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Universidade hoje

Apresentação de Machado de Assis — J, Teixeira


A literatura hispano-americana — J. Joset
A civilização helenística — P. Petit
A literatura grega — F. Robert
A religião grega — F. Robert I
A psicologia social — J. Maisonneuve
O inconsciente — Z-C. Filíou.x
A crítica literária — P. Brunel, D. Madeiénal, J.-M. Gliksohn e D. Cotity
Sociologia do direito — H. Lévy-Bruhl
As teorias da personalidade — S. Clapíer- Valladon
Literatura brasileira — L. Siegagtw Picchio
A crítica de arte — A. Richard
As primeiras civilizações do Mediterrâneo — J. Gabriel-Leroux
A economia dos Estados Unidos — P. George
A idéia de cultura — V. Hell
História da educação — R. Gal ]
História dos Estados Unidos — R. Rémond
As empresas japonesas — Masaru Yos hi mor i
Os celtas — V. Knaa
Epistemologia genética — J. Piaget
Descartes — G. Pascal
A produtividade — Z Fourasfié
Aristóteles — L. Millet
História da imprensa — P. Albert e F. Terrou e
O som — J.-J. Matras
História da psicanálise — R. Perron
A Contra-Reforma — N. 5. Davidson
Mercadores e banqueiros da Idade Média — Z L. Goff
O socialismo utópico — Z Zíivs
História de Bizâncio — P. Le merle

Em preparação:
A vida na Idade Média — G. d'Haucourt

■t

!
Universidade hoje

MERCADORES
E BANQUEIROS
DA IDADE MÉDIA

Jacques Le Goff

Martins Fontes
Titulo original: MARCHANDS ET BANQUIERS
AU MOYEN AGE
publicado por Presses Universitaires de France,
na coL Que Sais-Je?
Copyright Presses Universiiaires de France, 1986
Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
para a presente edição.

edição brasileira: dezembro de 1991

Tradução: Antonio de Pádua Danesi


Revisão da tradução: Lilian Escorei de Carvalho
Revisão tipográfica: Andréa Stahe]
Sadika Osmann

Produção gráfica: Geraldo Alves


Composição: Márcia Cristina Jacob

Capa — Projeto: M.F.

Dudos Internacionais de Catalogação na FubJicaçío (C1P)


(Câmara Brasileira do Lhro+ SP» Brasil)

Le Goff» Jacques.
Mercadores e banqueiras da Idade Média / Jacques
Le Goff ; [tradução Antonio de Pádua Danesi ; revisão
da tradução Lilian Escorei de Carvalho]. — São Paulo ;
Martins Fontes, i99L. — (Universidade hoje).

I. Banqueiros — Europa — História 2. Comerciantes


— Europa — História 3. Idade Media — História i. Tí­
tulo Série.

CDD-3âO.ü9C2
91.2904 ‘332.IO9Q2

Indices para catálogo sistemático-:


L Banqueiros e bancos i Idade Média i História 332-L09Q2
2. Idade Média : Banqueiros e bancos : Hislóría 332.10902
3. Idade Média : Mercadores e comércio : História 380.0902
4. Mercadores e comércio : Idade Média : História 380.0992

ISBN 85.336.0031-3

Todos os dírei/os para o Brasil reservados à


LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677
01325 — São Paulo — SP — Brasil
Sumário

introdução .................................................................. 1

CAPÍTULO I — A atividade profissional .... 7

I. A revolução comercial, 7
II. O mercador itinerante, 9
UI. O mercador sedentário, 17
IV, Progressos dos métodos nos séculos XIV e XV, 26

CAPÍTULO II — O papel social e político .. 41

í. Papel social dos grandes mercadores, 41


II. Aspectos da dominação política da burguesia
mercantil, 55

CAPÍTULO III — A atitude religiosa e moral 71

I. A Igreja contra os mercadores: a teoria, 71


II. A Igreja e os mercadores: a prática, 77
III. A mentalidade do mercador, 84
IV. A religião do mercador, 88
V, Evolução da atitude da Igreja para com
os mercadores, 95

CAPÍTULO IV — O papel cultural ................................. 103

I. Os mercadores e a laicização da cultura, 103


II. O mecenato dos mercadores, 111
III. A cultura burguesa, 115
IV. Mercadores e civilização urbana, 127

Bibliografia ............................................................. 131


ÜFRJ/Crcn/IFCS
RED, AL-TO ..AÇÃO gíUGEM

CoH.ffíHQk
R.F.Ci. EilB. DATA

FORN.
vl tS PAtS
NF 1

OFRJ - IFCS - Dept.0 de História


Programa do Pós-Graduação em
História Social

CNPq Proc. Mestrado


Proc. n.c...................... Doutorado
Fornecedor: ...
Nota Fiscal: 51

Data da Aquisição;...................................
Introdução

O esboço aqui apresentado é de ambições modes­


tas, Excluímos o menos certo, o que se apoia em um
número demasiado reduzido de documentos e traba­
lhos, o que continua sendo mais objeto de controvér­
sias entre eruditos e historiadores do que conquista —
embora provisória — da ciência e o que permanece nos
limites explorados apenas por alguns raros pioneiros
da investigação histórica. Com pesar tivemos de sa­
crificar o exame dos problemas à exposição do presente
estado de nossos conhecimentos.
Cumpre, porém, no limiar deste pequeno livro,
explicar, se não justificar, essas limitações, colocar esses
problemas, evocar as orientações seguidas pelos pes­
quisadores.
Em primeiro lugar, optamos por um contexto geo­
gráfico específico: o da Europa cristã. Esperamos, com
isso, ganhar em coesão, mas seguramente perdemos
em horizontes. Renunciar a falar do mercador bizan­
tino e muçulmano era evitar tratar de gente pouco co­
nhecida, de personagens pertencentes a civilizações di­
ferentes ou mesmo hostis. Mas o comércio, embora
suscite conflitos, constitui um dos vínculos maiores en­
tre as áreas geográficas, civilizações e povos. Mesmo
no tempo das Cruzadas as trocas comerciais — base
para outros contatos — não se interromperam entre
a crisrandade ocidental e o mundo muçulmano. Me­
lhor ainda, pode-se pensar ter sido a formação do Islã
que, longe de separar o Oriente do Ocidente, reuniu
os dois mundos criando, por seus grandes centros ur­
banos de consumo, um intercâmbio de produtos que
está na origem da renovação comercial do Ocidente
bárbaro. Em todo caso, é certo que o mercador vene-

I
ziano construiu sua fortuna no contato com Bizâncio
c que as grandes cidades marítimas da Itália foram bus­
car no domínio greco-muçulmano, de Ceuta a Trebi-
zonda, de Bizâncio a Alexandria, o essencial daquilo
que fez a sua riqueza. O mercador cristão, cuja ativi­
dade é posterior à do bizantino ou à do árabe, não lhes
tomou emprestados métodos, mentalidades, atitudes?
Esse abandono do mundo oriental, que teria sido
imperdoável se tivéssemos estudado o comércio me­
dieval, julgamos poder aceitá-lo ao tratar do merca­
dor. Segunda limitação deste pequeno trabalho: o co­
mércio propriamente dito — com o estudo de seus mer­
cados, rotas, instrumentos, produtos e evolução — não
foi tratado em si mesmo. Ó que interessa aqui são os
homens que se dedicaram a ele. Sob este aspecto, o
mercador cristão, conquanto sua atividade se asseme­
lhe forçosamente à de seus congêneres orientais, está
mergulhado num contexto político, religioso e cultu­
ral totalmente distinto. Ora, empenhamo-nos especial­
mente em recolocá-lo no âmbito de sua cidade, Esta­
do, sociedade e civilização. O que ele fez de sua rique­
za, de seu poder, fora do campo econômico, reteve-
nos particularmente a atenção.
Ainda seria preciso escolher entre esses homens.
Aqui, foram os pequenos que tivemos de sacrificar:
mercadores varejistas, usurários de prazo curto e ju­
ros elevados, vendedores ambulantes. A escassez de do­
cumentos pessoais que os mencionam e a dificuldade
do historiador em distinguir figuras individuais entre
eles determinaram essa escolha, assim como o desejo
de mostrar sobretudo os* personagens a quem o pode­
rio econômico permitiu desempenhar um papel de pri­
meiro plano tanto na política ou na arte como no mer­
cado. São, pois, os negociafores, os mereatores, que
vamos mostrar. Homens de negócios, como se diz, e
a expressão é excelente porque exprime a extensão e
a complexidade de'seus interesses: comércio propria­

2
mente dito, operações financeiras de todos os tipos,
especulação, investimentos imobiliários c prediais.
Contentamo-nos aqui em evocar, para nomeá-los, os
dois pólos de sua atividade: o comércio e o banco.
Aliás, para designar os mais poderosos, os mais repre­
sentativos entre eles não empregou a própria Idade Mé­
dia o termo mercadores-banqueiros? Ora, esse tipo está
ligado à fase de desenvolvimento da economia da Eu­
ropa cristã, a partir do século XI. Renunciamos, pois,
a falar dos mercadores da Alta Idade Média. Solução
cômoda, dir-se-á. Evitamos assim a necessidade de ex­
por as múltiplas teses que se confrontam nesse domí­
nio; evitamos falar de seu número e de sua importân­
cia — ínfima para alguns, grande para outros —, de
sua natureza — mercadores especializados ou de se­
gunda categoria, independentes ou ligados a príncipes
e a estabelecimentos religiosos, simples ambulantes ou
capitalistas de largos horizontes —, de sua nacionali­
dade — judeus ou indígenas —, e finalmente do pro­
blema capital de sua origem obscurecido pelas teorias
— sobrevivência do passado, do mundo greco-romano,
aventureiros itinerantes, proprietários prediais que se
põem a investir capitais no comércio.
Em todo caso, desse modo podíamos delimitar
mais facilmente a última alternativa: plano cronoló­
gico ou plano lógico? O que lería sido impossível se
partíssemos das origens medievais afigurou-se legíti­
mo num contexto temporal em que, depois do que se
chamou justamente de “revolução comercial”, as con­
dições fundamentais da vida do grande mercador cris­
tão permanecem relativamente estáveis. Optamos, pois,
por uma exposição sistemática na qual — sempre pro­
curando os vínculos entre as diferentes atitudes de um
mesmo homem — se considerou o mercador-banqueiro
primeiro em seu gabinete ou no mercado — isto é, em
sua atividade profissional —, depois em face do no­
bre, do operário, da cidade, do Estado — isto é, em

3
seu papel social e político —, em seguida, diante da
Igreja e de sua consciência — ou seja, em sua atitude
religiosa e moral — e, enfim, perante o ensino, a arte,
a civilização — vale dizer, em seu papel cultural.
Tais opções nâo causaram apenas remorsos. Fo­
ram acompanhadas de arrependimentos cujos traços,
que pareceram legítimos ou mesmo necessários, encon­
traremos mais adiante.
Se nos ativemos unicamente ao mercador cristão,
não dissimulamos nem a amplitude geográfica de sua
atividade, nem os problemas profissionais ou morais
suscitados pelos contatos com o mundo cismático, he­
rético ou pagão. Não esquecemos que o mercador cris­
tão da Idade Média Linha horizontes mais amplos que
os de muitos eruditos modernos que o estudaram. Se
Marco Polo é um caso excepcional ou, antes, extre­
mo, numerosos foram os seus confrades que percor­
reram em pensamento todas as rotas por onde ele real­
mente se aventurou.
Não quisemos tampouco evocar o mercador ou
o banqueiro sem explicar de que se compunha sua vi­
da profissional. Do comércio esboçamos, pois, os mé­
todos, a organização, o contexto em que o comerciante
evolui.
Não nos esquecemos igualmente de que, à som­
bra dos poderosos personagens tratados, os humildes,
os pequenos constituíam o tecido conjuntivo de um
mundo que não se podia compreender sem eles, e o
leitor poderá perceber na filigrana o seu rosto anôni­
mo. No mais, foi preciso questionar, a exemplo de emi­
nentes historiadores, a que correspondia a distinção
entre grande e pequeno mercador na Idade Média, se
ela era redutível à oposição entre comércio atacadista
e varejista.
Do mesmo modo, se deixamos de lado, em seu
aspecto histórico, o problema da origem do mercador
cristão na Alta Idade Média, também não eludimos

4
o problema conexo de suas gerações —• novos-ricos ou
filhos de ricos — nem o das preocupações fundiárias
dos homens de negócio medievais.
Finalmente, mesmo no interior de um contexto
geográfico e cronológico que fundamentalmente não
mudou, levamos em conta tanto a diversidade do es­
paço — o mercador italiano não é o hanseático —
quanto a evolução no tempo — o pioneiro do século
XII não é o novo-rico do século XIII, as crises do sé­
culo XIV produzem um tipo de negociante diferente
daquele engendrado pela prosperidade do século XIII,
o contexto político do principado ou da monarquia na­
cional modela um personagem distinto daquele surgi­
do no contexto comunal dos séculos precedentes. É im­
portante não se perder de vista que o desequilíbrio por­
ventura encontrado em favor do mercador italiano se
explica pela excepcional abundância da documentação
a ele concernente, pelo número e qualidade das publi­
cações que dele se ocuparam, pelo caráter “pioneiro”
de seus métodos e pela amplitude de suas perspecti­
vas, que fazem dele um personagem exemplar — des­
de que se tenha em mente que em ouiros lugares, de
modo geral, se está longe de ter avançado tanto quan­
to ele.
Esperamos, então, que o leitor seja indulgente e
coloque em primeiro plano, entre as figuras que per­
mitem compreender a cristandade medieval, entre aque­
les “estados do mundo” que o pessimismo da Idade
Média moribunda colocará na Dança Macabra — ao
lado do cavaleiro, monge, universitário e camponês —,
o mercador, que fez a história como eles e com eles,
e com outros que, desejamos, possam obter um dia,
segundo a beta expressão de Lucien Febvre o “direito
à história”.

5
CAPÍTULO I
A atividade profissional

I. A revolução comercial

A revolução da qual a cristandade medieval foi


palco, entre os séculos XI e XIII, está ligada a alguns
fenômenos gerais com relação aos quais é difícil de­
terminar em que medida foram causas ou efeitos.
Em primeiro lugar, q, fim das invasões. Germa­
nos, escandinavos, nômades das estepes eurasiáticas
e sarracenos deixam de penetrar no coração da cris­
tandade, de afluir às suas margens. Aos combates su­
cedem as trocas pacíficas — aliás, modestamente nas­
cidas em meio às próprias lutas — e esses mundos hostis
vão revelar-se como grandes centros de produção ou
consumo: aparecem os grãos, agasalhos de pele, es­
cravos do mundo nórdico e oriental que atraem ao mes­
mo tempo os mercadores das grandes metrópoles do
mundo muçulmano, de onde afluem, por sua vez, os
metais preciosos da África e da Ásia.
IA paz, relativa, sucede aos ataques, às pilhagens,
e a segurança permite uma renovação da economia e,
sobretudo, graças à menor periculosidade das rotas ter­
restres e marítimas, uma aceleração, ou antes, uma re­
tomada do comércioj Melhor ainda: com a diminui­
ção da mortalidade por acidentes e a melhoria' das con­
dições de alimentação e das possibilidades de subsis­
tência, produz-se um incomparável surto demográfi­
co que fornece à cristandade consumidores, produto­
res, uma mão-de-obra, um reservatório onde o comér­
cio vai buscar os seus homens. E, quando o movimen­

7
to se inverte, quando a cristandade ataca por sua vez,
o grande episódio militar das Cruzadas já não passa
de uma fachada épica á sombra da qual se intensifica
o comércio pacífico.
A essas mudanças está ligado — fenômeno capi­
tal — o nascimento ou o renascimento das cidadesi'Se-
jam elas novas criações ou velhas aglomerações, é o
seu caráter novo e importante que determina o prima­
do da função econômica. Etapas de rotas comerciais,
articulações entre as vias de comunicação, portos ma­
rítimos ou fluviais, seu centro vital fica ao lado do ve­
lho castrum feudal, do núcleo militar ou religioso, é
o novo bairro das lojas, do mercado, do trânsito das
mercadorias., É ao desenvolvimento das cidades que
se ligam os progressos do comércio medieval; é no con­
texto urbano que cumpre situar o crescimento do mer­
cador medieval.
As diferentes regiões da cristandade não conhe­
cem com a mesma intensidade essas manifestações ini­
ciais da revolução comercial. ^Individualizam-se três
grandes centros, aos quais a atividade comercial da Eu­
ropa tende a concentrar-se. Como os dois pólos do co­
mércio internacional se localizam no Mediterrâneo e
no Norte (domínio muçulmano e domínio eslavo-
escandinavo), é nos postos avançados da cristandade
localizados na rota desses dois centros de atração que
se constituem duas franjas de poderosas cidades co­
merciais: na Itália e, em menor grau, na Provença e
na Espanha; e na Alemanha do Norte) Daí a predo­
minância, na Europa medieval, de dois tipos de mer­
cadores; o italiano e o hanseático, com seus domí­
nios geográficos, métodos e personalidades peculiares.
Mas,(entre esses dois domínios, há uma zona de con­
tato cuja originalidade está no fato de bem cedo acres­
centar à sua função de troca entre as duas áreas co­
merciais uma função produtora e industrial) é a Eu­
ropa do Noroeste — Inglaterra do Sudeste, Norman-

8
dia, Flandres, Champagne, regiões do Mosa e da Bai­
xa Renània. Essa Europa do Noroeste é o grande cen­
tro do comércio de tecidos, é — com a Itália do Noite
e do Centro — a única região da Europa medieval em
relação à qual se pode falar de indústria. Juntamente
com os gêneros do Norte e do Oriente, esses produtos
def indústria têxtil européia são as mercadorias que o
hanseático e o italiano vão buscar nos mercados e nas
feiras da Champagne e de Flandres. Isso porque, nessa
primeira fase de nascimento e desenvolvimento, o mer­
cador medieval é sobretudo um mercador itinerante^

II. O mercador itinerante

1. As rotas — Ao longo das rotas terrestres e aquá­


ticas por onde transporta suas mercadorias, ele se de­
para com muitos obstáculos.
Primeiro, obstáculos naturais. Em terra, são as
montanhas a transpor através de estradas precárias do
que por vezes se costumou dizer, mais largas do que
as estradas lajeadas ou cimentadas da Antigüidade, mas
ainda assim muito rudimentares. Se pensarmos que as
grandes rotas do comércio Norte-Sul devem transpor
os Pireneus e sobretudo os Alpes — mais permeáveis
ao tráfego, mas onde o volume muito maior de mer­
cadorias multiplica as dificuldades —, perceberemos
desde já tudo o que o transporte dc um carregamento
de Flandres para a Itália, por exemplo, representa de
esforços e de riscos. E não se deve esquecer que, se
em certos trechos se utiliza o que subsistiu das vias ro­
manas, se em alguns itinerários se encontram verda­
deiras estradas, na maioria das vezes a estrada medie­
val, através dos campos e das colinas, é apenas “o lu­
gar por onde se passa”. Juntem-se a isso as insuficiên­
cias do transporte. Talvez os progressos da atrelagem
a partir do século X tenham sido uma das condições

9
técnicas favoráveis, se não necessárias, ao desenvolvi­
mento do comércio) mas, em caminhos nãopavimen-
tados, os resultados desses aperfeiçoamentos foram
bastante limitados. Assim, ao lado das pesadas carro­
ças de quatro rodas, dos veículos mais leves de duas
rodas, os animais de carga — mulas e cavalos —, com
suas selas e seus fardos, foram os agentes de transporte
normais.(Considere-se ainda a insegurança, os bandi­
dos, senhores ou cidades ávidos por amealhar recur­
sos através do simples roubo ou do confisco mais ou
menos legalizado dos carregamentos dos mercadores?
E, sobretudo, talvez — porque mais freqüentes e mais
regulares —, as taxas, os direitos, os pedágios de todo
tipo cobrados por inúmeros senhores, cidades e comu­
nidades para a travessia de uma ponte, um vau ou pa­
ra o simples trânsito em suas terras — em tempos de
extrema divisão territorial e política.
■ Quando essas taxas são cobradas como preço de
uma manutenção efetiva da estrada, a despesa ainda
pode parecer legítima, e, a partir do século XIII, se­
nhores, mosteiros e sobretudo burgueses constroem
pontes que facilitam e aumentam um tráfego do qual
eles retiram direta e indiretamente recursos conside­
ráveis; mas às vezes é “à custa dos usurários”, dos pró­
prios mercadores, que se constroem tais obras de ar­
te, como a ponte suspensa, a primeira do gênero, que
abriu pelo Gothard, em 1237, o caminho mais curto
entre a Alemanha e a Itália. Só no final da Idade Mé­
dia é que uma política de obras públicas, da parte dos
príncipes ou dos reis no contexto da organização dos
Estados centralizados, e uma isenção sistemática dos
pedágios atenuarão tais despesas.lÁs dificuldades, aos
riscos incertos acrescentam-se, pois, para o mercador,
essas despesas inevitáveis que tornam tão oneroso o
transporte terrestre. Para os produtos raros e caros —
escravos, tecidos de luxo e sobretudo “especiarias miú­
das”, expressão que abrange toda uma série de mer-

10
cadorias de preço elevado por um volume pequeno,
empregadas na toalete, na farmácia, na tinturaria e na
cozinha —, o custo do transporte não passava de 20
a 25% do preço inicial, mas, para o que A. Sapori cha­
mou de “mercadorias pobres", pesadas e volumosas
por um valor menor — grãos, vinho, sal —, tais des­
pesas chegavam a 100%, 150%, às vezes até mais, de
seu valor original,

2, ,4v vias fluviais — Por causa disso, o merca­


dor medieval preferia as vias aquáticas. A condução
de madeira pelos rios, o transporte por barcos a vela
das outras mercadorias se praticam em grande escala
onde quer que a navegabilidade dos rios o permita. Três
redes assumem, nesse partictdar, uma importância ím­
par por sen tráfego. A Itália do Norte, onde o rio Pó
e seus afluentes constituíam a maior via de navegação
interior do mundo mediterrâneo, comparável — guar­
dadas as devidas proporções — à via atual dos gran­
des lagos americanos. Avia rodaniana, prolongada em
direção ao Mosela e ao Mosa, foi até o século XIV o
grande eixo do comércio Norte-Sul. A rede, enfim, dos
rios flamengos, completada a partir do século XII por
toda uma rede artificial de canais ou vaarlen e de
barragens-eclusas ou overdraghes, é para a revolução
comercial do século XIII o que será para a revolução
industrial do século XVIII a rede dos canais ingleses.
É preciso mencionar também a via Reno-Danúbio, de
crescente importância no fim da Idade Média, ligada
ao desenvolvimento da Alemanha média e meridional.
Em todo esse trabalho de equipamento, os mercado­
res, antes dos príncipes, desempenharam por longo
tempo um papel preponderante.

3, As vias marítimas — Mas é o transporte por


mar, meio por excelência do comércio medicvpHjrt^r
nacional, que vai fazer a riqueza dos grandés^tercti
ícre^que nos ocupam particularmente, Ainda aqui, as
dificuldades continuam sendo grandes.
Há, em primeiro lugar, os riscos de naufrágios e
de pirataria, Esta sempre campeou em grande escala.
Obra de marinheiros privados a princípio, verdadeiros
empresários da pirataria, que a praticavam alternada-
mente com o comércio, e concluíam, com relação ao
seu exercício, verdadeiros contratos onde asseguravam
sua parte do lucro ao honrosos comerciantes que finan­
ciavam suas empresas. Ação das cidades e dos Estados
também, em virtude do direito de guerra ou de um di­
reito de naufrágio* que dava margem a várias interpre­
tações, e, embora esse jusnaufragiibem cedo tenha si­
do abolido no Mediterrâneo (ainda que os reis angevi-
nos venham a restabelecê-lo no fim do século XIII, para
grande escândalo dos italianos), permanece por mais
tempo no domínio nórdico, praticado especialmente pe­
los ingleses e bretões ao longo de uma tradição ininter­
rupta que conduzirá à guerra de corso dos tempos mo­
dernos. Só as grandes cidades marítimas — sobretudo
Veneza — conseguem organizar comboios regulares es­
coltados por navios de guerra.
Ressalte-se também a pequena capacidade dos na­
vios. Sem dúvida, a revolução comercial e o crescimen­
to do tráfego fazem aumentar a tonelagem dos navios
mercantes, Mas as pesadas koggen hanseáticas, adap­
tadas ao transporte das mercadorias volumosas e pe­
sadas, e as grandes galeras comerciais italianas — par­
ticularmente venezianas —, conquanto atingissem mil
toneladas no fim da Idade Média, representavam no
total apenas uma fraca tonelagem. A maior parte ti­
nha uma capacidade menor: as koggen hanseáticas que
transportavam a lã inglesa e o vinho francês ou ale­
mão no mar do Norte e no Báltico, as carracas geno-

* Direito de aquisição de destroços ou bens abandonados por nau­


frágio. (N. R.)

12
vesas e espanholas carregadas de especiarias, as velo­
zes naus venezianas que iam buscar o algodão nos por­
tos da Síria e de Chipre raramente excediam 500 tone­
ladas.
Havia enfim o problema da rapidez da navega­
ção. A partir do século XIII, a difusão de invenções
como o leme de cadaste, a vela latina, a bússola, os
progressos da cartografia — conquistas em que, ao lado
da contribuição oriental e extremo-oriental, devemos
destacar a contribuição dos marinheiros e cientistas bas­
cos, catalães e genoveses — permitem reduzir ou eli­
minar os grandes entraves à rapidez das viagens marí­
timas da Idade Média, que eram a ancoragem duran­
te a noite, a interrupção durante o inverno e a cabota­
gem ao longo das costas. Ainda em meados do século
XV, o ciclo completo de uma operação mercantil ve­
neziana dura dois anos inteiros. Esse ciclo constitui-
se de — transporte de especiarias de Alexandria a Ve­
neza, reexpedição dessas especiarias para Londres, re­
torno de Londres com um frete de estanho, reexpedi­
ção desse estanho para Alexandria e recarregamento
de especiarias para Veneza. O mercador precisa ter pa­
ciência e capital. Mas o fato é que o custo do trans­
porte por mar é infinitamente menos elevado do que
por terra; 2°/ü do valor da mercadoria para a lã ou a
seda, 15% para os grãos, 33% para o alúmen.
Sigamos com Roberto Lopez e Armando Sapori
um grupo de mercadores que no final do século XIV
embarcam em Gênova com destino ao Oriente. O car­
regamento é constituído sobretudo de tecidos, armas
e metais. A primeira escala que se atinge, indo pela
costa ou pela Córsega, Sardenha e Sicilia, é Tunis; a
segunda, Tripoli. Em Alexandria, mercadorias de to­
dos os tipos — produtos da indústria local e sobretu­
do importações orientais — vêm engrossar a carga. Se
se estaciona nos portos sírios — São João de Acre, Ti­
ro, Antioquia —, é para transportar viajantes, pere­

13
grinos ou as mercadorias trazidas do Oriente pelas ca­
ravanas. Mas é Famagusta, na ilha de Chipre, o gran­
de entreposto das especiarias. Encontram-se ali “mais
especiarias que pão na Alemanha”. Em Latakia, no
ponto de chegada das rotas da Pérsia e da Armênia,
encontram-se também, segundo Marco Polo, “todas
as especiarias c tecidos de seda e coisa dourada da Ter­
ra”. Em Focéia, é o precioso alúmen que se embarca,
enquanto Quios é a escala dos vinhos e do mástique,
que serve tanto para a destilação de um licor muito
apreciado como para a preparação de uma pasta den­
tal bastante procurada. Bizâncio, em seguida, é uma
parada obrigatória na grande encruzilhada das rotas
do Levante. Depois, atravessando o mar Negro, vai-
se recolher em Caffa, na Criméia, os produtos da Rús­
sia e da Ásia, trazidos ao longo da rota mongol: tri­
go, pele, cera, peixe salgado, seda e sobretudo, talvez,
escravos. Muitos desses produtos não são levados pa­
ra o Ocidente pelos nossos mercadores, mas vendidos
em Sinope ou em Trebizonda. Os mais audaciosos po­
dem partir dali, escoltados até Sivas pela polícia tár­
tara, para Trabiz e para a índia, como Benedetto Vi­
valdi; ou para a China, por via terrestre através da Ásia
central ou por mar de Bassora ao Ceilào, como Mar­
co Polo.

4. As feiras — Mas no século XIII a grande meta


do mercador itinerante são as feiras da Champagne.
Essas feiras realizavam-se em Lagny, em Bar-sur-
Aube, em Provins e em Troyes, e sucediam-se ao lon­
go do ano; em Lagny, elas aconteciam em janeiro-
fevereiro, em Bar, em março-abril; em Provins,
realizava-se a feira de Maio em maio-junho, em Tro­
yes a feira de São João acontecia em julho-agosto, em
Provins, novamente, a feira de Santo Ayoul era em
setembro-novembro, e em Troyes, enfim, uma segun­
da vez, a feira de São Remígio realizava-se em novem­

14
bro-dezembro. As terras da Champagne eram assim
um fato capital. Havia lá um mercado quase perma­
nente do mundo ocidental. Desse modo, durante dois
ou quatro meses do ano, reina nessas cidades uma ani­
mação extraordinária que o trovador Bertrand de Bar-
sur-Aube descreveu numa primavera:

faz calor e o céu é claro,


A relva está vçtde e a roseira em flor.

Puseram-se a vagar os mercadores


Que trouxeram bens para vender.
Desde o raiar do dia,
Até a noite cair,
Não param de ir e vir,
Até que a cidade esteja repleta.
Fora da cidade se alojam nos prados,
Onde têm tendas e pavilhões fechados.

Para chegar lá, os mercadores fizeram uma lon­


ga e difícil viagem; os italianos que transpuseram os
desfiladeiros alpinos passaram cinco semanas na es­
trada. Precisavam, em primeiro lugar, dc alojamen­
to. A principio, construíam-se acampamentos provi­
sórios nas praças ou fora da cidade. Depois, os habi­
tantes alugavam aposentos ou casas aos mercadores.
Por fim, foram construídas para eles casas especiais
de pedras resistentes a incêndios, com grandes subter­
râneos abobadados para armazenar as mercadorias.
Mercadores e habitantes gozavam de privilégios
consideráveis, e a fixação e o desenvolvimento das fei­
ras estão intimamente ligados ao crescimento do po­
der dos condes da Champagne e ao liberalismo de sua
política.
Há, inicialmente, os salvo-condutos concedidos
em toda a extensão das terras condais. Em seguida,
a isenção de todas as taxas servis sobre os terrenos onde
se construíram alojamentos e estabelecimentos comer­
ciais. Os burgueses foram isentados das talhas e dos

15
foras em troca de taxas fixas resgatáveis. Os terráde-
gos e as banalidades foram abolidos ou limitados con­
sideravelmente. Esses mercadores não estavam sujei­
tos nem aos direito de represailles e de Marque, nem
ao direito de aubaine e de épcve^Os condes, sobretu­
do, asseguravam o policiamento das feiras, controla­
vam a legalidade e a honestidade das transações, ga­
rantiam as operações comerciais e financeiras. Criaram-
se assim funcionários especiais, os guardas das feiras,
funções públicas, mas frequentemente confiadas a bur­
gueses pelo menos até 1284, quando os reis da Fran­
ça, assenhoreando-se da Champagne, passaram a no­
mear funcionários da coroa. O controle das operações
financeiras e o caráter semipúblico dos cambistas con­
tribuíram, além das razões puramente econômicas, pa­
ra conferir a essas feiras um de seus aspectos mais im­
portantes, “o papel de uma clearing-house embrioná­
ria” — difundindo-se o uso de regular as dívidas por
compensação.
No inicio do século XIV, essas feiras começam a
declinar. Para tal declínio, procurou-se muitas causas:
a insegurança instaurada na França, no século XIV,
com a Guerra dos Cem Anos, o desenvolvimento de
uma indústria têxtil italiana provocando uma queda
— seguida de uma reorganização — do comércio de
tecidos flamengo, principal abas tecedor das feiras. Fo­
ram fenômenos que conduziram ao abandono da rota
francesa, Strata francigena, grande eixo que unira o
mundo econômico do Norte ao domínio mediterrâneo,
em proveito de duas rotas mais rápidas e menos dis­
pendiosas: uma rota marítima que, partindo de Gê­
nova e de Veneza, desemboca, pelo Atlântico, pela
Mancha e pelo mar do Norte, em Bruges e em Lon­
dres, e uma rota terrestre renana ao longo da qual se
desenvolverão nos séculos XIV e XV as feiras de Frank­
furt e de Genebra. Mas o declínio das feiras da Cham­
pagne está ligado, principalmen te, a uma transforma­

16
ção profunda das estruturas comerciais, que faz apa­
recer uma nova figura de mercador: o mercador se­
dentário, no lugar do mercador itinerante. Este era co­
nhecido como o “pé empoeirado” ao longo das estra­
das; doravante, ele dirige, de sua matriz, graças a téc­
nicas cada vez mais evoluídas e a uma organização cada
vez mais complexa, uma rede de associados ou de em­
pregados que torna inúteis tais deslocamentos.

111. O mercador sedentário

Certamente, essa organização e esses métodos co­


meçaram a desenvolver-se na aurora da revolução co­
mercial, mas é nos séculos XIV e XV que atingem o
apogeu e se generalizam de tal forma que agora se torna
necessário abordar esses novos tipos de mercadores se­
dentários, no centro de seus negócios.
Bem cedo, o mercador teve de procurar capitais
fora de seus próprios recursos na medida em que a am­
pliação e diversificação dos negócios determinavam tal
direção.
O problema do crédito, que mais adiante veremos
ter sido singularmente complicado para a cristandade
medieval em razão de preocupações religiosas e mo­
rais, foi resolvido de várias maneiras, das quais só po­
demos mencionar aqui as principais.
Houve, primeiro, o empréstimo sob suas múlti­
plas formas. Uma delas, particularmente importante,
foi a letra de câmbio, e mais adiante veremos a opera­
ção de crédito que ela representou. Mas, ao lado do
simples empréstimo, cumpre destacar o empréstimo
marítimo. Sua originalidade decorre do fato de o reem­
bolso do empréstimo estar ligado ao retorno do navio
são e salvo com o respectivo carregamento, salva eun-
te navi. Assim, esses empréstimos eram quase sempre
limitados a uma viagem ou, mais exatamente, a uma

17
ida-e-volta que se pode dizer ter constituído na Idade
Média a unidade de operação comercial marítima.

1. Contratos e associações — Houve, sobretudo,


diversos tipos de associação pelos quais o mercador,
saindo de seu isolamento, pôde estender a rede de seus
negócios.
Uma forma fundamental de associação foi o con­
trato de “eommenda", também chamado “societas
marts" em Gênova e "colleganiia" em Veneza. Os con­
tratantes apres'entavam-se como associados na medi­
da em que havia partilha dos riscos e dos lucros; no
mais, porém, suas relações eram as mesmas existentes
entre um emprestador e um devedor.
No contrato de “commenda" puro e simples, um
comanditário adianta a um mercador itinerante o ca­
pital necessário a uma viagem de negócios. Se houver
perda, o emprestador arca com todo o ônus financei­
ro e o devedor só perde o valor de seu trabalho. Se
houver lucro, o emprestador, sem sair de seu domicí­
lio, é reembolsado e recebe uma parte dos ganhos, em
geral três quartos do total.
Na commenda que se denomina mais específica­
mente societas ou collegantia, o comanditário que não
viaja adianta dois terços do capital, enquanto o deve­
dor contribui com um terço do capital e seu trabalho.
Se houver perda, esta é dividida proporcionalmente ao
capital investido. Se houver lucro, este é dividido meio
a meio.
Em geral, o contrato era concluído para uma via­
gem. Nele se especificava a natureza e a destinação da
empresa, ao mesmo tempo que algumas de suas con­
dições — por exemplo, a moeda na qual seriam pagos
os lucros —, ou se dava ampla latitude ao devedor,
que, com o tempo, foi adquirindo cada vez mais inde­
pendência.

18
Eis o texto de um desses contratos, concluído em
Gênova em 29 de setembro de 1163.

Tesiemunhas: Simone Bucuccío, Ogerio, Peloso, Ríbaldo di


Sauro e Genoardo Tosca, Stabile e Ansaldo Garraton for­
maram uma socteias na qual, segundo suas declarações, Sta­
bile trouxe uma contribuição de 8K liras, e Ansatdo, de 44
liras. Ansaldo leva esse capital, para fazc-lo frutificar, a Túnis
ou a qualquer lugar onde deve passar o navio que ele utiliza­
rá — a saber, o navio de Baldizzane Grasso e de Girardo.
Quando regressar, remeterá os lucros da partilha a Stabile
ou seu representante. Deduzido o capital, dividirão os lucros
meio a meio. Contrato realizado na casa do Capitulo, em
29 de setembro de 1163.
Ademais, Stabile autoriza Ansaldo a enviar esse dinheiro
a Gênova pela embarcação que lhe aprouver.

Para o comércio terrestre, os tipos de contratos


de associação eram mais numerosos, mas podemos
reduzi-los a dois tipos fundamentais: a compagma e
a sacie tas terrae, Os primeiros exemplos conservados
desses gêneros de contratos se referem aos venezianos
e recebem o nome particular de fraterna compaenia,
mas foram sobretudo os mercadores residentes nas ci­
dades do interior que os empregaram,

Na compagma, os contratantes estão intimamen­


te ligados entre si e compartilham riscos, esperanças,
perdas e lucros. Asocietas terrae assemelha-se à com­
menda. O emprestador é o único a correr o risco de
perda e os ganhos são geralmente divididos meio a
meio. Há, porém, maior flexibilidade na maioria das
cláusulas: as parles de capita! investido podem variar
muito; a duração da organização, em geral, não se li­
mita a um negócio, a uma viagem, mas define-se por
um certo período — um, dois, três ou quatro anos,
na maioria das vezes. Finalmente, entre esses tipos fun­
damentais da compagnia e da societas, existem nume­
rosos tipos intermediários onde se combinam diversos

19
aspectos dos dois. A complexidade desses contratos
expressou-se em documentos infelizmente muito lon­
gos para serem exemplificados aqui.

Em torno de alguns comerciantes, famílias e gru­


pos, desenvolveram-se organismos complexos e pode­
rosos aos quais se deu geralmente o nome de “com­
panhias”, no sentido moderno do termo1. As mais cé­
lebres e mais bem conhecidas foram dirigidas por ilus­
tres famílias florentinas: os Peruzzi, os Bardi, os Me­
diei. Mas é preciso assinalar, na esteira dos historia­
dores que as estudaram — e, em primeiro lugar, Ar­
mando Sapori —, que detectamos profundas modifi­
cações estruturais entre as companhias dos séculos
XIII-XIV e as do século XV, pelo menos no âmbito
italiano.
Tais sociedades se baseiam em contratos que vin­
culam os contratantes apenas pór uma operação co­
mercial ou por uma duração limitada. Mas a renova­
ção habitual de alguns desses contratos, a presença sem­
pre dos mesmos nomes numa vasta superfície econô­
mica, contribuindo regularmente com capitais consi­
deráveis em empresas de primeira importância, todos
esses vínculos comerciais tecidos em torno de algumas
cabeças fazem delas os chefes de organismos estáveis,
que ultrapassam o caráter efêmero das operações par­
ticulares e dos contratos que as definem.
Nos séculos XIII-XIV, essas verdadeiras casas co­
merciais são fortemente centralizadas, tendo à sua fren­
te um ou vários comerciantes que possuem uma rede
de sucursais e sào representados fora da matriz, onde
residem um ou mais dirigentes, por funcionários as­
salariados.

1. Mas elas estão muito distantes das sociedades modernas, que pos­
suem uma personalidade independente de seus membros.

20
No século XV, uma casa como a dos Mediei é des­
centralizada. Consiste numa combinação de associa­
ções independentes, com capital próprio, cada qual
com sua sede geográfica. Ao lado da matriz de Flo-
rença, estão as filiais: Londres, Bruges, Genebra, Lyon,
Avignon, Milão, Veneza, Roma, administradas por di­
retores que são só parcial e secundariamente funcio­
nários assalariados, pois, antes de tudo, são coman-
ditários à testa de uma parte do capital — é o caso dos
Angelo Tani, dos Tommaso Porlinari, dos Simone Ne­
ri, dos Amerigo Benci, etc. Os Medici de Florença só
são o elo de ligação entre todas essas casas porque têm
em cada uma delas capitais quase sempre majoritários
e porque centralizam as contas, as informações e a
orientação dos negócios. Mas basta um Lorenzo me­
nos atento que seu avô Cosme negligenciar os negó­
cios e as filiais tendem a ter vida própria; os conflitos
se desenvolvem no interior da firma; o edifício se de­
sintegra — ruína facilitada pelo número de pessoas do­
ravante interessadas no negócio, pois parece que da
participação passaram agora ao depósito. Se os depó­
sitos representam, de ora em diante, uma parcela im­
portante do capital, da reserva financeira da empre­
sa, esta se torna mais vulnerável devido às necessida­
des, hesitações, exigências e temores desses depositantes
que não têm, ao reclamar o seu dinheiro, os escrúpu­
los dos antigos participantes, unidos entre si pela soli­
dariedade dos laços familiares e dos vínculos da cola­
boração comercial.

Foi a partir dessas grandes sociedades, desses po­


derosos personagens, que se desenvolveram verdadei­
ros monopólios e o que já podemos chamar de car­
téis. Com efeito, afirmou-se terem sido todas as cor­
porações medievais cartéis que reuniam comerciantes
ou artesãos desejosos de suprimir em seu mercado ur­
bano a concorrência mútua e de estabelecer um mo­

21
nopólio. Tais afirmações não só carecem de provas no
que concerne à economia corporativa urbana como ten­
dem a introduzir num contexto inadequado dados que
na verdade só se aplicam ao comércio internacional,
Essas sociedades monopolistas aproveitaram-se fre-
qüentemente da política colonial de algumas cidades
ou Estados medievais, particularmente Gênova e Ve­
neza,
Os mais célebres desses cartéis foram provavel­
mente originados pelo comércio do alúmen — um dos
mais importantes produtos procurados pelo mercador
medieval, já que constituía uma das matérias-primas
indispensáveis à indústria têxtil, onde era empregado
como mordente. O essencial desse alúmen era produ­
zido nas ilhas ou no perímetro do mar Egeu, especial­
mente em Focéia, na Ásia Menor. Seu comércio
tornou-se monopólio genovês no século XIII, e, de­
pois que um comerciante de Gênova, Benedetto Zac-
caria, se fez pioneiro dessa empresa, uma poderosa so­
ciedade genovesa, a “maona” de Quios, onde se en­
contram praticamente todos os grandes nomes do co­
mércio genovês, dominou o mercado do alúmen no sé­
culo XIV e começo do século XV,
Após a conquista turca, o alúmen oriental desa­
pareceu quase por completo do mercado. Foi então que
se descobriram importantes jazidas no território pon­
tificai, perto de Civita Vecchia, em Tolfa, em 1461.
O governo pontifical logo confiou a exploração e a ven­
da do produto à firma dos Mediei. Nasce então uma
das mais extraordinárias tentativas de monopólio in­
ternacional na Idade Média. A Santa Sé destinou sua
parte de lucros ao financiamento da Cruzada contra
os turcos — que não se realizou. Ao mesmo tempo,
punia com a excomunhão todos os príncipes, cidades
e particulares que comprassem outro alúmen que não
o de Tolfa, concedia aos navios utilizados pelos Me­
diei para esse comércio o direito de usar o pavilhão

22
pontifical e lhes dava todo o seu apoio para obter, me­
diante pressões que chegaram ao envio de expedições
militares, o fechamento de outras minas secundárias
de alúmen existentes na cristandade ou a entrada de
seus proprietários no cartel — por exemplo, os reis de
Nápoles, donos de minas na ilha de Ischia. Esta foi
uma das maiores empresas dos Mediei.

2. Mercadores e poderes políticos — Podemos ver,


por esses exemplos, os laços que se teceram entre go­
vernos e grandes mercadores, sobretudo no final da
Idade Média, quando as necessidades dos príncipes se
tornaram maiores — e das quais falaremos a propósi­
to do poder político dos mercadores. Por enquanto,
nos contentamos em dizer que os empréstimos aos so­
beranos e às cidades, o recebimento dos impostos, a
participação nos empréstimos do Estado — como, por
exemplo, em Veneza e Gênova, onde os grandes mer­
cadores tomaram parte no estabelecimento de um fun­
do da dívida pública, entregando-se à especulação so­
bre esses verdadeiros “valores” —, constituíram nos
séculos XIV e XV uma parcela cada vez maior dos ne­
gócios dos grandes mercadores. A prosperidade de al­
guns grandes comerciantes italianos teve sua fonte, em
grande parte, nas operações financeiras e comerciais
que eles faziam em benefício do papado, uma das po­
tências econômicas da Idade Média — sobretudo no
século XIV, quando o papado de Avinhão, aumentan­
do o fisco pontificai, drenou para as caixas da Cúria
e das companhias italianas, principalmente florentinas,
que lhe serviam de banqueiros, uma parcela dos recur­
sos da cristandade. Além dos lucros propriamente fi­
nanceiros e comerciais dessas operações, os grandes
mercadores extraíam delas privilégios — isenção de ta­
xas, participação no governo — que tinham profun­
das repercussões em sua posição econômica. Era tam­
bém a época em que a legislação comercial se precisa­

23
va de tal forma que, garantindo mais estabilidade e se­
gurança nos negócios, favorecia primeiro o$ mercado­
res. Desde o começo da revolução comercial, vimos
os senhores e' os soberanos e partkularmente os pa­
pas, por cânones conciliares, concederem sua prote­
ção aos mercadores itinerantes, fornecer salvos-con-
dutos (uso que remontava à mais alta Idade Média,
quando as imunidades concedidas aos eclesiásticos já
os tornavam ‘‘comerciantes privilegiados”) e mandar
construir edifícios especiais para o alojamento dos mer­
cadores e de suas mercadorias — o mais célebre será
o fondaco dos mercadores alemães em Veneza.O su­
cesso das feiras, como vimos, fora grandemente faci­
litado pela proteção que a autoridade, do lugar onde
eram realizadas, concedia a seus participantes. Desen­
volvia-se uma'legislação comercial a princípio elabo­
rada pelos próprios mercadores, como, por exemplo,
a elaboração das leis no seio do famoso tribunal da
Mercanzia de Florença, que, segundo veremos, cons­
tituiría um dos fundamentos do poder político dos
grandes mercadores florentinos. Mais tarde, essa le­
gislação passou a ser desenvolvida em nível interna­
cional já com alguma penetração na legislação públi­
ca. No âmbito mediterrâneo pelo menos, os contratos
e litígios comerciais passaram ao primeiro plano e fi­
zeram proliferar um grande número de notários — es­
tes foram os auxiliares dos comerciantes, a quem deviam
grande parte da fortuna que sua profissão conheceu e
cujo papel histórico continuou até o nosso tempo, já que
seus arquivos são uma das mais ricas fontes de docu­
mentação sobre o mercador e o comércio medievais.
Aonde quer que vá o mercador, para lá também se diri­
ge o notário; na Armênia, Criméia, lá estão eles; vamos
encontrá-los também nas embarcações e vemos um de­
les, por exemplo, registrar um fato nas proximidades de
Creta em 16 de novembro de 1283, a pedido de merca­
dores genoveses que transportando mercadorias a ca­

24
minho de Chipre e da Armênia ficam furiosos porque
o capitão do navio, desprezando seus compromissos,
aproa a embarcação em direção a Bizâncio.
No âmbito hanseático, foram as autoridades pú­
blicas — municipais ou corporativas — que desempe­
nharam o papel dos notários, e é aos documentos ofi­
ciais que devemos recorrer freqüentemente hoje em dia
para termos acesso às operações do mercador medie­
val no mundo do Norte,
Em toda parte, na Idade Média, a intervenção das
autoridades públicas, que os historiadores liberais do
século XIX consideraram como um entrave ao comér­
cio e uma marca da barbárie medieval, favoreceu em
geral os mercadores, que se beneficiaram igualmente,
no fim da Idade Média, da verdadeira política econô­
mica praticada por alguns príncipes, como Luís XI,
o “rei dos mercadores”, O fim do século XV é tam­
bém a época em que se define com mais precisão a le­
gislação relativa à propriedade do subsolo e à delimi­
tação das águas territoriais.
Sem dúvida, os vínculos cada vez mais estreitos
entre príncipes e mercadores no final da Idade Média
levam estes a correr riscos maiores. A insolvência dos
soberanos está muito ligada às estrondosas falências
de banqueiros italianos nos séculos XIV e XV. Mas
não é só a ela que se devem tais quebras. Outras cau­
sas tiveram seu papel nessas bancarrotas — extensão
imprudente do crédito e dos negócios, influência da
conjuntura econômica e especialmente da conjuntura
monetária. A legislação das falências, no entanto, bem
cedo lhes atenuou os efeitos mais duros. Não só as pe­
nas extremas — condenação à morte ou simples pri­
são — foram absolutamente excepcionais como até
mesmo a venda dos bens do falido em leilões, para o
ressarcimento de seus credores, foi com muita freqüên-
cia evitada. Difundiu-se o costume de outorgar um
salvo-conduto ao falido fugitivo por um período du­

25
rante o qual ele tentava fazer um acordo amigável com
seus credores.

IV. Progressos dos métodos nos séculos XIV e XV

Embora a extensão dos negócios, a partir do sé­


culo XIII, lenha levado alguns mercadores à impru­
dência e desenvolvido certos riscos, no conjunto, sua
evolução determinou um progresso nos métodos e nas
técnicas que permitiu superar ou reduzir muitas difi­
culdades e perigos.
O desenvolvimento do comércio marítimo foi a
princípio grandemente favorecido pela prática — es-
pecialmente em Gênova — da divisão dos navios em
partes iguais — verdadeiras ações, das quais grande
parte podia ser possuída por uma mesma pessoa. As­
sim, os riscos são divididos e repartidos. Essas partes,
denominadas “paries” “sortes” ou “loca”, são uma
mercadoria que se pode vender, hipotecar, dar em com-
menda ou fazer constar do capital de uma associação.

1. O seguro — Mais importante ainda é o desen­


volvimento dos métodos de seguro. Sua evolução é obs­
cura. O termo securilas, que designa primitivamente
um salvo-conduto, parece referir-se — por volta do fim
do século XII, se não antes — a uma espécie de con­
trato de seguro pelo qual os comerciantes confiam (‘7o-
cant”) mercadorias a alguém que, em troca de uma
certa quantia paga a título de ‘‘securitas”, se compro­
mete a entregá-las num determinado lugar. Só nos sé­
culos XIV e XV é que se difundem verdadeiros con­
tratos de seguro, nos quais, sem a menor dúvida, os
seguradores não são os proprietários do navio. Algu­
mas “companhias”, como por exemplo a do grande
comerciante pisano Francesco di Marco da Prato, no
final do século XIV, chegaram a especializar-se nes­
sas operações, Eis o texto de um memorando datado


de 3 de agosto de 1384, extraído de um de seus regis­
tros, intitulado “Registro de Francesco di Prato e Com­
panhia, residente cm Pisa, no qual registraremos to-
dos os seguros que fizermos para outrem. Que Deus
nos permita ter lucro e nos proteja dos perigos”:

Seguramos Baldo RidolfieCia. por 100 florins de ouro


de lã carregados no barco de Bartolomeo Vitale em trânsito
de Pefiisola a Porto Pisano. Desses 100 florins, que segura­
mos contra todos os riscos, recebemos 4 florins de ouro de
contado, conforme testemunha um atestado assinado por
Gherardo d’Ormauno e contra-assínado por nós.

E, mais abaixo:

O dito barco chegou são e salvo a Porto Pisano em 4


de agosto de 1384, isentando-nos dos ditos riscos.

2. A letra de câmbio — A letra de câmbio é outro


progresso da técnica que — amplamente difundido pa­
ra além do domínio marítimo — fornece novas possi­
bilidades ao mercador, estende e complica os seus ne­
gócios.
O primeiro e mais importante é o seu uso. Embo­
ra sua origem seja controvertida, suas características
e seu papel são hoje bem conhecidos graças aos exce­
lentes irabalhos de R. de Roover. O desenvolvimento
da letra de câmbio deve ser situado, a princípio, no
contexto da evolução monetária.
Durante a Alta Idade Média, a tendência à eco­
nomia fechada e a pequena amplitude das trocas in­
ternacionais reduziram o papel da moeda. No comér­
cio internacional, as moedas estrangeiras que circula­
vam na Europa — o nomisma bizantino, mais tarde
chamado hiperpério e besante no Ocidente, e os dina-
res árabes — tiveram um papel preponderante, Na Eu­
ropa cristã, a partir da época carolíngia, apesar de uma
tentativa de retorno à cunhagem do ouro, o padrão
monetário era a prata, representada sobretudo pelo de-

27
ndrío, muito embora, o dirhem muçulmano tenha ocu­
pado provavelmente utn lugar de primeiro plano.
No século XIII, tudo muda com o impulso da re­
volução comercial. O Ocidente reinicia a cunhagem do
ouro. A partir de 1252, Gênova cunha regularmente
denários de ouro e Florença, seus famosos florins; a
partir de 1266, a França tem seus primeiros escudos
de ouro; a partir de 1284, Veneza possui os seus duca­
dos; na primeira metade do século XIV, Flandres, Cas-
tela, a Boêmia e a Inglaterra seguem o movimento ge­
ral.
Doravante, nos pagamentos comerciais, o proble­
ma do câmbio passa a primeiro plano. Nesse particu­
lar, deve-se levar em conta, além, evidentemente, da
diversidade das moedas:
a) a existência de dois padrões de certo modo pa­
ralelos: ouro e prata;
bj o preço dos melais preciosos: nos séculos XIV
e XV, esse preço sofre uma alta que, conforme os pe­
ríodos, afeta desigualmcnte o ouro e a prata, mas que
na verdade deixa transparecer — em face das crescen­
tes necessidades do comércio e da impossibilidade de
aumentar no mesmo ritmo o número de espécies me­
tálicas em circulação devido à estagnação ou ao declí­
nio das minas européias e da redução de metais pre­
ciosos africanos — o fenômeno da “fome monetária”
no qual se deve situar a atividade dos mercadores do
fim da Idade Média — fome de ouro sobretudo, quan­
do a prata volta a ser relativamente abundante com
a exploração de novas minas na Alemanha média e me­
ridional em meados do século XV e que será, como
se sabe, urn dos principais motores das grandes des­
cobertas;
c) a ação das autoridades políticas. Com efeito,
o valor das moedas dependia dos governos, que po­
diam fazer variar a base da moeda, isto é, seu peso,
título ou valor nominal: as moedas não traziam indi­
cação de valor. Este era fixado pelas autoridades pú­

28
blicas, que as cunhavam com um valor fictício ao seu
real valor, e geralmente expresso em libras, soidos e de-
nários — unidades derivadas de um sistema considera­
do padrão a partir do denário de Tour ou denário de
Paris na França, por exemplo, ou ainda do denário de
gr os em Flandres. Príncipes e cidades podiam assim pro­
ceder a “remanejamentos monetários” — “mutações”
ou desvalorizações —, “reforços” ou revalorizações.
Riscos não raro imprevisíveis para o mercador2;
d) variações sazonais do mercado da prata. A exis­
tência de ciclos econômicos e de flutuações periódicas
longas e curtas, como se detectou no período moder­
no, c dificilmente localizada na Idade Média, devido
à falta de dados estatísticos — embora historiadores
como Cario M. Cipolla acreditaram poder determiná-
la. Em todo caso, o mercador medieval provavelmen­
te não tinha conhecimento do fato nem se preocupa­
va com ele. Em contrapartida, as variações sazonais
da circulação da prata nas principais praças européias
— devidas, entre outras causas, às feiras, datas das co­
lheitas e das chegadas e partidas de comboios, aos há­
bitos ligados às finanças e à tesouraria dos governos
— eram perceptíveis para aqueles que se mostravam
muito atentos a elas. Um mercador veneziano anotou
em meados do século XV:

E-in Gênova, a prata é cara em setembro, janeiro e abril, eni


virtude da partida dos navios... em Roma ou onde quer que
se encontre o papa, o preço da prata varia conforme o nú­
mero dos benefícios vacantes e dos deslocamentos do papa,
que faz subir o preço da praia onde quer que se encontre...
em Valence, ela é cara em julho e em agosto, por causa do
trigo e do arroz... em Montpellier, há três feiras que provo­
cam uma grande alta no preço da prata...

Tais são os dados que o mercador deve levar em


conta para avaliar os riscos e lucros a partir dos quais,

2. Pa.ra uma exposição detalhada, çf. M. BLOCH, Esquisse d'une


hisioire Monâtaire de t’Eiirope. 1954.

29
segunde suas possibilidades, pode dirigir o jogo sutil
da prática da letra de câmbio,
Eis, segundo R. de Roover, o principio e um exem­
plo do que vinha a ser a letra de câmbio:

A letra de câmbio era “uma convenção pela qual o ‘doa­


dor’... fornecia uma quantia ao ‘tomador’... e recebia em
troca um compromisso pagável a prazo (operação de crédi­
to), mas ern outro lugar e com outra moeda (operação de
câmbio). Todo contraio de câmbio engendrava, pois, uma
operação de crédito e dc câmbio, ambas intimamente vincu­
ladas”.

Eis uma letra de câmbio extraída dos arquivos de


Francesco di Marco Datini da Prato:

+ Etn nome de Deus, em 18 de dezembro de 1399, pagareis


por esta primeira letra “de usança” CCCCLXXII libras e
X soidos de Barcelona a Brunacio di GuidoeC®... estas 472
libras e 10 soidos, valendo 900 V (escudos) a 10 soidos e 6
denários por V (escudo), esta quantia tendo sido quitada aqui
por Riccardo degl’Alberti e C“. Pagai-as em boa e devida
forma e debitai-as de minha conta. Que Deus vos guarde.
Ghuíglielmo Barberi,
Saudação de Bruges

De outra mão:

Aceita cm 12 de janeiro de 1399 (1400).

No verso:

Francesco di Marco eC‘:. em Barcelona.


Primeira (letra).

Trata-se de uma duplicata paga em Barcelona pelo


sacado — a sucursal da firma Datini em Barcelona —
ao beneficiário — a firma Brunaccio di Guido, igual­

30
mente de Barcelona —, a pedido do secador ou toma­
dor— Guglielmo Barberi, comerciante italiano de Bru­
ges —•, a quem o doador — a casa Riccardo degli Al­
berti em Bruges — pagou 900 escudos a 10 soidos e
6 denários por escudo.
Guglielmo Barberi, exportador de tecidos flamen­
gos que mantinha relações regulares corn a Catalunha,
recebeu adiantado dinheiro em escudos de Flandres da
sucursal de Bruges dos Alberti, os poderosos merca-
dores-banqueiros ílorentinos. Antecipando a venda das
mercadorias que expedira ao seu correspondente de
Barcelona, a casa Datini, ele saca contra esta uma du­
plicata a pagar em Barcelona ao correspondente dos
Alberti nessa localidade, a casa Brunnacio di Guido
e C°... Há operação de crédito e de câmbio. Esse pa­
gamento foi feito em Barcelona em 11 de fevereiro de
1400, trinta dias após a sua aceitação, em 12 de janei­
ro de 1400. Esse prazo é chamado de (,usança”, va­
riável de acordo com as praças — trinta dias entre Bru­
ges e Barcelona —, o que permitia verificar a autenti­
cidade da letra de câmbio e, em caso de necessidade,
conseguir o dinheiro.
Assim, a letra de câmbio atendia a quatro dese­
jos eventuais do mercador, oferecia-lhe quatro possi­
bilidades:
a) um meio de pagamento de uma operação co­
mercial; e
b) uni meio de transferência de fundos — reali­
zando-se esta entre praças onde se utilizam moedas di­
ferentes;
c) uma fonte de crédito;
d) um lucro financeiro obtido sobre as diferenças
e variações do câmbio nas diversas praças, no contex­
to que foi definido mais acima?)De fato, afora as ope­
rações comerciais, podia haver entre duas ou, mais fre­
quentemente, três praças um comércio de letras de câm­
bio. Esse mercado dos câmbios, muito ativo nos sécu­
los XIV e XV, originou vastas especulações.

31
Notemos, todavia, que o comerciante medieval ig­
norava provavelmente duas práticas que haveríam de
desenvolver-se na época moderna: a do endosso e a do
desconto, ainda que as recentes pesquisas de Federigo
Melis permitam assinalar exemplos de endosso, no do­
mínio mediterrâneo, já nos primeiros anos do século
XVI, eque encontremos, provavelmente, no domínio
hanseático, casos semelhantes referentes às obrigações
nominativas ou ao portador — simples ordens de pa­
gamento — datados do século XV,

3, A contabilidade — É evidente que tais opera­


ções deviam acompanhar os progressos gerais da con­
tabilidade. A escrituração dos livros de comércio
tornou-se mais atenta, os métodos mais simples, a lei­
tura mais fácil. Certamente, havia ainda unia grande
complexidade. A contabilidade dispersava-se em nu­
merosos registros: livros das “sucursais”, das “com­
pras”, das “vendas”, das “matérias-primas”, dos “de­
pósitos de terceiros”, dos “trabalhadores em domicí­
lio” e, como sublinhou A. Sapori, o “livro secreto”,
onde era registrado o texto da associação, a participa­
ção dos associados no capital, os dados que permitiam
calcular a qualquer momento a posição desses asso­
ciados na sociedade, a distribuição dos lucros e per­
das. Esse “livro secreto” continuava sendo objeto das
principais preocupações e foi ele o que melhor se con­
servou até os nossos dias.
Mas o uso de estabelecer um orçamento se difun­
diu. Todas as grandes firmas não tardam a ter um du­
plo jogo de registros para as contas abertas aos seus
correspondentes no estrangeiro: compto nostro e comp-
lo vostro, equivalentes às nossas contas correntes, e
que facilitavam ainda mais os ajustes por compen­
sação, por um simples jogo de escrituras, sem trans­
ferência de numerário. E, sobretudo, desenvolve-se a
contabilidade de dupla entrada — crédito e débito,

32
que veio a ser qualificada de “revolução da contabili­
dade’
Sem dúvida, esses progressos são desiguais con­
forme as regiões, e chegou-se a explicar o quase-
monopólio dos mercadores e banqueiros italianos da
Idade Média numa vasta área geográfica como o re­
sultado de sen avanço em matéria dc técnica comer­
cial. Entretanto, encontrar-se-iam no domínio hanseá-
üco métodos que, embora diferentes c talvez um pou­
co retardatários na perspectiva de uma revolução ge­
ral única, nem por isso deixaram de provar a eficácia
do que Fritz Rõrig denominou “uma supremacia in­
telectual”. Notemos, aliás, que não se deve exagerar
a superioridade germânica no tocante à escritura e à
contabilidade no domínio nórdico. Os famosos manus­
critos sobre “ heresia ' (casca de bétula), recentemen­
te descobertos em Novgorod, mostram que a escritu­
ra e o cálculo estavam ali mais difundidos do que se
poderia crer entre os autóctones-V Do mesmo modo,
as técnicas italianas foram muito pouco assimiladas an­
tes do século XVf pelos mercadores das cidades atlân­
ticas — bretões, rochelcscs, bordaleses, “cuja arte con­
sistia unicamente em evitar na medida do possível o
recurso ao credito sob todas as suas formas”, Se, por
um lado, Ph. Wolff detectou uma grande extensão do
crédito entre os comerciantes tolosanos, por outro, in­
sistiu no “caráter rudimentar” de seus métodos.
(Assim, onde quer que se encontre, o grande
mercador-banqueiro sedentário reina agora sobre to­
do um conjunto que ele controla, de seu escritório, pa­
lácio ou casa)
Um conjunto de contadores, comissionários, re­
presentantes e empregados — os “corretores” — lhe
obedece no estrangeiro.

3. Os métodos hanseáticos são na verdade os métodos normais, os


mais correntes no Ocidente, e nos séculos XIV e XV eles permaneceram
rudimentares em relação aos das grandes companhias italianas.

33
É no centro de vastas correspondências, fora do
domínio da contabilidade, que o mercador-banqueiro
recebe seus pareceres e lhes dá ordens..Tendo em mente
o preço da época, a importância, para o êxito de um
negócio, de informar-se mais depressa que os concor­
rentes da chegada dos navios ou de seu naufrágio, da
situação das colheitas — numa época em que os fato­
res naturais são tão poderosos e os cataclismos tão des­
truidores —■, dos acontecimentos políticos e militares
que podem influir no valor do dinheiro e das merca­
dorias, ele se entrega a uma verdadeira corrida às no­
tícias. Sobre o tema “Notícias e especulações em Ve­
neza”, Pietro Sardella escreveu um ensaio instiganle.
Pela leitura da abundante correspondência comercial
da Idade Média que nos foi conservada, mas da qual
apenas uma pequena parte foi publicada até agora, pu­
demos seguir melhor o mercador em seu trabalho, com­
preender o que foi sua atividade profissional.

4. As categorias de mercadores — Com essa am­


pliação dos negócios, ocorrem transformações no mun­
do dos mercadores.
O mercador itinerante flamengo, que levava seus
tecidos às feiras da Champagne e de lá trazia as espe­
ciarias, já não precisa deslocar-se, agora que as gale­
ras de Gênova e Veneza vêm carregar e descarregar as
mercadorias em Bruges, que os mercadores italianos,
os representantes e os sucessores das grandes casas de
Florença, Gênova, Lucca e Pisa se instalaram em Flan-
dres e os compradores e vendedores mantêm no local
contatos permanentes — como já acontecia há muito
tempo em Florença, onde: Giovanni Villani observou
orgulhosamente a inutilidade das feiras, “porque sem­
pre há mercado em Florença”. Então, o mercador fla­
mengo torna-se um mediador sedentário e passivo em
domicílio: o corretor. Estabelece contatos entre os mer­
cadores estrangeiros, promove entre eles operações co­

34
merciais e financeiras, providencia-lhes alojamentos e
entrepostos e vive das comissões que recebe por todos
esses serviços.
Do mesmo modo, houve emre os negociantes uma
certa especialização. As categorias que assim se for­
maram variam de acordo com as regiões, países e ci­
dades. Mas, de maneira geral, pode-se distinguir no
domínio do mercado financeiro, como o fez R. de Roo-
ver em Bruges, os lombardos, os agentes de câmbio
e os “cambistas", que são os mercadores-banqueiros
propriamente ditos.
Os lombardos ou cahorsinos4 são os emprestado-
res que condicionam a divida ao penhor, usurários que
praticam o empréstimo de consumo a curto prazo. As­
sim, seus clientes raramente são grandes personagens,
mas sobretudo pessoas de pequena e média condição:
clérigos, burgueses não-mercadores, nobres de segun­
da categoria, camponeses. As quantias que eles em­
prestam “a curto prazo” — um ou dois meses, às ve­
zes três ou seis — nào são para fins econômicos, mas
destinam-se ao consumo pessoal num período difícil
para o devedor, que penhora objetos pessoais: baixe­
las, roupas, ferramentas, armas, etc. Não se deve pen­
sar que esses lombardos tenham um poder econômico
desprezível. Para atender às necessidades de numero­
sos clientes, às despesas consideráveis requeridas por
sua atividade, eles estão à testa de grandes capitais, reu­
nidos por associação familiar ou graças aos depósitos
de terceiros. Em Bruges, os cahorsinos têm, no prin­
cípio do século XV, um grande imóvel no longo cais
da paróquia de São Gil e um menor, onde residem.
Mas seu horizonte permanece limitado. Por terem rea­
lizado operações em grande escala, lombardos e ca­
horsinos de Bruges conhecem uma estrondosa falên­

4. Names genéricos que provavelmente não correspondem a uma ori­


gem geográfica específica.

35
cia em 1457. De resto, como se verá, eles são impor­
tunados em suas práticas, alvo da hostilidade pública
e privada, sem possibilidades — salvo exceção — de
ascensão social.
Acima dos lombardos, estão os agentes de câm­
bio. Têm sua banca ou mesa (bancho, tavold) ao ar
livre, numa loja de frente para a rua, como a de todos
os artesãos. Agrupam-se para facilitar as operações de
seus clientes, que não raro são comuns a vários dentre
eles, Em Bruges, mantêm sua mesa perto da Grande
Praça e do Grande Mercado dos Tecidos; em Floren-
ça, têm seus banchi in mercaio no Mercado Velho e
no Mercado Novo; em Veneza, operam seus banchi
di scritta na ponte do Riaho, e em Gênova, perto da
Casa di San Giorgio.
O romance cortês de Galeran de Bretagne deixou-
nos uma animada pintura dos agentes de câmbio de
Metz por volta de 1220;

Assim estão os cambistas enfileirados


Que têm diante dc si suas moedas:
Aquele troca, aquele conta, aquele nega,
Aquele diz: “É verdade”, e outro: “mentira”.
Na embriaguez ou no sonho,
Não se pode ver, por dormir, a maravilha
Que pode ver quem vela.
Nunca se entrega ao ócio
Aquele que vende pedras preciosas
E imagens de prata e de ouro.
Outros têm diante de si tesouros
Dos seus ricos carregamentos.

A princípio, eles preenchem duas funções tradi­


cionais, o câmbio das moedas (donde seu nome) e o
comércio de metais preciosos: são os principais forne­
cedores da Casa da Moeda de metais preciosos, rece­
bendo os pagamentos de sua clientela sob a forma de
lingotes ou, mais frequentemente, de baixelas. Con­
forme as circunstâncias, também exportam esses metais

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preciosos, apesar do monopólio teórico dos moedei-
ros. Por essas operações, determinam o preço dos me­
tais preciosos, exercem uma influência considerável so­
bre as flutuações desses preços e tendem a dominar o
seu mercado.
Mas esses agentes de câmbio acrescentaram no­
vas funções às antigas: a aceitação de depósitos e rein-
vestimentos por empréstimos. Tornaram-se banquei­
ros. Pelos depósitos, pela aceitação das contas a des­
coberto para seus grandes clientes, pelos empréstimos,
adiantamentos e investimentos, pelas transferências de
dinheiro mediante simples jogo de escritura, são os au­
xiliares indispensáveis dos mercadores e das pessoas
abastadas^ que têm todos uma conta num agente de
câmbio: no final do século XIV, esse é o caso de uma
pessoa para cada 35 ou 40 em Bruges, e 80% desses
clientes de Bruges têm um balanço de conta inferior
a 50 libras flamengas. Os agentes de câmbio serão en­
contrados nas altas esferas da hierarquia social,
No ápice, porém, estão aqueles que em Bruges são
chamados de “cambistas", os que mantêm em Floren-
ça os banchi grossi, os mercadores-banqueiros propria-
mente ditos. Sua atividade permaneceu não-
especializada. Ao comércio das mercadorias de todo
tipo, realizado para a exportação e importação em es­
cala internacional, eles acrescentam uma atividade fi­
nanceira múltipla: comércio de letras de câmbio, acei­
tação de depósitos e operações de crédito, participa­
ção em várias “sociedades", prática do seguro. Mui­
tas vezes, inclusive, são também produtores, “indus­
triais”, como os Mediei, que possuem em Florença
duas fábricas de tecidos e uma de seda, e realizadores
de um “fenômeno de integração” como Benedetto Zac-
caria que, de Gênova, controla o mercado do alúmen
no século XIII, transportando-o em barcos próprios
e utilizando-o numa tinturaria por ele montada.
Se em Veneza eles não passam de atacadistas, dei­
xando a mercadores menores a venda a varejo, em on-

37
tras partes possuem frequentemente uma loja e às ve­
zes não desdenham nem mesmo, como simples lom-
bardos, praticar a usura, o pequeno empréstimo para
consumo. Mas suas operações não se fazem fora,
all’aperto, mas dentro, em sua casa, quase sempre um
palácio — onde se encontra o scriífoio, escritório, que
constitui o centro de vastos negócios.
O exemplo de Jacques Coeur é o de um dos maio­
res homens de negócios da idade Média. Mollat, que
estuda todas as suas ramificações, já esboçou seus vas­
tos tentáculos: “um mapa que reproduzisse a distri­
buição de seus interesses correspondería a um mapa
econômico da França em meados do século XV". Pos­
sui bens imobiliários em toda parte: domínios fundiá­
rios, consignações de rendas prediais, ricos palacetes
particulares em Bourges, Saint-Pourçain, Tours, Lyon,
Montpellier. Juntem-se a isso todos os tipos de espe­
culações: percepção de impostos indiretos, resgates de
prisioneiros ingleses. Se o campo de seus navios de co­
mércio é sobretudo o Mediterrâneo, o Atlântico, o ca­
nal da Mancha, o mar do Norte, sem contar os rios:
Loire, Ródano, Sena, também o são. “Nenhum obje­
to suscetível de tráfico lhe foi estranho”. A argenta­
ria, loja que vendia objetos de prata, guarda-móvcis
e entreposto real, que ele dirige, é nada mais que seu
melhor cliente.
A ela, como a muitos outros, ele vende lãs, tecidos,
panos, couros, peles, sal, especiarias, objetos de arte.
Fornece ao exército do rei arneses e armas. Tem inte­
resses em Florença, na Espanha, em Bruges. Após sua
queda e evasão, refugia-se no papado, grande potên­
cia econômica; e morre em Quios, o vasto empório ge-
novês.

5. O mercador medieval foi um capitalista? — É


evidente que a célebre tese de Werner Sombart, para
quem o grande capitalista nasceu com os Tempos Mo­

38
dernos, com o Renascimento e a Reforma no século
XVI, já não pode ser aceita agora que conhecemos me­
lhor o mercador-banqueiro medieval.
Sem dúvida, é preferível considerar o grande mer­
cador medieval como um pré-capitaiista. Segundo uma
definição estrita do capitalismo, como a oferecida pe­
la doutrina marxista, a Idade Média não conheceu o
capitalismo. Seu sistema econômico e social é o feu­
dalismo, e é no interior desse contexto que agem os
merca tores. Mas eles contribuem para fazer explodir
esse contexto, arruinar as estruturas feudais. Agindo,
como veremos, sobre uma evolução agrícola ativada
pela intrusão dos capitais urbanos — pelo menos em
regiões como a Itália ou Flandres — eJprecipitada pe­
lo desenvolvimento de uma economia mundial (Welt-
wiríschaft} com profundas repercussões nos preços
agrícolas e industriais, os grandes mercadores prepa­
ram o advento do capitalismo. E.-A. Kosminsky viu
na expropriação das classes rurais da propriedade pre­
dial, especialmentc na Inglaterra — evolução da qual
participaram os mercadores a fonte da “acumula­
ção primitiva’ ’ do capital. O grande mercador medie­
val já esboça a concentração dos meios de produção
em mãos de particulares, acelerada pelo processo de
alienação do trabalho dos operários e dos campone­
ses, transformados em assalariados. E alguns historia­
dores marxistas, como V.-I, Ruthenburg, estudando
as companhias florentinas do século XIV, não hesita­
ram em ver nelas o começo do capitalismo no sentido
rigoroso do termo. Mesmo um historiador como Fran­
tisek Graus, que se recusa a falar de capitalistas na Ida­
de Média, reconhece que nesse período existem elemen­
tos de capitalismo e que na Itália há até mesmo mais
que isso. Ele tem razão em protestar contra concep­
ções antícientíficas c anti-históricas que reivindicam um
“capitalismo eterno”, assim como em exigir a priori­
dade do estudo das estruturas em detrimento do das

39
mentalidades. Cita também Marx, segundo o qual “as
corporações medievais rendiam fortemente a impedir
a transformação do mestre artesão em capitalista, li­
mitando a um máximo muito reduzido o número de
operários que um único mestre podia empregar — pois
o detentor de capitais ou de mercadorias só se trans­
forma em capitalista quando os mínimos fixados pa­
ra a produção ultrapassam amplamente o máximo me­
dieval’1. Mas aqui o autor de Ó Capitai, tributário dos
conhecimentos históricos de sua época, confundia os
artesãos com os grandes mercadores, que pouco se
preocupavam, como veremos, com as regulamentações
das corporações, e subestimava consideravelmente a
extensão qualitativa e quantitativa de sua influência
econômica e social.
Certamente, não se deve esquecer que a econo­
mia medieval permanece fundamentalmente rural, nas
cidades o artesanato predomina, os grandes negócios
não passam de uma camada superficial; mas, pelo vo­
lume de dinheiro que ele maneja, pela extensão de seus
horizontes geográficos e econômicos, por seus méto­
dos comerciais e financeiros, o mercador-banqueiro
medieval é um capitalista. Também o é por seu espíri­
to, gênero de vida e posição na sociedade.

40
CAPÍTULO II
O papel social e político

Mercadores e cidades — Quaisquer que tenham


sido as origens dos grandes mercadores medievais, uma
coisa é certa: seu poder econômico está ligado ao de­
senvolvimento das cidades, centros de seus negócios.
É iguaimenie no contexto urbano que se vão estabele­
cer sua influência social e seu poder político — conse­
quência e garantia de seu poder econômico. Conquanto
essa evolução não tenha seguido o mesmo ritmo, co­
nhecido um perfeito sincronismo e tenha tomado for­
mas diferentes, pode-se dizer que no século XIII as ci­
dades são dominadas política e socialmente pelos gran­
des mercadores. Sem dúvida, o desenvolvimento co­
munal não se confunde com o desenvolvimento dessa
classe, muito embora ela tenha desempenhado ali um
papel capital e tenha sido o seu principal beneficiário
— em Gênova, por exemplo, a associação dos homens
de negócios, a “compagna", se torna uma comuna já
em 1099, e, no domínio alemão, o conselho (Raí) se
identifica com os grandes mercadores. Essa classe mer­
cantil chegou a tais resultados através das complexas
relações com as demais classes e categorias sociais: no­
breza, artesãos, operários, camponeses — sem contar
a Igreja, de que falaremos no capítulo seguinte, e as
autoridades políticas superiores, senhores e monarcas.

I. Papel social dos grandes mercadores

1. Mercadores e nobres — Em face da nobreza,


houve luta, eliminação ou assimilação.

41
Em Florença, a luta entre os nobres de velha ce­
pa, os "tnagnali”, e os “popolani” agrupados nas cor­
porações (Aní) dominadas pelos grandes mercadores,
parece terminar em 1293 com os Decretos de Justiça.
Os membros das cento e quarenta famílias magnali são
excluídos das funções oficiais e até mesmo atingidos
por um regime penal excepcional. Mas, entre essas fa­
mílias, há comerciantes já convertidos em Cavaleiros.
Tais medidas representam tanto a luta de uma nova
camada mercantil contra uma antiga, quanto a vitó­
ria da burguesia mercantil sobre a nobreza fundiá­
ria de tão difícil que é estabelecer a distinção entre
ambas.
Às vezes, a nobreza, cujo enfraquecimento esta­
va ligado ao declínio da economia rural de tipo feu­
dal, permaneceu voluntariamente afastada das ativi­
dades econômicas que constituíam a força da classe
mercantil, como na França e na Espanha, onde os no­
bres se recusaram a entregar-se ao comércio que acar­
retava juridicamente a perda de seus privilégios e a re­
núncia à sua “ordem”; foi o “desenvolvimento” ocor­
rido na França, apesar dos esforços de Luís XI.
Muitas vezes, porém, os nobres tentaram partici­
par dessas novas fontes de lucros, investiram capitais
no comércio ou entregaram-se pessoalmente aos ne­
gócios e às atividades bancárias. Foi esse, especialmen­
te, o caso de vários nobres italianos, cuja adaptação
foi facilitada pelo fato de muitos deles residirem nas
cidades e pelo fato de o fenômeno urbano, apesar do
declínio da Alta Idade Média, ter conhecido na Itália
uma continuidade entre a Antigüidade e o período me­
dieval. Nobres do campo, aliás, virão instalar-se nas
cidades quando estas se desenvolverem.
Esses nobres se fundiram na nova classe mercan­
til e, dessa fusão, às vezes, resultou até mesmo o nas­
cimento de uma aristocracia na qual se confundiam
os antigos senhores feudais, os antigos funcionários se-

42
nhoriais e reais e os novos-ricos. É o que se depreen­
de, para Gênova, dos excelentes estudos de André
Sayous e Roberto Lopez, e, para Veneza, dos magní­
ficos trabalhos de Gino Luzzatto. Em Veneza, afirmou-
se, “os doges são mercadores e os mercadores são al­
mirantes”.
Em todo caso, mesmo onde a nova classe mercan­
til foi burguesa, plebéia, “popular”, e, onde ela teve
de conquistar sua posição social e sua força política
contra a nobreza feudal, a oposição entre ela e a ve­
lha aristocracia se atenuou consideravelmente nos sé­
culos XIV e XV, sob o efeito, particularmente, de uma
dupla evolução.
A primeira tendeu a afastar a rica burguesia mer­
cantil das classes populares urbanas de que se servira
em sua conquista do poder, e que começou a temer
quando estas pretenderam limitar ou destruir sua do­
minação econômica e social, assim como sua hegemo­
nia política. Como, para os mercadores, a classe peri­
gosa já não estivesse acima deles, mas abaixo, eles se
voltaram para o que restava da velha nobreza a fim de
fazer desta uma aliada. Isso ocorreu, por exemplo, em
Florença, onde, após a revolução proletária dos Ciompi,
no final do século XIV, os grandes mercadores rein-
troduziram os antigos nobres no governo da cidade.
A segunda levou, bem cedo, os ricos mercadores
a ingressar na nobreza. Com efeito, essa tendência lo­
go se configurou através de diversos processos.
Em alguns casos, o mercador buscou, por via do
casamento, o acesso à velha nobreza. Um cronista flo-
rentino do século XIII escreve: “Vê-se todos os dias
um plebeu muito rico querendo casar-se com uma mu­
lher pobre, mas nobre”.
Em outros, o mercador, por seu gênero de vida,
se aproxima da nobreza e logo passa a ser considera­
do como um membro dela. Vê-lo-emos mais adiante
em seu palácio, participando dos torneios. Os célebres

43
mercadores-banqueiros de Florença, os Peruzzi, que
pertencem juridicamente ao popolo, usam esporas e
comportam-se como cavaleiros. Um cambista de Bru­
ges, Evrard Goederic, é chamado Sire, e sua mulher,
Senhora; comandante da milícia urbana, ele combate
a cavalo. Dos Cancellini de Pistóia, diz Villani; “Não
eram muito antigos, mas, com a ajuda de suas rique­
zas, tornaram-se todos cavaleiros, homens de valor e
pessoas de bem”. Eis uma bela justaposição de termos
nobres e de vocabulário burguês.
Mais freqüentemente ainda, ele compra terras, do­
mínio feudal, que representam — pelo menos no co­
meço —, mais que um bom investimento, a oportuni­
dade de uma ascensão social e de ingresso na nobre­
za.
Onde quer que subsista ou se desenvolva um po­
der principesco ou monárquico, pedra angular do sis­
tema social, os mercadores pedincham e compram, obs­
tinadamente junto com propriedades senhoriais, os tí­
tulos de nobreza. Um estudo recente também demons­
trou tal fato com relação aos ricos burgueses lioneses:
os Jossard.
No final da Idade Média, quando muitas famí­
lias de mercadores se afastarão dos negócios em con-
seqüência de dificuldades que os levarão a procurar
ainda mais os investimentos imobiliários e fundiários,
ou pela atração exercida por uma vida de aristocrata
mais sedutora que os labores do comércio, quando a
constituição de monarquias centralizadas lhes ofere­
cerão novos mercados, a rica burguesia mercantil se
converterá ainda mais facilmente em aristocracia, em
nobreza de toga ou de funções.
Tracemos brevemente a curva esquemática da evo­
lução de duas burguesias francesas.
Em Toulouse, Ph. Wolff descreveu a ascensão dos
Ysalguíer. Esses mercadores logo se aliam à nobreza
fundiária, seja pela compra de propriedades, seja por

44
uma “política matrimonial” bem dirigida. Depois,
tornam-se soldados e sobretudo agentes reais, ao mes­
mo tempo em que preenchem funções municipais co­
mo capitães. “Após 1380, a evolução da família pare­
ce terminada. Nenhum Ysalguier se dedica mais ao co­
mércio ou ao câmbio”. Mas, em época de crise feu­
dal, esses novos nobres compartilham o-declínio dos
antigos senhores. “O estado para o qual o mercador
tende naiuralmente é a nobreza. Mas a nobreza signi­
fica quase sempre uma mediocridade, que nào deixa
de ter suas honrarias e sua altivez —, ainda assim, uma
mediocridade.”
Em Lille, o Dr. Eeuchère distinguiu seis estágios
de evolução da burguesia entre os séculos XIII e XIV:
1 — A fortuna. Vindos da terra, os futuros bur­
gueses se instalam na cidade, tornam-se lojistas. Seus
filhos ou netos, aumentando-lhes as riquezas, ascen­
dem à burguesia. 2 — O magistrado oficial. Ingres­
sam nos cargos municipais; participam na direção po­
lítica da cidade. 3 — Os feudos fundiários. Adquirem-
nos por compra ou casamentos. 4 — A nobreza.
Recebem-na de príncipes por serviços prestados. Em
1391, Carlos VI, por exemplo, enobrece Guillaume de
Terremonde. 5 — A nobreza de toga. Durante o pe­
ríodo borguinhão, tornam-se oficiais principescos, o
que confere nobreza àqueles que ainda não a recebe­
ram. 6 — Finalmente, podem ascender à nobreza mi­
litar e tornar-se cavaleiros.
No inicio, há o câmbio ou o comércio de tecidos.
A partir do quarto estágio, já não existe comércio. Ape­
nas uma dezena de famílias chega ao quinto e ao sex­
to estágios.
Assim, não houve entre o mercador e o nobre ne­
nhum antagonismo profundo, salvo durante o bre­
ve período de luta violenta contra as coações feudais
da Alta Idade Média. Em quase toda parte, um duplo
movimento inverso, mas convergente, dc aburguesa­

45
mento e de enobrecimento conduziu-os uns para os ou­
tros.
Concluindo, a luta, quando se produziu, ocorreu
mais entre a antiga e a nova nobreza — esta última
resultando da fusão das duas categorias mercantis, a
de origem nobre e a de origem burguesa.

2. Mercadores e classes populares urbanas —Em


muitas cidades, porém, os mercadores continuavam a
ser o “Povo”. Mas seria errôneo acreditar que este te­
nha constituído uma única classe. Os ricos mercado­
res e banqueiros formam dentro desse bloco uma ca­
tegoria à parte e por longo tempo dominante.
Sobre a distinção entre esses mercadores e o mun­
do dos artesãos, é preciso citar a página profunda e
brilhante que Armando Sapori escreveu sobre a “coe­
xistência de dois mundos”:

“De nm lado, O mundo traditional c, por conseguinte,


essencialtnente medieval, com sua típica organização de ofí­
cios... É o mundo dos mestres e dos aprendizes, o inundo
das incontáveis oficinas onde uma humilde multidão de ar­
tesãos, quase sempre iletrados e incultos, trabalham para um
mercado circunscrito aos limites dc uma cidade ou de um
bairro, empregando como meio de troca a moeda dos “pic-
coli”...

Junto com esse pequeno mundo vivia, do outro


lado, um mundo de vanguarda: a organização das com­
panhias de comércio internacional, donas de ricos en­
trepostos onde se acumulavam as mais preciosas mer­
cadorias e onde homens providos de larga experiência
e de uma cultura zelosa e variada, homens de visões
ousadas e ambições desenfreadas, tratavam dos assun­
tos comerciais e financeiros com os principais centros
econômicos das terras ultramontanas e ultramarinas,
espalhando aos montes os florins de ouro e a moeda
corrente de todos os países do mundo.
Esses dois mundos eram igualmente organizados
com base nas leis morais da Igreja e nas leis jurídicas

46
da cidade e das “artes”. Não admira, pois, que os es­
tudiosos que consultaram apenas os “estatutos” co­
mo fontes tenham chegado à visão e à compreensão
de um único mundo: o das corporações. Todavia, en­
quanto para os artesãos essas leis eram realmente obri­
gatórias — o que as tornou plenamente eficazes e lhes
permitiu frear eventuais iniciativas, reduzindo a um
mesmo nível lodo padrão de vida e atividade —, tive­
ram, para os grandes comerciantes, um valor muito
mais formal do que substancial. Estabelecidas, em úl­
tima análise, pelos homens que desempenhavam um
papel preponderante na política das comunas e na eco­
nomia das corporações — a despeito do complicado
mecanismo dos conselhos, dos votos e dos sorteios —,
tais leis não representavam para os mais favorecidos
senão resguardos providenciais, ao abrigo dos quais
podiam exercer uma atividade que os conduzia sem ris­
cos às suas próprias metas. Aliás, se lhes acontecesse
deparar com um obstáculo em alguma das leis que eles
próprios haviam redigido com extrema habilidade, e
se, por conseguinte, lhes fosse impossível dissimular
ou justificar um ato de violação, acabavam por supri­
mir o obstáculo com tanta audácia quanto habilida­
de, o que, de resto, não é um procedimento exclusivo
da Idade Média... Mas, se interpretarmos ao pé da le­
tra a lei estatutária, e se considerarmos que todos os
homens eram iguais perante ela, não conseguiremos
explicar a formação das riquezas fabulosas, dos mo­
nopólios e trustes, numa palavra, dessa organização
econômica que nada teve a invejar aquela que, mais
tarde, os historiadores e economistas chamaram, de
comum acordo, “a organização do capital”.
Indcpendentemente das cidades que não conhe­
ceram corporações — como Gênova — ou que só as
viram estabelecer-se tardiamente, no século XV, co­
mo Lyon e Poitiers, onde quer que se tenha estabele­
cido um regime corporativo, ele não só não atrapalhou

47
os grandes mercadores, como foi para eles um dos
meios de dominação sobre o mundo do artesanato, de
tal modo que este último acabou por não mais gozar
de uma '‘coexistência” na qual, no entanto, havia ocu­
pado um lugar modesto.
Em Florença, por exemplo, a grande distinção en­
tre Popolo grasso e Popolo minuto corresponde à di­
visão das corporações ou “Artes” em “Artes Maio­
res”, onde se agrupam os ricos mercadores, e “Artes
Menores”, formadas pelos artesãos. Melhor ainda: en­
tre as vinte e uma artes florentinas, a preeminência qua­
se sempre não se restringiu apenas às onze Artes Maio­
res, mas às cinco primeiras dentre estas, que compreen­
diam unicamente os homens de negócios com raio de
ação internacional: as Artes de Calimala (isto é, gran­
des imponadores-exportadores), do câmbio, da lã, de
Por Santa Maria (isto é, da seda) e dos Médicos, Mer­
ceeiros e Armarinheiros, reunidos numa só “Arte” e
que comerciavam produtos chamados “especiarias”,
das quais um manual da época enumera duzentas e oi­
tenta e oito diferentes. A dominação econômica e po­
lítica exercida em Florença por essas cinco Artes, e que
se expressou no papel do Tribunal Comercial da Mer-
canzta — origem dessa dominação a partir de 1308 —,
foi estudada por Armand Grunzweig, que mostrou as
lutas travadas em torno da Mercanzia pelos lojistas e
artesãos das Artes Menores, particularmente para a
anulação ou suspensão das dívidas contraídas pelos ar­
tesãos junto aos mercadores-banqueiros.
Mais forte ainda era, naturalmente, a autoridade
destes sobre os operários, sobretudo nas duas regiões
onde se pode falar, na Idade Média, de um proleta­
riado operário ligado à existência de uma grande in­
dústria de tipo capitalista: a indústria têxtil de Flatt-
dres e as indústrias têxteis e navais da Itália central e
setentrional. Muitas vezes, aliás, artesãos e operários
se encontravam, em face do mercador-banqueiro, num

48
mesmo pé de subordinação econômica e vemos até mes-
mo em Florença, por exemplo, nos séculos XIV e XV,
a proletarização dos pequenos artesãos.
Os meios de pressão e de opressão dos mercado­
res sobre essas categorias sociais eram numerosos e efi­
cazes. Tentemos mostrá-lo através do exemplo de
Sire Jehan Boinebroke, fabricante e mercador de teci­
dos de lã de Douai, no final do século XIII.
Toda uma série de documentos extraordinários,
chegados até nós, editados e comentados por Georges
Espinas, num livro célebre e admirável, nos restituem
as relações entre esse mercador e toda a massa de seus
“empregados” e “obrigados”, humildes vizinhos, de­
vedores, fornecedores, criados, operários, pequenos pa­
trões e empregados que trabalhavam “em ou para sua
empresa de lã”. Tendo seus herdeiros, em cumprimento
de uma cláusula do seu testamento, prometido repa­
ração às pessoas que ele lesara em vida, algumas delas
ousaram vir reclamá-la. É o texto dessas reclamações,
acompanhadas de um certo número de documentos sig­
nificativos, que chegou até nós.
Os pobres, ele domina primeiro por seu poder eco­
nômico. Ele tem o dinheiro e exige de seus devedores
reembolso antes do vencimento, penhores indevidos
que toma à força, quantias muito superiores às que lhe
são devidas — até o triplo da dívida.
Ele tem o trabalho e eles dependem dele para vi­
ver: não só os operários e as operárias que emprega em
seu estabelecimento ou domicílio, como também os pe­
quenos artesãos cujas ferramentas são frequentemente
de sua propriedade. Estes últimos só podem obter ma­
téria-prima com ele e não lhes é permitido vender os pro­
dutos de seu trabalho sem a sua mediação. Ora, ele en­
gana quanto à qualidade da matéria-prima, ao peso e
cobra preços exorbitantes. Para os salários ou as com­
pras, “paga pouco, mal ou simplesmente não paga”,
pratica o “truck system ”, ou pagamento em mercadoria.

49
Ele tem a moradia. Como a maioria dos grandes
comerciantes, possui várias casas. Estas acabam sen­
do um investimento ainda mais lucrativo porque ne­
las se alojam sobretudo seus operários, clientes e for­
necedores. Assim, residindo numa espécie de cidade
operária bastante embrionária, eles dependem dele ain­
da mais. Ou melhor, ele lhes fornece conscientemente
um trabalho de valor inferior ao preço do aluguel pa­
ra mantê-los cada vez mais à sua mercê. "Em suas ca­
sas, eles se tornavam, pode-se dizer, verdadeiros pri­
sioneiros do carcereiro que era Boinebroke.” A^ás, em
toda parte a dominação dos grandes comerciantes so­
bre a propriedade urbana é considerável. Em Lübeck,
eles possuem os melhores terrenos nos cruzamentos das
ruas principais, os celeiros de cereais e os armazéns do
porto, e, na cidade, as construções indispensáveis aos
artesãos: cubas, fornos, o conjunto dos edifícios do
mercado — único lugar onde os artesãos podem ven­
der e às vezes, como os ourives, produzir.
Essa gente humilde, Boinebroke esmaga também
com o peso de seu poder social. Em relação a ela, usa
ora o desprezo, ora a força. Com as mulheres, sobre­
tudo, "a quem despreza visivelmente' usa de ironia.
A uma tintureira, de cuja mercadoria se apoderou in­
devidamente, diz: “Comadre, vá pegar no pesado, já
que está na miséria: pesa-me vê-la assim!” E, como
ela é obrigada a aceitar, mas protesta, ele acrescenta:
“Comadre! Não lhe devo nada, que eu saiba, mas vou
colocá-la em meu testamento”. E Georges Espinas ob­
serva: “O patrício brinca com sua comadre, arruinan­
do-a com palavras e de fato, tal como, poderiamos di­
zer, o gato brinca com o rato antes de devorá-lo: é efe­
tivamente a oposição entre a onipotência e a extrema
fraqueza”.
Mas o que ele mostra é também a cólera, como
no caso de um locatário que apesar de ter regulariza­
do seu aluguel, se recusava a pagar mais: “E Sire Je-

50
han se enfureceu e botou-o para fora de sua casa sem
lei e sem processo”. Então, é a força que ele empre­
ga. Como um camponês não lhe quisesse vender as
plantas que já vendera a outro mercador, numa épo­
ca em que o preço da garança estava em alta, Boine-
broke vai à sua plantação com dois de seus operários
e “mandou desenterrar a garança à força e levá-la pa­
ra sua casa”, e o coitado do camponês “não recebeu
nem um vintém”.
Ante tanta arrogância, os humildes interlocuto­
res de Boinebroke, mesmo depois de sua morte, ou no
momento do inquérito reparador, nâo ousam revoltar-
se contra ele. “Foram por tanto tempo e de tal modo
oprimidos que se abandonaram com bastante natura­
lidade à sua própria sorte. Esse sentimento, que per­
durou durante toda a vida de Boinebroke, tornou-se
suficientemente forte para persistir mesmo após o seu
desaparecimento, levando-os a não se arriscar senão
com uma certa timidez... a expor as suas queixas. A
lembrança tirânica do morto parece ainda pairar e pe­
sar sobre eles, detendo-os e aterrorizando-os ao mes­
mo tempo que permanecem hesitantes em exprimir suas
reclamações perante os lestamenteiros do defunto, num
meio que não é o deles e que é, ao contrário, aquele
ao qual seu opressor pertenceu.”
Mas às vezes as reações são violentas. Às greves,
aos motins, juntam-se verdadeiros movimentos revo­
lucionários que fazem do século XIV um século de cri­
ses sociais com episódios violentos, crises complexas,
mas das quais um dos aspectos essenciais reside na re­
volta dos artesãos e operários explorados contra o gran­
de mercador.
Nesse caso, porém, os revoltados se chocam com
o último poder do grande mercador, seu poder polúi-
co. Este não tardou a coroar o êxito comercial e a for­
tuna. Senhores das comunas italianas, os ingpç®í§Te$.
acabam presidindo o conselho urbano, o/Wdas ci<.

-
dades alemãs, onde elaboram um direito urbano que
integra o jus mercatorum primitivo. Esse processo tam­
bém é encontrado mais tarde. É eni 1433 que Hans
Popplau de Liegnitz vem instalar-se em Breslau. Seu
primo Andreas junta-se a ele alguns anos depois. Os
dois fundam uma sociedade que negocia com tecidos
de lã, arenques, óleos, especiarias, couros, objetos de
ourivesaria. Compram esses artigos nos Países Baixos
e os revendem na Baviera, Áustria, Boêmia, Polônia.
Hans ingressa no Rat de Breslau em 1446 e ali perma­
nece até sua morte, em 1456. Em 1448, é burgomes-
tre. Seu filbo Markus é membro do Rat de 1483 a 1499,
sem deixar de ocupar-se dos negócios.
O próprio Boinebroke foi magistrado oficial de
Douai pelo menos nove vezes. Sabemos que ocupou
esse cargo especialmente em 1280 e que, nesse ano, com
seus colegas de mesma classe social, reprimiu “cruel­
mente” uma greve revolucionária dos tecelões. “A lei,
que devia castigá-lo e vingar suas vítimas, salva-o, pois
é ele que a faz e a aplica. Para compreendê-lo, cum­
pre não separar jamais a política da economia; uma
permitiu e provocou a outra, que, por sua vez, a com­
pleta e consolida; legalizando-a e legalizando também
os abusos.”
Exceção, esse terrível Boinebroke? Gostaríamos
de acreditar nisso, e, sem dúvida, ele possuía certos
traços individuais de caráter que exacerbaram algumas
atitudes e comportamentos. Mas, como observou G.
Espinas e como confirmam tantos documentos, ele é
efetivamente um tipo característico de uma categoria
cujo comportamento social — fundado nas estruturas
econômicas e políticas — foi singularmente feroz.

3. Mercadores e camponeses — Se por um lado


os contatos dos mercadores com os camponeses foram
mçnos estreitos do que com as demais classes sociais,
por outro eles foram mais numerosos e mais impor­

52
tantes do que se imagina. Cidades e campos não esta­
vam isolados na Idade Média. Econômica, democrá­
tica e politicamente, suas relações são um fato capi­
tal. Nas regiões fortemente urbanizadas, onde os mer­
cadores se tornaram poderosos, sua ação sobre os cam­
pos logo se fez sentir. A princípio, eles contribuíram
para a libertação dos camponeses, pois esse era um
meio de luta contra os senhores feudais, uma oportu­
nidade para adquirir terras dos nobres, privados de
mão-de-obra, ou dos camponeses, proprietários sedu­
zidos pelo dinheiro oferecido e principalmente, talvez,
graças à emigração dos camponeses libertos para as
cidades, um meio de obter mão-de-obra barata para
a indústria e o comércio.
Além disso, em certas regiões os mercadores mo­
dificaram as condições de exploração e de vida dos
camponeses. Graças aos capitais, puderam investir na
terra para melhorar as técnicas, realizar grandes obras
hidráulicas, como em Flandres ou na planície do rio
Pó, difundir os moinhos. Graças ao seu espírito c aos
seus métodos comerciais, conseguiram melhorar a pro­
dução e, até certo ponto, racionalizá-la. Graças à sua
orientação comercial e às suas reações ante a conjun­
tura econômica, conseguiram por vezes proceder a uma
reconversão das culturas, remédio para as crises agrí­
colas: substituição da cultura pela criação para aten­
der às necessidades da indústria têxtil, como na Ingla­
terra e na região de Mctz; aumento da cultura da ga-
rança para a tintura, como em Flandres, e depois, nos
séculos XIV e XV, progresso do pastel, que os merca­
dores tolosanos, por exemplo, vão cultivar em várias
regiões do sudoeste da França; impulso dado na Itá­
lia, pelos mercadores florentinos, à cultura da amo­
reira, quando encontram dificuldade em obter a seda
do Turquestão. Os mercadores estão também interes­
sados no abastecimento das cidades que dominam po­
liticamente. A agricultura é protegida; alguns cultivos,

53
como os da vinha ou das árvores frutíferas, são incen­
tivados. Um dos célebres afrescos de Ambrogio Lo-
renzetti, no Palácio Comunal de Siena, representa os
efeitos no campo do “bom governo” da burguesia mer­
cantil.
Mas não se deve pensar que os camponeses ape­
nas lucraram com esses contratos. Só se beneficiaram
do apoio dos mercadores quando concluíram com eles
contratos que, em troca de capitais, do fornecimento
de gado, ferramentas ou sementes, lhe impunham não
só obrigações geradoras de progressos — arroteamen-
tos, exploração de madeira, construção de edifícios —,
como o compromisso de deixar nas mãos do merca­
dor, sócio capitalista, a maior parte dos lucros. Nos
campos de Messina, segundo J. Schneider, os campo­
neses dos domínios burgueses conquistaram “a liber­
dade pessoal, mas com sujeição econômica”.
Quando, a partir do século XIV, a crise econô­
mica atingiu mais particularmente os campos, a atitu­
de dos mercadores para com os camponeses que de­
pendiam deles endureceu, ainda mais porque o recuo
dos capitais mercantis sobre a terra se ampliou. Bem
cedo, sem dúvida, os mercadores adquiriram bens fun­
diários, sinal e fonte tradicionais de riqueza e consi­
deração. Mas esse movimento se acelerou a partir do
século XIV, acentuando a tendência de alguns gran­
des mercadores a tornar-se “capitalistas”. São conhe­
cidas as célebres casas de campo dos Mediei, que eram
não apenas luxuosas residências, mas também centros
de exploração. Talvez no seio da família dos Alberti
se possa perceber melhor uma verdadeira ruralização
que inspirará um membro da família, no século XV,
o famoso Léon Battista, a uma série de regras econô­
micas e éticas.
Ao mesmo tempo, sobretudo na indústria têxtil,
os mercadores procuraram no campo, mais que antes,
uma mão-de-obra barata. Assim, a indústria têxtil mar-

54
selhesa fazia trabalhar, além da região Sudeste, a lio-
nesa, a de Bresse e mesmo a região de Chartres. En­
quanto os mercadores dos velhos centros têxteis urba­
nos, como Gand, se esforçavam por todos os tneios,
inclusive a força, para opor-se ao desenvolvimento des­
sa indústria concorrente, os mercadores dos novos cen­
tros construíam sua fortuna com ela c praticamente
às custas da mão-de-obra camponesa, Na Itália, as
cláusulas dos contratos de arrendamento a meias
tornam-se mais draconianas; institui-se o assalariado
agrícola, mas com condições de vida mais miseráveis;
a situação dos pequenos camponeses se agrava e as­
sistimos até mesmo, da parte dos mercadores proprie­
tários fundiários, a uma verdadeira reação que, rea-
nimando as taxas senhoriais, tende a reconduzir os
camponeses ao estado servil. Esse movimento se acom­
panha de um desprezo crescente pelos rusílci, do qual
vamos encontrar largos ecos na literatura do século XV
inspirada pela burguesia mercantil.

II. Aspectos da dominação política da burguesia


mercantil

Assim, fundada no dinheiro, na rede de seus ne­


gócios e em seu poder político nas cidades, a burgue­
sia mercantil constituiu na Idade Média uma verda­
deira classe, dotada de um espírito de grupo e da qual
Y. Renouard disse, a propósito de Florença: “O que
a dominação política dos homens de negócios estabe­
leceu foi efetivamente um regime de classe”. Essa clas­
se, apesar das reservas expressas por eminentes histo­
riadores a respeito desse termo, devemos chamá-la de
patriciado.
“Que é, afinal, esse patriciado?”, escreve J. Les-
tocquoy, “É uma classe social cujos contornos não re­
ceberam uma confirmação jurídica, pois não se pode

55
confundir esses grupos de homens bastante fechados
com a burguesia. É uma fração da burguesia, não ra­
ro a mais rica, mas sobretudo a mais poderosa por sua
influência no governo da cidade. Essa classe social só
adquire toda a sua amplitude nas cidades onde a in­
dústria e o grande comércio oferecem possibilidades
de enriquecimento quase ilimitadas.
Sem dúvida, o apogeu do patriciado situa-se no
século XHJ; nos séculos seguintes, sob o efeito das cri­
ses econômicas, uma evolução social e política vem às
vezes impor limites à onipotência dos patrícios.
Muito embora os movimentos revolucionários ur­
banos não passem de incêndios breves, rapidamente
apagados, os artesãos pertencentes às classes médias
conseguem com frequência dividir com os grandes mer­
cadores o poder político das cidades.
Entre os motivos que levaram o povo das cidades
a sublevar-se contra a tirania patrícia gritando “Abaixo
os ricos!”, ao lado das reações da miséria que erguiam
as “unhas sujas” contra os mercadores capitalistas,
deve-se sublinhar os ressentimentos decorrentes da ges­
tão das finanças urbanas pelos patrícios.
Os patrícios no poder fixam o imposto. Já por is­
so eles estão votados à impopularidade que é levada
ao extremo pelo fato de eles próprios se dispensarem
de pagá-lo, fazendo recair o respectivo ônus sobre os
mais pobres. Um célebre texto de Beaumanoir, em suas
famosas Coutwnes du Beauvaisis, mostra isso muito
bem:
“Inúmeras reclamações aumentam nas cidades de
comuna a propósito da derrama, pois com freqüência
os ricos que governam os negócios da cidade declaram
menos do que devem, eles e sua família, e fazem
beneficiar-se das mesmas vantagens os outros ricos; as­
sim, todo o ônus recai sobre os pobres.”
A fraude fiscal chegou a tal ponto que por vezes
irromperam escândalos, como em Arras, onde um

56
membro da famosa família de banqueiros dos Cres-
pin “esqueceu” de declarar 20 mil libras!
Mais ainda, a fraude fiscal acompanha-se do des­
perdício do dinheiro público, uma parte do qual vai
para as caixas dos grandes mercadores. As cidades se
endividam e às vezes vão à falência, como Noyon. Ve­
mos os célebres Bardi e Peruzzi em Florença, em 1343,
tentarem tomar o poder para evitar a bancarrota de
suas empresas, e, num momento de dificuldade, o Mag­
nífico não hesitará, para restaurar as finanças da fir­
ma dos Mediei, em recorrer à Caixa Comunal em no­
me das raparigas pobres.

1. Os mercadores “democratas” — Mais curioso tal­


vez seja o papel que, nos movimentos "democráticos”
e mesmo francamente revolucionários, desempenha­
ram alguns grandes mercadores e membros do patri-
ciado. Jacques Van Artevelde e Etienne Marcei são dois
exemplos célebres.
Preboste dos mercadores de Paris, Etienne Mar­
cei pertence a uma das maiores e mais ricas famílias
de fabricantes de tecidos da cidade. Sua oposição à po­
lítica real é a princípio a mesma dos membros de sua
ciasse, hostis à nobreza feudal que cerca a realeza e
aos funcionários da monarquia, que tentam controlar
os negócios dos mercadores. Ele se aproveita da der­
rota de Poitiers e da regência do jovem delfim Carlos
para tentar impor as condições da burguesia ao regente
e seus conselheiros, por meio da revolta instaurada em
Paris. Trata-se sobretudo de diminuir os tributos fis­
cais que pesam sobre as cidades. Mas, para submeter
Paris, precisa apoiar-se no povo parisiense, no “co­
mum”. Não quer, no entanto, comprometer-se com
a Jacquerie — movimento revolucionário rural —,
abandonando-a à sua sorte. Mas acaba, em conseqüên-
cia da posição que toma, mesmo pensando numa re­
volução política que substituiría a monarquia dos Va-

57
lois pela dinastia de Navarra na pessoa de Carlos, o
Mau, se tornando cada vez mais o porta-voz do “co­
mum”. E é varrido, também ele, por uma reação das
classes dirigentes que se aproveitam, senão da cumpli­
cidade, pelo menos da passividade das classes popula­
res, não dispostas a apoiá-lo até o fim pois, na verda­
de, ele não é dos seus. E é assassinado, também ele,
em 31 de julho de 1358.
O ódio dos patrícios por esses mercadores “de­
mocratas” parece ter sido legado aos historiadores, que
muitas vezes só quiseram vê-los como “agitadores”.
Foi assim que os pintaram os cronistas “reacionários”
da época. Para o patrício florentino Villani, Artevel-
de foi um indivíduo desprezível, “de vil nação e ofí­
cio”, cuja morte encerra uma moral: “Tal é geralmente
o fim dos homens presunçosos que se fazem passar por
chefes das comunas”.
O cronista Jean de Hocsem também descreve Hen­
ri de Dinant, mais um desses “burgueses democratas”,
como um demagogo {ductor populi), e Jean d’Outre-
meuse diz a seu respeito: “Ele fazia o povo se levan­
tar contra o senhor e contra os clérigos... era tão fal­
so e traidor e cobiçoso, que não lhe bastava à ambi­
ção ter propriedade.” Reabilitando sua verdadeira fi­
gura, F. Vercauteren traçou um retrato dele que vale
por todos os seus semelhantes:
“Era um rico burguês, membro do patriciado, mas
não das antigas linhagens que detinham o poder em
Liège. Inteligente, ambicioso e eloquente, quis ter um
papel pessoal no governo dos negócios urbanos, libertar
a burguesia da autoridade principesca e pôr termo, para
esse fim, à oligarquia dos magistrados oficiais. Pare­
ce também ter tentado a realização de uma aliança es­
treita entre as principais cidades líegenses, a fim de opor
a política dos burgueses à do príncipe. Para levar a cabo
seus projetos, atraiu para si as massas populares, ex­

58
cluídas ainda de qualquer participação no poder polí­
tico, mas já amadurecidas para semelhante participa­
ção. Discerniu, pois, e utilizou um movimento profun­
do que aguardava o seu líder. Sua intervenção preci­
pitou a luta entre o povo e uma parte do patriciado
apoiado pelo príncipe, enquanto uma fração do clero
se conservava neutra. Mas, prisioneiro daqueles a quem
devia sua ascensão, obrigado pouco a pouco a adotar
uma atitude cada vez mais violenta e revolucionária,
foi abandonado pelos elementos do patriciado que o
haviam seguido no começo e a quem seu radicalismo
acabara por amedrontar. De político que era a princí­
pio, seu movimento tornou-se social; durante os últi­
mos meses de sua administração, Henri de Dinant não
pode mais contar com o apoio popular e, desde en­
tão, passa por um democrata ou mesmo, como diz
Hocsem, um demagogo. É isso que explica a impor­
tância e a força da coalizão que se forma contra ele
e que agrupa o príncipe, a nobreza e o patriciado. Não
terá sido difícil aos seus vencedores transmitir à pos­
teridade uma imagem deformada do tribuno e fazê-lo
passar por um vulgar agitador, inspirador de uma po­
lítica demagógica. A leitura dos cronistas liegenses do
século XIV mostra o sucesso que essa versão alcançou
e que haverá de conhecer, aliás, até o século XIX.”
É certo que rivalidades pessoais no seio do patri­
ciado — concorrência de negócios c de prestígio — e
considerações de ambição pessoal tenham tido seu pa­
pel em muitos casos. Muitas vezes, o interesse fez com
que esses ricos se colocassem ao lado dos pobres. Os
ricos açougueiros, como o famoso Cabocheem Paris,
que animaram movimentos revolucionários, queriam
sem dúvida se servir do povo para vencer o desdém
que lhes atribuía o resto da alta burguesia, apesar de
sua fortuna. Em Metz, eles foram também o “elemento
revolucionário mais ativo”. Mas em muitos casos es­
ses desertores, desgostosos com o egoísmo e a fero-

59
cidade de sua classe e conscientes de uma evolução que
contrariava a obstinação dos patrícios instalados em
seus privilégios, não fizeram mais que seguir a voz de
sua consciência e inteligência.
A comunidade de ação, por exemplo, de Tournai
em 1280, onde os patrícios formam a “Confraria dos
Donzéis”, aliança da grande burguesia contra o povo
ameaçador, nào impediu a irrupção, no interior do pa­
triciado, das mais ásperas rivalidades políticas, expres­
são das disputas comerciais.
A) Lutas dos dãs burgueses — Essas lutas entre
grandes famílias patrícias são paríicularmente célebres
na Itália. Muitas vezes, elas formam a base da oposi­
ção que lança os guelfos contra os gibelinos, como,
por exemplo, em Gênova, onde das quatro grandes fa­
mílias, quatro “tribos”, os Fieschi e os Grimaldi são
guelfos e os Doria e os Spinola, gibelinos. Foi sem dú­
vida em Florença que essas lulas mais se celebrizaram
— entre Negros e Brancos, imortalizadas por Dante,
entre Alberti e Albizzi no fim do século XIV, entre Al-
bizzi e Mediei, Mediei e Pazzi no século XV, O triun­
fo político e a expulsão dos adversários são os melho­
res meios para que uma família se desembarace dos
concorrentes e destrua seus negócios. A grande com­
panhia dos Alberti declina e morre após a chegada dos
Albizzi ao poder.
Nos dois últimos séculos da Idade Média, contu­
do, essas rivalidades no seio das grandes famílias mer-
cantilistas são sem dúvida menos significativas e me­
nos importantes que o apoio cada vez mais decidido
que essa classe dá às novas estruturas políticas, acre­
ditando assim criar obstáculos para a ascensão das clas­
ses populares e para o perigo de certos movimentos re­
volucionários: é o que acontece onde quer que a tira­
nia e a monarquia centralizada apareçam (não é este,
por exemplo, o caso da Alemanha).
B) Mercadores e senhorias — Na Itália, os gran­
des mercadores favorecem o advento e a consolidação

60
das senhorias, e as rivalidades que podem ameaçar es­
tas últimas, constituídas por uma família de mercado-
res-banqueiros, como os Mediei em Florença, não de­
vem mascarar o profundo consentimento da grande
burguesia mercantil italiana em face de regimes que
garantem pela força e demagogia a segurança das for­
tunas.

2. Mercadores e príncipes — Bem cedo, os gran­


des comerciantes desempenharam também um papel
político junto aos príncipes e soberanos. A base desse
papel está, evidentemente, nos serviços financeiros e
econômicos prestados pelos mercadores-banqueiros às
potências eminentes que é preciso procurar.
Benedetto Zaccaria colocou sua frota e suas com­
petências de marinheiro a serviço dos reis da França
e de Castela, dos quais foi almirante. Para Felipe, o
Belo, ele organiza o arsenal de Ruão e traça o progra­
ma das construções navais do soberano.
Dino Rapondi, mercador e banqueiro de Lucca,
exerce um papel de diplomata e “verdadeiro ministro
das Finanças’* dos dois duques de Borgonha e condes
de Flandres: Felipe, o Temerário, e João Sem Medo.
As grandes empresas militares e políticas que re­
queriam a mobilização de grandes capitais colocaram
os mercadores italianos em primeiro piano.
Em primeiro lugar, as Cruzadas. Os negociantes
de Gênova, Pisa e Veneza fornecem aos cruzados as
embarcações, o abastecimento e o dinheiro, com mé­
todos, por vezes, tão evoluídos quanto os mandatos
sobre o tesouro real com os quais os mercadores ge-
noveses financiaram a sétima Cruzada, de São Luis.
Mas não se contentam com o$ lucros que lhes trazem
essas vendas ou empréstimos: controlam também a vida
econômica das conquistas ocidentais. Enquanto os ve-
nezianos se instalam em Bizâneio após a quarta Cru­
zada, vemos grandes mercadores como os Embriaci ad­

61
ministrarem as colônias que sua pátria genovesa pos­
sui na Síria e na Palestina.
Outro campo de ação para os mercadores: a con­
quista do reino de Nápoles pelos angevinos, com a aju­
da do papado. Na luta dos papas contra os imperado­
res alemães, o conflito com os filhos de Frederico II,
e sobretudo com seu filho natural Manfredo, senhor
da Itália do Sul e da Sicilia, passa a primeiro plano
após 1250. Os gibelinos, partidários de Manfredo,
triunfam em Síena e em Florença, e os principais
mercadores-banqueiros dessas cidades que mantinham
relações comerciais com a Santa Sé emigram ou são
exilados. Foi a eles que Clemente IV, um champanhes
bastante informado sobre operações financeiras inter­
nacionais, se dirigiu para o financiamento da conquista
do reino de Nápoles batizada de “cruzada” e confia­
da pelo papa a Carlos de Anju, irmão de São Luís.
Trata-se de uma empresa considerável com riscos enor­
mes. Para convencer os negociantes florentinos exila­
dos, o papa lhes hipoteca, em troca dos capitais que
adiantaram, o produto do imposto sobre a Cruzada
a ser recuperado nas feiras da Champagne, o tesouro
pontificai, os bens da igreja de Roma e, se necessário,
os objetos preciosos, os vasos de ouro e prata de sua
capela e de seu tesouro. A vitória das tropas francesas
e a instalação dos angevinos em Nápoles abriram aos
banqueiros de Carlos de Anju a dominação econômi­
ca na Itália do Sul e na Sicilia por mais de um século.
Foi dentre eles que os reis angevinos escolheram mui­
tos de seus principais conselheiros. É o caso dos Ac-
ciaiuoli de Florença. No começo do século XIV, um
Acciaiuoli é camareiro do rei Renato, vigário real e se­
nhor de Prato. A fortuna de seu filho Nicolau será ain­
da mais brilhante. Grande negociante, hábil adminis­
trador, diplomata sem par, ele junta a esses talentos
qualidades físicas que fazem dele o favorito da impe­
ratriz Catarina de Courtenay e da rainha Joana I. Nos

62
feudos que recebe na Grécia ou na Itália, leva uma vi­
da deslumbrante de grande senhor; embaixador do pa­
pa cm Avinhão, desempenha um papel de “fazedor
de reis”; um afresco de Andrea del Castagno nos con­
servou a figura altiva desse grande senescal do reino
da Sicilia.
A gestão das finanças da Santa Sé também repre­
senta para os mercadores italianos vastas possibilida­
des. Nos tempos de Avinhão, quando a rede de ma­
lhas, cada vez mais estreitas, do fisco pontificai se fe­
cha sobre a cristandade, são os grandes banqueiros ita­
lianos, sobretudo os Florentines, que fazem voltar o
produto dos impostos e taxas múltiplas às caixas da
Cúria, adiantam ao papa as consideráveis quantias de
que ele precisa, fazem por ele todas as operações fi­
nanceiras necessárias e dispõem, sobre uma vasta área
geográfica, dessa incomparável massa de manobra que
o dinheiro da Igreja oferece para os seus negócios1.
Banqueiros do papa, como mostrou Y. Renouard, são
também conselheiros políticos. Os papas de Avinhão
farão da sociedade dos “Alberti antichi” até mesmo
uma verdadeira agência de informação a seu serviço.
A política continental dos reis da Inglaterra pro­
porciona aos italianos um terreno de operações igual­
mente privilegiado. Financistas das empresas inglesas
da Guerra dos Cem Anos, eles consolidam junto aos
soberanos de Londres sua posição econômica, assim
como postos militares e políticos. Sem dúvida revela-
se aqui a importância dos riscos em detrimento dos em-
prestadores mais imprudentes, e o fracasso de uma ex­
pedição inglesa cornará inevitável a falência das maiores
companhias floreminas, como as dos Peruzzi e dos Bar-
di. No século XV, porém, mais uma vez veremos os
mercadores italianos, em regiões onde não têm inte­

I. Mas as possibilidades oferecidas para a transferência de capitais


foram, sem dúvida, as mais importantes.

63
resses comerciais — em Guyenne, por exemplo —, ser-
vir aos reis da Inglaterra como governadores e almi­
rantes.
Vemos também no fim da Idade Média, no con­
texto dessas monarquias cujo caráter nacional matiza
cada vez mais a ação centralizadora, mercadores lo­
cais aparecerem no primeiro plano do palco político.
Um William de La Pole já é influente junto a Eduar­
do III da Inglaterra. Sabe-se do brilhante papel desem­
penhado no século XV por Jacques Coeur junto a Car­
los VII da França.
Assim, ao longo de toda a Idade Média, seja o
patriciado das cidades, no contexto urbano e comu­
nal, sejam os grandes capitalistas, no contexto esta­
tal, os mercadores-banqueiros respaldaram e coroaram
seu poder econômico com um poder político onde se
mesclavam a busca do lucro e do prestígio. 1

3. , ls grandes famílias burguesas — Entre elas,


vamos encontrar quase sempre os mesmos nomes. As
grandes casas mercantis se identificaram com as linha­
gens do patriciado, com as grandes famílias do comér­
cio, do banco e da política. Eram dinastias burguesas
e por vezes enobrecidas, como as dos Ziani e dos Mas-
tropiero, dos Soranzo e dos Balbi, em Veneza; dos Sa-
limbeni, Tolomei e Buonsignori, em Siena; dos Bar-
di, Peruzzi, Acciaiuoli, Alberti, Albizzi, Mediei e Pazzi,
em Florença; dos Ficschí, Spinola, Doria, Grimaldi,
Uso di Mare, Gattilusio, Lomellini e Centurioni, em
Gênova; dos Uten Hove e Van der Meire, em Gand;
dos du Markiet, Boinebroke e Le Blond, em Douai;
dos Crespin, Hucquedieu, d’Yser e Stanfort, em Arras.
Poderia, pois, parecer que essa classe dos gran­
des negociantes medievais, além de sua coerência eco­
nômica e política, tenha conhecido uma outra forma
de coesão: a continuidade familiar.
Num estudo célebre, Henri Pirenne negou essa te­
se. Para ele, “aos diversos períodos” da história, es­

64
pecialmente a Idade Média, “corresponde uma classe
distinta de capitalistas... Não é do grupo dos capita­
listas de uma dada época que procede o grupo dos ca­
pitalistas da época seguinte. A cada transformação do
movimento se produz uma solução de continuidade.
Os capitalistas que até então desenvolveram sua ativi­
dade, se reconhecem, dir-se-ia, incapazes de adaptar-
se às condições requeridas por necessidades até então
desconhecidas e que exigem métodos não-emprcgados.
Retiram-se da luta para se transformar numa aristo­
cracia cujos membros, embora ainda intervenham no
manejo dos negócios, só o fazem de modo passivo, na
qualidade de arrendadores de fundos. Em seu lugar,
surgem homens novos, ousados, empreendedores, que
audaciosamente se deixam levar pelo vento que sopra
e sabem dispor suas velas de acordo com sua direção,
até o dia em que, modificando-se essa direção e deso­
rientando suas manobras, eles se detêm por sua vez e
se apagam diante de uma equipe dotada de forças fres­
cas e de tendências novas”.
Essa tese encontrou diversos contraditores, e, em
torno de sua fecunda sugestão, travou-se um debate
sempre aberto, com a especial participação de G. Es-
pinas e J. Lestocquoy: “Novos-ricos ou filhos de ri­
cos?”
Não nos ocupamos aqui de um aspecto dessa dis­
cussão, aquele que se refere à origem da classe dos gran­
des mercadores medievais. Sem dúvida, como mostra­
ram depois de Eirenne, em muitos lugares são antigas
famílias nobres, antigos funcionários feudais, possui­
dores de uma certa massa de capitais, que se entrega­
ram ao comércio fornecendo-lhe seus cérebros e seus
dirigentes. Mas Pircnne chamou a atenção para aque­
les que — aproveitando-se do surto demográfico dos
séculos X-XI1 e do movimento urbano que deslocou
os quadros da sociedade rural e militar da Alta Idade
Média —, partindo do nada ou de pouco, se elevaram
ao primeiro plano graças ao comércio.

65
Mesmo assim, a classe dos grandes mercadores se
estabilizou, uma vez desaparecidas essas condições ex­
cepcionais de mobilidade social. A partir do século
XIII, os Rockefeller e os Carnegie, que sempre cons­
tituíram exceções, foram cada vez mais raros na Ida­
de Média. Não entrou quem quis na grande burguesia
comercial, salvo talvez na Inglaterra, onde, sobretu­
do na ciasse mercantil londrina, a “fluidez” parece ter
sido muito grande nos séculos XIV e XV2. Como disse
A. Sapori referindo-se a Florença, só “nas classes aci­
ma da do trabalhador assalariado” é que houve "coni-
penetração’’. “Os membros do que se costuma cha­
mar de burguesia faziam bloco contra o povinho, res­
tabelecendo o sistema das contribuições centrado nos
impostos indiretos, ditando as modalidades do traba­
lho manual e fixando-lhe as remunerações.” No sécu­
lo XIV, acaba se estabelecendo o divórcio — nos pla­
nos político e ideológico — entre capital e trabalho.
Os burgueses convertidos em capitalistas são tratados
de “ociosos” (otiosi) pelos trabalhadores. A separa­
ção é completa entre os ofícios “fundados no labor
ou na mercadoria”. .Já no fim do século XIII, “só
quem não ganha a vida pelo trabalho manual” pode
ingressar no Rat de Lübeck, e desde 1312 as “pessoas
mecânicas” são excluídas das funções municipais em
Nevers.
Mas há, na tese de Pirenne, algumas constatações
de primordial importância.
E justo vincular o aparecimento de certas famí­
lias no primeiro plano do palco dos negócios e a ex­
tinção de algumas outras às diversas fases do movi­
mento econômico. Mas, salvo exceções, nem sempre
os recém-chegados são desconhecidos no mundo do
comércio e do banco,- nem os antigos desapareceram

2. Na Aleman tia do século XV é difícil distinguir o aspecto social


da emigração dos alemães do Sul para o Norte.

66
por completo. Em Veneza, os novos-ricos, que enri­
queceram por seu trabalho aproveitando-se do siste­
ma da commenda e depois se tornaram capitalistas cada
vez mais poderosos, formam os case nuove, as “casas
novas’’, que coexistem com as case vecchie dos anti­
gos ricos. Em Flandres, nos séculos XIV e XV, a grande
burguesia da poorterie compreende, ao lado dos novos-
ricos, os descendentes do antigo patriciado. Aliás, a
extinção de algumas famílias pode estar ligada a acon­
tecimentos políticos, como é o caso dos Alberti, mas
não se deve transformar em lei da evolução econômi­
ca e social as célebres páginas — belo trecho literário
•— de Eeon Battista Alberti, no século XV, em seu tra­
tado Da família, consagradas às vicissitudes das gran­
des famílias comerciantes que do fastígio do poder caí­
ram no declínio e no esquecimento.
Mais interessante é seguir a evolução que tende
a transformar os mercadores ativos em capitalistas.
Sem dúvida, ainda aqui a conjuntura econômica pesa
sobre tal evolução. É diante das dificuldades do co­
mércio, do estreitamento dos horizontes, da perda de
alguns mercados que os capitais comprometidos nos
negócios e no banco são concentrados e investidos em
bens imobiliários e fundiários. Isso vale particularmen­
te para os italianos, nos séculos XIV e XV, como já
vimos, e o desenvolvimento de um império veneziano
de Terra Firme está ligado a esse recuo dos capitalis­
tas para a terra. F.-C. Lane mostrou-o no caso de An­
drea Barbarigo e seus descendentes: ele que investiu
todo o seu dinheiro no comércio esperou a idade ma­
dura para comprar um domínio predial. Mas os tuto­
res de seus filhos começam a comprar com sua heran­
ça outras propriedades nas regiões de Treviso e de Ve­
rona, sem contar os domínios coloniais em Creta, e
investem o dinheiro de seus pupilos de preferência em
títulos de empréstimo de Estado. É o momento em que,
devido à conquista turca, Veneza sofre pesadas per-

67
das no Oriente. Em 1462, já não há senão um décimo
do capital familiar investido no comércio. Quando o
filho mais velho Nicolò faz seu testamento, em 1496,
recomenda ao seu próprio filho não investir capitais
no comércio, que rende muito pouco.
Do mesmo modo, quando em 1457 uma crise fe­
cha aos Popplau de Breslau os mercados da Boêmia,
Kaspar Popplau aplica uma parte de seus capitais no
campo, onde compra terras. E, assim como essa nova
orientação dos capitais mercantis permite a substitui­
ção da antiga aristocracia fundiária por uma nova, é
por investimentos de um novo tipo que, nas cidades,
um patriciado de novos-ricos substitui o antigo. Em
Lübeck, os homines novi compram rendas e seus de­
vedores pertencem essencialmente às velhas linhagens
e se encontram doravante à mercê de seus credores.
Já no fim do século XIII, a viúva de Bertrand Morne-
wech, “o primeiro e o mais feliz representante do no­
vo tipo de mercador”, investe desse mesmo modo
14.500 marcos lübeckenses entre 1286 e 1300.
Mas essa evolução, acentuada e acelerada pela his­
tória econômica, nào está inteiramente ligada a ela.
É um movimento natural que, em nossa época, leva
o negociante a investir em propriedades imobiliárias
e prediais. Na juventude, as viagens; na idade madu­
ra, os negócios sedentários; na velhice, uma semi-
aposentadoria em suas terras. Mais do que uma ques­
tão de idade, é uma questão de geração. O pai, edifi­
cador da empresa, embora no início dispusesse de uma
certa fortuna, consagra àquela todo o seu tempo, es­
forços e dinheiro. O filho ou neto, criados na abas-
tança, que receberam de sua educação ao mesmo tempo
o gosto da cultura e a sensibilidade às coisas da arte,
dedicam menos tempo aos negócios e mais às despe­
sas pessoais: prazeres do espírito, prazeres menos no­
bres. Depois dos acumuladores, os desfrutadores. De­
pois dos mercadores que só são mercadores, os mer-

68
cadores-artistas. Para a época moderna, no contexto
de uma velha cidade da Alemanha hanseática, Tho­
mas Mann pintou essa evolução, em Os Buddenbrooks.
Ela foi freqüente na Idade Média. Vamos encontrar
uma célebre ilustração dela entre os Mediei. De Cos­
me a Lourenço, o dinheiro que foi irrigar o Renasci­
mento florentino faltou para os negócios da firma fa­
miliar.
Portanto, se é justo estabelecer matizes e se é pre­
ciso desconfiar da “concepção de uma classe burgue­
sa fazendo bloco a cada época”, em todo caso, a clas­
se dos grandes mercadores burgueses com vicissitudes
c renovações, apresentou na Idade Média uma notá­
vel unidade cuja trama é feita não só das permanên­
cias econômicas, mas também das continuídades hu­
manas no seio das grandes famílias do comércio e do
banco.

69
CAPÍTULO III
A atitude religiosa e moral

I. A Igreja contra os mercadores: a teoria

Afirmou-se com frequência que o mercador me­


dieval foi importunado em sua atividade profissional
e rebaixado em seu meio social devido à atitude da Igre­
ja a seu respeito. Condenado por ela no próprio exer­
cício de sua profissão, teria sido uma espécie de pária
da sociedade medieval dominada pela influência cris­
tã.

1. A condenação — De fato, alguns textos céle­


bres parecem incluir o mercador no index. Eles se re­
sumem numa frase famosa encontrada num adendo
ao decreto de Graciano, monumento do direito canô­
nico no século XII: Homo mercator nunquam aut vix
potest Deo placers, “o mercador nunca pode agradar
a Deus — ou dificilmente”. Os documentos eclesiás­
ticos — manuais de confissão, estatutos sinodais, co­
letâneas de casos de consciência — que fornecem lis­
tas de profissões interditas, illicita negocia, ou de ofí­
cios desonrosos, inhonesta mercimonia, quase sempre
incluem o comércio. Neles, encontra-se uma frase de
uma decretal do papa São Leão Magno — por vezes
atribuída a Gregório, o Grande — segundo a qual “é
difícil não pecar quando se exerce a profissão de com­
prar e vender”. Santo Tomás de Aquino sublinhará que
“o comércio, considerado em si mesmo, tem um certo
caráter vergonhoso” — quamdam turpitudinem ha-

7]
be!. Eis o mercador rejeitado, parece, pela Igreja, em
companhia das prostitutas, dos jograis, cozinhei*
ros, soldados, açougueiros, taberneiros e também,
aliás, dos advogados, notários, juizes, médicos, cirur­
giões, etc,

2. Os motivos — Quais os motivos dessa conde­


nação? Em primeiro lugar, o próprio objetivo do co­
mércio: o desejo de ganho, a sede de dinheiro, o lu­
crum. São Tomás declara que o comércio “é conde­
nado com toda a razão porque satisfaz por si mesmo
à cobiça do lucro, que, longe de conhecer qualquer li­
mite, se estende ao infinito”. A literatura e a arte me­
dievais transmitiram-nos a imagem que seus contem­
porâneos tinham do mercador ávido de lucro e por is­
so mesmo em conflito com a moral cristã, castigado
por Deus e pela Igreja. Há o Padre-Nosso do usurá-
rio que não consegue deixar de pensar em seus negó­
cios e em seus denários ao recitar sua prece e, mais ain­
da, o Credo do usurário, cujo herói moribundo, ver­
dadeiro Grandet medieval, não se* contenta em entre ­
mear as palavras de sua derradeira prece com alusões
ao seu dinheiro, mas manda trazê-lo e amontoá-lo dian­
te dele e, terminada a recitação, pede que o enterrem
com o seu maior saco de dinheiro:

“Então, ele se volta e cerra os dentes


Sua alma se separa de seu corpo
E assim que ela sai
Os Diabos a levam,
Atnétn, para o inferno eterno."

E é entre as almas condenadas, no círculo infer­


nal onde estão os amantes da riqueza, que vamos en­

* Personagem sovina do romance £ugénie Grande:, de Balzac.


(N. R.)

72
contrar os mercadores entre seu dinheiro e os diabos
que os torturam — como, por exemplo, nos afrescos
de Taddeo di Bartolo da coiegiada de San Gimigna­
no. A primeira causa dc sua condenação c que, pelo
objetivo que eles se propõem — o lucro, a riqueza —,
eles quase que inevitavelmente cometem um dos peca­
dos capitais, a avariíiii, ou seja, a cupidez.

3. A usura — Mais precisamente, o mercador e


o banqueiro são levados, por sua profissão, a praticar
ações condenadas pela Igreja, operações ilícitas que,
em sua maioria, são denominadas usura.
Por usura, a Igreja entende, com efeito, todo ne­
gócio que comporta o pagamento de juros. Por isso,
o crédito, base do grande comércio e do banco, é in­
terdito. Em virtude dessa definição, todo mercador-
banqueiro, praticamente, é um usurário.
As razões alegadas pela Igreja para a condenação
da usura são múltiplas. Há, em primeiro lugar — ar­
gumento decisivo para ela —, os textos das Escritu­
ras. Dois deles se revestem de autoridade neste parti­
cular, um tirado do Antigo Testamento, outro do No­
vo. O primeiro, extraído do Deuteronômio (XXIII,
19-20, e completando aliás um texto do Êxodo XXII,
25, e um do Levítico XXV, 35-37), declara:

Não exigirás de teu irmão nenhum juro nem para di­


nheiro, nem para víveres, nem para coisa alguma que se preste
> ao juro.

As palavras do Novo Testamento são colocadas


na própria boca de Cristo, que diz aos seus discípulos:

Se emprestais apenas àqueles dc quem esperais resti­


tuição, que mérito tendes? Porque os pecadores em­
prestam aos pecadores a fim de receber o equivalen­
te... Emprestai sem nada esperar em retorno, e grande
será vossa recompensa. (Lucas, Ví, 34-35.)

73
Os autores eclesiásticos mencionam também um
certo número de motivos ligados à moral natural. Dois
deles são particularmeme interessantes. O empresta-
dor, em primeiro lugar, não realiza um verdadeiro tra­
balho, nem cria e transforma uma matéria ou objeto,
mas explora o trabalho alheio, o do devedor. Ora, a
Igreja, cuja doutrina se formou no meio rural e arte-
sanal judaico, só reconhece esse trabalho criador co­
mo fonte legítima de ganho e de riqueza. Tanto mais
que a ascensão das classes urbanas no Ocidente, entre
os séculos X e XIII, traz novamente ao primeiro pla­
no da sociedade os trabalhadores nesse sentido tradi­
cional — incluindo aí os primeiros mercadores cristãos,
de labor itinerante.
Há também a dificuldade com que os canonistas
e teólogos se defrontam para admitir que o próprio di­
nheiro possa gerar dinheiro e que o tempo — aquele,
de maneira concreta, que decorre entre o ato do em­
préstimo e o de seu reembolso — possa também pro­
duzir dinheiro. A primeira consideração, que levou à
formulação do famoso adágio Niimmus non parít niim-
mos, “dinheiro não produz dinheiro”, vem de Aris­
tóteles e difundiu-se com as obras e as idéias desse fi­
lósofo no século XIII.
Na esteira do Estagirita, São Tomás de Aquino
e Gilberto de Lessines afirmam que o dinheiro deve
servir para favorecer as trocas e que acumulá-lo, fazê-lo
frutificar por si mesmo, é uma operação contra a na­
tureza. “Em vez de transferir os bens necessários à vi­
da, acumula-se com espírito avaro”, diz Gilberto de
Lessines. Belo exemplo dos resultados da influência
aristotélica sobre o pensamento cristão medieval. Por
um lado, o dinheiro é um estimulante, um suporte na
elaboração de uma reflexão que busca adaptar-se às
novas condições da economia. A teoria de uma moe­
da, instrumento da circulação dos produtos, é um ine­

74
gável progresso em relação ao entesouramento prati­
cado pelos homens da Alta Idade Média, adeptos de
um ideal de economia fechada. Mas é também, por pu­
ra aceitação de uma nova autoridade, obstáculo, so­
brecarga, fonte de incompreensão e de novas dificul­
dades. Porque essa teoria da moeda, negando o valor
do crédito, provoca um divórcio entre o pensamento
cristão e a evolução econômica.
Mais grave talvez, porque põe em jogo estrutu­
ras mentais ainda mais complexas e fundamentais,
é a concepção cristã do tempo. Em São Tomás e em
outros teólogos e canonistas, encontramos, com efei­
to, o argumento de que pela prática do juro se “ven­
de o tempo”. Ora, este não pode ser uma proprie­
dade individual. Pertence unicamente a Deus. Assim,
a reflexão cristã, não podendo fugir a um contexto
teológico-moral estreito, se mostra incapaz de che­
gar a concepções econômicas, quaisquer que sejam os
consideráveis esforços dos pensadores e juristas do
século XIII. O mercador, por sua vez, também não
consegue chegar à concepção clara e à formulação das
crenças econômicas que constituem o fundamento de
sua atividade, mas não é esse o seu papel. Ele as ex­
prime em suas operações: assim como o outro prova­
va o movimento andando, ele prova o crédito comer­
ciando.

4. Mercadores cristãos e infiéis — Em circunstân­


cias especiais, os mercadores medievais também atraí­
ram para si a reprovação da Igreja na luta contra os
infiéis. Já na Alta Idade Média, os mercadores dos pri­
meiros grandes centros comerciais italianos — Nápo­
les, Amalfi, Veneza —, cujo tráfico com os muçulma­
nos representava uma parcela importante de suas ati­
vidades, tomaram por vezes, nas lutas entre cristãos
e infiéis, o partido destes últimos, incorrendo nas ex­

75
comunhões do papado. Essas questões tornaram-se
ainda mais agudas na época das Cruzadas, quando a
igreja se engajou sem restrição na luta armada con­
tra o Islã — numa época em que o desenvolvimen­
to do comércio internacional tornara os contatos mer­
cantis com os árabes praticamente indispensáveis pa­
ra os grandes mercadores ocidentais. Veneza partici­
pou da primeira Cruzada só a contragosto e para ga­
rantir sua parte no saque quando a expedição esti­
vesse suficientemente adiantada. Parece que sempre
preferiu desviá-la para Bizâncio, o que conseguiu, co­
mo se sabe, na quarta Cruzada. A legislação das Cru­
zadas estipula efetivamente a interdição do comércio
com o inimigo e decreta o embargo sobre os produtos
estratégicos, particularmente as madeiras, o ferro, as
armas e os navios. De modo mais geral, a Igreja proi­
bia, em caráter permanente, a venda de escravos ao
Islã, que constituía um dos maiores tráficos dos mer­
cadores cristãos medievais. Ora, as trocas, mesmo na
época das Cruzadas, não se interromperam. Uma cor­
respondência entre mercadores muçulmanos de Tunis
e um mercador cristão de Pisa mostra — entre outros
documentos — a excelência das relações entre comer­
ciantes infiéis e cristãos, o que se chamou de “a soli­
dariedade dos mercadores muçulmanos e cristãos”.
Eis, por exemplo, o começo de uma dessas cartas:
“Em nome de Deus, Clemente e Misericordioso
“Ao mui nobre e distinto 'xeque’, o virtuoso e
honrado Pace, pisano; que Deus preserve sua honra,
queira a sua salvaguarda, ajude-o e assista-o na reali­
zação do bem! Hilal ibn Khalifat-al-Jamunsi, vosso
amigo afeiçoado e que vos deseja o bem, a vós que
seguis os caminhos da virtude, vos envia estas sauda­
ções, a misericórdia e as bênçãos de Deus.” E a carta
é entremeada de numerosos:
“Meu caríssimo amigo, meu caro amigo Pace,”

76
II. A Igreja e os mercadores: a prática

Mas, assim como esse exemplo mostra a distân­


cia entre a realidade e a doutrina da Igreja, na prática
as relações entre a Igreja e os mercadores eram muito
diferentes da teoria que acabamos de esboçar.

1. Proteção dos mercadores — Bem cedo a Igreja


protegeu os mercadores. Já em 1074, o papa Gregório
VII ordena a Felipe I, rei da França, que restitua a mer­
cadores italianos vindos ao seu reino as mercadorias
que ele mandou confiscar. Chega a ameaçar o rei de
excomunhão em caso de recusa. E trata-se, como se dis­
se com razão, do “começo de uma longa série de do­
cumentos do mesmo gênero”. Ainda em 1263, vemos
o bispo de Dinant mandar edificar um mercado “para
proveito e utilidade de todos e sobretudo para os mer­
cadores”. Os manuais de confessores citam os merca­
dores entre as pessoas que podem ser dispensadas do
jejum ou da observância do repouso dominical, seja
porque seus negócios não podem sofrer protelação, seja
porque as fadigas de suas viagens lhes tornam penosas
as privações. Os esforços da Igreja no sentido de obter
a cessação das guerras privadas, o fim das lutas entre
príncipes cristãos, todo movimento que tendia a impor
as “tréguas de Deus”, a “paz de Deus”, só podiam fa­
vorecer a atividade dos mercadores, e esse objetivo é
às vezes explicitamente expresso. Assim, o 22? cânone
do Concilio de Latrão de 1179, que regulamenta a tré­
gua de Deus, exige segurança “para os padres, mon­
ges, clérigos, conversos, peregrinos, mercadores, cam­
poneses, animais de carga”. Há aqui, como bem no­
tou J. Lestocquoy, “uma espécie de hierarquia das pro­
fissões” aos olhos da Igreja. Os mercadores estão bem
colocados entre os clérigos e os camponeses.
Bem cedo, igualmente, vemos os mercadores con­
siderados como bons cristãos e, longe de serem manti­

77
dos a distância pela Igreja, acolhidos por ela e pro­
fundamente integrados no meio cristãodVemos em Ar­
ras todo um grupo de ricos mercadores em estreita li­
gação com a abadia de São Vedasto. Membros da fa­
mília Hucquedieu são 4‘homens de São Vedasto” . Jean
Bretel, que comercia nas feiras da Champagne, é fun­
cionário da abadia. Vimos mais acima um contrato co­
mercial redigido num convento genovês. Mais adian­
te, veremos os laços recíprocos que uniram na Idade
Média a Igreja e ricos mercadores.

2. Impotência da Igreja em face dos mercadores


— Sobretudo, talvez, o estudo dos documentos e um
simples relance de olhos na história econômica medie­
val mostram como a Igreja, em face dos mercadores,
foi impotente, como ela se viu desarmada para fazer
respeitar sua doutrina econômica.
Sem dúvida, contra a usura, considerada pecado
mortal, fonte de fortunas ilícitas e da qual, teoricamen­
te, não se podia fazer uso para fins caritativos, a Igre­
ja editou toda uma série de sanções. Em primeiro lu­
gar, castigos espirituais: excomunhão e privação de se­
pultura; em seguida, castigos temporais: a obrigação
de restituir lucros ilícitos; certas incapacidades civis,
como a não-validez dos testamentos dos mercadores
enquanto não tivesse sido feita a reparação de seus pe­
cados em matéria econômica. Sem dúvida, em alguns
casos, a Igreja procura efetivamente aplicar sua legis­
lação. É conhecido o caso de quinze usuráríos de Pis-
tóia, citados no final do século XIII perante o tribu­
nal do bispo. Mas o próprio fato de os documentos
do processo indicarem que alguns deles praticam a usu­
ra abertamente há vinte anos, mostra bem que a Igre­
ja não recorre às excomunhões senão de maneira ex­
cepcional. Às vezes, trata-se de satisfazer a eclesiásti­
cos ou a pessoas ligadas à Igreja em conflitos com mer­
cadores, como a intervenção pontificai em 1228 a ía-

78
vor de Robert de Béthune, solicitador de São Vedasto
de Arras, vítima das práticas de vários dos principais
homens de negócios dessa cidade. Na maioria das ve­
zes, a Igreja fecha os olhos, tanto mais que os merca­
dores e os banqueiros logo encontrarão meios de con­
tornar as interdições eclesiásticas e disfarçar a usura
camuflando os juros. Quando a letra era respeitada,
a Igreja aceitava mais facilmente que o espírito fosse
traído. Ora os juros pagos pelo devedor eram apresen­
tados como doação voluntária, ora assumiam a for­
ma de uma multa paga quando da expiração do prazo
de reembolso fixado expressamente numa data muito
próxima, multa compensatória paga anualmente e em
troca da qual os lombardos recebiam uma licença au­
torizando a prática das operações teoricamente inter­
ditas. Às vezes, a usura era camuflada de tal modo que
se tornava difícil descobri-la, como no caso do câm­
bio seco, que se operava com a ajuda de uma letra de
câmbio fictícia onde se mencionavam operações de
câmbio que não eram realmente efetuadas.

3. A justificação do mercador — Impotente na


prática, a Igreja chegou a uma teoria mais tolerante,
admitiu pouco a pouco derrogações e justificou isen­
ções cada vez mais numerosas e importantes. Os mo­
tivos de tais escusas, obra da elaboração jurídica dos
canonistas e teólogos do século XIII, são particular­
mente interessantes de estudar, já que mostram como
a Igreja fez aceitar ideologicamente a posição conquis­
tada pelo mercador na sociedade medieval nos planos
econômico e político.
Há, primeiro, a consideração dos riscos em que
o mercador incorre. Eles são evidentes quando o mer­
cador sofre um prejuízo real, damnum emergens. Nesse
caso, como, por exemplo, se ele sofreu um atraso no
reembolso, deve receber uma compensação que logo
não precisa mais camuflar-se sob o nome de multa, mas

79
pode chamar-se “juros”. Por outro lado, o em pres­
tador se priva de um lucro possível, ou mesmo prová­
vel, ao imobilizar em seus empréstimos o dinheiro que
podería servir-lhe imediat amente para outros fins. Já
no final do século XII, uma decreta] de Alexandre HI,
regulamentando a venda a crédito, autorizava por es­
se motivo, lucrum cessans, o recebimento de uma in­
denização. De um modo mais geral, o emprestador
sempre corre riscos: insolvência ou má fé do devedor,
juntando-se a isso, a partir do final do século XIII,
o perigo de ver o valor do dinheiro emprestado dimi­
nuído na hora do reembolso, seja em conseqüência de
uma mudança monetária, seja por efeito das flutua­
ções no preço da prata. Esse risco, periculum sortis,
que é levado cada vez mais em consideração à medida
que se compreendem melhor os mecanismos econômi­
cos e monetários, fornece então a base da doutrina da
Igreja no tocante ao comércio e ao banco.j Basta ha­
ver dúvida quanto ao resultado de uma operação —
ratio incertitudinis —, e a Igreja reconhecer que isso
pode ser inerente a toda atividade do mercador, para
que o recebimento de juros seja justificado. A habili­
dade casuística conduz então a fórmulas como a de Gil­
bert de Lessines, segundo a qual “a dúvida e o risco
não podem ocultar o espírito de lucro, isto é, descul­
par a usura”, mas, havendo “incerteza e não cálcu­
lo... a dúvida e o risco podem equivaler à eqüidade
da justiça”. Assim, tornam-se autorizados os contra­
tos de associação, de “sociedade”, o câmbio e sobre­
tudo as operações tais como o uso da letra de câmbio
— exceto o “câmbio seco” —, o comércio das rendas
constituídas, isto é, assentadas em bens imobiliários,
e os juros dos empréstimos públicos.
Há, também — e esse é um novo avanço no pro­
cesso de justificação do mercador pela Igreja —, a con­
sideração do labor do comerciante, do trabalho que
ele fornece e pelo qual deve receber salário, siipendium

80
laboris. Deparamos aqui com a teoria eclesiástica do
salário ligado ao trabalho, fruto da reflexão cristã so­
bre o movimento social dos séculos X-XIII e que re­
sulta numa sociedade fundada no trabalho dividido en­
tre os assalariados. A aplicação dessa teoria ao mer­
cador foi fácil numa época em que o mercador típico
era um viajante, um itinerante exposto a todos os pe­
rigos de que falamos mais acima. O mercador capita­
lista sedentário entrava mais dificilmente nessas cate­
gorias. Podia-se, é certo, considerar como um “tra­
balho” os cuidados de organização e as preocupações
de direção que ele tinha. Mas é antes em consideração
aos serviços que prestava à sociedade pelo uso de seu
dinheiro, de sua organização e de seus métodos, que
ele foi assimilado a um trabalhador.
Com efeito, foi a noção de utilidade e de necessi­
dade dos mercadores que veio coroar a evolução da
doutrina da Igreja e lhes valeu o direito de cidadania
definitivo na sociedade cristã medieval. Bem cedo se
evidenciou a utilidade dos mercadores, que, indo bus­
car em lugares distantes as mercadorias necessárias ou
agradáveis, os gêneros e os objetos inexistentes no Oci­
dente e vendendo-os nas feiras, forneciam às diversas
classes da sociedade aquilo de que elas precisavam. Eis
como fala o autor do Dit des marchands:

... que se devem os mercadores


Mais que a outras gentes honrar,
Pois eles vão por terra c tnar
E a muitas terras estranhas
Em busca de lã e de finas peles.
E há outros que vão para além-mar
Para pimenta, canela e gengibre comprar.
Que Deus guarde os mercadores do mal
Que a nós mesmo é preciso perdoar.
A Santa Igreja primeiramente
Pelos mercadores foi provida.
E sabei que a Cavalaria

81
Os mercadores em apreço deve ter
Pois sào eles que levam os corcéis
A Laingni, a Bar e a Provins.
Existem mercadores de vinhos,
De trigo, de sal e de arenque,
E de seda e de ouro e de prata,
E de pedras de mui grande valor.
Os mercadores vão pelo mundo afora
Buscando muitas coisas comprar.

Mas, no fim do século XIII e começo do século


XIV, duas noções vieram reforçar singularmente es­
sas considerações. A primeira é consequência da in­
trodução do pensamento antigo e do direito romano
na teologia cristã e no direito canônico. A idéia de
“bem comum”, de “utilidade comum”, tão impor­
tante, por exemplo, em Aristóteles, foi aplicada à ati­
vidade dos mercadores pelos autores cristãos. Ligan­
do essa idéia à do trabalho, Santo Tomás declara:

Se alguém se entrega ao comércio com vistas à utilidade pú­


blica, se quer que as coisas necessárias à existência não fal­
tem no país, o lucro, em ve; de ser visado como um fim,
é considerado como simples remuneração do trabalho.

Exatamente como Guillaume Durand e Burchard


de Estrasburgo, que declarara:

Os mercadores trabalham para benefício de todos e fazem


obra de utilidade pública trazendo e levando as mercadorias
das feiras.

A segunda noção resulta do reconhecimento da


interdependência dos países e das nações do ponto de
vista econômico. Evolução capital. Do pensamento au­
tárquico da Alta Idade Média, que considerava a ne­
cessidade das trocas exteriores um defeito, uma tara
econômica, passa-se à crença na necessidade e no be­
nefício dessas trocas. É a descoberta daquilo que será
o princípio fundamental do livre-câmbio, do capita-
lisrno libera). Razão suplementar para aproximar a re­
volução comercial do século XIII da do século XIX.
Essa noção já é esboçada por Tomás de Cobham,
no começo do século XIII, que diz em seu Manual de
confissão:

Havería uma grande indigência em muitos países se os mer­


cadores não trouxessem os artigos abundantes de certos lu­
gares para aqueks onde esses mesmos artigos faltam. Assim,
eles podem merecidamente receber o preço de seu trabalho.

Encontramos sua expressão mais acabada no co­


meço do século XIV, nos versos de um cônego de Tour-
nai, Gilles le Muisit. No poema C’estdesmarchands...,
este declara:

Nenhuma terra se pode prover sozinha;


Para tanto trabalham e penam os mercadores
Buscando em outros reinos o que falta;
Não se deve sem razão maltratá-los.

Por que os mercadores atravessam o mar.


Por prover o país, cies se fazem amar;
Jamais se faz censurável o bom mercador;
Faz-se antes amar e ser tido como bom c leal.

Nutrem nos países a caridade e o amor.


Por isso sua riqueza deve-nos alegrar.
É pena que na terra bom mercador empobreça.
Que Deus tenha suas almas quando partirem!

Assim, o grande comércio internacional é dora­


vante uma necessidade desejada por Deus. Ele entra
no plano da Providência. E, por sua atividade, tam­
bém entra o mercador, personagem caridoso, provi­
dencial, membro essencial da sociedade cristã.
É o que sublinhará com ênfase, no século XV, Be­
nedetto Coirugli, de Ragusa, em seu manual sobre O
comércio e o mercador ideal.
A dignidade e a profissão de mercador são gran­
des sob muitos aspectos... Primeiro, em razão do bem

83
comum, pois o progresso do bem-estar público é um
objetivo muito honroso, segundo Cícero, e deve-se mes­
mo estar disposto a morrer por ele... O progresso, o
bem-estar e a prosperidade dos Estados repousam em
grande parte nos mercadores; falamos sempre, eviden­
temente, não dos pequenos e vulgares mercadores, mas
dos gloriosos mercadores cujo elogio é o tema de meu
livro... Graças ao comércio, ornamento e motor dos
Estados, os países estéreis são providos de alimento,
de gêneros e de numerosos produtos curiosos impor­
tados de outras terras... os mercadores trazem tam­
bém, em abundância, as moedas, as jóias, o ouro, a
prata e todos os tipos de metais... O trabalho dos mer­
cadores é ordenado para a salvação da humanidade.

111. A mentalidade do mercador

Assim justificado e até exaltado, o mercador me­


dieval pode dar livre curso ao seu gênio. Seus objeti­
vos são a riqueza, os negócios, a glória.'\

1. O dinheiro — O amor ao dinheiro continua sen­


do sua paixão fundamental.
O mercador, diz Cotrugli, deve governar-se, a si
e aos seus negócios, de maneira racional para atingir
seu objetivo, que é a fortuna.
Todos os mercadores, sobre os quais se debruça­
ram os historiadores da Idade Média, têm esse amor
fanático pelo dinheiro, desde os banqueiros de Arras,
dos quais Adam de La Halle disse no século XIII: “ali
eles amam excessivamente o dinheiro”, desde os flo-
rentinos, pintados por Dante como “gente cúpida, in­
vejosa, orgulhosa”, apaixonada pelo florim, essa “flor
maldita que extraviou as ovelhas e os cordeiros”, até
os mercadores tolosanos e ruancses do século XV. To­
dos pensam como um mercador florentino do século

84
XIV: “Tua ajuda, tua defesa, tua honra, teu lucro,
é o dinheiro’’, E Mollat, estudando os grandes mer­
cadores normandos do fim da Idade Média, pôde fa­
lar do “dinheiro, fundamento de uma sociedade”.

2. A influência social — Para acumular esse di­


nheiro, é indispensável ter a paixão dos negócios, o gos­
to de fazer frutificar o capital, o espírito de iniciativa.
Em seu Livro dos bons costumes, o florentino Paolo
di Messer Pace da Certaido aconselha:

Se tendes dinheiro, não fiqueis inativo; não o conserveis es­


téril em vossa casa, pois mais vale agir, mesmo que disso não
se tire lucro, do que permanecer passivo e igualmente sem
lucro.

E mesmo que não se tenha dinheiro, ou se tenha


pouco, ainda assim existe um meio de fazer fortuna,
como ensina Cotrugii, que aconselha também não se
deixar abater pelos dissabores:

Vi grandes personagens que, arruinados, não se envergonha­


vam de emprestar cavalos aos carroceiros, de tornar-se cor­
retores, donos de estalagens ou seja lá o que for. E vi-os voltar
ricos em pouco tempo, com 10 mil ducados, não os nomea­
rei, pois não quero torná-los orgulhosos Ou humilhá-los em
seu orgulho. Sabemos também que os genoveses c os cata-
lães, se forem arruinados por algum acidente ou alguma má
fortuna, tornam-se piratas; os florentinos tornam-se corre­
tores ou artesãos e livram-se de embaraços graças à sua ha­
bilidade...

3. A dignidade — E os mercadores podem ser or­


gulhosos.
Frequentam artesãos, fidalgos, barões, príncipes
e prelados de todas as categorias. Estes últimos acor­
rem em multidão para visitá-los, pois sempre precisam
deles. Vêem-se mesmo, com muita freqüência, gran­
des eruditos visitar os mercadores em suas casas... Pois

85
nenhum profissional jamais soube, em nenhum reino
ou Estado, manejar o dinheiro — que é a base de to­
dos os estados humanos — como o faz um mercador
honesto e experiente,.. Nem reis, nem príncipes, nem
homem algum de qualquer posição tem tanta reputa­
ção e tanto crédito como um bom mercador... Assim,
os mercadores devem orgulhar-se de sua eminente dig­
nidade... Não devem ter as maneiras brutais dos ru­
des soldados nem as maneiras doces e afetadas dos bu-
fões e atores, mas a seriedade sempre deve transpare­
cer em sua linguagem, em sua postura e em todas as
suas ações, para que se mostrem à altura de sua digni­
dade.
Assim fala Benedetto Cotrugli, mercador de Ra-
gusa.

4. A ética mercantil — Esboça-se dessa forma uma


ética mercantil, toda mundana, toda laica. Ela se de­
fine por uma moral dos negócios que os manuais para
uso dos mercadores — Conselhos sobre o comércio e
outros — exprimiram com perfeição.
Do mercador exigem-se a prudência, o senso de
seus interesses, a desconfiança para com o outro, o me­
do de perder dinheiro, a experiência.

Não frequentes os pobres, pois nada podes esperar deles,

diz o nosso anônimo florentino; e, acima de tudo, o


mercador deve calcular. O comércio é uma questão de
raciocínio, organização e método.

Que erro, diz o anônimo, fazer o comércio empirica-


mente;! o comércio é uma questão de cálculo — “jf vuole
fare per r agí one".

Como bem disse Y. Renouard, os grandes nego­


ciantes italianos do século XIV, os mercadores me­
dievais

86
agem como se acreditassem que a razão humana pode com­
preender tudo, explicar tudo e dirigir sua ação... têm uma
mentalidade rationalists.

Mas, o que os leva a esse emprego da razão —


a ratio latina, a ragione italiana —, é muito mais o as­
pecto do cálculo que o da pesquisa desinteressada. Daí
o egoísmo que se manifesta na concorrência:

Não deves servir a outrem para desservir-te em teus próprios


negócios,

diz Paolo di Messer Pace da Certaldo. E o mercador


medieval, mais que qualquer outro, teve o senso e o
gosto — quase patológico — do segredo dos negócios.

É a essa obsessão pelo segredo que devemos mui­


tas vezes o fato de estarmos tão mal informados mes­
mo nos casos em que existem documentos. Os merca­
dores medievais — principalmente os genoveses —, pa­
ra não informar eventuais concorrentes, omitiram ou
camuflaram em seus livros, contratos e escriturações,
a destinação de suas empresas, calaram o nome de seus
correspondentes, a natureza das mercadorias. Como
produto desse estado de espírito e dessas práticas, Leon
Battista Alberti, no século XV, não apenas recomen­
dará ao mercador não colocar os membros de sua fa­
mília — a começar pela esposa — a par de seus negó­
cios, como o exortará a construir uma morada de on­
de nada transpire daquilo que se faz em seu interior,
espécie de fortaleza cujo exemplo são os palácios dos
mercadores florenünos. Recomenda também portas e
escadas secretas por onde passarão os mensageiros, os
empregados e portadores de notícias. Assim se mate­
rializa esse muro dos negócios que os capitalistas co­
meçaram a erguer desde a Idade Média.
Ficamos até mesmo escandalizados de ver o anô­
nimo florentino do século XIV, em seus Conselhos ao

87
mercador, citar um textq das Escrituras apenas para
se servir da autoridade do Deuteronômio (XVI, 19) e
recomendar o uso da corrupção:

Os presentes cegam os olhos dos sábios e emudecem a


boca dos justos.

IV. A religião do mercador

No entanto, seria um grande erro ater-se a essa


visão de um mercador medieval ocupado unicamente
com a busca dos bens deste mundo. Homem da Idade
Média, de uma sociedade toda impregnada de espíri­
to e práticas religiosas, ele é também um cristão.

1. A religião e os negócios — Já vimos, nos exem­


plos citados mais acima, que os documentos dos mer­
cadores se colocam sempre sob a invocação divina. Os
livros de comércio começam todos por estas linhas:
“Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Santa
Virgem Maria Sua Mãe e de toda a Santa Corte do Pa­
raíso, que por sua santíssima graça e misericórdia nos
sejam concedidos lucros e saúde, tanto no mar como
em terra, e que nossas riquezas e nossos filhos se mul­
tipliquem com a salvação da alma e do corpo. Amém.”

O estudo das relações entre ofícios, corporações


e confrarias é, a esse respeito, especialmente interes­
sante. G. Espinas e M. Bloch1 abordaram-no com
muita profundidade.
Principalmente os estatutos das corporações mer­
cantis manifestam as preocupações religiosas de seus
membros. A. Sapori analisou os estatutos da Arte de

1. CL M. Bioch (M. Foujères), Entr'aide et piétê: ks associations


urbaines au Mayen Âge, Méfanges d*hisfoire soeiale, 1944.

88
Calimala de Florença. O primeiro artigo ordena aos
membros da Arte a observância da fé católica e a co-
| laboração com as autoridades públicas na luta contra
os heréticos. O segundo enumera os dias de festas re­
ligiosas que devem ser mantidos. O quinto fixa com
minúcia a participação da corporação nas cerimônias
religiosas solenes, onde esta deve ser representada. O
I décimo-quarto prevê as despesas de caráter religioso
que a corporação deve fazer: a manutenção de um certo
número de lâmpadas acesas na igreja de São João, o
pagamento da iluminação completa dessa igreja du­
rante as festas solenes; esmolas especiais a serem da­
das aos pobres e a distribuição três vezes por semana,
a esses mesmos pobres, de pão amassado com bom
f rumen to.
i Francesco Pegolotti, na introdução de seu famo-
' so Manual do comércio, recopiou os versos de Dino
■? Compagni:

O mercador que almeja um grande mérito


Deve agir sempre com toda a eqüidade.
Que ele tenha uma grande previdência
E cumpra sempre as suas promessas.
Que seja, se possível, de aspecto afável,
Como convém à honrosa profissão que escolheu.
Franco ao vender, atento ao comprar,
Cordial em seu reconhecimento e que se abstenha de recri­
minar.
Seu mérito será ainda maior se frequentar a Igreja,
Se der por amor a Deus, concluir seus negócios
Sem discutir e se recusar em absoluto
A praticar a usura. Enfim, que cuide bem
Dc suas contas c nelas não cometa erros.
Amém, conclui Pegolotti.

2. A beneficência — Na própria prática de seus negó­


cios, o mercador dá uma parte a Deus e aos pobres,
segundo a inspiração da Igreja. Ao lado do grande
cofre-forte onde guardava seu dinheiro, um cofre me­
nor continha o dinheiro miúdo. Servia para as esmo-

89
Jas e, nos dias de festas, as sociedades comerciais da­
vam dinheiro trocado a cada um de seus membros pa­
ra ser distribuído aos pobres. Essas quantias eram re­
gularmente registradas.
Na Itália, aliás, Deus recebia, quando da consti­
tuição de uma sociedade comercial, uma parte na em­
presa. Associado, Deus tinha uma conta aberta, rece­
bia sua parte dos lucros, registrada nos livros sob o
título de “O Senhor Bom Deus”, “O Senhor Dome-
neddio”; e, em caso de falência, era pago prioritaria­
mente quando da liquidação. Pode-se ver nos livros
de Bardi que em 1310 Deus recebe 864 libras e 14 soi­
dos. Deus, isto é, os pobres que o representavam na
terra.
Por ocasião da assinatura de um contrato, era cos­
tume tomar Deus como testemunha e fazer-lhe em si­
nal de agradecimento uma oferenda chamada “Denier
à Dieu” na França, “Denaro di Dio” na Itália, “Gottes-
pfennig” na Alemanha (Dinheiro de Deus). Essa ofe­
renda era distribuída aos pobres.
Já no fim do século XI, Pantaleone de Amalfi doa
portas de bronze fundidas em Constantin opla, onde
possui vastos interesses, ao Domo de sua cidade natal
e à basílica de San Paolo fuori le Mura, em Roma;
manda construir uma magnífica igreja sobre o Monte
Gargano, onde apareceu o arcanjo Miguel; funda um
hospital em Antioquia e restaura mosteiros em Jeru­
salém.
Os atos de beneficência e as doações piedosas fei­
tas pelos mercadores medievais são incontáveis. J. Les-
tocquoy enumerou em Arras vinte e três leprosários,
hospitais ou asilos fundados por famílias de mercado­
res. Em Gand, o famoso hospital da Biloque é uma
fundação dos Uten Hove. Em Siena, o hospital de San­
ta Maria della Scala foi dado como dote por todos os
grandes mercadores e banqueiros da cidade. Obra única
em seu gênero, os afrescos de Domenico di Bartolo de-

90
11
í!

íI senvolvem em suas paredes um verdadeiro “ciclo hos-


*, pitaleiro” consagrado à representação de atos de ca-
1 ; ridade,
r

I 3. A penitência final — Era sobretudo no fim da


vida e na hora da morte que os ricos mercadores ma­
nifestavam seus sentimentos religiosos.
Alguns chegavam até a abandonar suâ profissão
e suas riquezas, entravam nas Ordens, recolhiam-se
num convento para all terminar seus dias.
Werimbold de Cambrai, no começo do século XII,
faz o bispo anular seu casamento, separa-se de sua mu­
lher e cada um deles se recolhe a um convento,
entregando-se à caridade. Distribui seus bens aos po­
bres e a duas abadias: Santo Alberto e Santa Cruz.
Em Veneza, em 1178, o doge Sebastiano Ziani,
? que graças ao comércio se tornou proverbialmente ri-
j co — dizia-se “rico como Ziani” —, recolhe-se ao mos-
I teiro de San Giorgio Maggiore. Lega-Lhe todas as ca-
|! sas que orlam a Merceria da igreja de São Julião, na
l; ponte São Salvador e ao cabido de São Marcos, den­
tre vários outros imóveis, transfere todos os que or­
lam a praça de São Marcos. Seu filho, Pietro Ziani,
também doge, recolhe-se igualmente, em 1229, ao con­
vento de San Giorgio Maggiore.
BaudeCrespin, o famoso banqueiro de Arras, ter­
mina sua vida no começo do século XIV como monge
de São Vedasto.
Bernardo Tolomei, um dos grandes banqueiros de
Siena, funda, com o mosteiro de Monte Oliveto Mag­
giore, onde se recolhe, a congregação dos Olivetanos.
A Igreja fez dele um dos Bem-Aventurados. Não é o
. ; primeiro mercador levado aos altares. Já no começo
í! do século XII, Godric de Finchale foi canonizado, e,
f um dos primeiros atos de Inocência III, foi canonizar
| j em 1197 um grande mercador de Cremona, Homebon.
* O exemplo de Santo Homebon será mais tarde citado
ê

il
por autores piedosos que mostrarão, por seu exemplo,
como se pode ir para o céu apesar ou através do co­
mércio. No caso dos mercadores, santifica-se a sua pro­
fissão.
Para esses grandes mercadores, a morte é também
a bora do arrependimento e, conforme as instruções
da Igreja, a da restituição a suas vítimas daquilo que
lhes tomaram indevidamente.
Remorso tardio, sem dúvida, e cujas conseqüên-
cias pesarão principalmente sobre os herdeiros encar­
regados de proceder a tais reparações. Notamos tais
remorsos no caso de Boinebroke.
Mas, sem que se trate de restituições propriamente
ditas, inúmeros e consideráveis são os legados à Igre­
ja, os estabelecimentos caritativos, feitos pelos mer­
cadores em seus testamentos. Francesco di Marco Da-
tini da Prato, que foi um negociante metódico e áspe­
ro no ganho2, deixa quase toda a sua fortuna, 75 mil
florins, para obras de beneficência.
O valor desses sentimentos e os motivos desses atos
piedosos e caritativos são certamente discutíveis.

4. Os motivos religiosos — Pode-se considerar sus­


peita uma religião que mistura tão facilmente Deus aos
negócios, exige-lhe êxitos terrestres e, talvez supersti-
ciosamente, faz a fortuna depender da proteção divi­
na. Em Toulouse, em 1433, o cambista Jacques de
Saint-Antonin fala dos bens “que Deus lhe concedeu
e que, com a ajuda de Deus, ele adquiriu neste sécu­
lo”. Notemos, em todo caso, que essa mentalidade,
da qual se pretendeu fazer uma das características do
espírito da Reforma, encontra-se largamente dissemi­
nada entre os mercadores desde a Idade Média.

2. Armando Sapori considera-o “o segundo tipo do mercador ita­


liano”, em quem *‘à generosidade e à audácia sucede um espírito pruden­
te e estreito”.

92
Pode-se pensar igualmente que o medo da Igre­
ja, que apesar de tudo dispunha de poderosos meios
de coerção temporal, deve ter inspirado muitos dos atos
aparentemente caritativos ou piedosos.
Notar-se-á sobretudo, como o fizeram eminentes
historiadores, quão decisivo foi no espírito dos mer­
cadores o medo do inferno. Essa obsessão de quase
todas as pessoas da Idade Média parece ter acometido
especialmente os mercadores. Em meio à prosperida­
de, na força da idade e do poder, as frases que a Igre­
ja lhes repete, as imagens terríveis que os pregadores,
confessores e artistas agitam diante deles são facilmente
afastadas. Mas, quando chega a hora de acertar as con­
tas, conhecedores dos veredictos implacáveis que po­
dem sair de uma balança, imaginando de bom grado
manter Deus os seus registros como eles mantêm os
deles, ficam amedrontados diante de seu passivo.
Empenham-se então em fazer com que o fiel da ba­
lança penda para o lado bom. Põem apressadamente
desse lado as doações, as restituições e, se necessário,
sua própria pessoa. Então, como no célebre tríptico
de Memling, no qual é pesado Tommaso Portinari, o
grande mercador de Bruges, cies fazem a balança pe­
sar para o lado do Paraíso dos Justos.
Cabe a cada um avaliar o valor de tal sentimento
e de tal comportamento. Não se pode negar que o me­
do do inferno seja uma forma do desejo fundamen-
lalmente cristão de alcançar a salvação e que a menta­
lidade medieval, menos sensível que a nossa àquilo que
somos tentados a chamar de hipocrisia, tenha podido
admitir mais facilmente a coexistência de um grande
cinismo com uma profunda religiosidade.

5. Mercadores e heresias — Infelizmente, é mui­


to difícil avaliar a parte que tiveram os mercadores nos
movimentos heréticos da Idade Média. Sem dúvida,
a fogueira de heresias que se produziu nos séculos XII e

93
XIII está ligada ao desenvolvimento urbano — ainda
que os vínculos entre as doutrinas catara, valdense, pa-
tarina e as classes urbanas tenham sido mal discerni­
dos. Encontram-se muito mercadores entre os heréti­
cos, principalmente no Languedoc, na Provença e na
Itália do Norte. É difícil precisar seu número, seu pa­
pel, e mais difícil ainda avaliar os seus motivos. Parti­
cipação na luta contra o poder eclesiástico, contra a
Igreja ligada à sociedade feudal? Por motivos econô­
micos, políticos? Sob o efeito de motivos mais propria­
mente religiosos?
Em todo caso, deve-se notar que no próprio seio
dessa classe de mercadores a influência cristã suscitou
muitas vezes reações de aversão ou medo em face do
dinheiro e do comércio. Mercadores — vimos alguns de­
les — que renunciam aos seus negócios e ao mundo. Mais
ainda, filhos de mercadores em ruptura com a ativida­
de e a psicologia paternas, Esse movimento pode levar
longe no itinerário religioso. À heresia, como Petrus Val­
do; às fronteiras da heresia e da ortodoxia, como os Umi-
liali italianos, ordens de monges-operários, poderosos
na indústria de lanifícios, da qual talvez tenha partici­
pado o Santo Homebon de Cremona. No interior da
Igreja, vamos encontrá-los no movimento franciscano,
com o próprio São Francisco. Mas chegamos aqui às
contradições dessa Ordem, à sua espiritualidade da po­
breza, aos conflitos de consciência de seus membros. A
pobreza dos antigos ricos não é a mesma que a dos que
sempre foram pobres. Ideal para uns, ela permanece para
outros como uma certa maldição. E, nesse turbilhão do
mundo franciscano, enquanto uns, ligados às velhas es­
truturas econômicas, permanecerão fiéis à idéia da po­
breza absoluta até cair nas heresias, outros, em contato
com as cidades, com o movimento comercial, aceitarão
mais facilmente tolerar e justificar a atividade do mer­
cador, a propriedade, o dinheiro — sob a condição de
permanecerem “pobres em espírito”.

94
V. Evolução da atitude da Igreja para com os
mercadores.

O estudo das relações concretas entre a Igreja e


os mercadores ]eva-nos a corrigir consideravelmente
os esquemas que os opõetn. É necessário, para com­
preender a sua complexidade, procurar nelas uma evo­
lução e suas causas. Foi por se ter considerado a Igre­
ja medieval como monolítica e imutável que se aven­
taram teorias de um simplismo inaceitável acerca de
sua atitude para corn os mercadores.

1. O período feudal — Quando se desenvolve a


revolução comercial, que só chegará ao seu apogeu nos
séculos XII e XIII, a Igreja, por sua posição econô­
mica, por seus vínculos políticos, por seu recrutamen­
to social e por seu ideal, está intimamente ligada ao
mundo feudal e rural. Durante esse período, a Igreja,
pouco aberta aos problemas do comércio, tem pouca
consideração pelo mercador. O fato de os judeus de­
sempenharem ainda nessa época um papel importan­
te no Ocidente no tocanre ao comércio internacional,
fortalece a Igreja em sua atitude de desprezo para com
tais atividades. Aliás, bem freqüentemente, ela tolera
o seu papel econômico — do qual os cristãos se apro­
veitam. Para ela, a sociedade cristã corresponde à fa­
mosa classificação de Adalbéron de Laon: os nobres
defendem a sociedade; os clérigos oram por ela; os ser­
vos lhe permitem viver graças ao seu trabalho, indig­
no das duas classes superiores. Sociedade militar, cie- [
rical e rural. A Igreja se espanta ou se escandaliza quan- i
do vê um membro dessa sociedade entregar-se aos ne­
gócios. Ignobiiis mercamra, é o que se diz sobre a vi­
da de São Guido de Anderlecht, no século XI, e aqui
ignobilis quer evidentemente dizer mais “que não con­
vém a um nobre” do que “infame”, e o mercador que
levou o santo a traficar é qualificado de diaboli mi­
nister, ministro do diabo.

95
2. A Igreja e a revolução comercial — Não admi­
ra ver a Igreja modificar sua atitude para com os mer­
cadores ao mesmo tempo que procura libertar-se da
sociedade feudal. Roberto Lopez mostrou o papel de­
sempenhado pelos moedeiros no sucesso de Gregório
VIL Em sua luta contra a influência do feudalismo so­
bre a Igreja, a Reforma gregoriana precisou buscar alia­
dos no mundo do dinheiro e do comércio; precisou do
apoio dos mercadores, a nova potência. Lembremos
as intervenções desse papa em favor destes últimos.
Mas uma parte do mundo clerical permanece estreita­
mente ligada ao feudalismo e à sua ideologia. Seus re­
presentantes tardios continuarão por longo tempo a
retomar os textos contra os mercadores, a invectivar
contra o dinheiro, como São Bernardo, todo imbuído
do espírito feudal e rural e como aqueles pregadores
que se opuseram ao seu século — é o caso de um tal
Jacques de Vitry.
Entretanto a hierarquia eclesiástica inclinava-se ca­
da vez mais para a adoção do mercador. Reconhecia,
em primeiro lugar, sua impotência diante dele, e logo
veio a precisar de sua ajuda, de seu dinheiro, de sua
atividade. G. Le Bras falou da “usura a serviço da Igre­
ja”.
Sobretudo, o papado, como vimos, bem cedo não
podia mais prescindir da ajuda dos grandes banquei­
ros italianos, e por toda parte bispos e abades recor­
reram aos grandes mercadores e cambistas locais. Não
é exagero pensar que estes, numa sociedade impreg­
nada pela religião, fizeram pressão sobre os clérigos
para obter da Igreja reabilitação e justificação. A Igreja
canonizou mercadores tal como canonizava, por polí­
tica, membros de dinastias reais.
Ou melhor, a Igreja acabou bem cedo participan­
do desse movimento. Indíretamente, por intermédio
de seus banqueiros — como no famoso truste de alú-
men que une no século XV a Santa Sé ao Banco Me-

96
dici. E mesmo diretamente. Por certo, as práticas usu-
rárias eram especialmente interditas aos clérigos, mas,
assim como os mosteiros, durante a Alta Idade Mé­
dia, tinham conseguido desempenhar o papel de esta­
belecimentos de crédito, os estabelecimentos dos aba­
des e dos bispos que possuíam capitais suficientes exer­
ciam, desprezando as interdições, a função deempres-
tadores e usurários. Tolerados com frequência, eles
agiam por vezes em plena luz do dia. Embora a Igre­
ja, rica sobretudo em bens prediais adquiridos na cri­
se do feudalismo e da economia rural, tenha deixado
aos laicos o papel preemiuente no desenvolvimento ca­
pitalista, viu-se, por exemplo, a Ordem dos Templá-
rios, no século XIII, converter-se num dos maiores ban­
cos da cristandade e a Ordem Teutônica, grande co­
merciante de lã, manter por exemplo um corretor em
Flandres por volta de 1400. Com mais flexibilidade do
que com relação a outras evoluções, a Igreja passou
do compromisso com o feudalismo ao compromisso
com o capitalismo.

3. A Igreja e o primeiros passos do capitalismo —


Nesse início, ela foi certamente ajudada pelos mem­
bros, cada vez mais numerosos, da rica classe mercantil
que ingressaram nas Ordens. “Levantei”, diz J. Les-
tocquoy, “os nomes dos filhos do patriciado de Arras
que ingressaram na Igreja: é o quadro de honra quase
completo do próprio patriciado”. Em pleno século
XIII, o papa Inocencio IV pertence a uma grande fa­
mília de mercadores genoveses: os Fieschi. A impor­
tância desse novo recrutamento eclesiástico não foi su-
fícientemente ressaltada. Esses padres e monges, oriun­
dos da burguesia mercantil, traziam esse conhecimen­
to à Igreja. Conquanto se afastassem pessoalmente da
prática dos negócios, eram impelidos a contribuir pa­
ra a justificação de seus próximos, seja por um espíri­
to de classe do qual não se haviam despojado por in­

97
teiro, seja por afeição carnal, seja porque o convívio
íntimo com os mercadores os havia convencido de que,
mesmo desobedecendo a certas prescrições da Igreja,
eram bons cristãos. Um leitor geral da Ordem fran-
ciscana, tomando no começo do século XIV a defesa
dos mercadores, contesta que o empréstimo a juros seja
ilícito, porque, diz ele,

os mercadores o praticam habitualmente e nem por isso dei­


xam de preocupar-se com sua salvação, o que deveria acon­
tecer se tais práticas fossem ilícitas.

Foi nas novas Ordens do século XIII, nas Ordens


mendicantes que, paradoxalmeme, se encontraram os
mais ardentes defensores dos mercadores. Muitas ra­
zões impeliam numerosos dominicanos e franciscanos
a esse papel. Em contato com os meios urbanos, eles
próprios freqüentemente oriundos da classe dos mer­
cadores, fiéis servidores do papado, empenhado em fa­
vorecer suas novas crenças, tinham além disso o co­
nhecimento ao mesmo tempo das técnicas comerciais
nas quais seu ambiente os havia iniciado e dos méto­
dos escolásticos que as universidades e as escolas de
sua Ordem lhes tinham ensinado. Foram eles, apoia­
dos pelo papado, que nos manuais de confissão e nas
grandes obras de teologia e de direito canônico se cons­
tituíram no século XIII nos instrumentos da justifica­
ção ideológica e religiosa do mercador.
Pode, então, haver na Igreja tradicionalistas que
se opõem aos mercadores. Pode até mesmo ocorrer,
no final da Idade Média, uma espécie de reação ecle­
siástica contra os mercadores. Santo Antonino de Flo­
rença pode trovejar contra a usura, contra o dinhei­
ro, comover por algum tempo a$ multidões. Reação
verbal que já não se reveste de grande importância.
Reação que não levará água senão aos moinhos de bre­
ves revoltas, como as de Florença de Savonarola.
Assim, a Igreja não tardou a acolher o mercador,
a admitir o essencial de suas práticas. Longe de ter si­

98
do um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo,
podemos nos perguntar se até mesmo em sua hostili­
dade eia não acabou por servi-lo involuntariamente.
A condenação da usura, de certas formas dc emprés­
timo a juros, levou os mercadores a aperfeiçoar os seus
métodos, a recorrer a sutilezas. O desenvolvimento da
letra de câmbio, documento capital na ascensão da clas­
se mercantil, encontra sua fonte no desejo de obe­
decer à Igreja substituindo uma operação de crédito
que ela reprova por uma operação de câmbio que ela
tolera.

4. O ideal da Igreja: as classes médias — No en­


tanto, se a Igreja cedeu e mesmo integrou-se parcial­
mente ao mundo capitalista, seu ideal, nesse domínio,
não é o grande mercador, com relação ao qual ela não I
abandona toda sua desconfiança; é o artesão, o peque- !
no mercador, o membro das classes médias. O merca­
dor das corporações, enquadrado pelas estipulações
que impedem a fraude e a concorrência, protegem —
pelo menos teoricamente — o consumidor e realizam |
um equilíbrio na mediocridade; o artesão teoricamen­
te livre, mas encerrado na órbita estreita de sua cida­
de e de sua loja, onde pode ser útil sem causar gran­
des males, eis o ideal da Igreja. É este que ela apóia, i
mesmo em seu malthusianismo econômico quando, por
exemplo, nos séculos XIV e XV, ela condena como pe- s
cado as “novidades” ou inovações técnicas que o raer- |
cador capitalista procura introduzir no âmbito da con­
corrência internacional. J
É ele que ela toma por modelo quando estabelece '
novos Limites à atividade do mercador. Porque, con­
cluindo, a elaboração dos teólogos e dos canonistas i|
do século XIII visa unicamente a refrear o impulso ca- :t
pitalista, a preconizar um ganho moderado — lucrum
moderatum o respeito pelo “justo'preço” — jus­
tam pretium —, a separar o bom do mau mercador.

99
O bom mercador é aquele que limita seus horizontes,
evita as ocasiões de pecado ao circunscrever seu raio
de ação.
5. Os mercadores e o Renascimento — Terá sido
talvez mais para fugir a essa atmosfera rarefeita do que
para livrar-se de um jugo que vimos ter sido suave que,
na aurora do Renascimento, alguns grandes mercadores
procuraram uma evasão fora da Igreja, fora da men­
talidade religiosa tradicional?
Quando o culto do poder, do indivíduo, da virtü
se elabora, o grande mercador vê nele um trampolim
para a sua necessidade de dominação, prospecção e des­
coberta.
Uns favorecerão esse Renascimento intelectual
que, satisfazendo às necessidades de suas fortes per­
sonalidades, lhes permitirá ser humanistas sem afastar-
se de uma Igreja à qual estão ligados por uma piedade
ainda medieval e pelo sentido de seus interesses, pois
ela pode ser, e com frequência o é, um poderoso alia­
do social. Os Mediei, depois de haver animado e fi­
nanciado o Renascimento platônico em Florença, da­
rão à Igreja um Leão X, humanista e papa.
Outros irão juntar-se à Reforma e lhe trarão aque­
la espiritualidade do êxito na qual se encontra, por ve­
zes, a estranha aliança entre o mundo e o céu, a reli­
gião e os negócios, Deus e o mercador.
No século XVI, porém, a atitude religiosa do mer­
cador, para além das condições locais, será uma ques­
tão de opção individual.
E, sobretudo talvez, o mercador tomará consciên­
cia de que a economia não pertence ao domínio da Igre­
ja. Esta, que, na Idade Média, confundiu às vezes, suas
exigências morais com teorias positivas, confessa pe­
nosamente que não pode ter uma doutrina econômica
e que efetivamente não a tem. É difícil para ela, de­
pois de seu esforço totalitário medieval em abarcar o
conjunto das atividades humanas, aceitar as renúncias

100
e as distinções impostas pela evolução material e inte­
lectual. Ora, o Renascimento impõe um novo salto ao
processo de laicização, que os séculos XII e XIII já
haviam acelerado. No século de Maquiavel, a econo­
mia e a religião exigem estar separadas, tal como a mo­
ral e a política. Há sempre católicos que são mercado­
res, haverá cada vez menos mercadores católicos.

101
CAPÍTULO IV
O papel cultural

I. Os mercadores e a laicizaçiio
da cultura

Com frequência, tem-se a impressão de que os clé­


rigos detêm na Idade Média o monopólio da cultura.
O ensino, o pensamento, as ciências e as artes seriam
feitos por eles e para eles, ou pelo menos sob sua ins­
piração e controle. Imagem falsa, a ser amplamente
corrigida. A influência da Igreja sobre a cultura só foi
quase total durante a Alta Idade Média. A partir da
revolução comercial e do desenvolvimento urbano, as
coisas mudam. Por mais fortes que continuem a ser
os interesses religiosos, por mais poderosa que seja a
alta hierarquia eclesiástica, grupos sociais antigos ou
novos têm outras preocupações, têm sede de conheci­
mentos práticos ou teóricos diferentes dos religiosos,
criam para si instrumentos de saber e meios de expres­
são próprios.
Nesse nascimento e desenvolvimento de uma cul­
tura laica, o mercador desempenhou um papel capi­
tal. Para seus negócios, tem necessidade de conheci­
mentos técnicos. Por sua mentalidade, visa ao útil, ao
concreto, ao racional. Graças ao dinheiro e ao poder
social e político, pode satisfazer suas necessidades e
realizar suas aspirações.

1. As escolas laicas — Henri Pirenne, Armando Sa-


pore e Amintore Fanfani abriram o caminho para um

103
estudo sobre a instrução do mercador e seu papel na
história da educação. Até agora, só dispomos de in­
formações esparsas sobre um assunto capital: as esco­
las Laicas medievais.
Pode-se pensar que bem cedo os burgueses, vale
dizer, cssencialmente os mercadores, obtiveram o di­
reito de abrir escolas e dele usaram. Mas isso depende
dos lugares, e talvez um melhor conhecimento das con­
dições escolares esclarecesse o avanço desta ou daquela
região em matéria de organização comercial.
Já em 1179, existem escolas comunais em Gand,
e a liberdade de ensino — conquistada a despeito da
forte resistência da Igreja — foi solenemente reconhe­
cida na cidade pela condessa Matilde e pelo conde Bal-
duíno IX em 1191. De um modo geral, se a Igreja con­
seguiu monopolizar o ensino “superior” e uma parte
do ensino “secundário”, teve, por outro lado, de re­
nunciar ao ensino primário. Era nasparvae scolae ou
scolae minores — em Ypres, por exemplo, era permi­
tido a qualquer um abri-las em 1253 — que os filhos
da burguesia comerciante recebiam as noções indispen­
sáveis à futura profissão.
Era sobretudo em quatro domínios que essa in­
fluência da classe dos mercadores sobre o ensino de­
via fazer-se sentir: na escrita, no cálculo, na geografia
e nas línguas vivas.

2. A escrita — Sabe-se o quanto a escrita está li­


gada às necessidades às quais atende. Ela depende es­
treitamente do meio social que a emprega, é eminen-
temente um “fato de civilização”,1 Sabe-se que a pas­
sagem da escrita antiga, “cursiva antiga”, para a es­
crita da Alta Idade Média, “minúscula Carolina”, só
se pode explicar pela substituição de uma civilização
por outra. Do mesmo modo, o retorno à cursiva nos
séculos X1I-XIII se integra em todo o movimento eco­
nômico, social e intelectual que determina o nascimento

104
de uma nova sociedade. Na diversificação das escritas
que então se produz, ao lado da escrita de Chancela­
ria, elegante, beni-cuidada, feita para documentos so­
lenes, da escrita notarial, ao mesmo tempo chicaneira
e abreviada, é preciso conceder um lugar à parte à es­
crita comercial, clara e rápida, exprimindo ‘‘energia,
equilíbrio e gosto”. Ela atende às crescentes necessi­
dades da contabilidade mercantil, da escrituração, da
redação de documentos comerciais. Escrever tudo, es­
crever logo, escrever bem, eis a regra número um do
mercador. Um genovês, no final do século XIII, acon­
selha: “Sempre deves lembrar-te de registrar por es­
crito tudo o que fazes. Escreve-o imediatamente, an­
tes que saia do teu espírito”. E um anônimo florenti-
no do século XIV diz: “Não se deve ser preguiçoso ao
escrever”, (“allo scrivere non si puo essere tardo}.
“Scripta manent” continua sendo ainda mais verda­
deiro para o mercador do que para qualquer outro.
Graças a ele, a escrita, a escrita caprichada e prática,
a escrita útil e corrente, assume um lugar de primeiro
plano nas escolas primárias.

3. O cálculo — Junto com a escrita, o cálculo.


Sua utilidade para o mercador é ainda mais evidente.
Seu ensino é iniciado com o uso de instrumentos prá­
ticos que servem para calcular, primeiro para o alu­
no, depois para o financista, para o comerciante. São
eles o ábaco, o tabuleiro de xadrez — “humildes an­
cestrais das máquinas de calcular modernas”. Os ma­
nuais de aritmética elementar se multiplicam a partir
do século XIII, como o escrito em 1340 por Paolo Da-
gomari de Prato, cognominado Paolo dell3 4Abaco. En­
tre os tratados científicos, alguns tiveram para a con­
tabilidade comercial, assim como para a ciência ma­
temática, uma importância extraordinária. É o caso
do Tratado do ábaco — liber abbaci — publicado por
Leonardo Fibonacci em 1202. Trata-se de um pisano,

105
filho de uni funcionário da alfândega da República de
Pisa em Bejaia, na África. É no nmndo cristao-mu-
çulmano do comércio, em Bejaia, no Egito, na Síria,
na Sicilia, onde empreende viagens dc negócios, que
ele se inicia em matemática — ciência que os árabes
tomaram emprestada aos hindus. Em sua obra, ele in­
troduz o emprego dos algarismos arábicos, o zero —
inovação capital na numeração por posição — opera­
ções com frações, cálculo proporcional. Levando mais
longe suas pesquisas, publica em 1220 uma Prática da
geometria. No final da Idade Média, em 1494, F. Lu­
ca Pacioli escreve a sua famosa Summa de Arithmeti­
cal resumo do conhecimento aritmético e matemático
do mundo do comércio, estendendo-se especialmente
na contabilidade de entrada dupla. Na Alemanha, após
1450, é difundido outro manual, o Método de cálculo
de Nuremberg.

4. A geografia — Outro campo de investigações


necessárias ao mercador é a geografia prática onde ca­
minham lado a lado os tratados científicos, as narra­
tivas de viagem e a cartografia. O famoso Livro das
maravilhas de Marco Polo, como dissemos, foi um dos
best-sellers da Idade Média e o gosto pelos livros de
aventuras, mesmo romanceados, desenvolveu-se o su­
ficiente nessa época para assegurar o sucesso do livro
apócrifo de Sir John Mandeville, onde a imaginação
entrava em grande parte. As escolas de cartografia ge-
uovesas e catalãs produziram admiráveis portulanos
— descrições dos portos, das rotas marítimas, das con­
dições de navegação, acompanhadas de mapas. Nesse
meio erudito que escrevia para especialistas e profis­
sionais munidos de compassos, astrolábios e instrumen­
tos astronômicos, nasceu Cristóvão Colombo, que não
partiu à aventura, como pretende a lenda, mas muni­
do de uma ampla bagagem de conhecimentos e técni­
cas que o guiavam para um objetivo determinado. Ao

106
mercador que partia para o estrangeiro, vários trata­
dos ensinavam, por exemplo, “o que se deve saber
quando se vai à Inglaterra”, como indicava Giovanni
Frescobaldi, mercador-banqueiro florentino, ou “o que
deve saber um mercador que se dirige a Catai”, ou se­
ja, à China, como escrevia em página famosa Fran­
cesco di Balduccio Pegolotti, corretor dos Peruzzi,

5. As línguas vulgares — Indispensável também


ao mercador é o conhecimento das línguas vulgares pa­
ra entrar em contato com seus clientes. Bem cedo, é
em língua vulgar que são redigidos os livros de contas
e escritos os documentos comerciais. Apesar da exis­
tência de intérpretes nos principais centros de trocas,
compilam-se dicionários para uso do mercador, tal co­
mo um glossário árabe-latino e, sobretudo, um dicio­
nário trilíngüe em latim, cumã (língua turca que cons­
tituía o jargão comercial do mar Negro ao mar Ama­
relo) e persa. A princípio, o francês foi a língua inter­
nacional do comércio no Ocidente — provavelmente
em razão da importância das feiras da Champagne.
Mas em breve o italiano assumiu um lugar preeminente,
enquanto, na esfera hanseática, o baixo-alemão pre­
valecia. Não admira que o progresso das línguas vul­
gares esteja ligado ao desenvolvimento da classe mer­
cantil e de suas atividades. O mais antigo texto conhe­
cido em língua italiana é um fragmento de conta de
um mercador de Siena datado de 1211.

6. A história — Os mercadores não se contenta­


vam com esses conhecimentos básicos. A história lhes
interessa. Serve-lhes não só para glorificar a cidade e
o papel que sua classe desempenha nela, como para
situar, compreender os acontecimentos que constituem
o contexto de sua atividade e dos quais são também
os atores, Numa página célebre e excepcional, Giovanni
Villani fez, com cifras, a descrição de Florença em

107
1338: número dos habitantes, dos bairros, das paró­
quias, das corporações e de seus membros, número dos
negócios mais importantes, montante dos impostos, or­
çamento das finanças públicas. O veneziano Marian
Sanudo tentará também, no século XV, efetuar uma
avaliação numérica da potência veneziana. Assim, ao
lado dos documentos oficiais, recenseamentos e listas
fiscais, a literatura histórica alimenta — ainda que os
dados sejam por vezes errôneos — a precária estatísti­
ca medieval. Observou-se o fato impressionante de que
“a historiografia florentina do século XIV é monopólio
quase exclusivo dos negociantes: Dino Compagni, Gio­
vanni e Matteo Villani, Giovanni Frescobaldi, Dona­
to Velluti, Marchionc di Copo Stefani ■— autores des­
sas crônicas precisas, escritas a cada geração, funda­
das em dados reais, nas quais, mesmo sendo partidá­
rio, o autor não se contenta com palavras — são ho­
mens de negócios”. Dessa maneira, ao lado dos cro­
nistas atentos unicamente aos fatos políticos e religio­
sos, nasce uma categoria de historiógrafos preocupa­
dos com o econômico.

7. Os manuais de comércio — Foi a totalidade de


seus conhecimentos e de suas experiências que alguns
mercadores registraram em manuais de inestimável va­
lor. Essas Práticas do comércio enumeram e descre­
vem as mercadorias, os pesos e as medidas, as moe­
das, as tarifas aduaneiras, os itinerários. Fornecem fór­
mulas de cálculo e de calendários perpétuos; descre­
vem os processos químicos que permitem a fabricação
das ligas, das matérias tintoriais e medicinais; dão con­
selhos tanto sobre a maneira de defraudar o fisco co­
mo sobre a forma de compreender e de utilizar os me­
canismos econômicos. São inspiradas por um vivo sen­
timento da dignidade dos mercadores, como vimos an­
teriormente.
As mais célebres são italianas. São as Práticas do
comércio (Pratica delia mercai ura) dos florentinos

108
Francesco di Balduccio Pegolotti, corretor dos Peruz-
zi em Famagusta, Bruges e Londres, e Giovanni di An­
tonio da Uzzano; O livro das mercadorias e usos dos
diversos países (El libro di mercaiantie ei iisanze de pae-
si), atribuído a Lorenzo Chiarini; e uma obra veneziana
anônima, Tarifa e conhecimento dos pesos e medi­
das das regiões e países que se dedicam ao comér­
cio através do mundo (Tarifa zoé noticia dy pexi et me-
sure di Ivoghie e tere ches'adovra marcadantia per ií
mundo).
Toda essa bagagem intelectual, toda essa apare­
lhagem cultural segue caminhos divergentes daqueles
da Igreja: conhecimentos técnicos profissionais, e não
teóricos e gerais; senso da diversidade, e não do uni­
versal, levando, por exemplo, ao abandono do latim
em favor das línguas vulgares; procura do concreto,
do material, do mensurável,
Até mesmo a influência do rápido desenvolvimen­
to comercial sobre o recrutamento universitário inquie­
ta e descontenta a Igreja. As faculdades mais freqüen-
tadas são as que conduzem a profissões laicas, ou semi-
laicas, mais lucrativas: a Faculdade de Direito e a de
Medicina. A primeira forma os notários, que se tor­
naram cada vez mais necessários no século XIII em fun­
ção do desenvolvimento dos contratos comerciais. A
segunda desemboca naquela profissão que não raro
constitui um misto de médico e boticário, ou mesmo
merceeiro, desfrutando freqüentemente de uma situa­
ção privilegiada na sociedade burguesa.

8. A racionalização — Y. Renouard sublinhou que


a cultura mercantil levou à laicização, à racionaliza­
ção da existência. O cenário, o contexto da vida dei­
xava de ser colorido pela religião. Os ritmos da exis­
tência já não obedeciam à Igreja. Medir o tempo
tornava-se para o mercador uma necessidade, enquanto
a Igreja, atenta ao eterno, revelava-se inábil nesse mis-

109
ler. Um calendário regulado por festas de datas mó­
veis era eminentemente inadequado para o negocian­
te. O ano religioso começava numa data variável en­
tre 22 de março e 25 de abril. Os mercadores tinham
necessidade de pontos de partida, referências fixas para
seus cálculos e para estabelecer seus orçamentos. En­
tre as feslas litúrgicas, eles escolheram uma secundá­
ria, a da Circuncisão, e fizeram com que suas contas
começassem e terminassem em 1? de janeiro e em 1?
de julho.
A Igreja também determinara as horas de acordo
com as estações do ano e suas respectivas preces. Ma-
tinas, Primas e Angelas.regulavam-se pelo Sol e va­
riavam ao longo do ano. Os sinos respondiam aos qua-
drantes solares. O mercador tinha necessidade de um
quadrante racional, dividido em doze ou vinte e qua­
tro partes iguais. Foi ele que favoreceu a descoberta
e a adoção dos' relógios de campainha automática e re-
gulardFlorença teve esses relógios desde 1325, Milão
cm 1335, Pádua em 1334, Gênova cm 1353, Bolonha
em 1356, Siena em 1359. Já desde 1314, Caen possui
o seu “grande relógio”, cuja presença é assinalada por
uma inscrição: “Porque assim a cidade me aloja/ Neste
ponto para servir de relógio/ As horas eu farei soar/
Para o povo comum alegrar.” Doravante, já não era
pelo sino da Igreja que se regulava a vida das pessoas,
mas pelo relógio comunal, laico. Ã hora dos clérigos
sucedia a hora dos negociantes.

9. Uma cultura de classe — Não se deve pensar,


porém, qualquer que tenha sido sua influência sobre
o desenvolvimento do ensino, que a classe mercantil
tenha procurado fazer com que todos se beneficiassem
dela.
Sua especialização original, aliada à preocupação
de conservar os famosos segredos que ela queria cio­
samente guardar, a levava a uma aprendizagem inter-

110
na — aprendizagem que os filhos recebiam na loja pa­
terna ao sair da escola primária, junto a associados ou
a confrades no estrangeiro —, e esse ensino prático re­
servado aos filhos de tnercadores-banqueiros mostra
como a mobilidade social não foi, no mundo dos ne­
gócios medieval, tão grande quanto por vezes se afir­
mou.
A impossibilidade de proporcionar a seus filhos,
nas escolas religiosas, uma formação técnica apropria­
da e, sobretudo, bem cedo, o desejo de manifestar sua
posição social pela segregação escolar, levou os mer­
cadores a apelar para preceptores, a fazer ministrar au­
las particulares em domicílio aos seus filhos.

II. O mecenato dos mercadores

Juntamente com esse papel na evolução do ensi­


no, os mercadores tiveram grande influência sobre o
desenvolvimento literário e artístico.
O mecenato da rica clientela mercantil se explica
facilmente. A encomenda e a compra de obras de arte
representavam a princípio, para os mercadores e os
banqueiros, uma fonte de lucro, um investimento. Al­
guns deles, pelo menos, consideravam essas obras co­
mo “mercadorias”, “anigos”. Em Avinhão, no sé­
culo XIV, devido à transferência da corte pontificai,
que para lá atraíra ricos clientes e provocara amplo con­
fronto entre os estilos e os gostos, estabeleceu-se um
importante mercado de livros raros, de quadros e ta­
peçarias. Eis, por exemplo — num momento, aliás, em
que Avinhão, abandonada pelo papado, perdera boa
parte de sua importância nesse particular —, uma carta
de Buoninsegna di Matteo, associado de Francesco Da­
ting a seus correspondentes Horentinos, datad^xl.ç.Ayi--
nhão, 17 de março de 1387: / v'*
Dizeis que não encontrais pinturas ao preço que deseja­
mos porque não as há tào baratas. Portanto, se não encon­
trardes bons artigos de qualidade («we) a bom preço, não
os compreis, porque não há grande procura aqui. São arti­
gos que se deve comprar quando o artista precisa de dinhei­
ro. Cabe a vós decidir, visto não ser uma necessidade para
nós entrar no comércio desses artigos, pois não se trata de
coisas que se possam vender todos os dias ou para as quais
existam muitos compradores. Mas, se um dia, ao procurar
tais artigos, encontrardes um de vaior, e se o artista estiver
precisando dc dinheiro, comprai-o.
Vendemos três das cinco peças que Andrea adquiriu e
tivemos um lucro de 10 florins de ouro de contado em cada
uma delas, o que constituiu um excelente ganho. Se o artista
de quem ele os comprou tiver pequenos quadros de boa qua­
lidade valendo 4,5 ou 6 florins de contados — mas é preciso
que sejam bons e baratos —, comprai um ou dois, não mais;
ou então podeis comprá-los de um outro artista melhor, por­
que se os desenhos forem bons serão bem vendidos. A clien­
tela aqui é difícil.

As pias batismais de Tournai no século XII, os


objetos de marfim parisienses nos séculos XIV e XV,
os alabastros de Nottingham dos séculos XIV e XV,
os utensílios de cozinha artisticamente lavrados e as
tapeçarias de Arras no final da Idade Média são obje­
tos de grande exportação e, nos dois últimos casos,
trata-se de indústrias alternativas que substituem in­
dústrias tradicionais de consumo corrente, então em
crise.
Em Ruão, no século XV, P. Surreau coleciona ma­
nuscritos, mas estes são penhores de devedores. Já vi­
mos Jacques Coeur e os Popplau se dedicarem ao co­
mércio dos objetos de arte.
É também uma manifestação tradicional de rique­
za e de posição social o costume de proteger os artis­
tas, comprar suas obras, contratá-los para trabalhar
em igrejas ou edifícios públicos. Os senhores feudais
e a Igreja na Alta Idade Média foram assim os únicos
clientes dos artistas. Os novos-ricos, os poderosos da
época, juntam-se a eles e os substituem nesse papel,

112
Aliás, com a riqueza, com a educação, com a freqüen-
tação das obras de arte no curso de suas viagens, mui­
tas vezes os mercadores adquiriram não só o desejo
do luxo, como o gosto pelas coisas belas. É uma clien­
tela, como acabamos de ver, que se faz cada vez mais
exigente, porque cada vez mais requintada.
Os ricos mercadores que dominam as cidades,
quando abrem um concurso público para a realização
de uma obra de arte destinada à sua cidade, como, por
exemplo, os florentinos, que puseram em concurso a
decoração das portas do Batistério, buscaram muito
menos encontrar o artista que executasse o trabalho
ao melhor preço do que descobrir aquele cuja obra fos­
se a mais bela. Quando comparamos a Bargello os mo­
delos de Donatello e de Ghiberti, aprovamos de bom
grado a escolha estética dos grandes burgueses floren­
tinos.
Muitas vezes, porém, não se trata apenas, para
os mercadores, de cumprir uma função artística tal co­
mo, pela beneficência, eles cumpriam uma função so­
cial. Trata-se também, em muitos casos, de controlar
os poderosos meios de influência sobre o povo — con­
trole da literatura para inspirar poemas, dos panfle­
tos favoráveis à sua pessoa, à sua profissão, à sua po­
lítica; controle da arte, cujos temas devem responder
aos seus interesses e às suas aspirações; meio, acima
de tudo, de contentar o povo dando-lhe obras para ad­
mirar. espetáculos para se divertir, evitando que ele
se interesse em demasia pela política ou reflita sobre
sua condição social. Poderoso instrumento de “diver­
são” que faz do mecenato dos mercadores uma conti­
nuação, por exemplo, da política patrícia e imperial
romana, dá ao povo panem et circenses. Essa política
do mecenato foi levada ao extremo pelas “senhorias
mercantis” do século XV, destacando-se por tal con­
duta a senhoria dos Mediei. Lourenço, o Magnífico,
soube utilizá-la magnificamentc.

113
Não admira, pois, que a obra artística dos mer­
cadores mecenas tenha provocado às vezes a cólera po­
pular. Durante as revoltas e os movimentos revolucio­
nários, um dos primeiros cuidados do povo amotina­
do era destruir a casa dos ricos, símbolo de sua domi­
nação. Savonarola explicou muito bem sua ação ico­
noclasta, dirigida contra a política artística dos Medi­
ei, expressão de sua opressão. O vandalismo revolu­
cionário foi, já na Idade Média, uma atitude política,
resposta do povo à política de seus senhores, que, de
resto, pouco se preocuparam cm proporcionar-lhe edu­
cação artística.
Aliás, só excepcionalmente os ricos mercadores
atribuíam aos artistas por eles empregados uma certa
consideração. Apenas os poetas, eruditos e filósofos,
sobretudo no século XV, foram cumulados por alguns
deles com presentes e honrarias. Na maior parte do
tempo, os mercadores não os consideravam senão co­
mo domésticos, quando muito como artesãos cujas
obras compravam a exemplo de outras mercadorias.
O trabalho dos pintores, dos arquitetos e dos estatuá-
rios era visto como simples trabalho manual — e, por­
tanto, desprezado. O título de mestre que eles usavam
significava tão-somente “mestre de obra”, “mestre ar­
tesão”. Já no século XII, os jograis, a serviço da bur­
guesia mercantil endinheirada, tinham o pungente sen­
timento de sua dependência, e o autor de um poema
em louvor aos mercadores confessa humildemente que
só lhes fazia o elogio coagido e forçado, já que, sem
o mercador, o jogral morrería de fome. Se muitos ar­
tistas, notadamente os humanistas do século XV, se
inscreveram de bom grado na domesticidade das gran­
des famílias mercadoras — precursores, neste particu­
lar, dos escritores-cortesãos da era monárquica —, al­
guns deles tiveram plena consciência de sua situação
de trabalhadores e assalariados. Como Stamina, que
em Florença teve uma parte ativa no Tumulto dos
Ciompi e em seguida foi obrigado a exilar-se.

114
III. A cultura burguesa

É preciso, no entanto, ter muila prudência para


estabelecer relações precisas entre os mercadores, sua
mentalidade, seus objetivos, sua política, e as obras
que encomendaram. A sociologia da arte, chamada a
renovar a história da arte, encontra-se ainda no início
de sua existência. Não está segura de seus métodos,
nem de seus princípios, e não está isenta de passos em
falso, nem de temerídades belas e perigosas. Não se
deve esquecer que o mecenato dos banqueiros e dos
mercadores nem sempre se materializou em obras sig­
nificativas da classe que as mandava executar.
A religião ainda fornecia, no fim da Idade Mé­
dia, muitos dos temas e o essencial da inspiração ar­
tística. A Igreja continuava a exercer sobre a produ­
ção literária e artística um controle que muitas vezes
podia contrariar o “espírito burguês” da clientela co­
merciante. Quando, após a grande peste de 1348, o
mercador florentino Buonamico di Lapo Guidalotti in­
cumbiu Andrea da Firenze de pintar afrescos expiató­
rios na Capela dos Espanhóis de Santa Maria Novel­
la, o tema da obra foi o triunfo da Igreja e dos domi­
nicanos, seus fiéis instrumentos. A burguesia
contentou-se em servir a causa da Igreja, que por sua
vez a servia, ao assegurar uma ordem social que lhe
favorecia e ao fornecer explicações dos acontecimen­
tos que não questionavam a organização da economia
e da sociedade.
Deve-se contar também com a independência dos
artistas. Por mais ligados que estes estivessem às con­
dições de seus empregadores, que muitas vezes deter­
minavam detalhadamente os temas e a execução de suas
encomendas, não raro o gênio do artista continuava
sendo, definitivamente, o único mestre do essencial.
Por vezes, inclusive, as intenções criticas do artista com
respeito aos seus empregadores expressavam-se de ma­

115
neira dissimulada, e detectar essas intenções ocultas sem
cair no abuso de explicações fantasistas não é tarefa
menos difícil para os sociólogos da arte. Terá sido um
movimento de oposição popular que os pintores tos-
canos da segunda metade do século Xí V quiseram ex­
primir ao reabilitar o estilo gótico tradicional e insis­
tir nos temas do retiro dos eremitas no deserto, do mau
ladrão da Crucifixao, da Ressurreição de Cristo? Ver
nisso temas protestatórios e revolucionários continua
sendo, pelo menos na situação atual de nossos conhe­
cimentos, algo conjctural e arriscado.
Por fim, é importantíssimo notar que o gosto da
burguesia mercantil nem sempre foi original. No co­
meço, quando a falta de educação artística obrigava
os novos-ricos a adotar o gosto das classes dominan­
tes tradicionais e mais tarde quando os mercadores,
como vimos, se tornaram cada vez mais desejosos de
ingressar na nobreza, suprimir as distâncias entre a an­
tiga aristocracia e a nova que eles queriam constituir,
as tendências artísticas burguesas não se distínguiram
das da nobreza e da Igreja. Para tornar-se nobre,
afirmou-se, o melhor meio era, antes de mais nada,
adotar o “gênero de vida” nobre. Que domínio, me­
lhor que o da literatura e da arte, oferecia aos merca­
dores o ensejo para essa assimilação? Foi aí que eles
logo puderam imitar as maneiras nobres. Sabemos que
Gênova foi “o centro de difusão da poesia provençal
na Itália”. Membros das maiores famílias de merca­
dores genoveses — um Calega Panza no, um Lucche-
to Gattilusio — cantam e rimam em provençal, naquele
dolce stil nuovo no qual se reconheceu uma das for­
mas mais aristocráticas, mais requintadas e mais “es­
tetas” da poesia. Um negociante veneziano, Bartolo­
meo Zorzi, aprisionado em Gênova, dedica uma par­
te de seus lazeres forçados a justas poéticas com o ge-
novês Bonifacio Calvo.
A poesia cortês, na qual se viu a fina flor da arte
de uma sociedade senliorial decadente, não tardou a

116
ser cultivada pela burguesia mercantil. Assinalamos a
participação do patriciado de Arras no movimento poé­
tico da cidade no século XITI. Mathieu le Tailleur, de
uma rica família de banqueiros, dedica-se à poesia co­
mo todos os mercadores que se apaixonam por um no­
vo gênero literário, o “desafio” poético, discussão poé­
tica de casuística amorosa onde se indaga, por exem­
plo, se é “mais triste ver casar-se uma pessoa a quem
se ama ternamente ou vê-la morrer”. Os mercado­
res são os grandes animadores das sociedades literá­
rias que encontramos no século XV tais como os
“Puys” normandos, as “Câmaras de retórica” flamen­
gas ou os círculos platônicos florentinos. Se na poesia
épica se observa numa Canção de Gesta — as Infân­
cias Vivien — o antagonismo entre a psicologia nobre
e guerreira e a mentalidade mercantil e utilitária, em
Henri de Mes as duas podem coabitar na mesma per­
sonagem, como o mercador Thierry, de quem o du­
que da Lorena faz seu genro e herdeiro.

Ele foi um cavaleiro de grande va/or


Pois matou os Wandres- em grande tormento
E vingou o barão Saint-Remi
E São Nicácio, o nobre arcebispo.

Isso significa que não houve na literatura e na ar­


te uma influência específica da burguesia mercantil?

I. A arquitetura — Foi inicialmente na arquite­


tura que o burguês imprimiu a sua marca. A Alta Ida­
de Média assistira ao desenvolvimento de dois tipos
de monumentos: a residência senhorial, o castelo-
fortaleza; e o edifício religioso, a igreja. Doravante,
duas outras categorias monumentais se desenvolvem:
a arquitetura civil pública e a casa patrícia. Esta só se
libertou do caráter militar da Alta Idade Média pro­
gressivamente. Tanto a preocupação de defesa quan­
to a ânsia de prestígio tinham levado os primeiros ci-

117
tadinos ricos a construir aquelas casas guarnecidas de
torres cujos restos impressionantes ainda se podem ver
em San Gimignano. Essas torres, com efeito, são um
sinal manifesto da assimilação da rica burguesia à no­
breza. Transformados em proprietários de bens pre­
diais, os mercadores de Messina mandam fortificar sua
quinta, como Perrin Anchier em Ladonchamps entre
1313 e 1325, como os Hesson no domínio de Brieux
por volta de 1318. Da Itália, esse costume passa à Ale­
manha: em Regensburg, no século XV, quarenta ca­
sas burguesas têm suas torres. Mas em breve o palá­
cio dos patrícios perde muitos de seus aspectos milita­
res. Em florença, contudo, o medo das revoltas e dos
ataques inesperados, e o desejo de garantir o segredo
da atividade interna dos mercadores conservaram por
longo tempo nos palácios dos Mediei, dos Strozzi, es­
se aspecto severo que guarda algo da fortaleza. Em Sie­
na, muitos palácios de grandes famílias de mercado­
res, como o palácio Salimbeni, ainda são munidos de
ameias. Mas por toda parte as ricas residências patrí­
cias se abrem para o exterior através dc janelas, gale­
rias ou loggia nas quais os mercadores ofereciam aos
seus concidadãos o teatro suntuoso de suas cerimônias
familiais: núpcias e funerais — como a loggia dos Gui-
nigi cm Lucca. A busca da elegância se manifesta so­
bretudo nos admiráveis pátios interiores que constituem
uma das primeiras manifestações do espírito do Re­
nascimento. Foi em Veneza, livre dos temores da guerra
ou do motim no interior de seus muros, que a busca
dos materiais, da leveza, da pompa das fachadas se ma­
nifestou com mais brilho, como o testemunha ainda
hoje a e&lraordinária ornamentação de mármore e pe­
dra ao longo das margens do Grande Canal.

2. A pintura — Também a pintura recebeu a mar­


ca do mecenato dos mercadores. Nas igrejas, é nas ca­
pelas que as grandes famílias do comércio e do banco

118
celebravam suas cerimônias privadas, se faziam enter­
rar e cujas paredes faziam ornamentar com afrescos:
capela dos Peruzzi e dos Bardi em Santa Croce, dos
Scrovegni em Pádua, por onde se estendeu a arte de
Giotto, dos Strozzi e dos Pazzi em Santa Maria No­
vella, capela Brancacci em Santa Maria dei Carmine,
onde Masaccio revolucionou a arte do afresco, capela
do palácio Mediei, onde Benozzo Gozzoli representou
os membros da ilustre família em seu afresco dos reis
magos, coro de Santa Maria Novella, onde Ghirlan­
daio nos conservou os traços puros e serenos das mu­
lheres da família Tornabuoni.
Foi, com efeito, na arte do retrato que a clientela
mercantil exerceu uma profunda influência sobre a pin­
tura. Sentimentos piedosos e o gosto pelo prestígio im­
pelem igualmente o mercador a se fazer representar nes­
ses quadros. O mercador partilha com o nobre e com
o clérigo de posição elevada o desejo de aparecer sob
os traços do doador e de ali se fazer imortalizar. Às
vezes, ele entra na ação do quadro como no tríptico de
Memling do Juízo Finai — Tommaso Portinari e sua
mulher sendo pesados pelo arcanjo São Miguel. Mais
que todos os outros, porém, os mercadores querem im­
por aos seus contemporâneos e à posteridade sua pre­
sença eternizada. Não lhes basta fazer-se representar
às vezes — o que ocorre raramente — com os atribu­
tos de sua função, como o famoso pesador de ouro
com sua mulher, no ambiente quase sempre luxuoso
de seu interior burguês, como no célebre quadro de Van
Eyck, Arnolfim e sua mulher. Eles que não têm, co­
mo os nobres, os bispos e os abades, armaduras, em­
blemas, mitras ou báculos que simbolizem sua classe
social, são mais atentos à reprodução exata de seus tra­
ços. O realismo do retrato, que responde a outras cau­
sas da evolução da pintura, reflete também o desejo
do mercador comanditário de ser reconhecido graças
à semelhança. Não quer ser confundido com outro,

119
do mesmo modo que afirma em seus negócios a origi­
nalidade e o valor de sua assinamra comercial.
Nesses quadros, ele gosta de ser representado no
cenário doméstico, com os móveis opulentos e os ob­
jetos cotidianos, e esse cenário, a um tempo familiar
e rico, extrapola para a pintura religiosa. As Virgens
da Anunciação, os Santos em seu retiro, são represen­
tados como burgueses, e burgueses em ambientes in­
teriores, como São .Jerônimo, que trocou a gruta da
pintura primitiva por um gabinete de mercador huma­
nista. Gosta também de apresentar-se cercado pela fa­
mília, sobretudo pelos filhos, garantia da continuida­
de de sua casa, de seus negócios, de sua prosperida­
de, Arnolfini é pintado ao lado de sua mulher grávi­
da, detalhe realista mas também símbolo de fecundi-
dade, tal como a Madona de Monterchi de Piero della
Francesca.

3. -dj artes menores — O luxo — A influência do


mercador é talvez maior ainda na evolução das artes me­
nores. Antçs dele, estas pertenciam sobretudo ao âmbi­
to da Igreja: ourivesaria dos relicários, dos osculatórios;
tecidos preciosos dos ornamentos da Igreja e das vesti­
mentas eclesiásticas, Agora as jóias, o mobiliário são
a glória da família burguesa. Graças aos ricos merca­
dores, duas artes menores se erguem ao nível das maio­
res, A pintura em madeira, praticada por artistas céle­
bres para a ornamentação dos cassoni — pequenos co­
fres ou verdadeiros cofres de casamento nos quais a jo­
vem esposa guarda o seu enxoval e seus presentes (al­
guns deles contam-se entre as peças mais requintadas dos
grandes museus — como na Galeria da Academia, em
Florença) e a tapeçaria,, que a partir do século XV co­
nhece uma renovação. É a época em que, depois de Ar­
ras, aparecem os ateliês de Lille e de Bruxelas.
Também na moda e no vestuário, a rica burguesia
— nova clientela seleta — provoca um impulso incom­

120
parável. Por mais esplêndidos que sejam os homens,
que nada têm a invejar aos nobres e aos dignitários
da Igreja, são sobretudo as mulheres que criam uma
demanda considerável. Bem cedo seu luxo salta aos
olhos e as tornam alvo das zombarias dos poetas, das
invectivas dos moralistas e dos pregadores.
O contraste entre a simplicidade dos costumes dos
Velhos Tempos e o luxo desenfreado do presente torna-
se um dos leitmotive dos escritores florentinos. É Dante
que põe na boca de seu bisavô, falando de um casal
burguês de outrora:

Vi Beliincion Berti ir com uma cinta dc couro e osso, c sua


mulher voltar do espelho sem ter o rosto pintado, Sardana-
palo ainda não chegara!

É Francesco Saccheti que escreve:

Não se conseguiría parar de discorrer sobre as mulheres, co­


meçando pelos inverossímeis adereços de seus pés e chegan­
do até à cabeça; elas passam o dia sobre os telhados (para
se bronzearem ao sol): frisam-se, alísam-se, lavam-se, a tal
ponto que morrem frequentemente de catarro.

E ele põe na boca de um artista florentino a opi­


nião de que as florentinas são os maiores pintores e
escultores da época:

Se não me acreditardes, olhai através de todo □ nosso país:


não encontrareis uma só mulher que seja negra. Isso não de­
corre de a natureza tê-las feito todas brancas; mas, por seus
sábios cuidados, quase todas, de pretas que eram, se torna­
ram brancas. E o mesmo sucede com seus rostos e seus cor­
pos: quer sejam retos, tortos ou disformes, elas sabem
reconduzi-los a belas proporções por muitos estratagemas e
artifícios.

Desde o século XIII, os poetas de Arras satiriza­


ram nas suas canções as mulheres dos ricos banquei­
ros da cidade. Eis uma afetada, com a cabeça tão dou­

121
rada que acreditaríamos ser mais um quadro ou um
crucifixo precioso; seus cabelos são cobertos de ouro
e prata; e no entanto, interiormente, é tudo podridão.
O testamento de Jeanne Socquel descreve sua coleção
de casacos com capuz de veludo de todas as cores, seus
agasalhos de pele, vestidos, suas cintas ornadas de pé­
rolas. As leis suntuárias contra a invasão do luxo, ins­
piradas por eclesiásticos austeros, velhos rabugentos,
nobres invejosos, são impotentes. É em vão que Feli­
pe, o Belo, proíbe em 1314 os burgueses e burguesas
de usar casacos de pele caros. É em vão que a comuna
de Pistóia em 1332-1333 toma medidas contra a toale
te feminina, o luxo dos presentes, os banquetes nup
ciais, a pompa dos funerais; é em vão que Santa Ca
tarina de Siena inspira medidas semelhantes em Sie
na; é em vão que, após a Grande Peste, Florença ten
ta pôr um freio ao recrudescimento da munificiência
dos sobreviventes; é em vão que Veneza institui uma
magistratura especial encarregada de regulamentar o
luxo. E não nos esqueçamos da arte gastronômica, que
progride com o requinte do gosto, a adoção de pratos
e receitas estrangeiras — os numerosos manuais que
chegaram até nós o testemunham. Vemos em Ruão,
no fina! do século XV, a importância crescente do con­
sumo do açúcar e das frutas mediterrâneas para a rica
burguesia mercantil.
O comércio beneficiou-se frequentemente desse lu­
xo. Citemos duas mercadorias cuja procura se tornou
considerável nos séculos XIV e XV: os casacos de pele
vindos do Norte e da Rússia através das cidades han-
scáticas ou dos estabelecimentos comerciais italianos do
mar Negro e o açafrão requerido pela tinturaria, perfu­
maria, medicina e cozinha, cuja importância na Baixa
Idade Média acaba de ser demonstrada por A. Petino.

4. O mercador e a sociologia da arte — Será possí­


vel ir mais longe do que essas observações sobre a in­

122
fluência quase sempre exterior da clientela mercantil
sobre o desenvolvimento artístico? A sociologia esté­
tica responde afirmativamente e é bem provável que
renove muitos problemas. Suas hipóteses, no entan­
to, ainda permanecem arriscadas.
Frederic Antal pretendeu reconhecer nos temas e
estilos da pintura toscana do século XIV e começo do
XV as oposições que compreendem os antagonismos
entre a classe da rica burguesia mercantil e a classe de­
mocrática, da pequena burguesia artesanal, episodica-
mente apoiada pelo proletariado operário e pelos cam­
poneses. A primeira faz triunfar suas opiniões no do­
mínio da pintura, com Giotto. A humanização da re­
ligião, o aburguesamento da pintura da vida de Cris­
to e da Virgem, o esmorecimento do espírito francis­
cano por um artista que se tornou ele próprio um rico
e duro capitalista e escreveu um poema contra a Po­
breza, o surgimento de um estilo familiar, narrativo,
descritivo, eis o que revelaria a influência do espírito
burguês na pintura giotesca e pós-giotesca, pintura das
ricas famílias florentinas. Após 1348, ao contrário, o
retrocesso econômico e político dessa classe restabele­
ce, durante um quarto de século aproximadamente, a
voga do estilo gótico, simbólico, lírico, estilo da rea­
ção democrática. M. Meiss tentou também, analisan­
do a pintura florentina e sienense posterior à Peste Ne­
gra, detectar no abalo da sociedade e especialmente da
rica burguesia mercantil o aparecimento de um novo
estilo, que se afasta de Giotto e procura temas de ins­
piração diretamente relacionados com os acontecimen­
tos e as reações afetivas a respeito destes.
Foi ao nível mais profundo das próprias estrutu­
ras da pintura que Pierre Francastel procurou relacio­
nar pintura e sociedade na Itália do século XV. O apa­
recimento de uma visão e de uma representação nova
da realidade — o espaço do Renascimento —, o que
se chama tradicionalmente de a descoberta da perspec-

123
tiva, só sc explica em função dos progressos técnicos,
econômicos e intelectuais da grande burguesia. Vimos
como ela venceu materialmente o espaço, como se em­
penhou em compreendê-lo, dominá-lo e medi-lo, Foi
essa domesticação do espaço pela classe mercantil que
ocorreu também na pintura italiana do Quattrocento,
cujos artistas dependem da clientela burguesa. F. Bran-
cacci, que incumbe Masaccio de pintar os revolucio­
nários afrescos da capela dos Carmine, é um dos pri­
meiros cônsules* do mar de Florença, um homem que
esteve no Egito, homem de vastos horizontes. Assim
se alargam também os horizontes da pintura. O espa­
ço pictórico está doravante à altura do homem, feito
para ser medido e percorrido, enquanto a perspectiva
gótica corresponde a uma visão plana, sincrônica, eter­
na, a perspectiva de Deus. Ainda aqui, aparecem lai-
cizaçào, humanização e racionalização e o mercador
é largamente responsável por elas.

5, A literatura — Jgualinente delicado é delimi­


tar com exatidão a influência do mecenato mercantil
sobre os caracteres internos da literatura medieval.
Denominou-se literatura burguesa alguns gêneros que
se desenvolvem no meio urbano a partir do século XII.
Mas seriam necessários estudos precisos para definir
o que nos fabliaux, nos ditos? e nas moralidades per­
tence a um espírito novo trazido por uma classe social
nova. Uma moral terra-a-terra, feita de prudência e
senso prático, ligada à preservação do dinheiro, da pro­
priedade, da família e da saúde — moral de proprie­
tários e comerciantes —, o próprio gosto de morali­
zar, mas que se deve distinguir da pregação religiosa,
não na forma, o que é fácil, mas no espírito, que é mais
difícil, pois não existem moralistas pregadores e pre-

* Na Idade Média, cônsul era o juiz eleito petos mercadores para


regulamentar os negócios comerciais, Aexís. (N,R.)

124
gadores de moral burguesa? O gosto do detalhe rea­
lista e familiar trazido por uma classe apegada ao ce­
nário material da vida e sensível às aparências, o gos­
to do cômico, da ironia um pouco pesada e mesmo do
burlesco; e a farsa medieval, mais que popular, é tal­
vez burguesa com sua zombaria das condições sociais
e sua crítica, nào raro pouco caridosa, do próximo,
í Uma literatura de pessoas que vivem lado a lado, co­
mo concorrentes e que sc observam, se espiam, se de­
nigrem.

6, O humanismo — Mostrou-se também tudo o


que o humanismo nascente deve ao mecenato dos mer­
cadores, ao seu espírito e à sua necessidade de justi­
ficar a posição que ocupam no mundo. Três grandes
temas da literatura humanista, e mais precisamente
I da literatura italiana do Quattrocento, lhes devem
muito.
O tema da riqueza, fonte de virtude, desabrocha-
mento, prazeres requintados, aprovação divina. De­
pois de Leonardi Bruni, foi sobretudo Poggio Brac-
ciolini — II Poggio —, íntimo dos Mediei, que fez da
riqueza a expressão tangível da atividade humana.
O tema da fortuna que, mesclando a idéia de ri­
queza à de acaso e tempestade, é como um resumo dos
atos e ideais do mercador. Sabemos, desde o excelen­
te estudo de A. Warburg, que esse é um tema imposto
por ele de bom grado aos artistas que emprega. Va­
mos encontrá-lo por toda parte, nas armas e na fachada
do palácio dos Rucellai, no pavimento da catedral de
Siena.
O tema da “virtu ”, da energia, expressão da per­
sonalidade humana e fonte do sucesso no mundo. Há,
como vimos, uma virtu do negociante às voltas com
qs elementos, os homens, as mercadorias, o dinheiro.
É ela que, segundo Poggio, em seu Liber de Nobilita-
te, apoiada na riqueza, obriga a fortuna a obedecer.

125
Em todo esse movimento culminando no que se
chamou de espírito moderno, tanto na moral como na
arte, os mercadores nem sempre se contentaram em
participar indiretamente através de suas encomendas.
Muitos deles foram pessoalmente amadores cultos e
até mesmo poetas e filósofos. Lourenço, o Magnífi­
co, é o exemplo mais notável.
Deparamos aqui com o problema das gerações,
evocado mais acima. O mercador humanista é também,
com muita frequência, um mercador que se interessa
menos pelos negócios, subtrai às suas empresas comer­
ciais o que destina aos seus interesses artísticos, gasta
em luxo o que antes investia em mercadorias. Sinal de
decadência, talvez, mas ainda aqui o papel cultural é
simultaneamente causa e efeito. Embora acentue o de­
clínio dos negócios, muitas vezes ele só se desenvolve
porque os negócios já haviam declinado. Então, o di­
nheiro acumulado é investido em bens culturais, e es­
sa nova direção das despesas, imposta pela crise eco­
nômica, limitação dos horizontes comerciais, inadap­
tação da organização profissional a novas condições,
pode ser também uma especulação não só intelectual
como material. Muitas vezes, o mecenato dos grandes
mercadores-banqueiros se inscreve numa política cul­
tural das cidades destinada a reanimar sua economia.
É no momento em que as rotas comerciais se desviam
delas, em que suas riquezas acumuladas deixam de ser
empregadas nas empresas tradicionais, que as cidades
gastam o seu tesouro para adornar-se com magnificên­
cia. Mas esse último esplendor não é apenas a peça fi­
nal de um fogo de artifício que vai se apagar. É tam­
bém, por vezes, o ponto de partida de uma política tu­
rística destinada a atrair peregrinos e viajantes — fon­
te de novos ganhos. Uma reconversão econômica —
parcial.

126
IV. Mercadores e civilização urbana

Em todo caso, é antes de tudo no contexto urba­


no que se deve situar o mecenato dos negociantes da
Idade Média.
Sua cidade: é nela que eles pensam freqüentenien-
te. Ela ocupa o primeiro lugar em suas preocupações
e afeições. Por certo, o patriotismo urbano dos mer­
cadores é também interesseiro. Sua cidade é o centro,
a base de seus negócios e de seu poder. Se ela lhes de­
ve muito, também eles lhe devem muito. Sabem que
ela é um dos fundamentos de sua força. Assim, no es­
trangeiro, eles não tardam a recompor uma unidade
à sua imagem. As nações dos mercadores estrangei­
ros, com sua organização política, organização corpo­
rativa, confrarias e festas em honra de santos de sua
terra natal, agrupados num bairro da cidade estran­
geira, fazem renascer ali a pátria que deixaram, mas
que continuam a servir. Há em Bruges uma pequena
Florença, uma pequena Gênova, uma pequena Luc­
ca. E, quando um mercador não tem “corretor0, quan­
do não tem um representante pessoal numa praça es­
trangeira, é a um compatriota que ele se dirige. Os Me­
diei dão a seus subordinados recomendações estritas
sobre os confrades a quem devem se dirigir nos luga­
res onde a casa não tem sucursais. São todos florenti-
nos.
Certamente, esse patriotismo nem sempre deixou
de se desmentir. Nem sempre cedeu ao interesse quando
este lhe era contrário e, com o tempo, teve de abrandar-
se. No princípio, o mercador não hesitava em pegar
em armas, lutar e dar a vida por sua cidade. Em 1260,
quando Síena lutava contra Florença, às vésperas de
sua grande vitória de Montaperti, os mercadores con­
tribuíram Eargamente com seus denários — Salim.be-
ne dei Salimbeni doou 118 mil florins à comuna para
o esforço de guerra — e com sua própria pessoa —

127
o chefe da mais rica família de banqueiros sienenses,
Orlando Bonsignori, foi mobilizado. Arnaldo Peruz-
zi, o grande mercador florentino, é morto numa bata­
lha contra o imperador Henrique VII. Grandes homens
de suas cidades, os ricos mercadores eram assim cha­
mados a representá-las até nas mais trágicas circuns­
tâncias. No começo do século XIII, após Bou vines, um
Uten Hove figura entre os reféns entregues por Gand
a Felipe Augusto, e conhecemos também o famoso epi­
sódio, no século XIV, dos burgueses de Calais.
Com o tempo, porém, os mercadores se recusa­
ram a ser soldados. A extensão de seus negócios já não
lhes permitia perder tempo na guerra, e a extensão de
sua riqueza permitia-lhes resgatar-se. Foi a vez do re­
curso aos mercenários, o sistema da ccndatta. O mer­
cador faz negócios e paga o condottiere, que faz a guer­
ra. O mercador converteu-se num civil.
Quando se organizaram, no final da Idade Mé­
dia, os Estados centralizados, o mercador, embora te­
nha encontrado um espaço mais amplo para a sua ati­
vidade, nem sempre transportou para essas grandes pá­
trias nascentes o amor pela pequena pátria urbana. Lo­
go após a reconquista do reino da França por Carlos
VII aos ingleses, muitos foram os mercadores “cola­
boradores” que precisaram, devolver os bens adquiri­
dos ilicitamente ou virar a casaca. M. MoLIat traçou
a figura de um deles: Jehan Marcei, de Ruão. E al­
guns anos depois o famoso Jacques Coeur, tesoureiro
do rei da França, não hesitava em passar ao inimigo,
o rei de Aragão, informações secretas cuja transmis­
são podia favorecer os negócios do grande financista.
Até esse limite extremo da traição, os grandes capita­
listas inauguravam sua carreira de potência internacio-
nalista, súditos de um reino do dinheiro que só conhece
as fronteiras quando estas favorecem seu interesses.
Mas, ao longo de toda a Idade Média, o amor dos
mercadores por suas cidades manifestou-se sobretudo

128
no zelo que puseram cm embelezá-las. Por vezes, mes­
mo, como na Alemanha, eles impõem à cidade a sua
planta. H. Planitz escreveu que no século XIII “nâo
só o mercado devia ser o centro da cidade como a ci­
dade inteira se construía a partir desse ponto cen­
tral”. Wiener Neustadt é um exemplo notável dis­
so. Por toda parte, os mercadores contribuíram para
a ornamentação monumental de sua cidade. Primei­
ro por suas residências, os belos palácios que já evo­
camos. Em seguida, pelas edificações profissionais c
corporativas. Mercados de Ypres e de Bruges, Poor-
terslogie de Bruges, Loggia della Mercanzia de Siena,
sala do Collegio della Mercanzia de Penigia, Casa de
1’Arte della Lana em Florença e, sobretudo talvez, Or
San Michele e sua guarnição de estátuas dos padroei­
ros dos mercadores. Ainda pelos monumentos religio­
sos que fizeram construir ou ornamentar, pela esplên­
dida decoração de afrescos que fizeram pintar, pela
ornamentação de capitéis como o dos mercadores de
pastel-dos-tintureiros da catedral de Amiens, de me­
dalhões como os do campanile de Florença, verdadei­
ra enciclopédia dos ofícios e de vitrais como a elegan­
te nave da capela de Jacques Coeur em Bourges. Mas
também por todos aqueles edifícios comunais onde se
desdobrava seu poder político. Prefeituras e torres de
vigia de Flandres, palácios comunais e campaniles da
Itália: é preciso pensar neles no Campo de Siena, diante
dos 102 metros da Torre del Mangia e do deslumbra­
mento do Palazzo Pubblico, no interior do qual Am-
brogio Lorenzetti glorificou o governo dos merca­
dores no mais vasto ciclo pictórico profano da Idade
Média.
É preciso ver aí, nessa decoração urbana que che­
gou até nós, a representação do grande mercador da
Idade Média. Observemo-lo atravessar uma praça de
Florença, no célebre afresco da capela Brancacci. Sun­

129
tuosamente vestido, ele avança altivamente entre o ce­
nário monumental da Florença do Quattrocento, que
tanto lhe deve, e o edificante grupo de São Pedro cu­
rando Tábita. É aí que devemos saudá-lo uma última
vez, entre sua glória e sua vaidade.

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