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O CASO 38-1920

O horário dizia que ainda era dia, mas o céu e o clima pareciam contrariar isso. O lado de
fora da delegacia era um mar branco, com a neve caindo incontrolavelmente sob um céu
escuro e carregado. Por sorte os estrangeiros haviam chegado antes de a tempestade
começar. Foram trazidos de trem por um oficial da polícia de Montreal, onde haviam
desembarcado de diferentes aviões, cada um vindo de um lugar diferente do mundo. Na
estação de trem foram apanhados pelo policial Erl que lhes trouxeram havia quase meia
hora até a delegacia.

A delegacia era uma construção relativamente nova, fundada depois da virada do século.
Sua alvenaria era de boa qualidade e formava paredes grossas e bem acabadas que
mantinham o frio do lado de fora. O aquecimento, entretanto, era um pouco arcaico. Duas
caldeiras divididas nas extremidades da delegacia tinham a difícil tarefa de espalhar o
vapor quente por todos os ambientes. Não eram suficientes e todos ali estavam
minimamente agasalhados.

- Por Deus, essa nevasca não vai parar tão cedo. - disse o soldado Erl ao observar pela
janela ao lado da porta de entrada.

Erl tinha recebido os recém chegados à delegacia. Era um homem corpulento, um pouco
acima do peso, de pele branca e fina, com mãos grandes e roliças. Tinha, sob um largo
mustache, um sorriso fácil, que fazia transparecer a idade nas marcas enrugadas ao redor
dos olhos. Devia passar dos cinquenta. O uniforme de polícia que usava era preto e os
botões mostravam uma resistência notável ao resistirem a força que a barriga fazia contra
eles. O uniforme estava limpo, mas a barra da calça apresentava uma umidade
característica de quem havia andado na neve, tal como os três estrangeiros ali também
estava. O sapato estava um gotas de água. Por cima do uniforme, usava um casaco de
lona leve de cor azul escura com um capuz puxado para trás.

Os convidados, como ele os denominara, estavam sentados dispostos em dois longos


bancos na recepção da delegacia. Era notável o pouco movimento na delegacia, pelo
menos naquele horário e com aquele tempo, afinal eram os quatro homens os únicos
presentes no local. Logo à frente do pequeno corredor que servia de hall de entrada
estavam duas baias simples de madeira, com uma pilha de papel em cada uma; ao lado
da baia esquerda, havia um criado mudo alto, com algumas edições de jornal empilhados
sobre o mesmo. Logo atrás, num vão mais aberto, três escrivaninhas, também de
madeira, eram dispostas numa organização duvidosa que lembrava um triângulo. Sobre
uma delas havia uma máquina de escrever. As outras tinha apenas pilhas de papeis,
pastas pardas e utensílios de escritório. Ao lado de uma delas, a que continha a máquina
de escrever, havia um armário de arquivos com algumas etiquetas desgastadas
fronteando as grandes gavetas. E logo atrás das mesas, uma porta de ferro gradeada,
com uma grande tranca. O corredor além dessa porta estava escuro, de forma que não se
podia enxergar muito além da porta. Haviam ainda à vista duas outras portas na sala,
ambas pelo lado direito; as duas eram de madeira com trancas simples.

Um chiado no rádio, contido numa pequena estação que ficava no extremo das baias,
quebrou o som da nevasca.

- Detetive McCam para a Quinta, Câmbio.

Detetive MaCam era o responsável por auxiliar os investigadores naquele caso.


Oficialmente ele era o responsável pelo caso e era o contato dos estrangeiros para ir e vir
dos locais onde achariam necessário para conduzir a investigação. As perguntas
pertinentes ainda deveriam ser feitas a ele. Erl se apressou para atender o chamado do
detetive ao rádio. Apanhou o microfone desconcertadamente e apertou um botão do
surrado painel emadeirado antes de responder.

- Erl na escuta. Prossiga.

- Não conseguiremos ir a lugar algum hoje. Acredito que seja perigoso sair da delegacia
com esse tempo. Arrume acomodações para os convidados. Amanhã pela manhã
veremos como está o tempo e aí decido se vou até a delegacia. Câmbio desligo.

O policial se virou para os três com um ar desanimado. Coçou a cabeça antes de falar, um
pouco desconcertado.

- Bem. Não temos exatamente acomodações. Os senhores podem escolher entre esses
bancos de espera ou as camas simples das três selas que temos. Todas estão vazias e eu
deixarei as portas abertas, é claro. Realmente não tem para onde ir com essas condições
do tempo. Irei fazer um café agora e temos biscoitos de polvilho em estoque aqui. Fiquem
à vontade.
Ele andou a passos largos até uma das portas de madeira e abrindo-a, revelando uma
copa. Ali ele ligou alguns disjuntores, acendendo a luz da copa e do corredor além da
porta de ferro. As lâmpadas elétricas forneciam uma iluminação baixa e lúgubre,
deixando os cantos dos ambientes um pouco escuros. Ele colocou a cabeça para fora da
porta.

- A porta de ferro está aberta. Se quiserem usar as mesas, podem ficar à vontade. Vou
utilizar apenas a cadeira da estação de rádio. - E sumiu copa a dentro, deixando os
convidados a sós pela primeira vez.

O detetive Ludovic se demonstrou o mais à vontade dos três recém chegados. Tomou a
iniciativa de ir até a pilha de jornais, folheando o que estava no topo, edição do dia
anterior. [Ludovic, fazer uma rolagem de "Assuntos Atuais (Manchetes)"]

O auxiliar florestal, Arturo Madero, optara por tirar os sapatos, mas descobriu que o chão
quase congelante da delegacia não era muito melhor do que os sapatos molhados. Talvez
a troca dos calçados fosse uma melhor opção, até porque todos estavam de posses de
suas bagagens ali mesmo.

Ludovic deu uma espiada no corredor da porta de ferro gradeada. Foi capaz de enxergar
as portas das três celas, duas do lado direito, e uma do lado esquerdo. Mais à frente da
porta da esquerda, há um vão, indicando que existe mais algum cômodo ou corredor
além da cela. Ele faz um pedido ao policial Erl, que se estende a um questionamento aos
outros companheiros de trabalho.
Erl acabara de entrar na copa, ouvindo o pedido. Porém continua o que havia começado a
fazer, mas responde falando um pouco alto demais para conseguir ser ouvido.

- Pois sim, meu caro. Pego logo em seguida. Acredito que um líquido quente é prioridade
para todos aqui, sim? Haha. - falou de forma descontraída. Mas logo continuou, um pouco
afetado. - Pelo menos eu acho. Desculpe se estiver errado.

Ele se apressou em preparar o café para não deixar os cavalheiros esperando por muito
tempo. Depois de colocar a água para ferver, saiu da copa e ouviu o novo
questionamento, dessa vez feito pelo mais moço dos estrangeiros.

- Mais forte do que café? Se o senhor está falando de algum tipo de bebida alcoólica,
temo que não seja conveniente para o momento. Apesar de eu apreciar um bom
conhaque. Posso convidá-los para o humilde bar que frequento, mas não poderia nem
beber e nem oferecer bebida no trabalho. Quem sabe amanhã no fim do expediente se o
clima permitir. - fez uma careta um pouco disfarçada, como se não entendesse por que
alguém pediria para beber durante o trabalho.

O policial andou até o armário de arquivos, abrindo a pesada gaveta com um pouco de
esforço. O som produzido pelo ferro já muito usado foi bastante desagradável, um
rangido fino e longo, fazendo doer os ouvidos, principalmente Ludovic. Ele vasculhou a
gaveta por um momento e puxou uma pasta fina de cor parda. Fechou a gaveta
produzindo o mesmo som novamente e levou a pasta até a mesa da escrivaninha onde
Ludovic estava sentado. Depois voltou para a copa a fim de concluir o café.

O detetive abre a pasta e começa a espalhar os papeis e a foto que haviam dentro. Dentre
os documentos, havia o boletim de ocorrência, com o número do caso encabeçando as
informações do mesmo - Caso 38-1920 - além da data da ocorrência - 03 de Janeiro de
1920 - nomes da vítima e a pessoa que encontrara o corpo - Morgan Happer e Dilan Brow,
respectivamente - além da descrição básica das condições a qual o corpo foi encontrado.
Outro documento continha o depoimento de Dilan Brow, colhido pelo detetive Silas
McCam; outro era a ficha criminal de Morgan Happer; e por último a análise preliminar do
corpo, feito ainda no local onde o corpo estava. Havia também uma nota, escrita à mão
com grafite, numa caligrafia desleixada, indicando que o laudo da autópsia ficaria pronto
no dia 6 de Janeiro, conduzida pelo Dr. Carlson. E por fim, uma fotografia da cena do
crime, mostrando o corpo da vítima em péssimas condições, com múltiplas lacerações na
altura do peito e abdômen, caído ao pé de uma árvore, em meio à neve fina.

O Dr. Allan Weiss se aproximou um pouco depois, também dando uma olhada
despretensiosa tanto no jornal que estava de posse do detetive Ludovic como nos
documentos espalhados. Os cavalheiros podiam examinar cada um, conforme seu
interesse.
Arturo não aturou o incômodo dos pés descalços naquele frio por muito tempo e logo
tratou de buscar por suas botas dentro de uma de suas malas. Os pés dentro do couro
seco era como um bálsamo milagroso em meio à doença.

A sequência de ações de Erl levaram a diferentes reações por parte do grupo de


estrangeiros. Dentre o incômodo claro na expressão de Ludovic com o ruído alto da
gaveta, seguido por usa observação sobre lubrificar aquele equipamento; a contrariedade
demonstrada pelo Dr. Weiss ao comentário apaziguador de Ludovic sobre o assunto do
álcool no trabalho;
o complemento de Arturo sobre aquelas questões, traçando um paralelo entre o excesso
de trabalho e a liberdade individualista da vida, terminando por aceitar o convite de
bebedeira sugerido pelo policial. Este, por sua vez, observava o discurso de cada um,
vestindo uma expressão cômica de estranheza com a mistura de sotaques e divergências
nas opiniões entre eles. Segurou o ímpeto de rir, mas não conseguiu deixar de
transparecer o sorriso trancado abaixo dos bigodes.

Ele pareceu pensar a respeito da primeira pergunta que fora atirada a ele, feita pelo
detetive de barriga larga depois de sua análise inicial a cerca dos documentos do caso.
Depois de uma leve careta na cara rechonchuda, que parecia invocar os conhecimentos
ocultos em sua mente, respondeu sem muita propriedade.

- Eu não sei ao certo, mas bastante longe. A prisão fica do lado oposto da cidade, mais ao
sul. A represa fica ao norte daqui. Estamos agora mesmo mais próximos da represa do
que da prisão.

A essa altura, ele já havia terminado de preparar o café, feito enquanto os senhores
estavam averiguando os documentos. O aroma da infusão encheu o ambiente. Saiu da
copa com uma grande garrafa metálica. Ele trouxe também quatro xícaras, com pires.
Colocou sobre a bancada, longe dos papéis e começou a servir o líquido fumegante em
cada uma das xícaras. Foi nesse momento que veio o pedido de Ludovic acerca do
contato com o Dr. Carlson. Erl se ergueu enquanto tampava a garrafa, corrigindo usa
postura e ajeitando o uniforme.

- Nós não temos um telefone aqui. Ainda não são muito comuns na cidade. Temos apenas
um na prefeitura, um na prisão, um no prédio do departamento de justiça, um na brigada
de incêndio e um no hospital central. Os outros telefones instalados na cidade são de
residências particulares, de um pessoal mais afortunado. Em vez disso posso tentar
passar um rádio para ver se a patrulha está próxima ou tem condições de chegar até o
hospital. - Terminando o retorno ao francês, Erl emendou sua fala, aproveitando a
atenção que tinha sobre si. - Aqui está o café. Podem se servir à vontade. Vou trazer os
biscoitos também. - E caminhou em direção à copa mais uma vez.

Quando Erl voltou com o pote de vidro cheio de biscoitos redondos de polvilho, foi a vez
do alemão lhe direcionar uma pergunta. Para essa, ele deu de ombros.

- Não saberia dizer, mas raramente existem ataques de urso longe do centro da floresta
ao norte. Geralmente são caçadores. Ursos não chegam tão perto assim da cidade, e são
poucos, até onde eu sei. E não existem outros animais selvagens nas redondezas
capazes de fazer isso a um homem.

O comentário do assistente florestal veio um pouco depois, quando Erl já se sentava em


sua cadeira à estação de rádio, munido de sua xícara de café quente e um punhado de
biscoitos nas mãos, isso depois de ter deixado o pote de biscoitos ao lado da garrafa de
cafés. Erl pareceu não se incomodar com o que quer que tivesse sido insinuado pelo
garoto. O complemento de Allan foi mais bem pontuado, fazendo o policial balançar a
cabeça positivamente antes de responder.

- Quem o prendeu dessa última vez foi o pessoal da primeira estação. Temos aqui cinco
estações de polícia e nem sempre nos envolvemos em todos os assuntos. De qualquer
forma, a maioria dos crimes cometidos na cidade são menos violentos. Ouvimos o que
acontece na América e ficamos aturdidos com a violência praticada pelas gangues e a
máfia. Não temos nada parecido aqui. Quando ocorrem assassinatos, e são raros, são
passionais ou por motivos torpes, geralmente brigas de bar. Raramente existe morte em
disputa de terras, mas é um caso específico de duas famílias que se odeiam na área rural
a leste do condado. - notou que estava falando demais, se afastando do foco da pergunta
do doutor alemão. - De qualquer forma, esse Happer estava recorrendo em liberdade. Não
foi preso em flagrante, e jurou de pés juntos que dessa vez ele não era culpado.
Compareceu a todas as audiências do processo, tinha endereço fixo e estava trabalhando
como motorista de entregas de um mercado. Se querem saber, o detetive acreditou nele.
Ele era o típico trapalhão, não sabia ser bandido, mas pareceia ter má índole. E talvez seja
melhor guardar essas perguntas para o ser. McCam, ele que deveria guiá-los com o caso.
Eu sei pouca coisa do ocorrido. Li o boletim e vi a foto, mas nada além disso. Não é da
minha alçada, se é que me entendem.

A fala do policial gordo deixava claro que ele era um homem simples e simpático. Era o
tipo do policial que sabia, muito bem, seguir ordens. Tinha algum conhecimento da lei,
provavelmente conquistado com a experiência da profissão, e não pelo estudo.

Os cavalheiros ouviram as tentativas falhas de Erl tentar contato com a patrulha policial.
Não houve respostas em nenhuma das tentativas. Decidiu então tomar seu café e comer
seus biscoitos, esperando por novas abordagens por parte dos ilustres desconhecidos. O
frio ainda era intenso, apesar de os senhores estarem se acostumando ao ambiente, mas
certamente aquele café ajudaria a aquecer o corpo, ou pelo menos o espírito.
O café e biscoitos pareceram apaziguar os ânimos, principalmente por que fazia com que
todos ficassem de boca cheia, portanto, mais calados. Entretanto o alegre detetive
francês parecia realmente gostar de falar, pois ao longo dos últimos minutos descarregou
um punhado de perguntas para Erl que ouviu tudo com o máximo de atenção que podia,
enquanto saboreava seus biscoitos. Por fim, quando pareceu que o fôlego do detetive
havia terminado, o policial deu de ombros com um sorriso amarelo.

- O senhor terá que perguntar para o detetive McCam. Eu não sei responder nenhuma
dessas perguntas. Sinto muito. Mas posso continuar tentando contato via rádio.

Erl também respondeu cordialmente aos agradecimentos que lhe foram feitos sobre o
café. Mas os outros repararam que ele procurou ficar mais quieto depois daquilo,
interagindo apenas com o aparelho de rádio.

Arturo, por sua vez, parecia alheio ao foco do trabalho, fazendo um comentário abstrato
sobre a questão da violência, como se falando com ninguém em particular, mesmo que
tivesse relacionado com algo que Erl havia dito. Este se virou na cadeira para observar o
rapaz enquanto ele falava. Por fim pareceu não entender completamente o que o garoto
dissera, isso ficou fácil de se captar quando sua cabeça entortou para o lado antes de
balança-la positivamente e voltar a seu afazer. O assistente de patrulheiro passou a fazer
diversas anotações desconexas em seu caderno.

O mais taciturno, porém, era o doutor Weiss. Não falara muito mais depois de agradecer
pelo café. Parecia absorto em sues pensamentos e deixou Ludovic à vontade com suas
perguntas e teorias.
O tempo passou lentamente, mas lá se foram algumas horas com os homens
conversando e falando sobre suas teorias e interesses. Se aproximavam das 8pm quando
repararam numa mudança repentina do som no ambiente. A nevasca aparentemente
diminuíra de intensidade, passando para uma chuva mais controlada. Erl caminhou até
perto da porta da entrada, olhando pela janela enquanto esfregava as mãos, a fim de
aquecê-las.

- A nevasca está cedendo, mas a situação lá fora ainda não é nada boa. Temo que
realmente terão de passar a noite aqui. Falando nisso, onde preferirão se acomodar?

Ele auxiliou cada um a se instalar onde cada um escolheu, fosse nas celas, fosse no
banco de espera. O lugar parecia mais frio do que antes, fazendo com que um vapor
condensado escapasse do halito dos homens enquanto falavam. E, se é que era possível,
o ambiente parecia mais escuro.

Depois de ajudar cada um dos cavalheiros, o policial voltou para sua estação de rádio,
tentou contato mais uma vez. Em vão. Desistiu então de continuar tentando. Pediu
desculpas a Ludovic, dizendo que tentaria novamente no primeiro horário da manhã. Ele
também avisou a todos que ficaria de vigília, e poderiam dormir sossegados. Caso algo
mudasse, ele os acordaria. Restava saber se algum deles realmente conseguiria dormir
aquela noite com as condições adversas que se apresentavam.
Cada um dos cavalheiros decidiu o lugar onde descansar àquela noite. Descobriram que
as camas das celas eram bastante aceitáveis, mesmo com os colchões relativamente
finos, era suficiente para passar a noite.

Ludovic e Allan escolheram para si uma cela cada um, enquanto Arturo se acolheu num
dos longos bancos de espera do hall de entrada da delegacia, próximo à porta.

Antes de deitar, o detetive francês ainda tomou um pouco mais de café. Por um lado
ajudou a aliviar um pouco o frio, por outro fez com que ele demorasse um pouco mais
para pegar no sono.

O Dr. Weiss não teve problemas para dormir, se aconchegando em sua cela, o sono logo
veio. O espaço menor parecia um pouco menos frio do que o comodo principal da
delegacia.

O assistente de patrulheiro, por sua vez, se recostou no banco de qualquer jeito,


acostumado com aquele tipo de situação. Se colocou a ler um livro que trouxera na
bagagem e demorou bastante tempo para dormir. Viu quando Erl apagou as luzes do
corredor das celas e do hall de entrada. Aparentemente não tinha notado que Arturo
ainda não tinha pego no sono, achando que estava fazendo uma gentileza ao apagar a luz
para não atrapalhar o rapaz a dormir. A única iluminação agora ficava no centro da
grande sala.

O policial ficou sentado em sua cadeira à frente da estação, lendo jornal e eventualmente
comendo mais biscoitos. E foi assim ao longo de boa parte da noite.

Ludovic Bardin

Ludovic abriu os olhos no escuro. De alguma forma, sabia exatamente que horas eram.
Não sabia ao certo por que havia despertado, mas sentia um aperto no coração, como se
algo o tivesse assustado, talvez um pesadelo, mas não se lembrava de ter sonhado.
Notou que não havia reflexo de luz vindo de fora da cela, estava um breu completo ali.
Começou a se virar na cama, quando teve a impressão de ouvir um ruído. Parecia um
grocho, mas vinha como um eco distante, de algum lugar fora da delegacia. Não dava
para reconhecer sua origem ou de onde partia, mas certamente era algo alto o suficiente
para ser ouvido à boa distância. Tinha sido ininterrupto por cerca de cinco segundos,
depois parou. E com isso, voltou o silêncio. Aquele som agourento fizera o coração bater
mais rápido. Agora se encontrava desperto em sua cela, num escuro cerrado, o frio
levemente mais ameno do que no momento em que fora dormir, mas uma estranha
sensação de solidão pela ausência da luz e de sons de outras pessoas.

Instantes depois, foi capaz de ouvir o som de uma porta se abrindo e logo se fechando. O
som vinha da sala principal da delegacia, junto com um som de movimento que se seguiu
ao abrir e fechar da porta.

Allan Weiss
Allan despertou preguiçosamente em meio ao breu da cela. Seria uma simples mexida de
meio da noite quando teve a real impressão de ouvir um ruído à distância. Parecia um tipo
de rugido, mas devia estar a quilômetros de distância, trazido ao longe pelo fenômeno do
eco. Esse rugido deixou o alemão um tanto aflito. Ouviu um som vindo da cela
imediatamente à frente da sua logo que o provável rugido terminou, coisa de segundos. O
local estava completamente escuro, o que era incomodo, pois não dava para saber se a
porta da cela continuava aberta.

Depois de alguns instantes, ouviu o som de uma porta se abrir e fechar ao longe, e
alguma movimentação vinda da sala principal da delegacia.

Arturo Madero

Arturo estava cansado por ter demorado a dormir, e continuou dormindo. Em meio à
escuridão do sono, ouviu um rugido vindo de algum lugar longe, do escuro. Parecia um
animal grande e selvagem, talvez um leão ou uma pantera, não tinha como saber. Aquele
rugido fez seu corpo estremecer, um frio percorreu a espinha, fazendo-o se agitar
levemente. Teve vontade de se afastar dali, mas não sabia ao certo que direção seguir em
todo aquele breu. Sentiu então um toque em seu ombro, tão real...

O susto foi tão grande que saltou da cadeira de súbito, despertando de uma vez. Ao seu
lado, conseguiu divisar uma silhueta em meio à penumbra, proporcionada por uma luz
fraquíssima que entrava pela janela da grande porta ao lado.
Sons se sucediam dentro das celas frente a frente, tanto Ludovic como Allan
conseguiram perceber que os dois agiam em seus determinados aposentos. Quase que
ao mesmo tempo, ambos abriam as portas de suas celas. O ranger do ferro das portas
gradeadas delatou que os dois saíam agora, mesmo não enxergando um ao outro por
conta da escuridão.

O que se seguiu foram uma série de barulhos distintos. Primeiro, a voz de Arturo, mas
sem uma identificação exata do que ele dissera, estava mais para um gemido atônito.
Depois, o bater de um objeto caindo ao chão, junto com outro objeto, maior, logo na
sequência. Em seguida, um arrastar de cadeira contra o chão, de maneira súbita. E por
fim a voz do policial Erl, muito assustada, saindo quase num grito.

- QUEM ESTÁ AÍ??

O breu ainda era pesado, e não dava para ver nada além do corredor. Foi nesse instante
que Ludovic acendeu sua lanterna. Ela estava mirada para frente, e iluminou primeiro o
corpo de Allan, que imediatamente virou o rosto em resposta ao incomodo que a luz
causou aos olhos acostumados com o escuro. O detetive lançou a iluminação da lanterna
primeiro para o lado direito, rapidamente, para averiguar que não tinha nada do lado
menos óbvio, e de fato não tinha. E logo em seguida, apontou na direção da sala
principal, fonte de todo aquele barulho. O faixo de luz atravessou o cômodo, iluminando
diretamente uma pessoa que se encontrava de pé no limite do hall de entrada, próximo às
cadeiras de espera onde Arturo havia se deitado. Era um homem alto e de bom porte
físico, vestido de roupas pesadas, com um sobretudo preto sobre um casaco marrom
escuro. Sua calça social pesada, também de cor preta, brilhava ao reflexo da luz,
indicando que haviam alguns respingos de água em sua superfície. Da mesma forma, a
botina pesada que usava estava molhada e ainda carregava algumas partículas de neve
condensada. As mãos estavam cobertas por uma grossa luva de couro. O rosto estava
parcialmente coberto por um cachecol também preto, além de um chapéu preto no estilo
clássico, ornado com um belo distintivo dourado da força policial de Québec. Ele ergueu
uma das mãos para proteger os olhos contra a luz. Nesse momento, o jovem Arturo se
erguia do chão, mas com alguma dificuldade, parecia não entender direito onde estava. A
voz de Erl voltou a preencher o ambiente, ainda um pouco esgoelada.

- Por Deus, McCam! Que diabos!? Que susto que me deu, homem! O que faz aqui? E por
que está tudo escuro?

A voz rouca do homem veio levemente abafada no início, mas logo começou a retirar o
cachecol, se fazendo entender mais claramente.

- Vim trabalhar, oras. A cidade inteira está no escuro. Precisamos buscar Robert Clamp e
ir até a subestação de energia. - se voltou agora para Ludovic, que estava apontando a luz
da lanterna para ele. - Poderia abaixar a lanterna e a arma, por gentileza? - falou num tom
ameno, quase descontraído.

Ele lançou a mão em ajuda a Arturo, puxando-o do chão.

- Desculpe se o assustei, tentei te acordar sutilmente, mas parece que estar nesse escuro
não ajudou muito.

Com a iluminação proporcionada por Ludovic, foi possível ver a mala de Arturo deitada
no chão próximo a eles. Ele devia ter recuado e tropeçado na mala, o que o fez cair ao
chão junto dela. Erl se desloca pelo ambiente, sorrindo nervosamente.

- Céus, McCam, quase tive um infarto. Senhores. - cumprimentou Allan e Ludovic


enquanto passava por eles, indo até o final do corredor e virando à esquerda.

Dois ruídos altos de algum dispositivo mecânico puderam ser ouvidos antes de um som
contínuo e alto de um motor à gasolina vindo dali de dentro. Lentamente a iluminação na
delegacia foi sendo restaurada, apenas uma lâmpada no centro do hall principal, mas já
era suficiente para todos os presentes se enxergarem.

O detetive McCam se aproximou a passos lentos da mesa onde se encontrava a garrafa


de café, pegando-a e se dirigindo para a copa. Agia com estrema naturalidade. Enquanto
andava, falou aos cavalheiros.

- Sejam bem-vindos à nossa humilde estação, senhores. - aumentou o tom da voz quando
entrou na copa, a fim de se fazer ouvir por todos. - A notícia boa é que a nevasca se foi,
poderemos transitar por aí. A notícia ruim é que existem árvores caídas por toda a parte.
Imagino que alguma tenha caído sobre uma linha de transmissão. Vamos percorrer os
postes a partir daqui até a subestação de energia que fica na saída norte da cidade. Se for
algo simples de resolver, nosso engenheiro elétrico dará conta do serviço para restaurar
a energia. - voltou da copa com um copo simples de vidro em mãos, experimentando um
gole do café e fazendo uma leve careta. - Merda, está frio. Sei que ainda é madrugada e
talvez os senhores quisessem descansar um pouco mais ainda, mas se puderem me
acompanhar nessa empreitada, conversaremos sobre o caso pelo qual vocês foram
convidados para conduzir. Acho uma tremenda bobagem, mas tenho juízo o suficiente
para não contrariar os superiores. O que me dizem?

A tensão que havia anteriormente por conta de todo aquele ocorrido ia se amenizando.
Arturo, entretanto, se sentou de volta no banco onde estivera dormindo, parecendo muito
pálido. Não respondeu nada de início, mas logo retrucou ao homem.

- Acho que não estou em condições de acompanhá-los. Estou me sentido mal.

Erl voltava nesse exato momento, circulando pela sala e ligando as outras lampadas da
sala principal da delegacia. Notou o estado do jovem Madero e resolveu buscar um copo
d'água para o rapaz.

Ludovic, agora mais calmo, relembrava dos momentos seguidos logo que acordara. Sua
mente não havia conseguido lhe responder sobre o que poderia ter sido aquele som que
ouvira e o deixara um tanto perturbado.

McCam se sentou na cadeira onde antes Erl estava, à frente da estação de rádio,
manipulando o equipamento e tentando um contato.

- Quinta para patrulha móvel, copia?

A única resposta que teve foi a estática. Ele se levantou, terminando de beber o café no
copo de uma vez só, fazendo uma careta quando terminou. Agora que a sala estava mais
bem iluminada e ele parara virado para os estrangeiros, puderam ver melhor suas feições.
Era uma homem caucasiano, de aparência agradável. O nariz era reto, tal como o queixo,
fazendo sua face lembrar um elmo dos antigos gladiadores, emprestando um semblante
imponente ao homem. A pele da face era lisa, desprovida de pelos. Os olhos, um pouco
baixos, eram de um azul profundo e os dentes eram brancos e bem alinhados.

- Então, senhores? Vamos dar uma volta? Podemos tomar café da manhã na Molly`s
antes de buscar Robert, nosso engenheiro.

Se aproximava das 4h da manhã no relógio pendurado na parede da delegacia. Ali dentro


ainda estava frio, mas bem menos do que jamais estivera. Porém eles podiam imaginar
que do lado de fora estaria muito pior, e com certeza o chão estaria coberto de neve.
Toda a tensão que surgira com os últimos acontecimentos pareceram se dissipar com a
grossa risada do detetive francês. McCam sorri de canto de boca, achando graça da
risada do homem. Ambos se cumprimentam. O aperto de mão do canadense era firme.

- Silas McCam. - disse sem rodeios.

Todos ouviam a opinião de Ludovic sobre sair da delegacia. Arturo meneou a cabeça em
concordância ao passo que o doutor Allan lhe perguntava se ele estava bem, mas não
estava. Ele segue as instruções do médico um tanto desconcertado. Por fim agradece
timidamente e se dirige até a copa.

O dr. Allan então também se apresenta para o detetive recém chegado. Ambos apertam as
mãos e Allan também descobre que o aperto do detetive era firme.

- Satisfação, doutor.

Erl vai até a copa e retorna com Arturo enquanto os o francês e o alemão ia se arrumar
para sair. O jovem chileno vinha com um copo de água e se dirigia de volta ao banco
onde estivera dormindo. O policial gordo ajuda a recolher a mala do rapaz.

Quando todos se apresentam, prontos para sair, Erl se aproxima dos três homens que
estavam prontos para sair. Ele fala um pouco baixo, para que Arturo não ouvisse.

- O garoto não parece bem. Talvez seja melhor ele ficar aqui e descansar mais. Quando
terminar meu turno eu o levo até o Lis'Inn, e os senhores poderão se encontrar com ele
lá. Seus quartos já estão reservados na hospedaria. - falou em tom preocupado.

O detetive McCam lançou um olhar de soslaio para o rapaz e deu de ombros.

- Que seja. Melhor irmos andando, temos muito o que fazer e o dia ainda nem clareou.
Ele voltou a colocar o cachecol, mas dessa vez não cobria o rosto. Andou a passos
firmes até a porta de saída da delegacia e a abriu. Um vento frio invadiu o ambiente e ele
se colocou para fora, esperando que o dr. Weiss e o dt. Ludovic o seguissem.

O lado de fora da delegacia era um misto de branco e preto. O céu estava escuro até
próximo do horizonte, mas o chão estava coberto de neve por toda a parte. A cidade
estava deserta até onde podiam ver e o único som vinha do vento frio que sobrava e
eventualmente balançava os galhos de algumas árvores ali perto. À frente da delegacia
estava estacionado um carro do modelo Peugeot Quadrilette de cor azul marinho com
aparência de ser muito novo. Os pneus do carro estavam envolvidos com uma rede feita
de correntes metálicas, próprias para conduzir com a pista coberta de neve.

O detetive caminhou com passos largos, levantando os pés um pouco mais alto que o
normal, a fim de evitar que a neve molhasse muito as barras da calça. Ele fez um
movimento de mão para que os homens o acompanhasse. Entrou no carro e com um
movimento brusco fez abrir a porta do passageiro. Aguardou que os dois cavalheiros
entrassem para então dar partida no carro. O carro revolveu duas vezes antes de o motor
rugir. Um punhado de fumaça foi expelido pela parte de trás do veículo. Ele começou a
acelerar, fazendo o motor roncar, enquanto manobrava para ficar de frente para a pista.

Eis que logo que estavam saindo do estacionamento, puderam ver um cavaleiro montado
se aproximando pelo lado direito da via. Um imponente cavalo de cor castanho escura
carregava em seu torso um homem negro, na casa de seus cinquenta e poucos anos,
usando calça e casaco pesados sobre uma magnífica sela de montar. À vista carregava
um rifle no coldre da cela. Usava um chapéu baixo e mostrava uma expressão séria de
poucos amigos. O cavalo se aproximou do carro a trote lento. McCam olhou de lado para
o cavaleiro, estreitando um pouco os olhos, como se tentasse focalizar melhor a imagem
do homem, tentando ver se o conhecia. Por fim, chegou à conclusão de que era um
estranho.

- Bom dia, crioulo. Está perdido? - a maneira com que falou foi completamente natural,
não soando de forma pejorativa. Enquanto falou, tocou na aba do chapéu, indicando um
cumprimento informal.

O motor do carro continuava ligado, causando um ruído alto que obrigava os homens a
falar um pouco alto para que pudessem se ouvir mutuamente.
O cavaleiro fez sinal para que o motor do carro fosse desligado. Polidamente, o detetive
McCam, que era fácil de se identificar como membro da polícia visto o brilhoso distintivo
metálico que carregava na fronte do chapéu preto, desligou o motor do carro a tempo de
ouvir o que o negro tinha a falar. A resposta imediata foi um olhar de desconfiança para o
negro, seguido de um giro de cabeça em direção aos outros dois senhores que estavam
no carro, acompanhado de uma expressão de dúvida. Como nenhum deles respondeu
nada, se voltou para o homem sobre o cavalo.

- Qual o seu nome? - esperou ele responder e logo continuou - Venha conosco.

Voltou a ligar o carro e começou a transitar via a fora, seguindo pela estrada apinhada de
neve. Foi conduzindo o veículo um tanto devagar, de forma que o cavalo do patrulheiro
pudesse acompanhar. Para quem fosse entendido de cavalos, aquele era um animal raro.
Era um Canadian Horse de pelagem castanho escura que estava à beira da extinção. Era
um animal forte, muito resistente às baixas temperaturas e, apesar de não ser um cavalo
muito veloz, era resiliente para grandes viagens sem muita necessidade de descanso. O
grupo então seguiu atravessando a via principal daquele lado da cidade. Percorreram oito
quarteirões antes de fazer uma curva à esquerda. Mais três blocos e se depararam com o
carro patrulha da Quinta Estação de Polícia, o mesmo ao qual o policial Erl tentara
contato por boa parte da noite anterior. O carro estava parado perto da calçada, virado
para a direção de onde o carro de McCam tinha vindo. Não havia ninguém dentro dele.

- Está explicado. - comentou o detetive antes de seguir em frente.

Logo à frente, uma avenida se bifurcava em duas. McCam pegou a via da esquerda,
entrando numa rua longa, repleta de estabelecimentos comerciais de ambos os lados da
via. Dois deles já mostravam uma iluminação que atravessava as janelas, obviamente
fornecida por velas e lampiões; as duas também dispersavam fumaça que saiam de suas
chaminés. Passaram em frente à primeira, posicionada do lado direito da via, a loja do
padeiro que já estava a bom ritmo de trabalho. Mais à frente, alcançaram o segundo
estabelecimento iluminado. Uma placa posta na calçada logo à frente da loja foi iluminada
pelo farol do carro e mostrava os dizeres "Molly's". O detetive parou o carro e desligou o
motor. Olhando pela grande janela de vidro, podia-se ver dois policiais fardados do lado
de dentro, sentados em uma das mesas de dentro colada à janela. Eles fizeram um aceno
para o detetive McCam. Ele convidou a todos para entrar com um gesto simples,
incluindo o cavaleiro.

- Pode amarrar o cavalo ao poste aí ao lado. Venha conosco.

Ludovic, apesar de não estar tão bem assim, não chegou a passar mal durante a viagem,
o que era um alívio. O dr. Allan foi quem mais conseguiu visualizar o trajeto.

Quando todos entraram, uma senhora branca e rechonchuda, na casa dos cinquenta
anos, com as bochechas vermelhas, se aproximou sorrindo... pelo menos até ver o negro
que vinha logo atrás. O sorriso desapareceu, se transformando numa expressão
taciturna. Ela lançou ao detetive um olhar cheio de significados. Ele apenas deu de
ombros.

- Bem-vindos à minha humilde casa. Podem deixar seus casacos e chapéus aqui no
pendurador, por gentileza. Batam os sapatos no tapete antes de entrar. Sintam-se à
vontade. - a última parte falou quase que a contra gosto. A voz era fina e levemente
estridente, mas ela parecia simpática, dentro do possível.

McCam foi o primeiro, retirando o casaco, o cachecol e o chapéu, colocando-os em um


dos ganchos dispostos na parede esquerda logo na entrada da loja. As paredes eram de
madeira pintada num tom verde pastel claro, tal como o balcão que ficava logo à frente,
formando um corredor com a frente da loja. O ambiente estava quente, muito melhor do
que em qualquer outro lugar que já estiveram desde que colocaram os pés no Canadá. O
motivo era uma lareira disposta no fundo do ambiente, que queimava e crepitava ao
estalar da lenha contida ali. As seis mesas eram retangulares, dispostas em duas fileiras,
uma encostada na grande janela à direita de quem adentrava, que dava para o lado de
fora; outra disposta à esquerda, encostadas ao balcão que terminava numa parede de
pedra, a qual emendava com a lareira. As mesas e cadeiras eram feitas de pinheiro com a
superfície polida e envernizada, um excelente trabalho manual. Estavam cobertas com
grossos panos de mesa de cor marrom. A parede era decorada com alguns retratos
ilustrados da cidade quando de sua construção. Sobre a testeira da lareira, havia uma
cruz feita de madeira com aproximadamente quarenta centímetros de altura, adornada por
uma estatueta que simbolizava Jesus Cristo pregado à cruz. Pelo lado de dentro do
balcão, havia uma porta pesada de madeira na parede de pedra.

Os dois policiais de fardas pretas se levantaram, fazendo um aceno respeitoso de cabeça


para o detetive. O primeiro era magro e baixo, com o pescoço fino e um bigode grosso
cor de mel, assim como seu cabelo, curto e penteado para trás com gel fixador. O outro
tinha porte atlético, de estatura média, a barba fina por fazer, tinha cabelos castanhos
bem aparados no estilo de corte militar, de orelhas um tanto apontadas para fora da
cabeça. O magro foi quem falou.

- O carro parece ter congelado por dentro, McCam. Parou de funcionar. Nem mesmo o
rádio está dando sinal de vida.
O detetive passou por eles, praticamente ignorando o que o policial havia dito, se
dirigindo à mesa da direita mais próxima da lareira. Indicou para que os três estrangeiros
se sentassem nas cadeiras daquela mesa enquanto voltou para perto dos policiais.
Enquanto passava, Harmon pôde ver o olhar dos policiais sobre si. McCam falou com os
dois policiais num tom mais baixo, de forma que os outros cavalheiros não ouvissem. O
menor entregou para ele um papel. Ele leu por um momento e depois se aproximou do
grupo, se sentando na última cadeira vaga. Os policiais logo deixaram o recinto.

- Sr. Harmon. - disse num tom mais solene do que o de costume - Peço desculpas pelo
tratamento que vai receber em sua estadia na cidade. As pessoas aqui não estão
acostumada com negros. São mais comuns no sul do país. - ele então se virou para os
outros dois, colocando o papel sobre a mesa. - O sr. Harmon vai substituir o patrulheiro
Benjamin Hursk, o homem que deveria ter feito a viagem para o Canadá. O sr. Madero
nunca deveria ter vindo, ao que parece. Foi um mal entendido do departamento deles. De
qualquer forma, arranjaremos estadia para ele até que novidades surjam.

Era possível ler o cabeçalho do papel sobre a mesa como "Repartição Geral dos
Telégrafos". McCam fez um sinal com a mão para que Molly se aproximasse. Ela veio com
um bloquinho e um lápis grosso de grafite nas mãos, pronta para anotar os pedidos.

- Bom dia aos senhores nessa manhã fria. Eu sou Molly Flowers, sua anfitriã. Para o café
da manhã de hoje temos torta assada de maçã, panquecas doces com Maple Syrup,
Tourtière recheado com frango e nozes. Para beber temos leite, café preto, cappuccino e
uma variedade de chás: Blueberry, Raspberry, Ginseng, Sleepy Time, Green Tea, Green
Tea With Lemon, Green Tea With Lemon and Honey, Liver Disaster, Ginger with Honey,
Ginger without Honey, Vanilla Almond, White Truffle Coconut, Chamomile, Blueberry
Chamomile, Decaf Vanilla Walnut, Constant Comment e Earl Grey. O que desejam?

Ela espera a resposta de cada um, anotando seus pedidos. McCam deixa cada um pedir o
que querem, depois faz seu pedido.

- Vou querer a Tourtière, um copo de leite quente e café puro, por favor. - depois que ela
se afasta ele se volta para os senhores à mesa. - Se incomodam em deixar o sr. Harmon à
par do caso? E podem me perguntar o que quiserem também. Vamos logo tirar todas as
dúvidas enquanto estamos aqui tranquilos. O dia vai ser longo e não podemos perder
tempo.
Molly mostrou um sorriso radiante quando Ludovic a cumprimentou e elogiou seu
estabelecimento. Suas bochechas vermelhas pareceram corar, se é que era possível.

Se seguiu então os pedidos dos estrangeiros. Ela anotou cada um e sorriu à maneira
como o francês mesclava palavras em sua língua materna ao inglês carregado de
sotaque. Ao senhor negro, Molly parecia torcer o nariz, quase literalmente; mas sob um
olhar reprovador por parte de McCam e do doutor alemão ela pareceu respirar fundo e
respondeu educadamente, dizendo que logo traria os pedidos de todos.

Foi nesse meio tempo em que a conversa que realmente importava teve início. Entre as
apresentações formais de todos ali à mesa, uma série de questionamentos foram
levantados. McCam, com um olhar sério, respondia a cada um. Deixou um suspiro que
lembrava um sorriso simples escapar quando observou o papel que Ludovic colocava
sobre a mesa, e pôs-se a responder às indagações.

- Happer, de fato, era um trapalhão. Entenda, nenhum de seus crimes eram violentos. O
homem realmente tinha alguma coisa faltando dentro da cabeça. Essa pergunta é muito
relevante. Fora a única vez que o Juiz, de fato, iria trancafiá-lo antes do julgamento. Mas,
contra todas as expectativas, ele tinha dinheiro para a fiança. Recebeu uma carta com
dinheiro e instruções de como usar as brechas da lei para recorrer àquele crime em
liberdade e foi isso que fizemos. - se recostou contra a cadeira, pousando uma das mãos
sobre a mesa. A partir desse momento, passou a gesticular com a mão, como se
colocasse e tirasse peças invisíveis num tabuleiro inventado sobre a mesa. - Happer
desapareceu por um tempo antes do último crime. Estava em condicional, então seu
desaparecimento poderia significar que estava foragido. Mas duas semanas depois
apareceu no trabalho, como se nada tivesse acontecido. Seu agente da condicional o
visitou, indagando onde ele havia estado. O homem simplesmente não sabia do que o
agente estava falando. Ele tinha a certeza e convicção de que era segunda-feira, o dia
seguinte a seu desaparecimento. Um psicólogo o atendeu depois desse episódio e
constatou o que havia sido registrado pelo agente da condicional. Estranho, mas não o
suficiente para conduzir alguma investigação. Uma semana depois, Happer quase mata
Bobby Cayne do coração quando surge a seu lado, dentro do balcão de atendimento logo
antes de fechar sua farmácia. Happer ameaçava matar Bobby enquanto brandia os
punhos na frente do rosto caso Bobby não lhe entregasse remédios para enxaquecas.
Alguém viu o ocorrido e chamou o pessoal da 1st Station, que deteu Happer... com $42 no
bolso, o suficiente para comprar uma caixa de remédios para enxaqueca. No dia seguinte,
quando acordou no xadrez, Happer perguntava o que estava fazendo ali, dizendo que não
se lembrava de nada. O juiz achou que ele precisava de cuidados especiais, mas preferia
deixá-lo preso enquanto o estado não liberava um atendimento especializado a ele. A
carta chega no dia seguinte, sem nenhum registro de remetente. Happer volta ao trabalho
no dia seguinte. Na mesma madrugada ele é encontrado morto.

Ele termina sua explicação com efeito, entortando a cabeça e fitando cada um dos
cavalheiros. Aguarda o novo questionamento de Ludovic para voltar a responder.

- O mercado fica no setor oeste da cidade, tal como a 1st Station e, acrescento, a farmácia
ao qual ele supostamente tentou assaltar. Sua casa fica ao norte, próximo à saída da
cidade, por onde passaremos a seguir. A represa fica mais ao norte ainda, quase 12km de
distância além da saída da cidade. - e por fim complementou depois da pergunta de
Ludovic que foi sucedida pelos comentários do doutor Allan - A autópsia já deve estar
pronta, mas com a tempestade de ontem não tive como ir até o Hospital para ter com o
Dr. Carlson. Podemos passar lá antes de ir até a subestação para pegar o resultado e, se
ele estiver lá, conversar com ele, mas brevemente de preferência.

Logo em seguida foi a vez de Harmon fazer uma pergunta simplista. McCam mostrou um
sorriso torto, pouco agradável, como se estivesse se lembrando da cena.

- Comeram-lhe as entranhas. Algum animal selvagem. Mas nada que conhecemos na


redondeza poderia ter feito algo daquele tipo. O Dr. Carlson tem uma cópia da fotografia
que foi tirada do corpo na cena do crime. Certamente o senhor poderá ver por si mesmo.

Molly veio com duas bandejas logo em seguida, pousando os pratos, copos e xícaras à
frente dos senhores, cada um de acordo com o pedido que havia sido feito. Havia de se
notar que a porção de panquecas entregue a Ludovic era mais avantajada do que
quaisquer outros pratos que foram servidos à mesa. Enquanto se afastava, Molly deu
uma piscadela na direção de Ludovic, de forma que apenas ele e Allan viram por seu
posicionamento à mesa.

A comida estava quente e muito saborosa, tudo no ponto. O café era consistente e muito
agradável, preparado conforme o pedido de cada um. O chá Earl Grey, entretanto, era
sublime ao paladar, num ponto perfeito. McCam começou a comer de forma ligeira sem
rodeios, mas continuava à disposição para novos questionamentos. Indicou com o garfo,
que agora segurava na mão, para que os senhores fizessem o mesmo, a fim de que
terminassem depressa aquele café da manhã e dessem continuidade às devidas
atividades do dia.
Depois do relato de McCam, Ludovic faz sua primeira observação, seguida de uma
dúvida. McCam responde de pronto.

- Ele nunca tinha apresentado esse comportamento até o episódio citado.

Em seguida, fez uma repreensão que causou um franzir de cenho do detetive canadense.

- A cidade está sem energia e alguns serviços dependem disso, inclusive o hospital.
Espero que entenda minha urgência em buscar o engenheiro para que possamos tentar
resolver esse problema o quanto antes. Além do quê, não sabemos por quanto tempo o
clima continuará firme.

O patrulheiro florestal tomou a palavra, falando de forma ríspida quando se referiu a


Ludovic. Um pequeno atrito veio à tona, mostrando que o negro era um tanto mal
educado no tratamento. McCam não esperava menos de um negro, pelo menos ao que lhe
era familiar. Ludovic tentou se impor, McCam puxou ar para falar em repreensão, mas
achou que seria prudente não se meter naquele assunto em particular, pelo menos
enquanto não fosse sério.

Por fim, o detetive francês fez um questionamento casual para o médico alemão,
estendendo-a a McCam. O dr. Weiss, depois de pensar a respeito, diz se recordar de algo
parecido. McCam fitava os dois com uma leve seriedade.

- Escutei algo sim. Mas foi estranho, pensei ter sido algum punhado de neve que tivesse
escorregado do telhado de alguma casa por conta do eco produzido na rua. Mas agora
que falaram em rugido, poderia ser.

Depois disso o canadense ficou pensativo. Allan continuou no fio da conversa inicial,
colocando sua opinião sobre o assunto e finalizando com uma pergunta, que também foi
respondida pelo detetive.
- Foi solto, simplesmente. Não havia uma determinação do juiz que condicionasse a
libertação dele nos termos que foram apresentados.

O detetive terminou de comer e tomou seu café. Se colocou recostado na cadeira,


olhando para Ludovic, como se seu olhar incômodo pudesse fazer o francês terminar sua
refeição mais rapidamente. Assim que todos terminaram de comer, McCam fez um sinal
para que Molly viesse e recolhesse os pratos; e assim ela fez.

- Então, senhores, o que acharam? - ela perguntara para todos, mas seu olhar estava fixo
apenas em Ludovic enquanto as respostas surgiam.

Depois disso McCam se ergueu, agradecendo a comida e dando sua opinião, dizendo que
a comida estava deliciosa, como sempre. Por fim pediu licença e se levantou da mesa, se
encaminhando até o toalete, mas não antes de lançar algumas palavras para o grupo de
cavalheiros.

- Decidam qual vai ser o itinerário que faremos. Até onde conversamos, temos os
seguintes lugares para ir: A casa do engenheiro, o hospital, a casa de Happer, a
subestação de energia e o local onde o corpo foi encontrado.

Passou por trás do balcão e sumiu pela porta que ficava ao fim do mesmo pelo lado de
dentro, deixando os três homens a sós. Poucos minutos depois ele estava de volta,
acertando o valor de sua refeição com Molly e se preparando para sair.
O Dr. Allan observava com certo interesse o desenrolar da conversa entre Harmon e
Ludovic. Ele não estava à vontade com aquilo, estava claro, mas parecia ver ali uma
oportunidade de aprender mais sobre o feitio de cada um dos novos companheiros de
trabalho.

O francês dá sua opinião sobre se dividirem para realizarem mais tarefas em menos
tempo, dividindo o grupo de acordo com seus conhecimentos e especialidades. Harmon
ainda faz uma pirraça direcionada a Ludovic, mas este se esquiva de maneira elegante;
inclusive pagando pelo café da manhã do senhor negro. Molly agradece a gorjeta e pede
para que eles retornem para o almoço, se puderem, novamente sorrindo diretamente para
o senhor francês.

Depois de Harmon voltar do banheiro, o detetive McCam já estava ciente da decisão do


grupo, visto que Allan também concordara com a abordagem de Ludovic. O canadense
coça o queixo relaxadamente sobre o problema do transporte. Depois de um instante ele
parece ter um estalo mental, sorrindo de soslaio.

- Vou conseguir um transporte para vocês dois. - disse se referindo a Ludovic e Allan. - O
carro é necessário para se atravessar a estrada com neve mais rapidamente. Mas aqui na
cidade tenho certeza que conseguirão transitar bem com uma charrete.

Ludovic Bardin

Quase meia hora depois, Ludovic e Allan estavam sentados sobre uma charrete puxada
por um grande pônei de tração. Sua pelagem era de um marrom profundo e as patas tão
brancas que se confundiam com a neve por onde pisava. A charrete tinha uma cobertura
côncava que protegia a parte de cima dos acentos, mas não a parte frontal. Enquanto não
chovesse, ela serviria muito bem. Além da charrete, eles receberam um mapa baixo da
cidade, com os pontos relevantes marcados nele, para ajudá-los a guiar-se.

- Sempre que possível, deem de beber para o pônei. Marquemos de nos encontrar de
volta na Molly`s às 12h, sim? - disse McCam se despedindo.

O pônei era do irmão mais novo de McCam, que por sinal trabalhava na colcheira central
da cidade. Ele havia alugado por dois dólares o dia. Talvez Ludovic preferisse aquele
transporte dali em diante, pelo menos enquanto estivesse naquela cidade cuidando
daquele caso. Agora a dupla deveria decidir para onde seguir efetivamente. Caso
quisessem traçar outros planos, estavam livres para aquilo. Mas se o plano continuava o
mesmo, certamente seguiriam para a moradia de Happer.

John Harmon

Depois de pegarem a charrete para os dois outros estranheiros, McCam ofereceu estadia
para o cavalo de Harmon, de forma que eles pudessem transitar mais rapidamente com o
carro. Não forçaria a situação, mas tentou convencer o negro de que era a melhor
abordagem, além de que na colcheira o cavalo estaria seguro e bem tratado - McCam
encarregaria o próprio irmão daquela tarefa, inclusive sob uma afetiva ameaça de morte
caso algo acontecesse ao equino.

Com ou sem cavalo, McCam seguiu junto de Harmon até a residencia do engenheiro
elétrico. Este era um homem alto, magro e ruivo, já com poucos cabelos na cabeça, o que
contrastava com sua farta barma que crescia abaixo do queixo. Harmon entendeu que as
notícias corriam rápido naquela cidade, pois mesmo estando ainda muito cedo, o homem
já estava à par da situação, sabendo para onde iriam e o que tinham de fazer. Ele
carregava consigo uma grande caixa de ferramentas, feita de metal, além de um capacete
de proteção que trazia embaixo do braço.

Foram conversando amenidades por todo o caminho. Iam avançando para o norte, rumo à
saída da cidade. O frio apertava, mas Harmon podia sentir que ele ia diminuindo à medida
que a luz do sol ia preenchendo o dia. Passaram por vários bairros, com casas, lojas,
escola e pela brigada de incêndio. Por fim os limites da cidade ficaram para trás, e se
viam numa estrada ladeada por arvores cobertas de neve, e uma linha de postes de
transmissão de energia que se alinhavam pelo lado direito da estrada.

Antes de chegar à subestação de energia, encontraram a fonte do problema de


distribuição. Um poste havia caído sobre a estrada, causando o rompimento dos fios de
tensão. O carro parou onde a estrava estava bloqueada. Do lado oposto já havia um
caminhão e um carro parados. Quatro homens pareciam avaliar a situação de como
remover aquele obstáculo da pista. Ao se juntar a eles, McCam e o engenheiro, de nome
Robert Follen, conversaram sobre o ocorrido. Instantes depois McCam pediu que Harmon
se aproximasse da base onde o poste havia se quebrado.

- Dê uma olhada. O que acha?

O detetive se referia a claras marcas de corte contra a madeira do poste. Muito


provavelmente alguém havia derrubado aquela peça. Mas havia algo estranho no padrão
das marcas, como se tivessem usado um objeto de quatro lâminas para romper a
madeira.
O céu já se mostrava claro, mesmo estando completamente nublado. Certamente o sol já
despontara no horizonte. O clima frio ainda era predominante, mas o vento estava ameno
e a iluminação parecia trazer um sentimento reconfortante de calor. Estava melhor do que
na madrugada, mas ainda frio o suficiente para incomodar o velho negro estadunidense.
Ali perto podia-se ouvir apenas a conversa dos homens na pista e um leve assobio do
vento que vinha da direção leste.

A análise minuciosa do poste é feita por Harmon. Observando atentamente as entradas


feitas na madeira, conseguiu perceber que o que quer que tivesse sido usado para talhar
aquela base, eram feito com quatro peças grossas e irregulares, com tamanho superior a
10 cm e largura de cada ponta de aproximadamente 2,5cm. Conseguiu notar também que
o objeto não devia ser muito afiado e que a força empenhada no golpe era absurdamente
grande, visto que claramente havia sido uma pancada apenas. A única coisa que ele
poderia imaginar é que talvez fosse algum tipo de garfo de feno antigo feito todo de
metal, atado a uma caminhonete que acelerou contra o poste. Um homem, mesmo que
grande e forte, não seria capaz de derrubar um tronco daquela grossura com uma única
estocada.

Enquanto observava o local, se posicionou de forma que seu pé escorregou levemente


para dentro de um sulco mais aberto no gelo logo ao lado do poste caído. Ele conseguiu
divisar que aquilo era uma porção de neve que havia sido pisada antes de uma outra
camada de neve ter caído por cima. Olhou um pouco mais adiante e reparou que havia
outro ponto marcado no chão... e outro... e outro, em intervalos de pouco menos de dois
metros entre um e outro, com um leve desvio de ângulo entre um ponto e outro. Poderiam
ser pegadas de alguma coisa bípede; se fosse um homem, ele deveria ter chegado ali
correndo a passadas longas, pois eram relativamente longe uma da outra para alguém
que estivesse caminhando. Além disso, não haviam marcas de qualquer tipo de veículo
que corroborasse com a teoria da caminhonete com o garfo de feno. Teria que pensar em
alternativas a essa hipótese.

McCam observava o trabalho do patrulheiro sem dizer nada. Sua expressão era séria,
como se estivesse fazendo algum tipo de esforço mental.

As palavras de Harmon fizeram o rosto de McCam mudar da expressão séria para a de


credulidade. Era como se o patrulheiro tivesse usado as mesmas palavras que se
passavam pela mente do detetive. Ele continuou sem dizer nada, aguardando a avaliação
do negro. Este, por sua vez, deu uma leve escorrega e, depois de olhar o macio desnível
onde havia metido o pé, reparou nos padrões que haviam dali em diante.

Depois de ser erguer, o patrulheiro apontou na direção da pista que encontrara, dando
um alerta para o detetive. Este observou com certa curiosidade, sem sair do lugar, e
então voltou para perto da estrada, junto aos outros homens que ali estavam.

- Senhores, precisaremos dar uma olhada aqui nos arredores. Sinto dizer, Robert, mas
não poderemos fazer o reparo imediatamente. Se alguém derrubou esse poste
propositalmente, precisamos saber quem.

Ele foi até a margem oposta da estrada, saltando sobre os fios de alta tensão que
estavam jogados sobre o chão, partidos. Sinalizou para Harmon, que iniciava uma
caminhada na direção das pegadas. O detetive falou algo, para que ele pudesse escutar.

- Tem outras aqui. Imagino que ele veio por aí e continuou para essa direção aqui.
McCam voltou até onde os homens estavam. Entrou em seu próprio carro e fez uma
passagem que rodeava o poste. Com as correntes de suas rodas e a ajuda dos homens, o
carro não atolou e fez uma passagem segura para que o caminhão também pudesse
contornar o poste sem que atolasse. O engenheiro foi enviado junto com os homens com
a missão de trazer mais homens e maquinário para substituir o poste caído, afinal, aquilo
não era serviço apenas para o engenheiro.

Por fim, o detetive sacou a arma e foi atrás de Harmon, que já estava seguindo aquelas
pegadas. A neve ali era irregular, a parte superior era uma camada fina e fofa, mas logo
abaixo, haviam quase dez centímetros de neve pesada, dificultando a movimentação,
além de deixá-lo cansado mais rapidamente. Mesmo assim, quase quinze minutos depois,
chegaram a uma linha de árvores que parecia formar um bosque de pinheiros. Eram
árvores esparsadas e o chão começava a se demonstrar rochoso por baixo da neve, ao
invés do pasto liso que havia anteriormente.

Os rastros ali estavam mais difíceis de seguir, apesar de conseguir identificar que parecia
se tratar de uma pegada canídea, de grande porte. Aquilo, efetivamente, era a coisa mais
estranha que Harmon já vira. Um canídeo bípede de boa estatura, a julgar pelo tamanho
da pata impressa na pegada, fazia vir à mente as antigas histórias de lobisomens. Mas
será que um homem como ele acreditaria naquilo?

Logo uma gota de sangue pôde ser vista no caminho, manchando a alva neve junto aos
grossos cascalhos que haviam ali. Mais adiante, mais gotas até chegar numa grande
mancha de sangue espirrado no chão. Os rastros continuaram até chegarem perto de
onde passava o rio, descendo do norte, rumo ao sul. As beiradas estava parcialmente
congeladas, mas a água descia com uma corrente calma. Numa árvore ali perto se
depararam com uma cena horripilante.

Havia um corpo semi-nu de uma mulher dependurado pelos pulsos à frente do tronco a
árvore. Havia, sobre sua face, uma estranha máscara rústica feita com o que parecia ser o
cranio de um cervo, visto que haviam cornos presos em suas extremidades superiores
laterais. O busto da mulher estava nu, com os seios volumosos à mostra. O abdômen
estava dilacerado, aberto com um corte reto que começava abaixo do externo e ia até a
área do monte de púbis. Era fácil de notar que aquela mulher estivera grávida pelo
tamanho das porções separadas do ventre. Um pano branco estava enrolado abaixo da
cintura, cobrindo as genitálias, sendo que a parte frontal do pano estava empapada de
sangue. Os braços, pernas e pés também estavam nus, sendo que os pés estavam
machucados com pequenos cortes e hematomas. Os pulsos estavam amarrados
separadamente com uma corda de canhamo simples, amarrada num dos troncos frontais
da árvore. O corpo estava suspenso a aproximadamente quarenta centímetros do chão.

- Jesus Maria José. - Era McCam, com a voz carregada, quando se aproximou de Harmon
enquanto observava a cena.
O patrulheiro analisava friamente aquela cena, sentindo um certo pesar pela mulher
morta. Olhando pelos buracos de cavidades orbitais do cervo, enxergou apenas a
superfície da testa da moça, visto que a posição dos olhos dela ficavam mais abaixo em
relação aos olhos da caveira. As palavras que disseram não tiraram nada do detetive
canadense, que parecia estático naquele momento. Harmon nem sabia se o detetive de
fato havia escutado o que ele falara.

Mas logo o negro se colocou a tirar aquela agourenta máscara, revelando o rosto da
mulher jovem. McCam não fez nenhuma menção de descordar ou impedi-lo. Era uma
mulher branca sem muita beleza. Os olhos eram pequenos e próximos e estavam
levemente inchados. O nariz era fino e alongado, mostrando-se um pouco
desproporcional para o tamanho do rosto. A boca tinha lábios que chamavam pouca
atenção, não fosse por um leve fio de sangue já coagulado que escorria pelo canto da
boca, esta com uma coloração arroxeada, provavelmente sinal de algum nível de anemia
ou hipotermia.

- Céus. É Katherine Beegon. Procuramos ela depois que Harper foi encontrado morto.
Soubemos que eles estavam saindo juntos. Ela é filha de um pequeno açougueiro do
subúrbio.

McCam se aproximou um pouco para olhá-la melhor.

- O que diabos está acontecendo aqui? - pareceu engolir em seco. A voz tremia
levemente. - Deus nos ajude. Acho que devemos chamar o doutor e o detetive para
verificar o local. Quer continuar procurando algo por aqui?

Ele girou o corpo, iniciando o caminho de volta até onde estava seu veículo.
O médico estava estacado à porta. Quando Ludovic lhe dirigiu a pergunta ele se demorou
um momento antes de responder.

- É... como se... o mal estivesse aqui. - A voz era quase um sussurro.

Com a verificação visual feita com ajuda das lanternas, Ludovic não viu nada demais no
quarto. Bateu uma nova fotografia e por fim adentrou o quarto. O francês percorreu o
ambiente, ainda sentindo aquela estranha sensação opressora. Nada ali parecia fora do
normal, salvo o cobertor no chão e o próprio quadro.

Allan não demonstrou nenhum interesse em verificar o quarto, apenas indo fazer o que
lhe fora pedido, caminhando devagar até o cobertor no chão e puxando com as pontas
dos dedos, de forma a abri-lo no chão.

- Está molhado. Acho que é só água. - disse ainda num sussurro depois de arriscar
cheirar a peça.

Por fim o detetive estacou de frente para a moldura sem ilustração. Quando piscou os
olhos, quase teve um ataque cardíaco. Em sua mente, uma imagem foi projetada dentro
daquela moldura. Era uma figura encapuzada com um manto completamente negro que
lhe cobria todo o corpo e a face. Na frente dela, haviam um homem e uma mulher, nus, de
costas para o espectador e de frente para a figura negra. Foi tão rápido e tão chocante,
num milésimo de segundo, que não deu pra reter a imagem na mente, mas o susto o
fizera recuar involuntariamente, caindo sentado sobre a cama que estava logo atrás de si.
Allan pareceu assustar-se com o rangido da cama e se colocou ao lado de Ludovic,
preocupado.

- O que foi?

McCam anuiu com a cabeça à resposta de Harmon. Ele deu mais uma olhada na vítima
antes de começar a se afastar, mas parou por um segundo.

- Tome cuidado. Não quero ter que lidar com seu corpo também.

A maneira com que o detetive falou era mais de preocupação do que provocação. Ele
voltou pelo caminho que tinha feito, seguindo as pegadas de volta.

John agora estava só com o corpo, a neve e todo aquele mistério. Havia de se notar que
era um homem corajoso, talvez a idade trouxera a imprudência carregada com nada a
perder. Fosse o que fosse, o patrulheiro tratava de fazer seu trabalho. Verificou os
arredores da cena do crime, analisando a neve. Não foi difícil encontrar o mesmo padrão
de pegadas caninas próximo dali. Mas elas estavam levemente mais difíceis de se seguir,
indicando que o local de onde vieram era onde as pegadas eram levemente mais
recentes.
Foi mais algum tempo de caminhada na neve fria. Harmon achava que hora ou outra seus
pés iriam congelar. Mas isso não aconteceu. Ele continuou entrando na floresta, que ia
ficando um pouco mais densa, com mais árvores e um clima mais frio e denso. Tivera que
atravessar o rio em algum momento, mas encontrou um lugar onde haviam pedras que
represavam parte da água e serviram como ponte sem que molhasse a calça. Do outro
lado da margem, as pegadas ficavam mais difíceis de seguir, a neve ali era mais pesada e
até o avançar era mais complicado. Mas o patrulheiro não desistiu facilmente, estava
demasiado intrigado para desistir no meio do caminho.

E o caminho chegou até uma baixa formação de pedras, onde as pegadas praticamente
desapareciam. Teve algum trabalho verificando o lugar até que encontrou uma pequena
fenda nas pedras. Logo à frente dela, haviam algumas pedras maiores, pouco firmes.
Talvez elas estivesse posicionadas na frente da fenda em algum momento. Poderia ser
algum tipo de toca de lobos, ou talvez até um urso pequeno, mas não passava ali um urso
de grande porte. Dentro era bastante escuro, ao que ele podia enxergar apenas olhando
pela entrada da fenda. O céu continuava nublado, branco e com boa iluminação, mesmo
com o sol oculto.

Ludovic se recuperou com um pouco de dificuldades, finalmente respondendo a Allan


que o fitava com uma expressão tensa no rosto. O médico se ergueu com uma estranheza
no olhar para então se voltar para o quadro. Por um momento ele não teve nenhuma
reação.

- Não... Está va... AAAAH!

Ele recuou dois passos para trás, mas não chegou a cair na cama. As mãos estavam
projetadas à frente do rosto, este com uma expressão assustada.

- Que diabos?!
O detetive francês já estava de olho no banheiro, um ambiente pequeno, úmido e mal
iluminado. Havia uma pia, um pequeno espelho, uma prateleira, um sanitário e uma
banheira, todos visivelmente velhos e gastos. A banheira estava cheia de água até a
metade e no canto direito do cômodo, próximo à banheira, havia um buraco quadrado de
aproximadamente 30x30cm, onde os azulejos e o concreto haviam sido removidos,
deixando à mostra um punhado de terra.

Antes que pudesse entrar para analisar, ouviu um baque atrás de si. Allan estava
estendido no chão, à frente da cama, desmaiado.

Mesmo sem saber completamente ao certo como acudir o médico, Ludovic faz seu
melhor para tentar reanimar Allan. Depois de alguns minutos, o alemão parece ir
recobrando a consciência, mas estava claramente abalado e atordoado. Enquanto o
doutor ia se recuperando, Ludovic notou duas coisas específicas. Haviam marcas na
madeira do chão próximos aos pés da cama, como se a madeira tivesse sido atingida
com certa força. E também pequenas lascas meio soltas na beirada da madeira de base
da cama. Envergando a cabeça, consegue perceber que haviam marcas raspadas na
madeira de toda a cama pela parte de baixo.

Allan, que ainda estava deitado no chão, também repara no que Ludovic estava
observando. Ele parecia um pouco mais recuperado. Antes de mais nada, decide contar o
que o fez desmaiar.

- Se você fica com os olhos fechados em direção ao quadro, você pode vê-los se
mexendo! É horrível! Aliás, não olhe!

O alemão começa a se erguer e indica a cama, como se quisesse ajuda para ergue-la.

- Vamos ver o que tem?

Os dois juntos colocam a cama de pé, sobre a cabeceira, revelando a parte de baixo da
cama. O que se viu era perturbador. Haviam várias inscrições entalhadas em quase toda a
extensão de madeira da parte de baixo da cama, nos estrados, na lateral e até na parte
interna das pernas da cama. Eram vários símbolos cabais, que compunham um mural
hediondo. Allan recuou com um pouco de medo.

Enquanto se ajudavam, Alan tentava descrever o movimento dos personagens no quadro


imaginário, se é que podia descrever-se dessa forma.

- É como se aquele... aquela... coisa, estivesse falando com o homem e a mulher! E


depois eles fazem uma reverência... e nessa hora... a coisa... ela me viu! Ela olhou pra
mim. E foi aí que eu apaguei. É tenebrosa demais, Ludovic. Aliás, foi isso mesmo que
você viu?

Se fosse uma alucinação, que fosse individualizada. Mas mesmo com precedentes de
alucinações coletivas, naquele momento era altamente improvável. Mesmo assim Ludovic
continuou a analisar aqueles entalhes, discorrendo sobre o assunto. As palavras do
detetive foram apaziguando o coração do médico alemão e apenas observava o colega à
distância.

- Quanto mais teremos que ficar aqui? Devo confessar que gostaria de ir o quanto antes.

Apesar do receio do colega, Ludovic levou algum tempo analisando e se concentrando


naqueles traços. Eram símbolos rústicos feitos com uma faca de pouco fio. Entre a
simbologia, o senhor Bardin identificou alguns traços que lembravam hierógrafos
egípcios que normalmente ele não saberia o significado, não fosse por estudos prévios
sobre o rito de passagem para a imortalidade dos antigos faraós, com símbolos que
falavam sobre vida eterna e/ou vida após a morte. Além desses, ele só conseguiu
identificar mais dois. Esses não tão misteriosos, eram dois símbolos celtas
representados nas antigas seitas pagãs do druidismo selvagem bretão, estes
representavam o "noivo" e a "noiva" nos rituais de fertilidade da idade das trevas e
outros tempos prévios a este.
Allan ouvia tudo atentamente, mas estava visivelmente abalado a cada palavra de
Ludovic. Ele sacou o que parecia ser um diário de dentro de um bolso interno do casaco
e começou a fazer anotações com um lápis. Era tudo muito fora do padrão. Ludovic pediu
apenas mais um momento para verificar algo no banheiro e o alemão confirmou com a
cabeça, ainda fazendo suas anotações.

O banheiro era carregado de umidade. A pia estava relativamente limpa, tal como a
banheira. Ao se aproximar do buraco, com a ajuda da luz, pode ver que não havia nada
demais ali. A terra não estava exatamente mexida, apenas tinha sido limpada na
superfície, provavelmente onde a ferramenta usada para abrir aquele buraco no concreto
havia acertado a terra escura e molhada. Tinha certeza que não era um local onde alguém
havia cavado para esconder algo ali, mas sim apenas para se chegar até onde havia terra.

Sem muitas conclusões, Ludovic saiu do banheiro e viu que Allan abrira as portas dos
armários. Havia tomado alguma coragem, ao que podia ver, e estava verificando por cima
as roupas, uma caixa com alguns remédios jogados e também um relógio despertador
que estava travado em 3:15.

- Ele não tomava nenhum remédio controlado. Apenas remédio para dor e gripe, sendo
que o de gripe está vencido há meses.
Depois de recolocar a cama da maneira correta, os dois se encaminharam para fora,
saindo do apartamento. Allan passou na frente, e logo em seguida veio Ludovic. Porém,
no momento em que colocou os pés além da porta de entrada, teve a nítida impressão de
que havia alguém parado do lado de dentro. Se virou assustado, mas não havia ninguém
ali. O ambiente continuava vazio. Mesmo assim, essa sensação fez o estomago do
detetive revirar.

Minutos depois os dois cavalheiros estavam do lado de fora. Ludovic fumava um cigarro
enquanto Allan olhava as pessoas passando na rua, agora num movimento tímido da
cidade que já acordara. Viram ao longe o carro do detetive McCam se aproximar
velozmente. Ele parou em frente aos dois senhores. O semblante estava mais sério do
que o de costume.

- Senhores, temos uma outra vítima, uma mulher que vinha se encontrando com Harper.
Vou levá-los até o corpo. O legista já está a caminho com uma equipe para recolher o
corpo, mas pedi que ninguém intervisse antes de nossa chegada. Vamos?

A charrete teria que ser deixada ali por conta da pressa. Já no trajeto, McCam se dirigiu
aos dois.

- Descobriram algo lá?

Ludovic Bardin

Antes de deixarem o apartamento, Ludovic fez suas observações sobre o horário


mostrado no despertador. O Dr. Weiss acompanhou a lógica da narrativa com certa
curiosidade. Ele meneava a cabeça negativamente ao ser questionado se sabia a hora
exata em que havia escutado o estranho rugido ainda naquela madrugada. O interesse de
Ludovic pelo despertador não parecia fazer muito sentido para Allan, mas havia muito em
todo aquele caso que não fazia sentido e o pragmatismo começava a ser deixado de lado.
- A esse ponto eu não descarto nenhuma ideia.

Os dois estrangeiros entraram no carro do detetive McCam com os semblantes mais


amenos do que outrora, quando dentro do apartamento de Happer, mas não o suficiente
para não se fazer notar o abatimento. O canadense não fez nenhum comentário de
imediato, mas lançou um olhar demorado a eles como se tentasse ler suas feições.

Já dentro do carro e a caminho da saída norte da cidade, a conversa se desenrolava.


Allan deixou Ludovic falar por eles. O doutor alemão estava bastante apático e fazia uma
ou outra anotação em seu pequeno diário que trazia sempre consigo. A pergunta sobre o
horário da chegada de McCam à delegacia o fez pensar por um momento.

- Imagino que fosse próximo às três da madrugada. Por quê?

O detetive continuou conduzindo o automóvel para fora da cidade, eventualmente


chegando ao local onde o poste estava caído e dois outros veículos se encontravam no
local, junto de uma equipe de oito pessoas, alguns policiais e outros com uniformes
brancos ou usando jalecos também de cor branca. Aparentemente eles esperavam a
chegada de McCam.

Minutos depois um grupo de seis pessoas foram despachadas para o local onde estava o
corpo. Allan pediu para ficar ali com os outros homens pois não se sentia muito bem. Os
outros membros do grupo eram o Dr. Carlson, homem branco que aparentava ter mais de
cinquenta anos, dois policiais uniformizados; um deles, o mais robusto, Ludovic tinha
conhecido no estabelecimento da Molly; e uma doutora branca de cabelos loiros e
levemente curtos, assistente do Dr. Carlson, que aparentava ter menos de trinta anos. O
grupo atravessou a neve pelo lado direito da estrada, seguindo pegadas frescas até que
chegaram num ponto onde John Harmon aguardava ao lado da árvore onde o corpo
estava pendurado.

John Harmon

O desabafo do patrulheiro contra a natureza teve como resposta apenas o eco de suas
próprias palavras. Um vento frio soprava do leste e suas botas estavam mais molhadas
do que nunca, fazendo seus tendões e juntas doerem a cada passo.

Finalmente ele alcançara o local onde estava o corpo da mulher assassinada, mas não
havia sinal de retorno por parte do detetive McCam. Ele teve que esperar ainda quase
vinte minutos até perceber a aproximação de um grupo de seis pessoas, dentre elas
estavam o detetive Ludovic, o detetive McCam, um homem branco de idade similar à de
Harmon que usava um jaleco branco, dois policiais uniformizados; um deles, o mais
robusto, Harmon já havia visto no estabelecimento da Molly; e uma mulher jovem adulta
loira que também usava um avental branco. Os policiais carregavam uma maca de
resgate, provavelmente para a retirada do corpo depois da condução da investigação.

Todos
Assim que todos se encontraram na cena do crime, McCam foi logo apresentando todos
os presentes.

- Bom, para que possamos trabalhar juntos nisso, melhor que todos se conheçam. Estes
são o doutor Carlson e a doutora Mayla Müller, ambos são médicos legistas. - disse
indicando o médico mais velho e a única mulher do grupo. - Estes são os oficiais
Kennedy e Green. - disse indicando os dos policiais que carregavam a maca para
remoção do corpo. - E por fim, esses são o detetive Ludovic Bardin e o patrulheiro
florestal John Harmon. Eles foram convidados para nos auxiliar nessa investigação
juntamente com outros dois senhores.

Todos que tiveram interessem em se cumprimentar o fizeram. Depois da introdução,


McCam tomou a palavra novamente.

Bem, temos muito o que conversar, mas se possível podemos fazer isso num lugar mais
apropriado. Gostaria de dar atenção total ao exame do corpo e do local para que
possamos retirá-lo logo daí e levá-lo ao hospital. Primeiro peço para que o senhor Bardin
verifique o local junto comigo. Talvez encontremos algo relevante. E logo em seguida os
doutores podem verificar o corpo.

Enquanto Ludovic tomava a dianteira, McCam se aproximou de Harmon, falando mais


próximo a ele para que ele ouvisse bem sem que o detetive precisasse falar alto.

- Encontrou alguma coisa seguindo os rastros? Lembre-se que também existem outros
rastros do outro lado da estrada.
John Harmon

Antes que o grupo se aproximasse da cena do crime, McCam e Harmon trocam algumas
palavras. O relato do patrulheiro faz ressurgir a expressão de confusão no rosto do
detetive. Ele coça o queixo de forma característica, onde uma barba rala começava a
despontar timidamente.

- Vou pensar a respeito. Tome cuidado. Se a coisa não estava no local de onde você veio,
talvez esteja no lugar para onde você vai.

Apesar de se conhecerem a pouco tempo, estava claro para McCam a capacidade do


patrulheiro. O canadense parecia não ter a opinião comum sobre o tom de pele do
homem, talvez algo em seu passado tivesse quebrado algumas barreiras e tabus. E, fosse
como fosse, ele não gostaria de ter que lidar também com a morte do negro.

Voltando até a estrada, Harmon não tem dificuldades em encontrar os rastros que iam
pelo outro lado da margem. Novamente o avanço na região era penoso por conta da neve.
Percorrida uma boa distância num tempo considerável, ele chegou até um declive,
margeado por rochas dos dois lados, formando uma pequena fenda em meio a esparsas
árvores cobertas de neve. O rastro passava por essa fenda. Ali era mais escuro, visto que
ao longo do trajeto, a fenda ia se tornando uma garganta, difícil de se notar de longe com
toda aquela neve pelo lado de fora.

Os rastros ficaram mais difíceis de seguir, tanto por que a neve era mais fina ali quanto
pela iluminação ser mais precária, com grandes sombras projetadas na diagonal para
ambos os lados. As paredes de pedra eram naturalmente irregulares, fáceis de se escalar.
Em dado momento, os rastros simplesmente acabam. A neve à frente estava
completamente intocada.

Ludovic e Mayla

Os devidos cumprimentos são feitos, mais calorosos por parte Ludovic, as conversas se
iniciam enquanto se encaminham em direção à cena do crime. Ludovic puxa assunto com
o Dr. Carlson e a Dra. Müller. Quem responde inicialmente a ele é o Dr. Carlson.

- Sim, de fato conduzi a autópsia na primeira vítima. Algo assustador, diga-se de


passagem. Nunca vi nada parecido aqui em nossa região, e não sou um legista
inexperiente, como deve imaginar.

Para a pergunta de Ludovic, Carlson deu de ombros.

- Ainda não vimos o corpo.

A Dra. Müller questiona o detetive sobre a verificação do corpo e ele trata de acalmá-la.

- Nós não tocaremos no corpo, apenas vamos analisar bem o local para ver se
encontramos alguma pista sobre quem - ou o quê - pode ter feito isso.
O grupo finalmente se depara com a cena. À beira do rio que vinha descendo do norte,
rumo ao sul, onde as beiradas estavam parcialmente congeladas, mas a água descia com
uma corrente calma.

Numa árvore ali perto havia um corpo semi-nu de uma mulher dependurado pelos pulsos
à frente do tronco a árvore. Havia, sobre sua face, uma estranha máscara rústica feita
com o que parecia ser o cranio de um cervo, visto que haviam cornos presos em suas
extremidades superiores laterais. O busto da mulher estava nu, com os seios volumosos
à mostra. O abdômen estava dilacerado, aberto com um corte reto que começava abaixo
do externo e ia até a área do monte de púbis. Era fácil de notar que aquela mulher estivera
grávida pelo tamanho das porções separadas do ventre. Um pano branco estava enrolado
abaixo da cintura, cobrindo as genitálias, sendo que a parte frontal do pano estava
empapada de sangue. Os braços, pernas e pés também estavam nus, sendo que os pés
estavam machucados com pequenos cortes e hematomas. Os pulsos estavam amarrados
separadamente com uma corda de canhamo simples, amarrada num dos grossos galhos
frontais da árvore. O corpo estava suspenso a aproximadamente quarenta centímetros do
chão.

Os primeiros a se aproximarem foram Ludovic e McCam. A imagem da jovem era terrível


de se ver. O ar tinha um toque fúnebre ao redor do corpo. Analisando a cena, Ludovic
conseguiu identificar pequenas pistas. Um pequeno pedaço de tecido negro, de não mais
doi que dois centímetros, estava apertado num dos nós dos pulsos da vítima. Além disso,
conseguiu identificar que os cabelos da vítima tinham pequenos cristais de gelo, como se
tivessem sido molhados em algum momento e a água tendo congelado no cabelo. No
chão, logo atrás da vítima, a neve estava mais funda, mas não havia ali nenhuma marca
de sola de sapatos ou algo do gênero. McCam também notara a parte de neve destoante
e identificou uma fina linha de neve mais assentada fazendo um caminho entre a neve
mais funda posicionada na árvore, atrás de onde o corpo estava pendurado, até a
margem do rio.

Constatado que não havia muito mais a se conseguir da área, os médicos foram
convidados a verificar o corpo. Dr. Carlson e Dra. Müller se aproximaram com suas
maletas. A jovem mulher devia ter entre 20 e 25 anos, estivera grávida e pronta para
amamentar, dado o tamanho e formato dos seios. Pela quantidade de sangue na roupa e
no chão, certamente o bebê deveria ter sido removido enquanto ela ainda estava viva. O
corte era bruto, rasgado. Não havia sido feito por uma lâmina, mas algum outro material
cortante mais rústico. Pela profundidade, era nítido que o bebê não tinha sido atingido
pelo corte. A causa da morte, Mayla podia intuir, fora a grande hemorragia.

- Pobre alma. - lamentou o doutor. - Detetive, temo que tenha um caso de sequestro, além
dos assassinatos.

Talvez ninguém tivesse colocado daquela forma até então. Mas, de fato, um bebê havia
sido retirado de sua mãe. Talvez aquilo fosse um ritual, por conta dos elementos da cena,
mas a morte da mãe não fora um assassinato, propriamente dito. Foi um efeito colateral
da retirada do bebê sem nenhum cuidado.
John Harmon

A única alternativa que Harmon encontrou foi iniciar uma escalada pelas pedras. Não
pensou muito a respeito do que quer que pudesse ser aquela criatura bípede, com patas
canídeas, grandes garras e escalava um paredão horizontal de pedras irregulares, mas
mesmo assim se colocou a subir pelo perigoso caminho acima. A rocha estava gelada ao
toque, mesmo com as luvas de couro. Não era a escalada mais difícil que Harmon já fizera
e conseguiu ir ganhando terreno aos poucos, sem saber ao certo para onde deveria ir.

Enquanto subia, encontrou marcas na pedra, novos arranhões, nos mesmos padrões das
marcas encontradas na pedra próxima á gruta lá dou outro lado daquela região, porém
era claro que a coisa que escalara ali utilizara apenas uma das patas, ou mãos. Ainda
olhando de baixo para cima, há mais de cinco metros do chão, conseguiu vislumbrar um
vão circular. Continuou subindo até chegar na base de um buraco que adentrava na
rocha. Era uma caverna baixa, de aproximadamente um metro e meio de altura. O negro
precisava andar curvado para avançar ali, o que não fazia bem para suas velhas costas.

O local era uma formação natural, ao que podia ver à vista. Tirando a beirada onde havia
um pouco de neve, a parte interna, completamente escura, tinha apenas a pedra natural
portanto não deixava rastros claros para se seguir. Ele deveria decidir agora como
seguiria e se seguiria. Antes, porém, escutou um som baixo á distância. Parecia uma
respiração pesada, mas não conseguia precisar a distância. O único fato que conseguira
constatar era que aquilo era um tipo de túnel tortuoso e não um espaço aberto, pelo
menos até onde a luz natural externa podia lhe proporcionar.

Ludovic e Mayla

À pergunta de Ludovic, o Dr. Carlson responde polidamente.


- Melhor lerem o relatório. Mas o que posso adiantar é que o padrão dos ferimentos não
corresponde a nenhum animal conhecido de nossa região.

Já durante a avaliação do local, Ludovic ia indicando suas análises e batendo fotos do


local. Assim que são permitidos se aproximarem, Dr. Carlson e Dra. Müller se aproximam.
Ludovic indica o pequeno pedaço de pano que encontrara preso à corda, questionando
se não seria comum ao médico. Ele se aproxima e observa com atenção, ponderando
bastante antes de responder.

- Creio que não. Esse tecido é seda.

Logo em seguida, o médico deu espaço para que Mayla pudesse fazer sua avaliação. Ele
queria que ela pegasse experiência e aquela situação era ímpar na vida profissional de
qualquer perito forense. Haviam poucas ocorrências como aquela na história do país
desde 1867, quando o Ato da América do Norte Britânica, estatuto inglês, passou a
vigorar, mudando a maneira de se registrar e conduzir os crimes e a maneira de aplicação
das leis nos municípios e províncias. Na capital, entretanto, nunca houve um caso como
este, envolvendo qualquer tipo de objeto que tivesse conotação ritualística, salvo relatos
muito antigos ou lendas da época da idade média que não se podiam comprovar.

Dr. Carlson se mostrou satisfeito com a avaliação de Mayla, confirmando com a cabeça
tudo o que ela havia falado. Teve a acrescentar, entretanto, apenas um ponto.

- Veja os pulsos amarrados não mostram nenhum abrasão além das marcas da corda, tal
como qualquer avaria nos dedos ou unhas. Isso indica que não houve luta. Ou estava
desacordada quando foi dependurada... - hesitou antes de completar a frase, sabendo
que aquilo poderia ser recebido com maus olhos por parte dos outros, mas decidiu
continuar. - Ou estivesse conivente com o que estavam fazendo.

Assim que convocados, os policiais se aproximaram para fazer a remoção do corpo. Ao


mesmo tempo, McCam se aproximou da beira do rio, verificando se havia alguma coisa
na água, mas retornou sem nada a acrescentar. O corpo foi cuidadosamente retirado e
colocado sobre a maca. Conseguiram um lençol branco para posicionarem a máscara de
crânio para a fotografia de Ludovic, como solicitado por Mayla. A mulher, agora sem a
máscara, se mostrava uma jovem de aparência comum. O olhar vazio e a boca levemente
aberta lhe emprestavam um tom agourento. Era diferente olhar para ela agora sem a
máscara, lhe dando uma identidade e certamente lhe empregando um pesar, seja pela
família, seja por qualquer um que simpatizasse com ela naquela situação.

- Vamos levá-la para o hospital. Poderemos fazer exames, inclusive um toxicológico, para
lhes fornecer maiores informações sobre a morte e uma maior precisão no que tange o
horário da morte.

Minutos depois o grupo já estava pronto para voltar até onde os veículos se encontravam,
com os policiais carregando o corpo e o resto do grupo seguia com eles.

Ludovic, que estava com a máscara de crânio nas mãos, pensava a respeito de
associações que pudesse fazer com aquele tipo de máscara. Até onde sabia, na cultura
Canadense não haviam religiões pagãs predominantes, sendo o cristianismo a principal
religião desde a colonização, por isso não haveria nenhum motivo para se acreditar que
aquilo seria parte de algum ritual cultural. Já relacionando às marcas encontradas sob a
cama de Happer, a analogia entre o noivo e a noiva poderia estar ligado às crenças do
Gamo celta, símbolo de vida e poder. O homem, nos rituais de fertilidade, é representado
pelo Gamo enquanto a mulher é representada pela Dama. O intitulado Rei Gamo é a figura
suprema de poder, ao qual acreditava-se ter o poder de conceder a vida eterna. Porém,
existe uma versão da crença que diz que o Gamo-Rei escolhe o sumo-druida que
conduziria a fé pelos próximos anos, dessa forma a vida eterna seria atribuída à pessoa
do sumo-druida, e não ao homem em si. Estas crenças pagãs são datadas da idade das
trevas e foram suprimidas pela ação do cristianismo na Europa ao longo dos séculos que
se seguiram à fundação da Igreja Católica Apostólica Romana.

John Harmon

Apesar de Harmon já ter passado por diversas situações na vida em que o medo
estendera suas garras para ele, este era um momento ímpar. Não saber exatamente do
que se tratava aquela criatura e aquele lugar desconhecido e escuro faziam o coração do
patrulheiro bater de forma arrítmica. Depois de ponderar por um instante, ele decidiu
recuar e fazer de volta o caminho da escalada para baixo dessa vez. Posicionou o corpo
para a descida, firmando as mãos e os pés para descer pelas pedras irregulares, da
mesma maneira que fizera quando estava subindo. A visão da caverna ficou para trás,
mas apenas por um segundo. Quando já ia avançando paredão a baixo, o negro ouviu um
ruído logo acima de si, mas nem teve tempo de olhar o que era. Sentiu uma pancada
violenta nas costas, logo abaixo do pescoço, tal como uma dor aguda de carne sendo
rasgada, ao mesmo tempo em que uma força descomunal o tirou da parede fazendo-o
girar no ar. Por um momento achou que era seu fim e se veria despencando por quatro
metros de altura até atingir o chão de maneira fatal, mas isso não aconteceu. Em vez
disso se viu arremessado para dentro do túnel escuro, caindo com um baque doloroso
em meio a pedras. Ficou tonto com o ocorrido e as gostas doíam, com cortes profundos.
Quando a tontura passou, fitou, à sua frente, uma tenebrosa silhueta contra a luz que
vinha pelo lado de fora. Estava agora quase três metros dentro do túnel, onde a luz já não
alcançava, permitindo apenas uma penumbra, e a criatura á sua frente não podia ser
completamente distinguida, a não ser pela suas linhas. Era bem mais alto que um homem
alto, mas estava visivelmente encurvado para caber naquele pequeno espaço. Tinha a
parte de cima do tronco bem larga, com dois grandes e grossos braços cobertos por um
tipo de pelugem e se alongava até grandes mãos com garras longas nas pontas de cada
um dos cinco dedos; as duas pernas eram um pouco finas demais, e faziam um ângulo
estranho perto dos tornozelos, terminando em grandes patas canídeas; a cabeça também
estava ali, mas não era visível por conta da pouca iluminação do ambiente, porém dois
olhos grandes e avermelhados fitavam o patrulheiro na escuridão. Uma respiração
pesada fazia com que baforadas de ar quente fossem lançados ao ar, seguidos de um
ruído grave a cada respiração. A criatura avançou rapidamente contra Harmon,
segurando com as perigosas garras sobretudo do patrulheiro, arrastando-o de lado pelo
chão com extrema violência, foi nesse momento que a pistola que estava em seu coldre
tamborilou pelo chão, terminando em um disparo que ecoou por todo o lugar, fazendo a
criatura largá-lo subitamente.

Um choro de bebê pôde ser ouvido em algum lugar ali no fundo. A criatura pareceu
recuar em direção à escuridão, rosnando. Ela fez que ia atacar novamente, mas uma voz
grave e masculina veio antes que ela avançasse.

- NÃO!

Harmon nunca tinha escutado aquela voz antes, mas de alguma forma ela parecia familiar
ou até amiga, principalmente naquele momento de desespero. A criatura recuou,
desaparecendo na escuridão. Harmon ainda sentia fortes dores nas costas onde tinha
sido ferido, mas foi capaz de se colocar em pé. Na escuridão não enxergava o dono
daquela voz, mas sabia que deveria estar perto, não mais do que cinco metros afrente de
si. Sua arma também estava perdida em algum lugar no chão ali perto.

- Quem é você?

Era uma pergunta pertinente, apesar de não ser o início de diálogo mais apropriado para
aquela situação.

Ludovic e Mayla

As perguntas e respostas dos investigadores ali iam se complementando aos poucos.


Todos pareciam prestar atenção nas informações que vinham á tona, mas McCam era o
mais absorto de todos. Estava com uma expressão séria, carregada. Estava apenas
consumindo tudo aquilo sem dizer nada, como se guardasse cada detalhe em sua mente.
Quando o questionamento sobre a área foi direcionada para si, ele pareceu sair do transe
em que se encontrava.
- Não há nada nessas bandas que pudessem corroborar com atividades ritualísticas de
qualquer seita. Se existe algo religioso que envolva este caso, e se houver algum tipo de
história nisso tudo, pode ter sido trazido de algum imigrante europeu, e existem muitos
na cidade e no país... - mal concluiu sua fala e parou abruptamente. - Henry Stoker.

Os policiais se viraram subitamente para ele, parando o que estavam fazendo. O oficial
Green deixou escapar um comentário.

- Sem chance.

McCam o olhou de forma taciturna.

- O que sabemos sobre ele? Nada. Só que decidiu vir para cá depois de perder a família.

Carlson se juntou à conversa.

- Aquele senhor educado? Ele não seria capaz de erguer essa mulher do chão da forma
que estava pendurada, não tem porte físico para isso. É alto, sim, mas muito idoso e
magro. Deve passar setenta anos.

McCam não deu continuidade às conjecturas. Ficou fitando Ludovic enquanto os policiais
concluíam a remoção do corpo e se preparavam para voltar até os carros. Carlson
começou a caminhar na dianteira, seguido pelos policiais. McCam voltou para perto do
rio, onde havia aquele pequeno rastro na neve, se demorando um longo momento ali,
chamando Mayla para perto de si logo em seguida, assim como Ludovic.

- Diga-me, doutora. Quanto tempo um recém nascido poderia sobreviver em condições


climáticas como essa sem nenhuma proteção?

Depois da resposta, se ergueu e começou a seguir o grupo, convidando Mayla e Ludovic.

- Vejamos se Harmon encontrou algo do outro lado.

Logo todos estavam de volta à estrada. Haviam mais homens ali agora, haviam trazido um
grande tronco de madeira tratado para substituir o post quebrado. Já haviam iniciado os
trabalhos para o reparo da rede elétrica ali. O corpo da vítima foi colocado na ambulância
e foi despachado juntamente com o Dr. Carlson. Mayla não cabia na ambulância e teria
que voltar para a cidade com os policiais ou com o detetive McCam. Nesse momento,
entretanto, um estampido ecoou pela floresta, pelo lado esquerdo da estrada, na direção
onde Harmon havia seguido, fazendo com que uma revoada de pássaros acontecesse.
John Harmon

O desespero na voz de Harmon era característico de alguém que estava em choque.


Porém aquele era um homem difícil de se impressionar, que já tinha visto muita coisa
ruim. Mesmo assim, ainda era humano, a ponto de sentir medo daquela criatura que o
atacara e também de alguém que comandava uma criatura como aquela.

Sua resposta foi singela, precedida de uma leve hesitação. Por um momento, o único som
que se ouviu foi o arrastar das botas do patrulheiro contra o chão de pedra, tentando se
estabilizar no escuro e, discretamente, procurando por sua arma. O interlocutor demorou
a responder, e logo o choro do bebê recomeçou, cortando a tensão do silêncio, mas da
mesma forma a substituindo por uma nova sensação agourenta.

- Bill Ross. De fato não importa. Só achei curioso que alguém tivesse chegado até aqui.
Certamente devem haver outros nas proximidades, certo? Terei que me despachar mais
rápido do que planejei então. - fez uma pausa dramática. John pode ver a silhueta do
homem girar no escuro, coberto com um tipo de manto negro. - Vai conhecer melhor
meu... "demônio com pelos". É uma bela maneira de descrevê-lo. - a voz se afastava
preguiçosamente, carregada de uma estranha calmaria.

Ouviu o rosnado da criatura na escuridão e sabia que logo voltaria a ser alvo dela. Porém
o tempo em que o homem falou pareceu favorecer seu esforço. Sentiu o toque de sua
arma na lateral da bota direita, agachando-se para pegá-la imediatamente. Quando
levantou-se, entretanto, foi novamente atacado, dessa vez com um encontrão desmedido,
atirando-o junto com seu atacante através da passagem aberta no paredão de pedra. E lá
se via, mais uma vez, John Harmon tomado de queda livre, enquanto fitava o céu
nublado, dessa vez engalfinhado com uma estranha criatura.
Sentiu um baque doloroso e a visão escureceu. Tinha batido a cabeça e achava que tinha
morrido. Mas os olhos foram recuperando a visão e estava sobre o monstro. Este,
desnorteado, tentava rolar para o lado, mas aparentemente tinha se ferido na queda. A
arma, de novo, havia lhe escapado da mão, mas dessa vez estava à vista, há
aproximadamente dez metros de onde estava, próximo à parede oposta do grande
corredor formado pelas rochas.

Erguendo-se com dificuldades, ainda tonto, conseguiu vislumbrar melhor seu nêmesis.
Era um tipo de fera, mas também um tipo de homem. Parecia um homem muito grande e
muito peludo, com braços, pernas, mãos e pés grandes demais, porém os pés se
alongavam em patas, e as mãos em terríveis garras. O rosto era mais humano do que
bestial, coberto de pelos, como se uma barba densa lhe cobrisse grande parte do rosto,
tal como cabelos longos e desgrenhados. Basicamente o que se podia ver eram os olhos
grandes e espaçados, um pequeno nariz chato e uma grande boca com dentes irregulares
e presas salientes.

A criatura começou a se recompor e Harmon sabia que não teria mais do que um breve
instante de vantagem sobre ele.

Ludovic e Mayla

Depois daquele estampido que chamou a atenção de todos, Ludovic tomava a dianteira
de forma impulsiva. McCam olhou na direção por um instante, parecia tentar raciocinar a
situação sem dizer nada. Seu olhar logo se voltou para Mayla, que procurou com os olhos
pelo Dr. Carlson, mas este já havia partido junto do corpo da mulher com a ambulância
instantes antes daquele barulho. Os olhos de Mayla e McCam se encontravam naquela
confusão. Ele carregava uma expressão séria e falou de modo firme.

- Venha conosco! Mas fique atrás de mim. Se Harmon tiver encontrado algo, existe uma
chance de acharmos a criança, precisaremos de você!

Se colocou a correr atrás de Ludovic, o qual não teve dificuldades em seguir os rastros
recentes feitos por Harmon do lado oposto da estrada. Com a marcação das pegadas
sobre a neve, o avanço foi bem mais rápido do que havia sido para Harmon. Ao longe os
três vislumbraram a passagem que se iniciava entre as rochas na região. Chegando lá,
testemunharam aquela cena impossível, Harmon, já ferido, com sangue escorrendo pela
nuca e pelas costas de pé ao lado de um misto de homem e fera, que começava a se
levantar.

A criatura lembrava um grande homem, com aproximadamente dois metros e meio de


altura, de costas curvadas, corpo completamente peludo, tal como seu rosto, coberto
bom uma grossa barba e longos cabelos desgrenhados. Os braços e pernas eram
desproporcionais, sendo os braços mais longos e as pernas mais curtas. As grandes
mãos eram equipadas com longas garras que pareciam pedra e os pés terminavam em
patas canídeas.

A criatura mirava Harmon com o olhar, pronto para iniciar um ataque.


Harmon se afastou como pôde da criatura sob os olhos surpresos de Ludovic, Mayla e
McCam. Ele rolou para perto de sua arma, apanhando-a e apontando para a criatura.
Porém, Ludovic já vinha com a arma em punho, e disparou rapidamente três vezes na
direção daquela estranha fera, fazendo com que os estampidos provocados pela arma
ecoassem por todo o paredão. Um rugido contido fez notar que o francês havia sido bem
sucedido em um dos disparos.

Porém não foi o suficiente para impedir o ímpeto do inimigo contra o patrulheiro. A
movimentação dele era incrivelmente rápida, quase sobrenatural. Harmon conseguiu
fazer um único disparo antes de ser atingido por um encontrão, acertando seu atacante
no mesmo instante em que foi lançado ao chão. Um jorro de sangue espirrou na face da
criatura depois dela ter enfiado fundo suas garras da pata direita no pescoço de Harmon,
dilacerando sua garganta. Era um ferimento fatal, e certamente o patrulheiro sangraria até
a morte.

Mayla, desesperada, tentava buscar por algum tranquilizante em sua maleta, mas
raciocinando bem, achava que não havia nada ali que fosse capaz de desacordar um ser
daquele porte. E, com a cena que acabara de presenciar, seria muito mais prudente não
se aproximar daquela fera.

McCam sacou a arma e tentou fazer mira, mas hesitou para atirar, com medo de acertar
John.

- Fique atrás de mim. - disse McCam para Mayla com a voz trêmula.

Ludovic estava mais à frente, agora há quase vinte metros de onde o inimigo se erguia,
com a face e as garras cobertas de sangue. John agonizava, sem forças, com pequenos
espasmos enquanto fitava o céu com o olhar vazio. A fera agora cambaleava, se voltando
para Ludovic e iniciando alguns passos desequilibrados. Tinha dois ferimentos a bala,
um na lateral esquerda do tronco e outro no peito, feito pela pistola de Harmon. Pela
maneira com que se movia agora, era claro que os dois ferimentos eram graves e que não
se sustentaria em pé por muito mais tempo. Mais um disparo poderia acabar com a vida
daquele monstro.

Mais três estampidos ecoaram pelo local. Depois de quatro metros de avanço da criatura,
o impacto de uma das balas disparadas pela pistola de Ludovic fez o monstro recuar e
cair, ferido perto do pescoço, causando um espirro de sangue vermelho que começou a
tingir a neve.

Mayla avançou, avisando que Harmon ainda estava vivo. McCam se precipitou na frente
dela, primeiro parecendo querer impedi-la, mas simplesmente a acompanhou, no mesmo
ritmo, se colocando entre ela e a criatura. Quando ela passou do ponto onde o inimigo
jazia, conseguiu reparar uma respiração pesada e lenta por parte dele. A vida daquela
besta também se esvaia, tal como Harmon.

McCam e Ludovic se colocaram próximos à besta. Ela tentava mexer-se, arranhando a


neve dolorosamente com aquelas garras protuberantes. Porém a atenção dos dois foi
voltada para o aviso de Mayla que, ao mesmo tempo que se jogava de joelhos ao lado do
corpo de Harmon e abria sua maleta, avisava que havia visto mais alguma coisa num
buraco no paredão, este que ficava há mais de três metros do chão. Precisariam escalar a
rocha irregular para chegar até lá.

Mayla deu início ao tratamento de primeiros-socorros ao patrulheiro. Ele já ia perdendo a


consciência por conta da exagerada perda de sangue. As lacerações na garganta eram
gravíssimas. O que a médica melhor podia fazer, naquele momento, era tentar estancar o
sangue. Pinçou veias e artérias, encheu os ferimentos de gaze e enfaixou como pôde. A
hemorragia diminuiu consideravelmente e ela tinha certeza que, se o movessem
rapidamente e o levassem para o hospital imediatamente, uma cirurgia poderia ser feita e
a vida dele poderia ser salva, apesar de duvidar que suas cordas vocais poderiam ser
restauradas.

A voz de McCam estava embargada. Seu olhar ia da criatura, para Mayla, então para
Harmon e o buraco lá em cima no paredão.

- Se a criança estiver lá em cima, ela é prioridade. - O tom era terrivelmente amargo. Vinha
com pesar, por saber que cada momento de demora poderia significar o fim de Harmon.
Mas todos ali podiam pesar a vida de um recém nascido e um velho patrulheiro e
entender que o mais correto a fazer era tentar salvar a criança.

O detetive canadense mirou com a pistola contra a cabeça da criatura, disparando na


base entre a cabeça e a nuca. Ela se moveu num espasmo e depois estacou, imóvel, sem
respirar. Era um tiro de misericórdia e ele não se deu ao trabalho de explicar para
ninguém. Guardou a arma e correu para o paredão, iniciando sua escalada. Com alguma
dificuldade chegou até a boca do buraco, puxou a lanterna que trazia presa ao cinto e
iluminou la dentro, ainda sem se afastar da beirada.

- Parece um túnel natural, pode ser uma rede de cavernas. Está úmido aqui, mas não vejo
nada até onde a luz alcança. - disse para os dois que estavam lá em baixo. -
Sinceramente, não sei o que fazer. Não quero deixar Mayla aqui sozinha com Harmon...
Mas penso que se eu for sozinho, pode significar meu fim...

Ele parou, fitando os dois. Deixaria os dois decidirem o que fazer, mas ele tomaria o
caminho do túnel, com ou sem Ludovic.
Enquanto Ludovic se mostrava interessado em verificar o que havia lá em cima, Mayla
demonstrava uma descrença sobre a presença do bebê ali. McCam encolheu os ombros
em resposta. Era como se não houvesse argumentos contra o que ela dissera, mas
mesmo assim tinha que se certificar.

O detetive canadense desapareceu buraco adentro enquanto Ludovic tentava, com


dificuldade, escalar o paredão até a boca do buraco.

A médica, depois de ter certeza que fizera tudo o que podia por Harmon, que agora estava
estabilizado, se ergueu e se aproximou da criatura morta. Não ousou tentar virar a
criatura de frente, mas se colocou a analisá-la naquela posição mesmo em que estava.
Avaliando a constituição e estrutura corporal do monstro, ela constatou que não era mais
do que um humano muito grande, forte e peludo. A pele era mais grossa e rígida ao
toque. Os braços e as mãos eram desproporcionalmente longos, sim, mas ainda dentro
de um limite aceitável. O que começava a sair do natural eram as imensas garras que se
iniciavam nas falanges dos dedos. Com um olhar mais apurado, ela pôde constatar que
eram garras ósseas, manufaturadas. Provavelmente marfim puro. As marcas e nódulos de
cicatrizações indicavam que aquilo teria sido algum procedimento cirúrgico, ao mesmo
tempo inovador, mas feito de forma rudimentar. Descendo aos pés, que na realidade
pareciam patas canídeas, constatou que também se tratava de intervenção cirúrgica, mas
essa ainda mais bizarra que as garras. Era como se os pés do grande homem bestial
tivessem sido amputados na altura dos tornozelos, e patas de algum animal canídeo bem
grande haviam sido implantadas no lugar. Pelo que ela pôde constatar, a pata era
totalmente funcional, isso indicava ligações bem sucedidas de nervos e tendões, o que
demonstrava um trabalho notável na especialidade de cirurgia reconstrutiva. Mesmo
assim, novamente, as cicatrizes eram marcantes onde as partes haviam sido unidas.

Depois de um longo momento, Ludovic finalmente alcançou a entrada da pequena


caverna natural. Com a ajuda de sua lanterna, conseguiu avançar pelo corredor tortuoso.
Avançou até encontrar McCam, parado na beira de um poço, também natural. Ali haviam
alguns objetos espalhados. Um pequeno cesto de vime, com panos e uma pequena
coberta, diversos potes de vidro e barro, todos vazios, uma grande mala negra, um
caixote de madeira, uma barraca pequena, um lampião, ossos e restos de animais mortos,
uma pequena estrutura de fogueira (apagada) e um robe negro, cuidadosamente dobrado
e deixado sobre a mala. No chão haviam espirros de água e, num dos cantos, havia um
punhado de terra revirada dentro de um buraco irregular feito na rocha. McCam segurava
um livro rústico numa das mãos e, com a outra, segurava a lanterna, iluminando o livro.
Naquela pequena caverna escura, Ludovic sentia o que parecia ser um resquício da
mesma sensação que tivera ainda no apartamento de Happer, como se o próprio mal
tivesse estado ali momentos antes. Os dois detetives se ocupavam de analisar as coisas
encontradas. Enquanto McCam estava absorto com o livro que trazia na mão, Ludovic
vasculhava os outros objetos no local. Primeiro, o cesto de vime fez com que o francês
tivesse certeza de que, havia não muito tempo, o bebê estivera depositado ali, visto que
ainda estava morno. A bala estava fechada, mas pesada o suficiente para se saber que
haviam coisas ali dentro. O caixote estava vazio, mas o fundo trazia manchas vermelhas
que, à primeira vista, poderia parecer sangue. Em seguida, analisou com mais cuidado o
robe negro que estava dobrado. Não demorou à mente afiada do detetive encontrar um
pequeno furo numa das mangas. Juntamente com a textura do tecido, ele pôde ter certeza
que se tratava do robe utilizado pelo assassino de Katherine Beegon, dada a pista que
haviam encontrado na corda que atava os pulsos da moça. O robe, pela aparência e
contexto, certamente podia ser associado a uma vestimenta ritualística.

McCam demorou a responder a primeira pergunta de Ludovic, mas finalmente retrucou.

- Não tem outra saída, a não ser que haja pela água. Mas duvido que exista alguma
respiradouro por perto... De qualquer forma, a água esta congelante, o bebê não
sobreviveria... Não... - e não concluiu a frase.

A intuição de Ludovic o fez associar o buraco com terra ali ao mesmo que havia
encontrado no banheiro da primeira vítima. Entretanto, não tinha ideia do que aquilo
podia significar. Mas era notável que, em todos os locais onde tiveram contatos
relevantes com os mistérios daqueles estranhos crimes, havia a presença de terra e água.
O novo comentário de Ludovic não surtiu qualquer efeito sobre McCam que continuava
sua leitura, passando página após página. Por fim, finalmente indagou ao canadense
sobre seu grande interesse naquele livro. Ao se aproximar, viu que se tratava de um
diário. Ludovic conseguiu ler a página que agora estava iluminada pela lanterna de
McCam.
McCam fechou o livro abruptamente, se virando para Ludovic enquanto iluminava seu
rosto, fazendo-o cegar por um breve momento.

- Precisamos correr até a casa de Henry Stoker. Foi ele quem escreveu esse diário! Talvez
ainda haja tempo para pegá-lo ou pelo menos descobrir alguma coisa sobre seu
paradeiro!

Mal terminou de falar e saiu correndo, voltando em direção à saída.

Mayla se demorou em sua análise. Estava um tanto insegura sobre o que pensar ou o que
fazer. Se aproximou do paredão e, consequentemente, de onde Harmon estava. O
patrulheiro continuava respirando com muita dificuldade. Começava a mostrar sintomas
da falta de sangue no corpo, com leve tremor nas extremidades dos dedos das mãos,
descoloração dos lábios e palidez. Ela não sabia precisar quanto tempo ele resistiria, mas
não era muito.

Se esforçou para ouvir algo lá de cima, mas por um momento ouvia apenas ecos das voz
de Ludovic, mas sem muita clareza de que palavras ele falava. A única que veio um pouco
mais alta, fora uma expressão em francês que ela não conseguiu reconhecer.

De qualquer forma, não demorou muito para McCam surgir apressadamente pela boca do
buraco. Trazia no rosto uma expressão de urgência, se colocando a descer o paredão
sem muito cuidado, o que o fez deslizar por uma curta extensão a partir da metade do
paredão, terminando por cair de uma altura de um metro e meio, aterrizando com os pés,
mas fazendo-o tombar sobre o traseiro em seguida. Pareceu que não havia se
machucado. Se pôs de pé com um vigor impressionante, se virando para Mayla logo em
seguida.

- Temos que ir. Eles não estão mais aqui. - olhou de relance para Harmon. - Tenho que
tomar cuidado ao carregá-lo? Precisamos correr, se ele não puder ser movido com
rapidez... - o fim da frase ficou implícito, ele não poderia se dar ao luxo de se demorar ali,
então talvez Mayla e Ludovic tivessem que ficar para trás para que juntos pudessem levar
Harmon de volta para onde os carros estavam.

Pensando a respeito, Mayla achava que as chances de Harmon já eram baixas, e mesmo
que não fosse movido de forma brusca, se demorasse a chegar até o hospital não iria
resistir de qualquer forma. Cabia a ela decidir o que era menos arriscado. McCam olhou
para ela apenas por um segundo, esperando a resposta. Sairia logo em seguida.
Ainda enquanto saia apressadamente da caverna, McCam respondeu à pergunta de
Ludovi sobre Henry.

- Não está assinado, mas eu reconheço a grafia dele, li e reli a elaborada defesa sobre as
queixas feitas pelos vizinhos e "barulhos estranhos" durante a madrugada vindos da
casa do velho. Podemos conversar a respeito depois. - terminou sumindo corredor
adentro.

As ponderações de Ludovic e Mayla começaram a se alongar, mostrando a preocupação


de ambos em mover o patrulheiro inadequadamente de forma que pudesse causar
maiores danos. McCam não esperou o término da conversa, se contentando com a
sugestão de Ludovic em enviar reforços o quanto antes. Assim, o detetive canadense
partiu numa corrida pesada de passos largos em meio à neve, deixando para trás aquele
improvável trio.

Depois de mais uma troca de palavras com a doutora, Ludovic se agachou e tentou falar
com Harmon, atento por uma resposta. Porém o estado do negro era crítico e ele estava
completamente desacordado, respirando com clara dificuldade e pesadamente. Avaliando
a situação, sem um equipamento apropriado, mover Harmon pela neve era uma tarefa
quase impossível.

Passaram alguns minutos se preparando para a remoção quando começaram a ouvir ao


longe um barulho característico. Se tratava do ronco de um motor de carro que devia
estar se aproximando.

Quase duas horas depois Mayla e Ludovic se reencontravam com McCam no hospital
onde Mayla trabalhava. Harmon recebera o atendimento necessário depois de terem sido
resgatados pelos reforços enviados por McCam até a fenda. O corpo da besta também
havia sido removida. Uma operação foi montada para que ninguém visse a criatura, que
agora estava numa área isolada do hospital, guardada por alguns policiais.
McCam estava transtornado. Os quatro se encontravam no quarto onde Harmon estava
instalado, cheio de aparelhos ligados a ele.

- A casa estava destruída, consumida pelo fogo. Os bombeiros ainda estão lá, tentando
controlar o incêndio. Duvido que encontremos algo relevante. A única e melhor pista que
temos é o diário, mas ele termina na madrugada de hoje, com os preparativos para o
ritual de extração do bebê. Ainda preciso de mais tempo para terminar de ler... mas é...
perturbador.

Som de passos puderam ser ouvidos pelo lado de fora do quarto. A porta se abriu e uma
mulher adentrou no quarto, fechando a porta trás de si depois de se certificar que não
havia ninguém ali por perto no corredor. Antes de dizer qualquer coisa, ela foi até a
mesinha de canto, fuçou a parte interna do sobretudo e retirou um tipo de pedra polida,
do tamanho de um punho fechado, de cor escura, um negro quase reluzente, de
superfície parcialmente reflexiva, com um desenho talhado em cor branca, um símbolo
que lembrava uma estrela rústica; e colocou a pedra sobre a mesa, se posicionando na
frente dela e finalmente se virando para os presentes.

Ela era uma mulher bonita, pele muito clara, olhos azuis, cabelos lisos e negros, longos,
com uma franja reta acima da linha dos olhos. Estava vestida com um sobretudo preto de
couro liso e uma boina de preta simples de veludo grosso. A voz era levemente rouca,
mas bastante feminina.

- Meu nome é Kate. Estou aqui em nome de Al Haquin. Vocês não o conhecem, mas ele
conhece vocês... e conhece o homem que vocês estão procurando, que na realidade não
se chama Henry Stoker, se chama Salazar Cappadoci e temos procurado ele há vinte e
cinco anos. - ela parou por um segundo, fitando cada um, como se buscasse as palavras
corretas para continuar o que precisava falar. A fala era objetiva e firme, o que dava
credibilidade ao que ela ia falando. - Vocês foram as pessoas que chegaram mais perto de
pegá-lo... não fosse pela magia de transporte, certamente vocês o teriam encurralado
naquela caverna. Mas claro que ele não cometeria um erro tático de não ter água e terra
no chão onde quer que estivesse. Ele vai precisar ir a um lugar específico em algum
momento nos próximos dois meses e gostaríamos de convidá-los a participar da
empreitada e tentar capturá-lo... Considerem que essa missão será uma entrevista de
emprego... um emprego que realmente faz a diferença, na defesa da humanidade contra
coisas... não naturais.

Ela parou de falar, terminando por fitar Harmon, ainda desacordado na cama. Deixaria
cada um digerir aquelas palavas e dar sua resposta. McCam a mirava com um olhar
analítico, como se ponderasse se o que ela dizia era verdade ou uma invenção. Mas uma
coisa era certa, ela sabia coisas de mais.
Ludovic comentava sobre a leitura do diário, caso McCam lhe permitisse. O canadense
não o fito, mas fez um sinal com a cabeça como que dizendo que lhe passaria o diário no
momento oportuno quando foram interrompidos. De fato houve um momento analítico
por parte do grupo em relação à recém chegada. Enquanto os senhores tentavam ler as
intenções de Kate, a Dra. Müller se precipitou em dar seu endereço para os presentes e
dando uma declaração que deixava a entender que ela estava dentro da empreitada, mas
com a condição de que aprendesse a atirar para a tal caçada. Deito isso, deixou o leito
onde Harmon estava sendo tratado. A alemã mostrava mais uma vez como era seu perfil,
objetiva e decidida no que pensava e como agia.

Na sala ficaram McCam, Ludovic e o inconsciente Harmon, além da bela Kate, que não
dissera seu sobrenome. O detetive francês, num movimento casual e estratégico,
envolveu a moça em seus questionamentos. Fuçou a mente atrás de alguma lembrança
acerca do nome Al Haquin, mas não obteve nenhum sucesso nisso. Seguiu com suas
inferências, buscando por novas informações que pudesse definir o rumo daquela
conversa; ao mesmo tempo em que avaliava as expressões corporais da moça, tentando
ler suas intenções. Ele pôde notar que ela dominava alguns trejeitos que de fato poderiam
ser usados para ludibriar ouvintes desatentos, mas no que dizia respeito àquelas
informações passadas, era evidente para ele que ela acreditava em tudo o que dizia.

A passividade de McCam, por outro lado, era curiosa. Ele apenas observava a garota,
como se pudesse ver através dos pensamentos dela. O rosto perecia uma pedra sem
expressão.

- Não tenho certeza de quanto contato tiveram com coisas não naturais. Talvez ainda se
sintam céticos a respeito do que posso compartilhar. Mas como não temos muito tempo a
perder, vou tentar ser direta e o menos invasiva possível. Salazar é um feiticeiro antigo...
muito antigo. Nossos registros acusam a atuação dele desde pelo menos a idade das
trevas, século XIV. O Império Otomano tomou o controle da região e um tipo de grupo
secreto foi criado para manter os velhos costumes e arquitetar a retomada da região pelo
povo natal. Pelo que sabemos um clã turco imperava sobre a região e lideraram essa
resistência oculta. Esse clã era chamado Capadocci. Acredita-se que é a família mais
antiga da região, descendentes de reis que se levantaram após a queda do Império
Macedônico em 330 aC. Seja como for, fatos estranhos ocorreram na região até a queda
do domínio otomano, que cuminou na reclusão de um grupo de sábios e estudiosos nas
cidades e templos subterrâneos nas montanhas mais afastadas da região. Um antigo
documento encontrado na região cita os agradecimentos pela Ordem dos Vigias ao Grão
Mestre Salazar Capadocci, responsável pela libertação da região.

Ela parou por um instante, puxando um relógio de bolso e olhando as horas.

- Não tenho muito tempo. Não posso falar muito sobre Al Haquin... pelo menos não aqui.
Mas precisam entender que ele conhece os caminhos da magia, tal qual Salazar. Mas ele
escolheu usar seu conhecimento e riquezas em prol da humanidade, enquanto Salazar
pensa ser capaz de dominar sobre a escuridão... e mexer com forças que podem muito
bem acabar com o mundo como conhecemos. A água e a terra fresca são elementos de
uma magia de transporte. Ele pode, através da força da terra e da água, se movimentar
entre locais. Ele está fraco, temos certeza. O próximo passo do que ele pretende fazer se
passa pela consagração do receptáculo no Stonehenge no equinócio da primavera, que
ocorre em algum momento do mês de Março no hemisfério norte. E é lá que pretendemos
esperar sua aparição... mas sabemos que ele não deve agir sozinho dessa vez, pois sabe
que foi localizado.

McCam finalmente entrou na conversa.

- Que emprego é esse que nos oferece? Caçadores de feiticeiros? - tinha um leve tom de
deboche na voz.

- Está mais para guardiões da humanidade. Posso citar alguns de nossos parceiros que
tem alguma relevância global, com ou sem boatos... Illuminati, Lótus Branca, Templários.
Mas nós, minha organização, está acima disso. Poderei falar mais sobre ela se aceitarem
participar da missão... e é claro que temos que partir em breve... só tenho mais dois
minutos. - terminou conferindo o relógio de bolso.

No corredor, Mayla caminhou na direção da escada que levava para o andar de baixo,
onde sabia estar o corpo da criatura encontrada junto com Harmon. Logo que passou
pela porta da escada, viu um policial parado no andar logo abaixo, posicionado à frente
da porta. Ele olhou para ela como se esperasse alguma coisa, mas começou a falar antes
mesmo que ela se aproximasse.

- Sinto, muito senhora. Mas apenas pessoal autorizado pelo Dr. Carlson pode acessar a
área do necrotério. Posso ver sua identificação por favor?

Numa das mãos, segurava uma prancheta que parecia conter uma lista de nomes. A outra
mão estava pousada sobre o cabo do revolver que estava escorado no coldre do cinto do
uniforme. Uma tag de pano estava presa ao bolso do uniforme contendo os dizeres "Co
Feller".
Ludovic Bardin

Os pontos retrucados por Ludovic não diminuíram a tenacidade da mulher em convencê-


los de que tudo o que dizia era verdade e que tinha certa urgência em partir dali. Ela
balançava a cabeça positivamente enquanto Ludovic ia colocando sua retórica. Ela sorriu
levemente ao final da frase, e Ludovic notou que aquele sorriso fazia o rosto da jovem se
iluminar, deixando-a mais bonita do que à primeira vista.

- Eu entendo seu ponto, já estive em seu lugar uma vez. Não precisam vir comigo agora
mesmo, e nem devem. Amanhã, ao meio-dia, um avião estará esperando no aeroporto, no
hangar 6. Basta se identificarem para o piloto. Vocês serão levados até Sevilha na
Espanha, de lá pegarão um ônibus até o Porto de Algeciras e, finalmente, um navio até
Tânger, no Marrocos. Lá Al Haquin os recepcionará. Nesse encontro vocês poderão tirar
suas dúvidas, e Al Haquin irá explicar tudo sobre o trabalho a ser feito. E aí poderão
assinar o contrato de serviço ou não juntamente com outros prospectos. Se tudo der
certo, nos encontraremos em outro país da África, não posso adiantar ainda, e
tentaremos pegar Capadocci.

Ela apanhou a pedra que havia colocado na mesa antes de se aproximar de Ludovic, que
bloqueava a porta.

- Se você tivesse a chance de saber sobre grandes segredos da humanidade e pudesse


realmente fazer a diferença na história, não ia querer ter feito essa viagem?

McCam fitava a moça com um misto de tensão e curiosidade, mas Ludovic conseguiu ler
em sua expressão de que ele estava interessado.

Kate fez um sinal com a cabeça tanto para McCam como para Ludovic.

- Imagino que o Sr. Harmon não esteja em condições para viajar. Voltaremos para buscá-
lo depois, não se preocupem. - Por fim, encarou Ludovic com um olhar um pouco mais
sério do que vinha mostrando até ali. - Com sua licença, monsieur Bardin, preciso pegar
um avião.

E pediu passagem para poder deixar a sala.


Mayla Müller

O oficial recebeu o crachá da Dra. Müller e comparou com a lista que tinha em mãos.
Enquanto ele fazia a verificação, a alemã fez alguns questionamentos. O policial olhou
para ela com uma expressão de leve estranheza, talvez pelos termos de tratamentos que
ela usava. A associação feita na mente do homem fez com que ele mudasse o tratamento
para com ela, ficando um pouco mais ríspido, além de ignorar as perguntas que ela fez.

- Pode passar, senhora. - completou secamente, abrindo passagem, mas encarando-a


duramente enquanto ela passava.

Um novo corredor se abria além da porta da escada. O clima ali era bem mais frio do que
a ala hospitalar superior. Logo à frente, havia um balcão que frenteava um grande arquivo
que ocupava boa parte da parede direita do corredor. Neste balcão estava uma senhora
negra, por volta dos 60 anos, cabelos ralos e um rosto marcado com algumas cicatrizes.
Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, o som rangido de uma porta metálica surge
além da linha do balcão e de uma porta surge o Dr. Carlson. Ele tirava a máscara que
havia sobre o nariz e a boca, parecia um pouco nauseado, parecia querer tomar um ar. Foi
quando viu a Dra. Müller.

- Dra. Müller... - disse tentando se recompor. - Não acho que seja... - ele claramente não
sabia a palavra que queria usar - ... que... lhe faça bem... acompanhar essa autópsia.

Aquilo não era uma proibição, estava mais para um aviso amigável. Mas ela poderia tomar
sua própria decisão. Ele continuou ali parado, claramente respirando fundo antes de
voltar para dentro da sala. A mulher negra não disse nada, voltou a fazer o que parecia
ser seu trabalho de analisar alguns relatórios.

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