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Vidro rachado

O soldado Flores foi até o caixa eletrônico (da Caixa Econômica Federal), que
ficava na parte térrea do prédio do batalhão. Era um grande vão sobre o qual o edifício
de dois andares tinha sido construído. Por ali também existia uma pequena academia de
ginástica, algumas seções administrativas e o próprio pátio onde a tropa entrava em
forma. Encostado na parede, ao fundo, o equipamento talvez tenha sido alocado ali pra
oferecer um mínimo de privacidade para as operações financeiras, sobretudo os
saques...
Flores precisava de um dinheirinho pouco, para as coisas do dia a dia. O
expediente acabando, um dia normal de caserna. Sem novidades. Tempo bom, um
entardecer ainda quente – talvez tomasse alguma coisinha nalgum bote do Parque Dom
Pedro antes de encarar o trem. Percebeu, ao encostar na máquina pra fazer o saque, que
o vidro da tela estava trincado. Parecia obra de uma pedrada. Passou o olho pelo teclado
numérico e... que isso? Um projétil? Havia ali um projétil calibre 9mm, deflagrado.
Como esse projétil veio parar aqui? Teria sido ele quem trincou o vidro? Muito
provavelmente sim. Flores guardou o projétil no bolso, sacou o dinheiro e foi até o
Cabo-de-dia avisar sobre a avaria no caixa eletrônico.
O cabo-de-dia era ninguém menos que o Sucuri. Flores omitiu que tinha
encontrado ali um projétil deflagrado. Sucuri, depois de conferir o vidro trincado,
decidiu reportar o caso ao Oficial-de-dia, que naquele dia era o tenente Perna-de-alicate,
o dentista do quartel. Uma comissão da equipe de serviço foi averiguar a rachadura no
vidro do caixa eletrônico. A notícia se espalhou pelo batalhão. Não pense você que num
quartel das Forças Armadas os episódios de menor importância não ganham relevância
nenhuma. Alguns incidentes, por mais irrelevantes que sejam, assumem proporções
inimagináveis. Uma privada entupida – porque alguém jogou lá o papel higiênico ou
outra qualquer coisa – o galho de alguma planta quebrado, um papel de bala no chão...
Qualquer mínima incidência a demonstrar um desarranjo, por menor que seja, na ordem
das coisas, já é motivo para que toda aquela engrenagem hierárquica comece a se
movimentar. O tenente Perna-de-alicate fez as anotações no caderno de ocorrências;
passaram uma fita de isolamento ao redor do caixa, tiraram fotos.
Ao término do expediente, a tropa toda em forma observava um grupinho de
oficiais inspecionando o caso: o próprio Oficial-de-dia, junto ao capitão Juquinha e ao
major Mal-danado presidiam a comissão; alguns sargentos que tinham a prerrogativa de
orbitarem a oficialidade davam o ar de sua graça. Junto aos oficiais e não em forma,
como deveriam estar, mostravam aos demais praças da tropa que tinham alguma
coisinha a mais. O sargento Bonecão de cera, por exemplo, olhava para a tropa com um
certo ar de soberania, como a dizer, sobretudo a seus pares, “vocês aí em forma e eu
aqui junto aos oficiais...”.
A inspeção demorava; com certeza dali não sairia boa coisa.
O Mal-danado saiu da inspetoria do caixa eletrônico e caminhou direto à tropa.
Já mandando o papo a meio caminho:
- Atenção, batalhão! Batalhão seeeeentido! Descaaaaansar! Seeeentido!
Descaaaansar! Esse batalhão tá mole, hein Almeida!? Batalhão seeeentido!
Descaaaaansar! Semana que vem quero uma hora de ordem unida, todo dia! Onde já se
viu uma moleza dessa...
O Juquinha, comandante imediato da tropa, ficou na dele. Se a tropa, como
dizem, é o espelho do comandante, então a coisa estava na conformidade dessa
observação. Juquinha, o capitão Almeida como oficialmente era conhecido, já estava na
fase de empurrar tudo com a barriga, que a cada ano ficava mais saliente. Mas aquela
indireta do Mal-danado havia pegado num restolho de amor-próprio e alguém teria que
pagar. O major ainda deu mais alguns comandos à tropa. Fez o povo marchar um pouco
e depois anunciou o que estavam todos esperando.
- Os senhores devem saber do ocorrido no vidro do caixa eletrônico... pois bem,
posso estar enganado, mas isso me cheira a coisa de soldado...
O major, como boa parte da oficialidade, não gostava de soldado. E não fazia
questão de esconder isso de ninguém. Essa classe, pra ele, era a coisa mais abjeta que
existia nas forças armadas. Dizia pros soldados não chegarem perto dele porque tinha
alergia. Não havia soldado que entrasse em audiência com ele que não saísse com pelo
menos dois dias de cana.
Ordenou que sargentos e cabos saíssem de forma e reuniu-se com eles um tanto
afastado do resto da soldadesca. Os cochichos corriam no interior da tropa. Uns cinco
minutos após aquela audiência, o Bonecão-de-cera veio proferir a boa nova. Ninguém
sairia do quartel aquele dia até o responsável pela avaria no caixa aparecer. É dos
espetáculos humanos mais singulares esse de uma revolta contida. Soldados que
estudavam à noite, que tinham família, compromissos, ou simplesmente queriam voltar
para suas casas, cada um em seu lugar, expressavam suas revoltas individuais, que não
foram muito além de um ou outro palavrão sussurrado, um suspiro profundo, um gesto
de indignação.
Lá na frente podia-se ver o Mal-danado expelindo algumas ordens, apontando
pros sargentos – você vai pra lá, você pra cá, você vai no rancho providenciar comida
extra. Outros sargentos e cabos vieram se juntar ao Bonecão, parecendo combinar
alguma coisa. Dividiram os soldados em quatro grupos e começaram a marchar. A
ordem unida já começaria naquele dia. Iriam marchar até umas sete da noite, depois
banho, jantar e sabe-se lá deus o que.
No banheiro e por todo o alojamento o clima era de muita indignação. Quem
teria quebrado a porra do vidro? Lógico que o maldito não ia aparecer... A lei é: um fez
errado e todos pagam, caso não apareça ninguém pra ser na cruz pregado. Os próprios
soldados tinham certeza de que o culpado deveria ser algum soldado. Uns chutavam a
porta do armário, outros corriam pra reservar uma cama; o banheiro estava lotado.
Nesse alvoroço todo surgiu a questão das camas. Alguém disse que não teria cama pra
todos. Nem pra metade...
A questão das camas já tinha chegado ao conhecimento do Mal-danado.
Ordenou que fossem buscar colchonetes e roupa de cama no almoxarifado. Depois veio
uma mensagem do rancho: a comida já tinha sido preparada apenas para a equipe de
serviço e para os laranjeiras, além de não ter uma equipe disponível para aquele trabalho
extra. O major não contava com essas contrariedades. Pensou no coronel Botelho, o
oficial chefe do rancho; os dois não se bicavam muito... Seria temerário mandar os
taifeiros pegarem enlatados e coisas do tipo e mandar servir pra tropa. A resistência
implacável da hierarquia havia chegado para aquele que reinava soberano no batalhão.
Ainda mais o coronel Botelho, pensou o Mal-danado, aquele porra louca... Cogitou a
possibilidade de comprar pizza pra todo mundo, mas logo espantou a ideia da cabeça.
Não ir ter jeito, teria que ceder. Mandou os sargentos colocarem a tropa em forma, que
ele iria descer pra dar mais um esporro.
A notícia de que teriam que entrar novamente em forma deixou a soldadesca
puta da vida. Alguns já estavam vestidos pra dormir, outros sequer tinham tomado
banho, o pessoal dos bas-fonds já tinha preparado um cafofo pro truco e desentocado as
garrafas de goró. Alguns sargentos e cabos ficaram no alojamento acelerando o pessoal,
como bons cães adestrados. A coisa foi toda de um tumulto impressionante. Enfim
começaram a descer os primeiros, entre eles o soldado Flores, que sequer tinha retirado
a farda.
Lá embaixo já estavam o Mal-danado, o Juquinha, Bonecão-de-cera, sargentos e
cabos. Uns, meio contrariados, outros, na eterna bajulação, esperavam o desenrolar dos
acontecimentos. No alojamento o corre-corre daqueles que estavam saindo do banho foi
piorado quando se ouviu o corneteiro soprar o toque de reunir e na sequência o
acelerado. Os cabos que estavam lá pra agilizar a coisa começaram colocar mais pilha.
Parecia que a cidade estava sendo atacada por bombardeiros e tropas de infantaria, mas
era só o capricho de um major angustiado pela inexistência de operações reais que
trouxessem significado à sua existência.
O último soldado passou pela porta do alojamento, abotoando a farda, parando
nos degraus da escada pra amarrar a bota, todo atrapalhado. O rapaz que tirava serviço
de sentinela no alojamento, o soldado Moreira, sobrinho do cabo Sucuri, foi dar uma
olhada pra ver se ainda tinha algum perdido por lá. A cena parecia mesmo de um
inesperado ataque, um tipo de Pearl Harbor: camas desarrumadas, banheiro todo
ferrado, toalhas pra todo lado, armários abertos, fardas jogadas, um horror. Ao fundo do
alojamento, no cafofo dos mais antigos, o baralho espalhado ao centro de uma mesinha,
um maço de cigarros, botas, chinelos, algumas canecas e uma garrafa de conhaque. O
soldado Moreira pegou a garrafa e deu umas boas talagadas que desceram rasgando sua
garganta; tirou uns três cigarros do maço e enfiou no bolso, ele também pertencia à
equipe de combatentes dos bas-fonds.
Lá embaixo, com todos em forma, o Mal-danado comunicou a notícia
visivelmente contrariado. Disse que seria bom o culpado aparecer, que a pior coisa que
pode existir numa tropa é um traidor, fez questão de criar um clima de desconfiança
apelando para a ideia segundo a qual todos estavam pagando pela cagada de um único
soldado.
O fora de forma foi decretado sem que nenhum daqueles desgraçados
demostrasse um mínimo de alegria. Alguns apenas saíram correndo pra arrumar as
coisas e correr pra casa. Outros ficaram sem saber o que fazer. Flores decidiu passar a
noite na caserna. Já passavam das nove da noite, não valeria a pena voltar pra casa. Foi
até o armário, retirou do bolso o projétil e colocou dentro da caneca onde guardava
alguns objetos de higiene pessoal.

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