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Divisão de Serviços Técnicos

Catalogação da publicação na Fonte. UFRN/Biblioteca Central Zila Mamede

Sobrenome, Autor.

Título : Subtítulo / Autor Sobrenome. – Natal, RN: EDUFRN, 2014.

28 p.

ISBN 978-85-7273-000-00

1. Palavra chave. 2. Palavra chave. I. Título.

RN/UF/BCZM 2014/87 CDD 344.07


CDU 342.733

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Mercedes Okumura

Conceitos fundamentais da Evolução

Independentemente do grupo a ser estudado - bacté-


rias, pinheiros ou humanos -, há diversos conceitos essenciais
que devem ser conhecidos para um melhor entendimento dos
processos evolutivos de um dado grupo. A palavra “Evolução”
significa mudança ao longo do tempo, algo que pode ser obser-
vado até mesmo fora da esfera biológica (por exemplo, a paisa-
gem muda ao longo do tempo). No caso da evolução biológica,
além da ideia de mudança ao longo do tempo (mais especifica-
mente, mudança nas proporções genotípicas, nas populações
ao longo do tempo ou mudanças na adaptação e na diversidade
de populações, Mayr, 1988), é necessário incluir o conceito de
descendência com modificação. Assim, a reprodução, a varia-
ção em traços hereditários (a partir de migração ou mutação)
e a variação na aptidão do organismo em relação a um dado
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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

traço hereditário seriam três elementos-chave para a ocor-


rência de evolução biológica (Ridley, 2006, p. 104). Apesar de
frequentemente consideradas como sinônimos, evolução pode
ser resultado não apenas da seleção natural, mas também da
deriva genética. Também é importante entender que nem todos
os traços frequentes em uma dada população são adaptações.
Ao contrário, podem ser simplesmente o resultado da histó-
ria evolutiva do grupo (por exemplo, órgãos vestigiais), podem
ser subprodutos de outros traços (por exemplo, a cor vermelha
do sangue; vide Gould & Lewontin, 1979) ou até mesmo traços
que foram adaptações (por exemplo, frutas de grande tamanho
observadas atualmente que teriam servido como alimento para
grandes herbívoros extintos nos últimos 10 mil anos, Jansen &
Martin, 1982).
Apesar de muitas narrativas sugerirem uma direção ou
intenção na história evolutiva dos grupos (especialmente aque-
las envolvendo a evolução humana), deve ficar claro que evolução
não é sinônimo de perfeição, progresso, necessidade ou superio-
ridade de um grupo em relação a outro (Foley, 1993, p. 91).

Estudos de evolução humana

Estudos em evolução humana têm se beneficiado de dois


campos principais: a descoberta de novos fósseis e os estudos de
biologia molecular. Esses dois campos têm se desenvolvido de
forma exponencial a partir dos anos de 1960. Portanto, a evolu-
ção humana é uma área de estudo relativamente recente. No
caso dos fósseis, apesar das primeiras descobertas terem sido
feitas entre o início e meados do século XIX na Europa (fósseis
de neandertais), sem dúvida, a partir dos anos de 1960 ocorre

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

um aumento vertiginoso no número de fósseis e, portanto, na


quantidade e qualidade da informação a respeito do passado
humano. É nessa época que a maioria das espécies fósseis que
serão discutidas neste capítulo é descrita. Inicialmente, as espé-
cies eram ordenadas de forma linear ao longo do tempo, com
uma espécie sucedendo à outra. Esse era o “Modelo de Escada”
da evolução humana. Com o passar dos anos e a descoberta de
mais fósseis, propôs-se a coexistência de espécies em ramos
apresentando diversas espécies, espécies sendo extintas e espé-
cies dando origem a outras. A esse modelo, que vigora atual-
mente, dá-se o nome de “Modelo de Arbusto” (Gould, 1977).
Assim, o fato de sermos atualmente a única espécie vivente do
nosso grupo é algo inédito na história da evolução humana,
pois na maior parte de nossa história houve a coexistência de
duas ou mais espécies. Para fins de simplificação, neste capítulo
discutiremos apenas as principais espécies de cada período.

A Herança Primata

A evolução humana refere-se à evolução dos hominí-


nios, grupo surgido na África, caracterizado principalmente
pela presença de bipedia e que inclui humanos e seus ances-
trais. Nenhum estudo sobre evolução humana pode ignorar
a herança primata na nossa constituição atual; de fato, muitas
características peculiares observadas atualmente nos humanos
relacionam-se com o padrão da ordem dos primatas. Apesar da
grande variação observada dentro dessa ordem, primatas são
grupos associados à seleção-K, isto é, grupos cuja história de
vida se caracteriza por baixo potencial reprodutivo (com ninha-
das geralmente de uma única cria), maturação tardia, gestação

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

longa, grande intervalo entre nascimentos de uma ninhada,


grande período de lactação e grande longevidade (Foley, 1993).
Essas características permitiram, ainda que de forma indi-
reta, o surgimento de elementos importantes na história de
vida dos humanos, que veremos neste capítulo, como o grande
cuidado parental, a infância estendida e a grande longevidade
feminina após a menopausa, entre outros. Dentro da ordem
Primata, humanos seriam um extremo de seleção-K (Lewin,
1999). Embora os detalhes sejam de difícil verificação, há
alguns momentos-chave na história evolutiva dos hominínios
que podem indicar mudanças ou intensificações importantes
nesses padrões de história de vida, conforme veremos ao longo
deste capítulo.

Os Primeiros Hominínios: Bipedia

Estima-se que a bipedia, característica principal dos


hominínios, teria surgido há cerca de sete milhões de anos,
resultando em importantes mudanças anatômicas relacionadas
ao centro de gravidade, à posição da cabeça em relação à coluna,
ao tamanho dos diferentes tipos de vértebras e ao formato da
pélvis, entre outros (Foley, 1993). De todas essas transformações
anatômicas, a forma da pélvis é possivelmente uma das mais
importantes, por resultar em uma limitação no tamanho do
cérebro (e consequentemente do crânio) de recém-nascidos. Tal
restrição se dá devido à anatomia do canal de parto, por onde
o bebê precisa passar. Conforme será discutido mais adiante,
essa limitação terá implicações importantes na história de vida
dos hominínios.

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

Explicações iniciais acerca das vantagens da bipedia


incluíam o fato de um indivíduo bípede poder enxergar mais
longe, ter melhor termorregulação (Wheeler, 1984) e ter as mãos
“liberadas” para carregar objetos, alimento ou para a confecção
de ferramentas (Washburn, 1967). Atualmente, duas hipóteses
estão em discussão. Uma delas é a de que a bipedia teria sido
selecionada devido ao menor gasto energético ao se caminhar
no chão, mesmo que inicialmente os primeiros hominínios ainda
passassem algum tempo nas árvores (Sockol et al., 2007). Outra
hipótese, que ganhou força graças aos estudos de um dos fósseis
mais antigos da nossa linhagem, o de Ardipithecus (Lovejoy, 2009,
vide adiante), seria a vantagem de ter as mãos livres para carre-
gar objetos ou alimentos (sem incluir as ferramentas de pedra
lascada, que são muito posteriores ao Ardipithecus).
Pouco é sabido sobre os primeiros hominínios, cuja
descoberta é relativamente recente e, dado o estado extrema-
mente fragmentário de muitos desses fósseis, ainda há amplo
debate inclusive acerca das evidências de bipedia nos mesmos.
Sahelanhtropus tchadensis é a espécie mais antiga de hominínio,
datada de seis a sete milhões de anos. Descoberta no Chade,
em 2001, trata-se de um crânio extremamente deformado
e alguns fragmentos de mandíbula e dentes. No mesmo ano,
foi descoberta no Quênia outra espécie de hominínio, Orrorin
tugenensis, datada em seis milhões de anos. O crânio não foi
encontrado, porém a anatomia dos membros inferiores de um
único indivíduo sugere bipedia (Pickford et al., 2002; Richmond
& Jungers, 2008). O mais antigo conjunto de hominínios fósseis
(17 indivíduos) é representado pelo gênero Ardipithecus, desco-
berto no final dos anos 1990 e datado entre 5, 8 e 4,4 milhões
de anos. Apesar de bípedes, esses hominínios ainda apresenta-
vam algumas características de “transição”, como o dedão do

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

pé adaptado para agarrar em galhos, o que sugere um hábito


parcialmente arbóreo (White et al., 2009).
Tais características, que sugerem a bipedia combina-
da com episódios de locomoção arborícola, também podem
ser verificadas nos fósseis do gênero Australopithecus, vivente
entre quatro e um milhões de anos. Especialmente a partir dos
anos 1960, numerosos fósseis foram descobertos, dando origem
a diversas espécies dentro desse gênero, espalhado em grande
parte do continente africano. Os australopitecíneos eram cria-
turas pequenas, cuja estatura estima-se em torno de 120 e 150
cm e a massa entre 30 e 55 kg (Foley, 1993). Apresentavam volu-
me cerebral médio de 450 cm3 (centímetros cúbicos), bastante
pequeno em comparação ao do Homo sapiens (também chamados
neste texto de “humanos modernos”), que atinge até 1.500 cm3.
A face dos australopitecíneos era bastante prognata (1a), os
dentes anteriores tinham tamanho relativamente grande e os
membros superiores eram compridos em proporção aos inferio-
res. Essas características são semelhantes àquelas observadas
nos grandes símios. Estudos indicam uma grande diversidade
na dieta dos australopitecíneos, incluindo folhas, frutos, nozes
e sementes (Estebaranz et al., 2012). Embora exista ampla
discussão sobre a importância da carne na dieta dessas cria-
turas, é possível postular que a carne começa a ganhar maior
importância na dieta dos hominínios há cerca de 2,5 milhões
de anos, com o surgimento das primeiras ferramentas líticas.

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

Figura 1. Crânio de Australopithecus (a), Homo erectus (b) e Homo sapiens (c).
Observe o aumento do volume craniano ao longo do tempo e a diminui-
ção do prognatismo. Fotos: Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos
(LEEH-USP).

As Primeiras Ferramentas de Pedra


e o Surgimento do gênero Homo

Embora alguns ossos de animais apresentem evidência


de marcas de corte há cerca de 3,4 milhões de anos (Etiópia),
a mais antiga evidência direta do uso de ferramentas líticas
é proveniente de Gona, Etiópia (Semaw et al., 1997). Essa primei-
ra indústria lítica, denominada de Olduvaiense, era composta
de lascas retiradas de blocos de pedra (chamados de núcleos,
Figura 2a) através de golpes dados por uma pedra redonda,
como um seixo de rio. Apesar de parecerem, à primeira vista,
bastante rudimentares, estudos detalhados indicam uma gran-
de habilidade de lascamento, seleção de matéria-prima e do
tamanho dos seixos a serem lascados, a presença de coorde-
nação “olho-mão”, uso da força correta no lascamento, assim
como o transporte dessas ferramentas e o uso das mesmas para
cortar e descarnar animais. Assim, postula-se que há cerca de
2,5 milhões de anos teriam ocorrido mudanças na exploração
do ambiente, incluindo mudanças na dieta, um aumento na
qualidade da mesma através da maior inclusão de carne (o que

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

traria implicações para crescimento do cérebro conforme discu-


tiremos depois) e um processamento de carcaças através do uso
de ferramentas de pedra lascada.

Figura 2. Elementos das Indústrias Olduvaiense (a), Acheulense (b),


Musteriense (c), Aurinhacense (d) e Gravetiense (e). Créditos: a) Mercedes
Okumura, acervo LEEH-IB-USP, b) Victoria County History of Kent Vol
1, p 312, Londres, 1912, domínio público; c) Wellcome Images, Creative
Commons Attribution 4.0 International license; d) “Flûte paléolithique,
Musée National de Slovénie, Ljubljana, 9420310527”, por Dalbera, Paris,
licença CC BY 2.0 via Wikimedia Commons; e) Mercedes Okumura, acervo
LEEH-IB-USP.

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

Uma das principais questões ao se tratar das primeiras


ferramentas líticas e de suas implicações para as mudanças
subsequentes na exploração do ambiente diz respeito a quem
as estava fabricando e utilizando. Essa questão deve-se ao
fato de que por volta de 2,5 milhões de anos surge um novo
gênero de hominínio: o gênero Homo. De fato, os mais antigos
fósseis de Homo habilis são datados de cerca de 2,4 milhões de
anos e têm sido comumente associados ao uso de ferramentas,
embora as evidências não sejam conclusivas. Devido à sua
morfologia bastante primitiva (com traços anatômicos
mais simiescos do que alguns australopitecíneos), os fósseis
associados a H. habilis têm sido colocados, por alguns autores,
como pertencendo ao gênero Australopithecus (Wood & Collard,
1999). Independentemente de sua classificação, o que importa
é que há cerca de 2,5 milhões de anos ocorrem mudanças impor-
tantes na dieta e na tecnologia de alguns grupos de hominínios
e essas modificações implicam em possíveis transformações
cognitivas e de sociabilidade nesses grupos.
Para muitos autores, o surgimento de um novo gênero
(o gênero Homo) aconteceu apenas por volta de 1,9 milhões de
anos, com o surgimento do Homo erectus. De fato, esses fósseis
apresentaram uma grande mudança anatômica e permitem
inferir importantes transformações comportamentais na histó-
ria evolutiva dos hominínios. Espécimes bastante preservados
de Homo erectus (como o famoso fóssil do “Garoto de Turkana”,
descoberto em 1984, no Quênia, Walker & Leakey, 1993), revela-
ram importantes mudanças anatômicas em relação aos austra-
lopitecíneos. Apesar das diferenças anatômicas marcantes
observadas entre crânios de H. erectus e de H. sapiens (Figura
1b), em H. erectus já é observado um aumento importante do
volume do cérebro, que passa a ter, em média, 930 cm3, ou seja,

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

quase o dobro do observado nos australopitecíneos. Além disso,


o H. erectus apresentava estatura equiparável às populações
humanas modernas de ambientes tropicais, chegando a 180 cm.
Em termos pós-cranianos, também apresenta mudanças em
relação ao observado nos australopitecíneos: estatura maior,
uma caixa toráxica que sugere uma diminuição do tamanho do
trato digestivo e uma pélvis mais estreita (Figura 3). Além disso,
não estão mais presentes as adaptações arborícolas observadas
nos australopitecíneos, indicando um aumento na eficiência
de locomoção bípede (Antón, 2003). Todas essas características
fazem H. erectus mais semelhante H. sapiens do que aos austra-
lopitecíneos. De fato, essas semelhanças anatômicas entre os
dois grupos permitem inferir a presença de algumas caracte-
rísticas importantes observadas atualmente na nossa espécie
e cuja origem teria se dado com o surgimento do H. erectus, como
veremos a seguir.

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

Figura 3. Comparação entre os esqueletos de Australopithecus (esquerda)


e de H. sapiens (direita). Observe as mudanças na forma da pélvis e da caixa
toráxica. O padrão observado no H. erectus aproxima-se do H. sapiens.
Créditos: a) “MH1 Australopithecus sediba skeleton”, por Profberger, licen-
ça CC BY-SA 3.0 via Wikimedia Commons; b) “Primatenskelett-drawing”
por desconhecido, Brehms Tierleben, Small Edition 1927, domínio público
via Wikimedia Commons.

As restrições anatômicas já mencionadas acerca da


morfologia da pélvis em relação ao tamanho do cérebro de um
bebê ao nascer devem ter se tornado de suma importância com
o grande aumento no volume cerebral verificado em H. erectus
e nos outros hominínios do gênero Homo que surgiram depois

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

(Rosenberg & Trevathan, 2002). O padrão de desenvolvimento


cerebral típico de um grande símio faria com que o tamanho
do cérebro adulto de um Homo fosse o dobro do tamanho de
seu cérebro ao nascer. Homo sapiens adultos apresentam, em
média, volume cerebral de 1.350 cm3 (Figura 1c) e, portanto,
bebês humanos deveriam nascer com cérebro de 725 cm3. No
entanto, esses bebês nascem com cérebros de, em média, 385
cm3. Ou seja, nossos bebês nascem com cérebros relativamente
pouco formados, que continuam a crescer na taxa intraute-
rina por aproximadamente um ano após o nascimento. Essa
chamada altricialidade secundária tem como resultado uma
infância prolongada e uma demanda maior de cuidado parental
para com esses filhotes. Esse cuidado parental maior poderia
também explicar a origem de um fenômeno observado atual-
mente apenas em humanos: a grande longevidade feminina
pós-menopausa. A “Hipótese das Avós”, proposta por Williams
(1957) e posteriormente complementada por outros pesquisa-
dores (Hawkes, 2003), explica o surgimento dessa incapacida-
de reprodutiva em mulheres de idade adulta avançada devido
aos benefícios ganhos pelos bebês quando são cuidados, não
apenas pelas mães, mas também pelas avós. Assim, mulheres
em idade avançada, impedidas de reproduzir, investiriam suas
energias no cuidado da prole de seus parentes (geralmente dos
filhos). Assim, o comportamento humano parental, que tem
sido descrito como cooperative breeding, ou cuidado cooperativo,
(porque o cuidado aloparental seria essencial para a sobrevi-
vência da prole), teria tido um papel importante na evolução
de características como menopausa feminina e grande longe-
vidade (Hrdy, 1999; 2009; Mace, 2000). Esse cuidado aloparen-
tal é verificado em algumas espécies de primatas, incluindo
chimpanzés (Kishimoto et al., 2014). O maior cuidado requerido

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

por esses bebês também explicaria o cuidado parental que


envolve não somente fêmeas, mas também machos (ou seja,
envolve os pais de um bebê). Esse alto investimento parental
masculino num contexto de organização social multimacho
e multifêmea (atualmente observado somente em humanos),
assim como a possível formação de laços de longa duração entre
fêmeas e machos (raramente observados em outras espécies de
primatas do Velho Mundo), teriam sido essenciais para a sobre-
vivência de bebês em um panorama de altricialidade secun-
dária e infância estendida (Workman & Reader, 2004). Devido
à algumas semelhanças anatômicas observadas entre H. erectus
e humanos modernos, pode-se postular o início dessas caracte-
rísticas relacionadas à altricialidade secundária e demais carac-
terísticas associadas com os H. erectus (Coqueugniot et al., 2004).
Uma dieta de melhor qualidade, que incluía gordura
e proteína de origem animal provavelmente teve um papel
crucial nas mudanças adaptativas observadas no H. erectus
(Aiello & Wheeler, 1995; Plummer, 2004). As mudanças na forma
da caixa toráxica de Homo em relação à forma observada em
australopitecíneos são indicadores de uma redução do aparelho
digestivo em Homo, que por sua vez estaria relacionada com
a adoção de uma dieta de melhor qualidade, permitida, em
parte, graças a uma produção sistemática de ferramentas de
pedra relativamente elaboradas (conforme visto anteriormente).
O aumento no consumo de carne estaria fortemente relacionado
a um aumento do território de exploração (Aiello & Key, 2002),
que, por sua vez, encontra-se forte e positivamente correlacio-
nado ao tamanho do corpo nos mamíferos (Eisenberg, 1990).
Embora seja difícil separar as causa e consequências da interação
entre dieta de alta qualidade, a diminuição do aparelho digestivo
e o aumento do corpo e do volume cerebral, o fato é que ocorre

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

um aumento significativo no volume cerebral ao longo do tempo


no gênero Homo, culminando com os cérebros de H. sapiens
e de seu contemporâneo H. neanderthalensis há 200 mil anos,
conforme veremos mais adiante.
Além das transformações de cunho anatômico, com o H.
erectus é também postulado o início de um processo de aumen-
to de complexidade social (alguns pesquisadores inclusive
colocam a hipótese de uma linguagem verbal primitiva, como
Leakey, 1994, p. 122), dados os modelos que relacionam tama-
nho de neocórtex e socialidade em primatas (Dunbar, 1992).
A complexidade maior também pode ser observada em um novo
tipo de indústria lítica relacionado principalmente com o H.
erectus: a Indústria Acheulense, observada entre 1,7 milhões
de anos e 100 mil anos (Figura 2b). Ao invés de apenas lascas
e núcleos, essa indústria foi caracterizada pela presença de
ferramentas de pedra simétricas, lascadas em ambas as faces
e cuja morfologia lembra uma gota. Tais ferramentas foram
chamadas de machados-de-mão e indicam uma sofistica-
ção tecnológica relativamente grande. Além de uma possível
melhora no processamento de alimentos, algumas caracterís-
ticas desses machados-de-mão sugerem, para alguns pesqui-
sadores, que eles poderiam ter uma função, além de utilitária,
também simbólica. Sua grande padronização (conforme vere-
mos adiante, exemplares dessas ferramentas são encontradas
em grande parte da África e da Eurásia), a presença de milha-
res de machados-de-mão sem nenhum sinal de uso (de fato,
sítios onde há evidência de descarnamento de ossos possuem
mais lascas do que machados-de-mão), a presença de macha-
dos-de-mão de tamanho exagerado (que não seriam funcionais
para descarnamento ou processamento de alimento), além do
aumento da simetria e de algumas evidências de preocupação

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

estética (por exemplo, uso de rochas de coloração diferente ou


com fósseis incrustrados) sugere uma possível função simbólica
para esses objetos (Gamble, 1997), incluindo a função de display
sexual (Kohn & Mithen 1999, mas veja Machin, 2008 e Nowell &
Chang, 2009 para críticas a esse trabalho).
A distribuição observada dos fósseis de H. erectus também
indica um fenômeno até então inédito na história da nossa
evolução: esses seriam os primeiros grupos de hominínios
a migrar para fora da África, por volta de 1,8 milhões de anos
(fósseis encontrados na Geórgia). De fato, fósseis de H. erectus
foram descobertos não somente na África, mas também na
Eurásia, incluindo o atual território da China e a ilha de Java,
comprovando uma distribuição relativamente ampla dessa
espécie (Antón, 2003). Tal distribuição ampla teria sido facilita-
da graças ao domínio do fogo (embora ainda exista controvérsia
sobre quando este ocorreu na pré-história), à maior complexi-
dade social, ao aumento da complexidade tecnológica (refletida
na indústria lítica), entre outros fatores. Apesar da importân-
cia dessas primeiras migrações, a descontinuidade espacial
e temporal observada no registro fóssil associado a H. erectus na
Eurásia sugere eventos de dispersão intermitentes.

Mais Inovações Tecnológicas e de


Comportamento: Homo heidelberguensis

O surgimento do H. heidelbergensis, há 700 mil anos, coin-


cide com o aparecimento de diversas inovações importantes,
tanto tecnológicas quanto de comportamento. De fato, essa
espécie teria, posteriormente (há 200 mil anos), originado duas
espécies cuja cognição seria ímpar dentre os hominínios: H.

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

neanderthalensis e H. sapiens. Fósseis de H. heidelberguensis apare-


cem na África, Europa e parte da Ásia, atestando uma colo-
nização longa e relativamente estável dessas regiões. O uso
controlado do fogo, que não é amplamente aceito no caso de H.
erectus, torna-se praticamente incontestável no caso de H. heidel-
berguensis (Goren-Inbar et al., 2004). Ocorre também a ocupação
de regiões de alta latitude, como é o caso do sítio Boxgrove,
datado em 500 mil anos e localizado no atual território do Reino
Unido (Roberts et al., 1994). Nesses sítios também é possível
verificar a presença de ferramentas associadas a ossos de gran-
des animais, como elefantes, rinocerontes e búfalos, atestando
a importância do consumo de carne para esses hominínios.
Outras evidências de caça sofisticada são as lanças de madei-
ra cuidadosamente manufaturadas, medindo entre dois e três
metros, com datas de 400 mil anos, encontradas na Alemanha
(Thieme, 1997). Finalmente, há algumas evidências importantes
de possíveis comportamentos simbólicos (embora não sejam
unânimes entre pesquisadores), todos ocorrendo na faixa entre
430 e 200 mil anos: uma concha riscada com desenhos geomé-
tricos em Java (Joordens et al., 2014), uma possível “Vênus” feita
em rocha vulcânica encontrada em Israel (d’Errico & Nowell,
2000), o uso de pigmentos (mais de 300 fragmentos encontrados
na Zâmbia, Barham, 2000) e o sepultamento de pelo menos 28
indivíduos em Atapuerca, na Espanha (Arsuaga et al., 1997).
Além das inovações comportamentais, uma nova indús-
tria lítica surge há cerca de 300 mil anos. A chamada Indústria
Musteriense possuía uma sofisticação maior que a Acheulense,
com a preparação do núcleo com antecedência (para melhor
controle sobre as lascas a serem retiradas posteriormente)
e a presença de ferramentas padronizadas, com amarração
e ferramentas compostas (Kuhn, 2014, Figura 2c).

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

Homo neanderthalensis e Homo sapiens:


Comportamentos modernos

Há cerca de 200 mil anos, o H. heidelberguensis teria dado


origem a duas novas espécies: os neandertais (H. neanderthalen-
sis) na Europa e os humanos modernos (H. sapiens) na África.
Assim, essas duas novas espécies apresentariam comporta-
mento relativamente complexo, dada a sua origem a partir de
grupos (conforme visto na sessão anterior) com evidência de
uma complexidade tecnológica e comportamental incipiente
(d’Errico, 2003).
Tal comportamento relativamente complexo, chamado
também de “comportamento moderno” seria caracterizado
por uma série de elementos que incluiriam a noção de iden-
tidade individual e de grupo (inferida a partir de adornos
e uso de pigmentos para pintura corporal, por exemplo), uma
maior complexidade tecnológica (observada na presença de
artefatos elaborados não somente em pedra, mas também em
osso, conchas, dentes, chifres) e outros elementos que suge-
rem a presença de comportamento simbólico (enterramentos,
arte rupestre e confecção de estatuetas). Todos esses elemen-
tos seriam indissociáveis da presença de linguagem elaborada
e cognição desenvolvida. Conforme veremos, há fortes evidên-
cias de que tanto neandertais quanto humanos modernos apre-
sentavam esse comportamento moderno.
Os dois fósseis mais antigos da nossa espécie são datados
de 190 e 160 mil anos e foram encontrados na Etiópia, atestando
a origem africana do H. sapiens (White et al., 2003; McDougall,
2005). Devido ao fato de podermos observar comportamentos
altamente complexos em humanos atuais (como a complexidade
tecnológica e o simbolismo), fica a pergunta sobre quando tais

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1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

flautas feitas em osso (Figura 2d). A essa indústria, segue-se


a Indústria Gravetiense, também associada aos humanos moder-
nos, que surge há 30 mil anos. As famosas pinturas de Altamira
(Espanha) e Lascaux (França) são associadas a essa Indústria,
assim como as estatuetas conhecidas como “Vênus” (Figura 2e).
Inúmeros fósseis de neandertais foram encontrados na
Europa e no Oriente Médio, tendo sido datados entre 200 mil
e 30 mil anos. Eram indivíduos bastante robustos, com volumes
cerebrais entre 1.200 a 1.900 cm3, ou seja, acima da média de
H. sapiens. Nos últimos anos, inúmeras evidências de compor-
tamento complexo têm sido observadas para esses grupos.
A começar por uma nova Indústria lítica que aparece por
volta de 35 mil anos, denominada de Chatelperonense, que
é usualmente entendida como resultado do contato com H.
sapiens na Europa. O uso de marfim, ossos e conchas para
a confecção de adornos (como colares) é sinal claro de simbo-
lismo nesses grupos (Caron et al., 2011). Antes desse período,
entre 50 e 40 mil anos, foram encontrados colares de conchas
perfuradas e pigmentos em uma caverna na região de Murcia,
Espanha (Zilhão, 2010), atestando novamente a presença de um
comportamento bastante complexo dos neandertais, anterior
ao contato com H. sapiens. Além disso, algumas evidências de
arte parietal (ou seja, grafismos pintados ou incisos em pare-
des de cavernas) também têm sido associadas aos neandertais
(Rodríguez-Vidal et al., 2014). Por fim, alguns esqueletos nean-
dertais foram encontrados em posição e contexto que sugerem
sepultamentos (Valladas et al., 1987).

Mercedes Okumura 93
MANUAL DE PSICOLOGIA EVOLUCIONISTA
1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

A Extinção dos Neandertais

Pouco se sabe sobre as causas acerca de extinção dos


neandertais. O sítio arqueológico mais recente associado
a esse grupo foi datado em 30 mil anos e localiza-se na Península
Ibérica (Jennings et al., 2011). Como o H. sapiens teria entrado na
Europa há 40 mil anos, conclui-se que as duas espécies coexis-
tiram nessa região por pelo menos 10 mil anos. De todo modo,
o papel do H. sapiens na extinção dos neandertais não é uma
unanimidade. Existe a hipótese de que variações climáticas há
cerca de 40 mil anos possam ter afetado o habitat dos neander-
tais (Mellars, 1992). Outra hipótese propõe uma competição por
nichos ecológicos entre humanos e neandertais (Banks et al.,
2008). Essa hipótese tem uma variante, na qual os neandertais
já seriam uma população em declínio antes da chegada do H.
sapiens e que possivelmente a competição por recursos teria
colocado um ponto final na sua trajetória (Finlayson, 2009;
Higham et al., 2014).

Agradecimentos

Agradeço às editoras pelo convite para escrever este capí-


tulo, assim como a Pedro da-Glória, Astolfo Araujo e dois reviso-
res anônimos pelas sugestões. Também agradeço ao Laboratório
de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH-IB-USP) pelas fotos
e pelas réplicas fotografadas.

Mercedes Okumura 94
MANUAL DE PSICOLOGIA EVOLUCIONISTA
1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

Box 1. As origens da linguagem verbal


Ao verificar-se tanta sofisticação comportamental, tanto em huma-
nos modernos quanto em neandertais, é inevitável perguntar sobre
o surgimento da linguagem verbal. Apesar da linguagem verbal
não se fossilizar, pesquisadores analisam ao menos três tipos de
evidência para entender o surgimento desta característica tão
importante: evidências genéticas, anatômicas e de cultura mate-
rial. Estudos genéticos têm procurado encontrar, através da análise
de DNA antigo, a existência de genes relacionados à linguagem nos
neandertais. Assim, análises de DNA antigo apontam para a presen-
ça do “Gene da Linguagem” FOXP2 nos neandertais, atestando
o potencial dessa espécie para a produção de linguagem elaborada
(Krause et al., 2007). As evidências anatômicas incluem estudos de
moldes internos da caixa craniana, onde podem ser observadas
as diferentes áreas relacionadas à linguagem, assim como estru-
turas relacionadas à produção de som, como a laringe, a faringe
e o osso hioide. Já pesquisadores interessados na questão da cultu-
ra material como evidência de linguagem elaborada propõem que
o padrão de confecção de ferramentas complexas e a produção da
linguagem verbal teriam uma base cognitiva comum (Lewin, 1999,
p. 461). De modo geral, os estudos de anatomia e de cultura material
tendem a indicar mudanças importantes relacionadas com a origem
da linguagem verbal a partir do surgimento de H. heidelberguensis,
embora tais mudanças já sejam perceptíveis em H. erectus no caso
dos estudos anatômicos.

Mercedes Okumura 95
MANUAL DE PSICOLOGIA EVOLUCIONISTA
1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

Box 2. A Interação Gene-Cultura na Evolução Humana


Um dos principais modelos de interação entre genes e cultura
em grupos humanos foi proposto por Richerson & Boyd (2005)
e chamado de “Teoria da Herança Dual” ou “Teoria da Coevolução
Gene-Cultura”. Há evidência de uma mente humana que modela
o que aprendemos e como pensamos, o que por sua vez influencia
o tipo de crenças e atitudes que se espalham e persistem entre
grupos. Por outro lado, cultura e mudança cultural não podem ser
entendidas apenas a partir de respostas inatas. Segundo os autores,
teorias que ignorem essas conexões não podem ser usadas para
entender de forma adequada grande parte do comportamento
humano. Assim, ao longo da evolução humana, a cultura e o compo-
nente inato comportamental teriam se influenciado mutuamente.
Segundo Lordelo (2010), apesar dessa abordagem ser vista como
evolucionista (ou seja, a cultura apresentar todos os elementos
necessários para que a seleção natural ocorra, incluindo variabili-
dade, herdabilidade e efeitos sobre a aptidão), são levadas em conta
a direção da herança cultural (vertical ou horizontal) e a velocidade
de mudança. O modelo de Richerson & Boyd é importante porque
vai além dos modelos de oposição entre natureza e cultura (em
inglês, nature versus nurture), além de permitir uma exploração da
interação entre cultura e biologia sem implicar em uma posição
reducionista (Johnson, 2010).

Mercedes Okumura 96
MANUAL DE PSICOLOGIA EVOLUCIONISTA
1.2 Conceitos relacionados à Evolução Humana

Questões para discussão

1. Qual a diferença entre o Modelo de Escada e o Modelo de


Arbusto da evolução humana?

2. Cite algumas das hipóteses propostas para explicar


o surgimento da bipedia. Qual delas é a mais aceita?

3. Quais mudanças anatômicas (cranianas e pós-crania-


nas) e comportamentais são associadas a Homo erectus?

4. Como se caracteriza o comportamento moderno e


quais espécies de hominínios apresentariam tal
comportamento?

Mercedes Okumura 97

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