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Três inéditos de Lima Barreto1

Estranha aventura do Dr. Pelino2

O amanuense Frederico, no intuito de precipitar a sua nomeação, não largava a casaca


do Dr. Pelino, que era seu diretor. Este, por sua vez, muito tocado com as homenagens que
recebia de seu subordinado, dava-lhe a copiar as biografias que ainda têm inéditas e são as dos
Srs. Seabra, Epitácio Pessoa, Tavares de Lyra e Carlos Maximiliano.
Em dia do ano passado, o lar do amanuense Frederico foi, como se diz nas ‘Notas
Sociais’ dos quotidianos, felicitado pelo nascimento de mais um filho do mesmo zeloso
funcionário.
Era homem e Pelino, convidado para padrinho, aceitou a honra e tratou de arranjar um
nome bem original e significativo. Pensou e quis pôr Hemoglobina, coisa muito razoável pois
era a parte principal do sangue, do sangue que é a essência de nossa própria vida; mas, após
tão árduo pensamento, descobriu que o nome era feminino. Ora bolas!... Pensou ainda duas
semanas e dirigiu-se para a história do Brasil. Caramuru, Aybere, Cunhambembe, Poty, não
serviram. Parou em Jagoanharo. Muito bonito! Que queria dizer? Andou daqui para ali e
descobriu: cão bravo. Ora bolas! Não serve.
Afinal, resolveu pôr o nome do pequeno de acordo com o que sabia mesquinhamente
de geometria e foi batizá-lo com o nome de Hexágono.
No dia da batização do filho de Frederico, Pelino compareceu com o lindo fraque que
tinha mandado fazer quando era estudante do Recife: e, se não vestiu as calças respectivas, foi
porque, quando ele andou às turras com o Floriano, os competentes fundilhos delas ficaram
irremediavelmente perdidos, devido ao acidente de que sofrem muito as fraldas das crianças
de colo.
No sarau, o diretor esteve entusiástico e toda a família Frederico exultou com a honra
de ter por parente espiritual um destes quase Ministro. No intervalo entre uma valsa e outra, a
comadre pediu-lhe:
– Compadre, recite alguma coisa.
1
Hoje em dia, do ponto de vista editorial, as crônicas de Lima Barreto encontram-se muito bem estabelecias e
disponíveis para leitura. Isso se deve a alguns fatores: 1) o zelo do escritor em guardar os textos que publicava na
imprensa; 2) o trabalho realizado por Francisco de Assis Barbosa, quer na recuperação do espólio do escritor
[que contou com outros colaboradores, como o historiador e biógrafo R. Magalhães Júnior], quer na edição e
publicação das Obras completas de Lima Barreto, em 17 volumes, no ano de 1956; 3) a continuidade no trabalho
de edição e publicação das crônicas do autor, com destaque para as coletâneas Toda Crônica, 2 Volumes,
organizada por Beatriz Resende e Rachel Valença, lançada pela editora AGIR em 2004 e pelo conjunto de 164
textos até então inéditos de Lima Barreto, enfeixados no volume Lima Barreto: sátiras e outras subversões, fruto
de uma pesquisa realizada por Felipe Corrêa, lançado em 2016 pela Penguin/Cia das Letras. Cotejei a este acervo
de publicações os textos que ora apresento e que acredito ainda terem ficado inéditos em livro. As três crônicas
foram encontradas nas edições do jornal humorístico Dom Quixote. Além destas, encontrei a crônica “Uma
Relíquia de Amor”, também inédita em livro, presente no mesmo Dom Quixote, e publicada em a terra é
redonda na edição de 31 de janeiro de 2024. Link:
https://aterraeredonda.com.br/uma-reliquia-de-amor/#_ednref1
2
Dom Quixote. Rio de Janeiro, 15 de maio de 1918. Link:
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=095648&pasta=ano%20191&pesq=&pagfis=1239
Pelino, com aquela voz cavernosa que sai tão bem da sua face descarnada e do seu
crânio só osso, acudiu diligentemente:
– Ando tão esquecido, minha senhora...
A insistências de quase todos os presentes, Pelino consentiu em recitar; e, com a sua
voz de alma d’outro mundo, avisou:
– Vou recitar uma balada de minha composição – A Partida. Fi-la a trinta e cinco anos.
E começou:
A Partida
Quando partiste tristonha
No dorso do mar bravio,
Eu fiquei todo pamonha
E fino que nem pavio.

Olhei de todos os lados


Não vi ninguém para amar;
Só vi quatro soldados
Que se iam a embarcar
..............................................................
E por aí foi, causando um grande sucesso na sala, tanto que, ao terminar, as palmas
foram e emudecer.
Aí pela uma hora, Pelino despediu-se e, como Frederico morasse pouco acima da
Praça da Bandeira, em uma rua transversal à do Senador Furtado, por economia, o diretor
resolveu vir a pé até a praça, ponto de cem réis.
No caminho teve um mau encontro. Um sujeito agarrou-lhe pela garganta e um outro
tirou-lhe tudo o que tinha na algibeira. Como havia de ser? Voltar para a casa do compadre?
Eles já estavam recolhidos, seria, portanto, inconveniente...
Resolveu-se a ir a pé até em casa. Pelino residia no Catete e bravamente dispôs-se a ir
de Mariz e Barros até à sua casa, nos calcantes.
Ficava esta numa espécie de avenida e, a habitá-la, eram ele e um empregado Joaquim,
de trinta e tantos anos, um tanto atirado. Pelino comia fora e Joaquim arranjava-se para comer.
Veio Pelino descendo a rua Mariz e Barros, na firme decisão de chegar em casa a pé,
quando, na Praça da Bandeira, lhe caia em cima uma grossa pancada d’água.
Não havia onde recolher-se: dinheiro não tinha para tomar bonde. Continuou a pé e a
chuva não esmorecia. Lavou-o dos pés à cabeça. O coco ficou em papas, o fraque gotejava
que nem um telhado, as botinas tinham vontade de navegar. O mais extraordinário é que o
peito da camisa e o colarinho ficaram negros.
Chegou ao Catete afinal. Joaquim, ao abrir-lhe a porta, com a vela na mão,
desesperadamente gritou:
– Socorro! Socorro!
Pelino assustado perguntou:
– Que é isto, rapaz! Estás doido?
Joaquim sossegou e explicou:
– É que não conheci o senhor. Está com a barba e os cabelos brancos...
A chuva tinha dissolvido a ‘Negrita’.
Tílburis3

Os senhores se lembram, por acaso, dos tílburis? Estou a apostar que a uma tal
pergunta todos responderão: vagamente.
Deve haver muita gente que não saiba mais que houve tal coisa e o que era. Meninotas
que já ensaiam namoricos e rapazotes que já aprendem a tragar a sua fumacinha, se lhe
perguntarem que coisa foi um tílburi, hão de dizer com toda a firmeza que não sabem e talvez
julguem que houvesse sido algum herói nacional, pois de todas as coisas que nós mais
depressa nos esquecemos, é dos nossos heróis.
Vejam só o Santos Dummont. Quando ele chegou aqui, há mais de 16 anos, houve
festas e entusiasmo contínuo, durante uma semana inteira.
Não houve sociedade sábia que não o recebesse e lhe perpetrasse em cima discursos
sobre discursos; não houve instituto de ensino que o não recebesse sob o mais chamejante
entusiasmo; não houve rua em que ele passasse, que não fosse coberta de pétalas de flores
pelas senhoritas; e até, certa noite, tiraram-lhe os cavalos do carro e o puxaram pela cidade
toda. As bandas de música do Rio não chegavam para as encomendas e os panegiristas, em
verso e prosa, sobraram e multiplicavam-se. Ele havia feito a Europa ‘curvar-se ante o Brasil’,
dizia a canção.
Quem se lembra dele hoje? Ninguém. Anda por aí sem uma palma, sem um viva, sem
ser citado nos jornais.
É muito triste a condição de herói nacional. Feito que ele o seja, fatalmente será
esquecido.
Por isso, muito naturalmente, os rapazotes de quatorze anos quando se lhes perguntar o
que entendem por tílburi, hão de responder muito sagazmente, pois já pressentem o feitio do
nosso civismo:
– Foi um homem aí que fez alguma coisa de notável.
Será preciso então a bonomia e a paciência do falecido dr. Vieira Fazenda para lhes
explicar que tílburi era um carro de duas rodas, puxado por um só cavalo, cujo único
passageiro ia ao lado do cocheiro, no interior do carro; e que este nome lhe viera por ter sido
introduzido aqui por um médico inglês, dr. Tílburi, que o empregava nas suas visitas clínicas.
Teremos que dizer mais.
Depois que se abriram avenidas e alargaram-se ruas, com a introdução do automóvel,
o tílburi desapareceu com muitas outras coisas e usanças urbanas. O único que ficou
impávido, zombando dos autos e do progresso, foi o dr. Brício Filho, que nesse tempo era
diretor do jornal O Século.
Assim mesmo, fosse pela troça, fosse porque fosse, esse sobrevivente da espécie
desapareceu.
Ninguém vê mais um tílburi no Rio. Pelo menos na rua. É possível que, nas cocheiras,
os haja, porque seguro morreu de velho e, amanhã, talvez ainda possam servir.

3
Dom Quixote. Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1918. Link:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=095648&pagfis=1592
Entretanto, o tílburi teima, continua a existir, não direi para todos; mas, para uma certa
repartição oficial, ele ainda é coisa viva e capaz de interessar a população, a ponto de fazê-la
gastar dinheiro com a falecida carriola.
Vejam só este anúncio do Diário Oficial, de 30 de julho último:
T
TÍLBURIS (Tabelas para os preços dos) ................................... $200
O Diário Oficial repete sempre o anúncio; e, partilhando a certeza de “sua redação”,
de que ainda há tílburis de aluguel, é bem de crer que muito tempo venha a esperar para que
lhe chovam níqueis de duzentos réis na gaveta.
Se o anúncio fosse aqui, no D. Quixote, ou em outro qualquer periódico, certamente a
despesa com ele, já lhe teria tirado a esperança de ressarcir algum dia o prejuízo, com o
produto da venda das tais tabelas; mas é o governo quem paga, não vale, portanto, a pena
estar a incomodar-se com tal coisa.
Tenho para mim que os homens do Diário esperam uma alta formidável na gasolina,
apesar da alimentação do dr. Bulhões, a ponto de obrigar os automóveis a suspender o tráfego.
Os tílburis saem para a rua, libertam os seus antigos cavalos das cangalhas carvoeiras
e verdureiras dos subúrbios, ficam valorizados e, consequentemente, valorizarão as tabelas.
O tempo é de valorizações...
Tudo é esperar...
Um herói4

E todas da roda dela se achavam interessadas com esse estranho desejo de Sylvia
casar-se com um herói.
Aos poucos, ele se espalhou entre os rapazes que a conheciam; daí, ainda, propagou-se
por entre damas e senhorinhas; e, ao fim de pouco tempo, toda a cidade que vem à rua do
Ouvidor apontou a ingênua Sylvia:
– Está vendo aquela moça!
– Estou. Quem é?
– É aquela que quer se casar com um herói.
Não houve quem não achasse estravagante o desejo da pobre moça, como se não fosse
um como qualquer outro.
Ela poderia bem merecer esse futuro. Não era feia, antes bonita; tinha bons atributos.
Todas as amigas, de onde em onde, quando se oferecia ocasião, diziam:
– A Sylvia só diz que se há de casar com um herói.
Uma outra, esquecida de que havia dito a mesma coisa, observava, perguntando:
– O que ela entende por isso?
A outra acudia:
– Sei lá! Deve ser um doutor muito sábio e instruído.
Uma outra mais ilustrada objetava:
– Qual doutor, qual nada! Deve ser um homem muito acima do comum, que faça ou
tenha feito muito em favor da humanidade, por esse ou aquele meio, de coração e de caráter,
bem comportado; mas o sarcasmo anônimo não compreendia que ela merecesse semelhante
destino.
Os mais indulgentes riam-se simplesmente; os mais cruéis e invejosos não se
continham:
– Que pretenciosa!
Ao fim de alguns anos, ela veio a casar; e os mais chegados já estavam esquecidos
desse seu desejo de quase menina. Porém, os conhecidos de vista ainda se lembravam dele,
pois foi ela até conhecida por – heroína.
Um perguntava a outro:
– Quem é o noivo?
– É um sujeito aí dos bancos.
– Será o herói?
– Pode ser ainda das finanças.

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Dom Quixote. Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1918. Link:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=095648&pagfis=1825
Se algum daqueles outros que tinha tido a notícia dos seus sonhos, indagava:
– Quem é o marido da Sylvia?
– É um rapaz da “Caboteira”.
– Será o herói?
– Não sei, mas é um bom rapaz, pois eu o conheço desde menino.
Afinal, o Gastão, a quem o seu amigo Benedito fez a mesma pergunta, mais ou menos:
– Tu conheces o marido da Sylvia?
– Conheço.
– Quem é?
– É um rapaz da “Caboteira”
– Será o tal herói que ela queria?
– Heroísmo não enche barriga.
– Ela queria um...
– É, sim.
– De que?
– Do football.

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