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Ludmila Brandão
A primeira fase até que é tranqüila, a coisa se põe a subir num ritmo
controlado, seguro, previsível. A gente vai se acostumando, o corpo começa a
distender, aos poucos está gostando (...). Aquilo é ótimo, a gente se sente feliz
como nunca, (...) descobrimos que o céu aberto é sem limites, bate uma euforia
que nos faz rir descontroladamente (...), estufamos o peito, esticamos o pescoço,
fazemos bico com os lábios para beijar o céu e...
Vamos agora tentar esmiuçar essa narrativa composta de várias fases. Para
Sevcenko, a primeira subida da montanha-russa, a ascensão contínua, metódica e
persistente pode muito bem ser comparada ao longo período que vai do XVI a meados
do século XIX com as conquistas tecnológicas no campo da produção de energia, dos
meios de transporte e dos conhecimentos especializados (a ascensão da era moderna). A
precipitação súbita, por sua vez, a vertigem da descida incontrolável a ponto da perda
das “faculdades conscientes” equivaleria, na história ocidental, ao que se desencadeou
na seqüência da Revolução Científico-Tecnológica ocorrida por volta de 1870, com as
novas fontes de energia, os novos meios de transporte e de comunicação, que colocou o
mundo, subitamente, na mais terrível experiência de guerra. Uma primeira guerra
mundial, cuja escala destrutiva inédita só seria superada por seu desdobramento
histórico: a segunda. Finalmente, no loop da montanha, Sevcenko situa a experiência
contemporânea, pós Revolução da Microeletrônica, ou seja, a partir de meados do
século XX, quando, segundo o autor, a escala das mudanças desencadeadas (...) é de
uma tal magnitude que faz os dois momentos anteriores parecerem projeções em
câmera lenta2.
1
Nicolau Sevcenko. A corrida para o século XXI. No loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001, pp. 12-13.
2
Idem, p.16.
2
vertiginosa, aterrorizante. Muito pior que o inferno, é a queda em sua direção. O corpo
ameaçado de virar pó ou pasta. Todo ele se esforça para sair de si, no sentido oposto ao
sentido do vagão que se precipita. Em favor desta sensação, comparada ao que nos
reserva o loop, podemos dizer que, apesar de tudo, as referências estão mantidas. Céu e
chão permanecem nas mesmas posições. O centro de gravidade do corpo se mantém na
mesma região. Isso significa dizer que ele é presente, ainda que sua única direção seja
sair de si, como a alma que resvala pela boca, para escapar à insuportável velocidade e
ao choque fatal que se configura naquele ponto exato, ponto de fuga que suga tudo o
que segue nesses trilhos, dos quais, não se escapa. Esta descida pode nos eliminar, mas
não nos põe fora dos trilhos. Por outro lado, o parafuso, o loop, ou a seqüência de loops
das montanhas-russas mais audaciosas, que se seguirão na louca corrida, provam que
ainda é muito pouco cair em direção única, mantendo fixas as referências. No olho do
turbilhão, o que se experimenta é a redução do corpo à condição de grão de areia
engolfado na potência geológica de um maremoto3, mas também a confusão do espaço,
o enovelamento das direções, a transformação dos centros de gravidade em bolas de
pinball em seus movimentos inesperados. Descobre-se finalmente que os trilhos lhe
foram roubados. Nesta circunstância, o corpo não é apenas ameaçado de se arrebentar
em algum lugar. O corpo denso se desfaz, se liquefaz, se gaseifica. É pura virtualidade.
Não há espaço-tempo possível para territorializá-lo, por um instante que seja. É vetor
apenas.
Indo por partes e, ainda assim, só tocando algumas das questões aí implicadas,
podemos dizer:
O mundo mudou. E mais do que o fato de ter mudado em uma escala que nos
permite falar em revolução, mudamos nós e a nossa compreensão dos processos do
mundo. Até bem pouco tempo atrás só concebíamos as transformações de um sistema
segundo leis de estabilidade. Apenas podíamos pensar em termos de sistemas dinâmicos
estáveis nos quais as mudanças, mesmo as mais radicais, só se dariam segundo uma
movimentação que buscasse recompor, o tempo todo, algum equilíbrio. Tudo o que
frustrasse essa expectativa seria lançado no caldeirão indiscernível do caos. Só uma
3
Idem, p. 13.
3
física contemporânea, produzida no mesmo solo dessa radical intensificação dos
processos históricos, foi capaz de compreender que a instabilidade, longe de ser o
colapso dos sistemas pode ser o mecanismo que garante a produção da diferença e da
complexificação dos processos. Ou seja, é essa física que concebe a instabilidade como
norma, que nos permite compreender que é possível viver num loop de montanha russa,
ainda é claro que a vida aí não seja tão confortável como sonhávamos no projeto
moderno. Se no primeiro sistema (vamos dizer “moderno”) podíamos falar em
previsibilidades (o que deu ensejo à ciência a emitir previsões, conceber regularidades
históricas, por exemplo), neste nosso caso (pós-moderno, ou apenas contemporâneo)
deveremos nos conformar com os jogos complexos das probabilidades. É o fim das
certezas, diz-nos Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química.
Nessa esteira, são muitos (uns mais aflitivamente que outros) os que acabam
apontando para uma experiência contemporânea que confunde céu e terra e dissolve
referências. Jean-François Lyotard falou, há 25 anos, no fim das grandes narrativas.
Disse que neste nosso mundo não há mais nenhuma mega teoria – narrativa, portanto –
que dê suporte lógico, explicativo aos seus eventos. O estruturalismo parece ter sido a
última tentativa. Ou ainda que, à revelia das tentativas teóricas, o pós-moderno definir-
se-ia por uma incredulidade em relação aos metarrelatos4. Como um dos precursores da
discussão sobre o pós-moderno, Lyotard inova ao reunir, sob uma mesma análise
narrativa, elementos que anteriormente eram considerados de forma separada 5 porque
eram compreendidos como pertencentes a distintas esferas, como é o caso da famosa
divisão entre infraestrutura e superestrutura operada pelo marxismo. E com isso, além
de denunciar a obsolescência dos metarrelatos, Lyotard abre caminho para novas
4
Jean-François Lyotard. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. 5a. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1998.
5
Michael Peters. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000,, p. 18.
4
abordagens que, sobretudo, recusam a ambição totalizadora e, de certa forma,
apaziguadora de nossas mais terríveis angústias.
6
Fredric Jameson. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco.
2a ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 13.
7
Idem, p. 14.
8
Tradução livre: Michael Hardt e Antonio Negri. Empire. Traduit de l’américain par Denis-Armand
Canal. Paris: Exils Éditeur, 2000, pp. 17-18.
5
Isso que num capitalismo tradicional se configuraria apenas como articulador do
processo de produção – capital/trabalho/matéria bruta –, uma informação efetivando
conexões entre os elementos desse grande jogo de produção de riqueza, passa a ser a
própria riqueza do jogo. Só uma economia virtualizada como a contemporânea pode se
dar ao luxo (e lixo) de operar esse deslocamento de valor. Não há ainda melhor exemplo
disso que o fenômeno das bolsas de valores e seus regimes instáveis e interligados, à
mercê dos menores acontecimentos. Cabe lembrar a famosa parábola do “efeito
borboleta”: a batida de asas de uma borboleta na bacia amazônica pode afetar o tempo
que fará nos Estados Unidos9.
9
Ilya Prigogine. O fim das certezas. Tempo, caos e as leis da natureza. Trad. Roberto Leal Ferreira. São
Paulo: Editora da UNESP, 1996, p. 32.
6
planetária. Tenhamos ou não, individualmente ou em grupo, acesso às geringonças da
informação, o fato é que estamos todos na rede e nosso presente sendo construído com
ou a partir desse dado, por sinal, irreversível.
É apropriado lembrar aqui uma entrevista de Albert Einstein, citada por Pierre
Lévy em seu livro Cibercultura10, na qual declarou, já nos anos 50, que três grandes
bombas haviam explodido no século XX: a bomba demográfica, a bomba atômica e a
bomba das telecomunicações. Recentemente Roy Ascott passou a referir-se a isso que
Einstein chamou de bomba das telecomunicações como sendo o “segundo dilúvio”. Isto
por conta, diz Pierre Lévy, da natureza exponencial, explosiva e caótica do crescimento
das telecomunicações11. Diz ainda:
É bom que nos demos conta disso, pois nos poupará de empreitadas inúteis, de
sonhos de redenção. Ao tratar de conhecimento no mundo contemporâneo, poderíamos
perguntar, o que é importante? Ou o que deveríamos saber para não desintegrar
10
Pierre Lévy. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999.
11
Idem, p.13.
12
Idem, ibidem.
13
Idem, pp. 160-161.
7
mediante as forças centrífugas do loop ou das ondas gigantescas de um dilúvio
(informações contraditórias, excesso de informações, etc.) Poderíamos achar que o
melhor seria agir como Noé: construir uma arca para conservar o conjunto de
conhecimentos que considerássemos “o principal”. E aí estaríamos todos metidos numa
grande “operação pente-fino”, separando informações e saberes, para em seguida
autenticá-los assegurando, para alguns, um lugar na grande arca. Há quem acredite
ainda hoje que seja este o papel da “educação”. Ora, o que o contemporâneo (ou o pós-
moderno, se preferirem) vem nos indicando é a impossibilidade de produzir
totalizações.
Se não nos salvamos das águas e nem nos cabe operações de resgate, o que nos
resta? O que sobra para as subjetividades?
14
Idem, p. 161.
8
interpelam, se chocam ou se misturam sobre as águas do dilúvio informacional 15. A
alternativa para nós nesse dilúvio é sondar o movimento de suas águas, montar suas
ondas. Être aux aguets, diria Deleuze, ou seja, estar atento como os animais. Nossos
territórios viraram pranchas, apenas, mas exatamente por não serem arcas-de-Noé auto-
suficientes e gigantescas, podem proporcionar belos e inusitados deslocamentos, tal a
leveza, a flexibilidade e a agilidade que lhes são características. Por certo que esses
novos territórios, portáteis, por demasiado instáveis e, sobretudo, na pequena escala de
nosso corpo, por vezes, nos enche de medo e angústia.
15
Idem, ibidem.