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diariodonordeste.verdesmares.com.br

Durval Muniz de Albuquerque Jr

7-10 minutos

Primeiro foi o filme Bacurau, de Mendonça Filho, a reatualizar o


imaginário do cangaço, com a famosa cena das cabeças
degoladas dos integrantes do bando de Lampião, arrumadas em
pose de retrato de família, na escadaria da igreja. Depois o
fenômeno Juliette, com sua personagem, construída pelo
marketing, portando sempre, orgulhosa, de cabeça erguida, um
chapéu de cangaceiro. Nas redes sociais, até grupos feministas a
se nomear de cangaceiras, símbolo que seria de bravura, de
resistência, de coragem, de luta.

Em tudo isso, uma certeza, o cangaço e o cangaceiro fazem parte


das mitologias que sustentam o discurso da identidade regional
nordestina, e, como toda mitologia, tem muito pouco a ver com a
realidade histórica do que foi esse fenômeno e foram esses
personagens. Desde a Grécia antiga, o discurso da história surgiu
para se contrapor ao mito, para colocar no tempo e na realidade
terrena e prosaica dos homens, aquilo que parecia habitar o
intemporal e as esferas do sagrado, do mitológico.

O cangaço é um fenômeno que, com essa designação, surgiu

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durante a seca de 1877-1879, embora banditismo rural já


existisse, anteriormente. Nasceu como bandos de antigos
jagunços, homens armados a serviço dos coronéis, que deixados
à própria sorte por causa da seca, resolveram usar as armas para
atacar os comboios com os socorros públicos ou pilhar as
fazendas e grupos de retirantes que seguiam pelas estradas.

Com o fim da seca, tendo descoberto um meio de vida e provado


da liberdade de agirem por conta própria, sem estar debaixo das
ordens de um mandão, muitos desses saqueadores e bandoleiros
continuaram agindo independentemente.

Desde o início, portanto, o cangaceiro será uma figura ambígua,


podendo saquear e roubar tanto ricos quanto pobres, realizar
seus “serviços” de forma independente ou se colocar às ordens
de um coronel, de um coiteiro (que também podia ser um modesto
camponês) que o protege, o abastece de armas, o abriga em fuga
de um entrevero com as polícias ou volantes, que lhe salva a vida
quando chega ferido e, em troca, ele põe seu braço armado a
serviço das vinganças e interesses do seu protetor, recebendo,
muitas vezes, pelo “serviço” prestado.

A mitificação do cangaço começou quando o cangaceiro começou


a desaparecer. Quando ele existia e metia medo em todo mundo,
era tratado como facínora, como aborto da natureza, sendo
explicado, inclusive, como resultado de atavismos étnicos e da
hereditariedade do sangue “inferior e selvagem” de índios e
negros, eles seriam tarados físicos e morais.

Quando a ditadura do Estado Novo (1937-1945) resolveu, após a


morte de Lampião e Corisco, proibir que a imprensa designasse
qualquer criminoso de cangaceiro, por causa da aura de
excepcionalidade que esse nome conferia a quem era assim
chamado, o cangaceiro começou a deixar o plano a realidade e ir

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se alojar no plano do mito.

Para isso, muito contribuiu a literatura popular de folhetos, que


tornou o cangaceiro, notadamente Lampião, um de seus
personagens recorrentes, mesmo que fosse para tratar de como
chegara ao inferno e como tomara aquele território do demônio.

Mas será decisivo para a constituição do mito do cangaceiro


autores como os cearenses Djacir Menezes (1907-1996), com seu
livro publicado em 1937, O outro Nordeste, e Rui Facó
(1913-1963), com seu livro publicado em 1963, Cangaceiros e
fanáticos, que abordam as causas sociológicas do cangaço, sua
ligação com a miséria e a exploração das massas camponesas,
com o monopólio da terra, com o não acesso à educação, à
saúde e à justiça por parte dos homens do campo.

O cangaceiro, nessas leituras, seria um revoltado, um rebelde a


quem faltava o projeto político correto de transformação do
mundo, cuja valentia e destreza com as armas podiam ser
colocadas a serviço da revolução social.

O cangaço esteve sim umbilicalmente ligado à luta pela terra, às


lutas de parentelas pelo controle do poder local e pelo controle de
de propriedades cada vez maiores.

Se a maioria dos cangaceiros vinha das camadas populares e


entrava no cangaço em busca de um meio de vida, atraídos pelo
seu caráter aventureiro e nômade, oportunidade de dar expansão
a demonstrações de valentia, coragem e destreza nas armas,
traços que definiam o padrão hegemônico de masculinidade; suas
principais lideranças, como Sinhô Pereira, Antônio Silvio e
Lampião não eram pobres, desprovidos de terra, pelo contrário,
entraram no cangaço porque viram suas terras e posses
desapropriadas violentamente por vizinhos, ligados a outras
parentelas.

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O cangaceiro estava longe de ser o revolucionário que as


esquerdas pintaram, nos anos sessenta, ele aspirava a ser um
coronel, como os fatos de Lampião passar a exigir que o
chamassem de capitão e a correspondência que enviou ao
presidente do estado de Pernambuco, Estácio Coimbra, propondo
a divisão do governo estadual, claramente indicam.

Devemos estudar e entender historicamente o fenômeno do


cangaço, mas fazer dele um mito regional, tomá-lo como motivo
de orgulho, fazer dele culto, como fazem, inclusive, muitos
intelectuais e artistas da região, é uma extravagância inaceitável.

Ver mulheres se nomeando de feministas e cangaceiras é


constatar o quanto em nosso País a história é desconhecida. O
cangaço era o reino da masculinidade autoritária, machista e
patriarcal, onde as mulheres eram maltratadas, raptadas,
sistematicamente estupradas.

Muitas das cangaceiras, chegaram ao cangaço por serem


raptadas, levadas à força, mantidas sob ameaça e cárcere
privado, ocupando lugares subalternos, tidos como lugar de
mulher. Não descarto o fato de que uma ou outra mulher se
acostumou, se afeiçoou àquela vida e até a seu raptor, todo
fenômeno humano é complexo e assim deve ser tratado, daí
porque a simplificação mítica não é o mais adequado.

Não devemos nos envergonhar do cangaço, pois não era mera


selvageria e barbárie, mas também não devemos tecer loas
regionalistas a um fenômeno que em nada contribui para o
aprendizado necessário de vivermos em um Estado democrático
de direito, onde o macho valente e armado não se ache no direito
de atacar uma mulher indefesa (como acaba de ocorrer na cidade
do Recife), onde o respeito à lei venha acompanhado da luta
política democrática por conquistas sociais.

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O cangaceiro deve ser deixado no passado, pois seu mito só


reforça a heroicização da violência individual e pessoal, só veicula
um modelo de ser masculino, de ser homem, que deve ser
superado: o modelo do cabra macho que lava a honra com
sangue, que afirma sua virilidade e masculinidade no recurso à
violência sanguinária.

Cultuar o cangaceiro é cultuar a violência e não precisamos de


modelos de seres violentos. Os fascistas com seu amor as armas
já estão aí infelicitando nossos dias. Mulheres, leiam o livro de
Adriana Negreiros, Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no
cangaço, antes de se nomearem de cangaceiras, como se fosse
um gesto de afirmação feminina.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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