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Sumário
Ficha Técnica
Prefácio
O Desmoronamento
O Edifício Atlântico
O sumiço de crianças no Paraná
Divulgação proibida
Visita da primeira-dama
Mudança apressada
Cartazes e faixas arrancados
Ameaça aos funcionários
O Grupo Tigre
Termo de declarações
As prisões
A revolta da população
Os defensores dos réus
O pai de Leandro Bossi
A estratégia da defesa
Voltando no tempo
As procissões de Sheila Abagge
A história de Raquel
O lenhador
Linchamento moral
A caravana da libertação
Retornando ao passado
A imprensa e o caso Evandro
O conselho regional de imprensa
Fatos relacionados ao caso Evandro
Epílogo
Nota de atualização
Agradecimento
Ficha Técnica
Copyright © 2012 por Diógenes Caetano dos Santos Filho.
Publicado com autorização. Nenhuma porção desta obra pode ser
reproduzida sem a devida autorização do autor.
Projeto Gráfico e Diagramação: Publica Livros
Revisão:Publica Livros
Capa:Publica Livros
1ª Edição: Agosto / 2012
Prefácio
No dia 6 de abril de 1992, desapareceu em Guaratuba, Paraná,
Evandro Ramos Caetano.
Cinco dias depois, seu corpo foi encontrado, as mãos
amputadas, escalpelado, com os dedos dos pés cortados, sem
os olhos, sem as orelhas, sem o osso externo do tórax, e não
havendo nada em seu interior. Era nitidamente perceptível ter
havido contribuição humana para esse resultado, pois a
geometria dos cortes e a aspereza uniforme dos ossos afetados
não deixavam dúvida quanto a esta possibilidade.
No dia 2 de julho do mesmo ano foram presas sete pessoas,
entre as quais estavam a esposa e a filha do prefeito de
Guaratuba. Todos confessaram ter sacrificado Evandro em um
ritual de magia negra, na serraria do então prefeito do município.
Em seguida, orientados pela defesa, começaram a negar,
alegando terem sido torturados. Os advogados entenderam que
julgá-los separadamente seria mais vantajoso, e por isso foram
realizados vários julgamentos, sendo o primeiro deles o de
Osvaldo Marceneiro, Vicente de Paula Ferreira e Davi dos
Santos Soares. Porém, no segundo dia, uma jurada passou mal,
provocando a interrupção do julgamento. Posteriormente, foram
julgadas Celina e Beatriz Abagge. O julgamento durou 34 dias e
foi o mais longo já realizado no Brasil. Elas foram absolvidas.
Entretanto, o julgamento foi invalidado, pois a sentença foi
contrária às provas dos autos. Havia provas
inquestionáveis de que o corpo encontrado era o de Evandro,
porém isto foi desconsiderado pelo júri.
Houve a seguir uma nova tentativa de julgar os três primeiros,
contudo quando o julgamento atingia seu quinto dia, os
advogados percebendo que a derrota seria fragorosa, decidiram
abandonar os réus e se retiraram das dependências forenses,
provocando novo adiamento.
Mais tarde, os réus foram levados a outro júri e, dessa vez,
como seus defensores não utilizaram o mesmo expediente,
permanecendo até o final, houve a condenação.
Airton Bardelli dos Santos e Francisco Sérgio Cristofolini tiveram
a seguir o seu julgamento, onde foram absolvidos. O júri
entendeu que as provas não eram suficientes para condená-los.
Falta de provas não significa falta de culpa. Saber a verdade é
uma coisa, provar é outra, até porque os fatores que podem
intervir nos bastidores de um júri vão além do que se pode
imaginar. Basta ver que no Pará, onde dezenas de crianças
foram sacrificadas, dois médicos e dois policiais foram julgados
e condenados. Porém a chefe da seita LUS (Lineamento
Universal Superior), Valentina de Andrade, que os liderava, foi
absolvida.
Deverá haver novo julgamento para Celina e Beatriz Abagge.
Contudo, independente do resultado, poderão ficar sem
respostas, os demais desaparecimentos de crianças, pois a
estrutura mobilizada para impedir a continuidade das
investigações foi a mais poderosa e abrangente que já se teve
conhecimento. Envolveu sacerdotes católicos, políticos
poderosos, delegados de polícia, e a maior rede de
comunicação da capital do Paraná, entre tantos outros.
Este registro busca servir de alerta, para que os mesmos erros
não voltem a ser cometidos pelas instituições que nos
governam, e para que as pessoas possam responder mais
rapidamente se, por infelicidade um dia, também se tornarem
vítimas.
O Desmoronamento
Eram dez e meia da noite de domingo, dia 22 de setembro de 1968.
A maré estava vazando e a baía refletia a luz das estrelas em sua
superfície plana. Não havia vento, o silêncio emprestava à paisagem
uma característica oposta a que estava para se manifestar.
Na ponta do trapiche, presa a um poste, havia uma lâmpada que
sinalizava para os barcos o perigo que representavam as pedras
semi-submersas.
Lentamente, o poste inclinou-se para o centro da baía e ficou
sustentado por dois fios elétricos, os quais impediram por alguns
instantes a sua queda, mantendo-o a 45 graus.
Do alto do muro de arrimo, uma mulher, a última pessoa ainda
acordada entre os que residiam nas imediações, observou o
acontecimento, e resolveu ir até a praça do outro lado do quarteirão.
Ali na praça, encontrou dois homens no escritório de um comitê
político. Meu pai, candidato a vice-prefeito, chegou ao local com seu
amigo, candidato a prefeito, no momento em que a mulher relatava o
incidente com o poste.
Curiosos, fecharam o comitê, e se dirigiram ao local. Quando lá
chegaram, logo constataram o problema, e resolveram descer ao
trapiche para ver de perto o que estava acontecendo. Depois de
alguns segundos, os fios, não suportando mais o peso do
poste,romperam-se, a lâmpada apagou e em seguida um flash de
luz, gerado por algas marinhas, acompanhado de um estrondo,
produziu um espetacular e inesperado efeito visual. Parecia o
prenúncio de uma notícia de capa ainda mais chocante que seria
publicada na edição seguinte da revista ACONTECEU, cujo título
seria “O dia em que Guaratuba afundou”.
Antes de prosseguir algumas explicações.
Havia na região atingida muitos sobrados coloniais com paredes de
quase um metro de largura, todos no estilo da antiga prefeitura. A
igreja matriz é hoje exemplo, um pouco exagerado, do modo que se
construía antigamente. Apesar de ter apenas um pavimento com dez
metros de altura, pesava o equivalente a um edifício de vinte
andares.
A avenida frontal à baía era larga, possuía duas vias, e estava
confinada por um muro de arrimo com três metros de altura. Essa
avenida era iluminada por uma fileira de postes de luz alinhados em
sua parte central. Fios de alta- tensão e transformadores
compunham uma intrincada rede elétrica. Era a região mais nobre,
em que o comércio predominava, e também onde estavam o
mercado municipal e a prefeitura.
Em frente à prefeitura, um trapiche avançava para dentro da baía.
Fora construído em um aterro de pedras e areia, ladeado por muros
de arrimo. Nesse trapiche, os barcos descarregavam suas
mercadorias. Era comum encontrar ali pilhas de toras de caxeta, uma
madeira usada na fabricação de lápis. Nesse dia, muitas dessas
pilhas estavam amontoadas ali, aguardando a chegada dos
caminhões, que as levariam ao seu destino.
O trapiche, ao ser construído dessa forma, prejudicou o fluxo da
maré vazante na região, invertendo seu sentido e aumentando a
correnteza. Um antigo córrego, agora obstruído por obras, cujo fluxo
buscou caminhos preferenciais, aumentou a erosão do subsolo sem
deixar vestígios de sua ação, pois o solo retirado era rapidamente
levado pela correnteza.Nessa noite, com o nível da água muito
baixo, a resistência das camadas de terra que sustentavam aquelas
pesadas edificações, atingiu o seu limite, iniciando o processo
erosivo, o qual foi rápido no início, tornando-se mais lento à medida
que a erosão avançava terra adentro.
Quando o poste caiu, os fios ainda conduzindo eletricidade,
chicoteavam na água. Meu pai, que estava no início do trapiche,
percebeu logo atrás dele uma rachadura de dez centímetros, e tratou
de alertar seus amigos.
A advertência foi desnecessária, pois com a mudança de inclinação,
as pilhas de toras escorregaram e se encarregaram dessa tarefa.
Todos correram até o local da fissura, que já apresentava desnível de
um metro. Se não fossem as toras, seriam tragados para o fundo do
mar em segundos.
Diversas rachaduras começaram a aparecer no muro de arrimo,
trincas surgiram por toda parte e o silêncio se desfez com os sons
estranhos que ecoavam, enquanto os postes balançavam declinando
irremediavelmente. Nesse momento em um trecho, metade da
avenida afundou, enquanto a poucos metros dali várias dezenas de
pessoas dormiam tranquilas.
Rapidamente começaram a bater nas portas das casas, alertando
seus ocupantes. Muitos correram, mesmo de pijama, e não tiveram
tempo de voltar para buscar sequer os seus documentos. Começou
então, uma louca gritaria, e em poucos minutos, havia centenas de
pessoas apavoradas, tentando entender o que estava acontecendo.
Nesse instante, a rede elétrica começou a deslizar para baixo, os fios
de alta-tensão se romperam saltitando repetidas vezes ao tocar
o solo. Um transformador explodiu como dinamite produzindo uma
intensa luz verde e a escuridão tomou conta da avenida. Nos
minutos seguintes, outros transformadores também explodiram,
deixando toda a região às escuras.
As fortes edificações começaram a ruir, estrondos descomunais
ecoaram dentro da noite, vozes, gritos e choros surgiram por toda a
parte, pessoas com lanternas, lampiões e velas corriam de um lado
para o outro.
Na praça central, distante um quarteirão, começaram a estacionar
caminhões, que levaram a população para locais considerados mais
seguros. Alguns desses caminhões voltaram e repetiram o
procedimento, outros só foram vistos novamente vários dias após.
Muitas famílias, tentando salvar seus pertences, estendiam um lençol
no chão, jogavam sobre ele o que podiam, amarravam as pontas
fazendo uma trouxa e corriam para os caminhões. Aos encontrões e
atropelos, alguns conseguiam assegurar sua partida, enquanto
outros menos afortunados eram obrigados a esperar por melhor
oportunidade.
O padre abriu a igreja e logo percebeu que não foi uma boa ideia.
Muitas pessoas procuraram abrigo ali, por entender ter chegado a
hora do juízo final. Boatos chegavam de toda parte anunciando
desmoronamento em outros locais, isolando as duas únicas saídas
da cidade. Não restava mais nada a fazer, urgia a necessidade de
pedir perdão a Deus e garantir-se para a nova vida.
O sacerdote, conhecendo o peso da construção onde estavam,
acreditou que ela afundaria antes mesmo da erosão atingi-la, ainda
mais com toda aquela sobrecarga, fornecida pelos que buscavam a
salvação da alma. Vendo-a lotar rapidamente, começou a gritar para
as pessoas saírem, mas foi uma tentativa vã.
A histeria tomou conta, ninguém podia ouvir nada, pois o ribombar
dos prédios caindo era ensurdecedor. Paredes de pedra pesando
toneladas, ao se chocar com a água, emitiam estrondos
inimagináveis, massas de água salgada eram lançadas a dezenas de
metros, clareando a noite com a bioluminescência das algas.
O caos tomou conta, não cabia mais ninguém dentro da igreja, que
possuía vários degraus desde o passeio até a sua entrada. Na
escuridão perturbada apenas por luzes fugazes, entre atropelos e
choros de crianças perdidas dos pais, um homem tentava salvar um
grande patrimônio daquela década: sua televisão. Ao correr com ela
nas costas, para um caminhão estacionado do outro lado, tropeçou
no primeiro degrau. A explosão do tubo de imagem, na escadaria da
igreja, só foi menor do que a ocorrida em seu interior. Somente
depois de vários minutos, o padre pôde ser resgatado, ainda vivo,
debaixo de um monte de beatas, as quais acharam, que segurando
na sua batina não se perderiam no caminho para o céu.
Quando amanheceu, quase toda a quadra havia desaparecido.
Milhares de itens flutuavam na baía. Podiam ser vistos desde
pacotes com novelos de lã até telhados de casa com cachorros em
cima.
Após esse episódio, a cidade sofreu dez anos de estagnação. Nesse
período houve quem vendeu seus imóveis por preços ínfimos, e até
quem simplesmente os abandonou.
Essa foi uma tragédia que não tirou vidas, porém, 27 anos depois o
resultado seria diferente.
O Edifício Atlântico
A descrição do solo litorâneo de Guaratuba, feita a seguir, baseia-se
apenas na experiência realizada pela observação, em mais de mil
obras que tomei parte.
Na primeira faixa paralela à praia, medindo em torno de duzentos
metros de largura, encontramos presença de areia fofa. Perfurando
essa camada, cerca de dois metros, achamos água. Poderíamos
obter uma fundação mais segura, nesse local, com estacas
cravadas, dependendo do peso, usaríamos sapata corrida ou radier.
A segunda faixa, ainda paralela à praia, tem largura variada, de cem
a quatrocentos metros, está suportando vegetação transitória entre a
mata rasteira da orla marítima e a floresta. É composta por uma
camada de areia fofa com cerca de dois metros de espessura,
abaixo desse ponto aparece mescla de um arenito conhecido como
piçarra, poderia ou não, haver surgimento de água. Já é possível
executar fundações com sapatas isoladas, desde que tomando muito
cuidado, pois há variação de resistência nesse tipo de solo.
No restante da cidade, temos características diversas como:
afloramento de piçarra, onde a vegetação mal consegue existir. É um
solo excelente para a construção, pois aceita qualquer tipo de
alicerce. Em boa parte temos uma camada de areia, variando de
quarenta centímetros a um metro e vinte, abaixo dela encontramos
a piçarra. Embora seja um solo bom para a construção, em muitos
locais, sob a areia, existe a presença de camadas de turfa ou lama,
que podem passar de dois metros de espessura..
A turfa e a lama, não possuem nenhuma resistência, mas a areia
branca compacta possui. Isto pode acarretar sérios problemas, caso
não seja feita uma boa sondagem. Em obras nas quais participei,
relativamente próximas ao local onde foi construído o Edifício
Atlântico, deparamos com esse tipo de solo.
A cronologia dos eventos, envolvendo o citado prédio de seis
pavimentos, conforme foi publicado na época, é a seguinte:
a) 17/08/1990. Sai o alvará para o início da obra.
b) 17/05/1993. A obra é concluída.
c) Novembro de 1993. São colocadas duas piscinas na cobertura,
cada uma
com capacidade em torno de 5.500 litros.
d) Início da temporada de verão de 1994. Moradores percebem
rachaduras nos apartamentos. Proprietários iniciam reclamações.
Inquilinos também reclamam.
e) Réveillon de 1994 para 1995. O prédio está lotado e aumenta a
pressão para o construtor tomar providências. É realizada reunião
dos condôminos e como consequência uma das piscinas é
esvaziada.
f) 23 de janeiro, segunda-feira. São iniciadas as obras de reforço das
vigas. Cerca de oito operários começaram as escavações. O
engenheiro responsável, Nei Batista Torres e seu filho César Torres,
que auxiliava o pai na construtora, moravam em uma das coberturas.
Eles acompanhavam o trabalho. O proprietário Hernani Zanquetti
chamou, por sua conta, pelo seu celular, dois engenheiros peritos em
estruturas, para fazer a avaliação da situação.
g) 24 de janeiro, terça-feira. Os operários cavam ao redor das vigas e
percebem que os ferros dos pés das colunas estavam tortos, e
alguns colarinhos quebrados. O concreto era de baixa qualidade e
esfarinhava. As vigas foram escoradas com vigotas de madeira.
h) 25 de janeiro, quarta-feira. Ao reiniciar os trabalhos para o reforço
nos colarinhos, com ferro e concreto, os operários encontram
escoras tortas, sendo que uma delas estava quebrada. São
colocadas escoras com peças mais resistentes. O caseiro, Sr. Miro, é
transferido para um apartamento no quarto andar, pois o seu não
tinha mais condições de uso e precisava ser desocupado.
i) 26 de janeiro, quinta-feira. As escoras mais resistentes também
apresentavam curvatura. O trabalho de reforço continuou, mas os
operários já não queriam mais trabalhar. Foi colocado um prumo, o
mesmo ficou estático, não indicando inclinação. Por volta das treze
horas e trinta minutos, chegam os dois peritos, que, com Nei, César
e os operários, fizeram uma avaliação das sapatas e dos
apartamentos. Após essa análise eles teriam dito! “Já vimos coisa
muito pior, podem trabalhar tranquilos”. Os peritos pediram que
usassem oito ferros de 3/8 polegadas e que continuassem com o
reforço. Depois disso, os operários voltaram ao trabalho com mais
ânimo.
j) 27 de janeiro, sexta-feira. Prosseguindo os reforços, os operários
ouviram estalos e o medo voltou a tomar conta de todos. César teria
sugerido ao pai para reunir os condôminos e evacuar o prédio.
k) 28 de janeiro, sábado. Chega mais uma equipe para ajudar,
totalizando agora dezesseis operários, divididos em dois grupos, um
para cada pilastra. O trabalho é iniciado pouco depois das sete horas
da manhã. Alguns operários não queriam trabalhar, mas após muita
discussão, todos decidiram continuar a tarefa. O fio de prumo agora
está balançando. Por volta das nove horas e trinta minutos, houve
um grande estouro, todos se assustaram
e paralisaram os trabalhos por alguns instantes. Há discussão e
gozação, uns querem parar outros não. Todos decidem voltar aos
postos. Alguns moradores pedem para os seus familiares descerem.
Alguns veículos foram retirados do estacionamento. Por volta das
dez horas e quinze minutos, ouve-se outro grande estouro bem
acima de uma das equipes de trabalhadores, todos saíram em
disparada, enquanto a outra equipe também se retirava. Só houve
tempo de chegar ao portão, e tudo veio abaixo, o solo tremeu e uma
grande nuvem de poeira se levantou. Nei e César ficaram
desesperados, mas foram contidos pelos operários.
Nos primeiros momentos, 28 pessoas morreram. Dizem que esse foi
um dos acidentes que causou o maior número de mortes, por
número de andar. Alguns se salvaram por questão de segundos.
Famílias saíram durante a noite, por não conseguirem dormir devido
aos estalos, outras chegaram pela manhã para passar o final de
semana, e outras ainda, que já rumavam para a praia, percebendo
que esqueceram a toalha ou o bronzeador, retornaram ao
apartamento de onde jamais conseguiram sair.
Mencionamos esses dois eventos por serem fenômenos raros,
improváveis de acontecer até em uma cidade grande e agitada,
quanto mais em um tranquilo balneário. Presenciei o primeiro, estava
com 13 anos de idade, e o segundo teve a ver com a minha
profissão, por essa razão achei importante citá-los.
Houve, ainda, um terceiro desastre, sendo que o seu início estava
inserido cronologicamente entre os dois já citados. Além de afetar
profundamente a paz da localidade, eu me tornei parte dos
acontecimentos. Hoje, quatorze anos após o ocorrido e depois de
violentas campanhas da mídia buscando inocentar os assassinos,
sinto que é meu dever tentar resgatar um pouco da verdade,
relatando o que realmente aconteceu.
O sumiço de crianças no Paraná
Pessoas sempre desaparecem. Contudo, ao longo de determinado
período, aconteceram alguns desaparecimentos com características
estranhas, diferentes do que normalmente ocorre. Há vários desses
casos ocorrendo ainda, mas o que aconteceu entre 1985 e 1992 teve
alguns contornos muito estranhos.
Crianças com idade em torno de sete anos, com sete letras no nome,
desapareceram, a predominância era de loiros, com olhos azuis.
Outro fato a considerar é que procediam de classe média, oriundas
de lares ajustados, o que destoava completamente dos sumiços
anteriores. A maioria dessas crianças jamais foi vista, mesmo com
poderosas e longas campanhas levadas a cabo, tanto pela imprensa
local como nacional.
Esses desaparecimentos ocorridos no Paraná eram inicialmente
distantes um do outro. Contudo, vindo o ano de 1992, a frequência
aumentou. Desapareceu uma criança em janeiro, duas em fevereiro,
três em março, e Evandro Ramos Caetano, dia 6 de abril de 1992.
Depois dessa criança, os desaparecimentos já não possuíam as
mesmas características, voltando a ser como antes, quase sempre
solucionados. Parecia haver um propósito.
Visto que ninguém teve coragem de impedir, ela foi conduzida aos
aposentos do casal. Lá, pediu para ficar a sós com a mãe de
Evandro. Criticou com veemência a atitude da família, em permitir
que a imprensa entrasse no caso. Afirmou que conceder uma
entrevista fora um grande erro, e arrematou dizendo: “Por causa
disto, OS CRIMINOSOS não serão descobertos”.
Manifestação repelida
O poema
Havia no município um tabloide, de nome Folha de Guaratuba, com
circulação periódica. Na edição após o enterro de Evandro, foi
publicado o seguinte poema:“
Que Deus dê o Reino dos Céus à sua pequenina alma, e paz nesta
outra vida que irá viver, pois com a sua morte, as famílias
guaratubanas ficarão sem paz, até que a justiça se faça a quem
bruscamente foi retirado de nosso convívio.
Nessa mesma noite, fui até a casa do Sr. Aldo Abagge pedir
informações sobre a proibição que o seu assessor de imprensa,
Paulo Brasil, estava fazendo com relação à divulgação do
desaparecimento de Evandro Ramos Caetano.
Respondi que desejava falar com o prefeito. Disse que não seria
possível, pois estava conversando com a polícia de Curitiba, que
acabara de chegar para investigar o desaparecimento de Evandro.
Tornei a insistir, assegurando ser melhor ainda, pois era sobre esse
assunto que eu tinha de tratar.
Após relutar, acabou chamando seu marido, que veio acompanhado
de Paulo Brasil e de um policial. O último só apareceu na porta e
retornou para o interior.
A investigação
O trabalho do Grupo Tigre desde o início esteve comprometido.
Serviu apenas para eliminar por exclusão algumas possibilidades.
Dois anos depois, entrei para a polícia civil como detetive, onde
fiquei oito anos na ativa e dois em regime de licença sem
vencimentos.
Pelas vias normais, uma reforma poderia levar muito tempo para ser
realizada, pois dependia de grande burocracia. Por intermédio da
nossa equipe, isso levaria apenas alguns dias, e ainda
conseguiríamos atender a todo o Paraná.
A administração do Sr. Acir Braga foi muito boa para Guaratuba, não
pelo que ele fez, mas sim pelo que ganhou do Estado. Inúmeras
obras foram executadas, como: pavimentação, escolas, postos de
saúde, ginásio de esportes, aeroporto, revestimento das vias de
acesso, rodoviária, creches, etc, tudo feito pelo governo estadual na
época chefiado pelo Sr. José Richa e depois pelo Sr. Álvaro Dias.
Durante as várias vezes que fui até a câmara para assegurar o meu
direito de usar a tribuna sempre me afirmaram que isso deveria ser
feito poucos minutos antes do início da sessão.
Acredito que essa era minha missão, pois, por mais que tenha
tentado evitar ir a tal extremo, não consegui, e ao longo dos três
anos seguintes publicaria oito panfletagens.
Para atrair seu apoio, caso viesse a disputar para prefeito, coloquei
em um de meus panfletos “Se for eleito, oferecerei a prefeitura para
o Sr. Roberto Requião, e juntos administraremos”. A repercussão foi
bombástica, a população entendeu o quanto seria promissor para
nós se isto acontecesse. Votar em mim seria colocar o governador
dentro da prefeitura.
Era uma estratégia que poderia dar certo, com esse panfleto o
quadro começava a delinear-se para as eleições municipais. De um
lado o filho de um ex-prefeito muito bem votado, com maciço apoio
popular, e aliado do governo estadual, de outro lado à situação
desmoralizada e saindo de uma péssima administração. Estava difícil
até para lançar candidato.
Conversei com ele sobre a minha entrada. Ele gostou muito, mas
queria que eu concorresse a prefeito, porque ele já havia tentado
antes e acreditava ser melhor concorrer à vaga de vereador. No
fundo, sua preocupação era com a legenda, pois se eu não
concorresse com ele ao Legislativo, seu retorno estava garantido.
Mas aconteceu.
Para mim isso não tinha mais importância, pois o que realmente
imperava era esclarecer o fato, agora só restaria lutar por justiça,
pois também não achei que o desaparecimento de Evandro fosse
apenas mera coincidência.
Tem sido difícil para mim imaginar que Celina Abagge escolheu
Evandro como forma de nos intimidar. Só sinto grande conforto
quando olho para um dos dois milhões de cartazes publicados pelo
Lions Club, com os retratos das crianças desaparecidas no Paraná, e
vejo que em janeiro de 1992 sumiu uma criança, em fevereiro
sumiram duas, em março sumiram três, em abril sumiu Evandro, e
depois ninguém mais. Foram sete crianças em três meses.
Teria sido Evandro, o novo Cristo que precisaria ser sacrificado, para
que outros pudessem viver?
O plano de reverter tudo que se sabia até então, foi bem arquitetado,
trouxeram um sósia de Leandro Bossi de muito longe, porém não
mediram adequadamente os meios utilizados na divulgação, e a
própria rede de comunicação que ajudou a cometer este crime, fez
com que os familiares do menino o reconhecessem em Manaus, por
meio do programa “Fantástico”.
Nos dias que seguiram, pude conhecer melhor Euclides e tudo que
aconteceu com ele, e com os policiais do Grupo Tigre. Pude
entender melhor a razão daquela agressão contra a casa do prefeito
Aldo Abagge.
Sem ter onde e como pedir por justiça, o Caso Evandro caiu no
esquecimento. Passou-se para o Brasil a impressão de que não
havia interesse da família nem clamor público. Dessa forma, os
assassinos e seus defensores conseguiram ambiente favorável para
pleitear seus objetivos, como atrasar seus julgamentos e aproveitar
todas as brechas da lei brasileira para escapar à aplicação da pena,
pois os anos de prisão domiciliar, mesmo não tendo sido cumpridos,
também seriam computados no final.
Exerci essa profissão por oito anos, antes de tirar licença sem
vencimentos e voltar a residir em Guaratuba.
Entre os motivos que me levaram a retornar para o litoral, o mais
importante foi o de unir os dois irmãos. Minha mãe morava
apenas com a neta em um enorme sobrado com cerca de
quinhentos metros quadrados.
Foi um erro que cometi, mas tudo foi um processo lento, nem
me dei conta, pois preocupado em fazer dela um exemplo de
virtudes, esqueci que Rosirene tinha uma infância e
adolescência para viver.
Foi difícil concordar com isso, pois sabia que o destino deles a
partir daquele instante estava perigosamente comprometido.
Mesmo assim, não interferi mais.
– O Caso Aruba
– A Coação de Testemunhas
Caso aceitasse seria levado a São José dos Pinhais, onde um juiz
amigo da família Abagge estaria esperando, para tomar seu
depoimento e fornecer uma espécie de salvo-conduto, que o
impediria de ser preso ou molestado por qualquer tipo de polícia que
fosse.
– O Suicídio da Testemunha
Soubemos que esse médico deixou esposa e três filhos, e que ele
estava sendo ameaçado por forças poderosas, as quais exigiam que
não depusesse em juízo, pois se fizesse isso em breve dariam um
jeito de fazê-lo perder o emprego, como fizeram com alguns
repórteres e como tentaram fazer com a juíza de Guaratuba.O
médico, não suportando a pressão e com medo de não poder
terminar de criar seus filhos, preferiu morrer garantindo a
aposentadoria para a sua família. Muitas pessoas, inclusive
delegados com os quais trabalhei, não acreditam que tenha havido
suicídio.
Epílogo
A imprensa acendeu-nos a luz da esperança, quando divulgou o
desaparecimento de Evandro, e depois a apagou.