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CONVERSA

PRA
BOI
DORMIR

Um pouco de Castelo na minha lembrança

JOSE ANTONIO CALIMAN


Jose Antonio Caliman nasceu em 19 de dezembro de 1954, na Rua General Araripe,
54, em casa e de parteira, pelas mãos de Dona Anita Perim. Suas primeiras letras foram aprendidas
em casa graças a alfabetização da irmã Floripes Caliman e da Tia Anastásia Falqueto.
O portugues lhe foi ensinado junto com o italiano que o pai Francisco Caliman e a mãe Augusta
Falqueto Caliman falavam quotidianamente .
Nestor Gomes, Madalena Pisa, Joao Bley , Colegio Virgem de Fátima e a Faesa foram as
instituições em que estudou.
Desde cedo participou de movimentos literários em Castelo, junto ao Castelo Jovem e em
pequenas publicações em “O Lutador” de Minas Gerais.
Foi residir no Rio de Janeiro de onde absorveu do irmão Plinio o gosto pela escrita, nas oficinas
do Museu de Arte Moderna o prazer pela cultura e nas ruas, onde trabalhou até como camelô,
o sabor da vida da gente humilde e trabalhadora.
Depois do serviço militar na Fortaleza de São Joao, na Urca, volta a Castelo onde trabalha com
a Familia Nemer e depois no Banco Real o que o levaria a residir em muitas cidades do Espirito
Santo. Findo o período bancário dedicou-se a imprensa tendo trabalhado por mais de 10 anos
na Rede Gazeta de onde foi para o Turismo, ocupação atual na titularidade da Secretaria de
Turismo Cultura Esporte e Lazer da Serra - ES.
Conversa Pra Boi Dormir é seu primeiro livro que, como diz ele, foi concebido em 50 anos
escrito em cinco meses e acalentado por toda a vida.
Publicado através do Dominio Publico (www.dominiopublico.gov.br) remete o leitor a Castelo
de alguns anos atras. Viajar no tempo é bom, assim como são boas as lembranças de bons
tempos. Divirta-se !!!
O ALTO DA POVOAÇAO

O velho ônibus resfolegava serra acima, cá em cima no


Limoeiro tomava fôlego depois da subida do Córrego dos
Monos.

La embaixo bem ao lado do Rio o armazém do IBC –


Instituto Brasileiro do Café e a baratinha amarela do lado,
um velho Ford 2 lugares e mais o banco da sogra,
pertencente a um dos funcionários fazia a festa de nossos olhos – Imagine: A sogra
descabelada no banco-porta-malas traseiro era o delírio da garotada.

Ali perto da cooperativa do Limoeiro um ponto de ônibus, aliás, tinha ponto de ônibus,
onde estivesse o passageiro, nada dessas marcações de hoje, meio metro pra la, meio
metro pra cá pode ou não pode fazer ponto, o ônibus simplesmente parava onde estivesse
a necessidade do passageiro.

Subiu desceu embarcou, desembarcou e com um solavanco e cheiro de óleo diesel la


se vai penosamente o veiculo entulhado de gente, cheiro de fumaça de cigarro, óleo e
suor.

Proibido fumar cachimbo, charuto ou cigarro de palha dizia a plaqueta metálica afixada
sobre o motorista, o resto podia, cigarro, cigarrilha, cheiro de mata ratão, fumo ruim e
de fumo bom cigarros mentolados ou achocolatados o desastre para os pequenos e o
desespero das mães que iam vendo os rostinhos dos moleques amarelando devagarzinho
até que inevitavelmente botavam tudo para fora.

Não adiantava simpatia, galhinho de não-sei-o-que atrás da orelha, mascar palito de


fósforo, palito de dente, canela, hortelã. O cheiro morrinhento do suor misturados aos
mais incríveis odores impregnava o cérebro e o estomago dos moleques e la vai mais
uma vez o moleque botar a cara ao vento.
Ao chegar no alto o panorama mudava. Não sei quem inventou que era ali que se
colocava água no radiador e, chovesse, fizesse sol la se ia o cobrador para o meio do
mato buscar água limpa, água boa de nascente pra colocar no radiador do carro. Um
alívio para as mães e para a garotada sair, andar um pouco, respirar o ar puro da
montanha, o ar frio do inverno que entrava queimando nariz e garganta e doce e quente,
aveludado cheiro de capim gordura, no verão.

A vista la de cima magnífica, não as matinhas ralas e raquíticas de hoje, mas, portentosas
arvores que verdejavam o Vale de Santa Justa.
Teimaram em fazer um parque aquático la em cima, a modernidade nos traz estas
incoerências. Melhor um parque verde, casario escondido, mata cheia e cheiro gostoso
do capim melado balançado ao vento com direito a trilha sonora dos macacos barbados.

Acabou amigo, não volta mais, morreu, degradou , putrefou! Agora só resta a piscina
abandonada do clube e a mata amarela. Não é mais o Alto da Povoação e sim o Alto do
Desengano!
AS F IGUEIRAS DO DIABO

L á em cima , no morro do Comercial, tinha duas figueiras,


uma maior e uma menor. Dominando a cidade as duas ficavam
lá, balançadas pelo vento que teimava em não chegar cá em
baixo, naqueles dias de calor que só castelense sabe o que é.

Uma tinha um corte profundo, divisor e janela no meio do


tronco - Diziam que um raio tinha caído nela ou melhor,
contavam que o diabo tinha jogado um raio nela!

Passados anos um dia volto a Castelo e lá no morro faltava alguma coisa, só tinha sobrado
a menor a outra nem sei que destino teve.

A história do diabo ficava para os dias de chuva onde os mais velhos teimavam em nos
contar aquela historia temerosos de um raio caísse lá, desafortunadamente, quando
algum moleque por lá se abrigasse da chuva, embaixo das copas frondosas.

E por lá sempre tinha um moleque, embornal cheio de pelotas de barro, “setra” na mão,
boné na cabeça, canivete e punhadinho de sal, pra comer maxixe, tomatinho e quanta
coisa surrupiada dos quintais de beira rio , manga verde, cajá, abacaxi e tome pelotada
em passarinho, sem ecologia, sem razão e com paixão de caçador, mas era assim a
molecada.

O morro do Comercial hoje ta careca, caíram-lhes os cabelos das figueiras (Figueiras?


Por que? Nunca deram figos. Nome estranho pra cabeça de moleque para uma arvore
tão grande!) e o morro parece um deserto de uma única árvore metálica – a antena de
telefonia.

Foi-se a magia de anos atrás e sobram as lembranças e saudades das tardes quentes e
Castelo parece mais quente, se isso possa ser possível, sem aqueles dois abanadores de
vento lá em cima do morro.
Contam ainda os mais velhos, os poucos que restaram daquela época, que o diabo
prometeu voltar um dia terminar seu serviço. Repetindo a história que me contaram,
numa tarde quente caiu um temporal de trovões, chuva, medo e raios e a fogueira
remanescente foi destruída

Parece que o diabo completou de vez seu trabalho.


AS SANDÁLIAS DO MUCCIACCIA

N ão sei como o italiano apareceu em Castelo mas deve ter sido como
o Vincenzo Riccio, meu cunhado, eram parentes do Sr. Antonio Lamonte.
Diferente de todo mundo o Nicola, este era o primeiro nome dele, montou
uma fábrica de sandálias as famosas “ sandálias de dedo” .
Uma indústria genuinamente castelense, funcionando na Vila Izabel e
produzindo um artigo para pobre usar. Se você não lembra meu caro,
naquela época sandália havaiana era coisa de pobre , ninguém queria usar.
A fábrica ficou la por muito tempo colocando no mercado a “cheirosa” que soltava tiras e
machucava os pés e o italiano lá , sempre persistindo e como era persistente.
Até com fábrica de automóvel ele brigou – e ganhou! Ele comprou um magnífico sedan ,
motor de 2 tempos, 3 bobinas, três cilindros, um econômico e luxuoso Belcar, 4 portas ,
porta malas, linhas ousadas e modernas e na hora de chegar o automóvel, cadê o carro?
Foram meses atrás da DKW , sumida marca que encerrou suas atividades no Brasil,
consumida pela concorrência e o Mucciaccia lá atrás deles até trazer o Belcar novinho e
reluzente para casa.
Mas há fabrica ficou-me na lembrança.
Hoje, hawaianas custando 20 euros o par, na Itália, o Mucciaccia estaria bem mais a vontade
e com bons lucros de visionário industrial.
Mas a fabrica foi definhando e a loja de calçados andava melhor que ela, pena, mais um
punhado de empregos indo embora na cidade sem empregos.
Tempos difíceis fabrica, só a dele, de móveis e de laticínios caseiros, só bem depois é que
veio a Moagem Nemer e a Fábrica de Barbantes, que eu me lembre, foi ele o primeiro
industrial castelense a “exportar” seus produtos para outros estados.
Hoje multiplicam-se pelo Brasil mini fábricas de sandálias atendendo personalizadamente
boutiques de todo o mundo, fabricas pequenas, como a do Mucciaccia , celeiros de trabalho
e renda, visões de futuro de um italiano persistente
Em tempos de estatuto da micro empresa, ajudas governamentais, SEBRAE, cursos de
empreendedorismo, revistas programas de televisão, internet, geração de trabalho e renda
e todas estas ações que visam promover a pequena empresa o Nicola foi um precursor , um
visionário, um desses gênios que devem ser lembrados pela capacidade inventiva e pela
determinação
Se naquela época alguém ministrasse aulas de como ser empreendedor, o professor seria o
Mucciaccia!
E como se saúda lá em Castelo:
- Três vivas ao empreendedor Mucciaccia!
BARBOSINHA

A primeira oficina do Barbosa,


Alcides Barbosa, o “AB” orgulhosamente gravado de marca
nos revólveres e espingardas super reforçados que ele construía
assim como os moveis e bancadas de aço da oficina, os martelos
forjados, marretas, tesouras e uma infinidade de outras
ferramentas feitas, primorosamente a mão, era lá na cabeça da
ponte do Caxixe.

O olhar sempre aguçado, e a língua também, Barbosinha sempre querendo saber de


tudo, perguntando, sondando, avaliando querendo saber tudo sobre tudo e todos:

- Hei coisa (coisa era o nome de todo mundo pra ele) e Fulano, é verdade que ele
separou as terras dele do pai?

A oficina era um quase nada, um pouco do espaço da cocheira do Bilú cercado de


paredes velhas caiadas, cal de alguns anos atrás, chão de terra batida e armas
penduradas, armas de todos os tipos, garruchas, revolveres, espingardas, escopetas,
automáticas , garruchões, mini revolveres , mochas, três canos, um de 38 calibre
matador e alguns punhais de coleção, armas novas, enferrujadas, quebradas,
consertadas, sem cano, sem coronha e sem cão mas muitas e muitas armas.

Eu ficava por ali torrando a paciência do Barbosa e ele tinha muita paciência, explicava
tudo, mostrava tudo, a forja, o pó de tempera, o tambor do revolver sendo construído
lentamente, primeiro o torno, a barra quadrada virava redonda, depois os furos um
no meio e os outros em volta. Quase sempre um furo a a mais que as fabricas oficiais
, o 32 robusto calçava 22 sete tiros, dois a mais que o de fabrica, revolver bão, que
não mascava nunca. Depois dos furos a fresa fazia o chanfrado do acabamento externo
e la ia o Barbosa medindo, montando e desmontando ate a perfeição. O cano, quase
mesmo processo recebia uma rosca para acoplar-se ao corpo do revolver e um dia
mais la estavam as pecas em brasa recebendo a tempera do tal pó branco.

Barbosa mudou la pra Rua da Grota, perto da casa de Dona Dodoca e ali tem sua
oficina organizada, uma perfeição, mas falta um que de não sei que, não é a mesma
coisa, parece armazém de secos e molhados, tudo em seu lugarzinho.

Mas o Barbosa esta lá, firme e forte.


-Hei coisa... cê ta morando no Rio ainda como vai seu irmão, mora em Vitória,
trabalha em que???
AS VINHAS DA IRA

N ão caro leitor não temas que não


copiarei o tema do livro e filme homônimo, não me deixarei hora
nenhuma que aquela historia me contagie, a minha já esta escrita e
contada, somente repito-a aqui, vamos a ela:

Fui criando indo ao catecismo ate fazer a primeira comunhão, ate ai,
nada de novo a não ser os cascudos de mamãe e os beliscões de
papai que bem mereci e nunca fui de fazer artes abertamente e, minha pequena turma também
não o fazia, era pecado! (Deus ta vendo!).

A personagem desta historia era o Velho Frei Jose Osés, fervoroso pároco de voz e discursos
inigualáveis “Os castigos virão” dizia ele em seu sermão entrecortado de silêncios que
magistralmente esgrimia alternando com suas palavras que mais pareciam punhais, tão fundo
nos tocavam e feriam a alma.

Mas Frei Jose era diferente fora do altar, de orador ardente, arauto do apocalipse, virava um
conselheiro manso e um digno representante de Deus! (não que não o fosse no altar, mas
bem mais calmo)

A benção de Santa Rita que tanto me valeu, foi ele que deu! E falava no púlpito “Homens de
pouca fé, os castigos virão, Sodoma e Gomorra já se aproxima de vocês, as mulheres já
estão vindo à igreja sem roupas (referia-se ele aos recatados vestidos sem mangas que
revelavam o nada absoluto) e daqui a pouco nem véu as mulheres vão usar”.

Mais a calma do bom homem de Deus, fora do altar tinha três limites, o vinho, as goiabas e
a vinha. Ah!!, a vinha - majestosa parreira que nascia no chão atrás da Igreja e enroscava-se
parede acima debruçando galhos folhas e cachos..... no terraço da casa canônica, bem lá no
alto longe dos meninos e ate dos passarinhos , verdes e grandes galhos uva Itália de raro
prazer e frescor, verdes de toda a cor amarelados, verdinhos , clareados , escuros e imaculados
sem faltar uma uvinha sequer em seu esplendor.

A tentação de ser coroinha era essa, ver as uvas, olhar o vinho, apalpar as goiabas e não
poder comer e nem beber. As goiabas vez em quanto passarinho bicava e o coroinha também,
o vinho um pouquinho entornava e o coroinha também, mas as uvas, essas não, inacessíveis,
altas e a fabula da raposa a nos perseguir.

Como subir la se a porta que dava para o terraço tinha chave e a chave ficava na batina do
Frei Jose! A idéia veio de manso, meia ate sem jeito e a garotada passou a escalar a parreira,
três metros acima, o terraço, três metros abaixo o chão e os colegas a vigiar.
E eis que de repente surge o nosso pároco, esbaforido avermelhado e irado, “Desça
daí, senão os castigos virão, desça daí, os castigos virão!”.

Se arrependimento matasse bem..., arrependimento também perdoa! E a uva era da


boa!

“A benção Frei Jose”!!!


BARÚ

O sonho voava com ele. Nas asas da FAB e do pequeno avião

voavam as asas de todos nós moleques castelenses.

Queríamos como todo moleque ser tudo mas, mais do que ser tudo
queríamos ser o BARU.

O Willis Interlagos reforçava o mito. Era amarelo ovo, potência e desenho arrojado e ficava
estacionado ali na frente da Telefônica onde entre ligações e chamadas a família Libardi
conhecia a vida da cidade conectada com o mundo através das chamadas feitas a mão.

O Interlagos amarelo, só ele tinha um, só ele PILOTAVA um!

Ali Marcilene, Zito, Zé Geraldo, Barú e não lembro o nome dos outros viveram.

Barú foi para FAB, foi ser piloto, nosso sonho e desespero de todas as mães.

Umas poucas vezes voou sobre Castelo alimentando nossos sonhos entre os rasantes e
passagens por entre as torres da Matriz. Era nele que a garotada se espelhava e era em volta
dele que ficávamos todos.

Quando o ronco se aproximava a gritaria era geral – BARÚ, BARÚ, BARÚ, corre, vem ver
o avião , é o Barú. E a molecada corria , ainda bem poucos os carros , se fosse hoje logo
logo um seria atropelado.

Correria geral e toda a molecada descontrolada indo pra perto da Igreja, para ver ele passar
de lado por entre as torres, será que passava mesmo ? Não lembro, mas que passava perto
passava!

Era só ouvir o ronco do avião indo embora que a turminha corria lá para a telefônica ver seu
ídolo que vinha de Cachoeiro, aeroporto mais próximo onde aterrisava.

E ele parecia artista de cinema, os pirralhos querendo falar com ele, tocar nele, só pra contar
para os outros pequenos depois.

Barú se foi num vôo tornando rasteiros nossos sonhos aturdidos de realidade.
Se tem alguma rua com o nome dele não sei mas, se for colocar em uma deveria ser bem la
no alto de um morro, bem perto do céu, onde deve estar voando o nosso Barú, junto com
nossas lembranças.
OS CAMPOS DE FUTEBOL

F ui garoto do placar no Comercial, mais interessado em


não pagar entrada do que tudo - Troço chato este de ficar
marcando os gols. Beleza era ver o jogo, uniformes limpinhos,
chuteiras amarradas meiões levantados, o alvoroço das torcidas
e o nervosismo inicial dos jogadores, feito cavalos de corrida
na hora da largada do páreo.
A briga era boa, Comercial, Castelo, Operário, Estrela, Cachoeiro e
um monte de time mais, era futebol de raça, nem tanto técnica mais raça, de
camisa venerada e odiada, de bate boca, tapas e de apostas.
O Campo do Comercial ficou por la muito tempo abandonado, a grama
cuidada pacientemente pelo seu Lácio que, espertamente, nos cobrava 100
vassouras por entrada para jogar. Esperto ele misto de jardineiro e zelador, com
aquela imensidão verde de grama e as “vassouras” (praga que infesta os
gramados) infestando a grama, sozinho não daria conta de arranca-la (O Zé o
o Florentino, filhos dele, estavam mais interessados em passarinho e mangas do
que propriamente cuidar do gramado) assim, para que pudéssemos utilizar o
gramado o “pedágio” eram 100 vassouras que cada um tinha que arrancar e o
campo ficou uma belezura.
O campo do Castelo era mais imponente, arquibancada, o muro alto
dominando a cena plana desde la da estrada, sem nada a competir com ele em
visual, nem em dinheiro, que sobrava la e faltava no Comercial.
Tinha o campo da Garagem, várzea a beira do rio e morro perto ninguém
pagava nada para entrar, sentado la em cima do morro, mais feliz com o verdadeiro
e legítimo futebol de várzea, de domingo e de pão com carne e refresco de
groselha no intervalo.
O melhor não tinha nome , era o campinho de pelada la do morro da
caixa d’água, não a atual mas a anterior lá perto da rua da Grota sem nada por
perto , sem construções ( a casa do Milton Caliman veio estragar nossa
privacidade) onde eu sem jogar nada, era rei, dono da bola, goleiro por escolha
e definição de todos (pra não atrapalhar ninguém na linha) mas era rei, era índio
e mocinho, bandido também e era lá nossa pelada de quase todo dia (ou quando
mamãe deixava), nosso parque de diversões, playground literal de terra na roupa
e barro na cara, de morro abaixo - era só chutar a bola la pra cima do morro
que ela descia fazendo a curva e entrava mansinho no cantinho da trave de talos
de mato renovada todo dia - e eu engolia o frango!
CAPARAÓ

A s dimensões para a garotada são maiores, as coisas maiores,


as pessoas maiores e com o tempo e até hoje, nos surpreendemos
com o tamanho de certas pessoas que há muito não víamos e
julgávamos bem maiores.
Mas não quero falar dos maiores e sim dos menores, dos pequenos
grandes amigos, João Carlos, Nilinho e Rômulo.
Lá em cima do morro tudo era mais misterioso. Os três moravam em uma casa em frente
a um terreno grande onde existia uma outra casa fechada por muitos anos, que não sei
de quem era, lá tudo era quieto e silencioso.
Subíamos o morro, que chamávamos Caparaó, por ouvir falar, sem saber porque. O
Morro era íngreme, ruim de subir de carro, de cavalo, pior, muito pior, de subir a pé. E
é de lá, com muita inveja dos três pequenos, que descíamos nos carrinhos de madeira,
vovôs dos carrinhos de rolimãs (rolamentos velhos aproveitados) bisavós dos carrinhos
elétricos e dos skates.
Os três eram imbatíveis, desciam com perícia impar a ladeira de terra e buracos indo
parar la em baixo, antes do calçamento com a ação dos freios de borracha de pneu, e
que freio, só eles tinham tão bão, uma manete , lado esquerdo do carrinho, mão direita
segurando firme o assento como cinto de segurança moderno fosse, mas que freio!
Disputávamos sei lá o que, mas disputávamos com eles e com os cachorros deles que
insistiam em correr, como qualquer cachorro o faria, atrás dos carrinhos.
Volta e meia arriscávamos o tudo e o nada atravessando a pista calçada na frente de um
raro veículo.
Dizem, Deus protege especialmente os bêbados e as criancinhas, os bêbados por estarem
fora de si e as criancinhas por nunca terem estado em si, ainda meio anjos, meio capetas,
mas fora de si e hoje, lembrando as “atravessadas” na rua onde passavam os carros,
tenho a certeza que o ditado é verdadeiro.
Ladeira acima , suor escorrendo, carrinho pesado, moleque cansado, vontade de desistir,
ladeira abaixo vento no rosto , carrinho correndo , moleque feliz, que vontade de repetir!
O João vez em quanto encontro quando vou a Castelo, Rômulo, não sei onde anda e
Nilinho há muito tempo não vejo, faz uns 20 anos a última vez e quando isto aconteceu
eu estava indo pra minha lua-de-mel e não lhe dei muita atenção e , caro Nilinho,
perdoe-me pois não era hora mesmo de te dar atenção.
CASTELO JOVEM

A turma mais antiga não deixava a mais nova aparecer, o Jornal


da Prefeitura, cujo nome não me lembro , tinha lá seus colunistas poetas
e escritores que ocupavam seu espaço e os mais novos em nada
podiam participar.
Assim nasceu o Castelo Jovem e o Piassi (Carlinhos) veio logo com
aquela boa lábia que lhe e peculiar “Zé, ta nascendo um jornal novo ai
e estamos precisando de gente para trabalhar”.
Pensei com meus botões ‘“que e que este sujeito quer se nem escrever direito sei, aonde
ele quer chegar, como entrar nesse negocio sem entender nada, será que essa historia vai
vingar”.
A conversa prosseguiu e acabei gerente de circulação ou qualquer coisa que o valha, “Com
direito a ver seu nome no jornal” segundo o Piassi. Se apareceu nem me lembro, pois o que
ele queria mesmo era se liberar da entrega dos exemplares de porta em porta.
Se alguém tiver um numero do Castelo Jovem dê aí uma conferida, se meu nome estiver lá
e me mandarem uma copia , ficarei muito agradecido, pois será uma bela recordação.
Passaram-se os anos e um belo dia fui promovido a gerente de circulação da Gazeta em
Vitória aonde chegamos a tiragens de 122.000 exemplares em um só Domingo, Record ate
hoje.
Fazíamos 22.000 entregas domiciliares ate as 6:30 da manha, um trabalho bem diferente
do Castelo Jovem com seus poucos exemplares, mas do jornalzinho não esqueci, não
esqueci das dificuldades, da falta de verba e do esforço de cada um, da mídia pequena,
mas não menor que se esforça para sobreviver, heroicamente.
Dessas mídias nasceram muitos de nossos melhores homens de letras e as várias publicações
de Castelo e das cidades vizinhas despertaram várias carreiras e homens públicos. O Lar
Católico e o Lutador, publicações religiosas, dominaram o cenário por muito tempo e,
escrever para um deles e ver publicada uma simples cartinha era motivo de alegria para
muita gente assim como o Castelo Jovem o foi.
Das paginas da publicação para o mundo saíram alguns expressivos representantes da
terra, alguns muito queridos outros nem tanto, mas, como fomento de novos valores não
podemos negar que ele funcionou e como funcionou!
Dia desses fui fazendo uma contabilidade da turma mais ilustre de Castelo e tenho me
perguntado por que o Omar Machado ainda não escreveu um livro contando um pouco da
história de Castelo porque a historia dele, não cabe só em um jornal, nem no Castelo
Jovem, e preciso um livro inteiro, e de muitas paginas.

Ânimo Omar!
CINZAS DO GATEC

O GATEC - Grupo de Amadores Teatrais de Castelo não passou


pela minha vida, fez parte dela. Floripes, minha irmã, era uma das
participantes e um quadro de cenário dela e do Prof. Evandro
Albuquerque ainda esta pendurado na residência dela.

O Rominho da Farmácia (Rômulo Boa Nova Neto) era dos mais entusiamados e
venhamos e convenhamos sem entusiastas, as coisas da cultura não andam mesmo.

Cheguei a participar de uma peça onde tinha uma monumental fala de três palavras e
olhe la se tanto mas foi minha gloria infantil, verdade é que o grupo um dia veio a se
esfacelar.

La perto da Santa Casa de Misericórdia, a beira do rio podia-se ver ate alguns anos o
esqueleto do GATEC, um projeto do teatro que seria do Grupo e que não sei a quem
ficou pertencendo.

O Esqueleto me incomodou por bastante tempo mais do que aqueles la do cemitério


este ainda vivejava, se vivejar fosse um verbo da língua portuguesa. A estrutura parecia
viva qual esqueleto de uma peça de teatro onde o mote principal sustentava historias
ainda por escrever em torno da personagem principal, a arte teatral de nossa terra.

A beira do rio e o mato já não lhe faziam bem e a estrutura foi “submergindo” em meio
ao matagal, tragada pelo verde do capim de beira rio, confundida com a cor do rio da
seca esverdeado e quase sumarento e pouco a pouco seu vivejar transformou-se em
morimbundar, outro verbo inexistente, mas triste de forma e de falar, e assim sumiram as
lembranças, ate mesmo as lembranças que hoje fui encontrar.

O Teatro novo, Na Praça Três Irmãos, lugar mais impróprio não ocupa, embora o
respeito sempre maior pelas igrejas e casa de artes.

Em meio à cidade, ou melhor, no meio da cidade, a casa carece de estacionamento,


atravanca o centro da praça e poderia bem estar la no lugar do esqueleto do GATEC
mais afastada, numa rua mais tranqüila que se movimentasse em dias de espetáculo
trazendo alegria ao povo e a ranzinzice de alguns vizinhos.

Do teatro pouco ou quase nada herdei, a não ser o gosto pelos espetáculos e as marcações
do ponto da vida que teima em me falar o que dizer quando quero fazer o que não falo.

As cinzas do GATEC não foram espalhadas na curva do rio, continuam queimando em


alguns poucos corações cuja paixão pela arte ainda faz arder a chama da cultura teatral.
DOCES QUINTAS

V ocê já viu uma quinta doce?

Sabia eu la o que era quinta, que tamanho tinha e quinta-feira, dia da semana
doce, já viu?

-Eu também não, é claro.

A não ser como licença poética nem uma nem outra são doces mas, cabe explicação para ninguém
ficar perdido na conversa.

La íamos nós, sábado de manha, repare bem, sábados de manha e não quintas, estrada a fora, o sol
castelense de rachar o coco. Na cabeça o boné que mamãe insistia usássemos sempre que fora de
casa inda que às vezes nem sol tinha.

Íamos para Aracuí, o pequeno e aconchegante distrito de Castelo onde residiam os Quintas família
tradicional de lá, cujo patriarca era o Sr Jose Quintas. Descendentes de espanhóis, sangue quente,
casou-se com uma Brunoro, renomada doceira.

Aos sábados as tachadas de doces fumegavam perfumando a pequena vila com os mais diversos
sabores, mamão, laranja, goiaba, enfim frutas da estação.

Dinheiro pouco, vontade muita, andávamos os poucos kilômetros ate lá para realizar o supremo
deleite da garotada: rapar o tacho e comprar as aparas que sobravam do corte.

Na volta pra casa, embrulhado em pedaços de papel de pão o troféu das raspas de doce e um ou
outro que se quebrava no corte.

A doceria caseira, charmosa e reconhecida supria o barzinho da esquina da praça e outros das
redondezas. Os doces famosos e saborosíssimos guardavam aquele sabor de interior, de coisa
caseira de fazer sem pressas e sem os aditivos e conservantes de hoje em dia.

Mas pra que conservantes, se não sobrava nada!!!


ESTRELA DOS BAGRES

B agre não olha estrela e que eu saiba nem estrela enxerga bagre
mas, quando o trovão roncava lá pros lados de Povoação, logo nos
alvoroçávamos com a Estrela e os Bagres.
O açougueiro o popular Canarinho ( hoje em Venda Nova ) trabalhava
no Açougue do Dida Venturim, perto lá de casa na Vila Isabel e já
sabia, ameaçou temporal la estava eu a pedir um pedaço de coração “ picadinho pra
isca “.
A bicicleta pedia emprestado a alguém e no bagageiro la iam as varas, as linhas , anzóis
o coração de boi “picadinho pra isca”
O Rio Estrela ou sei la que nome fica logo depois de Aracuí e era embaixo da pequena
ponte de madeira que montava o Quartel General da pesca.
Primeiro armar as duas varinhas que chagaram na garupa que era “ pra não perder
peixe” e depois mato adentro cortava outras, umas dez, as vezes mais que recebiam as
linhas e anzóis disponíveis, nada de chumbo, o peso da isca de coração levava o anzol
na profundidade desejada.
A companhia dos mosquitos, na espera da chuva era inevitável, o ar se enchendo de
umidade , escurecendo cedo, o roncar dos trovões excitava os bichinhos e eles picavam
com rapidez infernal. Logo o relâmpago riscava o céu e o dilúvio caia.
Hoje não sei se ainda é assim mas temporal em Castelo era atordoante, o barulho do
trovão ecoando pelas montanhas fazia do vale ocupado em torno do rio uma caixa de
ressonância e o barulho aumentava descomunalmente.
La pras bandas da Estrela encolhíamos debaixo da ponte , o vendo levando a chuva e
respingando nas roupas.
Assim como chegava, lá se ia o temporal, clareando o céu, e a água refletindo o sol
naqueles arco-iris castelenses de intensa cor.
O riachinho, rio , córrego talvez engrossava e barreava a água e ai começava a festa,
era só levantar a isca e deixar bater com força na água, mandis, cumbacas ( bicho
chato) e bagres, traíras e carás, outros peixes também , as vezes uma rara cobra verde
nadando.
Enchia o embornal e ia embora que nem índio, só o que achava necessário já que levar
peixe pra casa – nem pensar, mamãe detestava a sujeira dos peixes.
Deixava um pouco no açougue e um pouco no boteco, moeda de troca por balas,
picolés e suspiros coloridos, moeda de troca por um salgadinho diferente ou por uma “
batida de leite com biscoito e canela”
E por ai quando o cheiro de terra molhada e os trovões roncam , os relâmpagos iluminam
a lembrança do Rio Estrela e dos Bagres de enchente, sodades...como diriam os
caboclos
A MISTERIO DA FERRARIA

F erraria alguém lembra o que é?? Hoje os serralheiros são


seus sucessores já que ferraria, mas ferraria mesmo, requeria
forja, fundição,carvão, cheiro de ferro em brasa queimando o ar
e martelo cantando que nem araponga no metal incandescente.

Ferradura, meia lua, facão, martelo, foice, conserto de enxada, dobradiça de porteira e
não se mais quantas tranqueiras saiam da ferraria. Cortador de feijão, suporte de prateleira,
ferradura, freio de boca ( para montaria) trado, torques e enxadão.

Ali bem no inicio da Rua da GROTA , perdão caros historiadores, retrato-me, Rua Maria
Ortiz, tinha uma casa, das antigas fechada. Porta, soleira, fechadura e seu buraco de cara
pra rua, sem ressalto sem nada que separasse chão e construção, tudo integrado, esfregado
pelo barro vermelho dos dias de chuva e da poeira rubra do verão e fechada. Sem
ninguém dentro, anos e anos fechada, la dentro o tesouro que vislumbrávamos pela
fechadura, a antiga forja que poucas vezes vi acesa e resfolegante, com o ferreiro quase
derretendo junto tanto era o calor.

Passei um dia desses la, 30 anos depois e , surpresa , a ferraria estava aberta. Pressa,
horário e desacerto me tomaram o tempo e devolveram a curiosidade de menino ...quem
estaria la, outra vez tinindo o ferro em brasa por sobre a bigorna duas pancadas no ferro
uma de espera e contraponto na bigorna, musica dos ferreiros e das aropongas.

Quando passo por la, normalmente ou e sábado ou domingo. Qualquer dia desses faço
arte mato serviço e curiosidade, vou la conversar com o ferreiro...
FUED NEMER

D r. Fued, assim ele gostava de ser chamado. Tido como


antipático por muitos , no dia a dia uma pessoa, alegre, de
um bom humor refinado e uma inteligência rara. Castelo foi
dele, na essência, era dono de quase tudo, casas, comercio,
fabricas, negócios, política e uma paixão extrema pelo português bem falado, bem
escrito e sobretudo bem usado.

Tive o prazer de trabalhar com este arguto empreendedor e professor de relaçoes


institucionais e ate mesmo de boas maneiras.

Em suas viagens mais sigilosas, em busca de alianças e de novos negócios por vezes me
levava, a guisa de motorista , mensageiro ou secretario, sempre ensinando.

De um tratamento respeitoso para com as pessoas reservava sempre ao colaborador


um Sr. ou Sra que usava incontinente, em qualquer ocasião até mesmo quando, com
raiva de alguma burrada desabafava :
- “ Seu Caliman o Sr Fulano de tal é muito buro” ( ele falava assim mesmo o segundo
erre sempre omitido com sotaque de libanês)

Minha historia com ele começou quando, voltando do Rio de Janeiro ,onde não me dei
la muito bem, procurei-o a pedido do Lúcio Merçon para conseguir um emprego e ele
me recebeu muito bem mas foi logo assumindo a posição de benfeitor

“Seu Caliman, aqui não tenho trabalho para o Sr. não mais seu pai foi muito meu amigo
e vou arranjar alguma coisa para que não fique desamparado. Lembre-se que, do seu
desempenho, poderão vir oportunidades melhores mas, no momento, só tenho o serviço
de auxiliar de escritório, que faz serviço de bancos, varre o escritório, etc., o Sr aceita...?

Bem a resposta e obvia e la estava eu, no outro dia, sob o comando da Enir Travaglia
na Nemer Café onde ele pouco aparecia pois la quem mandava era o “ Seu Emilio
Nemer” .

Passados uns dias ele pediu-me para ir ao Banco, realizar um deposito que “ Ninguém,
seu Caliman, ninguém mesmo, só o Gerente do Banco eu e o Sr podemos saber deste
deposito”

Fui ao banco e sentei-me a frente do gerente e disse-lhe: “ Estou aqui em caráter


sigiloso e este deposito deve ser somente de seu conhecimento e de ninguém mais,
sendo ele ao portador ficaremos sabendo dele somente eu e o Sr portanto, peço-lhe
segredo sobre tudo o que conversamos “
O Gerente tomou um susto pois deposito era vultoso e os cheques todos de emissão
sequencial do próprio Dr Fued e ele , furtivamente foi ao telefone e avisou –lhe. “ Tem
um rapaz aqui com diversos cheques do Sr querendo fazer um deposito ao portador em
CDB, esta tudo certo??,,”

De la inquiriu o Dr Fued perguntando em nome de quem eu havia solicitado o deposito


e ao ter confirmado que era ao portador disse-lhe para fazer o deposito e me dar o tal
certificado pois estava tudo certo.

Voltando ao escritório, varias contas a pagar e depósitos a realizar em nome da empresa.


Assim, tive eu voltar ao Banco. Como a fila estava grande e ainda faltavam varias
tarefas a realizar dirigi-me ao Gerente e disse-lhe:” O Dr Fued solicitou-lhe que
providencie este pagamentos pois necessita de minha presença no escritório” – Nunca
mais entrei na fila, na cabeça dele, eu tinha uma boa grana e ainda era protegido do Dr
Fued.

Voltando, ainda naquela tarde ao escritório encontro o Dr Fued que perguntou o porque
de não ter ido ainda ao Banco e expliquei-lhe a situação. Aparentemente aborrecido ele
solicitou que, na manha do outro dia, comparecesse ao seu escritório no começo do
expediente.

“ Bom dia Seu Caliman, como vai essa bizaria ( o mesmo erre comido como sempre)mas

bizzaria, na boca do Dr Fued era um dos maiores elogios, como vim a saber depois.

Respondi-lhe que bem e ele me perguntou se sabia dirigir disse-lhe que sim .Ele falou

que as coisas não estavam muito boas que teria que me despedir. Um pouco chateado,

mas sem perder a pose agradeci-lhe as oportunidades e desculpei-me por não ter

correspondido a confiança. “ Não seu Caliman, o Sr não entendeu, o Sr esta despedido

aqui mas, a partir de amanha o Sr será o mais novo Gerente da Calidrax, aqui esta a

chave do seu carro mas lembre-se, a sua capacidade de guardar segredos para mim e

muito importante
Assim era ele, cheio de surpresas, artimanhas e truques mas a melhor delas foi quando
recebi la na fabrica da Calidrax um recado do escritório trazido pelo Baixim nosso
soldador “Seu Caliman, tem um homi ai na frete querendo falar com o Sinho” . Fui a
frente da fabrica e la estava o dito cujo com um rapazola a tiracolo, com cara de
quem não quer nada com o batente e o pai medindo de alto a baixo meu macacão
sujo de cal trovejou: “ O Sr que eh o gerente daqui?” –Sim respondi-lhe. Ele me
empurrou praticamente a carta que tinha em mãos e surpreso li que era uma
determinação assinada pelo Dr Fued para empregar o rapaz.

Pedi um tempo para ir ao toalete e fui ao telefone do escritório e liguei ao Dr Fued


perguntando-lhe sobre a carta.

Seu Caliman, como esta a assinatura da carta, perguntou ele:

- F.N. respondi-lhe.

Pois é, seu Caliman se estivesse assinado Fued Nemer , o Sr poderia ate mandar
todo mundo embora e dar emprego a ele mas se estiver escrito F.N. e porque me
livrei do portador. Com habilidade, mande-o o passear com a promessa de um emprego
no futuro.
E de outra vez nao precisa perguntar, ou seja, Seu Caliman F.N quer dizer “Fero
Nele” ( Ferro Nele)
Bem creio que agora, esteja onde estiver, o Dr Fued não se importará com esta
minha inconfidência.
KARDECIANAS

I Itaici Rosa , diria Drumond, nasceu para ser gauche!

Alma impar aquela, lutava uma batalha surda e


persistente.

Castelo era, não sei se ainda é, uma das cidades mais católicas do estado e o
preconceito desmedido rolava solto, quer seja contra os batistas la do outro lado
do rio quer seja contra o “gauche” Itaici com o espiritismo declarado e beneficente.

Professor de mão cheia ele era, na sala de aula um perseguidor exigente da perfeição
que tentava ensinar aos alunos. Suas habilidades no desenho eram demais para
nossa pouca vontade de aprender a arte que ele lecionava.

Surpreendente ele andava de bicicleta, um sorriso meio que maroto, dócil o tempo
quase todo, pois o resto do tempo parecia que conversava consigo mesmo serio e
absorto.

O Centro Espírita Luz e Trabalho ficava ali bem perto da Prefeitura, um casarão
enorme e uma imensidão de garotinhos de nariz remelento e uniformezinhos azuis,
se me lembro bem.

Uma luta insana contra a falta de verbas e a falta de entendimento do povo, um


trabalho duro e constante que só vim entender anos depois em trabalho voluntário
junto a Apae da Serra.

Kardec, por certo, se possível fosse, deveria revirar no tumulo tentando iluminar
ainda mais aquela alma dócil e trabalhadora.

Alem das aulas que eu não queria, mas as tinha de muito boa qualidade deixou-me
ele um legado que talvez fosse sua autobiografia. Habilidoso, também, nas lides
poéticas trouxe ele a sala de aula alguns de seus poemas dos quis guardo este como
o melhor talvez que tenha lido ou ouvido e que me permito, mesmo a custa de um
processo por uso não autorizado de copyright reproduzir esperando que outros o
façam de boca e de coração:

“MANDAMENTO

Amar!
Amem.”

Amém Itaici, Amém!


BARRO, TINTAS E CARNAVAL

E m algum prédio publico de Castelo esta pendurado um quadro


de intensa singeleza,nife, primitivista, realista de perspectiva torta e
irregularidade assimétrica imperfeitas.
.
O quadro retrata o Grupo Escolar Nestor Gomes assinado, Manoel
Barcelos. Sabes quem foi? curta memória que se vai do Manoel,
oleiro de mão cheia e copo igual, figura alegre e um dos últimos negros a bater um Caxambu
noite adentro la do outro lado do rio.

Manoel trabalhava fazendo tijolos. Não estes de hoje ecologicamente corretos e de furos
pelo meio, fazia-os inteiros , maciços e retos. Barro na moega , água e o burro puxando,
puxando e puxando o dia inteiro moendo barro, amassando, dando liga e ponto pra fazer
os tijolos. Trabalho duro dos dois animais, o muar e o homem.

Cavar barro argiloso, alimentar moega e enformar os tijolos, dia inteiro sol a pino, sol de
Castelo esse sol quase nordestino que nem sol de filme de Glauber Rocha. Sol de
esquentar o barro e quase cozer os tijolos que estavam embaixo dele para a secar antes
mesmo de irem para a fornalha,

A fornalha lenha embaixo, sol em cima, e os tijolos no meio e o homem em torno, este
homem, o Manoel. Negro Manoel do pescoço queimado e do rosto lustroso , Manoel
sem camisa o calor do sol o calor da fornalha e os tijolos queimando como num fogo
infernal

Mas nem a arte do quadro lhe, não me lembro de outro que ele tenha pintado, bastava-
lhe mas sim o CARNAVAL.

O desfile de carnaval, puro e inocente como Manoel que se fantasiava ou de mulinha ou


de Caveira, preferida dele a caveira, pano único , quase um saco a lhe vestir o corpo e
por sobre a cabeça uma queixada de boi, velha e desdentada , ossada limpa, isenta de
carne e cheia do medo da garotada.

Manoel desfilava assim de dia mulinha , de noite caveira mas na mulinha era seu rosto-
alegria que se via, apito na boca o suor escorrendo e a luz do sol apagada pelo brilho do
rosto do Manoel e a luz da lua era só o rosto brilhante do Manoel.

Talvez Manoel lembrasse do Caxambu, tambor de tronco oco, couro de boi esticado em
cima, alegria de noite inteira de muitos filhos e netos de escravos, livres do jugo estúpido
dos homens brancos e entregues a cachaça, sexo e ao caxambu.
MARIA HABIB

A visão do Inferno de Dante talvez fosse melhor que


a loja da Maria, que ficava embaixo da casa dos Chamon
e era mais ou menos isto.
As tentações de sucediam a cada centímetro,
desconhecidas conhecidas, amadas, enlatadas, costuradas,
amarradas, dobradas, envidraçadas e... protegidas de
nossas mãos!
Nada podíamos fazer a não ser olhar.
- “Vai querer o que menino” sentenciava a Maria intimando-nos a sair o mais rápido
que podíamos e, mas não queríamos, e não podíamos só olhar.
Nozes, castanhas, lentilhas, ervilhas, grão de bico, presunto enlatado, defumado,
mortadela, salaminho, leite ninho, chocolate, tâmaras secas, figos da índia, chocolates
da suíça, ameixas do Japão e NÃO, não podíamos comer não podíamos pegar não
podíamos experimentar.
Ate o bacalhau tão fácil e tão disponível em outros lugares não podia ganhar beliscão
e venda sem bacalhau de beliscão, não e venda não!
A Maria tinha um irmão, Jorge, as voltas com livros, decretos e não sei mais o que
não, mas sempre ausente e presente com seu vozeirão, ate parece ser rima, mas não
é de propósito não.
Sozinha, a maior parte do tempo, a Maria levava a loja magistralmente e lentamente
fui ganhando sua confiança.
- “Limpa o balcão pra mim menino” e la ia eu limpando os chocolates os doces finos
embalados e de longa duração os vidros de azeitonas e ameixas e as latas de camarão!
Latas de Camarão! Sim caro leitor latas do caríssimo camarão, ainda lembro, 15
levíssimas e preciosas gramas de camarão dentro de uma lata e ela dizia “sacode
não” e eu sacudia, escondido, adivinhando quantos a lata continha.
O chocolate, nos balcões de cedro e vidro, enfileiravam-se progressivamente, brancos,
escuros, recheados com amêndoa, castanhas e talvez pistache, talvez não.
A Maria la de vigia ate enfim, para desespero dela e minha felicidade um chocolate
furado e a pilha e o bichinho malvado, abençoado que tinha perfurado a barra de
chocolate que agora era minha.
Levava as barrinhas para casa, retirávamos os pedaços perfurados e tudo ia derreter,
chocolate, areado, quitute aproveitado que ela, quando descobríamos , deixava um
pequeno sorriso aparecer meio escondido.
Maria vendeu a loja e foi morar em Marataíses onde, diziam, tinha um hotel e a única
delicatessem do sul do estado, quem sabe de todo ele, deixou de existir em Castelo.
O SAX DO ZE

Quando mudamos para a Vila Isabel, casa que minha irmã mora ate
hoje ganhamos herança da boa, não fazenda, café, maquina de costura
(esta legada somente as filhas dos italianos com dote prenda e quinhão)
nem tampouco dinheiro, réis ou títulos do tesouro, ganhamos vizinhos,
poucos e de boa cepa, advindos de tantos lugares e enfileirados em um
só a beira do rio.

À direita seu Anacleto e Arthur Venturim, mais a direita seu Marcelino


Nicoli e sua numerosa família. Em frente Theodorico Pancoto e seu
Benevenuto Colodete e a esquerda seu Túlio Ferreira e seu Álvaro Bastos.

De mesma idade meus companheiros de brinquedos e boa farra os filhos do seu Túlio, Beto
e Tulinho e o mais velho Jose Augusto, bem mais distante de nós por ser mais velho.

Mas não e que o Zé resolveu estudar saxofone! Perdoem-me as Senhoras, puta merda não
tinha ele outra coisa pra fazer;: pó, ro , pó, ro, pó ro pó roooooooo, rooooo, por , pó ro,
pó, pó pooooooo, um interminável do, ré, mi, fá em escala de barítono o sax perturbava a
tarde inteira, não podia ele tentar aprender cavaquinho, violão , viola sei lá, qualquer outra
coisa que não perturbasse tanto, mas foi estudar logo saxofone!

Onde quer este cara chegar, será que ele pensa um dia tocar na orquestra de carnaval do
prof. Juventino! Será que ele vai tocar em baile do clube dos 60 ou dos 120 (êta racismo
calhorda o clube dos 60 para os brancos). (Os negros só de avacalhação batizaram o deles
de Clube dos 120 com o Ataíde batucando a noite inteira (chicalaco taco tato, chique bum
bum bum) como imitava o Fabinho Bourguingnon, operador do cinema,).

Bem o Zé não queria nada disso, queria era tocar rock no The Things e como tocou, metal
único na banda, dava seu showzinho encantando a rapaziada daqui e de Friburgo onde eles
iam tocar e bebiam o cachê (Jaceguai que o diga) , aliviando a vizinhança cansada do pó ro
pó pó.

Hoje a molecada lá em casa faz festa nos meus ouvidos, flauta e violino repetitivamente
infernizam a casa quando as notas estão baixas e as reclamações da mãe altas demais para
eles suportarem outra vez.

Bem isto foi ate o dia em que o Zé foi embora pro Rio. Acho que seu sax foi pra alguma
gaveta diferente das que ele usa hoje para guardar a contabilidade de suas empresas.
Mas não esquecemos do Zé e se ele se esqueceu da gente, do sax, a gente não esqueceu!
O VIRADOURO

C astelo era fim de linha! Ponto final.

O trem chegava ali e parava. Não tinha mais onde ir.


Encurralado pelos morros em volta ficava menor e
parava, esquecia sua força e parava, vencido. Sem
tem mais onde ir, parava na estação resfolegando como
que cansado, soprando excessos através do vapor.

De costas não voltava, maquinista não via a linha .


O remédio e a solução – o viradouro!
Um buraco redondo revestido de cimento , óleo,cinzas, carvão preto, fuligem e
adornado com moleques, muitos moleques. Estudantes do Grupo Nestor Gomes,
moleques à toa a assistir e querer participar do maior espetáculo da Terra
Castelense - A virada do trem !

Vagões separados a centopéia (ou rodopeía – que confusão para falar de tantas
rodas de uma vez só) mecânica vinha de ré, sem sua habitual majestade
longuilínea, somente sua cabeça de locomotiva, humildemente apresentava-se,
solitária, até ficar de frente para o viradouro.
O manobrista aparecia e virava a chave que comandava os trilhos, metal contra
metal o barulho se sobrepunha à locomotiva sem aceleração.
Feita a manobra dos trilhos o maquinista vagarosamente conduzia a maquina até
o trilho dentro do buraco, uma seção pequena e reta, pouco maior que a própria
máquina e acionava o freio com um ruído ensurdecedor.
O trilho, por baixo da locomotiva, tinha pequenas rodas que corriam em outros
trilhos, em circulo que, empurrados viravam a locomotiva no sentido contrario
possibilitando sua nova entrada na linha desta feita, já virada de frente para
Cachoeiro.
Mas o bonito mesmo era ajudar a virar a máquina, empurrando o viradouro, a
máquina em cima, quente e resfolegando, brasas, carvões, fumaça, óleo e
palavrões dos manobreiros. Vista assim por baixo a maquina adquiria dimensões
gigantescas e a garotada urrava de prazer – Vira , vira, vira, vira o nariz pra
Cachoeiro!
De manhã a centopéia ou rodopéia, como queiram e vossa condescendência
com o meu português assim o permita, partia rumo a Cachoeiro

O Viradouro pra quem não sabe, ficava ali onde hoje esta o Castelinho ( biblioteca)
ao lado da Matriz , ali mesmo onde Castelo e tantas outras cidades brasileiras
viraram o nariz para os trens!
OS CEREAIS MARXISTAS

A ntigamente quase nada vinha em pacote e quase


nada vinha pesado de fábrica.

Quando digo nada, estou falando do varejo, dos


cereais, da soda cáustica, da farinha, da sardinha, do
peixe seco, da cola para madeira e principalmente dos
cereais e do sal.

Tudo era vendido a granel até o fumo. Mas vamos deixar este para outra
historia e falar dos cereais.
Feijão fresquinho, aquele macio testado “al dente” ainda que cru, preto,
quase azul, arroz, quirerinha, milho, farinha, sal. Vinham em sacas de 60
kilos ou 50, macarrão, também vendido “a kilo” mais leve e mais volumoso
em sacos de 20 ou 30 kilos não me lembro com exatidão.

A balança ali, em cima do balcão, os pratos opostos e a mão do


comerciante sempre esperta, sempre deixando “passar” um pouquinho,
míseras gramas vendidos quase como kilo inteiro.

- Dois kilos e meio – bem pesado!! – anunciava ele como se mais tivesse
colocado um kilo. Uma benesse um deferimento aquelas gramas
suplementares que deleitava as donas de casa e mais ainda os maridos.

Mas não era por ai que eu tentava me explicar, não era neste “engano
consentido” onde pagava-se mais e levava-se um quinhãozinho, quase
nada a mais. Não é aí que o Karl Marx entrava com a tal de “ mais valia”
, este ganho extra de capital surrupiado do trabalhador, aqui comprador.

Era caro leitor, na embalagem, na caixa, no saco, na lata, o ganho extra


do comerciante.

A lata da manteiga, da sardinha, o saco do cereal, a caixa do bacalhau


(bacalhau vinha em caixas grandes mais de um metro de comprimento,
bacalhau norueguês, branco, grosso, bacalhau do bom!) e até a caixa de
madeira que embalava as enxadas, tudo ganho extra, tudo lucro, tudo
“mais valia” – saco virava pano de prato novo, alvejado, lavado,
branqueado no anil, que vinha em pedrinhas azuis para branqueá-la a
roupa (processinho complicado uma pedrinha azul para branquear a
roupa) lata era aberta e recebia as devidas marteladas na borda, tampa
de madeira e... pronto!
Uma bela lata de mantimentos à venda. Caixa de bacalhau já embalava moleque na
roça, a guisa de berço e assim era, com tudo que era embalagem, a “mais valia” do
comerciante, desencanto dos moleques que sonhavam com as tábuas e latas pra
fazer carrinhos.
BECOS DA VIDA

T alvez fossem mais, me lembro de uns cinco , os que freqüentava,


que entrava e que xeretava e xeretar era mexer, perguntar e perguntar
de um tudo.

Lá na praça tinha um mais estreito, do lado de uma loja cujo dono chamava-se Odilon,
ao lado o beco e a oficina do Darci, oficina de rádio com aquele monte de peças
inservíveis com as quais brincava de construir rádios melecando a roupa com uma gosma
que antes era usada nos componentes de rádio, pra raiva e desespero de minha mãe e
logo após uma casa , construída com terraços, jardins, escadas e avarandada ( quem
será que morava nela? Se souber caro leitor , me conte)

Tinha o Beco do Gatinho ao lado do bar de prateleiras altas e envidraçadas e os deliciosos


vidros de azeitonas e as mesas de sinuca e a ladeirinha que descia e ia dar lá em baixo
na casa dos Vivacqua, um casarão grande, suntuoso que sempre que podia ia lá espiar,
ainda que só por fora.

Ao lado da Matriz ainda tem um comprido, subindo o morro, isento de atrativos maiores
mas utilitário, corta-volta, atalho e serventia, quem quiser se cansar menos que ande por
ele morro abaixo - acima e poupe tempo e perna no bequinho.

Mais acima, na General Araripe o beco do seu Isidoro Nicoli, pequeno e bom pra
entrar até caminhão, sair não, a ladeirinha pedia primeira marcha e não tinha espaço
para embalar, só motorista bão botava ali caminhão. No fim dele, a direita, a marcenaria
do Campanharo a esquerda, a garagem do “Seu Afonsinho” e o pé de cajá, de fruta
grande que nem esperávamos madurar, comíamos verde mesmo com sal, gostosamente,
driblando os espinhos e as broncas do seu Isidoro

O meu predileto háaa..., meu beco era ímpar - eu morava la, entre a venda de papai
e o armazém do Ceotto,o beco do vovô Martin Ceotto, onde os caminhões vinham
descarregar o sal pra venda, o café pro armazém e carregar o café pro mundo e e
galinhas pro trem, em engradados compridos que iam cacarejando pela rua. Beco
limpo varrido, mas sempre café no chão até de manhã quando a garotada começava a
garimpar os grãos caídos – renda extra- café torrado em casa mais tarde, talvez. Dali
via o mundo, de pé em uma cadeira, através da janela via o mundo e o mundo era
Castelo que passava pela Ministro Araripe, maior que eu e menor do que eu queria.
PORCO, ONÇA E CABRITO

E m Junho é festa do município de Castelo e a cidade se preparava

com uma antecedência militar, pelo menos para os alunos dos


educandários que ensaiavam a marcha por vários dias, qual soldados
no quartel.

Os desfiles temáticos eram o ponto alto, desfilar em carro alegórico era o Maximo, mas
bom mesmo era vestir a s fantasias e curtir a sensação de viver personagens.

Uma vez, só uma vez desfilei nos carros, fraque, cartola e segurando a corda do Balão
Brasil, ate hoje sinto o suor escorrendo pelas costas, o preto da roupa potencializando o
calor, quando acabou o desfile nem animo para descer do carro tinha.

O desfile começava com uma apresentação pomposa, prof Evandro, Omar Machado, os
mestres de cerimônia mais importantes, palanque cheio e as ruas também, o povo se
espremendo pela calcada, crianças ao colo todos querendo um bom lugar.

O Tiro de Guerra o famoso TG 107 abrilhantava a festa, mas o bom mesmo eram as
bandas escolares, Nestor Gomes, Madalena Pisa, Colégio João Bley, uma verdadeira
maravilha para os ouvidos dos pequenos.

O anuncio do mestre de cerimônias foi copiado pelos narradores dos desfiles de carnaval
televisados só que os de Castelo tinham mais brilho, interagindo com os expectadores
que aplaudiam a cada descrição, como aplaudiam! Não ilustre mortal, nem todos
aplaudiam, uns vaiavam e como vaiavam, era a rivalidade dos pequenos, do porco da
onça e do cabrito!

Não, não se assuste, não é festa africana e nem tão pouco lenda da carochinha apenas,
caro leitor, já explico:

Apelidadas a cidade e distritos tinham seus animais de batismo, Onça para Aracuí e tome
vaia quando passava a banda e o grupo de la e quem vaiava! O porco, distrito de Condurú
que desfilava sua banda de cor púrpura e grená, vaiada pelo cabrito, o dono da festa,
Castelo com sua banda azul e branca do João Bley.

Olha o Porco, Olha a Onça, olha o Cabrito!!

Pra desespero de mães e tias a cusparada comia solta assim que o desfile terminava, e a
molecada, melecada, partia para as vias de fato que no final, terminava sem mortos nem
feridos, a não ser os brios de cada um.

Hora de ir para casa, arroz de forno, carne farta, sobremesa e resto do dia para gritar
olha a Onça, olha o Porco, Olha o Cabrito!!!
O ROCK DA MORTE

C idade do interior que se prezasse tinha que ter rádio e

se não tivesse rádio, o serviço de alto-falantes. Castelo não


tinha rádio mas tinha o SAFC – Serviço de Alto Falantes
Castelo onde por um tempo, emprestamos nossas vozes eu,
e depois o Jorge , meu irmão, a serviço da Igreja Católica, a
proprietária, da sociedade e de nós mesmos, que ganhávamos um trocadinho de
comissão das publicidades.

Herdei do Fabinho Bourguignon o cargo de locutor assim meio que na marra pois fui
la conversar com o Padre Frei Amâncio sem marcar nada:
- Benção Frei Amâncio
-Deus te bençoe menino, ta querendo o que?
-To querendo trabalhar no alto falante, ser locutor.
-Há, não tem jeito, o Fabinho trabalha lá, só quando ele sair..
-Ué.... ele não vai pra Vitória morar lá?

Acredito que o Frei foi pego de surpresa mas acabei ficando lá, primeira edição depois
do colégio ao meio dia, noticia pouca, comercial menos ainda e aquele monte de
discos e botões , inveja da gurizada e depois a tarde horas ate as seis a hora da ave
maria e um bom tempo para ler no estúdio silencioso sem ninguém para perturbar.
O SAFC era imponente, tinha registro no Governo Federal (DENTEL) como uma
rádio e vez em quando recebia discos das gravadoras , aqueles de divulgação e jabá .
Um belo dia me aparece o Zé Rogério Libardi, nosso querido K.O. com um disquinho
pequeno, uma musica de cada lado, que me disse era muito bom.
Coloquei a música no ar e quase acabamos presos, pois dias depois apareceram alguns
senhores mal encarados e foram conversar com o Padre, reviraram o estúdio de alto a
baixo e me fiz de bobo, tempos de ditadura tempos de Geraldo Vandré, tempos de
“Pra não dizer que não falei das flores” repetida alguns meses depois, já com
conhecimento de causa.
Quando alguém passava desta para a melhor, era por lá que se anunciava o passamento,
com direito ao Tristesse de Chopin apelidado pelo João Carlos Vieira da Cunha de “
Rock da morte” .

Polenta, dizia ele, - quando você toca aquele rock da morte lá parece que todo mundo
se arrepia a cidade fica quieta, triste, troca aquela porcaria!
A musica me acompanha até hoje e lembra bem aqueles que se foram e por sua
majestosa paz que propicia.
Ouça-a também, acredito que a mesma paz tomara conta de você, sem precisar morrer
, é claro!
SILIATIKAS VITREAUX

Q uem não se encanta com os vitreaux das igrejas ou o

simples “vitrô” do artesanato?

Na Matriz de Castelo, aquela de duas grandes “moringas” no


cume das torres, esta cheio deles.

Não precisa ser católico para admira-los basta um olhar natural, da vontade de ver
o belo, uma obra artística.

São santos e mais santos todos de irreparáveis detalhes, meros cacos de vidro
transformados em arte.

Só fui prestar atenção nos seus detalhes quando a família Siliatikas veio repará-los.
Trabalho meticuloso, paciente e de uma precisão impar.

Primeiro monta-se a mesa, uma bancada grande, plana onde as peças, aos pares
são colocadas. A partir daí começa o trabalho de retirada. Os pedaços da velha
massa de vidraceiro ( óleo de linhaça e gesso, na medida certa) são cortados com
um pequeno formão, quase um cinzel.

Todo cuidado é pouco para retirar a peça, um emaranhado de chumbo e vidro em


forma de quadro. O chumbo é parte e moldura dos pequenos pedaços de vidro.

A lâmina de um mosaico complexo e irregular e então depositada na bancada, o


chumbo é todo vistoriado com um pequeno estilete. Onde se mostra quebradiço é
substituído por outro pedaço obtido de uma pequena engenhoca onde uma barra de
chumbo de mais ou menos uma polegada e prensada e gera um filete em forma de
“H” onde são encaixados, lado a lado os pedaços de vidro.

O vidro quando quebrado era também substituído, aí , a arte do trabalho – necessário


um pintor artístico que refaça o desenho, um mestre vitreiro que tempere as peças
ao forno, sem queimar a pintura, um vidraceiro que faça os cortes perfeitos, um
acabador para soldar os pedaços e chumbo e um limpador ( neste caso eu era um
deles, mais por insistência minha do que por vontade deles)

Ao limpador cabia dar um banho de óleo de linhaça misturado com gesso em peqeuna
proporção para formar uma “pele” invisível que protegia a tinta do vidro por muitos
anos.
Pronto, la estava a peça na mão do instalador que, escada acima alcançava o caixilho
e, depois de encaixada a peça, comprimia o macarrão de massa de vidraceiro nos
cantos fixando a peça. A ultima ação – pintura da massa com tinta grafite completava
o trabalho.

O que a primeira vista parecia parte carecia de arte e engenho – Instalamos, anos mais
tarde, os imensos vitrais da Igreja de São Judas Tadeu, aos pés do Corcovado, em
frente a “gare” do bondinho.Painéis de mais de 4 metros de altura, desenho moderno,
brasileiro, gaúcho.

Para alcançarmos os caixilhos um andaime e para limparmos os caixilhos enferrujados


tínhamos que quebrar o vidro branco e grosso que preenchia seus interstícios protegendo
a igreja das chuvas e ventos enquanto os vitrais não chegavam

Trabalhinho cansativo e perigoso – marreta na mão quebrávamos o vidro dada a


impossibilidade de aproveita-lo e os cortes eram inevitáveis, pequenos cacos se
depositavam por sobre a pele dos braços provocando pequenos sangramentos e o
olhar horrorizado das beatas.

Monsenhor Bessa, o pároco , a nos vigiar lá de baixo, a admirar os belos desenhos na


contra-luz

Em cima do andaime eu, Dingo, George, Luisinho

Embaixo Jonas Filho a resmungar e Jonas pai sempre a xingar “ Filho, filho da p....mais
rápido que o Monsenhor tá puto da vida”

Um abraço aos Siliatikas que nesta época moravam na Chacrinha, ao lado do Campo
de Marte ( ou Campo da Morte como foi apelidado pelo macabro Esquadrão da
Morte que por lá depositava suas vítimas assassinadas) , Nova Iguaçu ou, como
preferiam seus habitantes “ Nova Iork dos pobres”( com “I” mesmo) .

Lá se vão trinta e cinco anos... quem deles ainda por aí?


SÓ SEI LER EM CASA

P apai sempre lia um pouco do jornal O Lar Católico

ou a Família Cristã já mamãe nos acompanhou até o


ginásio xeretando e lendo os livros das matérias e os que
apanhávamos nas bibliotecas.

Fui alfabetizado bem cedo la pelos 5 anos e as historias que mamãe lia já tinham
outros sabores quando podia sozinho lê-las.

O italiano, dialeto vêneto falado e cantado por papai e mamãe também cedo me
foi passado e, de tanto repetir Le cu ( pescoço em francês) acabei tomando uns
cascudos e aprendendo um pouco da língua de Robespierre.

Ir a escola aos sete anos foi uma alegria e ao mesmo tempo uma encheção de
saco, já alfabetizado ficava entediado com os ensinamentos da Dona Jaciberá
Maria Bassini, minha primeira professora oficial muito embora a perfeição e
dedicação da mestra.

Mas vamos ao caso:

Lia em casa, os famosos “Contos da Carochinha” os álbuns de figurinhas


biográficos da editora EBAL e o verso das folhinhas do calendário do Sagrado
Coração de Jesus que sempre povou nossa casa

Na escola, Grupo Escolar Nestor Gomes, lia o que aparecia mas me deparei
com um problema: só sabia ler lá e em casa. Quando passava em frente ao Cinema
o desespero tomava conta de mim, não conseguia ler mais nada.

Um belo dia parece que descompensei com minha descompassada alfabetização


e comecei a chorar .

Quem me acudiu foi um Sr da família Camata: “Ei menino, ta chorando porque?”

Contei-lhe a historia e ele perguntou quem eu era e, ao falar-lhe ele retrucou:

“Pois é, seu pai não fala italiano? Pois aqui, nos cartazes do cinema, estão outras
línguas escritas, inglês, francês, alemão, etc”
POLENTA

P ensou que eu não ia dizer? Por que meu amigo?

Apelido , quase todo mundo tem, é so ficar aborrecido e


demonstrar isto que o tal do apelido pega e tem cada
um esquisito...

Bem, agora o meu você vai ouvir, ou melhor, ler.

O apelido era do Zé Adenir Nicoli, o “Dedé” irmão do Antonio Picolé, da Zinha, da


Lita e da Nenê , filhos de “Seu Izidoro Nicoli e Dona Julia Colodete e todo mundo
tinha apelido, menos eu.

Um dia o Dedé que continuou a ser Dedè começou a me chamar de Polenta e , por
brigar e reclamar, assim o apelido “pegou”

O Jorge meu irmão herdou e a “Pepeta” (Gláucia Careta) não largava do meu pé:

-Polenta, gritava ela bem alto e rindo.

E por ai o apelido foi pegando.

Hoje me divirto bastante com a historia e não é que o filho dela também herdou o
apelido!

Fica ai uma sugestão, vamos multiplicar o apelido – tem aí um cara franzino, quieto,
meio devagar, que fique vermelho toda vez que se fala com ele e fulo da vida
quando tentam brincar com ele?

Bem este cara aí era como eu quando pequeno. Se tiver alguém parecido.... è só
chamar de Polenta que o apelido pega!

De vez em quando chega alguém perto e esquece o nome e pergunta meio sei jeito
você é o....

Digo logo Polenta pois ele não ira lembrar meu nome mesmo e me divirto bastante.

A propósito você gosta de polenta mole ou dura?

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