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Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2): jul./dez. 1986 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2): jul./dez. 1986 · 75
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Pela antropologia, a compreensão do cangaço ilumina-se Se na literatura erudita o cangaço ocupa espaço signifi-
nas coordenadas de uma cultura ruralista, de forte tradição ativo, na literatura popular, em especial na Literatura de Cor-
agrária, permeada de valores medievais, em que os sentimen- del, constitui-se ele um verdadeiro ciclo- o ciclo do cangaço ,
tos de honra, o dever da vingança são imperativos de um có- vivo ainda hoje, na publicação de folhetos, através da reedição
digo de ética que mantém a todos nos limites de um quadro dos clássicos do assunto e da edição até de textos novos,
comportamental primitivo e bárbaro. num exemplo de extraordinária vitalidade do tema que parece
1tcnder as necessidades da fantasia da alma popular, cuja ima·
Pela psicanálise, o cangaço passa a contar com uma com-
)Inação se esparrama deleitosamente nas torrentes de vingan-
ponente internalizada no subconsciente, advinda de uma so-
ça e nas bravatas de valentia, nos atos de humilhação a que
ciedade opressora na ordem do sexo. O sadomasoquismo traz
1iío submetidos os poderosos,e, por intermédio do mecanismo
também alguma luz, de um lado, no esclarecimento da ação
psicológico da identificação , cria a ilusão de ver-se o leitor
criminosa dos cangaceiros, perpretada , não raras vezes, com
cmcarnado na figura do cangaceiro, juiz justiceiro e senhor dis-
requintes de extrema perversid ade e malvadez e de outro lado,
1rlbuidor de proteção.
no comprazimento do leitor-ouvinte.
Nem sempre, porém, o Cordel contempla o cangaceiro
O jornalismo, por sua vez, sempre se preocupou com o c.omo elemento positivo; por vezes, o vê como marginal, cri -
cangaço, desde as primeiras manifestações à sua fase áurea , lnlnoso, estrompa, perverso, como excluído do sistema social.
no esforço das reportagens, com o intuito de informar, de pôr I olnmos diante de uma posição de ambivalência facilmente
à disposição da curiosidade de todas suas façanhas e peripé- porcobida por todos quantos se dedicam à análise dos textos
cias, crimes e virtudes, de suas implicações sociais, ajudando, cnrd olinos, numa perspectiva crítica em relação aos aspectos
com depoimentos, entrevistas e análises, a fazer a história oc:lols, como teremos oportunidade de ver mais adiante .
deste tipo singular de banditismo .
No cinema está outra poderosa fonte de investigação e
auscultação do cangaço . Matéria de filmes, o cangaço inspirou
a diretores e roteiristas, preocupados com nossa realidade, em LITERATURA DE CORDEL E CANGAÇO
geral, em particular, com a nordest ina , interessados em dar ao
nosso cinema veio temático intrinsecamente nacional. Ouas coisas são tipicamente nordestinas - o cangaço e o
As artes plásticas, nas suas manifestações eruditas e, • tttd ol, sem que entre ambos haja qualquer nexo de causali-
sobretudo, populares, apoderaram-se do cangaço, com vigor tl f! do, pois o cordel, além de um fenômeno inteiramente de
e entusiasmo. Inúmeros são os artistas, artesãos que se dedi- tilllrn ordem, o antecede no tempo.
caram e se dedicam ao assunto, na pintura , no desenho, na 1\ literatura, em qualquer de suas manifestações, alimen-
escultura, na xilogravura. O poder de sedução que o cangaço llt •to do realidade e repousa, como a arte, em geral, nas ne-
exerce sobre eles é enorme, havendo alguns , cuja obra se no- ldodes do espírito. A alma humana, por sua vez, se ali-
tabiliza pela dedicação persistente aos motivos do cangaço. llttlltl n o se diverte na palavra, no discurso, na narrativa.
A literatura, entre as artes, talvez tenha sido a primeira a <>s povos, costuma-se repetir, nascem cantando, e pode-
levantar o assunto. O Cabeleira, de Franklin Távora - (1876). O nllrmar, sustentam-se, em atenção às exigências do espí-
abre passagem: no romance de 30 do Nordeste, com Os Can- tlllt , nn criação do texto, como organização superior da arte
gaceiros, com Os Coiteiros, sua força avulta , sem esquecer "" q1111dro da pintura , na partitura da música , no movimento da
que em inúmeras outras narrativas , furtiva e insinuantemente, •' '"''" · no espaço preenchido da arquitetura, na forma pl ástica
o cangaço marca sua presença, adquirindo na literatura nordes- dn mu:11llura, nas linhas do desenho, no discurso da literatura
tina força de leitmotiv, cuja culminância ocorre com a obra 11111 rnl Ivo ou poema.
monumental de Guimarães Rosa: Grande Sertão, Veredas. ll111n to da realidade, para compreendê-la , senti-la mais pro-
Em nossos dias, contando agora com o concurso da Tele- ltlllt hunonl o, poder explicá-la ao outro , o homem procura re-
visão, assistimos ao processo de mistificação do cangaço, com III•II.. Hilnr, simbolizar e o faz de acordo com suas condi ções
o Cangaceiro levantando-se como bandeira de luta contra a • 11ll111 rlln. Sua adesão e sua reação à realidade podem exte riori-
opressão, como símbolo heróico do camponês explorado. manifestações da arte. O homem não pode ficar
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Pela antropologia, a compreensão do cangaço ilumina-se Se na literatura erudita o cangaço ocupa espaço signifi-
nas coordenadas de uma cultura ruralista, de forte tradição ativo, na literatura popular, em especial na Literatura de Cor-
agrária, permeada de valores medievais, em que os sentimen- .lel, constitu i-se ele um verdadeiro ciclo- o ciclo do cangaço,
tos de honra, o dever da vingança são imperativos de um có- vivo ainda hoje, na publicação de folhetos, através da reedição
digo de ética que mantém a todos nos limites de um quadro dos clássicos do assunto e da edição até de textos novos,
comportamental primitivo e bárbaro. num exemplo de extraordinária vitalidade do tema que parece
ntcnder as necessidades da fantasia da alma popular, cuja ima-
Pela psicanálise, o cangaço passa a contar com uma com-
Ji nação se esparrama deleitosamente nas torrentes de vingan-
ponente internalizada no subconsciente, advinda de uma so-
ça e nas bravatas de valentia, nos atos de humilhação a que
ciedade opressora na ordem do sexo. O sadomasoquismo traz
11iío submetidos os poderosos,e, por intermédio do mecanismo
também alguma luz, de um lado, no esclarecimento da ação
psicol ógico da identificação, cria a ilusão de ver-se o leitor
criminosa dos cangaceiros, perpretada, não raras vezes, com
oncarnado na figura do cangaceiro, juiz justiceiro e senhor dis-
requintes de extrema perversidade e malvadez e de outro lado,
rlbu idor de proteção.
no comprazimento do leitor-ouvinte.
Nem sempre, porém, o Cordel contempla o cangaceiro
O jornalismo, por sua vez, sempre se preocupou com o c.omo elemento positivo; por vezes, o vê como marginal, cri-
cangaço, desde as primeiras manifestações à sua fase áurea, ltlinoso, estrompa, perverso, como excluído do sistema social.
no esforço das reportagens, com o intuito de informar, de pôr Jnlnmos diante de uma posição de ambivalência facilmente
à disposição da curiosidade de todas suas façanhas e peripé- porccbida por todos quantos se dedicam à análise dos textos
cias, crimes e virtudes, de suas implicações sociais, ajudando, cnrdclinos, numa perspectiva crítica em relação aos aspectos
com depoimentos, entrevistas e análises, a fazer a história oclols, como teremos oportunidade de ver mais adiante.
deste tipo singular de banditismo.
No cinema está outra poderosa fonte de investigação e
auscultação do cangaço. Matéria de filmes, o cangaço inspirou
a diretores e roteiristas, preocupados com nossa realidade, em LITERATURA DE CORDEL E CANGAÇO
geral, em particular, com a nordestina, interessados em dar ao
nosso cinema veio temático intrinsecamente nacional. Duas coisas são tipicamente nordestinas - o cangaço e o
As artes plásticas, nas suas manifestações eruditas e, t tmlol, sem que entre ambos haja qualquer nexo de causali-
sobretudo, populares, apoderaram-se do cangaço, com vigor dt~do, pois o cordel, além de um fenômeno inteiramente de
e entusiasmo. Inúmeros são os artistas, artesãos que se dedi- '''''"" ordem, o antecede no tempo.
caram e se dedicam ao assunto, na pintura, no desenho, na 1\ literatura, em qualquer de suas manifestações, alimen-
escultura, na xilogravura. O poder de sedução que o cangaço ht no da rea lidade e repousa, como a arte, em geral, nas ne-
exerce sobre eles é enorme, havendo alguns, cuja obra se no- t mntldodes do espírito. A alma humana, por sua vez, se ali-
t abiliza pela dedicação persistente aos motivos do cangaço. IIIIJIIIn o se diverte na palavra, no discurso, na narrativa.
A literatura, entre as artes, talvez tenha sido a primeira a Os povos, costuma-se repetir, nascem cantando, e pode-
levantar o assunto. O Cabeleira, de Franklin Távora - (1876). I} 111Irmar, sustentam-se, em atenção às exigências do espí-
abre passagem: no romance de 30 do Nordeste, com Os Can- lllft , nn criação do texto, como organização superior da arte
gaceiros, com Os Coiteiros, sua força avulta, sem esquecer 1111 qnfiCiro da pintura, na partitura da música, no movimento da
que em inúmeras outras narrativas, furtiva e insinuantemente, tlnw 11, no espaço preenchido da arquitetura, na forma plástica
o cangaço marca sua presença, adquirindo na literatura nordes- dn IIIH:IIItura, nas linhas do desenho, no discurso da literatura
tina força de leitmotiv, cuja culminância ocorre com a obra 111111'111 Ivo ou poema.
monumental de Guimarães Rosa: Grande Sertão, Veredas. I >I rmto da realidade, para compreendê-la , senti-la mais pro-
Em nossos dias, contando agora com o concurso da Tele- ltlllthunonlo, poder explicá-Ia ao outro, o homem procura re-
visão, assistimos ao processo de mistificação do cangaço, com I'' tiiW itlllr, simbolizar e o faz de acordo com suas condições
o Cangaceiro levantando-se como bandeira de luta contra a • tilltlt rlln . Sua adesão e sua reação à realidade podem exteriori-
opressão, como símbolo heróico do camponês explorado. manifestações da arte. O homem não pode ficar
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mudo, calado diante do real. Necessit a sair de si, cantar suas 10ntes, a serviço, por vezes, dos intere'sses das classes . domi-
alegrias e suas dores , proclamar sua ad miração e seu repúdio , nantes, e, por vezes, dos interesses p1rivados de indivíduos e/
em consonância com suas condições psicológicas e histórico- ou de famílias.
-sociais. Ao lado destes jagunços e cangaceiros assalariados, atua-
vom grupos e bandidos isolados, assaltando e roubando, em
O homem nordestino não pode ser exceção: procura na honcfício próprio. Vivia-se, à época, ·em contínuas trop elias,
arte sua fórmula de participar da vida, de reagir em face do orn lutas constantes, em verdadeiro' pé-de-guerra . Soma-se
real. Nos limites de suas condições históricas e econômicas , ' tal estado de coisas a calamidade dats secas e poder-se-á t er
criou uma arte popular bem característica, de contornos fol - 11111 retrato extremamente trágico e violento do momento his-
clóricos bem próprios, sem deixar de repetir, por imitação l(lrlco em que surge o cangaço, como1 manifestação de bandi-
deliberada ou por imitação casual, modelos culturais, estabe- llmno social.
lecidos universalmente pela ação dos povos. O cangaço, no Nordeste, teve seu momento histórico e seu
Assim é que no campo das artes floresce, no Nordeste, o lr11bltat natural. Concorreram causas so·ciais e geográf icas, para
Cordel, como manifestação popular da literatura, como veículo ou surgimento e manutenção.
da expansão do simbólico e do imaginário das classes pobres "A grande região compreerndi da entre o rio São
de nossa população. Como estas classes pobres são nume- Francisco e o Vale do Cariri , est endendo-se da serra
rosas e abundantes ainda hoje, entre nós, o Cordel retira sua Quiamaçá à do Martins , daí ;as fald as da Borborema
perenidade e vitalidade atuais dessa circunstância. aos contrafortes da Baixa Ve1rde e dos Dois Irmãos,
Através do Cordel, esta classe desprivilegiada reage pe- é o habitat do banditismo ." (H-1 e 8., p. 11)
rante a vida e já o praticou de maneira mais intensa e partici- So acrescentarmos a esta natu rez:a adversa , a cal amitosa
pativa, em outras quadras de nossa história. lunç5 o da estrutura social vigent e - ·- pobreza , ignorância -
11p1 o!lsã o - exploração, compreende-se melhor e será possí-
Dentre estas quadras da história nordestina está a época
vul nl ó justificar o cangaço , que vicej ou entre 1870 a 1940.
do cangaço, com todo seu cortejo de viol ência, com toda a sua
No cangaço, há alguns traços que: deveriam interessar ao
força de rebelião , sendo inquestionavelment e um período épico ,
capaz (como o foi , diga-se de passagem) de gerar uma litera- 1:meloI:
tura expressiva e abundante. 1) O sentido de valentia:
Do cangaço apoderou-se o Cordel, j á predispost o ao "Em pequeno eu só brincava
épico, pelo conhecimento e prática de narrativas tradicionai s Com menino muito mau;
do gênero, algumas européias , advindas através do ciclo de Não brinquei nunca com gaita,
Carlos Magno; outras nordestinas, através do ciclo do boi ou Com carrinho ou berimbau ;
dos vaqueiros e do ciclo dos valentes (Vilela e Guabi raba, por O meu brinquedo era faca,
exemplo). Ou espingarda de pau ."
O cangaço, como nos ensina a Sociologia, é uma forma de
(Antônio Silvino - p. 72)
banditismo social, já não podendo hoje ser vist o como motins
de criminosos comuns , mas deve ser encarado como movi- Tom cangaceiro em meu grUpo
mento reivindicatório , a vicejar numa sociedade rural, marca- Que pega onça co'a mão,
da por estruturas sociais injustas, dominada pela opressão e Bola cascavel no bolso,
exploração dos economicamente fracos. Surucucu no surrão
Numa sociedade sem leis, primitiva e bárbara, onde não Come urubu com sal
chegava a presença de um poder cent ral forte e disciplinador, /\ss lm haja precisão
a "lei" e a " justiça" estavam sob o exercício de Sen hores lo- (Canção de Antônio Silvino, p. 13
cais poderosos , que mantinham , às suas expensas, grupos de
cabras e jagunços, como garantidores das relações sociais v i- A. Silvino) .
Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2 ) : jul./dez. 1986 ll f:v ele; I.oLrns. Fortaleza, 11 (2) : jul./de:z. 1986 79
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mudo, calado diante do real. Necessita sair de si, cantar suas 10ntcs, a serviço, por vezes, dos intere'sses das classes . domi-
alegrias e suas dores, proclamar sua admi ração e seu repúdio, IIOntes, e, por vezes, dos interesses privados de indivíduos e/
W J de famílias.
em consonância com suas condições psicológicas e histórico-
-sociais. Ao lado destes jagunços e cangaceiros assalariados, atua-
vum grupos e bandidos isolados, assaltando e roubando, em
O homem nordestino não pode ser exceção: procura na honcfício próprio. Vivia-se, à época, em contínuas trop elias,
arte sua fórmula de participar da vida, de reagir em face do om lutas constantes, em verdadeiro pé-de-guerra . Soma-se
real. Nos limites de suas condições históricas e econômicas , 1 ta l estado de coisas a calamidade das secas e poder-se-á t er
criou uma arte popular bem característica, de contornos fol- 111 n retrato extremamente trágico e violento do momento his-
clóricos bem próprios , sem deixar de repetir, por imitação l c'>rlco em que surge o cangaço, como manifestação de bandi-
deliberada ou por imitação casual, modelos culturais, estabe- tl:llno social.
lecidos universalmente pela ação dos povos. O cangaço, no Nordeste, teve seu momento histórico e seu
Assim é que no campo das artes floresce, no Nordeste, o l111l>ltat natural. Concorreram causas sociais e geográf icas, para
Cordel, como manifestação popular da literatura, como veículo ou surgimento e manutenção.
da expansão do simbólico e do imaginário das classes pobres "A grande região compreendida entre o rio São
de nossa população. Como estas classes pobres são nume- Francisco e o Vale do Cariri , est endendo-se da serra
rosas e abundantes ainda hoje, entre nós, o Cordel retira sua Ouiamaçá à do Martins , daí as fald as da Borbore ma
perenidade e vitalidade atuais dessa circunstância. aos contrafortes da Baixa Verde e dos Dois Irmãos,
Através do Cordel , esta classe desprivilegiada reage pe- é o habitat do banditismo." (H e 8., p. 11)
rante a vida e já o praticou de maneira mais intensa e partici- So acrescentarmos a esta natureza adversa , a cal amitos a
pativa, em outras quadras de nossa história. tlliiÇÕO da estrutura social vigent e _:_ pobreza , ignorância -
11p1 o:lsã o - exploração, compreende-se melhor e será possí-
Dentre estas quadras da hist ória nordestina está a época
Vt ) l nt ó justificar o cangaço, que vicej ou entre 1870 a 1940.
do cangaço, com todo seu cortejo de viol ência, com toda a sua
No cangaço, há alguns traços que deveriam interessar ao
força de rebelião, sendo inquestionavelment e um período épico ,
capaz (como o foi, diga-se de passagem) de gerar uma litera- c:md ol :
tura expressiva e abundante. 1) O sentido de valentia:
Do cangaço apoderou-se o Cordel, já predisposto ao "Em pequeno eu só brincava
épico, pelo conhecimento e prática de narrativas tradicionais Com menino muito mau;
do gênero, algumas européias , advindas através do ciclo de Não brinquei nunca com gaita,
Carlos Magno; outras nordestinas, através do ciclo do boi ou Com carrinho ou berimbau,
dos vaqueiros e do ciclo dos valentes (Vilela e Guabi raba, por O meu brinquedo era faca,
exemplo). Ou espingarda de pau ."
O cangaço, como nos ensina a Sociologia, é uma forma de
(Antônio Silvino - p. 72)
banditismo social, já não podendo hoje ser vist o como motins
de criminosos comuns, mas deve ser encarado como movi- Tem cangaceiro em meu grupo
mento reivindicatório, a vicejar numa sociedade rural , marca- Que pega onça co'a mão,
da por estruturas sociais injustas, dominada pela opressão e Boto cascavel no bolso,
exploração dos economicamente fracos. Surucucu no surrão
Numa sociedade sem leis, primitiva e bárbara, onde não Come urubu com sal
chegava a presença de um poder central forte e disciplinador , /\sslm haja precisão
a "lei" e a "just iça" estavam sob o exercício de Senhores lo- (Canção de Antônio Silvino, p. 13
cais poderosos, que mantinham, às suas expensas , grupos de
cabras e jagunços, como garantidores das relações sociais vi- A . Silvino).
R ev. de Letras. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 li fi V clt• LI' Lms. Fortaleza, 11 (2 ) : jul./dez. 1986 79
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13CH.pfõRIOotcc
2) Sentimento de honra:
Se acabará o despotismo
O orgulho e poderio
Confesso que sou homicida Não haverá mais gatano
Mas não sou deshonrador Todo mundo terá brio
De mulher casada ou donzella
Nunca ofendi ao pudor (Tomo IV - p. 130)
E até me glorio em ser
Da honra um defensor.
(Tira força do poder, p. 131)
(A vida de Antônio Silvino - p. 40) Para completar o paradigma, em razão do aspecto de meio
do comunicação inerente ao Cordel, pode-se juntar, do lado
do leitor, o prazer da notícia das altas façanhas e dos baixos
3) Obrigação da vingança e desejo de justiça: t.tlmos praticados pelos cangaceiros.
"Vendo eu que a justiça
Procedia desta sorte "Primeiro é ser criminoso
Resolvi então eu mesmo Dar provas que é valente
Vingar de meu pai a morte." Romper três horas de jogo
Nunca ter se acovardado
(Tomo IV - p. 56) E ter seu rifle marcado
Com a morte de muita gente."
/
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2) Sentimento de honra:
Se acabará o despotismo
O orgulho e poderio
Confesso que sou homicida Não haverá mais gatano
Mas não sou deshonrador Todo mundo terá brio
De mulher casada ou donzella
Nunca ofendi ao pudor (Tomo IV - p. 130)
E até me glorio em ser
Da honra um defensor.
(Tira força do poder, p. 131)
(A vida de Antônio Silvino - p. 40) Para completar o paradigma, em razão do aspecto de meio
do comunicação inerente ao Cordel, pode-se juntar, do lado
do leitor, o prazer da notícia das altas façanhas e dos baixos
3) Obrigação da vingança e desejo de justiça: l.tlmos praticados pelos cangaceiros.
"Vendo eu que a justiça
Procedia desta sorte "Primeiro é ser criminoso
Resolvi então eu mesmo Dar provas que é valente
Vingar de meu pai a morte." Romper três horas de jogo
Nunca ter se acovardado
(Tomo IV - p. 56) E ter seu rifle marcado
Com a morte de muita gente."
/
"O Nordeste brasileiro "Como ninguém ignora
Vive sempre aflagelado Na minha pátria natal
Pelo o analfabetismo ... Ser cangaceiro é a coisa
Que assola pelo o estado. mais comum e natural;
Pagés e catimboseiros Por isto herdei de meu pai
Criminosos e cangaceiros Este costume brutal ...
Que os sertões tem criado."
(Chagas Batista, Tomo IV - p. 155)
(M. de Andrade - p. 100)
O cangaço rivaliza com os ofícios mais apreciados, com
funções sociais mais admiradas, o cangaceiro ombreando
A época é de crime e violência. A insegurança é absoluta c:Hitl qualquer profissional de elogiado desempenho:
e a atração do cangaço encontra ressonância na alma selvagem
e bárbara do homem do sertão. "Ali se aprecia muito
Um cantador, um vaqueiro
"Ali ninguém mais ignora Um amansador de poldro
Já todo mundo anda armado Que seja bem catingueiro
Porque quem vai tomar banho Um homem que mata onça
Leva seu rifle embalado Ou então um cangaceiro."
E só se apanhe algodão
Com o bacamarte de lado." (Chagas Batista, Tomo IV - p. 23)
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"O Nordeste brasileiro "Como ninguém ignora
Vive sempre aflagelado Na minha pátria natal
Pelo o analfabetismo ... Ser cangaceiro é a coisa
Que assola pelo o estado. mais comum e natural;
Pagés e catimboseiros Por isto herdei de meu pai
Criminosos e cangaceiros Este costume brutal ...
Que os sertões tem criado."
(Chagas Batista, Tomo IV - p. 155)
(M. de Andrade - p. 100)
O cangaço rivaliza com os ofícios mais apreciados, com
as funções sociais mais admiradas, o cangaceiro ombreando
A época é de crime e violência. A insegurança é absoluta com qualquer profissional de elogiado desempenho:
e a atração do cangaço encontra ressonância na alma selvagem
e bárbara do homem do sertão. "Ali se aprecia muito
Um cantador, um vaqueiro
"Ali ninguém mais ignora Um amansador de poldro
Já todo mundo anda armado Que seja bem catingueiro
Porque quem vai tomar banho Um homem que mata onça
Leva seu rifle embalado Ou então um cangaceiro."
E só se apanhe algodão
Com o bacamarte de lado." (Chagas Batista, Tomo IV - p. 23)
84 Rev. de Letras. Fortaleza, 11(2): jul./dez. 1986 I1!W, dn I ,pf,J'l\li. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 85
lhado por eles; e se exacerba, se acentua um pouco em cada B) A. B. C. de Jesuíno Brilhante.
um, para atingir o ápice em Virgulino - Lampião.
Seguiremos, agora, sua trajetória pelo Cordel, na voz do Pouca coisa pude encontrar na literatura popular sobre
cantador, na narrativa versificada do poeta popular, em suma, Jesuíno Brilhante, considerado o maior cangaceiro do século
na visão do cancioneiro popular nordestino. O Cordel ajudou XIX.
a fixar a imagem do cangaço, impossível hoje de ser entendido, Além do folheto - A verdadeira História de Jesuíno Bri-
se não se recorre ao texto dos folhetos, ao discurso cordelino . lhante, de José Alves Sobrinho, dos textos antigos, resta-nos
o A. B. C. de Jesuíno Brilhante, transcrito no Cancioneiro do
Norte, de Rodrigues de Carvalho.
2. 1. 1. Jesuíno Brilhante: O cangaceiro fidalgo.
84 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 1/.o v. de Letras. Fortaleza, 11(2): jul./dez. 1986 85
Que o Porfírio não achou; O senhor é atacado
Respondeu e disse a ela A tropa está reunida,
De mim não tenha pavô ... O senhor já é cercado.
E J
Então, Senhor Jesuíno, Já eu sei D. Luzia,
Presumindo o que deseja Que o Porfírio não está
Tinha mandado comprar Mas enquanto não beber
Vinho, genebra e cerveja, Não posso me arretirar
Embora o seu portador - Já mandei um portador
Violento homem seja. Ele pouco há de tardar.
F K
Foi um caso admirável, Kalendário de distrurbio
Esse agora que vos digo, Hoje aqui há de se ve1·,
Todo o povo da cidade Se me vierem cercar
Geralmente reunido; Muita gente há de sofrer
Que todos desejavam ver Os que mais me arrojarem
Jesuíno no perigo. Hão de chorar e gemer.
G L
Gritava com presunção Levante-se D. Luzia,
O comandante da armada; Sem beber não me retiro,
Para o senhor Jesuíno Somos todos cangaceiros, ,
Temos mortalha cortada, Bem podemos dar uns tiros
Temos algemas de ferro, Se me vierem cercar
Gargalheira preparada. Verão o que nunca viram.
H M
Há um negócio importante, Mansamente respondeu
Que me trouxe aqui agora, O Senhor Antônio de ó:
Como não achei Porfírio So me vierem cercar
Me retiro, vou-me embora; Mou patrão não fica só
Ficará prá outro dia, E ta l seja o meu destino
Se encontrá-lo por fora. Quo farei botarem dó.
N
Idéia não fêz o homem N1' 1'1 1·a mente estamos torlos,
Que estava descuidado, ll osnondeu o João Delqado,
Quando chegou a notícia Comigo contem por certo
36 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2): jul./dez. 1986
ltov 1111 t.~ • t, ms. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 87
Que o Porfírio não achou; O senhor é atacado
Respondeu e disse a ela A tropa está reunida,
De mim não tenha pavô .. . O senhor já é cercado.
E J
Então, Senhor Jesuíno, Já eu sei D. Luzia,
Presumindo o que deseja Que o Porfírio não está
Tinha mandado comprar Mas enquanto não beber
Vinho, genebra e cerveja, Não posso me arretirar
Embora o seu portador - Já mandei um portador
Violento homem seja. Ele pouco há de tardar.
F K
Foi um caso admirável, Kalendário de distrurbio
Esse agora que vos digo, Hoje aqui há de se ve1·,
Todo o povo da cidade Se me vierem cercar
Geralmente reunido; Muita gente há de sofrer
Que todos desejavam ver Os que mais me arrojarem
Jesuíno no perigo. Hão de chorar e gemer.
G L
Gritava com presunção Levante-se D. Luzia,
O comandante da armada; Sem beber não me retiro,
Para o senhor Jesuíno Somos todos cangaceiros, ,
Temos mortalha cortada, Bem podemos dar uns tiros
Temos algemas de ferro, Se me vierem cercar
Gargalheira preparada. Verão o que nunca viram.
H M
Há um negócio imporfante, Mansamente respondeu
Que me trouxe aqui agora, O Senhor Antônio de ó:
Como não achei Porfírio So me vierem cercar
Me retiro, vou-me embora; Meu patrão não fica só
Ficará prá outro dia, E ta l seja o meu destino
Se encontrá-lo por fora. Quo farei botarem dó.
N
Idéia não fêz o homem NN11·a mente estamos torlos,
Que estava descuidado, llospondeu o João Delqado,
Quando chegou a notícia
Comigo contem por certo
36 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2): jul./dez. 1986
ll íiv tft~ J,~ , t, ms. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 87
Contra qualquer empregado. s
Ao depois que der uns tiros,
Então serei retirado. Safram todos do cerco
livre e salvo de perigo,
Deus lhe concedeu a vitória
o Pois não mereceu castigo.
Voltaram os empregados
Oh! que barulho como êste Fortemente constrangidos .
No Martins,* nunca se deu,
Muita vontade perdida,
Muita gente glória deu T
Desta batalha tão forte
Que Jesuíno venceu. Todos romperam o cerco
Sem temor e sem demora,
Jesuíno repetindo:
p "Está chegada a minha hora,
Tenha sentido no cêrco
Por certo gritou: o rôlo Que a boiada vai-se embora!"
Que neste dia se deu
Pelo subdelegado u
Todo o mal se procedeu,
Que o Alferes, sem desejo, Unidos ficaram todos
Constrangido cometeu . om muito boa união:
O povo ficou dizendo:
Lá se foram, lá se vão.
a Voltaram os empregados
Mal servidos, sem razão.
Quem será teu defensor
Nesta serra do Martins? v
Não podes contar vitória,
Brevemente terás fim . Voltaram os combatentes,
Pouco terá que viver Indo o alferes baleado
Quem a ti não vir o fim . E o Juiz Municipal
om um braço bem cravado .
Os mais, dizem que gemiam
R Ln stlmando o seu estado.
88 Rev. de Letras. Fortaleza, 11(2): jul./dez. 1986 11 1111. do Letras. Fortaleza, 11 (2): jul./dez. 1986 89
z O til é letra do fim
Val -se embora o navegante
Zombando foi Jesuíno Mo procure quem quiser
Pabulando a sua estória, ;oda hora e cada instante
O alferes João Francisco Mo acharão sempre às ordens
Com tristeza foi embora, Josufno Alves Brilhante.
Chegando no Rio Grande
Já deu baixa sem demora.
I ' ~ .. Antônio Silvino - O rifle de ouro
"Voltaram os combatentes
Indo o alferes baleado, 1\N itiN/0 $/LV/NO- RESUMO DE SUA VIDA
E o Juiz Municipal
Com um braço bem cravado " Mnnuol Batista de Morais nasceu em 1875 na cidade per-
Os mais dizem, que gemiam lclltnhllnnno de Afogados da lngazeira. Seu pai, Batistão , era
Lastimando o seu estado." llllllfln lnrnoso na cidade, e por volta de 1895 foi assassinado
r·cc t lctllnloos políticos, o que causou a entrada de seu filho Ma-
11111) 1 JHIIrl o bando do cangaceiro mais famoso da época, Silvino
Fica explícito o caráter cavalheiresco, o proceder respei- Ait 1111, o "Caolho". Após a morte de seu chefe, assumiu ele
toso do cangaceiro, na fidalguria do trato, nas palavras de sau- iít"'''"" n liderança do grupo; em honra do falecido, chamou-se
dação à dona da casa: f\tt lnnlo Sllvino.
llllvlno costumava realizar suas operações tanto no ser-
Dignamente chegando il'lt:t qttrtnlo na região açucareira. Nunca teve consigo mais de
Na porta logo esbarrou üitl c runnradas, para manter sua mobilidade. Assaltava fazen-
Salvando a D. Luzia !lllh, totllcnvo sacos de correspondência, assassinava adversá-
Que o Porfírio não achou 1h c•• (llcllllcos e chantageava comerciantes ricos. Poupando os
Respondeu e disse a ela fiiJiu "''• nóo permitindo que nenhum de seus companheiros
De mim não tenha pavô. '" "'"' nlrovldo com as mulheres (há uma infinidade de anedotas
" ''' 11 11 honradez dos cangaceiros). ganhou fama de "ladrão
Vitorioso, o cangaceiro retira-se sob o aplauso de todos , '"''" linmndo", foi comparado pelos sertanejos ao legendário
a admiração do povo, a cujo serviço sempre .está: llldt llc c I >ltnos, que por circunstâncias adversas tornou-se fac
90 Rev. de Letras. Fortaleza, 1 I f2) : jul./dez. 1986 d• I.c•Lrus. Fortaleza, 11 (2): jul./dez. 1986 91
z til é letra do fim
Vol -se embora o navegante
Zombando foi Jesuíno Mo procure quem quiser
Pabulando a sua estória, ;ocla hora e cada instante
O alferes João Francisco Mo acharão sempre às ordens
Com tristeza foi embora, Jesuíno Alves Brilhante.
Chegando no Rio Grande
Já deu baixa sem demora.
1• ~~ . /\nlônio Silvino - O rifle de ouro
"Voltaram os combatentes
Indo o alferes baleado, NltiN/0 SILVINO- RESUMO DE SUA VIDA
E o Juiz Municipal
Com um braço bem cravado " Mnnuol Batista de Morais nasceu em 1875 na cidade per-
Os mais dizem, que gemiam ""'"'"u:nno de Afogados da lngazeira. Seu pai, Batistão , era
Lastimando o seu estado." l•tl\lf111 l111noso na cidade, e por volta de 1895 foi assassinado
I'"' lllltnloos políticos. o que causou a entrada de seu filho Ma-
1111•11 p11111 o bando do cangaceiro mais famoso da época, Silvino
Fica explícito o caráter cavalheiresco, o proceder respei· i11111 , o "Caolho". Após a morte de seu chefe, assumiu ele
toso do cangaceiro. na fidalguria do trato, nas palavras de sau- líll"''"" n liderança do grupo; em honra do falecido, chamou-se
dação à dona da casa: l\11 l f'l nlo Sllvino.
~lllvlno costumava realizar suas operações tanto no ser-
Dignamente chegando 1M ljltr iii iO na região açucareira. Nunca teve consigo mais de
Na porta logo esbarrou io cr ut ulrodas. para manter sua mobilidade. Assaltava fazen-
Salvando a D. Luzia illl ll , 1011hnva sacos de correspondência, assassinava adversá-
Que o Porfírio não achou i j,.,, pnllllcos e chantageava comerciantes ricos. Poupando os
Respondeu e disse a ela Ji!!lll w1 , rt iÍ O permitindo que nenhum de seus companheiros
De mim não tenha pavô. 1' '"'111 nlmvldo com as mulheres (há uma infinidade de anedotas
" ''' " 11 honradez dos cangaceiros). ganhou fama de "ladrão
Vitorioso, o cangaceiro retira-se sob o aplauso de todos , lu''" ''"'" ncfo", foi comparado pelos sertanejos ao legendário
a admiração do povo, a cujo serviço sempre .está: Incite'" I >Ir nos, que por circunstâncias adversas tornou-se Jac
90 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 f2): jul./dez. 1986 ti• J,c•Lt'M. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 91
drão, mas por sua bondade conseguiu perdão e acesso ao reino Sem a grandiosidade das epopéias clássicas, o Cordel
dos céus como um dos dois ladrões na crucificação de Jesus . criou uma epopéia nordestina, popular, ao nível de compre-
Antônio Silvino não foi tão amado pelos oficiais de polícia e ensão das massas rurais, no trato da festa dos cangaceiros ,
pelos políticos do partido do governo: ele "fiscalizava" elei- com reprodução de "topoi" tradicionais, e também com ino-
ções, influenciava jurados a favor de seus protegidos e co- vações ao nível da significação.
brava impostos. Em alguns municípios do interior só se ouvia Do tópico tradicional, temos a caracterização do canga-
falar de Antônio Silvino. ,.., lro como herói mítico e até a tradicional descida aos infer-
nos. numa contratação cabocla da peregrinação de Eneas à
Em 1914, um oficial até então desconhecido, Teófanes, rogião dos mortos.
conseguiu surpreender o cangaceiro e prendê-lo. Num processo A passagem do cangaceiro pela morada do diabo faz-se à
sensacional. ele foi condenado à pena máxima de trinta anos rnoda de sua errância pela terra; guiado por um padre (e um
de prisão. Depois de vinte e cinco anos, foi indultado por bom rr. ristão), toma ciência do lugar, visita seus companheiros
comportamento. Até sua morte, em 1944, viveu como trabalha- rnortos e subjuga o demônio :
dor em Minas Gerais, na companhia de sua filha.
Antônio Silvino foi o primeiro cangaceiro cuja fama pes- Venho do mundo dos vivos
soal chegou até o último rincão do Brasil. Histórias sobre ele Sahi esta madrugada
encheram várias colunas na imprensa do Rio e São Paulo. No Vim visitar Rio Preto
Nordeste conseguiu, mesmo por ocasião de seu processo, des- E dar adeus a Cocada
viar a atenção da perigosa situação política mundial na Europa. Vá me chamar Antônio Félix
O cangaceiro Antônio Silvino tornou-se para toda a nação um Meu colega e camarada.
mito.
Então diga a Relâmpago
Podem-se encontrar as mais importantes dissertações so- Meu antigo companheiro
bre a história de sua vida em: Um Sertanejo e o Sertão, de Que agora faço intenção
Ulisses Lins de Albuquerque: Serrote Preto, de Rodrigues de Deixar de ser cangaceiro,
Carvalho e Heróis e Bandidos, de Gustavo Barroso. Isto é, não deixo o rifle
De simples bandoleiro passa Antônio Silvino, na épica do Que é quem me rende dinheiro.
Cordel, o herói místico: em seu nascimento, ocorrem fenôme-
nos extraordinários: parteira, assistentes e curiosos pred izem O Diabo estremeceu
avisos espantosos; poderes mágicos o protegem; forças mis- 1\ meus pés ajoelhou-se
teriosas o tornam intenso a bala. a punhal; como um gênio , Pediu-me dez mil desculpas
um duende, vara o sertão e as cidades, com auréola de inven- Depois disto confessou-se
cível, capaz de derrotar o próprio demônio, como o fez, inferior fnnto que outro diabo
apenas à potestade divina. Sua vida reproduz o duelo entre o Gritou de fora - danou-se!
Bem e o Mal, passível de compreensão na extrema ambigüi -
dade que permeia a realidade do cangaço. O cangaceiro, na
linha de Jesuíno Brilhante e de Antônio Silvino, é a encarnação Nn ltlntórla de Antônio Silvino, repete-se a tópica da gesta
dos dois princípios: o bem e o mal: o bem , como princípio da .t., • rUI\111«;0 : entrada no cangaço por vingança- luta com onça
justiça; o ponto da honra; a defesa do oprimido , vai, contudo, d fl ft llll l cln mulher e dos fracos; nele, porém , não se realiza
cedendo, paulatina e celeremente, lugar ao sinal - fonte da • tlllltlllc •nc;tlo final do cangaceiro - morrer sem se entregar à
morte, ameaça à propriedade, causa da intranqüilidade social tutll• 111 , o q11 0 trouxe embaraço a Chagas Batista , para justificar
É quando o cangaceiro perde o apoio social e todos passam a !1 11 t t~ tllll•; rl o b volante, com visível quebra do elo final que
exigir o seu fim, a reclamar seu extermínio, como sar. rifício ur n11 11 tln norr clostino trágico.
expiatório já agora de uma carreira considerada celerada, cri- r •1111 /\11l ônlo Silvino, surge uma componente nova, na
minosa. !il"''.'' hr do cungoço: a preocupação explícita com a política -
92 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2): jul./dez. 1986 tl fJ lodt'IVI. F orta leza, 11 (2) : jul./dez. 1986 93
drão, mas por sua bondade conseguiu perdão e acesso ao reino Som a grandiosidade das epopéias clássicas, o Cordel
dos céus como um dos dois ladrões na crucificação de Jesus. nlou uma epopéia nordestina, popular, ao nível de compre-
Antônio Silvino não foi tão amado pelos oficiais de polícia e onnflo dos massas rurais, no trato da festa dos cangaceiros ,
pelos políticos do partido do governo: ele "fiscalizava" elei- w rn reprodução de "topoi" tradicionais, e também com ino-
ções, influenciava jurados a favor de seus protegidos e co- ao nível da significação.
brava impostos. Em alguns municípios do interior só se ouvia Do tópico tradicional, temos a caracterização do canga-
falar de Antônio Silvino. t IJ II o como herói mítico e até a tradicional descida aos infer-
I lO:!, numa contratação cabocla da peregrinação de Eneas à
Em 1914, um oficial até então desconhecido, Teófanes, toul f' o dos mortos.
conseguiu surpreender o cangaceiro e prendê-lo. Num processo /\ passagem do cangaceiro pela morada do diabo faz-se à
sensacional, ele foi condenado à pena máxima de trinta anos 1•1odo de sua errância pela terra; guiado por um padre (e um
de prisão. Depois de vinte e cinco anos, foi indultado por bom .nc:rlstã o) , toma ciência do lugar, visita seus companheiros
comportamento. Até sua morte, em 1944, viveu como trabalha- 1110rlos e subjuga o demônio:
dor em Minas Gerais, na companhia de sua filha.
Antônio Silvino foi o primeiro cangaceiro cuja fama pes- Venho do mundo dos vivos
soal chegou até o último rincão do Brasil. Histórias sobre ele Sahi esta madrugada
encheram várias colunas na imprensa do Rio e São Paulo. No Vim visitar Rio Preto
Nordeste conseguiu, mesmo por ocasião de seu processo, des- E dar adeus a Cocada
viar a atenção da perigosa situação política mundial na Europa. Vá me chamar Antônio Félix
O cangaceiro Antônio Silvino tornou-se para toda a nação um Meu colega e camarada.
mito.
Então diga a Relâmpago
Podem-se encontrar as mais importantes dissertações so- Meu antigo companheiro
bre a história de sua vida em: Um Sertanejo e o Sertão, de Que agora faço intenção
Ulisses Lins de Albuquerque: Serrote Preto, de Rodrigues de Deixar de ser cangaceiro,
Carvalho e Heróis e Bandidos, de Gustavo Barroso. Isto é, não deixo o rifle
De simples bandoleiro passa Antônio Silvino, na épica do Que é quem me rende dinheiro.
Cordel, o herói místico: em seu nascimento, ocorrem fenôme-
nos extraordinários: parteira, assistentes e curiosos pred izem O Diabo estremeceu
avisos espantosos; poderes mágicos o protegem; forças mis- A meus pés ajoelhou-se
teriosas o tornam intenso a bala. a punhal; como um gênio, Pediu-me dez mil desculpas
um duende, vara o sertão e as cidades, com auréola de inven- Depois disto confessou-se
cível, capaz de derrotar o próprio demônio, como o fez, inferior Tanto que outro diabo
apenas à potestade divina. Sua vida reproduz o duelo entre o Gritou de fora - danou-se!
Bem e o Mal, passível de compreensão na extrema ambigüi-
dade que permeia a realidade do cangaço. O cangaceiro, na
linha de Jesuíno Brilhante e de Antônio Silvino, é a encarnação Na história de Antônio Silvino, repete-se a tópica da gesta
dos dois princípios: o bem e o mal: o bem, como princípio da do cangaço: entrada no cangaço por vingança - luta com onça
justiça; o ponto da honra; a defesa do oprimido, vai, contudo, defesa da mulher e dos fracos; nele, porém, não se realiza
cedendo, paulatina e celeremente, lugar ao sinal - fonte da 1 olorificação final do cangaceiro - morrer sem se entregar à
morte, ameaça à propriedade, causa da intranqüilidade social. polfcia, o que trouxe embaraço a Chagas Batista , para justificar
É quando o cangaceiro perde o apoio social e todos passam a nn rendição à volante, com visível quebra do elo final que
exigir o seu fim, a reclamar seu extermínio, como sar.rifício u remata seu destino trágico.
expiatório já agora de uma carreira considerada celerada, cri- Com Antônio Silvino, surge uma componente nova, na
minosa. hltHória do cangaço: a preocupação explícita com a política -
92 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 ltov. de Letras. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 93
o cangaceiro dizia-se homem de oposição. O poeta popular se Ao que foi pobre, respeito
apercebe deste conteúdo do cangaço. Há três textos em que O graúdo Senhor de engenho
se torna explícita esta compreensão por parte do poeta de lró trabalhar no eito.
cordel: A política de Antônio Silvino - 1908; Os Decretos de
Lampião- 1925, ambos de Chagas Batista; e Se Lampião fo ra Ao s vinte anos de idade
Presidente ou os Projetos de Lampião de João Martins de Todo homem há de casar,
Athayde, por volta de 1928. Nilo consentirei que o branco
use ao preto desposar
O texto A Política de Antônio Silvino é um compêndi o ma- Porque os negros para a Africa
tuto das idéias sócio-políticas, herdadas do liberalismo do sé- Todos hei de afastar.
culo passado.
Uma introdução - em que o cangaceiro se proclama can- l'tn relação aos costumes, dá continuidade a preconceitos
didato das oposições e baseia sua plataforma na luta contra a ttllqt >n; com o déspota esclarecido, apregoa o partido único:
isenção dos impostos e a lei do sorteio militar, implantada no
Governo de Afonso Pena, no ano de 1908. Estes dois itens coin- A cabarei com o divórcio
cidem perfeitamente com os dois objetivos maiores que man- Ninguém se há de descasar
têm Antônio Silvino debaixo do cangaço: oposição ao Governo Ouom deflorar uma moça
naquilo que mais importunava o pobre sertanejo - a cobrança A ·força há de a esposar!
dos impostos - malbaratados, no consenso de todos, pelos E será mui castigado
danos do poder; oposição ao governo, na recusa à lei do sor- Quem a esposa abandonar.
teio militar, de recrutamento de jovens para o exército, então ,
muito mal visto pelo povo. , .. ,monte ao meu poderio
rodos hão de obedecer
Ameaça "enorme guerra civil" e se diz governador do ser- Nflo haverá outra política
tão, em cidades da Paraíba - Pernambuco e Rio Grande do Pnro a minha combater
Norte. Seu programa de governo , "conveniente e moderno", Porque quem se levantar
brada novamente contra os impostos, os membros da justiça ; ontra ruim há de morrer!
contra os padres interesseiros; apregoa o ensino obrigatório ,
a derrubada de cadeias, sobre cujos escambos edificará es-
colas. l'olll boca do cangaceiro, num procedimento narrativo de
Defende um igualitarismo universal na posse da terra e tllllll lol o:u t, com o insinua Donald Daus, o popular faz-se por-
no trabalho; torna o casamento obrigatório, aos 20 anos de ''' lltL' do propostas avançadas para a época, em termos de
idade; insurge-se contra o preto, em manifesta confissão ra- ••dlll n• fl n, do defesa da igualdade de direitos da posse da terra,
cista: .tu ll v1n oxprcssã o do pensamento e da crença, num ideário,
'11111 rtllllllldndo não perde em nossos dias, seu vigor, e por
"A terra será em comum • 1tj11n lnlontos exige-se transformação:
Todos se apossarão
Ninguém pagará mais foro I' ossa transformação - p. 134 T . IV
Para fazer plantão J'mr grandes melhoramentos
Não haverá nesse tempo l'odos terão seus direitos
Nem criado nem patrão. llo crenças e pensamentos ;
ll nvorá plena igualdade
Todos hão de ter direito I olu ohi meus intentos.
Será geral igualdade
O que foi rico, terá (C . B.T. IV- 16)
94 R ev. de Letras. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 il ii í/, tf,, l ,t •L•Wt Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 95
o cangaceiro dizia-se homem de oposição. O poeta popular se /\o que foi pobre, respeito
apercebe deste tonteúdo do cangaço. Há três textos em que O graúdo Senhor de engenho
se torna explícita esta compreensão por parte do poeta de lró trabalhar no eito.
cordel: A políticé';J de Antônio Silvino - 1908; Os Decretos de
Lampião - 1925~ ambos de Chagas Batista; e Se Lampião fora /\os vinte anos de idade
Presidente ou os Projetos de Lampião de João Martins de Todo homem há de casar,
Athayde, por volta de 1928. Nõo consentirei que o branco
Ouse ao preto desposar
O texto A P<o/ítica de Antônio Silvino é um compêndi o ma-
Porque os negros para a Africa
tuto das idéias ~ócio-políticas, herdadas do liberalismo do sé-
culo passado. Todos hei de afastar.
Uma introducção - em que o cangaceiro se proclama can- 1111 relação aos costumes, dá continuidade a preconceitos
didato das oposiq;:ões e baseia sua plataforma na luta contra a 11ll!ltlU; como déspota esclarecido, apregoa o partido único:
isenção dos impeostos e a lei do sorteio militar, implantada no
Governo de Afonlso Pena no ano de 1908. Estes dois itens coin- Acabarei com o divórcio
cidem perfeitamEl:lnte co~ os dois objetivos maiores que man- Ninguém se há de descasar
têm Antônio Silviino debaixo do cangaço: oposição ao Governo Quem deflorar uma moça
naquilo que mais : importunava o pobre sertanejo - a cobrança À força há de a esposar!
dos impostos - . malbaratados, no consenso de todos, pelos será mui castigado
danos do poder; oposição ao governo, na recusa à lei do sor- Quem a esposa abandonar.
teio militar, de necrutamento de jovens para o exército, então,
muito mal visto lpelo povo. Somente ao meu poderio
Todos hão de obedecer
Ameaça "encorme guerra civil" e se diz governador do ser- Nõo haverá outra política
tão, em cidades da Paraíba - Pernambuco e Rio Grande do
Para a minha combater
Norte. Seu progrrama de governo, "conveniente e moderno",
Porque quem se levantar
brada novamente! contra os impostos, os membros da justiça;
Contra ruim há de morrer!
contra os padres; interesseiros; apregoa o ensino obrigatório ,
a derrubada de (Cadeias, sobre cujos escambos edificará es-
colas. l'oln boca do cangaceiro, num procedimento narrativo de
Defende um igualitarismo universal na posse da terra e III I!HitJi tli'IO , como insinua Donald Daus, o popular faz-se por-
no trabalho; torrna o casamento obrigatório, aos 20 anos de i vw do propostas avançadas para a época, em termos de
idade; insurge-sel contra o preto, em manifesta confissão ra- ' ·dll!'fldlo, de defesa da igualdade de direitos da posse da terra,
cista: dn livro expressão do pensamento e da crença, num ideário,
1 111n filllnlldad e não perde em nossos dias, seu vigor, e por
"A terra 1 será em comum 1 ulu:' lnlontos exige-se transformação:
Todos see apossarão
Ninguém1 pagará mais foro 1: essa transformação - p. 134 T. IV
Para faz~er plantão Traz grandes melhoramentos
Não havt<erá nesse tempo rodos terão seus direitos
Nem cricado nem patrão. Do crenças e pensamentos;
ll ovcrá plena igualdade
Todos hãão de ter direito 1: ois ahi meus intentos.
Será gerral igualdade
O que foai rico, terá (C.B.T. IV- 16)
94 Rev. de Letras. Fortaleza, 11(2): jul./dez. 1986 llnv, tl n T.nLrns. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 95
2.1.3. Virgulino Ferreira da Silva - Lampião - Rei do 1\ dclndo de Vila Bela chama-se, desde 1939, Serra Ta-
Cangaço. II HH io .1r1 11os dezessete anos, Virgulino tomou parte em emba-
'"" hCJIIt:oll, como membro de uma tropa de capangas. Depois
Com Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, o império do cl11 ttlntlo do seu pai (assassinado por uma patrulha policial) ,
cangaço atinge seu fastígio. Em sua pessoa dá-se a concen- 11111111 o jovom "efetivamente" para o cangaço e para o bando
tração de tudo que compõe a figura do cangaceiro. Como das ele• lldoluo Sebastião Pereira. Depois que seu chefe emigrou
faces de um prisma, irradiam-se dele aquelas qualidades e p11111 Mnlo Grosso, assumiu Virgulino, por volta de 1922, a lide-
defeitos com que o matuto sonha exornar-se a personalidade lnlll,ll do urupo, já sob o nome de "Lampião" (era capaz de
de um cangaceiro . É a salvação e o flagelo do sertão; a espe- u ltll1111' l fto rapidamente o gatilho de sua espingarda que ficava
rnnça e a decepção de todos; a alegria e a tristeza do povo; ltllnlw l'ttplnmonte sob clarão do fogo, luzindo como um gran-
deus e o diabo na terra de sol. Em vida, herói e anti-herói das "" " ltunpl(io"). Começou sua carreira com fatos até então inau-
populações sertanejas; na não-vida do cangaço um mito - dllwl, wwo ltou cidades com seus camaradas (por exemplo
que é "tudo e não é nada"; na morte, um símbolo do Nordeste. l'lllct~ l , 1111 Paraíba), saqueou-as , semeou o terror por toda a
1• tlll'lo . I rn 1926, estava no auge de seu poder; ele se definia
"Era brabo, era malvado • ttltltt " llol do Sertão". Com sua tropa, que chegou a atingir um
Virgulino, o Lampião l• •llvn do quatrocentos cangaceiros, controlava o interior de
Mas era, pra que negá i•l• • I •lindos do Nordeste: Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Pa-
Nas fibras do coração l'tllbu , lllo Grande do Norte, Ceará e Bahia. Quando, neste ano,
O mais perfeito retrato 1 lj ftllltHt Prestes, de rebeldes revolucionários de caráter so-
Das caatingas do Sertão." !JI(tl. nllnl)lll o Nordeste, o caudilho de Juazeiro (Ceará), o fa-
litOti tt l'ndro Cícero, concedeu ao cangaceiro, que era seu amigo,
l fi ftltHtlo do capitão da polícia, para defesa contra esse perigo.
Em Lampião, como num emblema, estampam-se as carac- Mn rt lwnpl õo nem pensou em perseguir os rebeldes. Ele apro-
terísticas do cangaceiro, só que com a virulência extrema de "' llttll o distração de seus "colegas" da polícia para continuar
um ferro em brasa. Sua trajetória é a reprise épica da história lllqrtlltt llllonto seus assaltos.
de todo cangaceiro: entrada no cangaço por vingança; vida Nn uno de 1927, o cangaceiro ousou até assaltar a segunda
errante de guerrilheiro; morte em combate, sem rendição. Tudo
lll •llttt t.lduclo do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, centro
isso, porém, em se tratando de Lampião - o rei do cangaço -
"" 'ttllH)n:lo (com 30 . 000 habitantes). tentativa malograda gra-
atinge o paroxismo nas realizações.
Lampião não é uma repetição pura e simples; não é uma
iJtl•• n dolorrninação defensiva dos mossoroenses. Depois orga-
lll:tltt no 111l10 batida contra Lampião. Todos os Estados do Nor-
conta a mais no rosário do cangaço. Sua vida tem traços tão
"' •11 lt) rt o uniram por contrato para prender finalmente o can-
individualizantes, nos caminhos do bem e do mal, que descon-
Il'" 11l1n . I lo fugiu para a Bahia (1929). onde ficou quieto por
certam todos aqueles que se aproximam de sua história.
11111 1111o . Dopais, porém, voltou a perpetrar seus crimes lá
Esta, por sua vez, mostrou-se impotente para contê-lo em
l •111dtt lln /\asaltou a cidade de Queimadas.
seus limites. Lampião escapa dela e passa a habitar o espaço
do mitologia. E o Cordel é um dos grandes responsáveis pela N 11 1\nhlo, Lampião conheceu Maria Déa, mulher de um
cunhagem mítica da imagem do filho de Águas Belas. •l(llllllllo . ria fugiu com ele e acompanhou-o até sua morte
, •·11111 " Morln Bonita". É a mulher mais famosa no cangaço. Sua
LAMPIÃO - RESUMO DE SUA VIDA ltl •• lt'ttln do nmor dramatizada por Rachei de Queirós (Lampião,
ll!tt d11 .lonolro, 1954) e aproveitada por vários diretores de
"No centro de Pe-rnambuco I No Nordeste brasileiro I No !11111111111 .
ano de novecentos I A 12 de fevereiro I No termo de Vila Be- 1\ npnon do 1930 e 1938 caracteriza a decadência do can-
lél I Nasceu esse cangaceiro", escreve o poeta popular José !tll!J'' • I ;nrwolldoção política, campanhas culturais, construção
Cordeiro sobre a data e lugar de nascimento de Virgulino Fer- ilit nr• ltlld tlll , enfraquecimento do poder dos coronéis, tudo isto
reira da Silva. · i!niltt 111 11hm1 com os cangaceiros. Só mudando constantemente
96 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 lfllv tl u l;t ll,m s. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 97
2. 1. 3. Virgulino Ferreira da Silva - Lampião - Rei do
Cangaço. A cidade de Vila Bela chama-se, desde 1939, Serra Ta-
lhada. Já aos dezessete anos, Virgulino tomou parte em emba-
Com Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, o império do tes bélicos , como membro de uma tropa de capangas. Depois
cangaço atinge seu fastígio. Em sua pessoa dá-se a concen- da morte de seu pai (assassinado por uma patrulha policial),
tração de tudo que compõe a figura do cangaceiro. Como das entrou o jovem "efetivamente" para o cangaço e para o bando
faces de um prisma, irradiam-se dele aquelas qualidades e do fidalgo Sebastião Pereira. Depois que seu chefe emigrou
defeitos com que o matuto sonha exornar-se a personalidade para Mato Grosso, assumiu Virgulino, por volta de 1922, a lide-
de um cangaceiro. É a salvação e o flagelo do sertão; a espe- rança do grupo, já sob o nome de "Lampião" (era capaz de
rnnça e a decepção de todos; a alegria e a tristeza do povo ; acionar tão rapidamente o gatilho de sua espingarda que ficava
deus e o diabo na terra de sol. Em vida, herói e anti-herói das ini nterruptamente sob clarão do fogo, luzindo como um gran-
populações sertanejas; na não-vida do cangaço um mito - de "lampião"). Começou sua carreira com fatos até então inau-
ditos, assaltou cidades com seus camaradas (por exemplo
que é "tudo e não é nada"; na morte, um símbolo do Nordeste.
Pntos, na Paraíba), saqueou-as, semeou o terror por toda a
reg ião. Em 1926, estava no auge de seu poder; ele se definia
"Era brabo, era malvado como "Rei do Sertão". Com sua tropa, que chegou a atingir um
Virgulino, o Lampião efetivo de quatrocentos cangaceiros, controlava o interior de
Mas era, pra que negá sete Estados do Nordeste: Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Pa-
Nas fibras do coração raíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Bahia. Quando, neste ano,
O mais perfeito retrato a Coluna Prestes, de rebeldes revolucionários de caráter so-
Das caatingas do Sertão." cia l, atingiu o Nordeste, o caudilho de Juazeiro (Ceará), o fa-
moso Padre Cícero, concedeu ao cangaceiro, que era seu amigo,
Em Lampião, como num emblema, estampam-se as carac- a patente de capitão da polícia, para defesa cont11a esse perigo.
terísticas do cangaceiro , só que com a virulência extrema de Mas Lampião nem pensou em perseguir os rebeldes. Ele apro-
um ferro em brasa. Sua trajetória é a reprise épica da história veitou a distração de seus "colegas" da polícia para continuar
1mpunemente seus assaltos.
de todo cangaceiro: entrada no cangaço por vingança; vida
errante de guerrilheiro; morte em combate, sem rendição. Tudo No ano de 1927, o cangaceiro ousou até assaltar a segunda
isso, porém, em se tratando de Lampião - o rei do cangaço - maior cidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, centro
atinge o paroxismo nas realizações. do comércio (com 30 . 000 habitantes), tentativa malograda gra-
Lampião não é uma repetição pura e simples; não é uma ;as à determinação defensiva dos mossoroenses. Depois orga-
conta a mais no rosário do cangaço. Sua vida tem traços tão nizou-se uma batida contra Lampião. Todos os Estados do Nor-
individualizantes, nos caminhos do bem e do mal, que descon- deste se uniram por contrato para prender finalmente o can-
certam todos aqueles que se aproximam de sua história. JOcei ro. Ele fugiu para a Bahia (1929). onde ficou quieto por
Esta, por sua vez, mostrou-se impotente para contê-lo em 11m an o. Depois, porém, voltou a perpetrar seus crimes lá
seus limites. Lampião escapa dela e passa a habitar o espaço lnmbé m. Assaltou a cidade de Queimadas.
dn mitologia. E o Cordel é um dos grandes responsáveis pela Na Bahia, Lampião conheceu Maria Déa, mulher de um
cunhagem mítica da imagem do filho de Aguas Belas. 1pateiro. Ela fugiu com ele e acompanhou-o até sua morte
c:omo "Maria Bonita". É a mulher mais famosa no cangaço. Sua
LAMPIÃO - RESUMO DE SUA VIDA ltlt~tória de amor dramatizada por Rachei de Queirós (Lampião,
l llo de Janeiro, 1954) e aproveitada por vários diretores de
"No centro de Pe-rnambuco I No Nordeste brasileiro I No dnoma.
ano de novecentos I A 12 de fevereiro I No termo de Vila Be- 1\ época de 1930 e 1938 caracteriza a decadência do can-
la I Nasceu esse cangaceiro " , escreve o poeta popular José qm;o. Consolidação política, campanhas culturais, construção
Cordeiro sobre a data e lugar de nascimento de Virgulino Fer- do ostradas, enfraquecimento do poder dos coronéis, tudo isto
reira da Silva. 1111110 acabou com os cangaceiros. Só mudando constantemente
96 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 1/uv. <l o Letras. Fortaleza, 11(2): jul./dez. 1986 97
1\ bibliografia do Cordel, incontável e variada, passada e
de esconderijo é que Lampião pôde sobreviver à persegUiçao f1l11nl , uol>1 o Lampião, esquadrilha sua fotografia, narrando, com
das tropas policiais, os "macacos". Finalmente, em 1938, o ll iloll dndo, lunces reais de sua vida e práticas de sua ação,
oficial de polícia alagoano Bezerra encontrou-o na gruta de " lnmolnnndo situações, em incursões profundas pelos cam-
Angicos. Num ataque de surpresa, foram fuzilados todos os
pon du lnntusla.
cangaceiros que lá estavam (inclusive Maria Bonita). Corta- < > pooln popular e o cantador, como narradores, sabem
ram-lhes as cabeças e levaram os troféus, perfurados de ba- 111 ll oln o::> fatos e, por outro lado, sabem imaginá-los fan-
las e em semidecompo sição, em marcha triunfal até Maceió. l nlllouon, t:orno ninguém. Identificados com seu público, por
Atu almente podem ser vistas no museu Estácio Lima, em Sal- 1111\tllllil'lon quo são de uma mesma realidade cultural, conhe-
vador. ' 111 11 1111111o bom as necessidades de informação e as necessi -
A morte de Lampião teve um epílogo: seu amigo Corisco tlw lwl oB l ollcas e psicológicas a que devem satisfazer, em
vingou seu líder, cortando igualmente a cabeça dos vaqueiros 1111111 lolloros.
dá Fazenda de Angicos. Mas, pouco tempo depois, também ele Nonlu palestra, gostaria de me ater em alguns aspectos
foi fuzilado. dn 11111'1ntlvo de Cordel sobre Lampião, passando ao largo da
11111 rntlvn ópica propriamente dita sobre fatos reais ou imagi-
Lampião, que era cego de um dos olhos, foi , já em vida, llndt1'1 do sua vida, contemplando a narrativa cômica pouco
a essência do cangaceiro brutal, sem consideração, perverso ••lt••ldndn, om folhetos como: A Chegada de Lampião no lnfer-
e ávido. Todo o mal imaginável pode ser encontrado na sua "''· 1\ Chooada de Lampião no Céu (ambos de José Pacheco);
pessoa. Com astúcia demoníaca conseguia livrar-se de seus l tllllpl llo ln.r.ondo o diabo chocar um ovo, (José Costa Leite);
perseguidos e aniquilá-los no momento certo, como no mas- \ 111 nnclo briga de Lampião com o homem que virou bode (Ma-
sacre de Serrote Preto, em que unidades policiais de Pernam- 1111111 do /\lmoida Filho).
buco e da Paraíba se destruíssem mutuamente, sem que os /\p1 onontam-no como substituto de Antônio Silvino, atri-
oponentes notassem que estavam matando sua própria gente. 1111111lt1 lllo parentesco, pondo Lampião na linha de sucessão,
Seus crimes são de uma crueldade que clama aos céus. Ao 111111111 lllotlflcativa de decadência, a assegurar o direito a Vir-
lado disso, entretanto, estão sua tendência ao misticismo, seu wllllltt I orrol rn de assumir a coroa de rei do cangaço.
amor por Maria Bonita, seu desprezo pelos ricos fazendeiros ,
sua confiança no santo Padre Cícero, suas aventuras roma-
nescas (por exemplo, quando tirou da Baronesa da Agua Bran- l)opols que Antônio Silvino
ca as moedas e jóias do tempo do Imperador, com as quais So entregara a prisão
ela costumava enfeitar-se). Foi um bom poeta popular, tocava I kou substituindo-o
acordeão e é provável que tenha composto a canção "Mulher Vlroulino Lampião
Rendeira" que se tornou famosa por causa do filme "O Can- l Jm cangaceiro ilustrado
gaceiro", que se baseou em sua vida. (A canção foi registrada Ouo com um grupo bem armado
pela primeira vez por Mário de Andrade, Ensaio sobre a Música Domina o alto sertão.
Brasileira, p. 115-117). Lampi ão era um homem cheio de con- (C. B. Tomo IV. 244)
tradições, com muitas características boas e muitas abominá-
veis. Na luta um herói, nas agressões covardes, um animal.
I mnpião era parente
Sua imagem é discrepante, como o posicionamento dos serta-
Do grande Antônio Silvino
nejos em relação a ele.
I' I rouxe quando nasceu
Pormenores sobre a vida de Lampião se encontram so- I >o sor bandido o destino
bretudo em Rodrigues de Carvalho , Serrote Preto; Luís Luna , 1\ porteira que o pegou
Lampião e seus Cabras; Nertan Macedo, Ca oitão Virgulino Fer-
reira Lampião e Optato Gueiros, Lampião. Breve descrição da
I'"' dia profetizou
0110 olo seria assassino.
cnrreira de Lampião (na verdade mais fantástica do que obje- (C . B . Tomo IV. 245)
tiva).
Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2): jul./dez. 1986 Iw,. clu r.oLrns. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 99
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ecH.pERtoo c
Sabedores da inclinação supersticiosa da alma sertaneja, Do tou sangue p'ra beber 1
os poet as populares procuram colocar a vida de Lampião sob I lovar dele um signal
a égide de forças sobrenaturais, sob a potestade de satanás. l'mu o velho maioral
Submetem-no aos rituais de fechamento de corpo pelo feiti- 0110 tudo pode fazer.
ceiro Macumba; Mefistofelicamente, apregoam seu pacto com
o demônio: r olou pronto, tire-me o sangue
llonpondeu-lhe Lampião.
Foi a casa de Macumba I o diabo com a unha
E elle fez o serviço 1"11rou-o perto do vão
Fechou o corpo do rapaz l'lrou-lho o sangue e bebeu
P'ra bala, faca e feitiço, Umn parte outra escondeu
Então, disse a Lampião: No fundo do matulão.
Não haverá valentão
Que pise no teu toitiço.
o diabo a Lampião
Primeiro ele sujeitou-se Nosso pacto está formado
A um processo arriscado l'orós o que desejares
Em um caixão de defunto :iorn seres incomodado
Passou a noite trancado I , :10 om perigos caíres
O feiticeiro o ungiu Nr' o precisa te afligires
E quando ele de lá saiu Ouo estarei sempre a teu lado.
Estava de corpo fechado.
I 11quonto tiveres vida
Então fez alvo do peito I 011 corpo defenderei
E o feiticeiro atirou I no dia em que morreres
A bala batendo nele 1\ tu a alma levarei
Somente a roupa rasgou. l'urn o meu reino infernal
Caiu no chão amassada I >ndo impera o maioral
E nem mesmo a dor da pancada 1\ quem sempre servirei.
Ao herói incomodou.
I runpl üo disse: colega
Disse-lhe o velho Macumba: Vrt ornbora descansado
Agora podes brigar, Ouo o pacto que fizemos
Bala não te fura o couro Por rnlm será executado.
Faca só faz arranhar I l dl nbo se retirou
Feitiço não te ofende I " I ortaleza ficou
E a polícia só te prende I nclondo a chifre queimado.
Depois que eu me acabar.
100 Rev. de Letras. Fortaleza, 11(2): jul./dez. 1986 •In l ,t~ tr· n l'l. F ortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 101
8
Sabedores da inclinação supersticiosa da alma sertaneja, l>o teu sangue p'ra beber
CH.pERtootc
os poetas populares procuram colocar a vida de Lampião sob I lovo r dele um signal
a égide de forças sobrenaturais, sob a potestade de satanás. l'mu o velho maioral
Submetem-no aos rituais de fechamento de corpo pelo feiti- Ouo tudo pode fazer.
ceiro Macumba; Mefistofelicamente, apregoam seu pacto com
o demônio: J"otou pronto, tire-me o sangue
llonpendeu-lhe Lampião.
Foi a casa de Macumba I . o diabo com a unha
E elle fez o serviço rurou-o perto do vão
Fechou o corpo do rapaz llrou-lhe o sangue e bebeu
P'ra bala, faca e feitiço, llmn parte outra escondeu
Então, disse a Lampião: No fundo do matulão.
Não haverá valentão
Que pise no teu toitiço.
Disso o diabo a Lampião
Primeiro ele sujeitou-se Nosso pacto está formado
A um processo arriscado J"orós o que desejares
Em um caixão de defunto !1om seres incomodado
Passou a noite trancado 1· 110 om perigos caires
O feiticeiro o ungiu Nho precisa te afligires
0110 estarei sempre a teu lado.
E quando ele de lá saiu
Estava de corpo fechado.
I nquonto tiveres vida
Então fez alvo do peito I 011 corpo defenderei
E o feiticeiro atirou I no dia em que morreres
A bala batendo nele 1\ lua alma levarei
Somente a roupa rasgou. Jlnrn o meu reino infernal
Caiu no chão amassada <>ndo Impera o maioral
E nem mesmo a dor da pancada 1\ quem sempre servirei.
Ao herói incomodou.
I wnplüo disse: colega
Disse-lhe o velho Macumba: W1 ombora descansado
Agora podes brigar, 0110 o pacto que fizemos
Bala não te fura o couro flor rnlm será executado.
Faca só faz arranhar <l dlnbo se retirou
Feitiço não te ofende I 11 fortaleza ficou
E a polícia só te prende l'odondo a chifre queimado.
Depois que eu me acabar.
100 Rev. de Letras. Fortaleza, 11(2): jul./dez. 1986 In I ''''''uM, Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 101
Entrou numa grande furna Nno !IO! IIIIroi, no entanto, seu rastro de morte; não abrirei
E dentro ouviu um rugido
Foi o ronco d'uma tigre
'"I'"'· u nou poetas e cantadores para a celebração das gestas
tl11 lntll wto bandoleiro: a marcha a Mossoró; a visita ao Padre
Que o deixou aturdido; OiclcJto, no .Junzciro; o assalto à Baronesa de Águas Belas;
O rifle apertou na mão u111• conthutos sangrentos, seus crimes hediondos.
Porém nessa ocasião Nno 111 0 deterei em seu projeto político; já o fez o Prof.
Foi pelo seu agredido. 01 (1l11Y llo1o rrn de Menezes, no artigo: Estrutura Agrária: pro-
" '" '" o rtllornotl vas na poesia popular do Nordeste - Rev. de
Desenrola-se o combate; a onça arrebata-lhe o rifle, em /•lllc /111: Soe/ois n.0 S 1 e 2/82.
seguida, a garruncha; o perigo cresce e Lampião enfrenta a fera l'tHIIHH'OI por sobre sua vida, para assistir à sua chegada
a punhal para, afinal, matá-la sangrada. ''" lnl ot no ; sou debate com São Pedro, na entrada do céu; sua
lllllltlll11u;fto pelo bode misterioso; a humilhação do demônio
Pulou para trás, e o chapéu put l 11111plfio. Privilegiarei o cômico, o humorístico, em detri-
Numa das mãos segurou lllllllln cln nnrrotiva épica.
E quando a onça partiu 1 :u1no jó ofirmamos, o poeta conhece bem seu leitor, seu
Ele os olhos lhe tapou p11lcllc o c:onnumidor, em suas preferências e gostos.
E marcando-lhe o pé da guela I 1111 o ontos, está o gosto pelo cômico, o que faz rir, o que
Seu punhal enterrou nela li VO tlu , !lllllt refinamento numa imagística grosseira, na mani-
E dentro a arma deixou. pt~lilc.·n u elo ttmo semântica só pela gente mais simples conhe-
A tigre ao ver-se ferida lilfl ' ' npt o<:loda.
Um enorme salto deu I '''" lrndlção herdou o Cordel da Idade Média européia,
E por cima d'um lagedo tlctt•lrtttclon õs nossas condições culturais. "O cômico hagio-
O corpo em cheio estendeu 11\llc u " 11 o " humorismo de cozinha", relatado por Curtius, ha-
E mortalmente ferida tllllll do roporcutir na literatura do povo, tão arraigada nos
Rugindo enraivecida ílllfllllllll lll orórios medievais de origem popular.
Ali mesmo ela morreu. 1\ I hlllrtl do cão, suas estrepo! ias, as imagens que o me-
IOt llfllll , tn osm o os santos, em certos traços, têm predisposi-
(C . B. Tomo IV- p. 272/3) it [u cutlltndo para provocar o riso, o ridículo, através de
t;ll'"' 11 pnlnvros em situações de um ludismo muito simples,
1•11111111ilfv11l 1:o m a alma ingênua do nosso sertanejo.
Encontra-se Lampião, a essa altura, preparado; cumpriu-se
nela a liturgia ritualística para ingresso no cangaço: o fecha- 1\u hulo do uma ingenuidade inocente, emparelha-se, por
mento do corpo, pacto com o demônio, o batismo de fogo - "'· 11 111 o tosco, em tom grosseiro, a provocar comicidade
a luta vitoriosa com a onça. Para proteção definitiva, leva ao l'"' 1111111 do objetos e fatos, protegidos pelo tabu, na ordem
pescoço o patuá de orações aos santos: São Correr, São Li- In lllclcllttll!lO o do sagrado.
geiro, São Traiçoeiro, São Brado, São Vigilante, São Escope- 1\ t1111tlo clo Lampião e o conseguinte desaparecimento do
teiro, São Desconfiado, São Cuidado e São Dorme Pouco. Agora tllii!U. '' pt ovor. oram um vazio na narrativa épica do Cordel. Os
seria o que o diabo quisesse: •nhH1, tlltl lto, foram procurá-lo no outro mundo, no reino de
i;utfltl, 1111d o, com maior certeza , deveria estar. Um cabra de
"Disse Lampião aos pais, !!ípWc:t, flll tJ nndava a fazer malassombro:
Minha derrota está feita
A dita não me quer mais " l11l quom trouxe notícia
Sei que a desdita me aceita qllo viu Lampião chegar.
Aquele que Deus não quer 11 lttlorno neste dia
O Diabo é que não enjeita." lrlltoll pouco pra virar
102 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 ílii 1,CJ ic • u~t. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 103
Entrou numa grande furna Não seguirei, no entanto, seu rastro de morte; não abrirei
E dentro ouviu um rugido espaço aos poetas e cantadores para a ce lebração das gestas
Foi o ronco d'uma tigre do famoso bandoleiro: a marcha a Mossoró; a visita ao Padre
Que o deixou aturdido; Cícero, no Juazeiro; o assal to à Baronesa de Águas Belas;
O rifle apertou na mão seus combates sangrentos, seus crimes hediondos.
Porém nessa ocasião Não me deterei em seu projeto político; já o fez o Prof.
Foi pelo seu agredido. Diatay Bezerra de Menezes, no artigo : Estrutu ra Agrária: pro-
testo e alternativas na poesia popular do Nordeste - Rev. de
Desenrola-se o combate; a onça arrebata-lhe o rifle, em Ciências Sociais n. 0 S 1 e 2/82.
seguida, a garruncha; o perigo cresce e Lampião enfrenta a fera Passarei por sobre sua vida, para assist ir à sua chegada
a punhal para, afinal, matá-la sangrada. no Inferno; seu debate com São Pedro, na entrada do céu; sua
humilhação pelo bode misterioso; a humilhação do demônio
Pulou para trás, e o chapéu por Lampião. Privilegiarei o cômico, o humorístico, em detri-
Numa das mãos segurou mento da narrativa épica.
E quando a onça partiu Como já afirmamos, o poeta conhece bem seu leitor, seu
Ele os olhos lhe tapou público consumidor, em suas preferências e gostos.
E marcando-lhe o pé da guela Entre estes, está o gosto pelo cômico, o que faz rir, o que
Seu punhal enterrou nela diverte, sem refinamento numa imagíst ica grosseira, na mani-
E dentro a arma deixou. pulação de uma semântica só pela gente mais simples conhe-
A tigre ao ver-se ferida cida e apreciada.
Um enorme salto deu Esta tradição herdou o Cordel da Idade Média européia,
E por cima d'um lagedo adaptando-a às nossas condições culturais. "O cômico hagio-
O corpo em cheio estendeu gráfico" e o "humorismo de cozinha", relatado por Curtius, ha-
E mortalmente ferida veriam de repercutir na literatura do povo, tão arraigada nos
Rugindo enraivecida esquemas literários medievais de origem popular.
Ali mesmo ela morreu. A figura do cão, suas estrepolias, as imagens que o me-
taforizam, mesmo os santos, em certos traços, têm predisposi-
(C. B. Tomo IV - p. 272/3) ção acentuada para provocar o riso, o ridículo, através de
ações e palavras em situações de um ludismo muito simples,
Encontra-se Lampião, a essa altura, preparado; cumpriu-se compatível com a alma ingênua do nosso sertanejo.
nela a liturgia ritualística para ingresso no cangaço: o fecha- Ao lado de uma ingenuidade inocente, emparelha-se, por
mento do corpo, pacto com o demônio, o batismo de fogo - vezes, o grotesco, em tom grossei ro, a provocar comicidade
a luta vitoriosa com a onça. Para proteção definitiva, leva ao por força de objetos e fatos, protegidos pelo tabu, na ordem
pescoço o patuá de orações aos santos: São Correr, São Li- do libidinoso e do sagrado.
geiro, São Traiçoeiro, São Brado, São Vigilante, São Escope- A morte de Lampião e o conseguinte desaparecimento do
teiro, São Desconfiado, São Cuidado e São Dorme Pouco. Agora cangaço provocaram um vazio na narrativa épica do Cordel. Os
seria o que o diabo quisesse: poetas, então, foram procurá-lo no outro mundo, no reino de
satanás, onde, com maior certeza , deveria estar. Um cabra de
"Disse Lampião aos pais, lampião, que andava a fazer malassombro:
Minha derrota está feita
A dita não me quer mais "foi quem trouxe notícia
Sei que a desdita me aceita que viu Lampião chegar.
Aquele que Deus não quer O inferno neste dia
O Diabo é que não enjeita." faltou pouco pra virar
102 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 Rev. de Letras. Fortaleza, 11(2): jul./dez. 1986 103
incendiou-se o mercado c:orno o sertão não é morada de mortos, o mesmo poeta
morreu tanto cão queimado l11" r\ l'ru.llrH:o vai achá-lo, na entrada do céu, em discussão
que faz pena até contar.
106 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1980 il• t l ,t;lnut Fortaleza, 11 (2) : jul./dez. 1986 107
vamos dar no bandoleiro "Você não entra atrevido
saltou no meio do terreiro São Pedro lhe disse assim
até preparando a faca ingresso a quem é ruim
gritando quebra uma estaca nesta porta é proibido
arranque um pau do chiqueiro. não sabes que sois bandido
roubador da vida humana?
São Paulo estava na quinta Alma ferina e tirana
mas ouvindo a discussão coração cruel, perverso
apertou o cinturão como, queres um ingresso
e botou a faca na cinta nesta mansão soberana?"
encontrou Santa Jacinta
que já vinha no caminho (N. M . , p. 100)
e disse a Santo Agostinho
arretorcendo o bigode: Nem Deus, nem . Jesus Cristo se deram à pachorra de to-
arreda que tu não pode mar conhecimento da presença de Lampião em seus domínios
eu pego o cabra sozinho. ce lestes. Do alto de sua soberania, tudo ignoraram. Na opinião
de estud iosos, tal atitude reflete o distanciamento de Deus do
Porém antes de pegar l1omem e de seus interesses na terra, por parte da divindade,
desceu um grande corisco na visão do Cordel. Mais próximo do mundo do sertão , em
jogado por São Francisco correrias constantes, está o Diabo, diz Gustavo Barroso. Aliás.
da porta do quinto andar os cangaceiros, como Antônio Silvino, Lampião, entraram em
num tremendo ribombar luta corporal com o demo; até cantadores (Manuel das Cabe-
um trovão também desceu ceiras) cantaram desafio com o diabo. O sertão como habitat
o espaço escureceu natural do cangaceiro pode servir com facilidade de pousada
veio um forte pé-de-vento do demônio.
Lampião neste momento
dali desapareceu.
CONCLUSAO:
(N. M., p. 100/1)
O cangaço é, de fato, um produto de nossas condições
culturais. Para sua compreensão plena deve-se mobilizar o
Sutilmente, percebeu-se, nos dois textos , tratamento dife- esforço de várias ciências sociais, sem que se possa descurar
rente em relação ao poder de Lampião. No inferno, sua arro- a contribuição da literatura popular.
gância é grande; ombre ia-se com os demônios de quem sai Ao mesmo tempo em que se pode vê-lo como manifestação
vitorioso. Lúcifer e Satanás os dois manos assistem à batalha. de luta de classe, como realização da prática de banditismo so-
O cangaceiro canta vitória. cial , muita coisa escaparia, se não pudéssemos vê-lo na ilumi-
Na sua maldade, o cangaceiro confunde-se com o diabo, nação da compreensão do Cordel.
é seu parceiro; faz pacto com ele; e entra no cangaço sob sua O poeta popular e o cantador alargam seu entendimento
proteção. e o revelam como foi percebido e sentido pela alma do povo,
No céu, os santos são nomeados por seus nomes verda- em sua visão de mundo, forjada por complexos e inúmeros fa-
deiros; apesar do antroprocentrismo, Lampião encontra-se em tores de ordem histórica, social, geográfica, ética e rei igiosa.
inferioridade. Para o poder, o cangaceiro é a encarnação do mal, o ele·
No inferno não teve boa recepção, por ser uma ameaça à menta perturbador do sistema, a ameaça da ordem, a destrui-
ordem, à segurança do poder. No céu, não tem guarida, por ser ção da propriedade. Para o camponês, poderá ser o arrimo, o
cangaceiro: braço da justiça, a força vingadora, o caminho da salvação, sem
106 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 (2): jul./dez. 1986 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 ( 2) : jul./dez. 1986 107
deixar de ser o terror, a intranqüilidade, o fator de desagrega-
ção da paz da família e da sociedade.
Nesta ambigüidade, o Cordel revela a natureza do can-
gaço, em suas implicações, com a história e a sociologia, com
a antropologia e a psicologia, numa riqueza de penetração que
só a arte, em geral, e a literatura, em particular, alcançam.
A imagem que hoje conservamos do cangaceiro é aquela
estampada pela arte: a pintura, a música, a xilogravura e a lite-
ratura, em que se esbatem os contornos da maldade, para se
acentuar as marcas da valentia e de defesa da honra. DAS ASSOCIAÇõES MORFOSSEMANTICAS
É um fenômeno que ocorreu com quase todos os canga· ENTRE SEMANTEMAS
ceiros, sobretudo, com Virgulino Ferreira - Lampião, em que
se apagaram os traços de sua realidade histórica , para dar
lugar ao mito-Lampião, nas terras do Sertão, de onde não desa-
Paulo Mosânio Teixeira Duarte
parecem.
108 Rev. de Letras. Fortaleza, 11 r2): jul./dez. 1986 tl• ·v do Letras. Fortaleza, 11 (2): jul./dez. 1986
109