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O CHOQUE DO PRESENTE

Notas sobre a experiência contemporânea

Ludmila Brandão

Vou começar a nossa conversa lendo um trecho da genial introdução do livro A


corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa do historiador Nicolau
Sevcenko. Na narrativa de uma única viagem na montanha-russa, ele encontra a imagem
equivalente para a experiência do mundo ocidental desde o século XVI. Colocando-nos,
depois de uma certa relutância e temor, na estranha geringonça que logo se põe em
movimento, dá-nos a medida de uma situação cujo caráter é irreversível. Impossível
desistir. Ninguém jamais desceu de um vagão em movimento na montanha-russa, sem
que a viajem chegasse ao fim. Então, Sevcenko diz:

A primeira fase até que é tranqüila, a coisa se põe a subir num ritmo
controlado, seguro, previsível. A gente vai se acostumando, o corpo começa a
distender, aos poucos está gostando (...). Aquilo é ótimo, a gente se sente feliz
como nunca, (...) descobrimos que o céu aberto é sem limites, bate uma euforia
que nos faz rir descontroladamente (...), estufamos o peito, esticamos o pescoço,
fazemos bico com os lábios para beijar o céu e...

...e de repente o mundo desaba e leva a gente de cambulhada. É o terror mais


total (...). O pânico se incorpora a cada célula e extravasa por todos os poros da
pele. (...) É o caos, é o fim, é o nada. Até que chega o solavanco de uma nova
subida, não mais precisa e reconfortante como a primeira, agora mais um
tranco que atira a gente para diante e para trás (...). Nem um instante e já
mergulhamos no precipício outra vez. Agora o carro chacoalha para os lados e
arremete em curvas impossíveis, é total a certeza de que aquilo vai voar dos
trilhos, catapultado pelo espaço até se arrebentar longe dali. Outro baque de
subida, nem o tempo de piscar e a queda livre que enche as vísceras de vácuo e
faz o coração saltar pela boca. E agora, meu Deus, o loop...!
Aaaaaaaahhhhhhhh.......!!!!!!! Rodamos no vazio como um ioiô cósmico, um
brinquedo fútil dos elementos, um grão de areia engolfado na potência
geológica de um maremoto. Nada mais nos assusta 1.

Vamos agora tentar esmiuçar essa narrativa composta de várias fases. Para
Sevcenko, a primeira subida da montanha-russa, a ascensão contínua, metódica e
persistente pode muito bem ser comparada ao longo período que vai do XVI a meados
do século XIX com as conquistas tecnológicas no campo da produção de energia, dos
meios de transporte e dos conhecimentos especializados (a ascensão da era moderna). A
precipitação súbita, por sua vez, a vertigem da descida incontrolável a ponto da perda
das “faculdades conscientes” equivaleria, na história ocidental, ao que se desencadeou
na seqüência da Revolução Científico-Tecnológica ocorrida por volta de 1870, com as
novas fontes de energia, os novos meios de transporte e de comunicação, que colocou o
mundo, subitamente, na mais terrível experiência de guerra. Uma primeira guerra
mundial, cuja escala destrutiva inédita só seria superada por seu desdobramento
histórico: a segunda. Finalmente, no loop da montanha, Sevcenko situa a experiência
contemporânea, pós Revolução da Microeletrônica, ou seja, a partir de meados do
século XX, quando, segundo o autor, a escala das mudanças desencadeadas (...) é de
uma tal magnitude que faz os dois momentos anteriores parecerem projeções em
câmera lenta2.

Gosto muito dessa imagem-movimento da experiência ocidental formulada por


Sevcenko, principalmente porque coloca o corpo no centro da experiência. Não é uma
experiência apenas intelectual. É claro que estamos falando de um corpo que não é do
indivíduo, ainda que essa história se repercuta nele. O que acontece com o corpo na
montanha russa? A subida da montanha é firme, no compasso e no ritmo constante.
Distancia-se do chão, em direção ao céu (ao infinito?), mantendo firmes as referências
fixas sejam elas o próprio chão, o passo lento da geringonça, o céu na outra ponta e,
sobretudo, o centro de gravidade do corpo em ascensão. A subida é segura, cheia de
otimismo, o corpo é mais e mais potente  como se não corresse nenhum risco, vale
dizer que diferente de nós que conhecemos a montanha russa e sabemos suas fases, esse
corpo não sabia o futuro , quando de repente, tudo isso se esvai, se desfaz na descida

1
Nicolau Sevcenko. A corrida para o século XXI. No loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001, pp. 12-13.
2
Idem, p.16.

2
vertiginosa, aterrorizante. Muito pior que o inferno, é a queda em sua direção. O corpo
ameaçado de virar pó ou pasta. Todo ele se esforça para sair de si, no sentido oposto ao
sentido do vagão que se precipita. Em favor desta sensação, comparada ao que nos
reserva o loop, podemos dizer que, apesar de tudo, as referências estão mantidas. Céu e
chão permanecem nas mesmas posições. O centro de gravidade do corpo se mantém na
mesma região. Isso significa dizer que ele é presente, ainda que sua única direção seja
sair de si, como a alma que resvala pela boca, para escapar à insuportável velocidade e
ao choque fatal que se configura naquele ponto exato, ponto de fuga que suga tudo o
que segue nesses trilhos, dos quais, não se escapa. Esta descida pode nos eliminar, mas
não nos põe fora dos trilhos. Por outro lado, o parafuso, o loop, ou a seqüência de loops
das montanhas-russas mais audaciosas, que se seguirão na louca corrida, provam que
ainda é muito pouco cair em direção única, mantendo fixas as referências. No olho do
turbilhão, o que se experimenta é a redução do corpo à condição de grão de areia
engolfado na potência geológica de um maremoto3, mas também a confusão do espaço,
o enovelamento das direções, a transformação dos centros de gravidade em bolas de
pinball em seus movimentos inesperados. Descobre-se finalmente que os trilhos lhe
foram roubados. Nesta circunstância, o corpo não é apenas ameaçado de se arrebentar
em algum lugar. O corpo denso se desfaz, se liquefaz, se gaseifica. É pura virtualidade.
Não há espaço-tempo possível para territorializá-lo, por um instante que seja. É vetor
apenas.

O que significa dizer que isso é nossa experiência contemporânea?

Indo por partes e, ainda assim, só tocando algumas das questões aí implicadas,
podemos dizer:

O mundo mudou. E mais do que o fato de ter mudado em uma escala que nos
permite falar em revolução, mudamos nós e a nossa compreensão dos processos do
mundo. Até bem pouco tempo atrás só concebíamos as transformações de um sistema
segundo leis de estabilidade. Apenas podíamos pensar em termos de sistemas dinâmicos
estáveis nos quais as mudanças, mesmo as mais radicais, só se dariam segundo uma
movimentação que buscasse recompor, o tempo todo, algum equilíbrio. Tudo o que
frustrasse essa expectativa seria lançado no caldeirão indiscernível do caos. Só uma

3
Idem, p. 13.

3
física contemporânea, produzida no mesmo solo dessa radical intensificação dos
processos históricos, foi capaz de compreender que a instabilidade, longe de ser o
colapso dos sistemas pode ser o mecanismo que garante a produção da diferença e da
complexificação dos processos. Ou seja, é essa física que concebe a instabilidade como
norma, que nos permite compreender que é possível viver num loop de montanha russa,
ainda é claro que a vida aí não seja tão confortável como sonhávamos no projeto
moderno. Se no primeiro sistema (vamos dizer “moderno”) podíamos falar em
previsibilidades (o que deu ensejo à ciência a emitir previsões, conceber regularidades
históricas, por exemplo), neste nosso caso (pós-moderno, ou apenas contemporâneo)
deveremos nos conformar com os jogos complexos das probabilidades. É o fim das
certezas, diz-nos Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química.

A compreensão dessa significativa ruptura é diferentemente desenvolvida por


vozes de todas as disciplinas. Aliás, a polifonia anunciando uma era é um bom
termômetro para avaliarmos a importância ou a magnitude de uma mudança. Quando
um acontecimento avança sobre múltiplas áreas do saber, da física à filosofia, quando
contamina a arte, quando repercute no senso comum, é fonte segura que algo importante
se passa aí.

Nessa esteira, são muitos (uns mais aflitivamente que outros) os que acabam
apontando para uma experiência contemporânea que confunde céu e terra e dissolve
referências. Jean-François Lyotard falou, há 25 anos, no fim das grandes narrativas.
Disse que neste nosso mundo não há mais nenhuma mega teoria – narrativa, portanto –
que dê suporte lógico, explicativo aos seus eventos. O estruturalismo parece ter sido a
última tentativa. Ou ainda que, à revelia das tentativas teóricas, o pós-moderno definir-
se-ia por uma incredulidade em relação aos metarrelatos4. Como um dos precursores da
discussão sobre o pós-moderno, Lyotard inova ao reunir, sob uma mesma análise
narrativa, elementos que anteriormente eram considerados de forma separada 5 porque
eram compreendidos como pertencentes a distintas esferas, como é o caso da famosa
divisão entre infraestrutura e superestrutura operada pelo marxismo. E com isso, além
de denunciar a obsolescência dos metarrelatos, Lyotard abre caminho para novas

4
Jean-François Lyotard. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. 5a. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1998.
5
Michael Peters. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000,, p. 18.

4
abordagens que, sobretudo, recusam a ambição totalizadora e, de certa forma,
apaziguadora de nossas mais terríveis angústias.

São famosas algumas análises que a seguir fundiram, principalmente, economia


e cultura. Fredric Jameson, em seu Pós-modernismo, assegurará a existência de uma
lógica, note-se, cultural para o novo capitalismo, doravante chamado de capitalismo
tardio. Em Jameson este é um mundo no qual a “cultura” se tornou uma verdadeira
‘segunda natureza’6 e uma das pistas para compreendê-lo, portanto, para nele detectar o
que se constituiria como pós-moderno, é conhecer isso que aconteceu com a cultura:
uma dilatação imensa de sua esfera (a esfera da mercadoria)7. Na cultura pós-moderna,
ela própria se tornou um produto.

Mais recentemente, Michael Hardt e Antonio Negri, em um fabuloso livro


chamado Império, dizem que na pós-modernização da economia mundial, a criação de
riqueza tende mais para isso que chamamos de produção biopolítica, isto é, a produção
da própria vida social na qual a economia, a política e a cultura coincidem cada vez
mais e se investem mutuamente8. Por esse viés compreendemos a valorização cada vez
mais intensa de um tipo de trabalho que produz bens não materiais, qual seja um
serviço, um produto cultural, o conhecimento ou apenas a comunicação. A esse tipo
específico de trabalho, os autores chamarão de trabalho imaterial.

Do lado da tradicional e ordinária produção de bens materiais – afinal,


continuamos dependentes deles – é cada vez maior o distanciamento do trabalhador do
objeto material de seu trabalho, uma vez que a atividade humana passa a ser convocada
apenas para a manipulação dos símbolos e das informações que colocarão em curso a
produção automatizada. Trabalhadores do ABC paulista manifestam perplexidade
quando passaram a ser instados, depois de décadas de mão-na-massa, a se entenderem
com computadores e com as linguagens verbo-visuais com as quais funcionam.
Descobre-se que, inclusive neste campo, aos homens compete menos transformar as
matérias – delegada às máquinas – que tão somente produzir mensagens, transmitir
informações, emitir ordens.

6
Fredric Jameson. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco.
2a ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 13.
7
Idem, p. 14.
8
Tradução livre: Michael Hardt e Antonio Negri. Empire. Traduit de l’américain par Denis-Armand
Canal. Paris: Exils Éditeur, 2000, pp. 17-18.

5
Isso que num capitalismo tradicional se configuraria apenas como articulador do
processo de produção – capital/trabalho/matéria bruta –, uma informação efetivando
conexões entre os elementos desse grande jogo de produção de riqueza, passa a ser a
própria riqueza do jogo. Só uma economia virtualizada como a contemporânea pode se
dar ao luxo (e lixo) de operar esse deslocamento de valor. Não há ainda melhor exemplo
disso que o fenômeno das bolsas de valores e seus regimes instáveis e interligados, à
mercê dos menores acontecimentos. Cabe lembrar a famosa parábola do “efeito
borboleta”: a batida de asas de uma borboleta na bacia amazônica pode afetar o tempo
que fará nos Estados Unidos9.

Curiosamente, enquanto os imperialismos todos sonharam com a construção de


um só mundo, sob controle único, e fracassaram um a um, é neste momento de
tendência política exatamente inversa, ou seja, de reconhecimento dos movimentos de
constituição de novos estados nacionais, justificados por particularidades histórico-
culturais, é neste cenário de Babel legitimada que vemos efetivar-se a grande aldeia
global. Parece-nos impossível atribuir este fenômeno à outra coisa que não o fato da
informação atravessar de ponta a ponta a cena do mundo contemporâneo.

E aí voltemos ao que dizem os analistas do presente. São muitos os autores que


creditam às novas tecnologias, particularmente às tecnologias de comunicação, o mega-
agenciamento do contemporâneo, ou seja, são elas que tornam possível, constroem e
definem o contemporâneo. Esses mesmos analistas podem variar quanto à localização
no tempo do evento/processo que teria consubstanciado a grande virada do
contemporâneo em relação ao mundo moderno. Uns datam da invenção do telégrafo,
outros falam em revolução microeletrônica, há os que a situam no aparecimento dos
primeiros computadores e, finalmente, aqueles que garantem que a virada se deu com a
democratização do uso de computadores, ou seja, com a construção e barateamento dos
microcomputadores pessoais disponibilizados em larga escala, associada à possibilidade
de comunicação entre essas unidades dispersas no mundo, que resultou na criação da
rede de comunicação de dimensões jamais previstas – a internet. Isso não só teria
efetivado a grande rede mundial, cuja virtualidade não a destitui do estatuto de
realidade, como querem alguns, como tornou possível, de fato, uma história de ordem

9
Ilya Prigogine. O fim das certezas. Tempo, caos e as leis da natureza. Trad. Roberto Leal Ferreira. São
Paulo: Editora da UNESP, 1996, p. 32.

6
planetária. Tenhamos ou não, individualmente ou em grupo, acesso às geringonças da
informação, o fato é que estamos todos na rede e nosso presente sendo construído com
ou a partir desse dado, por sinal, irreversível.

É apropriado lembrar aqui uma entrevista de Albert Einstein, citada por Pierre
Lévy em seu livro Cibercultura10, na qual declarou, já nos anos 50, que três grandes
bombas haviam explodido no século XX: a bomba demográfica, a bomba atômica e a
bomba das telecomunicações. Recentemente Roy Ascott passou a referir-se a isso que
Einstein chamou de bomba das telecomunicações como sendo o “segundo dilúvio”. Isto
por conta, diz Pierre Lévy, da natureza exponencial, explosiva e caótica do crescimento
das telecomunicações11. Diz ainda:

A quantidade bruta de dados disponíveis se multiplica e se acelera. (...) Os


contatos transversais entre os indivíduos proliferam de forma anárquica. É o
transbordamento caótico das informações, a inundação de dados, as águas
tumultuosas e os turbilhões da comunicação, a cacofonia e o psitacismo
ensurdecedor das mídias, a guerra das imagens, as propagandas e as contra-
propagandas, a confusão dos espíritos.12

Pierre Lévy nos devolve à experiência da montanha-russa descrita por Sevcenko,


agora em outros termos. A imagem do dilúvio diz que é impossível tentar proteger-se
construindo muralhas de contenção, ou quebrando a fúria das águas com enseadas
artificiais, ou ainda abrir-se às ondas conforme as julgasse pacíficas. Não há salvação
para essas águas. Elas já tomaram conta de tudo. Para melhor e para pior, não haverá
vazante para esse dilúvio. Pierre Lévy diz que só nos resta nos acostumar com essa
profusão e desordem (...), nenhuma grande reordenação, nenhuma autoridade central
nos levará de volta à terra firme nem às paisagens estáveis e bem demarcadas
anteriores à inundação13.

É bom que nos demos conta disso, pois nos poupará de empreitadas inúteis, de
sonhos de redenção. Ao tratar de conhecimento no mundo contemporâneo, poderíamos
perguntar, o que é importante? Ou o que deveríamos saber para não desintegrar

10
Pierre Lévy. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999.
11
Idem, p.13.
12
Idem, ibidem.
13
Idem, pp. 160-161.

7
mediante as forças centrífugas do loop ou das ondas gigantescas de um dilúvio
(informações contraditórias, excesso de informações, etc.) Poderíamos achar que o
melhor seria agir como Noé: construir uma arca para conservar o conjunto de
conhecimentos que considerássemos “o principal”. E aí estaríamos todos metidos numa
grande “operação pente-fino”, separando informações e saberes, para em seguida
autenticá-los assegurando, para alguns, um lugar na grande arca. Há quem acredite
ainda hoje que seja este o papel da “educação”. Ora, o que o contemporâneo (ou o pós-
moderno, se preferirem) vem nos indicando é a impossibilidade de produzir
totalizações.

Se na Enciclopédia o conhecimento era totalizável porque um pequeno grupo de


homens podia esperar dominar o conjunto dos saberes, o século XX, com a ampliação
do mundo, a progressiva descoberta de sua diversidade, o crescimento cada vez mais
rápido dos conhecimentos científicos e técnicos14, demonstrará a impossibilidade de um
projeto de domínio do saber. O conhecimento passou a ser da ordem do intotalizável.
Não há lugar para arcas-de-Noé.

Se não nos salvamos das águas e nem nos cabe operações de resgate, o que nos
resta? O que sobra para as subjetividades?

É verdade que todos nós, indivíduos ou grupos, precisamos de zonas de


familiaridade, mesmo em meio ao dilúvio. Estamos às voltas, o tempo todo, com a
constituição de territórios, de espaços que nos deixem à vontade, que nos faça nos sentir
em casa. O que é preciso compreender é que, além de não mais se tratarem de palácios
que abrigariam as essências todas, da nossa cultura, do nosso modo de ser, a própria
identidade intacta (para brincar: o fundo do meu “eu”), de serem esses territórios
absolutamente modestos, na escala do corpo que virou grão de areia, nada poderoso,
então, além de nossos territórios funcionarem mais como uma frota de pequenas arcas,
barcas ou sampanas, uma miríade de pequenas totalidades, como a bela imagem
invocada por Pierre Lévy, todas muito diferentes entre si, além disso tudo, deveremos
considerar a natureza e a urgência de seu caráter provisório: milhares, milhões de
pequenos territórios instáveis, perpetuamente reconstruídos que se cruzam, se

14
Idem, p. 161.

8
interpelam, se chocam ou se misturam sobre as águas do dilúvio informacional 15. A
alternativa para nós nesse dilúvio é sondar o movimento de suas águas, montar suas
ondas. Être aux aguets, diria Deleuze, ou seja, estar atento como os animais. Nossos
territórios viraram pranchas, apenas, mas exatamente por não serem arcas-de-Noé auto-
suficientes e gigantescas, podem proporcionar belos e inusitados deslocamentos, tal a
leveza, a flexibilidade e a agilidade que lhes são características. Por certo que esses
novos territórios, portáteis, por demasiado instáveis e, sobretudo, na pequena escala de
nosso corpo, por vezes, nos enche de medo e angústia.

Cuiabá, 12 de abril de 2004

Ludmila Brandão é Professora da Universidade Federal de Mato Grosso. Fundadora e primeira


Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - Área
Interdisciplinar / Mestrado e Doutorado nota 4 - da UFMT (2008-2011). Fundadora e primeira
Coordenadora da Rede CO3 (Rede Centro Oeste de Ensino e Pesquisa em Arte, Cultura e
Tecnologias Contemporâneas). Coordena PNPD Institucional/CAPES intitulado "Artes Visuais
em Mato Grosso: acervo, difusão e crítica". É membro da Associação Brasileira de Críticos de
Arte - ABCA e Curadora do Museu de Arte e Cultura Popular da UFMT (MACP/UFMT).
Atua no campo da Análise e da Crítica Cultural, da Crítica de Arte, no debate sobre a
"contemporaneidade", a colonialidade do saber e da arte, abordando especialmente os tópicos:
arte, cidade, subjetividades, subalternidade e resistência, além das práticas de cópia e similares
como práticas contemporâneas. Principal publicação: A Casa Subjetiva: matérias, afectos e
espaços domésticos (São Paulo: Perspectiva, 2008, 1 reimpressão).

15
Idem, ibidem.

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