementos que constituem e que reformulam
as tradições intelectuais. Ela é “uma luz à qual tudo o que trazemos conosco
de nosso passado, tudo o que nos é transmitido faz a sua aparição”. Graças a
essa distância temporal, continua Gadamer (2006, p. 67-68), “se pode cumprir a
tarefa [...] crítica da hermenêutica, isto é, distinguir os preconceitos que cegam
daqueles que esclarecem, os preconceitos falsos dos preconceitos verdadeiros”.
A consciência histórica realiza-se, deixando de ser construção
puramente verbal, quando há reconhecimento de que o verdadeiramente “outro”
do assim chamado objeto de estudos adquire sentido em face das convicções

115 “Nós reiteramos, portanto, que a vinculação que nossa experiência de mundo mantém com
a linguagem não significa nenhum perspectivismo excludente; quando conseguimos superar
os preconceitos e as barreiras de nossa experiência atual de mundo e penetrar em universos
de línguas estranhas, isso não significa, de modo algum, que abandonamos ou negamos nosso
próprio mundo. Como viajantes, sempre voltados para casa com novas experiências. Como
andarilhos, que jamais retornam, jamais mergulharemos num total esquecimento. Mesmo
que, na qualidade de mestres de história, tenhamos clareza sobre o condicionamento histórico
de todo nosso pensamento humano sobre o mundo, e portanto também sobre nosso próprio
caráter condicionado, ainda assim não alcançamos uma posição incondicional. Em particular,
a pretensão de essa admissão ser absoluta e incondicionada não refuta a admissão desse
condicionamento fundamental, portanto, não pode ser aplicada a si mesma sem entrar em
contradição. A consciência do condicionamento de modo algum cancela o condicionamento.
[...] Não se trata de relações de juízo que devem ser mantidas livres de contradição, mas de
relações de vida. A constituição de nossas experiências de mundo estruturada na linguagem
está em condições de abarcar as mais diversas relações de vida.” (GADAMER, 2005, p. 578-579).
175
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

e opiniões que são “minhas”. Sem perceber o próprio ser efetivo partilhado
na interpretação histórica, o pesquisador enfrentará muitas dificuldades
para discernir o aparecimento do ser efetivo da história. Como ocorreu com
a historiografia aqui debatida. Sem interrogar a tradição nacionalista que
regia suas antecipações acerca da Idade Média, os historiadores reduziram
radicalmente o estudo das relações entre o Papado e os poderes peninsulares
a fórmulas teleológicas e abstratas de legitimação da ordem estatal moderna,
como os corolários da fundamentação religiosa da unidade nacional e das ações
políticas como realizações de certo conceito de liberdade.
Ao não dimensionar as exigências hermenêuticas impostas por seus
preconceitos, os historiadores simplesmente privaram de historicidade sua
própria ideia de uma civilização medieval cada vez mais repartida por divisas
nacionais. Essa história sempre idêntica a sua existência patriótica moderna
silenciou a possibilidade de diferenças mais profundas. Calou a chance de a
política medieval ter sido mantida por laços estranhos a nossas opiniões correntes,
como certas solidariedades impensadas (por nós), imprevistas, simultaneamente
senhoriais e eclesiásticas, implicadas na reprodução das mesmas estruturas de
dominação social.
Solidariedades que Pierre David talvez tenha vislumbrado por – entre
outras tantas razões possíveis – ter vivido a superação das divisões nacionalistas.
Afinal, sua história era a de um religioso francês, radicado em Cracóvia, onde
se dedicou à história medieval da Polônia. Desterrado em 1940 pelo nazismo,
encontrou refúgio da Segunda Guerra em Portugal. Seu olhar em relação à
Idade Média ganhou forma assim, observando o passado europeu de regiões
que margeavam as potências imperialistas na passagem do século XIX ao XX.
Sua percepção do mundo carregava a experiência de vislumbrar os “centros
ocidentais” a partir das “margens”. O que provavelmente permitiu-lhe acalentar
a inclinação para reconhecer as possibilidades históricas de mobilidade e
integração que superam as bordas territoriais conhecidas como “fronteiras
nacionais”.
Os desafios declarados por historiadores como Pierre David lembram-
nos da vida da própria consciência histórica, de sua contingência, de seu não-
mais-ser, de seus limites e cerceamentos. O “Enigma de Burdino” é, acima de
tudo, um enigma da autorreflexão do historiador.

176
O sentimento político: sobre linguagem e poder

Parte VI
O sentimento político: sobre linguagem e poder

O sentimento político:
sobre linguagem e poder

As palavras ressoaram amargas aos ouvidos do velho bispo. Eram


secas, ásperas, de uma rispidez cortante. Formavam um tipo de som rude e sem
concerto. Ele acreditava que jamais ouviria o nome de um ministro da fé, um
eleito para o sublime grau do episcopado, ser proclamado em falas como aquelas.
Sobretudo, seu próprio nome. Filho da aristocracia veronense e ilustre benfeitor
de igrejas e monastérios, o bispo de Parma não imaginava que escutaria alguém
referir-se a ele como um homem que “a igreja universal vomitou como veneno
mortal, amputou de suas próprias vísceras como um órgão pútrido, mergulhou
em um profundo poço infernal e escondeu em uma latrina como se fosse
excremento de homens”.116
Entretanto, essa era sua desventura. Ele passava pelos anos recebendo
as agulhadas daqueles rumores, sendo cercado pelo prenúncio de que sua vida
sacerdotal, dedicada à defesa das prerrogativas episcopais e à aliança entre Igreja
e Império, seria ofuscada por aquela imagem infame. Era assim que Cádalo
(1009-1072), um dos líderes eclesiásticos da Península Itálica, aproximava-se da
morte: com a reputação de um ímpio que “despertou por completo as angústias
das trevas”.117 Sacrílego, corrupto. Assim seria lembrado o bispo que outrora
alcançara o ápice do prestígio clerical. Sete anos atrás, em outubro de 1061, ele
havia sido o escolhido de um grupo de cardeais para suceder Nicolau II (1010-
1061) no trono petrino. Julgando-o preferível entre os homens para ensinar o
exemplo de Cristo, eles aclamaram-no com o nome de Honório II. A decisão,
entretanto, veio tarde demais.
Quatro semanas antes, liderada pelo arquidiácono Hildebrando
(1020?-1085), outra parcela da Cúria se declarou-se a favor de Anselmo (1015-
1073), bispo de Lucca, e entronizou-o em Roma como papa Alexandre II. Os
dois partidos disputaram o governo apostólico por anos a fio e os indícios
documentais mostram que se empenharam tomando a palavra e vertendo

116 “[...] universalis ecclesia tanquam loetale virus evomuit, ut revera putridum membrum de
propriis visceribus amputavit, in geennalis baratri profunda demersit, et quasi stercus hominum
intra latrine obrutum obstruxit.” (PEDRO DAMIÃO. Die Briefe. MGH Epp. Kaiserzeit, Briefe 4,
p. 68).

117 (PEDRO DAMIÃO. Die Briefe. MGH Epp. Kaiserzeit, Briefe 4, p. 68). Ver estudos de Cenci
(1923; 1924), Cavallari (1965), Capitani (1966, p. 62-139) e Miller (2000, p. 86-121; 1993, p.
73-77).
179
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

sangue. O desfecho só foi alcançado em 1064, no concílio reunido em Mântua.


Na ocasião, a corte imperial atuou como árbitro e impôs a palavra final: apenas
a causa alexandrina era justa e verdadeira.118 Cádalo, todavia, obstinou-se na
própria defesa. Passou o resto da vida dizendo-se pontífice e reclamando a
cátedra de Pedro, enquanto integrantes do partido vitorioso embrulhavam seu
nome em uma fama de imoralidade e pecados que teimava em chegar-lhe aos
ouvidos.
O maior algoz da memória do bispo de Parma foi Pedro Damião
(1007-1072?), o influente prior de Fonte Avellana elevado à função cardinalícia
por Estevão IX (1000?-1058), em 1057. Damião apresentou Cádalo como a
encarnação de uma terrível ameaça à Igreja cristã. Suas cartas descrevem o bispo
como criatura sem escrúpulos, alguém que não hesitava em recorrer a toda forma
de opressão para satisfazer seus apetites materiais. Ele não suportava limites,
não tolerava regras – bradava o avelanita. As descrições desatam na mente do
leitor a figura de um homem ganancioso que não sabia servir a outro propósito
que não fosse o de espoliar. Em outras palavras, Cádalo não era digno do trono
papal porque era refém dos desejos (cupudinis), e sua mente, corrompida por
essa “fumaça infernal” (sulphureo fumo), precipitaria a cristandade no sombrio
abismo do anátema (anathematis voraginem). A avidez fez daquele eclesiástico
o inimigo da ordem, um horrível adversário, um espírito destruidor: o próprio
Anticristo (Antichristus).
Leste da Gália, 60 anos depois. A busca de duas ordens religiosas pela
pureza dos votos monásticos prosseguia por meio da correspondência trocada
entre um abade e um prior. Insatisfeitos com o acentuado formalismo ritual e a
excessiva ornamentação exterior da fé, Bernardo (1090-1153), abade de Claraval,
e Guido (1109-1130), prior da Grande Cartuxa, encorajavam-se por cartas. Por
escrito, eles enviavam um ao outro a solidariedade para guiar os monges até o
encontro com a misteriosa voz celestial que se entrega aos ouvidos somente no
isolamento e no silêncio do claustro. Mas, para levar essa obra adiante, alertou
Bernardo, seria preciso conhecer os tipos humanos. Pois – dizia o abade em
suas cartas – a existência terrena diferencia aqueles que nascem iguais e vêm
ao mundo indistintamente, à imagem e semelhança de Deus. Esta vida carnal
marca os corações dos homens, confunde seus espíritos, o que torna a tarefa de
discipliná-los um fardo muitas vezes insuportável.

118 ANNALES ALTAHENSIS MAIORES. MGH SS rer. Germ. 2, p. 61-62; BENZO DE ALBA.
Ad Heinricum IV imperatorem libri VII. MGH SS 9, p. 618-622; BERTHOLDO. Annales. MGH
SS 5, p. 272; CHRONICA MONASTERII CASINENSIS. MGH. SS 7, p. 711-712; LAMBERTO
DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5, p. 154; Liber Pontificalis 2, p. 281; PEDRO DAMIÃO.
Disceptatio Synodalis Inter Regis Advocatum et Romanae Ecclesiae Defensorem. PL 145, p. 67-87.
180
O sentimento político: sobre linguagem e poder

Há aqueles, prosseguia o abade, que amam a Deus porque o consideram


bom. Tais são os verdadeiros filhos, pois reconhecem a face do Pai e dedicam-se,
de corpo e alma, às orações e às boas obras. Estes sabem que praticar a caridade
é estar em comunhão com a vontade divina. Entretanto, existem os que amam
a Deus porque Ele é poderoso. Esse tipo reúne aqueles que são escravos em
suas mentes, dominados pelo apego a esta vida material e ilusória. Seu amor
não passa de temor pela própria integridade. Por fim, dizia Bernardo, há uma
terceira categoria de homens: os que amam a Deus porque Ele se mostra bom
para eles. Aqui estão aqueles que enxergam no Pai apenas alguém que lhes traz
vantagens. Seus olhos são sensíveis às aparências; seus corações, impenetráveis
para a fé. Saciar os próprios interesses é o único princípio que reconhecem.
Estes últimos são mercenários (mercenarii) da vida, homens guiados apenas
pelo desejo (cupiditate),119 condição que os afasta da lei divina (lex charitatis),
tornando-os intolerantes à moderação, à prudência, às regras e à obediência.120
Separados por meio século, Pedro Damião e Bernardo de Claraval
empregaram a ideia de “desejo” de forma semelhante. Ela figura em suas cartas
como o elo de uma leitura política do mundo. Ou seja, como a categoria que
permitia identificar e avaliar as condutas em termos de obediência e resistência,
aceitável e repreensível. Empregá-la era uma forma de fazer ver o que era
contrário à ordem desejada. Declinando a noção de “desejo”, ambos conjugaram
certos modos de agir, especialmente aqueles que ameaçavam a integridade e a
harmonia da comunidade de fiéis. Desejar era a marca do desvio, da violação, do
distúrbio, enfim, de tudo o que deveria ser combatido, punido, extirpado.
Ali estava a origem da desordem que se instala na coexistência. Este
era o nome dado àquilo que o oportunismo dos ambiciosos e a obstinação dos
mercenários tinham em comum. Porém, o que nos intriga nessa constatação
não é o fato de duas eminentes figuras do clero medieval, distantes no tempo,
terem partilhado a mesma conotação depreciativa a respeito da ideia de “desejo”.
Mas, isto sim, que eles o tenham feito precisamente quando se notabilizavam
por atuar em sentido contrário. Ao comporem suas cartas, tanto Damião quanto
Bernardo destacavam-se no conjunto da tradição letrada medieval como duas
das maiores referências na valorização espiritual do ato de desejar (BLUM, 1947;
DREAMS, 1994; LECLERCQ, 1960).

119 BERNARDO DE CLARAVAL. Epistolae. PL 182: 108-115.

120 Ver ainda: Bynum (1975), Muessig (1998, p. 19-73, 295-350) e Sommerfeldt (2004).
181
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

A espiritualidade do desejo

Seguindo os passos de Donald Howard (1966, p. 55-69), Anne L.


Barstow (1982, p. 47-62), Dyan Elliot (1999, p. 83-214) e outros, os historiadores
frequentemente evocam o cardeal Damião como um expoente da intolerância
monástica às paixões, caracterizando-o como um algoz inclemente de tudo o
que estava associado ao apetite dos sentidos. Porém, com isso esquecemos de
que Damião não repudiava o desejo em si, in toto. Ele condenava apenas suas
eclosões carnais, sua face tentadora.
Na realidade, escrevendo em meados do século XI, o prior costumava
encontrar no desejo uma fonte de consolação, um meio de confortar a alma. A
seus olhos, os anseios da mente prestavam um testemunho único do privilégio
que é amar a Deus e ser capaz de direcionar a existência para a bem-aventurança
da vida celestial. Desejar era sinal de que o homem buscava conscientemente
algo maior, superior, sublime, como fazer parte do corpo da eterna Igreja e
desvencilhar-se do medo, da morte e dos anseios corporais, tormentos de todos
os que se apegam à corruptível vida terrena (BELISLE, 2002, p. 129-144). Damião
chegou a colocar a mortificação do corpo a serviço do desejo:
Pois quando eu espontaneamente açoito-me com minhas próprias
mãos aos olhos de Deus, eu demonstro o mesmo genuíno e devoto
desejo [do martírio], como se o carrasco estivesse em minha
presença. Pois, se por amor a Cristo o castigo me é tão estimado
quando o perseguidor não está presente, o quão pronto eu estaria
para aceitá-lo se aquele se apresentasse diante de mim? Se eu
desejar sofrer o martírio por Cristo, e não tiver a oportunidade,
uma vez que o tempo [das batalhas pela fé] terminou, afligindo a
mim mesmo com golpes, eu ao menos revelo o desejo ardente
de meu coração.121 (grifo nosso)

Desvinculado do corpo, despido da potência pecaminosa, o desejo
torna-se vontade livre da razão, a força interior que conduz para o conhecimento
das virtudes espirituais. É redentor na medida em que tem a salvação por objeto.
Como tensão íntima que alimenta a busca pela vida eterna, o desejo separa
a consciência das seduções do mundo temporal. Ele redime as criaturas da
falibilidade e da imperfeição inerentes à existência terrena.

121 “Nam cum sponte me propriis manibus ante conspectum Domini verbero, devocionis ingenuae
desiderium, si carnifex adsaeviret, ostendo. Quia si pro amore Christi tam dulcis est mihi poena,
cum deest, quam prompto susciperetur animo, si persecutor offerret? Vellem pro Christo subire
martyrium, non habeo cessante stadio facultatem, ipse me verberibus atterens ostendo saltim
ferventis animi voluntatem.” (PEDRO DAMIÃO. Die Briefe. MGH Epp. Kaiserzeit 2, p. 157).
182
O sentimento político: sobre linguagem e poder

Deslocando da carne para os domínios do espírito, a conversão do


desejo é também lexical: a palavra cupiditia dá lugar ao vocábulo desiderium. Em
outras cartas, Damião referiu-se a ele como potência mística. Aspecto que está
evidenciado nas exortações dirigidas ao zelo monástico. Flexionando a ênfase
típica da regra beneditina, o cardeal instruía os recém-ingressados na vida
religiosa a “conter a língua” (refrenetur lingua) para guardar o silêncio, de modo
diário e resoluto. Eles deviam “deixar os olhos gastarem o chão” (oculus assiduis
obtutibus pavimentum), alusão à postura de caminhar todo o tempo com a cabeça
baixa em sinal de humildade e respeito hierárquico. Por fim, mas não menos
importante, Damião recomendava “deixar a mente ser erguida para o céu por
um motor de desejo ardente” (grifo é nosso).122 As cartas desse cardeal ilustram
a dimensão redentora do desejo, aspecto para o qual Étienne Gilson (2006b, p.
349) chamava atenção ao explorar o “espírito da filosofia medieval”: “é preciso
compreender que a insaciabilidade do desejo humano tem [nesse pensamento]
um sentido positivo, e eis sua explicação: um bem infinito nos atrai. Deus é, ao
mesmo tempo, o que desejamos e o que faz com que o desejemos.”
O abade de Claraval foi igualmente representativo dessa vertente que
se firmava na espiritualidade medieval. O belíssimo texto de seus Sermones in
Cantica Canticorum está repleto de imagens do desejo como o laço que une os
homens à essência de Deus. Segundo o cisterciense, por meio da capacidade de
desejar realiza-se na alma a comunhão existencial almejada pelo próprio Criador
desde as origens. E, quando Deus afasta-se de seu rebanho, aparentemente
desamparando-o, Ele, na realidade, age da maneira mais eficaz para atiçar a
sensação de falta, de privação e, então, mover as engrenagens do desejo pelo
bem divino: “por esta razão [o Espírito Santo] se retira, para ser desejado mais
avidamente: de que modo poderíamos sentir sua presença, se não ansiássemos
por sua ausência?”.123
Por certo – continuava Bernardo – Deus revela-se ao gênero humano
desde o tempo dos patriarcas. Suas aparições são incomuns. Elas costumam
ocorrer por meio de imagens arrebatadoras ou vozes que se apoderam dos
ouvidos. Entretanto, uma forma privilegiada de vislumbrar a revelação divina,
enquanto se permanece preso ao fardo do corpo mortal, não está aí, no contato
com visões e vozes inefáveis. Segundo o abade: “há outra maneira de ver Deus,
que difere completamente destas, posto que é interior, e é quando Deus se

122 “[…] mens per estuantis desiderii machinam suspendatur in celum.” (PEDRO DAMIÃO. Die
Briefe. MGH Epp. Kaiserzeit 4, p. 56-57).

123 “[…]... nempe qui idcirco recedit ut avidus requiratur, quonam modo, si abesse nescitur,
quiritur?” (BERNARDO DE CLARAVAL. Sermones in Cantica Canticorum. PL 183: 855).
183
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

dignifica a visitar a alma que o almeja, mas que o almeja com todo o ardor de
seu desejo e amor”.124
Para os destinos da alma, o imprescindível passava pelo desejo, “pois,
conforme os desejos da alma variam, varia igualmente o gosto da presença
divina, e a doçura celeste apetece o paladar da alma segundo as diferentes coisas
que ela deseja”125 (grifo nosso). Os Sermones registram a crença no desejo como
um eco do paraíso que ressoa no íntimo de cada ser. Tomando emprestada uma
expressão de Martha Newman (1996, p. 67-94), podemos dizer que alimentar
o desejo era algo encorajado pela espiritualidade do “cultivo cisterciense da
alma”. Orientado para Deus, sublimado como parte de um exercício espiritual
diferenciado das experiências sensíveis, o desejo adquiriu nova face. Tornou-se
santo:
Deus não é procurado através dos passos dos pés, mas pelo desejo.
E a feliz descoberta [do que é desejado] não cessa o santo desejo,
mas o prolonga. Acaso a consumação das alegrias consome o
desejo? Ela é antes o óleo ainda mais derramado sobre as chamas.
Isto ela é. A alegria será cumprida, mas não haverá fim para o
desejo e, assim, nenhum fim para a busca. (grifo nosso).126

Vista pelos historiadores como uma etapa fundadora da mística


ocidental (COLIN-SHERBOK, 1994; FLOOD, 2005, p. 175-209; GILSON,
1934; McGINN, 1987; 1996b), a estima de Damião e Bernardo pelo desejo é
notável. Sobretudo, porque a tradição eclesiástica oferecia incontáveis razões
para temer aquele sentimento. Assim ensinavam as Sagradas Escrituras, cujas
páginas alertavam: nos primórdios imemoriais, quando o reino da Criação era
habitado pelo primeiro casal, o pecado entrou no mundo instigado pelo desejo.
A “falha original” foi obra de desobediência voluntária, resultou de uma escolha
que implicou ceder aos anseios, entregar-se ao furor que percorre o ser e move-o

124 “[...] est divina inspectio, eo differentior ab his quo interior, cum per se ipsum dignatur invisere
Deus animam quaerentem se, quae tamen ad quaerendum toto se desiderio et amore devovit.”
(BERNARDO DE CLARAVAL. Sermones in Cantica Canticorum, PL 183, p. 942).

125 “[...] oportet namque pro variis animae desideriis divinae gustum praesentiae variari, et infusum
saporem supernae dulcedinis diversa appetentis animi aliter atque aliter oblectare palatum.”
(Idem, p. 943).

126 “Non pedum passibus, sed desideriis queritur Deus. Et utique non extundit desiderium sanctum
felix inventio, sed extendit. Nunquid consummation gaudii, desiderii consumption est? Oleum
magis est illi: nam ipsum flamma. Sic est. Adimplebitur laetitia; sed desiderii non erit finis, Ac per
hoc nec quaerendi.” (BERNARDO DE CLARAVAL. Sermones in Cantica Canticorum. PL 183, p.
1185). Ver ainda: Casey (1988) e Miquel (1989, p. 137).
184
O sentimento político: sobre linguagem e poder

em direção a um fim considerado satisfatório. Foi ao magnetismo do desejo


que se renderam Adão e Eva quando caminharam em direção ao fruto proibido
(NEDERMAN, 1988, p. 3-26).
O Novo Testamento, manancial em que sacerdotes e monges medievais
saciavam sua compreensão do mundo, também atestava que desejar era uma
forma comum de opor-se à vontade de Deus. Os textos paulinos davam provas
de que o desejo e o pecado andavam ombro a ombro, estavam intimamente
implicados, um era o reflexo do outro no espelho da alma. Na Vulgata – a versão
latina dos textos bíblicos preparada por São Jerônimo (347-420) –, a escrita de
Paulo nomeia a faculdade de desejar com base no verbo concupere ou, na forma
mais recorrente, concupiscere. O verbo “desejar” insinuava-se à leitura como um
sinônimo de “ceder à concupiscência”, de cair nas malhas de imundícies morais,
vícios e falhas que degeneram a vida cristã. A epístola aos Romanos (6:12)
exortava: “não reine o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em
suas concupiscências”. Qualquer relação de precedência esfumaça-se e já não se
sabe qual vem primeiro quando pecado e desejo revezam-se nos postos de criador
e de criatura (7:18): “o pecado operou em mim a concupiscência”; “havendo a
concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, consumado, gera a
morte” (Tg 1:15) (TISCHENDORF, 1850).
A concupiscência – máscara latina que o cristianismo atribuiu ao
desejo – tornava onipresente a inclinação para pecar, pois abrigava a força
geradora dos pecados no interior de cada corpo. Todos, homens e mulheres,
eram considerados anfitriões em tempo integral da aptidão para gerar o mal.
Cada cristão era sua própria fonte de estímulos para cometer transgressões. Uma
propensão para preferir o mundo ao Criador estaria inscrita no coração de cada
um. Pois a vida humana decaiu com Adão para o reino da carne e da dor: “tudo
o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a
soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo” (I Jo. 2:16).
O desejo mergulhava o cristão em constante e perigoso desacordo com
a própria razão. Era motivo suficiente para conservar uma incansável vigilância
sobre os próprios atos e pensamentos. Aquele anseio era o arqui-inimigo que
cada ser humano carregava dentro do próprio peito. Se o cristianismo propagou
a imagem de uma condição humana cindida, já que dividida entre o corpo e a
consciência, como afirmou Richard Sorabji (2002), isso deve-se à transformação
do desejo em elemento intrínseco a todas as divisões da existência, da razão, das
virtudes e do próprio querer, conforme ressaltou Michael Hanby (2003, p. 88-
105). A habilidade de desejar era a lâmina que separava todas as ações e ideias,
dividindo-as entre benéficas e maléficas.
185
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

A tradição herdada dos Santos Padres dizia algo semelhante. Agostinho


de Hipona (354-430) via o desejo como a “sede da alma”. Concebia-o como a força
que dirige a vida interior dos homens, aquilo que emerge de nossa incompletude
insaciável, de uma natureza que se realiza quando se move em direção ao que
lhe falta: “ao desejar aspira-se aquilo que é ausente. O que mais é o desejo senão
ansiar por coisas ausentes?”,127 esclarecia o bispo, precedendo em vários séculos
o ilustre conceito freudiano de libido.
Contudo, a imperfeição que marca a natureza humana tende a
transformá-la em algo desordenado, um distúrbio que obscurece a razão e
mergulha-a em aspirações vãs, fúteis. Precisamente aí, no momento em que o
desejo atrai para o que é efêmero e inútil, o homem afasta-se de Deus, deixando-
se apanhar na rede do gozo terreno, forma atraente do mal (DEBBASCH, 2001,
p. 3-75). Essa cena pungente, na qual a razão é escravizada pelo querer, conduzia
os clérigos medievais a uma constatação alarmante: o pecado tinha muitas faces,
mas, olhando de relance, quase todas tinham o rosto do desejo.
Seria o pensamento agostiniano o encarregado de assentar essa
premissa nas fundações da doutrina cristã. Graças ao mestre africano, algumas
das noções mais básicas da religião cristã passaram a carregar a marca daquela
ideia. Caso da noção de pecado: “o pecado é qualquer ação, palavra ou desejo
contra a lei eterna”.128 Conforme destacaram Luigi Alici, Remo Piccolomini e
Antonio Pieretti (1994), Richard Avramenko (2007), Ronnie Rombs (2006)
e diversos outros autores (BROWN, 1978, p. 315-329; FITZGERALD, 1999;
MEYNELL, 1990; GILSON, 2006b), quer como vontade (voluntas), quer
como concupiscência (concupiscentia), a ideia de desejo é central no sistema
doutrinário agostiniano.
Com ela, além de elucidar a natureza do pecado, o bispo de Hipona
tentou desfazer as polêmicas acerca de temas fundamentais para sua religião,
caso da origem do mal e do diabo. Afinal, se não havia no universo qualquer
essência contrária a Deus, a maldade e a ação de tornar-se inimigo divino não

127 “[...] desiderando, absentia concupiscit. Desiderium ergo quid est, nisi rerum absentium
concupiscentia.” (AGOSTINHO DE HIPONA. Enarrationes in Psalmos. CCSL 39, p. 1688).

128 “Erga peccatum est, factum vel dictum vel concupitum aliquid contra aeternam legem.”
(AGOSTINHO DE HIPONA. Contra Faustum. PL, v. 42, cap. 27, col. 418). Eis outra ilustre
passagem do pensamento agostiniano acerca da definição de pecado: “Donde se segue que
muito bem se pode dizer que todo pecado é mentira, porque o pecado não se comete senão
pela vontade com que queremos que as coisas nos corram bem ou com que não queremos
que nos corram mal” (Unde non frustra dici potest, omne peccatum esse mendacium. Non enim
fit peccatum, nisi ea voluntate, qua volumus ut bene sit nobis, vel nolumus ut male sit nobis)
(AGOSTINHO DE HIPONA. De Civitate Dei. PL 41, p. 407).
186
O sentimento político: sobre linguagem e poder

eram originárias da Criação, mas resultavam de uma corrupção instalada no


âmago da obra celestial: a fraqueza perante os desejos sem peia. O sétimo livro
das Confessiones anuncia a conclusão: “procurei o que era a maldade e não
encontrei uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da
suprema substância, de ti ó Deus, que tende para coisas ínfimas, arremessa suas
entranhas e se levanta com intumescência” (grifo nosso).129
A centralidade dessas ideias no pensamento agostiniano levou o
influente teólogo Hans Urs von Balthasar (1993, p. 285) a considerá-lo uma
“espiritualidade do desejo”. O que não significa, como alertou Hubert Debbasch
(2001, p. 26), que exista uma definição completa e concisa de desejo nas obras do
autor d’A Cidade de Deus. Agostinho acentuou diferentes aspectos daquela ideia
à medida que os temas alternavam-se em sua mente. Mas, em meio às oscilações
que permeiam as ênfases do pensamento do bispo de Hipona, um argumento
pode ser destacado com segurança: quando o desejo fala por si mesmo, sem ter
Deus por objeto, assume feições preocupantes e nocivas ao bem-estar da alma.
Ao partilhar dessa proposição, Agostinho adotava uma opinião
semelhante às de seu mestre. Ambrósio de Milão (340-397) já havia anunciado
em sua Expositio in Psalmum CXVIII que os pecados eram efeitos das
inquietações provocadas em cada um de nós pelos desejos: “tua carne foi a
sombra que arrefeceu os calores ardentes de nossa cupidez, que restringiu as
chamas de nosso desejo e moderou as avarezas e os incêndios [causados por]
muitas outras paixões”.130 O papa Gregório I (540-604) concordaria: o desejo é a
seiva do pecado quando não está dirigido para o amor a Deus e para os cuidados
necessários à vida eterna (CATRY, 1975, p. 269-303). Segundo o papa do século
VI, quando arde pelo Criador, o desejo purifica a alma; mas, quando queima
por um valor ou bem meramente terreno, ele a devasta como um incêndio em
espinheiro seco.
Elaborada um século antes, a Regra de São Bento, texto fundador do
monasticismo ocidental, esclarecia que a virtude da humildade esperada de um
monge consistia em “que, não amando a própria vontade, não se deleite o monge
em realizar os seus desejos, mas imite nas ações aquela palavra do Senhor: ‘não
vim fazer minha vontade, mas a d’Aquele que me enviou”. Emendando um tom

129 “[...] et quaesivi quid esset iniquitas, et non inveni substantiam, sed a summa substantia, te
Deo, detortae in infima voluntatis perversitatem, projicientis intima sua tumescentis foras.”
(AGOSTINHO DE HIPONA. Confessionum Libri Tredecim. PL 32, p. 744).

130 “[...] umbra tua caro fuit quae nostrarum aestus refrigeravit cupiditatium, quae restrinxit ignes
libidinum, quae avaritiae diversarumque passionum incendia temperavit.” (AMBRÓSIO DE
MILÃO. In Psalmum CXVIII expositio. PL 15 : 1470).
187
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

austero, o texto proclamou como parte vital das ações que reconduzem a Deus
“não satisfazer os desejos da carne, odiar a própria vontade”.131
Podemos dizer que a espiritualidade beneditina inicia-se por uma
ascese do desejo, o qual ela coloca em conflito com as virtudes da obediência
e da humildade. A busca por preencher o mosteiro com um resoluto espírito
de sacrifício, fortalecido pela vida comum, pela constante devoção hierárquica,
pelo silêncio e pela lectio divina (a meditação sobre as Sagradas Escrituras),
transformou as manifestações da vontade – e com elas o desejo – em inimigas
da harmonia e da ordem (DEMOUSTIER, 1989, p. 439-443).
A primeira e última atitude de um monge seria renunciar a si;
desobrigar-se quanto a atender às aptidões pessoais, desinteressar-se pela própria
voz interior. Em uma palavra: morrer para o mundo. Nos termos mais sucintos
utilizados por Jean Leclercq (1982, p. 19): “a ‘intimidade’ do monge é presumida
como uma ‘conversão’ similar à de São Bento, a qual implica uma total renúncia
com a intenção de agradar somente a Deus”. Essa palavra de ordem espiritual
foi conservada pelo monasticismo ocidental, no qual Damião e Bernardo foram
formados.132
É possível identificar na heterogênea tradição letrada cristã sentidos
confluentes. A diversidade de formas latinas empregadas para referir-se ao desejo
– desiderium, cupiditas, libido, appetitus, voluntas – estava frequentemente unida
por uma intercessão semântica: remeter a um movimento interior humano
gerado para preencher uma falta. Eis a ideia de “desejo”.133 Pedro Damião e
Bernardo de Claraval conheciam os ensinamentos que faziam dessa ideia a
referência a um traço humano lamentável.
Porém, seus escritos contribuíram para constituir um universo ético
que transpôs os limites da culpabilização do desejo. Como representantes do
que Evelyn Underhill (2002, p. 458) chamou de “primeira grande corrente do
misticismo medieval”, ambos estimaram-no como a energia vital do ascetismo,
como a força interior que purificava e preparava a alma para a contemplação
da graça divina. Redimindo o ser humano como um “ser de desejo”, Damião e

131 “[...] si propriam quis non amans voluntatem desideria sua non delectetur implere, sed vocem
illam Domini factis imitetur dicentis: Non veni facere voluntatem meam, sed eius qui me misit. /
desideria carnis non efficere, voluntatem propriam odire.”(KARDONG, 1996, p. 130, 80).

132 Ver ainda: Berlière (1927) e Dunn (2003, p. 111-137).

133 O argumento – controverso, sem dúvida – mereceria uma consistente análise que ultrapassa os
propósitos deste breve capítulo. Mas essa premissa de que havia, na tradição letrada eclesiástica
medieval, um duradouro núcleo semântico que pode ser designado por “ideia de desejo”
ampara-se ainda nas contribuições oferecidas por Berry e Hayton (2005) e Lombardi (2007).
188
O sentimento político: sobre linguagem e poder

Bernardo influenciaram a formação da atmosfera intelectual vivida por figuras


como Hildegarda de Bingen (1098-1179), São Boaventura (1221-1274), Mestre
Eckhart (1260-1328), Nicolau de Cusa (1401-1464) (McGINN, 1996a).
Então, como compreender a inequívoca ênfase pejorativa depositada
por eles nessa mesma ideia, como ocorreu nos dois casos apresentados no início
deste capítulo? Acaso teria sido alguma espécie de recaída na força da tradição?
Não temos dúvida de que o legado escrito dos “Santos Pais” foi revivido quando
ambos referiram-se ao desejo como aviltante e funesto. Mas esse argumento não
responde à pergunta. Na realidade, ele torna-a ainda mais intrigante. Pois agora
precisamos desvendar as razões que levaram os eminentes personagens a ceder
e recuar a um discurso depreciativo tradicional do qual pareciam emancipar-se.
Dito de outra forma: o que parece ter desligado sua relativa autonomia diante das
tradicionais pressões pela culpabilização do desejo? A resposta que propomos já
foi sugerida: a necessidade de expressar uma consciência política, de formar uma
percepção das relações de poder. Devemos agora desenvolvê-la e fundamentá-la.

O desejo como sentimento político

Politicamente, Damião e Bernardo possuíam ainda mais em comum:


ambos estavam estreitamente implicados na legitimação e no exercício do poder
papal. O primeiro foi conselheiro, legado apostólico e cardeal de Estevão IX e
Nicolau II, além de defensor fervoroso de Alexandre II (1015-1073). Ao passo
que o abade de Claraval teve participação decisiva na ascensão de Inocêncio II
(1081-1143), além de ter sido o mentor e aliado do cisterciense que governou a
Igreja entre 1145 e 1153 como Eugênio III (1100-1053).
Fulminar a experiência do desejo quando se davam provas de uma
inclinação regular para aprová-la ou tolerá-la é uma postura um tanto comum
entre os papistas. Essa guinada de posturas pode ser encontrada em uma mesma
obra, na realidade em um mesmo trecho. É a João de Salisbury (1115?-1180),
bispo de Chartres e um colaborador do papa Adriano IV (1100-1159) que nos
referimos. Vejamos uma passagem de sua obra mais famosa.
O Policraticus, considerado por muitos historiadores um texto
fundador da “teoria política moderna” (NEDERMAN, 2005; NEDERMAN;
CAMPBELL, 1991; MORRAL, 1997, p. 41-58; ULLMANN, 2004, p. 112-124),
estampa a seguinte opinião: “eu não diria que o desejo por ganhos pessoais, se
for moderado, deve ser condenado; nem ponderarei se é criminoso o abundante
suprimento de bens ou deleites materiais da mente, o amor pela liberdade natural
189
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

ou a recompensa da eminência” (grifo nosso). O autor mostra-se benevolente com


a forma mais controversa do desejo, aquela em que os anseios são direcionados
para ganhos materiais. De fato, era tênue o limite que separava a atitude tolerada
nessas linhas e aquilo que muitos clérigos medievais aprendiam ser a “cobiça”.
Talvez por isso, João de Salisbury rapidamente buscou um contrapeso
para tal condescendência. Em poucas linhas, sua escrita mudou de rumo. Como
se percebesse que deveria retroceder perante tamanha tolerância, subitamente
advertiu o leitor para os efeitos contrários que tais apetites costumam gerar,
pronunciando-se num tom que lembra Agostinho ou Gregório I: “todas estas
coisas são boas se os filhos de Deus, instruídos pela graça, lutando contra a
carne e o sangue [...], as usam adequadamente e vestem-se com elas como um
vestuário em floração, fértil e agradável.” 134
Ponderando sobre as consequências dos desejos, o bispo seguia
desconfiado pelos meandros da escrita, mesmo quando aprovava o ato de
desejar. Como quem dá a mão à palmatória, João recuou diante da indulgência
que suas palavras acabavam de conceder. O gesto inicial de acolhida, estendido
aos anseios por deleites terrenos, parecia ter algo de impensado. Como se o
autor, ainda com a pena na mão, tivesse sido surpreendido pelo sentido formado
por suas próprias palavras e, vendo-se constrangido, retratou-se a tempo: “não se
pode negar que é preciso manter o desejo à distância, vigiá-lo, precaver-se contra
seus efeitos” – disse como quem explicava um mal-entendido.
O pensamento do bispo de Chartres operou uma manobra dualista,
desenhando um movimento semântico que direcionava a mente para duas
atitudes diversas: o conformismo e a resistência. Quanto a isso, o Policraticus
não era excepcional. Ele expressa uma tensão que pode ser encontrada em um
rol muito maior de cartas e opúsculos com algo comum: terem sido escritos por
papistas. Separados no tempo, distanciados no espaço, os prelados vinculados
ao exercício do poder papal estavam unidos por essa maneira de agir. Entre eles,
parecia haver a adesão a um mesmo critério quando se tratava de determinar
o momento de execrar o sentimento do desejo. Sigamos um pouco mais da
documentação nesse sentido de análise.
Voltemos os olhos para o ano de 1081. Península Itálica. Alguns
meses passaram-se desde que o papa Gregório VII proclamou pela segunda

134 “[…] non quod appetitum commodi, si temperatus sit dicam esse culpabilem, aut copiam rerum
sufficientem, aut laetitiam mentis, aut naturalem libertatis amorem, aut eminendi meritum ducam
in crimine: sed nihil istorum quod pollicetur affert. / omnia bona sunt, si eis docente gratia, recte
filius adversus carnem luctans et sanguinem [...], utatur, et eisdem quasi florido, frugifero, et
jucundo induitur vestimento.”. (JOÃO DE SALISBURY. Policraticus sive de nugis curialum et de
vestigiis philosophorum. GILES, 1848, p. 306).
190
O sentimento político: sobre linguagem e poder

vez a excomunhão e a deposição de Henrique IV, rei germânico e sucessor da


Coroa imperial. Desde então, a situação tornou-se alarmante para a Sé romana.
Acuado, o pontífice viu o monarca opor-lhe um competidor pelo trono de Pedro.
Gilberto (1029?-1100), arcebispo de Ravenna, reivindicava o Papado com o apoio
de bispos germânicos e do norte peninsular. Os aliados de Gregório nas terras
imperiais recuavam em sua oposição diante das pesadas derrotas infligidas pelas
tropas de Henrique. Cada deserção episcopal, cada derrota sofrida em batalha e
colina dobrada pelo exército imperial enfraqueciam a legitimidade de Gregório,
como se fossem demonstrações cotejadas pelos céus de que o pontífice excedera-
se em suas atribuições.
Confrontado com o fantasma da deposição, o papa tentou encontrar
alguma defesa na lealdade do “povo romano”, nas promessas de socorro
militar dos líderes normandos da Calábria-Sicília e nas cartas trocadas com os
bispos germânicos que ainda lhe devotavam fidelidade. Uma dessas epístolas,
endereçada ao dignitário de Metz, alcançaria notoriedade por sua extensa e
apaixonada defesa da superioridade clerical em relação ao poder laico, inclusive
nas questões temporais. Discorrendo sobre o poder dos que não integravam
o clero, entre os quais estariam incluídos os imperadores, o pontífice disse ao
bispo:

Tu ainda deves manter em mente, irmão, que um poder maior


é assegurado a um exorcista, quando ele é estabelecido como
imperador espiritual para expulsar demônios, do que [qualquer
poder] que pode ser conhecido a quaisquer laicos em relação à
dominação secular. Pois todos os reis e príncipes da terra que
não vivem de modo religioso e que em seus feitos não temem
Deus como deveriam – é gravíssimo dizê-lo! – são dominados
por demônios e confundidos por uma escravidão miserável. Tais
homens, não tendo sido guiados por divino amor, não aspiram
liderar em honra de Deus e dos benefícios das almas, como os
sacerdotes religiosos, mas de modo a ostentar sua intolerável
soberba e preencher o desejo de sua alma, eles aspiram dominar
todos os demais. Sobre eles, o bem-aventurado Agostinho diz no
primeiro livro de De Doctrina Christiana: “Em verdade é uma
soberba completamente intolerável quando alguém aspira
dominar aqueles que são naturalmente seus iguais, isto é,
homens”.135 (grifo nosso).

135 “Meminisse etiam debet fraternitas tua, quia maior potestas exorciste conceditur, cum spiritualis
imperator ad abiciendos demones constituitur, quam alicui laicorum causa secularis dominationis
tribui possit. Omnibus nempe regibus et principibus terre, qui religiose non vivunt et in actibus suis
Deum ut oportet non metuunt, demones, heu pro dolor, dominantur et misera servitute confunfunt.
Tales enim non divino ducti amore sicut religiosi sacerdotes ad honorem Dei et utilitatem animarum
preesse cupiunt, sed ut intolerabilem superbiam suam ostentent animique libidinem expleant,
191
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Gregório acusou Henrique de virar as costas aos preceitos divinos. E o


rei assim o fez – garantiu o papa – porque estava escravizado pelo desejo, que
o arrastava para a jactância, para a ilusão de ver-se como superior aos demais,
estimando a si mesmo como o portador de uma excelência mortal que o
colocava acima do restante dos homens, seus iguais perante o Criador. A alma
do monarca padecia sob a sombra do orgulho. Suas ações de governante da
comunidade cristã estavam poluídas, manchadas. Cada ordem que saía de sua
boca arrastava os súditos para propósitos nefastos, repletos de soberba, contrários
aos mandamentos de Deus. Enquanto a coroa repousasse sobre sua cabeça, um
imenso risco de danação eterna pairaria sobre aqueles que cumpriam o dever
de obedecer a Ele. Logo, depô-lo era dever do papa. Rejeitá-lo, compromisso de
todo bom pastor do rebanho de Cristo.
Ao mencionar a soberba, as palavras tornaram-se duríssimas.
Devastadoras de uma maneira que talvez escape ao olhar de leitores como nós,
filhos culturais de uma sociedade laicizada. Porém, provavelmente, elas calaram
fundo na mente de um bispo letrado como Hermann de Metz. Afinal, há séculos
a tradição cristã via na soberba a raiz de todo mal, a mãe de todos os vícios. Os
Santos Pais referiam-se ao Diabo como o “mestre da soberba” e a esta última
como a rainha dos pecados (Regina superbia), de cujo ventre tinham nascido
a vã glória, a inveja, a ira, a tristeza, a avareza, a gula, a luxúria (inanis gloria,
invidia, ira, tristitia, avaritia, ventris ingluvies, luxuria).136
Suas filhas formavam os sete pecados capitais (CASAGRANDE;
VECCHIO, 2003). Ao lançar mão dessa referência, a epístola gregoriana atribuiu
ao monarca teutônico um comportamento gravíssimo: suas ações faziam
crescer toda forma de ofensa perante os céus, espalhando a perversidade entre
os cristãos. Quando sucumbia ao jugo da soberba, um monarca conduzia suas
escolhas de modo simultaneamente excessivo e errático. Como se seus olhos
estivessem vendados para os limites que regem o convívio entre os homens,
ele deixava de enxergar a igualdade primordial partilhada por todos diante do
Criador. Ao deixar-se apanhar pelas garras do desejo, Henrique IV tornou-se
pai da desordem e da desobediência. Sua existência rendeu-se à audácia, ao
mau hábito de tomar a iniciativa em matérias sobre as quais a livre escolha
deveria permanecer inibida, condicionada à voz de outrem. A carta ditada por
Gregório VII conferia ao rei germânico aspectos que a tradição letrada atribuía

ceteris dominari affectant. De quibus beatus Augustinus in libro primo de doctrina christiana dicit:
Cum vero etiam eis, qui sibi naturaliter pares sunt, hoc est hominibus, quilibet dominari affectat,
intolerabilis omnino superbia est.” (GREGÓRIO VII. Epístola 21. MGH Epp. sel. 8, p. 555-556).

136 GREGÓRIO MAGNO. Moralium Libri sive Expositio in Librum Beati Job. PL 76, p. 620-621.
192
O sentimento político: sobre linguagem e poder

aos grandes infratores da história da salvação: como Lúcifer, e até mesmo Adão,
o monarca foi apresentado como alguém que vacilou perante um anseio interior
e transgrediu princípios, cedendo a um ímpeto para insubordinar-se contra as
regras estabelecidas por Deus.
A carta papal expressava a imagem de um governante espiritualmente
cego para a verdade fundamental: em muitas ocasiões, tudo o que cabia aos
cristãos era resignar-se a não decidir, a não tomar a iniciativa. Henrique – assim
pensava Gregório – não deveria ter erguido a voz contra o papa. Afinal, um
verdadeiro governante cristão saberia que, após ter sido condenado pelo vigário
de Pedro na terra, toda decisão ficava suspensa, irrealizável. Quando se era alvo
de uma punição anunciada por Roma, simplesmente não havia escolhas ou
opções possíveis. Havia apenas um caminho a ser tomado: acatar a sentença e
justificar-se adequadamente.
Não foi esse o caso protagonizado pelo filho de Henrique III. Ao
contrário, ele agiu de “maneira maligna”, violou a passividade esperada, optou
quando devia resignar-se. Ao invés de obedecer e recuar, ele se conduziu sem
peia, escolheu pela própria vontade, deu ouvidos apenas aos “chamados de seu
desejo”. Aos olhos do pontífice, estava dada a lição: desejando, Henrique IV
tornou-se um embusteiro, inimigo de limites, adversário da correta ordem, um
diabolus. A Corte imperial arrastava toda a Germânia para as trevas ao destilar o
espírito da desobediência (FORSYTH, 1989, p. 4-30).
Memorialistas de Gregório VII expressariam essa mesma opinião por
meio de uma história miraculosa. Em relatos retrospectivos, Donizo, monge de
Canossa, e Paulo, cônego regular de Bernried – biógrafo papal – contam que,
em fevereiro de 1076, após a primeira proclamação do aviso de deposição do rei
chegar à Corte imperial, o papa recebeu a visita de Rolando, bispo de Treviso. O
prelado, que vinha em nome de Henrique, chegou a Roma durante a Quaresma e
encontrou a Igreja local reunida em concílio. Rolando interrompeu o andamento
da tradicional assembleia e comunicou aos presentes os dizeres que carregava
em forma de carta. À medida que sua voz propagava-se pelo interior da basílica,
Gregório ia descobrindo que, reagindo à advertência papal de excomunhão,
Henrique “lhe interditou o exercício do ofício papal e ordenou-lhe que descesse
da Sé [de Roma]”.137
Um clima de consternação trovejou pelo ar, inflamando o ânimo
geral. Segundo a Vita Mathildis e a Vita papae Gregorii VII, no momento em
que essa agitação espalhou-se perigosamente, um estranho ovo de galinha

137 “[...] pontificale ei interdixit officium eique precepit, ut de sede descenderet. (BONIZO DE
SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1, p. 606-607).
193
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

(gallinae sculptum/gallina ovum) foi levado ao plenário. De sua casca grossa, que
se assemelhava a um escudo excessivamente horrível e sombrio (scuti similitudo
nimio horroe tenebrosa), saiu uma serpente (serpens/colubrum). Movendo-se
com rapidez, ela estendeu-se para o alto após envolver o ovo com três voltas
inteiras. Porém, no instante em que estava prestes a enlaçar-se por completo,
a cobra, como se abatida por um golpe, pendeu a cabeça, dobrando-a sobre o
próprio ventre, reduzida à impotência.138
A serpente é um símbolo ambíguo nas Escrituras cristãs: ora a
encontramos como o resultado da transformação milagrosa do cajado de Moisés
(Ex. 7: 9-15), ora como imagem da punição decorrida do pecado (Mq. 7:17).
Porém, em nossa opinião, a que é mencionada nesse relato evoca um conjunto
de referências bíblicas específicas e coesas. O Livro do Gênesis, a Segunda
Epístola aos Coríntios, o Livro do Apocalipse apresentam a serpente como um
Satã, um adversário (Gn. 3: 1-14; 2Cor. 11:3; Ap. 12: 9-15). Ela nos faz ver um
ser astucioso, que obstruiu e testou Eva no caminho da retidão, convencendo-a
de que Deus mentia a respeito das consequências de comer os frutos da Árvore
do Conhecimento. Ela aparece como um ser ameaçador, maldito mais que toda
fera e mais que todos os animais do campo, estreitamente associado aos pecados
induzidos pela argúcia e insídia.
Nesse conjunto de referências, a serpente é o adversário que se satifaz
em testar as criaturas para apartá-las do Criador. Ela é um diabolus cujo propósito
é sempre ludibriar a humanidade e subjugá-la à morte. No Livro do Apocalipse,
a “antiga serpente” é a imagem daquele que se interpôs no caminho de Cristo e
da salvação, tentando-o por 40 dias no deserto. Ela é o rosto de todo aquele que
cultiva a astúcia sedutora e engana por meio da tentação: foi essa caracterização
que as fontes papistas – a Vita Mathildis e a Vita Gregorii VII – associaram ao rei.
A serpente simbolizava Henrique IV.
Paulo de Bernried, o biógrafo de Gregório, faz a cena que se passou
no concílio de 1076 profetizar eventos da vida do sucessor imperial. Como era
de conhecimento do autor quando redigiu a Vita Gregorii – provavelmente a
partir de meados da década de 1120 –, a excomunhão decretada pelo papa e
aprovada por aquele mesmo concílio fez cambalear a legitimidade de Henrique,
desastrosamente abalada pela revolta da nobreza saxônica. A rebelião encurralou
o monarca precisamente no momento em que ele teria realizado algo que, aos
olhos dos partidários papais, estava “muito acima de suas atribuições”: decretar
a deposição do pontífice. A impotência que se abateu sobre o rei tornou-se

138 DONIZO. Vita Mathildis. MGH SS 12, p. 377-378; PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii VII
papae. PL 148, p. 70. Entre parênteses, estão dispostas as variações de vocábulo das duas versões.
194
O sentimento político: sobre linguagem e poder

manifesta quando se viu forçado a buscar o perdão dirigindo-se a Canossa –


cidadela ao sopé dos Alpes onde Gregório abrigou-se no inverno de 1076-1077
– para suplicar, em vestes de penitente, pela reconciliação com a Igreja romana.
Estamos diante de um jogo de analogias: como a serpente do relato acima, o
“iníquo monarca” foi abatido justamente quando suas ambições estenderam-se
até as alturas com graves implicações para toda a cristandade, representada pelo
ovo, símbolo da totalidade da vida.
Reencontramos nesses relatos a mesma estrutura dicotômica
apresentada pela carta enviada pelo papa a Herman de Metz em 1081. De um lado,
havia a omissão, a passividade, a obediência, a virtude, a ordem, a redenção; do
outro, perfilavam-se a vontade, o desejo, a escolha, a desobediência, o pecado, a
perdição. Em cada série, os aspectos estavam unidos por relações de causalidade.
Em outras palavras, para os papistas da segunda metade do século XI e início
do XII, o ato de desejar iniciava um perverso efeito dominó no interior da alma:
a razão ficava turva para os limites do agir humano, o juízo era desorientado
e os valores, distorcidos, a soberba cravava suas presas sobre a vontade e,
assim, a consciência tornava-se refém da insubordinação e da desobediência
desenfreada. A percepção do poder ocorria por meio da condição de ser “refém
do desejo”, razão suficiente para punir e depor todos os mandatários, incluindo
os monarcas.
No instante em que o desejo começava a consumir desgovernadamente
a habilidade de decidir, deixava de ser questão pessoal e tornava-se político. Pois
sua ação devastava a vida comum, despertava a indiferença perante as regras e
as proibições. Ele entorpecia o discernimento e semeava uma incapacidade de
distinguir os lugares e as funções cabíveis a cada pessoa no interior da sociedade
cristã. Portanto, o desejo incontrolável ameaçava um preceito eclesiástico
ancestral: o de que a comunidade dos fiéis ficaria unida e justa apenas enquanto
mantivesse a distinção de papéis sociais entre seus integrantes.
A observância da hierarquia era considerada vital para o bem
comum. Se ela se desfizesse, surgiria um vazio no convívio entre os homens e
eles não saberiam preenchê-lo senão com violência, perversidade, crueldade.
Não é difícil encontrar trechos documentais nos quais os eclesiásticos aliados
ao Papado culpavam o ato de desejar pela ruína do poder romano. Guilherme
de Malmesbury, monge e cronista do século XII, via o povo de Roma como
especialmente odioso, e aí estava a razão. Roma – dizia ele – havia sido abençoada
com igrejas e santuários que eram verdadeiros penhores divinos na terra. Porém,
dentro de suas muralhas, no interior desse reduto de feições celestiais, havia
pessoas inebriadas por um furor insano (insano furore gens ebria). Quando
195
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

peregrinos chegavam para renovar a fé, tais pessoas “atormentavam-nos por


completo com ambição repugnante, e derramavam sangue civil sobre os próprios
corpos dos santos, enquanto não pudessem saciar seu desejo por dinheiro” 139
(grifo nosso). Como nos relatos sobre o ovo sombrio levado ao concílio de 1078,
esse desejo de cobiça é uma metáfora, talvez mesmo uma parábola. Nesse caso,
para o antagonismo político entre elementos romanos e não romanos. Vejamos.
Em meados da década de 1120, quando Guilherme compôs essas
linhas, as relações entre a Igreja e a cidade de Roma eram repletas de divergências.
Oitenta anos antes, uma intervenção germânica na Península Italiana removeu o
poder de eleição do bispo romano das mãos dos poderosos locais. A escolha de
Suger (1000?-1047), conde de Mörsleben-Hornburg e bispo de Bamberg, como
papa Clemente II fez da Cúria apostólica um bispado ocupado por um clero
externo, cujas ações eram orientadas por interesses não romanos e devotadas a
lealdades formadas muito além das colinas da antiga Urbe. Desde então, uma
influente minoria eclesiástica empenhava-se para concretizar o poder episcopal
como uma nova liderança no centro peninsular, aprofundando a ruptura entre o
alto clero e as forças politicamente hegemônicas no interior do Lácio.
Com o tempo, a cisão tornou-se oposição, e o governo pontifício foi
arrastado para a crescente dependência de medidas antirromanas. Na passagem
para o século XII, a Sancta Ecclesia Romana, ocupada por um clero formado em
terras alheias, separou-se das redes do poder nobiliárquico local, a fraternitas
romana, agravando o confronto político contra os poderes citadinos (DI
CARPEGNA FALCONIERI, 2002, p. 42-93). O antagonismo entre o clero papal
e os poderes urbanos povoou a época em que viveu o cronista Guilherme de
Malmesbury: as notícias dos “cismas” ocorridos no interior de Roma chegavam
às igrejas da Britannia, onde muito era escrito sobre as divisões entre o alto e
o baixo clero papal, os rumores de envenenamento e sequestro dos bispos
romanos, os exílios da corte papal, as perturbadoras notícias de emboscadas
contra cardeais. É muito provável que tais episódios despertassem uma viva
emoção de ultraje em nosso cronista, cujo texto revela um homem solidário às
prerrogativas da autoridade apostólica (THOMSON, 2003).
Descrever o “povo romano” (populus romanus) como marionete
de desejos parece ter sido a fórmula encontrada por um partidário do poder
pontifício para dar sentido a esse histórico de oposição existente entre a Igreja e
a cidade de Roma, dispondo-a da seguinte forma: do lado do clero, a moderação

139 “[...] foedo ambitu omnia, turbabant et supra ipsa sanctorum corpora civilem libabant sanguinem
dum non possent satiare pecuniarum libidinem.” (GUILHERME DE MALMESBURY. Gesta
Regum Anglorum. In: HARDY, 1840, p. 544-545).
196
O sentimento político: sobre linguagem e poder

e, com ela, a autoridade; junto ao povo, o desejo e, portanto, a violação da ordem


comum. A retórica do desejo é culpabilizadora, ou melhor, incriminatória das
figuras públicas.
A imagem é familiar. O “povo romano” aparece rompendo a unidade
cristã como o Cádalo descrito por Pedro Damião. Da mesma forma, foram
caracterizados os mercenários da fé sobre os quais lamentava Bernardo de
Claraval e o rei Henrique, que arrancou vívidos protestos de Gregório VII. Todos
tinham isto em comum: a teimosia do desejo era a marca de sua desqualificação
para o bem comum (utilitas publica), de sua ilegitimidade para um convívio
ordenado. A insistência de todos eles em escutar tão somente a própria
vontade tornava-os, segundo o Papado, corruptos, mesquinhos, ineptos para a
preservação da boa ordem das coisas. Porque desejaram, poderiam ser punidos
ou removidos da unidade cristã.

Sobre a teologia política

Há aqui algo de grande importância a ser notado: “desejo” era o nome


amiúde dado pelos partidários papais aos comportamentos em que não havia
o recolhimento voluntário perante as decisões da Cúria. Empregando-o, eles
tornavam compreensível aos homens de sua época a causa da inadequação
pública de um cristão, fosse ele um rei ou um “povo”: ao desejar, eles tornavam-se
incapazes de obedecer, pois teimavam em optar, escolher. Gravada como voluntas,
desiderium, concupitus ou libido, aquela era a ideia cabível para descrever o que
levava o “outro” a agir quando o que se esperava dele era passividade.
Como ingrediente da percepção política clerical, esse vocábulo
permitia reconhecer um fracasso: a incapacidade de recuar, a inépcia para
manter-se inativo. Eis o nome cabível para o distúrbio de insistir em decidir
quando isso não era visto com bons olhos. “Desejo” era a expectativa frustrada
da obediência espontânea. Do cardeal Pedro Damião ao monge Guilherme de
Malmesbury, há uma lógica para a atitude de cruzar a linha divisória entre a
celebração e a rejeição do desejo: a necessidade de conferir sentido à obstrução
social da autoridade.
A historiografia é farta em referências quanto ao fato de que, entre
1050 e 1150, a autoridade pretendida pelos papas mudou radicalmente
(CUSHING, 2005; LEYSER, 1994; MACCARRONE, 1971; ROBINSON,
1978a; TELLENBACH, 1993). Uma inédita e duradoura ascensão política teria
provocado um drástico alargamento das competências decisórias e jurídicas
do poder pontifício. Esse processo, porém, não ocorreu sem oposições. Dos
197
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

aristocratas locais da velha Roma aos novos imperadores da Germânia, a


mobilização pela resistência estendeu-se por paisagens inteiras, envolvendo
diversos grupos sociais. Tal cenário forçou, em vários momentos, a autoridade
apostólica a confrontar-se com o peso de intensas pressões sobre um de seus
principais fundamentos: a força coletiva da crença de que ouvi-la era preservar
uma força fundadora da ordem pública, que acatá-la era seguir atribuições vitais
para a paz e a justiça.
Para reafirmar o caráter primordial e extraordinário das decisões
emanadas da Igreja romana, os papistas precisavam envolver aqueles episódios
de contestação e oposição em um sentido inteligível aos demais e heterogêneos
grupos sociais. Dito de outra forma: era necessário demonstrar que a oposição
dirigida a algo tão poderoso quanto a autoridade dos papas resultava de uma
força igualmente poderosa, mas inversa, contrária. Somente algo grandioso,
inscrito em toda a extensão da Criação – e não qualquer escolha ou mera ação
humana – poderia desafiar a voz dos vigários de Pedro. Algum sentido havia
para a obstrução da autoridade papal, restava descobri-lo.
Ainda que sem intenção – isso não nos parece decisivo –, os papistas
acionaram o acervo de sua linguagem em busca de um adversário à altura da
autoridade dos sucessores de Pedro, cuja ação reforçaria (pelo contraste) a
singularidade da voz papal. A grandeza do poder papal era reafirmada quando
se admitia que uma causa formidável motivava sua rejeição. Esquivando-se do
reconhecimento da fragilidade institucional e política, os papistas encontraram
um arquirrival temível e monumental por trás de seus insucessos. O pensamento
eclesiástico ressignificou as derrotas sofridas pelos pontífices como resultados
das investidas de uma potência quase sobre-humana, o desejo.
Os partidários papais operavam aqui uma transfiguração histórica.
Convertiam a negação social da autoridade, sua falta e seu vazio, em uma
presença semântica: a visão de um arqui-inimigo metafísico, “o desejo”. A voz
dos papas era assim restabelecida perante os olhos e ouvidos de quem entrava
em contato com aqueles relatos, pois seu adversário não eram pessoas ou grupos,
mas uma força maior, primordial, quase indestrutível – como ela própria. A
autoridade e o desejo reforçavam a percepção da existência inscrita em uma
ordem cósmica hierárquica, mas com uma diferença crucial, ou antes, com uma
assimetria política: ao passo que a primeira provinha da gartanta de um homem,
o segundo estava inscrito no corpo de todos.
Desvencilhando-se das amarras da carne, algumas almas iluminavam-
se de modo especial, inteirando-se da ordem adequada a ser seguida por todos
os que almejavam a eternidade. A essa experiência sagrada, manifestação rara e

198
O sentimento político: sobre linguagem e poder

incontestável, cabia o nome de “autoridade”. Ela revelava a ordem da vida. Por


meio dela, era possível antecipar-se ao inelutável acerto de contas com Deus e
calibrar os pensamentos e atos realizados nesta vida segundo o plano divino para
a salvação. Negá-la, por seu turno, era agir em sentido oposto. Era remover a
barreira que continha os movimentos sombrios da perdição, do desgoverno, da
convulsão e degeneração do espírito, realidade que ingressava nesta vida através
desse portal do Além que era chamado “desejo”. Nesse caso, o discurso teológico
é, em si, uma teoria política cuja lógica é recuperar o exercício do poder papal,
eivado de fracassos, ao persuadir leitores e ouvintes de que era preciso radicalizar
a separação entre quem decidia e o restante que devia obedecer, pois todos os
demais eram território de ação de uma força perturbadora.
Desse modo eram unidos os fios de uma experiência simbólica de
hierarquização da ordem pública. Diante dela, o recolhimento espontâneo
da própria vontade – isto é, acatar a voz da auctoritas – tornava-se um gesto
de perfeição cristã. Anular a voz interior e cumprir os preceitos que aquelas
poucas almas iluminadas revelavam ao sentar-se no trono petrino era ajustar a
vida a uma ordem transcendente, maior e indestrutível. Barrar a capacidade de
escolher não era uma privação ou mesmo mutilação da consciência. Era antes
uma medida de êxito coletivo. As consciências cristãs poderiam ser persuadidas
para uma participação voluntária nas práticas da obediência e da obrigação. Ao
menos simbolicamente, os textos papistas restauravam o fundamento social da
autoridade.
“Desejo” era o vocábulo que permitia reconhecer a negação da
autoridade. Era o nome com o qual os papistas significavam os enfrentamentos
políticos e as lutas pelo poder, engrandecendo a voz dos pontífices ao apresentá-
los como adversários de um mal coletivo, nunca meramente individual.
Desafiados e surpreendidos pelas correlações de forças que restringiam o
exercício do poder papal, eles recorreram ao efeito tranquilizador da tradição.
Buscaram um vocábulo familiar, um meio de expressar de modo conhecido os
males do excesso, da dissolução, da desordem.
Essa procura levou-os ao “desejo”, palavra que a Antiguidade havia
assentado como o signo de um poderoso elo da existência; um componente
humano capaz de interferir nos rumos da vida, revolvendo o destino das almas.
Com esse nome, as Sagradas Escrituras, os Santos Padres, a Regra de São Bento
nomeavam uma fonte propiciadora do mal, pois o vocábulo atendia a suas
expectativas de sentido, respondia a sua busca pelo transcendente encoberto pela
diferença, pelo alheamento, pelo afastamento, pela cisão. O termo conferia uma
origem supra-humana aos comportamentos nos quais a escolha não era freada

199
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

e a capacidade de decidir continuava a ser acionada. Como parte da percepção


papista das relações de poder, a ideia de desejo não possuía lugar discursivo
fixo, a não ser o de conferir um rosto, uma imagem, ao não lugar da autoridade
papal. O desejo fazia ver o momento em que ela era recusada, tornando possível
localizá-lo, explicá-lo e, portanto, combatê-lo. Nos casos aqui debatidos, tal
vocábulo era o signo de uma ausência: a falta de obediência à palavra superior
irradiada da Igreja de Roma.
Percebemos que, em se tratando do círculo de poder papal dos séculos
XI e XII, o pensamento político frequentemente não contava com reflexividade
linguística. Haja vista que, em ocasiões decisivas, ele não engendrava um léxico
próprio, capaz de responder com conceitos diferenciados às pressões específicas
de cada contexto. O pensamento político não era acompanhado por uma
morfologia própria: ele realizava-se como tema teológico. Lidamos com agentes
históricos que conferiam sentido a ocorrências de poder quando as dispunham
em formatos herdados dos antepassados, configurando-as segundo categorias e
esquemas tradicionais da linguagem.
A consciência dos acontecimentos políticos vividos no presente
manifestava-se pela voz herdada do passado. Uma nova, e por vezes perturbadora,
realidade era enunciada com a roupagem linguística de velha verdade. Se assim
preferirmos, podemos redizer toda essa argumentação assim: a percepção papista
a respeito das relações de poder não dispunha de uma linguagem propriamente
política ou de algum discurso stricto sensu sobre o poder. Ela emergia de medidas
linguísticas que, transmitidas pela tradição, haviam sido consagradas por uma
orientação metadiscursiva: a fala sobre o poder disfarçava-se de um sermão sobre
pecado, graça, tempo, eternidade ou, simplesmente, desejo. O que era vivido
como politicamente inédito era compreendido com base em posicionamentos
discursivos tradicionais, familiares, repetitivos.
Que nós, historiadores, não nos enganemos. Tal forma de proceder
não era meio de evasão, substituição ou ocultação das relações políticas.
Mas, isto sim, seu próprio modo de acontecer historicamente. Era assim que
os antagonismos de valores tomavam forma; as divergências de interesses
adquiriam tangibilidade; a legalidade era construída; a distância das posições
ganhava certa medida e tracejava a distinção e a segregação, a aceitação e a
intolerância. No que diz respeito ao Papado medieval situado nas décadas em
redor do ano 1100, a política fazia sentido como relações eminentemente morais
e transcendentes. Em momentos decisivos da história do Papado, a percepção
política não contou com uma pátria discursiva ou – se preferirmos dessa forma
– com alguma alteridade linguística consistente. Como tal, as marcas deixadas

200
O sentimento político: sobre linguagem e poder

por sua existência estão crispadas na superfície documental como inflexões que
muitos de nós classificaríamos como teológicas: não como enunciados que nos
lembrem de alguma “teoria política”.
Os pesquisadores que se debruçam sobre o Papado e a Igreja
medievais precisam revisitar uma tradição intelectual taxada de monumentalista
e antiquada: o pensamento de raízes historicistas (HAMILTON, 2002; IGGERS,
1968). Constituído pela intercessão de postulados presentes nos escritos de
Carl Schmitt (2006), Eric Voegelin (2010), Ernst H. Kantorowicz (1998), Karl
Löwith (1967), entre outros, esse descentrado prisma teórico tem sido o anfitrião
de longa data do conceito de teologia política. Embora comporte diversas –
e polêmicas – modalidades de aplicação, tal conceito deposita inegável ênfase
sobre as possibilidades históricas de percepção e atuação políticas em sociedades
dominadas por discursividades teológicas.
A incorporação dessa ideia-chave fornece ferramentas metodológicas
mais eficazes para dimensionar as especificidades da política medieval do que
as indicações fornecidas por autores formados nos quadros da ilustre história
constitucional inglesa, como Robert e Alexander Carlyle (1921), Walter
Ullmann (1949, 2003b), Stanley Chodorow (1972) ou ainda Cary J. Nederman
e Kate Forhan (1993). A influência exercida por essa vertente historiográfica
frequentemente leva o investigador a justapor às percepções medievais do poder
diversas exigências teórico-metodológicas condizentes apenas com referências
atuais.
Referimo-nos, por exemplo, à atitude tácita de pressionar a
documentação para que ela dê provas da existência de uma “teoria política
medieval”, concebida como discurso particularizado em termos morfológicos e
sintáticos, como se o poder fosse pensado como algo em si, realidade autônoma.
Agindo assim, saímos à caça documental de singularidades de uma linguagem
condizente exclusivamente com certos padrões lógicos do pensamento
contemporâneo secularizado. Com isso, passamos a cobrar que os documentos
medievais demonstrem a existência de uma teoria política sistemática,
categorizada. Na escrita dos papistas de 1050-1150, o “poder”, a “autoridade” e
outras relações políticas fundamentais dificilmente figuram como categorias em
si, como conceitos específicos, autorreferenciais.
No que tange ao Papado da Idade Média, a política fazia-se teológica,
a linguagem não se fazia política. São muitas as lições metodológicas a serem
extraídas dessa realidade em que variações de significado emergiam entre
indistinções enunciativas e morfológicas. O pensamento político camufla-se
de epístolas pastorais, opúsculos morais, enredado em páginas sacramentais,

201
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

enroscado em textos místicos. Irradiado por diversas fontes, ele pode cintilar com
vivacidade, reluzindo complexidade; todavia, por meio de um brilho linguístico
emprestado, deixando o mundo político do Papado medieval transmutado para
os olhos do historiador. O que, todavia, não significa pressupor que a história
política cabe no interior de “semiologias religiosas” que reduzem o poder e a
dominação a efeitos do sagrado (LE GOFF, 1994).
Recusar a premissa da existência de uma teoria política medieval para
o caso aqui analisado não implica admitir que as tramas das ações de poder
pudessem ser contidas nos campos da imagem e das imbricações simbólicas,
como enfatizam os autores (BUCC, 2001, p. 843-883; KELLY; KAPLAN, 1990,
p. 119-150) que, na esteira de Jacques Le Goff, ajustam suas lentes conceituais
para obedecer aos limites das aparelhagens mentais e dos imaginários. Não
devemos tomar o núcleo simbólico das formas de compreensão do mundo como
autorreferenciais. Nos casos aqui discutidos, as fontes falam-nos de “desejo”,
mas significando algo que extrapola o foro da espiritualidade: a luta social pela
autonomia decisória. As relações políticas eram transfiguradas como sagrado,
mas conservavam certas propriedades históricas irredutíveis aos imaginários da
vida coletiva.
Podemos, finalmente, oferecer nova leitura à percepção do “desejo”
exemplificada com os textos de Pedro Damião e Bernardo de Claraval logo nas
primeiras páginas deste texto. Em casos como aqueles, nos quais a linguagem
eclesiástica tradicional era acionada para expressar uma compreensão política,
os agentes históricos não falavam propriamente de sentimentos, de afetos.
Eles antes recorriam a um vocábulo familiar para dar sentido à falta, ao vazio
da autoridade, como aquele que teria sido provocado no interior da Igreja de
Roma por Cádalo de Parma – segundo Damião – ou no claustro por quem se
comportava como mercenário moral e, assim, erguia obstáculos à autoridade do
abade ou prior – como censurou Bernardo.
A utilização da ideia de desejo como algo essencialmente depreciativo
não era uma súbita incoerência ou mesmo um revés que se alojava na crescente
atmosfera intelectual de valorização da ação de desejar. Era o resultado de
uma tensão hermenêutica: da condição de dispor da linguagem eclesiástica
tradicional para conferir sentido a relações políticas novas e desafiadoras. No
bojo dessa tensão, as contradições de poder assumiam a forma de matérias
morais, interiores, sentimentais. E dessa alquimia histórica, muitos protagonistas
da senda política saíam transformados. De tal forma que um prestigiado líder
podia acabar seus dias como o anticristo em pessoa, como amargamente coube
a Cádalo, o velho bispo de Parma.

202
O sentimento político: sobre linguagem e poder

Posfácio

203
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

204
O sentimento político: sobre linguagem e poder

Inspirados pelas páginas que nos precedem e pelos debates teórico-


metodológicos nelas impressos por Leandro Rust, assumimos a difícil tarefa
de arrematar este livro. Arremate este que não se presta a uma breve retomada
daquilo que o autor apresentou de forma tão competente. Mais do que um simples
resumo, compete-nos aqui a tarefa de refletir sobre as considerações feitas a
respeito da trajetória histórica e historiográfica da Reforma Papal, destacando o
impacto das conclusões deste trabalho nos cenários nacional e internacional da
investigação em história medieval.
Seguramente positivos, os resultados da pesquisa de Rust são no mínimo
instigantes para aqueles que acompanham a atmosfera de profissionalização
da investigação em história medieval no Brasil e, posicionando-se de maneira
crítica, seguem o amadurecimento de uma historiografia medieval genuinamente
brasileira. Não se trata de defender os pressupostos de um nacionalismo brasileiro
na condução dos estudos científicos nesse campo. Ao contrário, o que buscamos
é dimensionar a natureza de nossa contribuição para o desenvolvimento das
pesquisas desse tipo. Justamente por não partilharmos de uma ascendência
medieval, ao menos não de forma legitimamente reconhecida como o é para
os medievalistas europeus, cabe aqui uma reflexão cuidadosa sobre o tipo de
pesquisa que valida os estudos medievais no Brasil e quais contribuições podem
prestar num espaço de interlocução científico mais vasto.
Nesse sentido, A Reforma Papal: trajetórias e críticas de uma história
cumpre seu papel. Trata-se de uma obra ousada por pretender compreender
a chamada Reforma Papal e seus equivalentes (Reforma Gregoriana, Reforma
Eclesiástica, Reforma da Igreja) não apenas como um acontecimento histórico em
si, mas, principalmente, por conceber o tema como um produto historiográfico,
sujeito às intempéries de modismos teórico-metodológicos e às pré-concepções
político-culturais de seus contextos de produção.
Toda história é filha de seu tempo, dessa constatação nenhum
historiador escapa. Ao reconhecer a atualidade dessa máxima, Leandro Rust
toca num nicho indispensável ao exercício cotidiano do ofício do historiador: a
insistente pergunta de como fazer história? Provocados pelas problematizações
do autor, acompanhamos ao longo das páginas de A Reforma Papal uma
reflexão densa sobre como proceder à investigação de um tema tão consagrado
da História Medieval. Entretanto, o mais importante a ser destacado sobre
a abordagem de Rust é a capacidade com que dotou o tema de historicidade,
reconhecendo as intenções que deram origem ao interesse por esse estudo e,
sobretudo, os “preconceitos” de uma tradição investigativa racionalista moderna
que condicionaram suas conclusões.

205
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Neste livro, o autor ensina-nos quando retoma os pormenores da


realidade histórica dos séculos XI e XII, fornecidos pelo cotejamento de um
leque vastíssimo de registros documentais, aliados a pressupostos teóricos de
primeira ordem. Todavia, ele nos ensina duas vezes mais quando historiciza a
própria historiografia dedicada ao tema. Desde seu nascimento, identificado
com o século de profissionalização da investigação histórica (século XIX),
passando por seu auge, deflagrado pela cristalização dos conceitos “Reforma
Gregoriana” e “Revolução papal”, A Reforma Papal: trajetórias e críticas de uma
história destaca os limites das abordagens realizadas e a necessidade de retornar
aos documentos por meio do balizamento de novos referenciais teóricos.
Cuidadoso em não julgar os precursores desses estudos e reticente
em imputar-lhes a alcunha redutora de anacrônicos, Rust disseca o pensamento
histórico de Augustin Fliche, Gerd Tellenbach, Norman Cantor, entre outros,
evidenciando o quanto os resultados alcançados por eles estão submetidos às
teorias políticas coetâneas a suas abordagens. Fliche, por exemplo, ao transformar
a história religiosa em um campo autônomo de investigação, submeteu a
interpretação sobre as ações políticas do Papado medieval a um pensamento
religioso de moral reformadora, cuja inspiração procedia de sua compreensão
do que é uma ordem pública salutar, convenientemente organizada com base em
instituições centralistas de caráter estatal.
Com pressupostos diferentes, os perpetuadores da chamada
“Revolução Papal” endossaram que as ações de defesa da libertas ecclesiae
provocaram uma mudança total da sociedade dos séculos XI e XII: um clero
em busca de autonomia contra a dominação de imperadores, reis e senhores
estabeleceu na lei canônica o fundamento para tornar-se uma entidade política
independente e capaz de dar equilíbrio às divergências sociais, alçando-se, assim,
à condição de condutor de toda a sociedade. Nas palavras de Rust: “O papado
de mil anos atrás surge como a força desbravadora de um avanço irresistível, de
uma marcha em direção ao aprimoramento das relações de poder através da
emancipação da Igreja.”
O ponto interessante da reconstituição de Leandro Rust é perceber que
tanto os perpetuadores da “Revolução Papal” quanto os adeptos da “Reforma
Gregoriana” comungam, apesar dos divergentes pressupostos, a mesma
conclusão: as ações do Papado entre 1050-1150 foram reduzidas “a uma unidade
taxativa, hermética, negando positividade histórica a grupos e ações sociais que
não anunciem a Modernidade industrial”.
Como afirmamos acima, não se trata de atribuir-lhes a etiqueta do
anacronismo, mas de pensar um impasse: como promover a compreensão
histórica de uma dada sociedade se estamos condicionados a carregar conosco
206
Posfácio

o peso do contexto no qual escrevemos? Como estabelecer a medida equânime


entre os preconceitos que cegam e aqueles que esclarecem? Presentificar a
história não significa usá-la como força política que inviabiliza sua compreensão
como ação dos homens no tempo.
Seguindo o próprio conselho de reabrir a história, Rust desenvolveu
nos capítulos seguintes uma metodologia de trabalho que merece ser detalhada.
Ao analisar as histórias dos milagres punitivos do papa Gregório VII, as visões a
respeito da danação clerical e os ordálios indesejados, legados por um conjunto
de documentos produzidos após 1080, o autor decompôs a concepção de
sagrado atribuída ao Papado “reformador”. Sua primeira constatação reside
na impossibilidade de atribuir a uma pretensa espiritualidade “gregoriana” os
fundamentos de práticas reformadoras.
Segundo Rust, a sacralidade que paira em torno dos relatos sobre as
ações desse Papado “reformador”, cujo protagonista é Gregório VII, tem sentido
se considerarmos um recorrente aspecto de combatividade e seu sentido político.
Segundo ele: “As relações gregorianas com a sacralidade eram experiências
de busca por soluções eficazes para os conflitos protagonizados pelo bispo de
Roma, especialmente os enfretamentos com o Império.”
Nesse sentido, o sagrado “gregoriano” estava marcado pela
contradição. Não era uma coisa em si, mas um condicionante mobilizado,
acionado pelos fatos. Particularmente, os fatos políticos. Como adjetivo, que
destacava a extraordinariedade de algo, sua construção e seu acesso estavam
intimamente submetidos à ação social. Presente como um elemento retórico, o
recurso ao sagrado permitiu que, mesmo no fracasso das incursões do papado
hidelbrandino, se construísse uma memória que o reluzia como mártir vitorioso,
promotor da redenção daqueles que têm fé.
Disposto a romper outro pilar da “Reforma Papal”, no capítulo “A
excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade”, Rust recolocou sobre
outras bases a ideia do surgimento de uma nova cultura jurídica na segunda
metade do século XI. Embasado na análise e na comparação de vários registros
documentais – entre eles cartas, crônicas e compêndios canônicos pró-papado
hildebrandino e também aqueles que defendiam posições antagônicas aos
partidários papistas –, o autor constatou que, “entre as últimas décadas do século
XI e as primeiras do XII, o exercício do poder papal consistia em manejar a
palavra escrita”. Porém, sem deixar de destacar a operacionalidade da voz, da
palavra dita na constituição dessa “comunidade escrita” em torno da regulação
social.
Dito de outra forma: com base nos registros documentais que
tratam das excomunhões e deposições na disputa entre o papa Gregório VII
207
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

e o imperador Henrique IV, a medida da legalidade/legitimidade das mútuas


condenações não se assentava no uso estrito dos textos canônicos, mas na
capacidade de a voz expressar a licitude da decisão.
Sob essa dimensão oral, encontrava-se a auctoritas do litigante.
Entendida como interpretação válida, verdadeira e correta dos textos
considerados reveladores das palavras do Primeiro e grande Autor (Deus), a
autoridade dava suporte à palavra dita, permitindo a progressiva hegemonia dos
eclesiásticos sobre a definição do que era e do que não era lícito. Nesse sentido,
a multiplicação dos registros e das coletâneas canônicas entre 1050 e 1150
fortaleceu os usos da voz politicamente qualificada.
Com uma abordagem que retomou o tom crítico dos dois primeiros
capítulos, em “A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo”,
Leandro Rust propôs-se a problematizar o tratamento historiográfico oferecido
ao “antipapa” Maurício Burdino, conhecido como papa Gregório VIII. Lançado
à marginalidade dos estudos sobre o Papado em razão de um “preconceito”
historiográfico de tom nacionalista, a trajetória desse papa ainda permanece
uma incógnita.
De acordo com Rust, uma “barreira histórica” foi erguida em torno
de um problema crucial para o entendimento da complexa rede de poder papal
estabelecida entre os séculos XI e XII: “a súbita ascensão do metropolitano de
Braga teria sido o resultado de uma vinculação profunda e ainda mal conhecida
entre as igrejas ibérica e romana? As relações de poder vivenciadas na Hispania
teriam funcionado como um ‘modelo’ para uma visão conciliatória a respeito da
‘Igreja’ e do ‘Império’?”.
É fulcral a importância desse capítulo para a organicidade deste livro.
Expliquemos. Conciliando a análise da historiografia – sobretudo portuguesa –
que sentenciou o período antipapal de Burdino à marginalidade da investigação
da história, com um denso exame sobre o paradigma hegeliano da história
universal, Leandro Rust deu-nos uma verdadeira lição de como fazer história.
Reiteramos aqui sua proposta:

Nossa capacidade de dizer algo de válido e verificável sobre o


passado depende sempre de uma compreensão que se desenrola
em dois atos inseparáveis: 1) conhecer a historicidade do
real (negligenciada pela primeira opinião e sua absolutização
da linguagem) e 2) conhecer a historicidade intrínseca ao
pensamento conjugado para explicar o passado (o que acaba
obliterado pelo segundo ponto de vista e sua premissa de que as
fontes são antídoto para quaisquer efeitos discursivos).

208
Posfácio

Ao trazer à cena as orientações da “hermenêutica filosófica” de Hans-


Georg Gadamer, Rust apresentou o limite de nosso ofício, e, sobretudo, nossa
necessária condição de vigilância sobre o real presente. A fim de que possamos
historicizar um passado ausente, precisamos escapar ao casuísmo de subordinar
a produção da história a qualquer doutrina/teoria política.
Na centelha dessa orientação metodológica de inspiração
hermenêutica, no derradeiro capítulo “O sentimento político: sobre linguagem
e poder”, o autor brinda-nos com um apurado exercício de semântica histórica
sobre o termo desejo ­(voluntas, desiderium, concupitus, libido), demonstrando
o quanto a linha tênue entre a negativação ou a positivação desse sentimento
estava subordinada à intenção de conter qualquer contestação social à auctoritas
papal.
Sob a máscara de um pretenso discurso teológico de combate aos
vícios capitais, tão recorrente na literatura polemista do período, a caracterização
negativa ou positiva do desejo trazia à tona não uma altercação doutrinal, mas
a experiência política do Papado dos séculos XI e XII. Nas palavras de Leandro
Rust:

[...] o discurso teológico é, em si, uma teoria política cuja lógica


é recuperar o exercício do poder papal, eivado de fracassos, ao
persuadir leitores e ouvintes de que era preciso radicalizar a
separação entre quem decidia e o restante que devia obedecer,
pois todos os demais eram território de ação de uma força
perturbadora.

Ao desmistificar um pretenso sagrado “gregoriano” fundado sobre a


égide de uma normatividade estritamente textual, o principal legado histórico
de A Reforma Papal: trajetórias e críticas de uma história foi dar tangibilidade
às complexas relações políticas que, em meio às inúmeras divergências sociais,
ajudaram a construir a autoridade e, sobretudo, a fundamentar o poder pontifício
entre 1050 e 1150.
Assim, além das contribuições teórico-metodológicas já destacadas
acima, este trabalho de Leandro Rust tem por mérito contribuir para a
desconstrução de dois preceitos historiográficos, apresentando em seu lugar
análises documentais apoiadas numa rica discussão teórica que nos permite
pensar os limites de explicações históricas generalistas como aquelas cristalizadas
pela alcunha “Reforma Papal”. Em última instância, o autor convida-nos a rever
uma densa quantidade de relatos históricos que tiveram como tema o Papado de
meados de 1100, instigando-nos a dar continuidade a este trabalho nada fácil de
crítica historiográfica unida à análise documental.
209
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

A Reforma Papal: trajetórias e críticas de uma história foi apenas


um primeiro passo no tipo de contribuição histórica e historiográfica que a
medievalística brasileira pode, competentemente, oferecer.

Franca, 18 de outubro de 2013.

Cláudia Regina Bovo


Universidade Federal do Triângulo Mineiro

210
Posfácio

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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

PROCEDÊNCIA DOS TEXTOS

Os textos que integram este livro são inéditos, com exceção de dois, que
constituem a obra como versões revisadas e ampliadas de publicações
anteriores:

Parte III
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

A primeira versão deste capítulo surgiu como o artigo acadêmico “O


Sagrado Gregoriano: o político como religiosidade”, publicado na revista
De Medio Evo, v. 1, p. 23-46, 2013 (Madri, Espanha).

Parte VI
O sentimento político: sobre linguagem e poder

A primeira versão deste capítulo surgiu como o artigo acadêmico “A


Autoridade, o Desejo e a Alquimia da Política: linguagem e poder na
constituição do papado medieval (1060-1120)”, publicado na revista
Varia História (UFMG. Impresso), v. 27, p. 161-187, 2011 (Belo
Horizonte, Brasil).

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Sobre o Livro
Capa 32,5 x 22,5cm
Miolo 15,5 x 22,5cm
Tipologia Utilizada Minio Pro
Capa Papel Suprema 250g
Miolo Papel Sulfite 90g

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