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Menino de engenho, José Lins do Rego

[...]
Estavam na limpa do partido da várzea. O eito bem pertinho do engenho. Da
calçada da casa-grande viam-se no meio do canavial aquelas cabeças de
chapéu de palha velho subindo e descendo, no ritmo do manejo da enxada:
uns oitenta homens comandados pelo feitor José Felismino, de cacete na mão,
reparando no serviço deles. Pegava com o sol das seis, até a boca da noite. Às
vezes eu ficava por lá, entretido com o bate-boca dos cabras. Trabalhavam
conversando, bulindo uns com os outros, os mais moços com pabulagem de
mulheres. Outros bem calados, olhando para o chão, tirando a sua tarefa com
a cara fechada. Assim, poucos. Os demais raspavam a junça dos partidos
contando histórias e soltando ditos.

— Deixa de conversa, gente! — gritava seu José Felismino. — Bota pra diante
o serviço. Com pouquinho o coronel está aqui gritando.

E a enxada tinia no barro duro, e eles espalhando com os pés o mato que
ficava atrás. O sol espelhava nas costas nuas; corria suor em bica dos lombos
encharcados.

Manuel Riachão puxava o eito na frente, como um baliza. Era o mais ligeiro. De
cabeça enterrada, a enxada nas suas mãos raspava como uma máquina a
terra que aparecesse na frente. Sempre na dianteira, deixando na bagagem os
companheiros. O moleque Zé Passarinho remanchando, o último do eito. Não
havia grito que animasse aquele preguiça alcoolizada. Também, ganhava dois
cruzados, davam-lhe a mesma diária das mulheres na apanha do algodão.

— Tira a peia da canela, moleque safado! O diabo não anda!

E ele atrás, na maciota, com os pés roliços de bicho e o corpo rebentando em


moléstias-do-mundo.

REGO, José Lins do. Menino de engenho. 66. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. p. 58-59. (Fragmento).

1
O quinze, Rachel de Queiroz

[...]
Agora ao Chico Bento, como único recurso, só restava arribar.
Sem legume, sem serviço, não havia de ficar morrendo de fome enquanto a
seca durasse.

Depois, o mundo é grande e no Amazonas sempre há borracha...


Alta noite, na camarinha fechada que uma lamparina moribunda alumiava mal,
combinou com a mulher o plano de partida.

Ela ouvia chorando, enxugando na varanda encarnada da rede, os olhos cegos


de lágrimas.

Chico Bento, na confiança do seu sonho, procurou animá-la, contando-lhe os


mil casos de retirantes enriquecidos no Norte.

A voz lenta e cansada vibrava, erguia-se, parecia outra, abarcando projetos e


ambições. E a imaginação esperançosa aplanava as estradas difíceis,
esquecia saudades, fome e angústias, penetrava na sombra verde do
Amazonas, vencia a natureza bruta, dominava as feras e as visagens, fazia
dele rico e vencedor.

Cordulina ouvia, e abria o coração àquela esperança; mas correndo os olhos


pelas paredes de taipa, pelo canto onde na redinha remendada o filho
pequenino dormia, novamente sentiu um aperto de saudade, e lastimou-se:

– Mas, Chico, eu tenho tanta pena da minha barraquinha! Onde é que a gente
vai viver, por esse mundão de meu Deus?

A voz dolente do vaqueiro novamente se ergueu em consolações e promessas:

– Em todo pé de pau há um galho mode a gente armar a tipoia... E com umas


noites assim limpas até dá vontade de se dormir no tempo... Se chovesse, quer
de noite, quer de dia, tinha carecido se ganhar o mundo atrás de um gancho?

QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 14. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. p. 44-45. (Fragmento).

[...]
Agora, sozinha o marido longe - Chico Bento saíra de manhãzinha a ver se
descobria alguém que ensinasse um remédio – de cócoras junto à criança
moribunda, Cordulina chorava sem consolo.

2
Um dos outros pequenos, chupando o dedo, olhava o irmão. E o Pedro, o mais
velho, de vez em quando tangia uma mosca que tentava pousar no rosto do
doentinho. A criança era só osso e pele. O ventre inchado, o couro seco de
defunto, empretecido e malcheiroso.

Quando o pai chegou com uma negra velha rezadeira, Josias, inconsciente, já
com o cirro da morte, mal podia respirar.

A velha olhou o doente, abanou o pixaim enfarinhado:

– Tem mais jeito não... Esse já é de Nosso Senhor...

Cordulina ergueu a cabeça, fitou a velha e redobrou o choro. Chico Bento fitava
dolorosamente a agonia do filho. E a criança ia se acabando devagar. Lá se
tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois
paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de
fome, estrada afora.

Cordulina, no entanto, queria-o vivo. Embora sofrendo, mas em pé, andando


junto dela, chorando de fome, brigando com os outros...

E quando reencetou a marcha pela estrada infindável, chamejante e vermelha,


não cessava de passar pelos olhos a mão trêmula:

– Pobre do meu bichinho!... [...]

QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 14. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. p. 71. (Fragmento).

3
Capitães da Areia, Jorge Amado

[...] E desde esta noite uma grande parte dos Capitães da Areia dormia no
velho trapiche abandonado, em companhia dos ratos, sob a lua amarela. Na
frente, a vastidão da areia, uma brancura sem fim. Ao longe, o mar que
arrebentava no cais. Pela porta viam as luzes dos navios que entravam e
saíam. Pelo teto viam o céu de estrelas, a lua que os iluminava.

Logo depois transferiram para o trapiche o depósito dos objetos que o trabalho
do dia lhes proporcionava. Estranhas coisas entraram então para o trapiche.
Não mais estranhas, porém, que aqueles meninos, moleques de todas as cores
e de idades as mais variadas, desde os 9 aos 16 anos, que à noite se
estendiam pelo assoalho e por debaixo da ponte e dormiam, indiferentes ao
vento que circundava o casarão uivando, indiferentes à chuva que muitas
vezes os lavava, mas com os olhos puxados para as luzes dos navios, com os
ouvidos presos às canções que vinham das embarcações...

Não durou muito na chefia o caboclo Raimundo. Pedro Bala era muito mais
ativo, sabia planejar os trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia nos olhos e
na voz a autoridade de chefe. Um dia brigaram. A desgraça de Raimundo foi
puxar uma navalha e cortar o rosto de Pedro, um talho que ficou para o resto
da vida. Os outros se meteram e como Pedro estava desarmado deram razão a
ele e ficaram esperando a revanche, que não tardou. Uma noite, quando
Raimundo quis surrar
Barandão, Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na luta mais
sensacional a que as areias do cais jamais assistiram. Raimundo era mais alto
e mais velho. Porém Pedro Bala, o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no
rosto, era de uma agilidade espantosa e desde esse dia Raimundo deixou não
só a chefia dos Capitães da Areia, como o próprio areal. Engajou tempos
depois num navio.

Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia, e foi desta época que
a cidade começou a ouvir falar nos Capitães da Areia, crianças abandonadas
que viviam do furto. Nunca ninguém soube o número exato de meninos que
assim viviam. Eram bem uns cem e destes mais de quarenta dormiam nas
ruínas do velho trapiche.

Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e


fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a
conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.

AMADO, Jorge. Capitães da Areia. 117. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 20-12. (Fragmento).

4
São Bernardo, Graciliano Ramos.

[...]
– A senhora, pelo que mostra e pelas informações que peguei, é sisuda,
econômica, sabe onde tem as ventas e pode dar uma boa mãe de família.

Madalena foi à janela e esteve algum tempo debruçada, olhando a rua. Quando
se voltou, eu passeava pela sala, enchendo o cachimbo.

— Deve haver muitas diferenças entre nós.

— Diferenças? E então? Se não houvesse diferenças, nós seríamos uma


pessoa só. Deve haver muitas. Com licença, vou acender o cachimbo. A
senhora aprendeu várias embrulhadas na escola, eu aprendi outras quebrando
a cabeça por este mundo. Tenho quarenta e cinco anos. A senhora tem uns
vinte.

— Não, vinte e sete.

— Vinte e sete? Ninguém lhe dá mais de vinte. Pois está aí. Já nos
aproximamos. Com um bocado de boa vontade, em uma semana estamos na
igreja.

— O seu oferecimento é vantajoso para mim, seu Paulo Honório, murmurou


Madalena. Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De qualquer maneira, estou
agradecida ao senhor, ouviu? A verdade é que sou pobre como Jó, entende?

— Não fale assim, menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada?
Quer que lhe diga? Se chegarmos a acordo, quem faz um negócio supimpa
sou eu.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 81. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 101-102. (Fragmento).

5
[...] Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia
bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e
muitos bichos pra o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se
escoram uns aos outros, lá embaixo, tinham lâmpadas elétricas. E os
bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os
mandamentos da lei de Deus.
Bichos. Alguns mudaram de espécie e estão no exército, volvendo à esquerda,
volvendo à direita, fazendo sentinela. Outros buscaram pastos diferentes.
Se eu povoasse os currais, teria boas safras, depositaria dinheiro nos bancos,
compraria mais terra e construiria novos currais.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 81. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 217. (Fragmento).

[...]
Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei bastante. Como lhes
disse, fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado. Estou
convencido de que nenhum desses ofícios me daria os recursos intelectuais
necessários para engendrar esta narrativa. Magra, de acordo, mas em
momentos de otimismo suponho que há nela pedaços melhores que a literatura
do Gondim. Sou, pois, superior a Mestre Caetano e a outros semelhantes.
Considerando, porém, que os enfeites do meu espírito se reduzem a farrapos
de conhecimentos apanhados sem escolha e mal cosidos, devo confessar que
a superioridade que me envaidece é bem mesquinha.

Além disso estou certo de que a escrituração mercantil, os manuais de


agricultura e pecuária, que fornecem a essência da minha instrução, não me
forneceram melhor que o que eu era quando arrastava a peroba. Pelo menos
naquele tempo não sonhava ser o explorador feroz em que me transformei.
Quanto às vantagens restantes – casa, terras, móveis, semoventes,
consideração de políticos, etc. – é preciso convir em que tudo está fora de mim.
Julgo que me desnorteei numa errada.
Se houvesse continuado a arear o tacho de cobre da velha Margarida, eu e ela
teríamos uma existência quieta. Falaríamos pouco, pensaríamos pouco, e à
noite na esteira, depois do café com rapadura, rezaríamos rezas africanas, na
graça de Deus.

Se não tivesse ferido João Fagundes, se tivesse casado com a Germana,


possuiria meia dúzia de cavalos, um pequeno cercado de capim, encerados,
cangalhas, seria um bom almocreve. Teria crédito para comprar cem mil-réis de
fazenda nas lojas da cidade e pelas quatro festas do ano a mulher e os
meninos vestiriam roupa nova. Os meus desejos percorreriam uma órbita
acanhada. Não me atormentariam preocupações excessivas, não ofenderia
ninguém. E, em manhãs de inverno, tangendo os cargueiros, dando estalos

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com o buranhém, de alpercatas, chapéu de curicuri, alguns níqueis na
capanga, beberia um gole de cachaça para espantar o frio e cantaria por estes
caminhos, alegre como um desgraçado.

Hoje não nem rio. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e a dureza dos
olhos me descontentam.

Penso no povoado onde Seu Ribeiro morou, há meio século. Seu Ribeiro,
acumulava, sem dúvida, mas não acumulava para ele. Tinha uma casa grande,
sempre cheia, o jerimum caboclo apodrecia na roça – e por aquelas beiradas
ninguém tinha fome. Imagino-me vivendo no tempo da monarquia, à sombra de
Seu Ribeiro. Não sei ler, não conheço iluminação elétrica nem telefone. Para
me exprimir recorro a muita perífrase e muita gesticulação. Tenho, como todo
mundo, uma candeia de azeite, que não serve para nada, porque à noite a
gente dorme. Podem rebentar centenas de revoluções. Não receberei notícias
delas. Provavelmente sou um sujeito feliz.

Com um estremecimento, largo essa felicidade que não é minha e encontro-me


aqui em S. Bernardo, escrevendo.

As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.

Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono.
Deitar-me, rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar
sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.

Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo – a, sinto um arrepio. A


lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afasta-la e caminho em redor
da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando
caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.

De longe em longe sento-me, fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:

– Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.

A agitação diminui.

– Estraguei a minha vida estupidamente.

Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçamos... Para


que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o
que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que me aflige.

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A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A
Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no
campo, e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os
moradores que me restam são os cambembes como ele.

Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo
a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou
além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta
desgraçada profissão nos distanciou.

Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os


sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu
egoísmo.

Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu
qualidades tão ruins.

E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda parte!

A desconfiança é também consequência da profissão.

Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração
miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E
um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.


Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas
deformidades monstruosas.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 81. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 218-221. (Fragmento).

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