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Em preparação:
A vida na Idade Média — G. d'Haucourt
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!
Universidade hoje
MERCADORES
E BANQUEIROS
DA IDADE MÉDIA
Jacques Le Goff
Martins Fontes
Titulo original: MARCHANDS ET BANQUIERS
AU MOYEN AGE
publicado por Presses Universitaires de France,
na coL Que Sais-Je?
Copyright Presses Universiiaires de France, 1986
Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
para a presente edição.
Le Goff» Jacques.
Mercadores e banqueiras da Idade Média / Jacques
Le Goff ; [tradução Antonio de Pádua Danesi ; revisão
da tradução Lilian Escorei de Carvalho]. — São Paulo ;
Martins Fontes, i99L. — (Universidade hoje).
CDD-3âO.ü9C2
91.2904 ‘332.IO9Q2
ISBN 85.336.0031-3
introdução .................................................................. 1
I. A revolução comercial, 7
II. O mercador itinerante, 9
UI. O mercador sedentário, 17
IV, Progressos dos métodos nos séculos XIV e XV, 26
CoH.ffíHQk
R.F.Ci. EilB. DATA
FORN.
vl tS PAtS
NF 1
Data da Aquisição;...................................
Introdução
I
ziano construiu sua fortuna no contato com Bizâncio
c que as grandes cidades marítimas da Itália foram bus
car no domínio greco-muçulmano, de Ceuta a Trebi-
zonda, de Bizâncio a Alexandria, o essencial daquilo
que fez a sua riqueza. O mercador cristão, cuja ativi
dade é posterior à do bizantino ou à do árabe, não lhes
tomou emprestados métodos, mentalidades, atitudes?
Esse abandono do mundo oriental, que teria sido
imperdoável se tivéssemos estudado o comércio me
dieval, julgamos poder aceitá-lo ao tratar do merca
dor. Segunda limitação deste pequeno trabalho: o co
mércio propriamente dito — com o estudo de seus mer
cados, rotas, instrumentos, produtos e evolução — não
foi tratado em si mesmo. Ó que interessa aqui são os
homens que se dedicaram a ele. Sob este aspecto, o
mercador cristão, conquanto sua atividade se asseme
lhe forçosamente à de seus congêneres orientais, está
mergulhado num contexto político, religioso e cultu
ral totalmente distinto. Ora, empenhamo-nos especial
mente em recolocá-lo no âmbito de sua cidade, Esta
do, sociedade e civilização. O que ele fez de sua rique
za, de seu poder, fora do campo econômico, reteve-
nos particularmente a atenção.
Ainda seria preciso escolher entre esses homens.
Aqui, foram os pequenos que tivemos de sacrificar:
mercadores varejistas, usurários de prazo curto e ju
ros elevados, vendedores ambulantes. A escassez de do
cumentos pessoais que os mencionam e a dificuldade
do historiador em distinguir figuras individuais entre
eles determinaram essa escolha, assim como o desejo
de mostrar sobretudo os* personagens a quem o pode
rio econômico permitiu desempenhar um papel de pri
meiro plano tanto na política ou na arte como no mer
cado. São, pois, os negociafores, os mereatores, que
vamos mostrar. Homens de negócios, como se diz, e
a expressão é excelente porque exprime a extensão e
a complexidade de'seus interesses: comércio propria
2
mente dito, operações financeiras de todos os tipos,
especulação, investimentos imobiliários c prediais.
Contentamo-nos aqui em evocar, para nomeá-los, os
dois pólos de sua atividade: o comércio e o banco.
Aliás, para designar os mais poderosos, os mais repre
sentativos entre eles não empregou a própria Idade Mé
dia o termo mercadores-banqueiros? Ora, esse tipo está
ligado à fase de desenvolvimento da economia da Eu
ropa cristã, a partir do século XI. Renunciamos, pois,
a falar dos mercadores da Alta Idade Média. Solução
cômoda, dir-se-á. Evitamos assim a necessidade de ex
por as múltiplas teses que se confrontam nesse domí
nio; evitamos falar de seu número e de sua importân
cia — ínfima para alguns, grande para outros —, de
sua natureza — mercadores especializados ou de se
gunda categoria, independentes ou ligados a príncipes
e a estabelecimentos religiosos, simples ambulantes ou
capitalistas de largos horizontes —, de sua nacionali
dade — judeus ou indígenas —, e finalmente do pro
blema capital de sua origem obscurecido pelas teorias
— sobrevivência do passado, do mundo greco-romano,
aventureiros itinerantes, proprietários prediais que se
põem a investir capitais no comércio.
Em todo caso, desse modo podíamos delimitar
mais facilmente a última alternativa: plano cronoló
gico ou plano lógico? O que lería sido impossível se
partíssemos das origens medievais afigurou-se legíti
mo num contexto temporal em que, depois do que se
chamou justamente de “revolução comercial”, as con
dições fundamentais da vida do grande mercador cris
tão permanecem relativamente estáveis. Optamos, pois,
por uma exposição sistemática na qual — sempre pro
curando os vínculos entre as diferentes atitudes de um
mesmo homem — se considerou o mercador-banqueiro
primeiro em seu gabinete ou no mercado — isto é, em
sua atividade profissional —, depois em face do no
bre, do operário, da cidade, do Estado — isto é, em
3
seu papel social e político —, em seguida, diante da
Igreja e de sua consciência — ou seja, em sua atitude
religiosa e moral — e, enfim, perante o ensino, a arte,
a civilização — vale dizer, em seu papel cultural.
Tais opções nâo causaram apenas remorsos. Fo
ram acompanhadas de arrependimentos cujos traços,
que pareceram legítimos ou mesmo necessários, encon
traremos mais adiante.
Se nos ativemos unicamente ao mercador cristão,
não dissimulamos nem a amplitude geográfica de sua
atividade, nem os problemas profissionais ou morais
suscitados pelos contatos com o mundo cismático, he
rético ou pagão. Não esquecemos que o mercador cris
tão da Idade Média Linha horizontes mais amplos que
os de muitos eruditos modernos que o estudaram. Se
Marco Polo é um caso excepcional ou, antes, extre
mo, numerosos foram os seus confrades que percor
reram em pensamento todas as rotas por onde ele real
mente se aventurou.
Não quisemos tampouco evocar o mercador ou
o banqueiro sem explicar de que se compunha sua vi
da profissional. Do comércio esboçamos, pois, os mé
todos, a organização, o contexto em que o comerciante
evolui.
Não nos esquecemos igualmente de que, à som
bra dos poderosos personagens tratados, os humildes,
os pequenos constituíam o tecido conjuntivo de um
mundo que não se podia compreender sem eles, e o
leitor poderá perceber na filigrana o seu rosto anôni
mo. No mais, foi preciso questionar, a exemplo de emi
nentes historiadores, a que correspondia a distinção
entre grande e pequeno mercador na Idade Média, se
ela era redutível à oposição entre comércio atacadista
e varejista.
Do mesmo modo, se deixamos de lado, em seu
aspecto histórico, o problema da origem do mercador
cristão na Alta Idade Média, também não eludimos
4
o problema conexo de suas gerações —• novos-ricos ou
filhos de ricos — nem o das preocupações fundiárias
dos homens de negócio medievais.
Finalmente, mesmo no interior de um contexto
geográfico e cronológico que fundamentalmente não
mudou, levamos em conta tanto a diversidade do es
paço — o mercador italiano não é o hanseático —
quanto a evolução no tempo — o pioneiro do século
XII não é o novo-rico do século XIII, as crises do sé
culo XIV produzem um tipo de negociante diferente
daquele engendrado pela prosperidade do século XIII,
o contexto político do principado ou da monarquia na
cional modela um personagem distinto daquele surgi
do no contexto comunal dos séculos precedentes. É im
portante não se perder de vista que o desequilíbrio por
ventura encontrado em favor do mercador italiano se
explica pela excepcional abundância da documentação
a ele concernente, pelo número e qualidade das publi
cações que dele se ocuparam, pelo caráter “pioneiro”
de seus métodos e pela amplitude de suas perspecti
vas, que fazem dele um personagem exemplar — des
de que se tenha em mente que em ouiros lugares, de
modo geral, se está longe de ter avançado tanto quan
to ele.
Esperamos, então, que o leitor seja indulgente e
coloque em primeiro plano, entre as figuras que per
mitem compreender a cristandade medieval, entre aque
les “estados do mundo” que o pessimismo da Idade
Média moribunda colocará na Dança Macabra — ao
lado do cavaleiro, monge, universitário e camponês —,
o mercador, que fez a história como eles e com eles,
e com outros que, desejamos, possam obter um dia,
segundo a beta expressão de Lucien Febvre o “direito
à história”.
5
CAPÍTULO I
A atividade profissional
I. A revolução comercial
7
to se inverte, quando a cristandade ataca por sua vez,
o grande episódio militar das Cruzadas já não passa
de uma fachada épica á sombra da qual se intensifica
o comércio pacífico.
A essas mudanças está ligado — fenômeno capi
tal — o nascimento ou o renascimento das cidadesi'Se-
jam elas novas criações ou velhas aglomerações, é o
seu caráter novo e importante que determina o prima
do da função econômica. Etapas de rotas comerciais,
articulações entre as vias de comunicação, portos ma
rítimos ou fluviais, seu centro vital fica ao lado do ve
lho castrum feudal, do núcleo militar ou religioso, é
o novo bairro das lojas, do mercado, do trânsito das
mercadorias., É ao desenvolvimento das cidades que
se ligam os progressos do comércio medieval; é no con
texto urbano que cumpre situar o crescimento do mer
cador medieval.
As diferentes regiões da cristandade não conhe
cem com a mesma intensidade essas manifestações ini
ciais da revolução comercial. ^Individualizam-se três
grandes centros, aos quais a atividade comercial da Eu
ropa tende a concentrar-se. Como os dois pólos do co
mércio internacional se localizam no Mediterrâneo e
no Norte (domínio muçulmano e domínio eslavo-
escandinavo), é nos postos avançados da cristandade
localizados na rota desses dois centros de atração que
se constituem duas franjas de poderosas cidades co
merciais: na Itália e, em menor grau, na Provença e
na Espanha; e na Alemanha do Norte) Daí a predo
minância, na Europa medieval, de dois tipos de mer
cadores; o italiano e o hanseático, com seus domí
nios geográficos, métodos e personalidades peculiares.
Mas,(entre esses dois domínios, há uma zona de con
tato cuja originalidade está no fato de bem cedo acres
centar à sua função de troca entre as duas áreas co
merciais uma função produtora e industrial) é a Eu
ropa do Noroeste — Inglaterra do Sudeste, Norman-
8
dia, Flandres, Champagne, regiões do Mosa e da Bai
xa Renània. Essa Europa do Noroeste é o grande cen
tro do comércio de tecidos, é — com a Itália do Noite
e do Centro — a única região da Europa medieval em
relação à qual se pode falar de indústria. Juntamente
com os gêneros do Norte e do Oriente, esses produtos
def indústria têxtil européia são as mercadorias que o
hanseático e o italiano vão buscar nos mercados e nas
feiras da Champagne e de Flandres. Isso porque, nessa
primeira fase de nascimento e desenvolvimento, o mer
cador medieval é sobretudo um mercador itinerante^
9
técnicas favoráveis, se não necessárias, ao desenvolvi
mento do comércio) mas, em caminhos nãopavimen-
tados, os resultados desses aperfeiçoamentos foram
bastante limitados. Assim, ao lado das pesadas carro
ças de quatro rodas, dos veículos mais leves de duas
rodas, os animais de carga — mulas e cavalos —, com
suas selas e seus fardos, foram os agentes de transporte
normais.(Considere-se ainda a insegurança, os bandi
dos, senhores ou cidades ávidos por amealhar recur
sos através do simples roubo ou do confisco mais ou
menos legalizado dos carregamentos dos mercadores?
E, sobretudo, talvez — porque mais freqüentes e mais
regulares —, as taxas, os direitos, os pedágios de todo
tipo cobrados por inúmeros senhores, cidades e comu
nidades para a travessia de uma ponte, um vau ou pa
ra o simples trânsito em suas terras — em tempos de
extrema divisão territorial e política.
■ Quando essas taxas são cobradas como preço de
uma manutenção efetiva da estrada, a despesa ainda
pode parecer legítima, e, a partir do século XIII, se
nhores, mosteiros e sobretudo burgueses constroem
pontes que facilitam e aumentam um tráfego do qual
eles retiram direta e indiretamente recursos conside
ráveis; mas às vezes é “à custa dos usurários”, dos pró
prios mercadores, que se constroem tais obras de ar
te, como a ponte suspensa, a primeira do gênero, que
abriu pelo Gothard, em 1237, o caminho mais curto
entre a Alemanha e a Itália. Só no final da Idade Mé
dia é que uma política de obras públicas, da parte dos
príncipes ou dos reis no contexto da organização dos
Estados centralizados, e uma isenção sistemática dos
pedágios atenuarão tais despesas.lÁs dificuldades, aos
riscos incertos acrescentam-se, pois, para o mercador,
essas despesas inevitáveis que tornam tão oneroso o
transporte terrestre. Para os produtos raros e caros —
escravos, tecidos de luxo e sobretudo “especiarias miú
das”, expressão que abrange toda uma série de mer-
10
cadorias de preço elevado por um volume pequeno,
empregadas na toalete, na farmácia, na tinturaria e na
cozinha —, o custo do transporte não passava de 20
a 25% do preço inicial, mas, para o que A. Sapori cha
mou de “mercadorias pobres", pesadas e volumosas
por um valor menor — grãos, vinho, sal —, tais des
pesas chegavam a 100%, 150%, às vezes até mais, de
seu valor original,
12
vesas e espanholas carregadas de especiarias, as velo
zes naus venezianas que iam buscar o algodão nos por
tos da Síria e de Chipre raramente excediam 500 tone
ladas.
Havia enfim o problema da rapidez da navega
ção. A partir do século XIII, a difusão de invenções
como o leme de cadaste, a vela latina, a bússola, os
progressos da cartografia — conquistas em que, ao lado
da contribuição oriental e extremo-oriental, devemos
destacar a contribuição dos marinheiros e cientistas bas
cos, catalães e genoveses — permitem reduzir ou eli
minar os grandes entraves à rapidez das viagens marí
timas da Idade Média, que eram a ancoragem duran
te a noite, a interrupção durante o inverno e a cabota
gem ao longo das costas. Ainda em meados do século
XV, o ciclo completo de uma operação mercantil ve
neziana dura dois anos inteiros. Esse ciclo constitui-
se de — transporte de especiarias de Alexandria a Ve
neza, reexpedição dessas especiarias para Londres, re
torno de Londres com um frete de estanho, reexpedi
ção desse estanho para Alexandria e recarregamento
de especiarias para Veneza. O mercador precisa ter pa
ciência e capital. Mas o fato é que o custo do trans
porte por mar é infinitamente menos elevado do que
por terra; 2°/ü do valor da mercadoria para a lã ou a
seda, 15% para os grãos, 33% para o alúmen.
Sigamos com Roberto Lopez e Armando Sapori
um grupo de mercadores que no final do século XIV
embarcam em Gênova com destino ao Oriente. O car
regamento é constituído sobretudo de tecidos, armas
e metais. A primeira escala que se atinge, indo pela
costa ou pela Córsega, Sardenha e Sicilia, é Tunis; a
segunda, Tripoli. Em Alexandria, mercadorias de to
dos os tipos — produtos da indústria local e sobretu
do importações orientais — vêm engrossar a carga. Se
se estaciona nos portos sírios — São João de Acre, Ti
ro, Antioquia —, é para transportar viajantes, pere
13
grinos ou as mercadorias trazidas do Oriente pelas ca
ravanas. Mas é Famagusta, na ilha de Chipre, o gran
de entreposto das especiarias. Encontram-se ali “mais
especiarias que pão na Alemanha”. Em Latakia, no
ponto de chegada das rotas da Pérsia e da Armênia,
encontram-se também, segundo Marco Polo, “todas
as especiarias c tecidos de seda e coisa dourada da Ter
ra”. Em Focéia, é o precioso alúmen que se embarca,
enquanto Quios é a escala dos vinhos e do mástique,
que serve tanto para a destilação de um licor muito
apreciado como para a preparação de uma pasta den
tal bastante procurada. Bizâncio, em seguida, é uma
parada obrigatória na grande encruzilhada das rotas
do Levante. Depois, atravessando o mar Negro, vai-
se recolher em Caffa, na Criméia, os produtos da Rús
sia e da Ásia, trazidos ao longo da rota mongol: tri
go, pele, cera, peixe salgado, seda e sobretudo, talvez,
escravos. Muitos desses produtos não são levados pa
ra o Ocidente pelos nossos mercadores, mas vendidos
em Sinope ou em Trebizonda. Os mais audaciosos po
dem partir dali, escoltados até Sivas pela polícia tár
tara, para Trabiz e para a índia, como Benedetto Vi
valdi; ou para a China, por via terrestre através da Ásia
central ou por mar de Bassora ao Ceilào, como Mar
co Polo.
14
bro-dezembro. As terras da Champagne eram assim
um fato capital. Havia lá um mercado quase perma
nente do mundo ocidental. Desse modo, durante dois
ou quatro meses do ano, reina nessas cidades uma ani
mação extraordinária que o trovador Bertrand de Bar-
sur-Aube descreveu numa primavera:
15
foras em troca de taxas fixas resgatáveis. Os terráde-
gos e as banalidades foram abolidos ou limitados con
sideravelmente. Esses mercadores não estavam sujei
tos nem aos direito de represailles e de Marque, nem
ao direito de aubaine e de épcve^Os condes, sobretu
do, asseguravam o policiamento das feiras, controla
vam a legalidade e a honestidade das transações, ga
rantiam as operações comerciais e financeiras. Criaram-
se assim funcionários especiais, os guardas das feiras,
funções públicas, mas frequentemente confiadas a bur
gueses pelo menos até 1284, quando os reis da Fran
ça, assenhoreando-se da Champagne, passaram a no
mear funcionários da coroa. O controle das operações
financeiras e o caráter semipúblico dos cambistas con
tribuíram, além das razões puramente econômicas, pa
ra conferir a essas feiras um de seus aspectos mais im
portantes, “o papel de uma clearing-house embrioná
ria” — difundindo-se o uso de regular as dívidas por
compensação.
No inicio do século XIV, essas feiras começam a
declinar. Para tal declínio, procurou-se muitas causas:
a insegurança instaurada na França, no século XIV,
com a Guerra dos Cem Anos, o desenvolvimento de
uma indústria têxtil italiana provocando uma queda
— seguida de uma reorganização — do comércio de
tecidos flamengo, principal abas tecedor das feiras. Fo
ram fenômenos que conduziram ao abandono da rota
francesa, Strata francigena, grande eixo que unira o
mundo econômico do Norte ao domínio mediterrâneo,
em proveito de duas rotas mais rápidas e menos dis
pendiosas: uma rota marítima que, partindo de Gê
nova e de Veneza, desemboca, pelo Atlântico, pela
Mancha e pelo mar do Norte, em Bruges e em Lon
dres, e uma rota terrestre renana ao longo da qual se
desenvolverão nos séculos XIV e XV as feiras de Frank
furt e de Genebra. Mas o declínio das feiras da Cham
pagne está ligado, principalmen te, a uma transforma
16
ção profunda das estruturas comerciais, que faz apa
recer uma nova figura de mercador: o mercador se
dentário, no lugar do mercador itinerante. Este era co
nhecido como o “pé empoeirado” ao longo das estra
das; doravante, ele dirige, de sua matriz, graças a téc
nicas cada vez mais evoluídas e a uma organização cada
vez mais complexa, uma rede de associados ou de em
pregados que torna inúteis tais deslocamentos.
17
ida-e-volta que se pode dizer ter constituído na Idade
Média a unidade de operação comercial marítima.
18
Eis o texto de um desses contratos, concluído em
Gênova em 29 de setembro de 1163.
19
aspectos dos dois. A complexidade desses contratos
expressou-se em documentos infelizmente muito lon
gos para serem exemplificados aqui.
1. Mas elas estão muito distantes das sociedades modernas, que pos
suem uma personalidade independente de seus membros.
20
No século XV, uma casa como a dos Mediei é des
centralizada. Consiste numa combinação de associa
ções independentes, com capital próprio, cada qual
com sua sede geográfica. Ao lado da matriz de Flo-
rença, estão as filiais: Londres, Bruges, Genebra, Lyon,
Avignon, Milão, Veneza, Roma, administradas por di
retores que são só parcial e secundariamente funcio
nários assalariados, pois, antes de tudo, são coman-
ditários à testa de uma parte do capital — é o caso dos
Angelo Tani, dos Tommaso Porlinari, dos Simone Ne
ri, dos Amerigo Benci, etc. Os Medici de Florença só
são o elo de ligação entre todas essas casas porque têm
em cada uma delas capitais quase sempre majoritários
e porque centralizam as contas, as informações e a
orientação dos negócios. Mas basta um Lorenzo me
nos atento que seu avô Cosme negligenciar os negó
cios e as filiais tendem a ter vida própria; os conflitos
se desenvolvem no interior da firma; o edifício se de
sintegra — ruína facilitada pelo número de pessoas do
ravante interessadas no negócio, pois parece que da
participação passaram agora ao depósito. Se os depó
sitos representam, de ora em diante, uma parcela im
portante do capital, da reserva financeira da empre
sa, esta se torna mais vulnerável devido às necessida
des, hesitações, exigências e temores desses depositantes
que não têm, ao reclamar o seu dinheiro, os escrúpu
los dos antigos participantes, unidos entre si pela soli
dariedade dos laços familiares e dos vínculos da cola
boração comercial.
21
nopólio. Tais afirmações não só carecem de provas no
que concerne à economia corporativa urbana como ten
dem a introduzir num contexto inadequado dados que
na verdade só se aplicam ao comércio internacional,
Essas sociedades monopolistas aproveitaram-se fre-
qüentemente da política colonial de algumas cidades
ou Estados medievais, particularmente Gênova e Ve
neza,
Os mais célebres desses cartéis foram provavel
mente originados pelo comércio do alúmen — um dos
mais importantes produtos procurados pelo mercador
medieval, já que constituía uma das matérias-primas
indispensáveis à indústria têxtil, onde era empregado
como mordente. O essencial desse alúmen era produ
zido nas ilhas ou no perímetro do mar Egeu, especial
mente em Focéia, na Ásia Menor. Seu comércio
tornou-se monopólio genovês no século XIII, e, de
pois que um comerciante de Gênova, Benedetto Zac-
caria, se fez pioneiro dessa empresa, uma poderosa so
ciedade genovesa, a “maona” de Quios, onde se en
contram praticamente todos os grandes nomes do co
mércio genovês, dominou o mercado do alúmen no sé
culo XIV e começo do século XV,
Após a conquista turca, o alúmen oriental desa
pareceu quase por completo do mercado. Foi então que
se descobriram importantes jazidas no território pon
tificai, perto de Civita Vecchia, em Tolfa, em 1461.
O governo pontifical logo confiou a exploração e a ven
da do produto à firma dos Mediei. Nasce então uma
das mais extraordinárias tentativas de monopólio in
ternacional na Idade Média. A Santa Sé destinou sua
parte de lucros ao financiamento da Cruzada contra
os turcos — que não se realizou. Ao mesmo tempo,
punia com a excomunhão todos os príncipes, cidades
e particulares que comprassem outro alúmen que não
o de Tolfa, concedia aos navios utilizados pelos Me
diei para esse comércio o direito de usar o pavilhão
22
pontifical e lhes dava todo o seu apoio para obter, me
diante pressões que chegaram ao envio de expedições
militares, o fechamento de outras minas secundárias
de alúmen existentes na cristandade ou a entrada de
seus proprietários no cartel — por exemplo, os reis de
Nápoles, donos de minas na ilha de Ischia. Esta foi
uma das maiores empresas dos Mediei.
23
va de tal forma que, garantindo mais estabilidade e se
gurança nos negócios, favorecia primeiro o$ mercado
res. Desde o começo da revolução comercial, vimos
os senhores e' os soberanos e partkularmente os pa
pas, por cânones conciliares, concederem sua prote
ção aos mercadores itinerantes, fornecer salvos-con-
dutos (uso que remontava à mais alta Idade Média,
quando as imunidades concedidas aos eclesiásticos já
os tornavam ‘‘comerciantes privilegiados”) e mandar
construir edifícios especiais para o alojamento dos mer
cadores e de suas mercadorias — o mais célebre será
o fondaco dos mercadores alemães em Veneza.O su
cesso das feiras, como vimos, fora grandemente faci
litado pela proteção que a autoridade, do lugar onde
eram realizadas, concedia a seus participantes. Desen
volvia-se uma'legislação comercial a princípio elabo
rada pelos próprios mercadores, como, por exemplo,
a elaboração das leis no seio do famoso tribunal da
Mercanzia de Florença, que, segundo veremos, cons
tituiría um dos fundamentos do poder político dos
grandes mercadores florentinos. Mais tarde, essa le
gislação passou a ser desenvolvida em nível interna
cional já com alguma penetração na legislação públi
ca. No âmbito mediterrâneo pelo menos, os contratos
e litígios comerciais passaram ao primeiro plano e fi
zeram proliferar um grande número de notários — es
tes foram os auxiliares dos comerciantes, a quem deviam
grande parte da fortuna que sua profissão conheceu e
cujo papel histórico continuou até o nosso tempo, já que
seus arquivos são uma das mais ricas fontes de docu
mentação sobre o mercador e o comércio medievais.
Aonde quer que vá o mercador, para lá também se diri
ge o notário; na Armênia, Criméia, lá estão eles; vamos
encontrá-los também nas embarcações e vemos um de
les, por exemplo, registrar um fato nas proximidades de
Creta em 16 de novembro de 1283, a pedido de merca
dores genoveses que transportando mercadorias a ca
24
minho de Chipre e da Armênia ficam furiosos porque
o capitão do navio, desprezando seus compromissos,
aproa a embarcação em direção a Bizâncio.
No âmbito hanseático, foram as autoridades pú
blicas — municipais ou corporativas — que desempe
nharam o papel dos notários, e é aos documentos ofi
ciais que devemos recorrer freqüentemente hoje em dia
para termos acesso às operações do mercador medie
val no mundo do Norte,
Em toda parte, na Idade Média, a intervenção das
autoridades públicas, que os historiadores liberais do
século XIX consideraram como um entrave ao comér
cio e uma marca da barbárie medieval, favoreceu em
geral os mercadores, que se beneficiaram igualmente,
no fim da Idade Média, da verdadeira política econô
mica praticada por alguns príncipes, como Luís XI,
o “rei dos mercadores”, O fim do século XV é tam
bém a época em que se define com mais precisão a le
gislação relativa à propriedade do subsolo e à delimi
tação das águas territoriais.
Sem dúvida, os vínculos cada vez mais estreitos
entre príncipes e mercadores no final da Idade Média
levam estes a correr riscos maiores. A insolvência dos
soberanos está muito ligada às estrondosas falências
de banqueiros italianos nos séculos XIV e XV. Mas
não é só a ela que se devem tais quebras. Outras cau
sas tiveram seu papel nessas bancarrotas — extensão
imprudente do crédito e dos negócios, influência da
conjuntura econômica e especialmente da conjuntura
monetária. A legislação das falências, no entanto, bem
cedo lhes atenuou os efeitos mais duros. Não só as pe
nas extremas — condenação à morte ou simples pri
são — foram absolutamente excepcionais como até
mesmo a venda dos bens do falido em leilões, para o
ressarcimento de seus credores, foi com muita freqüên-
cia evitada. Difundiu-se o costume de outorgar um
salvo-conduto ao falido fugitivo por um período du
25
rante o qual ele tentava fazer um acordo amigável com
seus credores.
2ó
de 3 de agosto de 1384, extraído de um de seus regis
tros, intitulado “Registro de Francesco di Prato e Com
panhia, residente cm Pisa, no qual registraremos to-
dos os seguros que fizermos para outrem. Que Deus
nos permita ter lucro e nos proteja dos perigos”:
E, mais abaixo:
27
ndrío, muito embora, o dirhem muçulmano tenha ocu
pado provavelmente utn lugar de primeiro plano.
No século XIII, tudo muda com o impulso da re
volução comercial. O Ocidente reinicia a cunhagem do
ouro. A partir de 1252, Gênova cunha regularmente
denários de ouro e Florença, seus famosos florins; a
partir de 1266, a França tem seus primeiros escudos
de ouro; a partir de 1284, Veneza possui os seus duca
dos; na primeira metade do século XIV, Flandres, Cas-
tela, a Boêmia e a Inglaterra seguem o movimento ge
ral.
Doravante, nos pagamentos comerciais, o proble
ma do câmbio passa a primeiro plano. Nesse particu
lar, deve-se levar em conta, além, evidentemente, da
diversidade das moedas:
a) a existência de dois padrões de certo modo pa
ralelos: ouro e prata;
bj o preço dos melais preciosos: nos séculos XIV
e XV, esse preço sofre uma alta que, conforme os pe
ríodos, afeta desigualmcnte o ouro e a prata, mas que
na verdade deixa transparecer — em face das crescen
tes necessidades do comércio e da impossibilidade de
aumentar no mesmo ritmo o número de espécies me
tálicas em circulação devido à estagnação ou ao declí
nio das minas européias e da redução de metais pre
ciosos africanos — o fenômeno da “fome monetária”
no qual se deve situar a atividade dos mercadores do
fim da Idade Média — fome de ouro sobretudo, quan
do a prata volta a ser relativamente abundante com
a exploração de novas minas na Alemanha média e me
ridional em meados do século XV e que será, como
se sabe, urn dos principais motores das grandes des
cobertas;
c) a ação das autoridades políticas. Com efeito,
o valor das moedas dependia dos governos, que po
diam fazer variar a base da moeda, isto é, seu peso,
título ou valor nominal: as moedas não traziam indi
cação de valor. Este era fixado pelas autoridades pú
28
blicas, que as cunhavam com um valor fictício ao seu
real valor, e geralmente expresso em libras, soidos e de-
nários — unidades derivadas de um sistema considera
do padrão a partir do denário de Tour ou denário de
Paris na França, por exemplo, ou ainda do denário de
gr os em Flandres. Príncipes e cidades podiam assim pro
ceder a “remanejamentos monetários” — “mutações”
ou desvalorizações —, “reforços” ou revalorizações.
Riscos não raro imprevisíveis para o mercador2;
d) variações sazonais do mercado da prata. A exis
tência de ciclos econômicos e de flutuações periódicas
longas e curtas, como se detectou no período moder
no, c dificilmente localizada na Idade Média, devido
à falta de dados estatísticos — embora historiadores
como Cario M. Cipolla acreditaram poder determiná-
la. Em todo caso, o mercador medieval provavelmen
te não tinha conhecimento do fato nem se preocupa
va com ele. Em contrapartida, as variações sazonais
da circulação da prata nas principais praças européias
— devidas, entre outras causas, às feiras, datas das co
lheitas e das chegadas e partidas de comboios, aos há
bitos ligados às finanças e à tesouraria dos governos
— eram perceptíveis para aqueles que se mostravam
muito atentos a elas. Um mercador veneziano anotou
em meados do século XV:
29
segunde suas possibilidades, pode dirigir o jogo sutil
da prática da letra de câmbio,
Eis, segundo R. de Roover, o principio e um exem
plo do que vinha a ser a letra de câmbio:
De outra mão:
No verso:
30
mente de Barcelona —, a pedido do secador ou toma
dor— Guglielmo Barberi, comerciante italiano de Bru
ges —•, a quem o doador — a casa Riccardo degli Al
berti em Bruges — pagou 900 escudos a 10 soidos e
6 denários por escudo.
Guglielmo Barberi, exportador de tecidos flamen
gos que mantinha relações regulares corn a Catalunha,
recebeu adiantado dinheiro em escudos de Flandres da
sucursal de Bruges dos Alberti, os poderosos merca-
dores-banqueiros ílorentinos. Antecipando a venda das
mercadorias que expedira ao seu correspondente de
Barcelona, a casa Datini, ele saca contra esta uma du
plicata a pagar em Barcelona ao correspondente dos
Alberti nessa localidade, a casa Brunnacio di Guido
e C°... Há operação de crédito e de câmbio. Esse pa
gamento foi feito em Barcelona em 11 de fevereiro de
1400, trinta dias após a sua aceitação, em 12 de janei
ro de 1400. Esse prazo é chamado de (,usança”, va
riável de acordo com as praças — trinta dias entre Bru
ges e Barcelona —, o que permitia verificar a autenti
cidade da letra de câmbio e, em caso de necessidade,
conseguir o dinheiro.
Assim, a letra de câmbio atendia a quatro dese
jos eventuais do mercador, oferecia-lhe quatro possi
bilidades:
a) um meio de pagamento de uma operação co
mercial; e
b) uni meio de transferência de fundos — reali
zando-se esta entre praças onde se utilizam moedas di
ferentes;
c) uma fonte de crédito;
d) um lucro financeiro obtido sobre as diferenças
e variações do câmbio nas diversas praças, no contex
to que foi definido mais acima?)De fato, afora as ope
rações comerciais, podia haver entre duas ou, mais fre
quentemente, três praças um comércio de letras de câm
bio. Esse mercado dos câmbios, muito ativo nos sécu
los XIV e XV, originou vastas especulações.
31
Notemos, todavia, que o comerciante medieval ig
norava provavelmente duas práticas que haveríam de
desenvolver-se na época moderna: a do endosso e a do
desconto, ainda que as recentes pesquisas de Federigo
Melis permitam assinalar exemplos de endosso, no do
mínio mediterrâneo, já nos primeiros anos do século
XVI, eque encontremos, provavelmente, no domínio
hanseático, casos semelhantes referentes às obrigações
nominativas ou ao portador — simples ordens de pa
gamento — datados do século XV,
32
que veio a ser qualificada de “revolução da contabili
dade’
Sem dúvida, esses progressos são desiguais con
forme as regiões, e chegou-se a explicar o quase-
monopólio dos mercadores e banqueiros italianos da
Idade Média numa vasta área geográfica como o re
sultado de sen avanço em matéria dc técnica comer
cial. Entretanto, encontrar-se-iam no domínio hanseá-
üco métodos que, embora diferentes c talvez um pou
co retardatários na perspectiva de uma revolução ge
ral única, nem por isso deixaram de provar a eficácia
do que Fritz Rõrig denominou “uma supremacia in
telectual”. Notemos, aliás, que não se deve exagerar
a superioridade germânica no tocante à escritura e à
contabilidade no domínio nórdico. Os famosos manus
critos sobre “ heresia ' (casca de bétula), recentemen
te descobertos em Novgorod, mostram que a escritu
ra e o cálculo estavam ali mais difundidos do que se
poderia crer entre os autóctones-V Do mesmo modo,
as técnicas italianas foram muito pouco assimiladas an
tes do século XVf pelos mercadores das cidades atlân
ticas — bretões, rochelcscs, bordaleses, “cuja arte con
sistia unicamente em evitar na medida do possível o
recurso ao credito sob todas as suas formas”, Se, por
um lado, Ph. Wolff detectou uma grande extensão do
crédito entre os comerciantes tolosanos, por outro, in
sistiu no “caráter rudimentar” de seus métodos.
(Assim, onde quer que se encontre, o grande
mercador-banqueiro sedentário reina agora sobre to
do um conjunto que ele controla, de seu escritório, pa
lácio ou casa)
Um conjunto de contadores, comissionários, re
presentantes e empregados — os “corretores” — lhe
obedece no estrangeiro.
33
É no centro de vastas correspondências, fora do
domínio da contabilidade, que o mercador-banqueiro
recebe seus pareceres e lhes dá ordens..Tendo em mente
o preço da época, a importância, para o êxito de um
negócio, de informar-se mais depressa que os concor
rentes da chegada dos navios ou de seu naufrágio, da
situação das colheitas — numa época em que os fato
res naturais são tão poderosos e os cataclismos tão des
truidores —■, dos acontecimentos políticos e militares
que podem influir no valor do dinheiro e das merca
dorias, ele se entrega a uma verdadeira corrida às no
tícias. Sobre o tema “Notícias e especulações em Ve
neza”, Pietro Sardella escreveu um ensaio instiganle.
Pela leitura da abundante correspondência comercial
da Idade Média que nos foi conservada, mas da qual
apenas uma pequena parte foi publicada até agora, pu
demos seguir melhor o mercador em seu trabalho, com
preender o que foi sua atividade profissional.
34
merciais e financeiras, providencia-lhes alojamentos e
entrepostos e vive das comissões que recebe por todos
esses serviços.
Do mesmo modo, houve emre os negociantes uma
certa especialização. As categorias que assim se for
maram variam de acordo com as regiões, países e ci
dades. Mas, de maneira geral, pode-se distinguir no
domínio do mercado financeiro, como o fez R. de Roo-
ver em Bruges, os lombardos, os agentes de câmbio
e os “cambistas", que são os mercadores-banqueiros
propriamente ditos.
Os lombardos ou cahorsinos4 são os emprestado-
res que condicionam a divida ao penhor, usurários que
praticam o empréstimo de consumo a curto prazo. As
sim, seus clientes raramente são grandes personagens,
mas sobretudo pessoas de pequena e média condição:
clérigos, burgueses não-mercadores, nobres de segun
da categoria, camponeses. As quantias que eles em
prestam “a curto prazo” — um ou dois meses, às ve
zes três ou seis — nào são para fins econômicos, mas
destinam-se ao consumo pessoal num período difícil
para o devedor, que penhora objetos pessoais: baixe
las, roupas, ferramentas, armas, etc. Não se deve pen
sar que esses lombardos tenham um poder econômico
desprezível. Para atender às necessidades de numero
sos clientes, às despesas consideráveis requeridas por
sua atividade, eles estão à testa de grandes capitais, reu
nidos por associação familiar ou graças aos depósitos
de terceiros. Em Bruges, os cahorsinos têm, no prin
cípio do século XV, um grande imóvel no longo cais
da paróquia de São Gil e um menor, onde residem.
Mas seu horizonte permanece limitado. Por terem rea
lizado operações em grande escala, lombardos e ca
horsinos de Bruges conhecem uma estrondosa falên
35
cia em 1457. De resto, como se verá, eles são impor
tunados em suas práticas, alvo da hostilidade pública
e privada, sem possibilidades — salvo exceção — de
ascensão social.
Acima dos lombardos, estão os agentes de câm
bio. Têm sua banca ou mesa (bancho, tavold) ao ar
livre, numa loja de frente para a rua, como a de todos
os artesãos. Agrupam-se para facilitar as operações de
seus clientes, que não raro são comuns a vários dentre
eles, Em Bruges, mantêm sua mesa perto da Grande
Praça e do Grande Mercado dos Tecidos; em Floren-
ça, têm seus banchi in mercaio no Mercado Velho e
no Mercado Novo; em Veneza, operam seus banchi
di scritta na ponte do Riaho, e em Gênova, perto da
Casa di San Giorgio.
O romance cortês de Galeran de Bretagne deixou-
nos uma animada pintura dos agentes de câmbio de
Metz por volta de 1220;
36
preciosos, apesar do monopólio teórico dos moedei-
ros. Por essas operações, determinam o preço dos me
tais preciosos, exercem uma influência considerável so
bre as flutuações desses preços e tendem a dominar o
seu mercado.
Mas esses agentes de câmbio acrescentaram no
vas funções às antigas: a aceitação de depósitos e rein-
vestimentos por empréstimos. Tornaram-se banquei
ros. Pelos depósitos, pela aceitação das contas a des
coberto para seus grandes clientes, pelos empréstimos,
adiantamentos e investimentos, pelas transferências de
dinheiro mediante simples jogo de escritura, são os au
xiliares indispensáveis dos mercadores e das pessoas
abastadas^ que têm todos uma conta num agente de
câmbio: no final do século XIV, esse é o caso de uma
pessoa para cada 35 ou 40 em Bruges, e 80% desses
clientes de Bruges têm um balanço de conta inferior
a 50 libras flamengas. Os agentes de câmbio serão en
contrados nas altas esferas da hierarquia social,
No ápice, porém, estão aqueles que em Bruges são
chamados de “cambistas", os que mantêm em Floren-
ça os banchi grossi, os mercadores-banqueiros propria-
mente ditos. Sua atividade permaneceu não-
especializada. Ao comércio das mercadorias de todo
tipo, realizado para a exportação e importação em es
cala internacional, eles acrescentam uma atividade fi
nanceira múltipla: comércio de letras de câmbio, acei
tação de depósitos e operações de crédito, participa
ção em várias “sociedades", prática do seguro. Mui
tas vezes, inclusive, são também produtores, “indus
triais”, como os Mediei, que possuem em Florença
duas fábricas de tecidos e uma de seda, e realizadores
de um “fenômeno de integração” como Benedetto Zac-
caria que, de Gênova, controla o mercado do alúmen
no século XIII, transportando-o em barcos próprios
e utilizando-o numa tinturaria por ele montada.
Se em Veneza eles não passam de atacadistas, dei
xando a mercadores menores a venda a varejo, em on-
37
tras partes possuem frequentemente uma loja e às ve
zes não desdenham nem mesmo, como simples lom-
bardos, praticar a usura, o pequeno empréstimo para
consumo. Mas suas operações não se fazem fora,
all’aperto, mas dentro, em sua casa, quase sempre um
palácio — onde se encontra o scriífoio, escritório, que
constitui o centro de vastos negócios.
O exemplo de Jacques Coeur é o de um dos maio
res homens de negócios da idade Média. Mollat, que
estuda todas as suas ramificações, já esboçou seus vas
tos tentáculos: “um mapa que reproduzisse a distri
buição de seus interesses correspondería a um mapa
econômico da França em meados do século XV". Pos
sui bens imobiliários em toda parte: domínios fundiá
rios, consignações de rendas prediais, ricos palacetes
particulares em Bourges, Saint-Pourçain, Tours, Lyon,
Montpellier. Juntem-se a isso todos os tipos de espe
culações: percepção de impostos indiretos, resgates de
prisioneiros ingleses. Se o campo de seus navios de co
mércio é sobretudo o Mediterrâneo, o Atlântico, o ca
nal da Mancha, o mar do Norte, sem contar os rios:
Loire, Ródano, Sena, também o são. “Nenhum obje
to suscetível de tráfico lhe foi estranho”. A argenta
ria, loja que vendia objetos de prata, guarda-móvcis
e entreposto real, que ele dirige, é nada mais que seu
melhor cliente.
A ela, como a muitos outros, ele vende lãs, tecidos,
panos, couros, peles, sal, especiarias, objetos de arte.
Fornece ao exército do rei arneses e armas. Tem inte
resses em Florença, na Espanha, em Bruges. Após sua
queda e evasão, refugia-se no papado, grande potên
cia econômica; e morre em Quios, o vasto empório ge-
novês.
38
dernos, com o Renascimento e a Reforma no século
XVI, já não pode ser aceita agora que conhecemos me
lhor o mercador-banqueiro medieval.
Sem dúvida, é preferível considerar o grande mer
cador medieval como um pré-capitaiista. Segundo uma
definição estrita do capitalismo, como a oferecida pe
la doutrina marxista, a Idade Média não conheceu o
capitalismo. Seu sistema econômico e social é o feu
dalismo, e é no interior desse contexto que agem os
merca tores. Mas eles contribuem para fazer explodir
esse contexto, arruinar as estruturas feudais. Agindo,
como veremos, sobre uma evolução agrícola ativada
pela intrusão dos capitais urbanos — pelo menos em
regiões como a Itália ou Flandres — eJprecipitada pe
lo desenvolvimento de uma economia mundial (Welt-
wiríschaft} com profundas repercussões nos preços
agrícolas e industriais, os grandes mercadores prepa
ram o advento do capitalismo. E.-A. Kosminsky viu
na expropriação das classes rurais da propriedade pre
dial, especialmentc na Inglaterra — evolução da qual
participaram os mercadores a fonte da “acumula
ção primitiva’ ’ do capital. O grande mercador medie
val já esboça a concentração dos meios de produção
em mãos de particulares, acelerada pelo processo de
alienação do trabalho dos operários e dos campone
ses, transformados em assalariados. E alguns historia
dores marxistas, como V.-I, Ruthenburg, estudando
as companhias florentinas do século XIV, não hesita
ram em ver nelas o começo do capitalismo no sentido
rigoroso do termo. Mesmo um historiador como Fran
tisek Graus, que se recusa a falar de capitalistas na Ida
de Média, reconhece que nesse período existem elemen
tos de capitalismo e que na Itália há até mesmo mais
que isso. Ele tem razão em protestar contra concep
ções antícientíficas c anti-históricas que reivindicam um
“capitalismo eterno”, assim como em exigir a priori
dade do estudo das estruturas em detrimento do das
39
mentalidades. Cita também Marx, segundo o qual “as
corporações medievais rendiam fortemente a impedir
a transformação do mestre artesão em capitalista, li
mitando a um máximo muito reduzido o número de
operários que um único mestre podia empregar — pois
o detentor de capitais ou de mercadorias só se trans
forma em capitalista quando os mínimos fixados pa
ra a produção ultrapassam amplamente o máximo me
dieval’1. Mas aqui o autor de Ó Capitai, tributário dos
conhecimentos históricos de sua época, confundia os
artesãos com os grandes mercadores, que pouco se
preocupavam, como veremos, com as regulamentações
das corporações, e subestimava consideravelmente a
extensão qualitativa e quantitativa de sua influência
econômica e social.
Certamente, não se deve esquecer que a econo
mia medieval permanece fundamentalmente rural, nas
cidades o artesanato predomina, os grandes negócios
não passam de uma camada superficial; mas, pelo vo
lume de dinheiro que ele maneja, pela extensão de seus
horizontes geográficos e econômicos, por seus méto
dos comerciais e financeiros, o mercador-banqueiro
medieval é um capitalista. Também o é por seu espíri
to, gênero de vida e posição na sociedade.
40
CAPÍTULO II
O papel social e político
41
Em Florença, a luta entre os nobres de velha ce
pa, os "tnagnali”, e os “popolani” agrupados nas cor
porações (Aní) dominadas pelos grandes mercadores,
parece terminar em 1293 com os Decretos de Justiça.
Os membros das cento e quarenta famílias magnali são
excluídos das funções oficiais e até mesmo atingidos
por um regime penal excepcional. Mas, entre essas fa
mílias, há comerciantes já convertidos em Cavaleiros.
Tais medidas representam tanto a luta de uma nova
camada mercantil contra uma antiga, quanto a vitó
ria da burguesia mercantil sobre a nobreza fundiá
ria de tão difícil que é estabelecer a distinção entre
ambas.
Às vezes, a nobreza, cujo enfraquecimento esta
va ligado ao declínio da economia rural de tipo feu
dal, permaneceu voluntariamente afastada das ativi
dades econômicas que constituíam a força da classe
mercantil, como na França e na Espanha, onde os no
bres se recusaram a entregar-se ao comércio que acar
retava juridicamente a perda de seus privilégios e a re
núncia à sua “ordem”; foi o “desenvolvimento” ocor
rido na França, apesar dos esforços de Luís XI.
Muitas vezes, porém, os nobres tentaram partici
par dessas novas fontes de lucros, investiram capitais
no comércio ou entregaram-se pessoalmente aos ne
gócios e às atividades bancárias. Foi esse, especialmen
te, o caso de vários nobres italianos, cuja adaptação
foi facilitada pelo fato de muitos deles residirem nas
cidades e pelo fato de o fenômeno urbano, apesar do
declínio da Alta Idade Média, ter conhecido na Itália
uma continuidade entre a Antigüidade e o período me
dieval. Nobres do campo, aliás, virão instalar-se nas
cidades quando estas se desenvolverem.
Esses nobres se fundiram na nova classe mercan
til e, dessa fusão, às vezes, resultou até mesmo o nas
cimento de uma aristocracia na qual se confundiam
os antigos senhores feudais, os antigos funcionários se-
42
nhoriais e reais e os novos-ricos. É o que se depreen
de, para Gênova, dos excelentes estudos de André
Sayous e Roberto Lopez, e, para Veneza, dos magní
ficos trabalhos de Gino Luzzatto. Em Veneza, afirmou-
se, “os doges são mercadores e os mercadores são al
mirantes”.
Em todo caso, mesmo onde a nova classe mercan
til foi burguesa, plebéia, “popular”, e, onde ela teve
de conquistar sua posição social e sua força política
contra a nobreza feudal, a oposição entre ela e a ve
lha aristocracia se atenuou consideravelmente nos sé
culos XIV e XV, sob o efeito, particularmente, de uma
dupla evolução.
A primeira tendeu a afastar a rica burguesia mer
cantil das classes populares urbanas de que se servira
em sua conquista do poder, e que começou a temer
quando estas pretenderam limitar ou destruir sua do
minação econômica e social, assim como sua hegemo
nia política. Como, para os mercadores, a classe peri
gosa já não estivesse acima deles, mas abaixo, eles se
voltaram para o que restava da velha nobreza a fim de
fazer desta uma aliada. Isso ocorreu, por exemplo, em
Florença, onde, após a revolução proletária dos Ciompi,
no final do século XIV, os grandes mercadores rein-
troduziram os antigos nobres no governo da cidade.
A segunda levou, bem cedo, os ricos mercadores
a ingressar na nobreza. Com efeito, essa tendência lo
go se configurou através de diversos processos.
Em alguns casos, o mercador buscou, por via do
casamento, o acesso à velha nobreza. Um cronista flo-
rentino do século XIII escreve: “Vê-se todos os dias
um plebeu muito rico querendo casar-se com uma mu
lher pobre, mas nobre”.
Em outros, o mercador, por seu gênero de vida,
se aproxima da nobreza e logo passa a ser considera
do como um membro dela. Vê-lo-emos mais adiante
em seu palácio, participando dos torneios. Os célebres
43
mercadores-banqueiros de Florença, os Peruzzi, que
pertencem juridicamente ao popolo, usam esporas e
comportam-se como cavaleiros. Um cambista de Bru
ges, Evrard Goederic, é chamado Sire, e sua mulher,
Senhora; comandante da milícia urbana, ele combate
a cavalo. Dos Cancellini de Pistóia, diz Villani; “Não
eram muito antigos, mas, com a ajuda de suas rique
zas, tornaram-se todos cavaleiros, homens de valor e
pessoas de bem”. Eis uma bela justaposição de termos
nobres e de vocabulário burguês.
Mais freqüentemente ainda, ele compra terras, do
mínio feudal, que representam — pelo menos no co
meço —, mais que um bom investimento, a oportuni
dade de uma ascensão social e de ingresso na nobre
za.
Onde quer que subsista ou se desenvolva um po
der principesco ou monárquico, pedra angular do sis
tema social, os mercadores pedincham e compram, obs
tinadamente junto com propriedades senhoriais, os tí
tulos de nobreza. Um estudo recente também demons
trou tal fato com relação aos ricos burgueses lioneses:
os Jossard.
No final da Idade Média, quando muitas famí
lias de mercadores se afastarão dos negócios em con-
seqüência de dificuldades que os levarão a procurar
ainda mais os investimentos imobiliários e fundiários,
ou pela atração exercida por uma vida de aristocrata
mais sedutora que os labores do comércio, quando a
constituição de monarquias centralizadas lhes ofere
cerão novos mercados, a rica burguesia mercantil se
converterá ainda mais facilmente em aristocracia, em
nobreza de toga ou de funções.
Tracemos brevemente a curva esquemática da evo
lução de duas burguesias francesas.
Em Toulouse, Ph. Wolff descreveu a ascensão dos
Ysalguíer. Esses mercadores logo se aliam à nobreza
fundiária, seja pela compra de propriedades, seja por
44
uma “política matrimonial” bem dirigida. Depois,
tornam-se soldados e sobretudo agentes reais, ao mes
mo tempo em que preenchem funções municipais co
mo capitães. “Após 1380, a evolução da família pare
ce terminada. Nenhum Ysalguier se dedica mais ao co
mércio ou ao câmbio”. Mas, em época de crise feu
dal, esses novos nobres compartilham o-declínio dos
antigos senhores. “O estado para o qual o mercador
tende naiuralmente é a nobreza. Mas a nobreza signi
fica quase sempre uma mediocridade, que nào deixa
de ter suas honrarias e sua altivez —, ainda assim, uma
mediocridade.”
Em Lille, o Dr. Eeuchère distinguiu seis estágios
de evolução da burguesia entre os séculos XIII e XIV:
1 — A fortuna. Vindos da terra, os futuros bur
gueses se instalam na cidade, tornam-se lojistas. Seus
filhos ou netos, aumentando-lhes as riquezas, ascen
dem à burguesia. 2 — O magistrado oficial. Ingres
sam nos cargos municipais; participam na direção po
lítica da cidade. 3 — Os feudos fundiários. Adquirem-
nos por compra ou casamentos. 4 — A nobreza.
Recebem-na de príncipes por serviços prestados. Em
1391, Carlos VI, por exemplo, enobrece Guillaume de
Terremonde. 5 — A nobreza de toga. Durante o pe
ríodo borguinhão, tornam-se oficiais principescos, o
que confere nobreza àqueles que ainda não a recebe
ram. 6 — Finalmente, podem ascender à nobreza mi
litar e tornar-se cavaleiros.
No inicio, há o câmbio ou o comércio de tecidos.
A partir do quarto estágio, já não existe comércio. Ape
nas uma dezena de famílias chega ao quinto e ao sex
to estágios.
Assim, não houve entre o mercador e o nobre ne
nhum antagonismo profundo, salvo durante o bre
ve período de luta violenta contra as coações feudais
da Alta Idade Média. Em quase toda parte, um duplo
movimento inverso, mas convergente, dc aburguesa
45
mento e de enobrecimento conduziu-os uns para os ou
tros.
Concluindo, a luta, quando se produziu, ocorreu
mais entre a antiga e a nova nobreza — esta última
resultando da fusão das duas categorias mercantis, a
de origem nobre e a de origem burguesa.
46
da cidade e das “artes”. Não admira, pois, que os es
tudiosos que consultaram apenas os “estatutos” co
mo fontes tenham chegado à visão e à compreensão
de um único mundo: o das corporações. Todavia, en
quanto para os artesãos essas leis eram realmente obri
gatórias — o que as tornou plenamente eficazes e lhes
permitiu frear eventuais iniciativas, reduzindo a um
mesmo nível lodo padrão de vida e atividade —, tive
ram, para os grandes comerciantes, um valor muito
mais formal do que substancial. Estabelecidas, em úl
tima análise, pelos homens que desempenhavam um
papel preponderante na política das comunas e na eco
nomia das corporações — a despeito do complicado
mecanismo dos conselhos, dos votos e dos sorteios —,
tais leis não representavam para os mais favorecidos
senão resguardos providenciais, ao abrigo dos quais
podiam exercer uma atividade que os conduzia sem ris
cos às suas próprias metas. Aliás, se lhes acontecesse
deparar com um obstáculo em alguma das leis que eles
próprios haviam redigido com extrema habilidade, e
se, por conseguinte, lhes fosse impossível dissimular
ou justificar um ato de violação, acabavam por supri
mir o obstáculo com tanta audácia quanto habilida
de, o que, de resto, não é um procedimento exclusivo
da Idade Média... Mas, se interpretarmos ao pé da le
tra a lei estatutária, e se considerarmos que todos os
homens eram iguais perante ela, não conseguiremos
explicar a formação das riquezas fabulosas, dos mo
nopólios e trustes, numa palavra, dessa organização
econômica que nada teve a invejar aquela que, mais
tarde, os historiadores e economistas chamaram, de
comum acordo, “a organização do capital”.
Indcpendentemente das cidades que não conhe
ceram corporações — como Gênova — ou que só as
viram estabelecer-se tardiamente, no século XV, co
mo Lyon e Poitiers, onde quer que se tenha estabele
cido um regime corporativo, ele não só não atrapalhou
47
os grandes mercadores, como foi para eles um dos
meios de dominação sobre o mundo do artesanato, de
tal modo que este último acabou por não mais gozar
de uma '‘coexistência” na qual, no entanto, havia ocu
pado um lugar modesto.
Em Florença, por exemplo, a grande distinção en
tre Popolo grasso e Popolo minuto corresponde à di
visão das corporações ou “Artes” em “Artes Maio
res”, onde se agrupam os ricos mercadores, e “Artes
Menores”, formadas pelos artesãos. Melhor ainda: en
tre as vinte e uma artes florentinas, a preeminência qua
se sempre não se restringiu apenas às onze Artes Maio
res, mas às cinco primeiras dentre estas, que compreen
diam unicamente os homens de negócios com raio de
ação internacional: as Artes de Calimala (isto é, gran
des imponadores-exportadores), do câmbio, da lã, de
Por Santa Maria (isto é, da seda) e dos Médicos, Mer
ceeiros e Armarinheiros, reunidos numa só “Arte” e
que comerciavam produtos chamados “especiarias”,
das quais um manual da época enumera duzentas e oi
tenta e oito diferentes. A dominação econômica e po
lítica exercida em Florença por essas cinco Artes, e que
se expressou no papel do Tribunal Comercial da Mer-
canzta — origem dessa dominação a partir de 1308 —,
foi estudada por Armand Grunzweig, que mostrou as
lutas travadas em torno da Mercanzia pelos lojistas e
artesãos das Artes Menores, particularmente para a
anulação ou suspensão das dívidas contraídas pelos ar
tesãos junto aos mercadores-banqueiros.
Mais forte ainda era, naturalmente, a autoridade
destes sobre os operários, sobretudo nas duas regiões
onde se pode falar, na Idade Média, de um proleta
riado operário ligado à existência de uma grande in
dústria de tipo capitalista: a indústria têxtil de Flatt-
dres e as indústrias têxteis e navais da Itália central e
setentrional. Muitas vezes, aliás, artesãos e operários
se encontravam, em face do mercador-banqueiro, num
48
mesmo pé de subordinação econômica e vemos até mes-
mo em Florença, por exemplo, nos séculos XIV e XV,
a proletarização dos pequenos artesãos.
Os meios de pressão e de opressão dos mercado
res sobre essas categorias sociais eram numerosos e efi
cazes. Tentemos mostrá-lo através do exemplo de
Sire Jehan Boinebroke, fabricante e mercador de teci
dos de lã de Douai, no final do século XIII.
Toda uma série de documentos extraordinários,
chegados até nós, editados e comentados por Georges
Espinas, num livro célebre e admirável, nos restituem
as relações entre esse mercador e toda a massa de seus
“empregados” e “obrigados”, humildes vizinhos, de
vedores, fornecedores, criados, operários, pequenos pa
trões e empregados que trabalhavam “em ou para sua
empresa de lã”. Tendo seus herdeiros, em cumprimento
de uma cláusula do seu testamento, prometido repa
ração às pessoas que ele lesara em vida, algumas delas
ousaram vir reclamá-la. É o texto dessas reclamações,
acompanhadas de um certo número de documentos sig
nificativos, que chegou até nós.
Os pobres, ele domina primeiro por seu poder eco
nômico. Ele tem o dinheiro e exige de seus devedores
reembolso antes do vencimento, penhores indevidos
que toma à força, quantias muito superiores às que lhe
são devidas — até o triplo da dívida.
Ele tem o trabalho e eles dependem dele para vi
ver: não só os operários e as operárias que emprega em
seu estabelecimento ou domicílio, como também os pe
quenos artesãos cujas ferramentas são frequentemente
de sua propriedade. Estes últimos só podem obter ma
téria-prima com ele e não lhes é permitido vender os pro
dutos de seu trabalho sem a sua mediação. Ora, ele en
gana quanto à qualidade da matéria-prima, ao peso e
cobra preços exorbitantes. Para os salários ou as com
pras, “paga pouco, mal ou simplesmente não paga”,
pratica o “truck system ”, ou pagamento em mercadoria.
49
Ele tem a moradia. Como a maioria dos grandes
comerciantes, possui várias casas. Estas acabam sen
do um investimento ainda mais lucrativo porque ne
las se alojam sobretudo seus operários, clientes e for
necedores. Assim, residindo numa espécie de cidade
operária bastante embrionária, eles dependem dele ain
da mais. Ou melhor, ele lhes fornece conscientemente
um trabalho de valor inferior ao preço do aluguel pa
ra mantê-los cada vez mais à sua mercê. "Em suas ca
sas, eles se tornavam, pode-se dizer, verdadeiros pri
sioneiros do carcereiro que era Boinebroke.” A^ás, em
toda parte a dominação dos grandes comerciantes so
bre a propriedade urbana é considerável. Em Lübeck,
eles possuem os melhores terrenos nos cruzamentos das
ruas principais, os celeiros de cereais e os armazéns do
porto, e, na cidade, as construções indispensáveis aos
artesãos: cubas, fornos, o conjunto dos edifícios do
mercado — único lugar onde os artesãos podem ven
der e às vezes, como os ourives, produzir.
Essa gente humilde, Boinebroke esmaga também
com o peso de seu poder social. Em relação a ela, usa
ora o desprezo, ora a força. Com as mulheres, sobre
tudo, "a quem despreza visivelmente' usa de ironia.
A uma tintureira, de cuja mercadoria se apoderou in
devidamente, diz: “Comadre, vá pegar no pesado, já
que está na miséria: pesa-me vê-la assim!” E, como
ela é obrigada a aceitar, mas protesta, ele acrescenta:
“Comadre! Não lhe devo nada, que eu saiba, mas vou
colocá-la em meu testamento”. E Georges Espinas ob
serva: “O patrício brinca com sua comadre, arruinan
do-a com palavras e de fato, tal como, poderiamos di
zer, o gato brinca com o rato antes de devorá-lo: é efe
tivamente a oposição entre a onipotência e a extrema
fraqueza”.
Mas o que ele mostra é também a cólera, como
no caso de um locatário que apesar de ter regulariza
do seu aluguel, se recusava a pagar mais: “E Sire Je-
50
han se enfureceu e botou-o para fora de sua casa sem
lei e sem processo”. Então, é a força que ele empre
ga. Como um camponês não lhe quisesse vender as
plantas que já vendera a outro mercador, numa épo
ca em que o preço da garança estava em alta, Boine-
broke vai à sua plantação com dois de seus operários
e “mandou desenterrar a garança à força e levá-la pa
ra sua casa”, e o coitado do camponês “não recebeu
nem um vintém”.
Ante tanta arrogância, os humildes interlocuto
res de Boinebroke, mesmo depois de sua morte, ou no
momento do inquérito reparador, nâo ousam revoltar-
se contra ele. “Foram por tanto tempo e de tal modo
oprimidos que se abandonaram com bastante natura
lidade à sua própria sorte. Esse sentimento, que per
durou durante toda a vida de Boinebroke, tornou-se
suficientemente forte para persistir mesmo após o seu
desaparecimento, levando-os a não se arriscar senão
com uma certa timidez... a expor as suas queixas. A
lembrança tirânica do morto parece ainda pairar e pe
sar sobre eles, detendo-os e aterrorizando-os ao mes
mo tempo que permanecem hesitantes em exprimir suas
reclamações perante os lestamenteiros do defunto, num
meio que não é o deles e que é, ao contrário, aquele
ao qual seu opressor pertenceu.”
Mas às vezes as reações são violentas. Às greves,
aos motins, juntam-se verdadeiros movimentos revo
lucionários que fazem do século XIV um século de cri
ses sociais com episódios violentos, crises complexas,
mas das quais um dos aspectos essenciais reside na re
volta dos artesãos e operários explorados contra o gran
de mercador.
Nesse caso, porém, os revoltados se chocam com
o último poder do grande mercador, seu poder polúi-
co. Este não tardou a coroar o êxito comercial e a for
tuna. Senhores das comunas italianas, os ingpç®í§Te$.
acabam presidindo o conselho urbano, o/Wdas ci<.
-
dades alemãs, onde elaboram um direito urbano que
integra o jus mercatorum primitivo. Esse processo tam
bém é encontrado mais tarde. É eni 1433 que Hans
Popplau de Liegnitz vem instalar-se em Breslau. Seu
primo Andreas junta-se a ele alguns anos depois. Os
dois fundam uma sociedade que negocia com tecidos
de lã, arenques, óleos, especiarias, couros, objetos de
ourivesaria. Compram esses artigos nos Países Baixos
e os revendem na Baviera, Áustria, Boêmia, Polônia.
Hans ingressa no Rat de Breslau em 1446 e ali perma
nece até sua morte, em 1456. Em 1448, é burgomes-
tre. Seu filbo Markus é membro do Rat de 1483 a 1499,
sem deixar de ocupar-se dos negócios.
O próprio Boinebroke foi magistrado oficial de
Douai pelo menos nove vezes. Sabemos que ocupou
esse cargo especialmente em 1280 e que, nesse ano, com
seus colegas de mesma classe social, reprimiu “cruel
mente” uma greve revolucionária dos tecelões. “A lei,
que devia castigá-lo e vingar suas vítimas, salva-o, pois
é ele que a faz e a aplica. Para compreendê-lo, cum
pre não separar jamais a política da economia; uma
permitiu e provocou a outra, que, por sua vez, a com
pleta e consolida; legalizando-a e legalizando também
os abusos.”
Exceção, esse terrível Boinebroke? Gostaríamos
de acreditar nisso, e, sem dúvida, ele possuía certos
traços individuais de caráter que exacerbaram algumas
atitudes e comportamentos. Mas, como observou G.
Espinas e como confirmam tantos documentos, ele é
efetivamente um tipo característico de uma categoria
cujo comportamento social — fundado nas estruturas
econômicas e políticas — foi singularmente feroz.
52
tantes do que se imagina. Cidades e campos não esta
vam isolados na Idade Média. Econômica, democrá
tica e politicamente, suas relações são um fato capi
tal. Nas regiões fortemente urbanizadas, onde os mer
cadores se tornaram poderosos, sua ação sobre os cam
pos logo se fez sentir. A princípio, eles contribuíram
para a libertação dos camponeses, pois esse era um
meio de luta contra os senhores feudais, uma oportu
nidade para adquirir terras dos nobres, privados de
mão-de-obra, ou dos camponeses, proprietários sedu
zidos pelo dinheiro oferecido e principalmente, talvez,
graças à emigração dos camponeses libertos para as
cidades, um meio de obter mão-de-obra barata para
a indústria e o comércio.
Além disso, em certas regiões os mercadores mo
dificaram as condições de exploração e de vida dos
camponeses. Graças aos capitais, puderam investir na
terra para melhorar as técnicas, realizar grandes obras
hidráulicas, como em Flandres ou na planície do rio
Pó, difundir os moinhos. Graças ao seu espírito c aos
seus métodos comerciais, conseguiram melhorar a pro
dução e, até certo ponto, racionalizá-la. Graças à sua
orientação comercial e às suas reações ante a conjun
tura econômica, conseguiram por vezes proceder a uma
reconversão das culturas, remédio para as crises agrí
colas: substituição da cultura pela criação para aten
der às necessidades da indústria têxtil, como na Ingla
terra e na região de Mctz; aumento da cultura da ga-
rança para a tintura, como em Flandres, e depois, nos
séculos XIV e XV, progresso do pastel, que os merca
dores tolosanos, por exemplo, vão cultivar em várias
regiões do sudoeste da França; impulso dado na Itá
lia, pelos mercadores florentinos, à cultura da amo
reira, quando encontram dificuldade em obter a seda
do Turquestão. Os mercadores estão também interes
sados no abastecimento das cidades que dominam po
liticamente. A agricultura é protegida; alguns cultivos,
53
como os da vinha ou das árvores frutíferas, são incen
tivados. Um dos célebres afrescos de Ambrogio Lo-
renzetti, no Palácio Comunal de Siena, representa os
efeitos no campo do “bom governo” da burguesia mer
cantil.
Mas não se deve pensar que os camponeses ape
nas lucraram com esses contratos. Só se beneficiaram
do apoio dos mercadores quando concluíram com eles
contratos que, em troca de capitais, do fornecimento
de gado, ferramentas ou sementes, lhe impunham não
só obrigações geradoras de progressos — arroteamen-
tos, exploração de madeira, construção de edifícios —,
como o compromisso de deixar nas mãos do merca
dor, sócio capitalista, a maior parte dos lucros. Nos
campos de Messina, segundo J. Schneider, os campo
neses dos domínios burgueses conquistaram “a liber
dade pessoal, mas com sujeição econômica”.
Quando, a partir do século XIV, a crise econô
mica atingiu mais particularmente os campos, a atitu
de dos mercadores para com os camponeses que de
pendiam deles endureceu, ainda mais porque o recuo
dos capitais mercantis sobre a terra se ampliou. Bem
cedo, sem dúvida, os mercadores adquiriram bens fun
diários, sinal e fonte tradicionais de riqueza e consi
deração. Mas esse movimento se acelerou a partir do
século XIV, acentuando a tendência de alguns gran
des mercadores a tornar-se “capitalistas”. São conhe
cidas as célebres casas de campo dos Mediei, que eram
não apenas luxuosas residências, mas também centros
de exploração. Talvez no seio da família dos Alberti
se possa perceber melhor uma verdadeira ruralização
que inspirará um membro da família, no século XV,
o famoso Léon Battista, a uma série de regras econô
micas e éticas.
Ao mesmo tempo, sobretudo na indústria têxtil,
os mercadores procuraram no campo, mais que antes,
uma mão-de-obra barata. Assim, a indústria têxtil mar-
54
selhesa fazia trabalhar, além da região Sudeste, a lio-
nesa, a de Bresse e mesmo a região de Chartres. En
quanto os mercadores dos velhos centros têxteis urba
nos, como Gand, se esforçavam por todos os tneios,
inclusive a força, para opor-se ao desenvolvimento des
sa indústria concorrente, os mercadores dos novos cen
tros construíam sua fortuna com ela c praticamente
às custas da mão-de-obra camponesa, Na Itália, as
cláusulas dos contratos de arrendamento a meias
tornam-se mais draconianas; institui-se o assalariado
agrícola, mas com condições de vida mais miseráveis;
a situação dos pequenos camponeses se agrava e as
sistimos até mesmo, da parte dos mercadores proprie
tários fundiários, a uma verdadeira reação que, rea-
nimando as taxas senhoriais, tende a reconduzir os
camponeses ao estado servil. Esse movimento se acom
panha de um desprezo crescente pelos rusílci, do qual
vamos encontrar largos ecos na literatura do século XV
inspirada pela burguesia mercantil.
55
confundir esses grupos de homens bastante fechados
com a burguesia. É uma fração da burguesia, não ra
ro a mais rica, mas sobretudo a mais poderosa por sua
influência no governo da cidade. Essa classe social só
adquire toda a sua amplitude nas cidades onde a in
dústria e o grande comércio oferecem possibilidades
de enriquecimento quase ilimitadas.
Sem dúvida, o apogeu do patriciado situa-se no
século XHJ; nos séculos seguintes, sob o efeito das cri
ses econômicas, uma evolução social e política vem às
vezes impor limites à onipotência dos patrícios.
Muito embora os movimentos revolucionários ur
banos não passem de incêndios breves, rapidamente
apagados, os artesãos pertencentes às classes médias
conseguem com frequência dividir com os grandes mer
cadores o poder político das cidades.
Entre os motivos que levaram o povo das cidades
a sublevar-se contra a tirania patrícia gritando “Abaixo
os ricos!”, ao lado das reações da miséria que erguiam
as “unhas sujas” contra os mercadores capitalistas,
deve-se sublinhar os ressentimentos decorrentes da ges
tão das finanças urbanas pelos patrícios.
Os patrícios no poder fixam o imposto. Já por is
so eles estão votados à impopularidade que é levada
ao extremo pelo fato de eles próprios se dispensarem
de pagá-lo, fazendo recair o respectivo ônus sobre os
mais pobres. Um célebre texto de Beaumanoir, em suas
famosas Coutwnes du Beauvaisis, mostra isso muito
bem:
“Inúmeras reclamações aumentam nas cidades de
comuna a propósito da derrama, pois com freqüência
os ricos que governam os negócios da cidade declaram
menos do que devem, eles e sua família, e fazem
beneficiar-se das mesmas vantagens os outros ricos; as
sim, todo o ônus recai sobre os pobres.”
A fraude fiscal chegou a tal ponto que por vezes
irromperam escândalos, como em Arras, onde um
56
membro da famosa família de banqueiros dos Cres-
pin “esqueceu” de declarar 20 mil libras!
Mais ainda, a fraude fiscal acompanha-se do des
perdício do dinheiro público, uma parte do qual vai
para as caixas dos grandes mercadores. As cidades se
endividam e às vezes vão à falência, como Noyon. Ve
mos os célebres Bardi e Peruzzi em Florença, em 1343,
tentarem tomar o poder para evitar a bancarrota de
suas empresas, e, num momento de dificuldade, o Mag
nífico não hesitará, para restaurar as finanças da fir
ma dos Mediei, em recorrer à Caixa Comunal em no
me das raparigas pobres.
57
lois pela dinastia de Navarra na pessoa de Carlos, o
Mau, se tornando cada vez mais o porta-voz do “co
mum”. E é varrido, também ele, por uma reação das
classes dirigentes que se aproveitam, senão da cumpli
cidade, pelo menos da passividade das classes popula
res, não dispostas a apoiá-lo até o fim pois, na verda
de, ele não é dos seus. E é assassinado, também ele,
em 31 de julho de 1358.
O ódio dos patrícios por esses mercadores “de
mocratas” parece ter sido legado aos historiadores, que
muitas vezes só quiseram vê-los como “agitadores”.
Foi assim que os pintaram os cronistas “reacionários”
da época. Para o patrício florentino Villani, Artevel-
de foi um indivíduo desprezível, “de vil nação e ofí
cio”, cuja morte encerra uma moral: “Tal é geralmente
o fim dos homens presunçosos que se fazem passar por
chefes das comunas”.
O cronista Jean de Hocsem também descreve Hen
ri de Dinant, mais um desses “burgueses democratas”,
como um demagogo {ductor populi), e Jean d’Outre-
meuse diz a seu respeito: “Ele fazia o povo se levan
tar contra o senhor e contra os clérigos... era tão fal
so e traidor e cobiçoso, que não lhe bastava à ambi
ção ter propriedade.” Reabilitando sua verdadeira fi
gura, F. Vercauteren traçou um retrato dele que vale
por todos os seus semelhantes:
“Era um rico burguês, membro do patriciado, mas
não das antigas linhagens que detinham o poder em
Liège. Inteligente, ambicioso e eloquente, quis ter um
papel pessoal no governo dos negócios urbanos, libertar
a burguesia da autoridade principesca e pôr termo, para
esse fim, à oligarquia dos magistrados oficiais. Pare
ce também ter tentado a realização de uma aliança es
treita entre as principais cidades líegenses, a fim de opor
a política dos burgueses à do príncipe. Para levar a cabo
seus projetos, atraiu para si as massas populares, ex
58
cluídas ainda de qualquer participação no poder polí
tico, mas já amadurecidas para semelhante participa
ção. Discerniu, pois, e utilizou um movimento profun
do que aguardava o seu líder. Sua intervenção preci
pitou a luta entre o povo e uma parte do patriciado
apoiado pelo príncipe, enquanto uma fração do clero
se conservava neutra. Mas, prisioneiro daqueles a quem
devia sua ascensão, obrigado pouco a pouco a adotar
uma atitude cada vez mais violenta e revolucionária,
foi abandonado pelos elementos do patriciado que o
haviam seguido no começo e a quem seu radicalismo
acabara por amedrontar. De político que era a princí
pio, seu movimento tornou-se social; durante os últi
mos meses de sua administração, Henri de Dinant não
pode mais contar com o apoio popular e, desde en
tão, passa por um democrata ou mesmo, como diz
Hocsem, um demagogo. É isso que explica a impor
tância e a força da coalizão que se forma contra ele
e que agrupa o príncipe, a nobreza e o patriciado. Não
terá sido difícil aos seus vencedores transmitir à pos
teridade uma imagem deformada do tribuno e fazê-lo
passar por um vulgar agitador, inspirador de uma po
lítica demagógica. A leitura dos cronistas liegenses do
século XIV mostra o sucesso que essa versão alcançou
e que haverá de conhecer, aliás, até o século XIX.”
É certo que rivalidades pessoais no seio do patri
ciado — concorrência de negócios c de prestígio — e
considerações de ambição pessoal tenham tido seu pa
pel em muitos casos. Muitas vezes, o interesse fez com
que esses ricos se colocassem ao lado dos pobres. Os
ricos açougueiros, como o famoso Cabocheem Paris,
que animaram movimentos revolucionários, queriam
sem dúvida se servir do povo para vencer o desdém
que lhes atribuía o resto da alta burguesia, apesar de
sua fortuna. Em Metz, eles foram também o “elemento
revolucionário mais ativo”. Mas em muitos casos es
ses desertores, desgostosos com o egoísmo e a fero-
59
cidade de sua classe e conscientes de uma evolução que
contrariava a obstinação dos patrícios instalados em
seus privilégios, não fizeram mais que seguir a voz de
sua consciência e inteligência.
A comunidade de ação, por exemplo, de Tournai
em 1280, onde os patrícios formam a “Confraria dos
Donzéis”, aliança da grande burguesia contra o povo
ameaçador, nào impediu a irrupção, no interior do pa
triciado, das mais ásperas rivalidades políticas, expres
são das disputas comerciais.
A) Lutas dos dãs burgueses — Essas lutas entre
grandes famílias patrícias são paríicularmente célebres
na Itália. Muitas vezes, elas formam a base da oposi
ção que lança os guelfos contra os gibelinos, como,
por exemplo, em Gênova, onde das quatro grandes fa
mílias, quatro “tribos”, os Fieschi e os Grimaldi são
guelfos e os Doria e os Spinola, gibelinos. Foi sem dú
vida em Florença que essas lulas mais se celebrizaram
— entre Negros e Brancos, imortalizadas por Dante,
entre Alberti e Albizzi no fim do século XIV, entre Al-
bizzi e Mediei, Mediei e Pazzi no século XV, O triun
fo político e a expulsão dos adversários são os melho
res meios para que uma família se desembarace dos
concorrentes e destrua seus negócios. A grande com
panhia dos Alberti declina e morre após a chegada dos
Albizzi ao poder.
Nos dois últimos séculos da Idade Média, contu
do, essas rivalidades no seio das grandes famílias mer-
cantilistas são sem dúvida menos significativas e me
nos importantes que o apoio cada vez mais decidido
que essa classe dá às novas estruturas políticas, acre
ditando assim criar obstáculos para a ascensão das clas
ses populares e para o perigo de certos movimentos re
volucionários: é o que acontece onde quer que a tira
nia e a monarquia centralizada apareçam (não é este,
por exemplo, o caso da Alemanha).
B) Mercadores e senhorias — Na Itália, os gran
des mercadores favorecem o advento e a consolidação
60
das senhorias, e as rivalidades que podem ameaçar es
tas últimas, constituídas por uma família de mercado-
res-banqueiros, como os Mediei em Florença, não de
vem mascarar o profundo consentimento da grande
burguesia mercantil italiana em face de regimes que
garantem pela força e demagogia a segurança das for
tunas.
61
ministrarem as colônias que sua pátria genovesa pos
sui na Síria e na Palestina.
Outro campo de ação para os mercadores: a con
quista do reino de Nápoles pelos angevinos, com a aju
da do papado. Na luta dos papas contra os imperado
res alemães, o conflito com os filhos de Frederico II,
e sobretudo com seu filho natural Manfredo, senhor
da Itália do Sul e da Sicilia, passa a primeiro plano
após 1250. Os gibelinos, partidários de Manfredo,
triunfam em Síena e em Florença, e os principais
mercadores-banqueiros dessas cidades que mantinham
relações comerciais com a Santa Sé emigram ou são
exilados. Foi a eles que Clemente IV, um champanhes
bastante informado sobre operações financeiras inter
nacionais, se dirigiu para o financiamento da conquista
do reino de Nápoles batizada de “cruzada” e confia
da pelo papa a Carlos de Anju, irmão de São Luís.
Trata-se de uma empresa considerável com riscos enor
mes. Para convencer os negociantes florentinos exila
dos, o papa lhes hipoteca, em troca dos capitais que
adiantaram, o produto do imposto sobre a Cruzada
a ser recuperado nas feiras da Champagne, o tesouro
pontificai, os bens da igreja de Roma e, se necessário,
os objetos preciosos, os vasos de ouro e prata de sua
capela e de seu tesouro. A vitória das tropas francesas
e a instalação dos angevinos em Nápoles abriram aos
banqueiros de Carlos de Anju a dominação econômi
ca na Itália do Sul e na Sicilia por mais de um século.
Foi dentre eles que os reis angevinos escolheram mui
tos de seus principais conselheiros. É o caso dos Ac-
ciaiuoli de Florença. No começo do século XIV, um
Acciaiuoli é camareiro do rei Renato, vigário real e se
nhor de Prato. A fortuna de seu filho Nicolau será ain
da mais brilhante. Grande negociante, hábil adminis
trador, diplomata sem par, ele junta a esses talentos
qualidades físicas que fazem dele o favorito da impe
ratriz Catarina de Courtenay e da rainha Joana I. Nos
62
feudos que recebe na Grécia ou na Itália, leva uma vi
da deslumbrante de grande senhor; embaixador do pa
pa cm Avinhão, desempenha um papel de “fazedor
de reis”; um afresco de Andrea del Castagno nos con
servou a figura altiva desse grande senescal do reino
da Sicilia.
A gestão das finanças da Santa Sé também repre
senta para os mercadores italianos vastas possibilida
des. Nos tempos de Avinhão, quando a rede de ma
lhas, cada vez mais estreitas, do fisco pontificai se fe
cha sobre a cristandade, são os grandes banqueiros ita
lianos, sobretudo os Florentines, que fazem voltar o
produto dos impostos e taxas múltiplas às caixas da
Cúria, adiantam ao papa as consideráveis quantias de
que ele precisa, fazem por ele todas as operações fi
nanceiras necessárias e dispõem, sobre uma vasta área
geográfica, dessa incomparável massa de manobra que
o dinheiro da Igreja oferece para os seus negócios1.
Banqueiros do papa, como mostrou Y. Renouard, são
também conselheiros políticos. Os papas de Avinhão
farão da sociedade dos “Alberti antichi” até mesmo
uma verdadeira agência de informação a seu serviço.
A política continental dos reis da Inglaterra pro
porciona aos italianos um terreno de operações igual
mente privilegiado. Financistas das empresas inglesas
da Guerra dos Cem Anos, eles consolidam junto aos
soberanos de Londres sua posição econômica, assim
como postos militares e políticos. Sem dúvida revela-
se aqui a importância dos riscos em detrimento dos em-
prestadores mais imprudentes, e o fracasso de uma ex
pedição inglesa cornará inevitável a falência das maiores
companhias floreminas, como as dos Peruzzi e dos Bar-
di. No século XV, porém, mais uma vez veremos os
mercadores italianos, em regiões onde não têm inte
63
resses comerciais — em Guyenne, por exemplo —, ser-
vir aos reis da Inglaterra como governadores e almi
rantes.
Vemos também no fim da Idade Média, no con
texto dessas monarquias cujo caráter nacional matiza
cada vez mais a ação centralizadora, mercadores lo
cais aparecerem no primeiro plano do palco político.
Um William de La Pole já é influente junto a Eduar
do III da Inglaterra. Sabe-se do brilhante papel desem
penhado no século XV por Jacques Coeur junto a Car
los VII da França.
Assim, ao longo de toda a Idade Média, seja o
patriciado das cidades, no contexto urbano e comu
nal, sejam os grandes capitalistas, no contexto esta
tal, os mercadores-banqueiros respaldaram e coroaram
seu poder econômico com um poder político onde se
mesclavam a busca do lucro e do prestígio. 1
64
pecialmente a Idade Média, “corresponde uma classe
distinta de capitalistas... Não é do grupo dos capita
listas de uma dada época que procede o grupo dos ca
pitalistas da época seguinte. A cada transformação do
movimento se produz uma solução de continuidade.
Os capitalistas que até então desenvolveram sua ativi
dade, se reconhecem, dir-se-ia, incapazes de adaptar-
se às condições requeridas por necessidades até então
desconhecidas e que exigem métodos não-emprcgados.
Retiram-se da luta para se transformar numa aristo
cracia cujos membros, embora ainda intervenham no
manejo dos negócios, só o fazem de modo passivo, na
qualidade de arrendadores de fundos. Em seu lugar,
surgem homens novos, ousados, empreendedores, que
audaciosamente se deixam levar pelo vento que sopra
e sabem dispor suas velas de acordo com sua direção,
até o dia em que, modificando-se essa direção e deso
rientando suas manobras, eles se detêm por sua vez e
se apagam diante de uma equipe dotada de forças fres
cas e de tendências novas”.
Essa tese encontrou diversos contraditores, e, em
torno de sua fecunda sugestão, travou-se um debate
sempre aberto, com a especial participação de G. Es-
pinas e J. Lestocquoy: “Novos-ricos ou filhos de ri
cos?”
Não nos ocupamos aqui de um aspecto dessa dis
cussão, aquele que se refere à origem da classe dos gran
des mercadores medievais. Sem dúvida, como mostra
ram depois de Eirenne, em muitos lugares são antigas
famílias nobres, antigos funcionários feudais, possui
dores de uma certa massa de capitais, que se entrega
ram ao comércio fornecendo-lhe seus cérebros e seus
dirigentes. Mas Pircnne chamou a atenção para aque
les que — aproveitando-se do surto demográfico dos
séculos X-XI1 e do movimento urbano que deslocou
os quadros da sociedade rural e militar da Alta Idade
Média —, partindo do nada ou de pouco, se elevaram
ao primeiro plano graças ao comércio.
65
Mesmo assim, a classe dos grandes mercadores se
estabilizou, uma vez desaparecidas essas condições ex
cepcionais de mobilidade social. A partir do século
XIII, os Rockefeller e os Carnegie, que sempre cons
tituíram exceções, foram cada vez mais raros na Ida
de Média. Não entrou quem quis na grande burguesia
comercial, salvo talvez na Inglaterra, onde, sobretu
do na ciasse mercantil londrina, a “fluidez” parece ter
sido muito grande nos séculos XIV e XV2. Como disse
A. Sapori referindo-se a Florença, só “nas classes aci
ma da do trabalhador assalariado” é que houve "coni-
penetração’’. “Os membros do que se costuma cha
mar de burguesia faziam bloco contra o povinho, res
tabelecendo o sistema das contribuições centrado nos
impostos indiretos, ditando as modalidades do traba
lho manual e fixando-lhe as remunerações.” No sécu
lo XIV, acaba se estabelecendo o divórcio — nos pla
nos político e ideológico — entre capital e trabalho.
Os burgueses convertidos em capitalistas são tratados
de “ociosos” (otiosi) pelos trabalhadores. A separa
ção é completa entre os ofícios “fundados no labor
ou na mercadoria”. .Já no fim do século XIII, “só
quem não ganha a vida pelo trabalho manual” pode
ingressar no Rat de Lübeck, e desde 1312 as “pessoas
mecânicas” são excluídas das funções municipais em
Nevers.
Mas há, na tese de Pirenne, algumas constatações
de primordial importância.
E justo vincular o aparecimento de certas famí
lias no primeiro plano do palco dos negócios e a ex
tinção de algumas outras às diversas fases do movi
mento econômico. Mas, salvo exceções, nem sempre
os recém-chegados são desconhecidos no mundo do
comércio e do banco,- nem os antigos desapareceram
66
por completo. Em Veneza, os novos-ricos, que enri
queceram por seu trabalho aproveitando-se do siste
ma da commenda e depois se tornaram capitalistas cada
vez mais poderosos, formam os case nuove, as “casas
novas’’, que coexistem com as case vecchie dos anti
gos ricos. Em Flandres, nos séculos XIV e XV, a grande
burguesia da poorterie compreende, ao lado dos novos-
ricos, os descendentes do antigo patriciado. Aliás, a
extinção de algumas famílias pode estar ligada a acon
tecimentos políticos, como é o caso dos Alberti, mas
não se deve transformar em lei da evolução econômi
ca e social as célebres páginas — belo trecho literário
•— de Eeon Battista Alberti, no século XV, em seu tra
tado Da família, consagradas às vicissitudes das gran
des famílias comerciantes que do fastígio do poder caí
ram no declínio e no esquecimento.
Mais interessante é seguir a evolução que tende
a transformar os mercadores ativos em capitalistas.
Sem dúvida, ainda aqui a conjuntura econômica pesa
sobre tal evolução. É diante das dificuldades do co
mércio, do estreitamento dos horizontes, da perda de
alguns mercados que os capitais comprometidos nos
negócios e no banco são concentrados e investidos em
bens imobiliários e fundiários. Isso vale particularmen
te para os italianos, nos séculos XIV e XV, como já
vimos, e o desenvolvimento de um império veneziano
de Terra Firme está ligado a esse recuo dos capitalis
tas para a terra. F.-C. Lane mostrou-o no caso de An
drea Barbarigo e seus descendentes: ele que investiu
todo o seu dinheiro no comércio esperou a idade ma
dura para comprar um domínio predial. Mas os tuto
res de seus filhos começam a comprar com sua heran
ça outras propriedades nas regiões de Treviso e de Ve
rona, sem contar os domínios coloniais em Creta, e
investem o dinheiro de seus pupilos de preferência em
títulos de empréstimo de Estado. É o momento em que,
devido à conquista turca, Veneza sofre pesadas per-
67
das no Oriente. Em 1462, já não há senão um décimo
do capital familiar investido no comércio. Quando o
filho mais velho Nicolò faz seu testamento, em 1496,
recomenda ao seu próprio filho não investir capitais
no comércio, que rende muito pouco.
Do mesmo modo, quando em 1457 uma crise fe
cha aos Popplau de Breslau os mercados da Boêmia,
Kaspar Popplau aplica uma parte de seus capitais no
campo, onde compra terras. E, assim como essa nova
orientação dos capitais mercantis permite a substitui
ção da antiga aristocracia fundiária por uma nova, é
por investimentos de um novo tipo que, nas cidades,
um patriciado de novos-ricos substitui o antigo. Em
Lübeck, os homines novi compram rendas e seus de
vedores pertencem essencialmente às velhas linhagens
e se encontram doravante à mercê de seus credores.
Já no fim do século XIII, a viúva de Bertrand Morne-
wech, “o primeiro e o mais feliz representante do no
vo tipo de mercador”, investe desse mesmo modo
14.500 marcos lübeckenses entre 1286 e 1300.
Mas essa evolução, acentuada e acelerada pela his
tória econômica, nào está inteiramente ligada a ela.
É um movimento natural que, em nossa época, leva
o negociante a investir em propriedades imobiliárias
e prediais. Na juventude, as viagens; na idade madu
ra, os negócios sedentários; na velhice, uma semi-
aposentadoria em suas terras. Mais do que uma ques
tão de idade, é uma questão de geração. O pai, edifi
cador da empresa, embora no início dispusesse de uma
certa fortuna, consagra àquela todo o seu tempo, es
forços e dinheiro. O filho ou neto, criados na abas-
tança, que receberam de sua educação ao mesmo tempo
o gosto da cultura e a sensibilidade às coisas da arte,
dedicam menos tempo aos negócios e mais às despe
sas pessoais: prazeres do espírito, prazeres menos no
bres. Depois dos acumuladores, os desfrutadores. De
pois dos mercadores que só são mercadores, os mer-
68
cadores-artistas. Para a época moderna, no contexto
de uma velha cidade da Alemanha hanseática, Tho
mas Mann pintou essa evolução, em Os Buddenbrooks.
Ela foi freqüente na Idade Média. Vamos encontrar
uma célebre ilustração dela entre os Mediei. De Cos
me a Lourenço, o dinheiro que foi irrigar o Renasci
mento florentino faltou para os negócios da firma fa
miliar.
Portanto, se é justo estabelecer matizes e se é pre
ciso desconfiar da “concepção de uma classe burgue
sa fazendo bloco a cada época”, em todo caso, a clas
se dos grandes mercadores burgueses com vicissitudes
c renovações, apresentou na Idade Média uma notá
vel unidade cuja trama é feita não só das permanên
cias econômicas, mas também das continuídades hu
manas no seio das grandes famílias do comércio e do
banco.
69
CAPÍTULO III
A atitude religiosa e moral
7]
be!. Eis o mercador rejeitado, parece, pela Igreja, em
companhia das prostitutas, dos jograis, cozinhei*
ros, soldados, açougueiros, taberneiros e também,
aliás, dos advogados, notários, juizes, médicos, cirur
giões, etc,
72
contrar os mercadores entre seu dinheiro e os diabos
que os torturam — como, por exemplo, nos afrescos
de Taddeo di Bartolo da coiegiada de San Gimigna
no. A primeira causa dc sua condenação c que, pelo
objetivo que eles se propõem — o lucro, a riqueza —,
eles quase que inevitavelmente cometem um dos peca
dos capitais, a avariíiii, ou seja, a cupidez.
73
Os autores eclesiásticos mencionam também um
certo número de motivos ligados à moral natural. Dois
deles são particularmeme interessantes. O empresta-
dor, em primeiro lugar, não realiza um verdadeiro tra
balho, nem cria e transforma uma matéria ou objeto,
mas explora o trabalho alheio, o do devedor. Ora, a
Igreja, cuja doutrina se formou no meio rural e arte-
sanal judaico, só reconhece esse trabalho criador co
mo fonte legítima de ganho e de riqueza. Tanto mais
que a ascensão das classes urbanas no Ocidente, entre
os séculos X e XIII, traz novamente ao primeiro pla
no da sociedade os trabalhadores nesse sentido tradi
cional — incluindo aí os primeiros mercadores cristãos,
de labor itinerante.
Há também a dificuldade com que os canonistas
e teólogos se defrontam para admitir que o próprio di
nheiro possa gerar dinheiro e que o tempo — aquele,
de maneira concreta, que decorre entre o ato do em
préstimo e o de seu reembolso — possa também pro
duzir dinheiro. A primeira consideração, que levou à
formulação do famoso adágio Niimmus non parít niim-
mos, “dinheiro não produz dinheiro”, vem de Aris
tóteles e difundiu-se com as obras e as idéias desse fi
lósofo no século XIII.
Na esteira do Estagirita, São Tomás de Aquino
e Gilberto de Lessines afirmam que o dinheiro deve
servir para favorecer as trocas e que acumulá-lo, fazê-lo
frutificar por si mesmo, é uma operação contra a na
tureza. “Em vez de transferir os bens necessários à vi
da, acumula-se com espírito avaro”, diz Gilberto de
Lessines. Belo exemplo dos resultados da influência
aristotélica sobre o pensamento cristão medieval. Por
um lado, o dinheiro é um estimulante, um suporte na
elaboração de uma reflexão que busca adaptar-se às
novas condições da economia. A teoria de uma moe
da, instrumento da circulação dos produtos, é um ine
74
gável progresso em relação ao entesouramento prati
cado pelos homens da Alta Idade Média, adeptos de
um ideal de economia fechada. Mas é também, por pu
ra aceitação de uma nova autoridade, obstáculo, so
brecarga, fonte de incompreensão e de novas dificul
dades. Porque essa teoria da moeda, negando o valor
do crédito, provoca um divórcio entre o pensamento
cristão e a evolução econômica.
Mais grave talvez, porque põe em jogo estrutu
ras mentais ainda mais complexas e fundamentais,
é a concepção cristã do tempo. Em São Tomás e em
outros teólogos e canonistas, encontramos, com efei
to, o argumento de que pela prática do juro se “ven
de o tempo”. Ora, este não pode ser uma proprie
dade individual. Pertence unicamente a Deus. Assim,
a reflexão cristã, não podendo fugir a um contexto
teológico-moral estreito, se mostra incapaz de che
gar a concepções econômicas, quaisquer que sejam os
consideráveis esforços dos pensadores e juristas do
século XIII. O mercador, por sua vez, também não
consegue chegar à concepção clara e à formulação das
crenças econômicas que constituem o fundamento de
sua atividade, mas não é esse o seu papel. Ele as ex
prime em suas operações: assim como o outro prova
va o movimento andando, ele prova o crédito comer
ciando.
75
comunhões do papado. Essas questões tornaram-se
ainda mais agudas na época das Cruzadas, quando a
igreja se engajou sem restrição na luta armada con
tra o Islã — numa época em que o desenvolvimen
to do comércio internacional tornara os contatos mer
cantis com os árabes praticamente indispensáveis pa
ra os grandes mercadores ocidentais. Veneza partici
pou da primeira Cruzada só a contragosto e para ga
rantir sua parte no saque quando a expedição esti
vesse suficientemente adiantada. Parece que sempre
preferiu desviá-la para Bizâncio, o que conseguiu, co
mo se sabe, na quarta Cruzada. A legislação das Cru
zadas estipula efetivamente a interdição do comércio
com o inimigo e decreta o embargo sobre os produtos
estratégicos, particularmente as madeiras, o ferro, as
armas e os navios. De modo mais geral, a Igreja proi
bia, em caráter permanente, a venda de escravos ao
Islã, que constituía um dos maiores tráficos dos mer
cadores cristãos medievais. Ora, as trocas, mesmo na
época das Cruzadas, não se interromperam. Uma cor
respondência entre mercadores muçulmanos de Tunis
e um mercador cristão de Pisa mostra — entre outros
documentos — a excelência das relações entre comer
ciantes infiéis e cristãos, o que se chamou de “a soli
dariedade dos mercadores muçulmanos e cristãos”.
Eis, por exemplo, o começo de uma dessas cartas:
“Em nome de Deus, Clemente e Misericordioso
“Ao mui nobre e distinto 'xeque’, o virtuoso e
honrado Pace, pisano; que Deus preserve sua honra,
queira a sua salvaguarda, ajude-o e assista-o na reali
zação do bem! Hilal ibn Khalifat-al-Jamunsi, vosso
amigo afeiçoado e que vos deseja o bem, a vós que
seguis os caminhos da virtude, vos envia estas sauda
ções, a misericórdia e as bênçãos de Deus.” E a carta
é entremeada de numerosos:
“Meu caríssimo amigo, meu caro amigo Pace,”
76
II. A Igreja e os mercadores: a prática
77
dos a distância pela Igreja, acolhidos por ela e pro
fundamente integrados no meio cristãodVemos em Ar
ras todo um grupo de ricos mercadores em estreita li
gação com a abadia de São Vedasto. Membros da fa
mília Hucquedieu são 4‘homens de São Vedasto” . Jean
Bretel, que comercia nas feiras da Champagne, é fun
cionário da abadia. Vimos mais acima um contrato co
mercial redigido num convento genovês. Mais adian
te, veremos os laços recíprocos que uniram na Idade
Média a Igreja e ricos mercadores.
78
vor de Robert de Béthune, solicitador de São Vedasto
de Arras, vítima das práticas de vários dos principais
homens de negócios dessa cidade. Na maioria das ve
zes, a Igreja fecha os olhos, tanto mais que os merca
dores e os banqueiros logo encontrarão meios de con
tornar as interdições eclesiásticas e disfarçar a usura
camuflando os juros. Quando a letra era respeitada,
a Igreja aceitava mais facilmente que o espírito fosse
traído. Ora os juros pagos pelo devedor eram apresen
tados como doação voluntária, ora assumiam a for
ma de uma multa paga quando da expiração do prazo
de reembolso fixado expressamente numa data muito
próxima, multa compensatória paga anualmente e em
troca da qual os lombardos recebiam uma licença au
torizando a prática das operações teoricamente inter
ditas. Às vezes, a usura era camuflada de tal modo que
se tornava difícil descobri-la, como no caso do câm
bio seco, que se operava com a ajuda de uma letra de
câmbio fictícia onde se mencionavam operações de
câmbio que não eram realmente efetuadas.
79
pode chamar-se “juros”. Por outro lado, o em pres
tador se priva de um lucro possível, ou mesmo prová
vel, ao imobilizar em seus empréstimos o dinheiro que
podería servir-lhe imediat amente para outros fins. Já
no final do século XII, uma decreta] de Alexandre HI,
regulamentando a venda a crédito, autorizava por es
se motivo, lucrum cessans, o recebimento de uma in
denização. De um modo mais geral, o emprestador
sempre corre riscos: insolvência ou má fé do devedor,
juntando-se a isso, a partir do final do século XIII,
o perigo de ver o valor do dinheiro emprestado dimi
nuído na hora do reembolso, seja em conseqüência de
uma mudança monetária, seja por efeito das flutua
ções no preço da prata. Esse risco, periculum sortis,
que é levado cada vez mais em consideração à medida
que se compreendem melhor os mecanismos econômi
cos e monetários, fornece então a base da doutrina da
Igreja no tocante ao comércio e ao banco.j Basta ha
ver dúvida quanto ao resultado de uma operação —
ratio incertitudinis —, e a Igreja reconhecer que isso
pode ser inerente a toda atividade do mercador, para
que o recebimento de juros seja justificado. A habili
dade casuística conduz então a fórmulas como a de Gil
bert de Lessines, segundo a qual “a dúvida e o risco
não podem ocultar o espírito de lucro, isto é, descul
par a usura”, mas, havendo “incerteza e não cálcu
lo... a dúvida e o risco podem equivaler à eqüidade
da justiça”. Assim, tornam-se autorizados os contra
tos de associação, de “sociedade”, o câmbio e sobre
tudo as operações tais como o uso da letra de câmbio
— exceto o “câmbio seco” —, o comércio das rendas
constituídas, isto é, assentadas em bens imobiliários,
e os juros dos empréstimos públicos.
Há, também — e esse é um novo avanço no pro
cesso de justificação do mercador pela Igreja —, a con
sideração do labor do comerciante, do trabalho que
ele fornece e pelo qual deve receber salário, siipendium
80
laboris. Deparamos aqui com a teoria eclesiástica do
salário ligado ao trabalho, fruto da reflexão cristã so
bre o movimento social dos séculos X-XIII e que re
sulta numa sociedade fundada no trabalho dividido en
tre os assalariados. A aplicação dessa teoria ao mer
cador foi fácil numa época em que o mercador típico
era um viajante, um itinerante exposto a todos os pe
rigos de que falamos mais acima. O mercador capita
lista sedentário entrava mais dificilmente nessas cate
gorias. Podia-se, é certo, considerar como um “tra
balho” os cuidados de organização e as preocupações
de direção que ele tinha. Mas é antes em consideração
aos serviços que prestava à sociedade pelo uso de seu
dinheiro, de sua organização e de seus métodos, que
ele foi assimilado a um trabalhador.
Com efeito, foi a noção de utilidade e de necessi
dade dos mercadores que veio coroar a evolução da
doutrina da Igreja e lhes valeu o direito de cidadania
definitivo na sociedade cristã medieval. Bem cedo se
evidenciou a utilidade dos mercadores, que, indo bus
car em lugares distantes as mercadorias necessárias ou
agradáveis, os gêneros e os objetos inexistentes no Oci
dente e vendendo-os nas feiras, forneciam às diversas
classes da sociedade aquilo de que elas precisavam. Eis
como fala o autor do Dit des marchands:
81
Os mercadores em apreço deve ter
Pois sào eles que levam os corcéis
A Laingni, a Bar e a Provins.
Existem mercadores de vinhos,
De trigo, de sal e de arenque,
E de seda e de ouro e de prata,
E de pedras de mui grande valor.
Os mercadores vão pelo mundo afora
Buscando muitas coisas comprar.
83
comum, pois o progresso do bem-estar público é um
objetivo muito honroso, segundo Cícero, e deve-se mes
mo estar disposto a morrer por ele... O progresso, o
bem-estar e a prosperidade dos Estados repousam em
grande parte nos mercadores; falamos sempre, eviden
temente, não dos pequenos e vulgares mercadores, mas
dos gloriosos mercadores cujo elogio é o tema de meu
livro... Graças ao comércio, ornamento e motor dos
Estados, os países estéreis são providos de alimento,
de gêneros e de numerosos produtos curiosos impor
tados de outras terras... os mercadores trazem tam
bém, em abundância, as moedas, as jóias, o ouro, a
prata e todos os tipos de metais... O trabalho dos mer
cadores é ordenado para a salvação da humanidade.
84
XIV: “Tua ajuda, tua defesa, tua honra, teu lucro,
é o dinheiro’’, E Mollat, estudando os grandes mer
cadores normandos do fim da Idade Média, pôde fa
lar do “dinheiro, fundamento de uma sociedade”.
85
nenhum profissional jamais soube, em nenhum reino
ou Estado, manejar o dinheiro — que é a base de to
dos os estados humanos — como o faz um mercador
honesto e experiente,.. Nem reis, nem príncipes, nem
homem algum de qualquer posição tem tanta reputa
ção e tanto crédito como um bom mercador... Assim,
os mercadores devem orgulhar-se de sua eminente dig
nidade... Não devem ter as maneiras brutais dos ru
des soldados nem as maneiras doces e afetadas dos bu-
fões e atores, mas a seriedade sempre deve transpare
cer em sua linguagem, em sua postura e em todas as
suas ações, para que se mostrem à altura de sua digni
dade.
Assim fala Benedetto Cotrugli, mercador de Ra-
gusa.
86
agem como se acreditassem que a razão humana pode com
preender tudo, explicar tudo e dirigir sua ação... têm uma
mentalidade rationalists.
87
mercador, citar um textq das Escrituras apenas para
se servir da autoridade do Deuteronômio (XVI, 19) e
recomendar o uso da corrupção:
88
Calimala de Florença. O primeiro artigo ordena aos
membros da Arte a observância da fé católica e a co-
| laboração com as autoridades públicas na luta contra
os heréticos. O segundo enumera os dias de festas re
ligiosas que devem ser mantidos. O quinto fixa com
minúcia a participação da corporação nas cerimônias
religiosas solenes, onde esta deve ser representada. O
I décimo-quarto prevê as despesas de caráter religioso
que a corporação deve fazer: a manutenção de um certo
número de lâmpadas acesas na igreja de São João, o
pagamento da iluminação completa dessa igreja du
rante as festas solenes; esmolas especiais a serem da
das aos pobres e a distribuição três vezes por semana,
a esses mesmos pobres, de pão amassado com bom
f rumen to.
i Francesco Pegolotti, na introdução de seu famo-
' so Manual do comércio, recopiou os versos de Dino
■? Compagni:
89
Jas e, nos dias de festas, as sociedades comerciais da
vam dinheiro trocado a cada um de seus membros pa
ra ser distribuído aos pobres. Essas quantias eram re
gularmente registradas.
Na Itália, aliás, Deus recebia, quando da consti
tuição de uma sociedade comercial, uma parte na em
presa. Associado, Deus tinha uma conta aberta, rece
bia sua parte dos lucros, registrada nos livros sob o
título de “O Senhor Bom Deus”, “O Senhor Dome-
neddio”; e, em caso de falência, era pago prioritaria
mente quando da liquidação. Pode-se ver nos livros
de Bardi que em 1310 Deus recebe 864 libras e 14 soi
dos. Deus, isto é, os pobres que o representavam na
terra.
Por ocasião da assinatura de um contrato, era cos
tume tomar Deus como testemunha e fazer-lhe em si
nal de agradecimento uma oferenda chamada “Denier
à Dieu” na França, “Denaro di Dio” na Itália, “Gottes-
pfennig” na Alemanha (Dinheiro de Deus). Essa ofe
renda era distribuída aos pobres.
Já no fim do século XI, Pantaleone de Amalfi doa
portas de bronze fundidas em Constantin opla, onde
possui vastos interesses, ao Domo de sua cidade natal
e à basílica de San Paolo fuori le Mura, em Roma;
manda construir uma magnífica igreja sobre o Monte
Gargano, onde apareceu o arcanjo Miguel; funda um
hospital em Antioquia e restaura mosteiros em Jeru
salém.
Os atos de beneficência e as doações piedosas fei
tas pelos mercadores medievais são incontáveis. J. Les-
tocquoy enumerou em Arras vinte e três leprosários,
hospitais ou asilos fundados por famílias de mercado
res. Em Gand, o famoso hospital da Biloque é uma
fundação dos Uten Hove. Em Siena, o hospital de San
ta Maria della Scala foi dado como dote por todos os
grandes mercadores e banqueiros da cidade. Obra única
em seu gênero, os afrescos de Domenico di Bartolo de-
90
11
í!
il
por autores piedosos que mostrarão, por seu exemplo,
como se pode ir para o céu apesar ou através do co
mércio. No caso dos mercadores, santifica-se a sua pro
fissão.
Para esses grandes mercadores, a morte é também
a bora do arrependimento e, conforme as instruções
da Igreja, a da restituição a suas vítimas daquilo que
lhes tomaram indevidamente.
Remorso tardio, sem dúvida, e cujas conseqüên-
cias pesarão principalmente sobre os herdeiros encar
regados de proceder a tais reparações. Notamos tais
remorsos no caso de Boinebroke.
Mas, sem que se trate de restituições propriamente
ditas, inúmeros e consideráveis são os legados à Igre
ja, os estabelecimentos caritativos, feitos pelos mer
cadores em seus testamentos. Francesco di Marco Da-
tini da Prato, que foi um negociante metódico e áspe
ro no ganho2, deixa quase toda a sua fortuna, 75 mil
florins, para obras de beneficência.
O valor desses sentimentos e os motivos desses atos
piedosos e caritativos são certamente discutíveis.
92
Pode-se pensar igualmente que o medo da Igre
ja, que apesar de tudo dispunha de poderosos meios
de coerção temporal, deve ter inspirado muitos dos atos
aparentemente caritativos ou piedosos.
Notar-se-á sobretudo, como o fizeram eminentes
historiadores, quão decisivo foi no espírito dos mer
cadores o medo do inferno. Essa obsessão de quase
todas as pessoas da Idade Média parece ter acometido
especialmente os mercadores. Em meio à prosperida
de, na força da idade e do poder, as frases que a Igre
ja lhes repete, as imagens terríveis que os pregadores,
confessores e artistas agitam diante deles são facilmente
afastadas. Mas, quando chega a hora de acertar as con
tas, conhecedores dos veredictos implacáveis que po
dem sair de uma balança, imaginando de bom grado
manter Deus os seus registros como eles mantêm os
deles, ficam amedrontados diante de seu passivo.
Empenham-se então em fazer com que o fiel da ba
lança penda para o lado bom. Põem apressadamente
desse lado as doações, as restituições e, se necessário,
sua própria pessoa. Então, como no célebre tríptico
de Memling, no qual é pesado Tommaso Portinari, o
grande mercador de Bruges, cies fazem a balança pe
sar para o lado do Paraíso dos Justos.
Cabe a cada um avaliar o valor de tal sentimento
e de tal comportamento. Não se pode negar que o me
do do inferno seja uma forma do desejo fundamen-
lalmente cristão de alcançar a salvação e que a menta
lidade medieval, menos sensível que a nossa àquilo que
somos tentados a chamar de hipocrisia, tenha podido
admitir mais facilmente a coexistência de um grande
cinismo com uma profunda religiosidade.
93
XIII está ligada ao desenvolvimento urbano — ainda
que os vínculos entre as doutrinas catara, valdense, pa-
tarina e as classes urbanas tenham sido mal discerni
dos. Encontram-se muito mercadores entre os heréti
cos, principalmente no Languedoc, na Provença e na
Itália do Norte. É difícil precisar seu número, seu pa
pel, e mais difícil ainda avaliar os seus motivos. Parti
cipação na luta contra o poder eclesiástico, contra a
Igreja ligada à sociedade feudal? Por motivos econô
micos, políticos? Sob o efeito de motivos mais propria
mente religiosos?
Em todo caso, deve-se notar que no próprio seio
dessa classe de mercadores a influência cristã suscitou
muitas vezes reações de aversão ou medo em face do
dinheiro e do comércio. Mercadores — vimos alguns de
les — que renunciam aos seus negócios e ao mundo. Mais
ainda, filhos de mercadores em ruptura com a ativida
de e a psicologia paternas, Esse movimento pode levar
longe no itinerário religioso. À heresia, como Petrus Val
do; às fronteiras da heresia e da ortodoxia, como os Umi-
liali italianos, ordens de monges-operários, poderosos
na indústria de lanifícios, da qual talvez tenha partici
pado o Santo Homebon de Cremona. No interior da
Igreja, vamos encontrá-los no movimento franciscano,
com o próprio São Francisco. Mas chegamos aqui às
contradições dessa Ordem, à sua espiritualidade da po
breza, aos conflitos de consciência de seus membros. A
pobreza dos antigos ricos não é a mesma que a dos que
sempre foram pobres. Ideal para uns, ela permanece para
outros como uma certa maldição. E, nesse turbilhão do
mundo franciscano, enquanto uns, ligados às velhas es
truturas econômicas, permanecerão fiéis à idéia da po
breza absoluta até cair nas heresias, outros, em contato
com as cidades, com o movimento comercial, aceitarão
mais facilmente tolerar e justificar a atividade do mer
cador, a propriedade, o dinheiro — sob a condição de
permanecerem “pobres em espírito”.
94
V. Evolução da atitude da Igreja para com os
mercadores.
95
2. A Igreja e a revolução comercial — Não admi
ra ver a Igreja modificar sua atitude para com os mer
cadores ao mesmo tempo que procura libertar-se da
sociedade feudal. Roberto Lopez mostrou o papel de
sempenhado pelos moedeiros no sucesso de Gregório
VIL Em sua luta contra a influência do feudalismo so
bre a Igreja, a Reforma gregoriana precisou buscar alia
dos no mundo do dinheiro e do comércio; precisou do
apoio dos mercadores, a nova potência. Lembremos
as intervenções desse papa em favor destes últimos.
Mas uma parte do mundo clerical permanece estreita
mente ligada ao feudalismo e à sua ideologia. Seus re
presentantes tardios continuarão por longo tempo a
retomar os textos contra os mercadores, a invectivar
contra o dinheiro, como São Bernardo, todo imbuído
do espírito feudal e rural e como aqueles pregadores
que se opuseram ao seu século — é o caso de um tal
Jacques de Vitry.
Entretanto a hierarquia eclesiástica inclinava-se ca
da vez mais para a adoção do mercador. Reconhecia,
em primeiro lugar, sua impotência diante dele, e logo
veio a precisar de sua ajuda, de seu dinheiro, de sua
atividade. G. Le Bras falou da “usura a serviço da Igre
ja”.
Sobretudo, o papado, como vimos, bem cedo não
podia mais prescindir da ajuda dos grandes banquei
ros italianos, e por toda parte bispos e abades recor
reram aos grandes mercadores e cambistas locais. Não
é exagero pensar que estes, numa sociedade impreg
nada pela religião, fizeram pressão sobre os clérigos
para obter da Igreja reabilitação e justificação. A Igreja
canonizou mercadores tal como canonizava, por polí
tica, membros de dinastias reais.
Ou melhor, a Igreja acabou bem cedo participan
do desse movimento. Indíretamente, por intermédio
de seus banqueiros — como no famoso truste de alú-
men que une no século XV a Santa Sé ao Banco Me-
96
dici. E mesmo diretamente. Por certo, as práticas usu-
rárias eram especialmente interditas aos clérigos, mas,
assim como os mosteiros, durante a Alta Idade Mé
dia, tinham conseguido desempenhar o papel de esta
belecimentos de crédito, os estabelecimentos dos aba
des e dos bispos que possuíam capitais suficientes exer
ciam, desprezando as interdições, a função deempres-
tadores e usurários. Tolerados com frequência, eles
agiam por vezes em plena luz do dia. Embora a Igre
ja, rica sobretudo em bens prediais adquiridos na cri
se do feudalismo e da economia rural, tenha deixado
aos laicos o papel preemiuente no desenvolvimento ca
pitalista, viu-se, por exemplo, a Ordem dos Templá-
rios, no século XIII, converter-se num dos maiores ban
cos da cristandade e a Ordem Teutônica, grande co
merciante de lã, manter por exemplo um corretor em
Flandres por volta de 1400. Com mais flexibilidade do
que com relação a outras evoluções, a Igreja passou
do compromisso com o feudalismo ao compromisso
com o capitalismo.
97
teiro, seja por afeição carnal, seja porque o convívio
íntimo com os mercadores os havia convencido de que,
mesmo desobedecendo a certas prescrições da Igreja,
eram bons cristãos. Um leitor geral da Ordem fran-
ciscana, tomando no começo do século XIV a defesa
dos mercadores, contesta que o empréstimo a juros seja
ilícito, porque, diz ele,
98
do um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo,
podemos nos perguntar se até mesmo em sua hostili
dade eia não acabou por servi-lo involuntariamente.
A condenação da usura, de certas formas dc emprés
timo a juros, levou os mercadores a aperfeiçoar os seus
métodos, a recorrer a sutilezas. O desenvolvimento da
letra de câmbio, documento capital na ascensão da clas
se mercantil, encontra sua fonte no desejo de obe
decer à Igreja substituindo uma operação de crédito
que ela reprova por uma operação de câmbio que ela
tolera.
99
O bom mercador é aquele que limita seus horizontes,
evita as ocasiões de pecado ao circunscrever seu raio
de ação.
5. Os mercadores e o Renascimento — Terá sido
talvez mais para fugir a essa atmosfera rarefeita do que
para livrar-se de um jugo que vimos ter sido suave que,
na aurora do Renascimento, alguns grandes mercadores
procuraram uma evasão fora da Igreja, fora da men
talidade religiosa tradicional?
Quando o culto do poder, do indivíduo, da virtü
se elabora, o grande mercador vê nele um trampolim
para a sua necessidade de dominação, prospecção e des
coberta.
Uns favorecerão esse Renascimento intelectual
que, satisfazendo às necessidades de suas fortes per
sonalidades, lhes permitirá ser humanistas sem afastar-
se de uma Igreja à qual estão ligados por uma piedade
ainda medieval e pelo sentido de seus interesses, pois
ela pode ser, e com frequência o é, um poderoso alia
do social. Os Mediei, depois de haver animado e fi
nanciado o Renascimento platônico em Florença, da
rão à Igreja um Leão X, humanista e papa.
Outros irão juntar-se à Reforma e lhe trarão aque
la espiritualidade do êxito na qual se encontra, por ve
zes, a estranha aliança entre o mundo e o céu, a reli
gião e os negócios, Deus e o mercador.
No século XVI, porém, a atitude religiosa do mer
cador, para além das condições locais, será uma ques
tão de opção individual.
E, sobretudo talvez, o mercador tomará consciên
cia de que a economia não pertence ao domínio da Igre
ja. Esta, que, na Idade Média, confundiu às vezes, suas
exigências morais com teorias positivas, confessa pe
nosamente que não pode ter uma doutrina econômica
e que efetivamente não a tem. É difícil para ela, de
pois de seu esforço totalitário medieval em abarcar o
conjunto das atividades humanas, aceitar as renúncias
100
e as distinções impostas pela evolução material e inte
lectual. Ora, o Renascimento impõe um novo salto ao
processo de laicização, que os séculos XII e XIII já
haviam acelerado. No século de Maquiavel, a econo
mia e a religião exigem estar separadas, tal como a mo
ral e a política. Há sempre católicos que são mercado
res, haverá cada vez menos mercadores católicos.
101
CAPÍTULO IV
O papel cultural
I. Os mercadores e a laicizaçiio
da cultura
103
estudo sobre a instrução do mercador e seu papel na
história da educação. Até agora, só dispomos de in
formações esparsas sobre um assunto capital: as esco
las Laicas medievais.
Pode-se pensar que bem cedo os burgueses, vale
dizer, cssencialmente os mercadores, obtiveram o di
reito de abrir escolas e dele usaram. Mas isso depende
dos lugares, e talvez um melhor conhecimento das con
dições escolares esclarecesse o avanço desta ou daquela
região em matéria de organização comercial.
Já em 1179, existem escolas comunais em Gand,
e a liberdade de ensino — conquistada a despeito da
forte resistência da Igreja — foi solenemente reconhe
cida na cidade pela condessa Matilde e pelo conde Bal-
duíno IX em 1191. De um modo geral, se a Igreja con
seguiu monopolizar o ensino “superior” e uma parte
do ensino “secundário”, teve, por outro lado, de re
nunciar ao ensino primário. Era nasparvae scolae ou
scolae minores — em Ypres, por exemplo, era permi
tido a qualquer um abri-las em 1253 — que os filhos
da burguesia comerciante recebiam as noções indispen
sáveis à futura profissão.
Era sobretudo em quatro domínios que essa in
fluência da classe dos mercadores sobre o ensino de
via fazer-se sentir: na escrita, no cálculo, na geografia
e nas línguas vivas.
104
de uma nova sociedade. Na diversificação das escritas
que então se produz, ao lado da escrita de Chancela
ria, elegante, beni-cuidada, feita para documentos so
lenes, da escrita notarial, ao mesmo tempo chicaneira
e abreviada, é preciso conceder um lugar à parte à es
crita comercial, clara e rápida, exprimindo ‘‘energia,
equilíbrio e gosto”. Ela atende às crescentes necessi
dades da contabilidade mercantil, da escrituração, da
redação de documentos comerciais. Escrever tudo, es
crever logo, escrever bem, eis a regra número um do
mercador. Um genovês, no final do século XIII, acon
selha: “Sempre deves lembrar-te de registrar por es
crito tudo o que fazes. Escreve-o imediatamente, an
tes que saia do teu espírito”. E um anônimo florenti-
no do século XIV diz: “Não se deve ser preguiçoso ao
escrever”, (“allo scrivere non si puo essere tardo}.
“Scripta manent” continua sendo ainda mais verda
deiro para o mercador do que para qualquer outro.
Graças a ele, a escrita, a escrita caprichada e prática,
a escrita útil e corrente, assume um lugar de primeiro
plano nas escolas primárias.
105
filho de uni funcionário da alfândega da República de
Pisa em Bejaia, na África. É no nmndo cristao-mu-
çulmano do comércio, em Bejaia, no Egito, na Síria,
na Sicilia, onde empreende viagens dc negócios, que
ele se inicia em matemática — ciência que os árabes
tomaram emprestada aos hindus. Em sua obra, ele in
troduz o emprego dos algarismos arábicos, o zero —
inovação capital na numeração por posição — opera
ções com frações, cálculo proporcional. Levando mais
longe suas pesquisas, publica em 1220 uma Prática da
geometria. No final da Idade Média, em 1494, F. Lu
ca Pacioli escreve a sua famosa Summa de Arithmeti
cal resumo do conhecimento aritmético e matemático
do mundo do comércio, estendendo-se especialmente
na contabilidade de entrada dupla. Na Alemanha, após
1450, é difundido outro manual, o Método de cálculo
de Nuremberg.
106
mercador que partia para o estrangeiro, vários trata
dos ensinavam, por exemplo, “o que se deve saber
quando se vai à Inglaterra”, como indicava Giovanni
Frescobaldi, mercador-banqueiro florentino, ou “o que
deve saber um mercador que se dirige a Catai”, ou se
ja, à China, como escrevia em página famosa Fran
cesco di Balduccio Pegolotti, corretor dos Peruzzi,
107
1338: número dos habitantes, dos bairros, das paró
quias, das corporações e de seus membros, número dos
negócios mais importantes, montante dos impostos, or
çamento das finanças públicas. O veneziano Marian
Sanudo tentará também, no século XV, efetuar uma
avaliação numérica da potência veneziana. Assim, ao
lado dos documentos oficiais, recenseamentos e listas
fiscais, a literatura histórica alimenta — ainda que os
dados sejam por vezes errôneos — a precária estatísti
ca medieval. Observou-se o fato impressionante de que
“a historiografia florentina do século XIV é monopólio
quase exclusivo dos negociantes: Dino Compagni, Gio
vanni e Matteo Villani, Giovanni Frescobaldi, Dona
to Velluti, Marchionc di Copo Stefani ■— autores des
sas crônicas precisas, escritas a cada geração, funda
das em dados reais, nas quais, mesmo sendo partidá
rio, o autor não se contenta com palavras — são ho
mens de negócios”. Dessa maneira, ao lado dos cro
nistas atentos unicamente aos fatos políticos e religio
sos, nasce uma categoria de historiógrafos preocupa
dos com o econômico.
108
Francesco di Balduccio Pegolotti, corretor dos Peruz-
zi em Famagusta, Bruges e Londres, e Giovanni di An
tonio da Uzzano; O livro das mercadorias e usos dos
diversos países (El libro di mercaiantie ei iisanze de pae-
si), atribuído a Lorenzo Chiarini; e uma obra veneziana
anônima, Tarifa e conhecimento dos pesos e medi
das das regiões e países que se dedicam ao comér
cio através do mundo (Tarifa zoé noticia dy pexi et me-
sure di Ivoghie e tere ches'adovra marcadantia per ií
mundo).
Toda essa bagagem intelectual, toda essa apare
lhagem cultural segue caminhos divergentes daqueles
da Igreja: conhecimentos técnicos profissionais, e não
teóricos e gerais; senso da diversidade, e não do uni
versal, levando, por exemplo, ao abandono do latim
em favor das línguas vulgares; procura do concreto,
do material, do mensurável,
Até mesmo a influência do rápido desenvolvimen
to comercial sobre o recrutamento universitário inquie
ta e descontenta a Igreja. As faculdades mais freqüen-
tadas são as que conduzem a profissões laicas, ou semi-
laicas, mais lucrativas: a Faculdade de Direito e a de
Medicina. A primeira forma os notários, que se tor
naram cada vez mais necessários no século XIII em fun
ção do desenvolvimento dos contratos comerciais. A
segunda desemboca naquela profissão que não raro
constitui um misto de médico e boticário, ou mesmo
merceeiro, desfrutando freqüentemente de uma situa
ção privilegiada na sociedade burguesa.
109
ler. Um calendário regulado por festas de datas mó
veis era eminentemente inadequado para o negocian
te. O ano religioso começava numa data variável en
tre 22 de março e 25 de abril. Os mercadores tinham
necessidade de pontos de partida, referências fixas para
seus cálculos e para estabelecer seus orçamentos. En
tre as feslas litúrgicas, eles escolheram uma secundá
ria, a da Circuncisão, e fizeram com que suas contas
começassem e terminassem em 1? de janeiro e em 1?
de julho.
A Igreja também determinara as horas de acordo
com as estações do ano e suas respectivas preces. Ma-
tinas, Primas e Angelas.regulavam-se pelo Sol e va
riavam ao longo do ano. Os sinos respondiam aos qua-
drantes solares. O mercador tinha necessidade de um
quadrante racional, dividido em doze ou vinte e qua
tro partes iguais. Foi ele que favoreceu a descoberta
e a adoção dos' relógios de campainha automática e re-
gulardFlorença teve esses relógios desde 1325, Milão
cm 1335, Pádua em 1334, Gênova cm 1353, Bolonha
em 1356, Siena em 1359. Já desde 1314, Caen possui
o seu “grande relógio”, cuja presença é assinalada por
uma inscrição: “Porque assim a cidade me aloja/ Neste
ponto para servir de relógio/ As horas eu farei soar/
Para o povo comum alegrar.” Doravante, já não era
pelo sino da Igreja que se regulava a vida das pessoas,
mas pelo relógio comunal, laico. Ã hora dos clérigos
sucedia a hora dos negociantes.
110
na — aprendizagem que os filhos recebiam na loja pa
terna ao sair da escola primária, junto a associados ou
a confrades no estrangeiro —, e esse ensino prático re
servado aos filhos de tnercadores-banqueiros mostra
como a mobilidade social não foi, no mundo dos ne
gócios medieval, tão grande quanto por vezes se afir
mou.
A impossibilidade de proporcionar a seus filhos,
nas escolas religiosas, uma formação técnica apropria
da e, sobretudo, bem cedo, o desejo de manifestar sua
posição social pela segregação escolar, levou os mer
cadores a apelar para preceptores, a fazer ministrar au
las particulares em domicílio aos seus filhos.
112
Aliás, com a riqueza, com a educação, com a freqüen-
tação das obras de arte no curso de suas viagens, mui
tas vezes os mercadores adquiriram não só o desejo
do luxo, como o gosto pelas coisas belas. É uma clien
tela, como acabamos de ver, que se faz cada vez mais
exigente, porque cada vez mais requintada.
Os ricos mercadores que dominam as cidades,
quando abrem um concurso público para a realização
de uma obra de arte destinada à sua cidade, como, por
exemplo, os florentinos, que puseram em concurso a
decoração das portas do Batistério, buscaram muito
menos encontrar o artista que executasse o trabalho
ao melhor preço do que descobrir aquele cuja obra fos
se a mais bela. Quando comparamos a Bargello os mo
delos de Donatello e de Ghiberti, aprovamos de bom
grado a escolha estética dos grandes burgueses floren
tinos.
Muitas vezes, porém, não se trata apenas, para
os mercadores, de cumprir uma função artística tal co
mo, pela beneficência, eles cumpriam uma função so
cial. Trata-se também, em muitos casos, de controlar
os poderosos meios de influência sobre o povo — con
trole da literatura para inspirar poemas, dos panfle
tos favoráveis à sua pessoa, à sua profissão, à sua po
lítica; controle da arte, cujos temas devem responder
aos seus interesses e às suas aspirações; meio, acima
de tudo, de contentar o povo dando-lhe obras para ad
mirar. espetáculos para se divertir, evitando que ele
se interesse em demasia pela política ou reflita sobre
sua condição social. Poderoso instrumento de “diver
são” que faz do mecenato dos mercadores uma conti
nuação, por exemplo, da política patrícia e imperial
romana, dá ao povo panem et circenses. Essa política
do mecenato foi levada ao extremo pelas “senhorias
mercantis” do século XV, destacando-se por tal con
duta a senhoria dos Mediei. Lourenço, o Magnífico,
soube utilizá-la magnificamentc.
113
Não admira, pois, que a obra artística dos mer
cadores mecenas tenha provocado às vezes a cólera po
pular. Durante as revoltas e os movimentos revolucio
nários, um dos primeiros cuidados do povo amotina
do era destruir a casa dos ricos, símbolo de sua domi
nação. Savonarola explicou muito bem sua ação ico
noclasta, dirigida contra a política artística dos Medi
ei, expressão de sua opressão. O vandalismo revolu
cionário foi, já na Idade Média, uma atitude política,
resposta do povo à política de seus senhores, que, de
resto, pouco se preocuparam cm proporcionar-lhe edu
cação artística.
Aliás, só excepcionalmente os ricos mercadores
atribuíam aos artistas por eles empregados uma certa
consideração. Apenas os poetas, eruditos e filósofos,
sobretudo no século XV, foram cumulados por alguns
deles com presentes e honrarias. Na maior parte do
tempo, os mercadores não os consideravam senão co
mo domésticos, quando muito como artesãos cujas
obras compravam a exemplo de outras mercadorias.
O trabalho dos pintores, dos arquitetos e dos estatuá-
rios era visto como simples trabalho manual — e, por
tanto, desprezado. O título de mestre que eles usavam
significava tão-somente “mestre de obra”, “mestre ar
tesão”. Já no século XII, os jograis, a serviço da bur
guesia mercantil endinheirada, tinham o pungente sen
timento de sua dependência, e o autor de um poema
em louvor aos mercadores confessa humildemente que
só lhes fazia o elogio coagido e forçado, já que, sem
o mercador, o jogral morrería de fome. Se muitos ar
tistas, notadamente os humanistas do século XV, se
inscreveram de bom grado na domesticidade das gran
des famílias mercadoras — precursores, neste particu
lar, dos escritores-cortesãos da era monárquica —, al
guns deles tiveram plena consciência de sua situação
de trabalhadores e assalariados. Como Stamina, que
em Florença teve uma parte ativa no Tumulto dos
Ciompi e em seguida foi obrigado a exilar-se.
114
III. A cultura burguesa
115
neira dissimulada, e detectar essas intenções ocultas sem
cair no abuso de explicações fantasistas não é tarefa
menos difícil para os sociólogos da arte. Terá sido um
movimento de oposição popular que os pintores tos-
canos da segunda metade do século Xí V quiseram ex
primir ao reabilitar o estilo gótico tradicional e insis
tir nos temas do retiro dos eremitas no deserto, do mau
ladrão da Crucifixao, da Ressurreição de Cristo? Ver
nisso temas protestatórios e revolucionários continua
sendo, pelo menos na situação atual de nossos conhe
cimentos, algo conjctural e arriscado.
Por fim, é importantíssimo notar que o gosto da
burguesia mercantil nem sempre foi original. No co
meço, quando a falta de educação artística obrigava
os novos-ricos a adotar o gosto das classes dominan
tes tradicionais e mais tarde quando os mercadores,
como vimos, se tornaram cada vez mais desejosos de
ingressar na nobreza, suprimir as distâncias entre a an
tiga aristocracia e a nova que eles queriam constituir,
as tendências artísticas burguesas não se distínguiram
das da nobreza e da Igreja. Para tornar-se nobre,
afirmou-se, o melhor meio era, antes de mais nada,
adotar o “gênero de vida” nobre. Que domínio, me
lhor que o da literatura e da arte, oferecia aos merca
dores o ensejo para essa assimilação? Foi aí que eles
logo puderam imitar as maneiras nobres. Sabemos que
Gênova foi “o centro de difusão da poesia provençal
na Itália”. Membros das maiores famílias de merca
dores genoveses — um Calega Panza no, um Lucche-
to Gattilusio — cantam e rimam em provençal, naquele
dolce stil nuovo no qual se reconheceu uma das for
mas mais aristocráticas, mais requintadas e mais “es
tetas” da poesia. Um negociante veneziano, Bartolo
meo Zorzi, aprisionado em Gênova, dedica uma par
te de seus lazeres forçados a justas poéticas com o ge-
novês Bonifacio Calvo.
A poesia cortês, na qual se viu a fina flor da arte
de uma sociedade senliorial decadente, não tardou a
116
ser cultivada pela burguesia mercantil. Assinalamos a
participação do patriciado de Arras no movimento poé
tico da cidade no século XITI. Mathieu le Tailleur, de
uma rica família de banqueiros, dedica-se à poesia co
mo todos os mercadores que se apaixonam por um no
vo gênero literário, o “desafio” poético, discussão poé
tica de casuística amorosa onde se indaga, por exem
plo, se é “mais triste ver casar-se uma pessoa a quem
se ama ternamente ou vê-la morrer”. Os mercado
res são os grandes animadores das sociedades literá
rias que encontramos no século XV tais como os
“Puys” normandos, as “Câmaras de retórica” flamen
gas ou os círculos platônicos florentinos. Se na poesia
épica se observa numa Canção de Gesta — as Infân
cias Vivien — o antagonismo entre a psicologia nobre
e guerreira e a mentalidade mercantil e utilitária, em
Henri de Mes as duas podem coabitar na mesma per
sonagem, como o mercador Thierry, de quem o du
que da Lorena faz seu genro e herdeiro.
117
tadinos ricos a construir aquelas casas guarnecidas de
torres cujos restos impressionantes ainda se podem ver
em San Gimignano. Essas torres, com efeito, são um
sinal manifesto da assimilação da rica burguesia à no
breza. Transformados em proprietários de bens pre
diais, os mercadores de Messina mandam fortificar sua
quinta, como Perrin Anchier em Ladonchamps entre
1313 e 1325, como os Hesson no domínio de Brieux
por volta de 1318. Da Itália, esse costume passa à Ale
manha: em Regensburg, no século XV, quarenta ca
sas burguesas têm suas torres. Mas em breve o palá
cio dos patrícios perde muitos de seus aspectos milita
res. Em florença, contudo, o medo das revoltas e dos
ataques inesperados, e o desejo de garantir o segredo
da atividade interna dos mercadores conservaram por
longo tempo nos palácios dos Mediei, dos Strozzi, es
se aspecto severo que guarda algo da fortaleza. Em Sie
na, muitos palácios de grandes famílias de mercado
res, como o palácio Salimbeni, ainda são munidos de
ameias. Mas por toda parte as ricas residências patrí
cias se abrem para o exterior através dc janelas, gale
rias ou loggia nas quais os mercadores ofereciam aos
seus concidadãos o teatro suntuoso de suas cerimônias
familiais: núpcias e funerais — como a loggia dos Gui-
nigi cm Lucca. A busca da elegância se manifesta so
bretudo nos admiráveis pátios interiores que constituem
uma das primeiras manifestações do espírito do Re
nascimento. Foi em Veneza, livre dos temores da guerra
ou do motim no interior de seus muros, que a busca
dos materiais, da leveza, da pompa das fachadas se ma
nifestou com mais brilho, como o testemunha ainda
hoje a e&lraordinária ornamentação de mármore e pe
dra ao longo das margens do Grande Canal.
118
celebravam suas cerimônias privadas, se faziam enter
rar e cujas paredes faziam ornamentar com afrescos:
capela dos Peruzzi e dos Bardi em Santa Croce, dos
Scrovegni em Pádua, por onde se estendeu a arte de
Giotto, dos Strozzi e dos Pazzi em Santa Maria No
vella, capela Brancacci em Santa Maria dei Carmine,
onde Masaccio revolucionou a arte do afresco, capela
do palácio Mediei, onde Benozzo Gozzoli representou
os membros da ilustre família em seu afresco dos reis
magos, coro de Santa Maria Novella, onde Ghirlan
daio nos conservou os traços puros e serenos das mu
lheres da família Tornabuoni.
Foi, com efeito, na arte do retrato que a clientela
mercantil exerceu uma profunda influência sobre a pin
tura. Sentimentos piedosos e o gosto pelo prestígio im
pelem igualmente o mercador a se fazer representar nes
ses quadros. O mercador partilha com o nobre e com
o clérigo de posição elevada o desejo de aparecer sob
os traços do doador e de ali se fazer imortalizar. Às
vezes, ele entra na ação do quadro como no tríptico de
Memling do Juízo Finai — Tommaso Portinari e sua
mulher sendo pesados pelo arcanjo São Miguel. Mais
que todos os outros, porém, os mercadores querem im
por aos seus contemporâneos e à posteridade sua pre
sença eternizada. Não lhes basta fazer-se representar
às vezes — o que ocorre raramente — com os atribu
tos de sua função, como o famoso pesador de ouro
com sua mulher, no ambiente quase sempre luxuoso
de seu interior burguês, como no célebre quadro de Van
Eyck, Arnolfim e sua mulher. Eles que não têm, co
mo os nobres, os bispos e os abades, armaduras, em
blemas, mitras ou báculos que simbolizem sua classe
social, são mais atentos à reprodução exata de seus tra
ços. O realismo do retrato, que responde a outras cau
sas da evolução da pintura, reflete também o desejo
do mercador comanditário de ser reconhecido graças
à semelhança. Não quer ser confundido com outro,
119
do mesmo modo que afirma em seus negócios a origi
nalidade e o valor de sua assinamra comercial.
Nesses quadros, ele gosta de ser representado no
cenário doméstico, com os móveis opulentos e os ob
jetos cotidianos, e esse cenário, a um tempo familiar
e rico, extrapola para a pintura religiosa. As Virgens
da Anunciação, os Santos em seu retiro, são represen
tados como burgueses, e burgueses em ambientes in
teriores, como São .Jerônimo, que trocou a gruta da
pintura primitiva por um gabinete de mercador huma
nista. Gosta também de apresentar-se cercado pela fa
mília, sobretudo pelos filhos, garantia da continuida
de de sua casa, de seus negócios, de sua prosperida
de, Arnolfini é pintado ao lado de sua mulher grávi
da, detalhe realista mas também símbolo de fecundi-
dade, tal como a Madona de Monterchi de Piero della
Francesca.
120
parável. Por mais esplêndidos que sejam os homens,
que nada têm a invejar aos nobres e aos dignitários
da Igreja, são sobretudo as mulheres que criam uma
demanda considerável. Bem cedo seu luxo salta aos
olhos e as tornam alvo das zombarias dos poetas, das
invectivas dos moralistas e dos pregadores.
O contraste entre a simplicidade dos costumes dos
Velhos Tempos e o luxo desenfreado do presente torna-
se um dos leitmotive dos escritores florentinos. É Dante
que põe na boca de seu bisavô, falando de um casal
burguês de outrora:
121
rada que acreditaríamos ser mais um quadro ou um
crucifixo precioso; seus cabelos são cobertos de ouro
e prata; e no entanto, interiormente, é tudo podridão.
O testamento de Jeanne Socquel descreve sua coleção
de casacos com capuz de veludo de todas as cores, seus
agasalhos de pele, vestidos, suas cintas ornadas de pé
rolas. As leis suntuárias contra a invasão do luxo, ins
piradas por eclesiásticos austeros, velhos rabugentos,
nobres invejosos, são impotentes. É em vão que Feli
pe, o Belo, proíbe em 1314 os burgueses e burguesas
de usar casacos de pele caros. É em vão que a comuna
de Pistóia em 1332-1333 toma medidas contra a toale
te feminina, o luxo dos presentes, os banquetes nup
ciais, a pompa dos funerais; é em vão que Santa Ca
tarina de Siena inspira medidas semelhantes em Sie
na; é em vão que, após a Grande Peste, Florença ten
ta pôr um freio ao recrudescimento da munificiência
dos sobreviventes; é em vão que Veneza institui uma
magistratura especial encarregada de regulamentar o
luxo. E não nos esqueçamos da arte gastronômica, que
progride com o requinte do gosto, a adoção de pratos
e receitas estrangeiras — os numerosos manuais que
chegaram até nós o testemunham. Vemos em Ruão,
no fina! do século XV, a importância crescente do con
sumo do açúcar e das frutas mediterrâneas para a rica
burguesia mercantil.
O comércio beneficiou-se frequentemente desse lu
xo. Citemos duas mercadorias cuja procura se tornou
considerável nos séculos XIV e XV: os casacos de pele
vindos do Norte e da Rússia através das cidades han-
scáticas ou dos estabelecimentos comerciais italianos do
mar Negro e o açafrão requerido pela tinturaria, perfu
maria, medicina e cozinha, cuja importância na Baixa
Idade Média acaba de ser demonstrada por A. Petino.
122
fluência quase sempre exterior da clientela mercantil
sobre o desenvolvimento artístico? A sociologia esté
tica responde afirmativamente e é bem provável que
renove muitos problemas. Suas hipóteses, no entan
to, ainda permanecem arriscadas.
Frederic Antal pretendeu reconhecer nos temas e
estilos da pintura toscana do século XIV e começo do
XV as oposições que compreendem os antagonismos
entre a classe da rica burguesia mercantil e a classe de
mocrática, da pequena burguesia artesanal, episodica-
mente apoiada pelo proletariado operário e pelos cam
poneses. A primeira faz triunfar suas opiniões no do
mínio da pintura, com Giotto. A humanização da re
ligião, o aburguesamento da pintura da vida de Cris
to e da Virgem, o esmorecimento do espírito francis
cano por um artista que se tornou ele próprio um rico
e duro capitalista e escreveu um poema contra a Po
breza, o surgimento de um estilo familiar, narrativo,
descritivo, eis o que revelaria a influência do espírito
burguês na pintura giotesca e pós-giotesca, pintura das
ricas famílias florentinas. Após 1348, ao contrário, o
retrocesso econômico e político dessa classe restabele
ce, durante um quarto de século aproximadamente, a
voga do estilo gótico, simbólico, lírico, estilo da rea
ção democrática. M. Meiss tentou também, analisan
do a pintura florentina e sienense posterior à Peste Ne
gra, detectar no abalo da sociedade e especialmente da
rica burguesia mercantil o aparecimento de um novo
estilo, que se afasta de Giotto e procura temas de ins
piração diretamente relacionados com os acontecimen
tos e as reações afetivas a respeito destes.
Foi ao nível mais profundo das próprias estrutu
ras da pintura que Pierre Francastel procurou relacio
nar pintura e sociedade na Itália do século XV. O apa
recimento de uma visão e de uma representação nova
da realidade — o espaço do Renascimento —, o que
se chama tradicionalmente de a descoberta da perspec-
123
tiva, só sc explica em função dos progressos técnicos,
econômicos e intelectuais da grande burguesia. Vimos
como ela venceu materialmente o espaço, como se em
penhou em compreendê-lo, dominá-lo e medi-lo, Foi
essa domesticação do espaço pela classe mercantil que
ocorreu também na pintura italiana do Quattrocento,
cujos artistas dependem da clientela burguesa. F. Bran-
cacci, que incumbe Masaccio de pintar os revolucio
nários afrescos da capela dos Carmine, é um dos pri
meiros cônsules* do mar de Florença, um homem que
esteve no Egito, homem de vastos horizontes. Assim
se alargam também os horizontes da pintura. O espa
ço pictórico está doravante à altura do homem, feito
para ser medido e percorrido, enquanto a perspectiva
gótica corresponde a uma visão plana, sincrônica, eter
na, a perspectiva de Deus. Ainda aqui, aparecem lai-
cizaçào, humanização e racionalização e o mercador
é largamente responsável por elas.
124
gadores de moral burguesa? O gosto do detalhe rea
lista e familiar trazido por uma classe apegada ao ce
nário material da vida e sensível às aparências, o gos
to do cômico, da ironia um pouco pesada e mesmo do
burlesco; e a farsa medieval, mais que popular, é tal
vez burguesa com sua zombaria das condições sociais
e sua crítica, nào raro pouco caridosa, do próximo,
í Uma literatura de pessoas que vivem lado a lado, co
mo concorrentes e que sc observam, se espiam, se de
nigrem.
125
Em todo esse movimento culminando no que se
chamou de espírito moderno, tanto na moral como na
arte, os mercadores nem sempre se contentaram em
participar indiretamente através de suas encomendas.
Muitos deles foram pessoalmente amadores cultos e
até mesmo poetas e filósofos. Lourenço, o Magnífi
co, é o exemplo mais notável.
Deparamos aqui com o problema das gerações,
evocado mais acima. O mercador humanista é também,
com muita frequência, um mercador que se interessa
menos pelos negócios, subtrai às suas empresas comer
ciais o que destina aos seus interesses artísticos, gasta
em luxo o que antes investia em mercadorias. Sinal de
decadência, talvez, mas ainda aqui o papel cultural é
simultaneamente causa e efeito. Embora acentue o de
clínio dos negócios, muitas vezes ele só se desenvolve
porque os negócios já haviam declinado. Então, o di
nheiro acumulado é investido em bens culturais, e es
sa nova direção das despesas, imposta pela crise eco
nômica, limitação dos horizontes comerciais, inadap
tação da organização profissional a novas condições,
pode ser também uma especulação não só intelectual
como material. Muitas vezes, o mecenato dos grandes
mercadores-banqueiros se inscreve numa política cul
tural das cidades destinada a reanimar sua economia.
É no momento em que as rotas comerciais se desviam
delas, em que suas riquezas acumuladas deixam de ser
empregadas nas empresas tradicionais, que as cidades
gastam o seu tesouro para adornar-se com magnificên
cia. Mas esse último esplendor não é apenas a peça fi
nal de um fogo de artifício que vai se apagar. É tam
bém, por vezes, o ponto de partida de uma política tu
rística destinada a atrair peregrinos e viajantes — fon
te de novos ganhos. Uma reconversão econômica —
parcial.
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IV. Mercadores e civilização urbana
127
o chefe da mais rica família de banqueiros sienenses,
Orlando Bonsignori, foi mobilizado. Arnaldo Peruz-
zi, o grande mercador florentino, é morto numa bata
lha contra o imperador Henrique VII. Grandes homens
de suas cidades, os ricos mercadores eram assim cha
mados a representá-las até nas mais trágicas circuns
tâncias. No começo do século XIII, após Bou vines, um
Uten Hove figura entre os reféns entregues por Gand
a Felipe Augusto, e conhecemos também o famoso epi
sódio, no século XIV, dos burgueses de Calais.
Com o tempo, porém, os mercadores se recusa
ram a ser soldados. A extensão de seus negócios já não
lhes permitia perder tempo na guerra, e a extensão de
sua riqueza permitia-lhes resgatar-se. Foi a vez do re
curso aos mercenários, o sistema da ccndatta. O mer
cador faz negócios e paga o condottiere, que faz a guer
ra. O mercador converteu-se num civil.
Quando se organizaram, no final da Idade Mé
dia, os Estados centralizados, o mercador, embora te
nha encontrado um espaço mais amplo para a sua ati
vidade, nem sempre transportou para essas grandes pá
trias nascentes o amor pela pequena pátria urbana. Lo
go após a reconquista do reino da França por Carlos
VII aos ingleses, muitos foram os mercadores “cola
boradores” que precisaram, devolver os bens adquiri
dos ilicitamente ou virar a casaca. M. MoLIat traçou
a figura de um deles: Jehan Marcei, de Ruão. E al
guns anos depois o famoso Jacques Coeur, tesoureiro
do rei da França, não hesitava em passar ao inimigo,
o rei de Aragão, informações secretas cuja transmis
são podia favorecer os negócios do grande financista.
Até esse limite extremo da traição, os grandes capita
listas inauguravam sua carreira de potência internacio-
nalista, súditos de um reino do dinheiro que só conhece
as fronteiras quando estas favorecem seu interesses.
Mas, ao longo de toda a Idade Média, o amor dos
mercadores por suas cidades manifestou-se sobretudo
128
no zelo que puseram cm embelezá-las. Por vezes, mes
mo, como na Alemanha, eles impõem à cidade a sua
planta. H. Planitz escreveu que no século XIII “nâo
só o mercado devia ser o centro da cidade como a ci
dade inteira se construía a partir desse ponto cen
tral”. Wiener Neustadt é um exemplo notável dis
so. Por toda parte, os mercadores contribuíram para
a ornamentação monumental de sua cidade. Primei
ro por suas residências, os belos palácios que já evo
camos. Em seguida, pelas edificações profissionais c
corporativas. Mercados de Ypres e de Bruges, Poor-
terslogie de Bruges, Loggia della Mercanzia de Siena,
sala do Collegio della Mercanzia de Penigia, Casa de
1’Arte della Lana em Florença e, sobretudo talvez, Or
San Michele e sua guarnição de estátuas dos padroei
ros dos mercadores. Ainda pelos monumentos religio
sos que fizeram construir ou ornamentar, pela esplên
dida decoração de afrescos que fizeram pintar, pela
ornamentação de capitéis como o dos mercadores de
pastel-dos-tintureiros da catedral de Amiens, de me
dalhões como os do campanile de Florença, verdadei
ra enciclopédia dos ofícios e de vitrais como a elegan
te nave da capela de Jacques Coeur em Bourges. Mas
também por todos aqueles edifícios comunais onde se
desdobrava seu poder político. Prefeituras e torres de
vigia de Flandres, palácios comunais e campaniles da
Itália: é preciso pensar neles no Campo de Siena, diante
dos 102 metros da Torre del Mangia e do deslumbra
mento do Palazzo Pubblico, no interior do qual Am-
brogio Lorenzetti glorificou o governo dos merca
dores no mais vasto ciclo pictórico profano da Idade
Média.
É preciso ver aí, nessa decoração urbana que che
gou até nós, a representação do grande mercador da
Idade Média. Observemo-lo atravessar uma praça de
Florença, no célebre afresco da capela Brancacci. Sun
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tuosamente vestido, ele avança altivamente entre o ce
nário monumental da Florença do Quattrocento, que
tanto lhe deve, e o edificante grupo de São Pedro cu
rando Tábita. É aí que devemos saudá-lo uma última
vez, entre sua glória e sua vaidade.
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