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Decifra-me o u t e d e v o rroo !

C assiano Sydow Quilici

D
ecifra-me ou te devoro. Nas palavras da ainda nos assombram? Velhos de barbas de fogo,
esfinge, uma vocação do teatro! Édipo na Saturnos não castrados, pais sem lei que instau-
cidade empesteada, revirando crimes. ram a lei da própria força. Sinhás vingativas e
Uma lembrança para estes artistas de delirantes, olhos de belas escravas negras servi-
hoje. Escavar camadas da história pessoal dos em bandejas de prata. Usina de rancores e
e coletiva, chegar ao rosto-enigma, debaixo da ressentimentos. Requintes de crueldade que os
máscara “civilizada”. Tatear os frágeis alicerces “fofos encenam”. Tragédia de uma tragédia que
da nossa “pólis” miserável. Chegar à terra que não se realiza, que naufraga eternamente no
pulsa sob o asfalto. melodrama do inferno familiar.
Os artistas entregam-se aos devaneios da A imagem de uma casa desabando. Me-
memória. E “há devaneios tão profundos, deva- mórias da cana, mitos da exuberância dos trópi-
neios que nos ajudam a descer tão profunda- cos. Os gritos do filho louco da família branca,
mente em nós mesmos que nos desembaraçam correndo lá fora, entre os tambores da senzala.
da nossa história. Libertam-nos do nosso nome”. Dioniso sem teatro, transe sem ritual. A tradi-
(Gaston Bachelard) Buscam fotos que não foram ção ignorada dos africanos e a sua outra família,
parar no álbum, conversam com vozes do além a dos Orixás, dos ancestrais cósmicos. A falta
(“Assombrações do Recife Velho”, peça encena- de uma cultura que capte e canalize as forças
da pelo grupo), viajam por Recifes de outrora. (Antonin Artaud). A energia solar desvirtuada,
Levados pelas mãos do nosso poeta “quase” trá- a libido transbordante que se torna violência.
gico. Um Nelson “das origens”, antes das mo- O signo-cana, a ser decifrado. Cana “falo”, cana
dernidades cariocas. O nosso tragicômico sem melaço, cana doçura. Memórias da cana: do
oráculo, nostálgico de um Paraíso Perdido, tor- açúcar do engenho ao álcool que move os car-
nado um bufão moralista na selva das cidades. ros, no tráfico engarrafado das grandes cidades.
A imagem de uma casa antiga, casa gran- Gilberto Freyre lido mais como um visionário:
de. Memórias da cana, mitos da nossa doçura/ quando a nossa energia será “des-escravizada”?
violência. Casa em que desfilam fantasmas de Podemos mesmo ser o berço esplêndido de algo
“homens pequenos” e bárbaros, “encostos” que singular no mundo?

Cassiano Sydow Quilici é professor do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Gradua-


ção em Artes do IA Unicamp.

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Antes de tudo é preciso abrir a casa, pisar das nossas tragédias, sondando sinais de uma
a terra, purgar as máscaras. Seguindo os rastros utopia. Os “Fofos encenam” e fazem a sua parte.

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R3-A6-CassianoQuilici.PMD 252 13/05/2010, 16:05

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