Você está na página 1de 97

- Cartilha de Apoio I -

PROGRAMA DE FORMAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E


ORGANIZAÇÃO DOS ASSENT AMENT
SSENTAMENTOS
AMENTOS

MST
Setores de Produção, Cooperação , Meio Ambiente e Formação

1
Expediente

A Cartilha de Apoio I - “Programa de Formação para a Cooperação e Organização dos


Assentamentos” - é uma publicação dos Setores: Produção, Cooperação e Meio Ambien-
te e Formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

Pedidos:
Secretaria Nacional:
Alameda Barão de Limeira, 1232
01202-002 São Paulo - SP
Telefax: (11) 21310880
Correio eletrônico: coperar@coperar.org.br
Diagramação: Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do MST

1ª edição - outubro de 2008

2
Programa de Formação para a Cooperação e
Organização dos Assentamentos
Organização

3
Sumário

Apresentação .................................................................................................................... 5

I. Breve resenha das condições e surgimento dos


homínídeos .................................................................................................................. 7

II. Trabalho, sociedade e valor ........................................................................................ 22

III. Elementos da teoria da Organização no campo ........................................................ 38

IV. O desenvolvimento da cooperação ........................................................................... 46

V. A cooperação agrícola ................................................................................................ 54

4
APRESENTAÇÃO
PRESENTAÇÃO

Estimados(as) companheiros(as);

É com prazer que apresentamos à você este conjunto de documentos


sobre a organização do trabalho e sobre a cooperação agrícola. Esta cartilha é
a primeira de um conjunto de três, que faz parte do esforço da direção nacional
do MST de retomar o estudo, a reflexão e a prática da cooperação.
Para o MST, as experiências de cooperação adquirem um caráter político
estratégico, pois nos vincula a um projeto político de sociedade que desejamos
construir, tornando estas experiências os sinais concretos de que é possível
organizar a sociedade com outros princípios sociais, políticos e econômicos.
No entanto, vimos nos anos 90, um recuo ideológico no campo da
esquerda brasileira, seja pela queda do bloco socialista, seja pela adesão as
políticas neoliberais. Ao mesmo tempo as dificuldades organizativas e
econômicas das experiências cooperadas em nossos assentamentos, levaram a
um desânimo e descrédito das possibilidades da cooperação. Perdeu força entre
os dirigentes e militantes, esta concepção de que a cooperação era uma linha
política estratégica na organização dos nossos assentamentos. Este recuo, afetou
inclusive a nossa política de formação, onde o tema perdeu espaço e
importância.
Enfim, pretendemos recolocar a cooperação como um dos elementos
estratégicos na organização dos assentamentos, elevando cultural e
ideologicamente a nossa militância, recuperando a convicção política,
motivando-a para ações concretas cooperadas em nossa base.
Para isto, a Direção Nacional do MST, estruturou um Programa de
Formação para a Cooperação e Organização dos Assentamentos, sendo uma
de suas metas a organização de cursos estaduais para o estudo da cooperação
e para o trabalho organizativo junto aos acampamentos e assentamentos. Esta
cartilha, esta inserida neste contexto e será o instrumento de orientação para o
estudo e a reflexão política.
Desejamos a todos um ótimo estudo e um excelente trabalho de base.

Outubro de 2008.

Direção Nacional do MST

5
6
I - BREVE RESENHA DAS CONDIÇÕES E SURGIMENTO DOS HOMINÍDEOS*
SURGIMENTO

Qual é a especificidade humana der do tronco comum, que também


em termos de comportamento em deu origem aos grandes símios, há 5
relação ao seu ambiente? A resposta ou 6 milhões de anos1. Pouco tempo,
a essa pergunta nos obriga a prestar relati-vamente, se pensarmos em
atenção à origem da espécie humana termos da evolução das formas de
e às condições que tornaram possível vida2.
sua evolução. Durante o século passado e na
Existem ainda muitas perguntas maior parte deste, pensava-se que a
acerca da história da evolução do posi-ção erguida, a fabricação de
gêne-ro Homo e de seus possíveis instrumentos e o cérebro relativa-
predecessores. Entretanto, nas últimas mente de-senvolvido (às vezes a fala)
décadas, realizaram-se avanços eram três características que evo-
importantes no campo da paleon- luíram juntas na origem do homem.
tologia humana e da biologia Mas, ainda, salvo raras exceções,
molecular. Um deles foi o reconhe- creditava-se ao cérebro ser o motor
cimento da origem relativamente da transformação do “macaco em
tardia dos primeiros hominídeos homem”. Essa não era mais que uma
(Australopithecus), isto é, das linha- visão influenciada pela religião, que
gens precedentes ao gênero Homo, pretendia pôr o espírito na frente do
mas já numa linha evolutiva diver- organismo.
gente da que deu origem aos grandes Hoje em dia, argumenta-se que
símios, nossos parentes vivos mais os fósseis hominídeos mais primitivos
próximos. conhecidos remontam a 3,5 milhões
Segundo dados apontados pela de anos (Australopithecus afarensis) e
biologia molecular, os primeiros que a diferença-chave de seus
hominídeos começaram a se despren- parentes símios é sua posição

* Este texto foi extraido do livro Limites do desenvolvimento sustentável, de Guillermo Foladori.
1 Em 1967, os bioquímicos Allan Wilson e Vincent Sarich, da Universidade de Berkeley, Califórnia, sugeriram,
com base no relógio molecular, uma antigüidade de 5 milhões de anos para a separação humanos-símios.
O relógio molecular mede a distância temporal que leva às diferenças genéti-cas atuais, nesse caso, entre
chimpanzés e gorilas com relação ao ser humano.
2 A posterior evolução é objeto dos mais acalorados debates. Existem várias hipóteses sobre a evolução dos
hominídeos. Desde a que propõe que os Australopithecus não evoluíram até o gênero Homo, mas foram
espécies truncadas, até os que propõem uma sucessão bastante linear entre uma ou duas variantes
deAustralopithecus, até chegar aoHomo sapiens. Também existe divergência quanto à origem do Homo
erectus. Alguns sustentam uma origem única africana, enquanto outros propõem a evolução múltipla.

7
erguida 3 . Em-bora a locomoção Rift. Tal falha se originou há cerca de
bípede não fosse tão sofisticada 8 milhões de anos. Ao leste dessa
quanto a do Homo erectus, tratava- falha, desde a Etiópia até o sul da
se de indivíduos que se locomoviam África, as chuvas se tornaram descon-
com os pés. A fabricação de tínuas e as florestas foram substituídas
instrumentos aparece aos 2,5 milhões pela savana. Os frutos tropicais se
de anos (Homo habilis e Homo tornaram escassos, e as condições de
erectus)4. E o incremento do cérebro vida, para os antepassados do
é correlativo à utilização de instru- homem, mais difíceis. Então, sob a
mentos. Assim, enquanto o cérebro pressão da seleção natural, os
do Australopithecus afarensis alcan- antepassados humanos tiveram de se
çava 500 centímetros cúbicos, o do adaptar para sobreviver. Já não
Homo habilis saltou para 800 podiam subsistir da vida arbórea,
centímetros cúbicos. O milhão de tanto porque os alimentos se tornaram
anos entre uns e outros pareceu mais escassos e dispersos como
indicar a existência de espécies que, porque as condições de segurança
sendo bípedes, não fabricavam não eram as mesmas dos bosques.
instrumentos. Tal qual escreveu Com isso, a posição erguida foi
sarcasticamente Leroi-Gourhan: favorecida. Permitia o desloca-mento
“Estávamos prontos para admitir tudo, mais efetivo por áreas mais extensas
exceto o havermos iniciado pelos para buscar alimento e também
pés” 0971, p. 67). favorecia, pela altura, um horizonte
A mudança na postura, que foi o visual mais amplo, o que garantia
passo decisivo para a liberação das maior segurança.
mãos e a transformação de todo o O registro fóssil confirma o custo
organismo, vincula-se às pressões em espécies que significou essa
seletivas, produto de importantes mu-dança climática e a vantagem
transformações climáticas. Há 20 adaptativa da locomoção bípede.
milhões de anos começou uma época Entre 10 milhões e 5 milhões de anos
de resfriamento generalizado, que atrás, desapareceram na África quase
implicou uma redução da franja 20 variedades de grandes símios
equatorial e substantivas alterações (somente sobreviveram três). Ao
em todo o mundo. A isso se somou, contrário, floresceram di-versas
no leste africano, onde se originaram variedades de hominídeos bípedes
os hominídeos, um movimento (identificada cerca de meia dúzia)
tectônico conhecido como Falha de (Leakey, 1995, p. 84).

3 Um dos precursores dessa teoria, durante o século XIX, foi Engels. Seu artigo “O papel do trabalho no
processo de transformação do macaco em homem”, escrito em 1874, tem, salvo as distâncias informativas,
total atualidade. Vejamos, por exemplo, como ele destaca o papel da posição ergui-da: “Estes macacos,
em princípio obrigados provavelmente por seu gênero de vida, que, ao trepar, dava às mãos funções
distintas que aos pés, foram perdendo, ao descer ao solo, o costume de servir-se das extremidades superiores
ao andar, marchando em posição cada vez mais ereta. Havia-se dado, com isso, o passo decisivo para a
transformação do macaco em homem” (1961, p. 142).
4 Os descobrimentos de fósseis de Homo erectus durante a década de 90 retraíram as datas da origem dessa
espécie até torná-Ia quase contemporânea do Homo habílis.

8
Por volta de 3 milhões de anos Deve-se considerar a bipe-
atrás, ocorreu outra onda de frio, que destação como a condição para o
novamente provocou um clima mais surgimento do gênero Homo. As
seco, com repercussões na vegetação posteriores mudanças até a dieta
e na pressão sobre os hominídeos5. onívora, como a fabrica-ção de
Os sobreviventes, aparentemente, instrumentos e o incremento do
bifurcaram-se em duas alternativas. cérebro, foram possíveis pela postura
Uns se especializaram em uma e o deslocamento erguidos.
alimentação vegetariana mais “dura”, A posição erguida e a locomoção
consistindo em raízes e sementes; bípede liberaram as mãos das funções
outros optaram por uma dieta onívora. de translação6. Em seu conjunto, isso
Nossa família ofereceu assim significou um passo decisivo para a
duas soluções à crise climatológica de li-beração do meio. Ampliou-se a
três milhões de anos, uma forma pré- área de deslocamento para a
humana com um corpo forte - 1,50 obtenção de re-cursos, e, ao se
m, 50 kg - e uma den-tadura muito utilizar as mãos como meio de carga,
especializada para uma alimentação pôde-se separar, no es-paço, a
estritamente vegetariana, mas com o obtenção do alimento de seu
cérebro pequeno - 500 cm3 -; e a consumo. Assim, o deslocamento em
primeira forma humana, Homo dois pés pode ser considerado, além
habilis, com um cérebro muito mais de uma revolução biológica, a
desenvolvido, 800 cm!, e uma condição para a transformação
dentadura onívora apta para uma “humana” do meio ambiente. O
alimentação vegetariana e carnívora, deslocamento bípede permitiu ao
mas com um corpo mais delgado - Homo erectus colonizar da África ao
1,30 m, 30 kg- (Coppens, 1991, p. 12). extremo sul oriental da Ásia em,
A alternativa vegetariana talvez, algumas dezenas de milhares
(Australopithecus robustus e boisei) de anos.
não al-cançou êxito evolutivo, A segunda transformação
enquanto a onívora (Homo habilis) revolucionária que permitiu o
evoluiu, segundo as hipóteses surgimento do gênero Homo foi o
predominantes, à forma Homo fabrico de instrumentos.
erectus.

5 As mudanças climáticas afetaram toda a fauna. Da mesma região onde habitavam os Australopi-thecus,
escreve Leakey: “Entre os antílopes africanos, cujo registro fóssil é dos melhores no que se refere aos
vertebrados terrestres, pode-se observar claramente essa onda de extinção e geração de novas espécies há
2,6 milhões de anos. De repente, desapareceu toda uma gama de espécies existentes e apareceram outras
novas [...]. Suponho que o mesmo ocorreu com os hominídeos, com a evolução dosAustralopithecus
robustus e deHomo” 0995, p. 145).’QI
6 Veja-se uma vez mais a atualidade do escrito de Engels de 1874: “Até que a mão do homem con-seguisse
talhar em forma de faca a primeira pedra teve que passar-se uma imensidão de tempo, junto ao qual
torna-se insignificante o tempo que historicamente nos é conhecido. Mas o passo decisivo já se havia
dado:se havia liberado a mão, ficando em condições de ir adquirindo novas e novas aptidões, e a maior
flexibilidade conseguida deste modo foi sendo transmitida e aumen-tada de geração em geração” (1961,
p. 143).

9
O surgimento do gênero Homo que, uma vez estabelecida, começou
Enquanto parece evidente que a a comandar as ações. Mas também
posição erguida foi o elemento existem hipóteses que assinalam que
desencadeante da transição do o surgimento da linguagem não está
antepassado símio ao hominídeo, não relacionado com o fabrico de instru-
é tão claro qual foi o elemento central mentos, mas com o incremento
na transição do hominídeo ao filogenético do papel dos sentidos, da
homem. Alguns se inclinam pela caça complexa ou da vida social.
fabricação de instrumentos, outros À medida que nos acercamos do
pela linguagem. A dificuldade em Homo sapiens, maior é o peso dos
determinar o elemento dinamizador preconceitos e das ideologias. Não é
é simples: registros fósseis de o mesmo haver “nascido” das mãos
instrumentos existem, mas da fala, ou do pensamento. O primeiro é
não. Existe, ainda, outra dificuldade. muito mais prosaico. No entanto, as
O uso e a fabricação de instrumentos evidências inclinam-se nesse sentido.
foram um processo longo, de comple- A posição erguida implicou uma série
xidade crescente, que ainda continua, de transformações fisiológicas enca-
enquanto a fala, embora seguramente deadas. Em primeiro lugar, a liberação
tenha sido o resultado de um processo dos membros dianteiros, o que supõe
também longo, teve um fim, uma vez a possibilidade de utilizar as mãos
alcançado o nível de articulação tal para tarefas que antes eram realizadas
qual o conhecemos7. Então a pergunta com a boca: captura, divisão, defesa
pode ser colocada assim: a linguagem e transporte. Não se trata de uma
articulada foi exclusivamente do mudança espontânea. As formas mais
Homo sapiens, ou a havia alcançado simiescas de utilização das mãos
o Homo erectus, ou inclusive o Homo seguramente se converteram em uma
habilis? pressão seletiva para que a evolução
As hipóteses sobre a origem da acontecesse.
linguagem são numerosas. Boa parte Como assinala Washburn, o uso
delas estabelece uma conexão estreita das mãos modificou sua própria
entre linguagem e fabrico de instru- estrutura: “[ H’] a seleção favoreceu
mentos. Isso é natural, já que existe os dedos mais curtos e os polegares
uma relação neurológica entre a boca mais grossos. O uso de ferramentas
e os órgãos da alimentação, com o modificou a orientação da evolução
uso das extremidades dianteiras em e a forma das mãos [H’]’ Nossa mão
todos os animais de simetria bilateral. é o resultado de pelo menos meio
Não obstante, enquanto alguns milhão de anos de uso de ferra-
sustentam que é impossível fabricar mentas” (apud Clark, 1985, p. 52). O
instrumentos sem linguagem, porque grau de oposição - medida da
só ela permitiria o desenho mental “oponibilidade” do polegar diante dos
prévio, outros sustentam que foi a outros dedos - que tem o polegar
inteligência prática que permitiu o humano foi evoluindo, como insinua
desenvolvimento da linguagem, até a diferença que existe em relação aos

7 Talvez tenha existido uma linguagem gestual anterior à articulada. Para uma ampla resenha das diferentes
hipóteses sobre a relação entre linguagem e fabrico de instrumentos, ver 1ngold (1992).

10
primatas. No orangotango, por exem- privilégio humano. Resumindo a
plo, é de 40, nos babuínos e mandris principal conclusão da investigação
de 57 a 58, e no ser humano de 65, de Boesch e Boesch sobre os
em média (Napier, 1983, p. 108). chimpanzés do bosque Tai, escreve
Em segundo lugar, devido ao uso Gibson:
das mãos superando o uso da boca, Entre os chimpanzés, as técnicas
esta fica relegada a funções de mais avançadas para quebrar nozes
alimentação e digestivas, reduzindo e a maior de-pendência de instru-
conseqüentemente a musculatura da mentos para atividades de subsistên-
mandíbula, que se enraíza no crânio. cia ocorrem no bosque Tai, na Costa
Ao mesmo tempo, a posição erguida do Marfim (Boesch e Boesch). As
permite que a cabeça se sustente em chimpanzés mães nessa região
equilíbrio sobre o extremo superior da diferem de seus congêneres em
coluna vertebral, favorecendo a qualquer outra população conhecida
redução da massa muscular em de chimpanzés por abastecer suas
comparação com o quadrúpede, que crias com nozes até a idade de 8 anos.
deve suster permanentemente a Isso permite aos filhotes praticar a
cabeça. Ambas as mudanças colabo- habilidade de quebrar nozes por anos
raram para deixar um vazio que antes de se tornarem auto-suficientes
facilitou a expansão do cérebro. 0991, pp. 256-7).
Em terceiro lugar, a posição O caso dos chimpanzés é o mais
erguida favoreceu um horizonte destacado, mas não o único. É
visual mais amplo e, com ele, uma conhecido o exemplo dos pica-paus
maior visão estereoscópica, de cores, das ilhas Galápagos, que escolhem
e a perda relativa do olfato em favor espinhos fortes e largos para utilizar,
da vista. Em conjunto com a na ausência de estiletes confiáveis,
preensibilidade da mão, desenvolveu- como instrumento para tirar larvas e
se a coordenação olho-mão, relação outros insetos da casca das árvores.
neurológica privilegiada. Algumas gaivotas se deslocam
Referir-se à fabricação de quilômetros para jogar os moluscos
instrumentos como o elemento capturados contra rochas e assim
dinamizador das transformações partí-los. Nesse caso, as rochas se
fisiológicas e culturais posteriores convertem num instrumento fixo, ao
requer duas observações. A primeira qual se leva o objeto de atividade; o
delas tem a ver com a fabricação de mesmo sucede com um torneiro, que
instrumentos a partir de um ponto de ajusta a peça móvel ao torno fixo.
vista técnico, isto é, como intermedia- Existem centenas de exemplos de
ção entre o indivíduo e o objeto da utilização de instrumentos por
atividade. A segunda refere-se ao diversas espécies animais. Não
caráter social. obstante, a fabricação de instrumen-
tos pelo ser humano tem vários
O aspecto técnico da fabricação de elementos específicos.
instrumentos O primeiro é sua dupla
O fato prático de construir mediação. Como assinala Beck (980),
objetos úteis que servem para obter o ser humano é o único que usa instru-
ou apropriar-se de alimentos não é um

11
mentos para fabricar instrumentos. é, à sua necessidade), mas a cri-térios
Com as mãos livres, o Australo- estéticos ou de regulação social. Marx
pítbecus seguramente utilizava ressaltou essa diferença, que teráas
instrumentos de maneira ampla. Mas conseqüências mais importantes na
uma coisa é utilizar uma pedra, um história da humanidade.
osso ou um pau como instrumento, e
Certo que também o animal produz.
outra muito diferente é usar uma
Constrói seu ninho, sua morada,
pedra para dar forma a um instru-
como a abelha, o castor, a formiga
mento que será posteriormente
etc. Mas só produz aquilo de que
utilizado. O registro fóssil dessa última
variante corresponde ao Homo necessita diretamente para si ou ua
cria; produz de um modo unilateral,
babilís. Uma inteligência prática, se
enquanto a produção do homem é
contar com os apêndices corporais
univer-sal; só produz sob o acicate
necessários, permite usar instrumen-
da necessidade física imediata,
tos, mas, para criar instrumentos que
enquanto o homem pro-duz tam-
não serão de aplicação imediata, é
preciso um nível de previsão do futuro bém sem a coação da necessidade
física, e quando se encontra livre
muito mais desenvolvido 8 . A
dela équando verdadeiramente pro-
fabricação de instrumentos desenvol-
ve a tridimensionalidade do tempo. duz (Marx, 1971 [1844], pp. 67-8).
Trata-se de uma atividade no presente, O terceiro é o papel que cumpre
realizada com instrumentos do o uso de instrumentos como meca-
passado, em função de uma atividade nismo de objetivação da natureza. A
do futuro (Kosik, 1989). natureza é, para a maioria dos seres
Em segundo lugar e derivado do vivos, apropriada como uma extensão
anterior, está a distância temporal e do próprio corpo e de forma predeter-
espacial entre instrumento e neces- minada. Por certo se assinalaram múl-
sidade. No caso dos animais, o tiplos exemplos em que os animais
instrumento é buscado em presença “mudaram as regras do jogo”,
da necessidade. No do ser humano, mostrando um grau de subjetividade
distanciou-se a busca da necessidade, por meio de uma flexibilidade de
ou a fabricação da utilização. Esse comportamento às vezes surpreen-
distanciamento pos-sibilita o fabrico dente9. Mas essa flexibilidade se torna
de coisas, ou de agregados aos gradualmente maior à medida que se
mesmos instrumentos, não direta- interpõem mais e mais instrumen-tos
mente vinculadas à sua utilidade (isto entre o corpo e o objeto da atividade.

8 ‘’A produção de instrumentos no nível humano implica um ato desenvolvido no presente que não pode
dissociar-se de um propósito de uso do objeto em um tempo futuro [...]. A produção de instrumentos é
psicologicamente muito mais complicada que o uso de instrumentos [u.] o ho-mem não só faz o
instrumento; independentemente de qualquer conhecimento tecnológico in-corporado, ele lhe dá forma,
e para isto deve ter uma imagem na cabeça que necessita de represen-tações intrínsecas” (A. 1. Hallowell,
apud Ingold, 1986, p. 60).
9 Leakeye Lewin mencionam investigações sobre sinais vocais entre os macacos verdes do Quênia que
mostram comportamentos às vezes flexíveis (Leakeye Lewin, 1995). Gell-Mann faz menção aos pássaros
líderes que enganam o bando para obter vantagens individuais (Gell-Mann, 1995).

12
Com isso, o pensamento reflexivo geraram o oxigênio tóxi-co para si
dáum salto ao considerar a natureza mesmas podem ser considerados
externa ao próprio corpo, algo exemplos disso. Mas, obviamente,
flexível. Quando em uso, o instru- quando a interação com o meio
mento é uma extensão do próprio ambiente se potencializa pelo uso de
corpo que torna sua a na-tureza instru-mentos, as conseqüências são
externa, subjetiva-a. Quando não está não somente quantitativamente
em uso, o instrumento e o res-tante maiores como também qualitativa-
da natureza aparecem como externos mente distintas, porque, com os
ao próprio corpo, como elementos instrumentos, a natureza é “separada”
objetivos. Ao transformar a natureza de maneira nova, criando intermedia-
mediante o trabalho, o ser humano a ções também novas e geran-do
tor-na sua, adapta-a aos seus resultados imprevistos em escala cada
interesses. Mas, de maneira correla- vez maior. De maneira premonitória
tiva, a própria atividade do ser em relação à crise ambiental contem-
humano se condensa, objetiva-se em porânea, escreve Engels em 1874:
uma coisa que trans-cende o tempo. Não devemos, entretanto, nos lison-
Esse novo produto do trabalho está, jear demasiado de nossas vitórias
por um lado, desprendido da cons- humanas sobre a natureza. Esta se
ciência, da subjetividade que o criou; vinga de nós por cada uma das
mas, por outro lado, tem crista-lizado derrotas que lhe impingimos. É certo
em determinados materiais uma que todas elas se traduzem
forma útil que condiciona seus usos principalmente em resultados pre-
futuros. Nesse sentido, o objeto do vistos e calculados, mas acarretam,
trabalho se desprende da consciência, ademais, outros imprevistos, com os
mas a marca de seu criador transcen- quais não contávamos e que, não
de o tempo. Essa dialética subjetivo- poucas vezes, contrapõem-se aos
objetivo implicará conseqüências primeiros (1961, p. 151).
significativas tanto para a evolução da
sociedade humana como para sua Hoje em dia, o exemplo mais
relação com o meio ambiente. destacado dessa “individualização” e
À medida que a natureza se desses resultados imprevistos da
objetiva, é cada vez mais passível de natureza é a ruptura das ligações
ser reor-denada e reconstruída de químicas que geram produtos não
formas variadas. Esse é o aspecto biodegradáveis. Em contrapartida, o
intencional e consciente da atividade produto do trabalho como algo
humana. Ao mesmo tempo, ocorre objetivo e separado do corpo permite
uma conseqüência ines-perada e a comparação entre o desenho mental
inconsciente, fruto da unicidade da prévio e o resultado final. Essa dia-
natureza: os resultados imprevis-tos. lética sujeito-objeto conduz a
Os próprios organismos, em sua processos de trabalho crescentemente
atividade biológica, têm resultados, aprimorados.
diga-mos, “não buscados”. Os Essas características mostram a
animais que levam sua presa à fabricação humana como uma forma
extinção, as cabras que acabam com mais evoluída e, em seu conjunto,
a vegetação ou as cianobactérias que qualitativamente diferente dados

13
animais. Mas levantam, inevitavel- sons da fala seguramente têm suas
mente, a dúvida sobre se o elemento precondições no detalhado movimen-
desencadeante está na mão ou no to das mãos para a fabricação de
cérebro. É possível que a relação instrumentos.
neurológica mão-boca dirima a Nesse sentido existe um duplo
questão. efeito da posição erguida. De uma
No nível neurológico, existe uma parte, o crânio se vê liberado da
relação entre a mão e a boca. Os atadura muscular que lhe impunha a
animais de simetria bilateral são aque- cabeça do antigo quadrúpede, ao
les cujo corpo se divide em campo passo que o rosto, ao reduzir-se em
anterior e posterior. O campo anterior funções, libera também o crânio das
(que inclui cabeça e membros ataduras musculares da mandíbula.
dianteiros) detémos órgãos de De outra parte, a intensificação do uso
preensibilidade, ingestão, relação e o das mãos para a elaboração de
sistema nervoso. No campo anterior, instrumentos (o que significa movi-
a cabeça e os membros anteriores mentos sucessivamente complexos e
entram em inter-relação como detalhados) pressiona para a
resposta à função que cumprem os expansão do cérebro tanto em
membros dianteiros na captura do quantidade como em qualidade. No
alimento e/ou sua sujeição. De dizer de Leroi-Gourhan: “Tudo se dá,
maneira que, em grande quantidade em suma, como se o cérebro viesse a
de animais, tanto quadrúpedes como ocupar progressivamente os territórios
aves e até peixes, os membros anteriores à medida que são liberados
anteriores não se ocupam das funções dos constrangimentos mecânicos do
de locomoção com exclusividade, rosto” (1971, p. 72).
mas colaboram com os órgãos de Vários dados da paleontologia e
nutrição (Leroi-Gourhan, 1971). da arqueologia confirmam a relação
Nos peixes já se encontram entre o uso das mãos na fabricação
exemplos desse tipo. Peixes de fundo dos instrumentos e o crescimento do
utilizam as barbatanas peitorais cérebro. Uma relação foi estabelecida
dianteiras para remover o fundo, e por Leroi-Gourhan ao medir o
alguns, até mesmo, possuem papilas comprimento de fio do instrumento
gustativas nessas barbatanas. Muitos por quilo de sílex e relacioná-lo com
dos quadrúpedes, como o cão ou o a capacidade cerebral para cada uma
gato, utilizam as patas dianteiras para das espécies10. O resultado pode ser
agarrar ou sujeitar suas presas. No ser visto no seguinte quadro:
humano, as mãos herdaram essa
relação neurológica com a boca, o
uso das mãos condiciona movimentos
simpáticos nos órgãos de nutrição. Os

10 Ligado ao aumento do volume do cérebro está seu crescimento em complexidade. As circunvalações


próprias do neocórtex que dão lugar à fala e particularmente os lóbulos frontais, responsáveis pelas
faculdades que concebem o futuro, vão crescendo sucessivamente de espécie em espécie.

14
RELAÇÃO ENTRE A PERFEIÇÃO DO INSTRUMENTO E O TAMANHO DO CÉREBRO

ESPÉCIE ANTIGÜIDADE FIO POR KG CÉREBRO (CM3)


Habilís 2.000.000 10 cm 800
Erectus 500.000 40 cm 900
Sapiens 50.000 200 cm 1.400
SaPiens 20.000 2.000 cm 1.400
Sapiens 10.000 7.000 cm 1.400
Fonte: elaborado a partir de Coppens (1991)

O quadro é apenas um grosseiro cações teóricas, de uma tecnologia,


indicativo. Temos de levar em conta e não apenas de um conhecimento
que os registros fósseis são escassos e técnico.
muitas as variações individuais. Além [...] como uma vez sugeriu
disso, como cada geração herda de Haldane, nossos antepassados
seus antepassados um nível de desen- hominídeos produtores de pontas de
volvimento tecnológico dado, se não pedernal devem ter feito instrumentos
há intercâmbios favoráveis com em pedra por muito tempo antes de
outras sociedades, ou não existem começar a desenhá-los em suas
pressões, certas técnicas podem mentes. Durante a maior parte de
perfeitamente ficar estancadas, nossa história evolutiva, a tecnologia
enquanto outras formas inteligentes se como um corpo de conhecimento
desenvolvem. deve ter seguido um caminho retrasa-
Não obstante, tudo tende a indicar do da técnica como um corpo de
que a linguagem, que é o instrumento práticas (Ingold, 1986, p. 30).
do pensamento, foi um resultado Nesse sentido, devem ter existido
derivado da fabricação de instrumen- fortes pressões para o processo de
tos, o que não significa que se deu falar, derivadas da necessidade de
em um contexto isolado. Quando explicar.
falamos de fabricação de instrumen- O surgimento e o desenvolvimento
tos como elemento desencadeante, da linguagem articulada são, sem
não estamos negando que para a dúvida, o indicador mais claro da
aquisição da linguagem foi preciso função do cérebro. Lamentavelmente,
também, por exemplo, a vida social. também são o de mais difícil determi-
Os primeiros instrumentos, simples nação paleontológica e antropológi-
quanto à técnica, bem podiam ser ca. Mas é significativo que as únicas
aprendidos por imitação, habilidade materializações simbólicas, como as
que os macacos em geral desenvolve- pinturas rupestres, adornos, uso de
ram amplamente. Mas os instrumen- cores, sepultamento dos mortos etc.,
tos mais detalhados fabricados pelo tenham surgido mais ou menos
Homo saPiens talvez tenham neces- simultaneamente, há uns 35 mil anos,
sitado de uma bagagem de expli- com o Homo saPiens moderno,

15
precisamen-te quando se generalizou guardado no congelador, ou dado
a fabricação de variados e detalhados como comida aos cachorros; em
utensílios de pedra. Seria sumamente outras oportunidades, o homem
curioso que, havendo o Homo erectus realiza festas entre os amigos,
fabricado instrumentos materiais, não convidados para saborear a carne
houvesse cristalizado também selvagem. Ambas as caças são
materialmente, em forma de ícones semelhantes em termos técnicos: um
ou pinturas rupestres, sua simbologia caçador, um mesmo instrumento
verbal11. (arco e flecha) e um mesmo resultado
(o javali). Mas é visivelmente diferente
O aspecto social da fabricação de a distribuição do produto. Em um
instrumentos caso, a repartição se dá de acordo
Vimos a produção de instrumen- com regras; em outro, o caçador faz
tos como uma atividade técnica, ima- o que quiser. Das relações visíveis não
ginando um trabalhador desempe- se pode extrair mais nada. Mas
nhando uma atividade que, mediada existem relações invisíveis, relações
por instrumentos, gera um produto sociais, que condicionam a produção
útil. Mas a produção de instrumentos (nesse caso, a caça) e explicam a
tem outra face, a social. distribuição. No primeiro caso, a
Suponhamos a caça de um javali natureza aparece como uma extensão
por um Homo saPiens pertencente a do corpo do bando. Dentro dos
uma sociedade de caçadores e limites em que se move o bando, a
coletores. Uma vez capturado, com natureza lhe pertence. É uma posse,
técnicas de arco-e-flecha, o animal em termos modernos, virtual, mas que
deve ser distribuído entre o bando. garante que o javali pertença ao
Possivelmente a repartição do animal bando em esta- do livre. Quando um
não seja arbitrária, mas obedeça a de seus integrantes o caça, deve,
determinadas pautas culturais, como forçosamente, distribuir o produto
ensinam as mais diversas etnografias. entre seus possuidores. Ao contrário,
Agora imaginemos a caça do mesmo o moderno yuppie.caça em seu
animal realizada por um Homo território privado, de maneira que o
saPiens atual, que vive de apostar na javali lhe pertence e ele pode fazer o
bolsa de Londres, mas que em seu que desejar.
tempo ocioso tem como hobby a O simples exemplo mostra que
excentricidade de caçar, em suas pro- qualquer processo de trabalho (a caça
priedades, com arco e flecha seme- ou coleta também são formas de
lhantes ao do caçador anterior. Sua trabalho) está condicionado por uma
atividade também tem êxito, mas pré-distribuição de seus meios e
nesse caso o animal é, às vezes, objetos de trabalho. Em nosso

11 A anatomia comparada da laringe dos símios e da dos seres humanos mostra, nos primeiros, sua posição
na parte superior da garganta, limitando a gama de sons, enquanto nos humanos sua localização na parte
mais baixa amplia a gama de sons. Aparentemente os Allstralopílheclls tinham a laringe em uma localização
alta da garganta, similarmente aos símios, e o Homo erectlls, numa posição intermediária entre os
Allstralopílbeclls e os sapiells.” Muitos biólogos utilizam o termo social para se referir a determinadas
espécies ou comportamen-tos; aqui, por social nos referimos exclusivamente a comportamentos humanos.

16
exemplo, a apropriação coletiva da antepassados Homo transformaram a
natureza, por um lado, e a proprie- si mesmos, tanto física como
dade privada do solo, por outro. De socialmente.
maneira que, em qualquer momento,
uma sociedade não produz somente Cultura e biologia
segundo o nível de desenvolvimento Poucos duvidariam de que existem
tecnológico que herdou das gerações características culturais diferentes das
passadas (e que, eventualmente, pôde biológicas em qualquer sociedade
melhorar), mas também segundo a humana. Tem sido uma tradição em
forma de distribuição dos meios e antropologia distinguir a herança
objetos de trabalho. biológica da herança social (cultura),
Também nessa faceta social entendendo por herança biológica
existe uma clara diferença entre o uso aquelas características que se trans-
de instrumentos por animais e por mitem geneticamente e construindo
seres humanos. Entre os animais, cada a cultura com o resíduo de tudo o que
geração deve recomeçar do zero, já não é genético. Durante mais de um
que os instrumentos ou meios de século essa distinção permanece
produção não são passados de inquestionada. Assim, por exemplo,
geração a geração. Não existem ali uma dança é um fato cultural, en-
nem história passada nem relações quanto a posição erguida que a
sociais12. Então, o ponto de partida, possibilita é um produto biológico da
tanto histórico como lógico, para que evolução.
haja relações de produção é que Se, de alguma forma, podem-se
existam coisas que perdurem no distinguir raças humanas, é a partir de
tempo, que superem a imediata diferenças genéticas. Com o conceito
necessidade. Os instrumentos foram de étnico, assinalam-se diferenças às
a primeira dessas coisas. A divisão variações culturais entre os povos. À
social do trabalho, isto é, as regula- primeira vista, a raça é produto da
ções em torno da repartição dos ins- herança; o étnico, da cultura. Lévi-
trumentos e dos bens herdados das Strauss (1953) foi o primeiro a
gerações passadas, tem dois sustentá- questionar essa ordem de especifi-
culos. Por um lado e como requisito, cação. Argumentou que, a partir de
coisas produzidas, bens materiais. Por práticas culturais, as populações
outro, uma configuração simbólica tendem a se cruzar segundo certas
que respalda um tipo determinado de regras, favorecendo a imposição de
distribuição dessa riqueza material. A diferenças genéticas. Assim, as etnias
fabricação de instrumentos foi o criariam as raças e não o contrário.
elemento dinamizador, gerando Sem ao menos suspeitar, Lévi-Strauss
coisas como requisito para o surgi- estava estendendo a moderna teoria
mento de relações sociais. Na mesma fenogenética da biologia à antropo-
medida em que adquiriam instrumen- logia. Dizer que a etnia cria a raça é
tos para transformar o meio, nossos como dizer que a prática do fenótipo

12 Existem interessantes hipóteses de como os caçadores paleolíticos exterminaram os grandes mamíferos


da América e Australásia (Crosby, 1988).

17
em interação com seu ambiente capacidades se crescerem em um
condiciona e transforma o genótipo meio adequado. Mas, ao fazê-lo,
e a evolução. desenvolvem modificações, adaptam
Ingold (1995) expôs claramente seu organismo a tais efeitos. A
essa contradição. Tomou o caso do conclusão de Ingold é óbvia: “Segue-
des-locamento bípede, que está na se que as diferenças culturais - uma
base do surgimento dos hominídeos vez que surgem no processo de
como mudança biológica essencial. desenvolvimento do organismo
Até onde sabemos, argumentou, as humano e seu meio ambiente - são
crianças não nascem caminhando, elas mesmas biológicas” (1995, p. 196).
mas aprendem desde que exista um A crítica de Ingold é uma exten-
meio (superfícies relativamente são da teoria fenogenética da biologia
planas, força gravitacional, adultos à antropologia. Os fenogeneticistas
ensinando etc.) que lhes permita. criticam a corrente ultradarwi-nista
Conclui Ingold: por des-conhecer o papel do fenótipo
Estritamente falando, então, a na evolução. Sustentam que o
bipedestação não pode ser atribuída organismo adapta o meio às suas
ao organismo humano, a menos que necessidades e, ao fazê-lo, transforma
o contexto meio ambiental entre na a si mesmo. A atividade de desen-
especificação do que esse organismo volvimento do organismo o modifica
é (1995, p. 191). biologicamente. Estendendo esse
Mais ainda, essas habilidades raciocínio à sociedade humana, tem-
estão literalmente incorporadas ao se que tudo o que é aprendido, ou
organismo, no sentido de que seu seja, o que geralmente se denomina
desenvolvimento implica modifica- cultural, é parte integrante do próprio
ções específicas em neurologia, organis-mo biológico. Não há prática
musculatura e, ainda, em característi- cultural alguma que não tenha
cas básicas da anatomia [...] esta repercussões físicas no próprio
conclusão está confirmada pela mais organismo. Por isso, para Ingold,
recente investigação neurológica, que Tão logo introduzimos o con-
mostra, tal como reportam Kandel e ceito ambiental do desenvolvimento
Hawkins, que “nossos cérebros estão em nossa especificação do que um
constantemente mudando anatomica- organismo é, segue-se que o ser
mente” inclusive quando aprendemos humano no ambiente A não pode ser
(Kandel e Hawkins, apud Ingold, o mesmo tipo de organismo que o de
1995, p. 192). um ser humano no ambiente B.
O mesmo argumento pode ser Por-tanto, o homem de Cro-Magnon
estendido à linguagem. A capacidade era uma criatura diferente do
de fala é um resultado biológico da pedestre, ciclista urba-no ou
evolução, enquanto ler e escrever motorista de automóveis de hoje em
seriam produtos da cultura. Mesmo dia. Não era “como nós” nem mesmo
assim, essas coisas não podem ser biologicamente. Pode ser parecido
separadas. Acontece aqui o mesmo geneticamente, mas isso é outra
que com o caminhar. As crianças não questão (1995, p. 192).
nascem nem caminhando nem Embora coerente, o raciocínio de
falando, mas desenvolvem essas Ingold passa ao largo de um elemento

18
central: as coisas produzidas. Para de regulações sociais estabelecidas
caminhar basta o contexto, para falar pela pré-distribuição dos instrumentos.
tam-bém, mas para andar de bicicle- Na aparência, a fabricação de
ta, ou para ler ou escrever, fazem falta instrumentos é um processo técnico.
bicicle-tas, livros, folhas de papel, Na essência, depende de relações
lápis ou computadores. A possibilida- sociais baseadas em uma determina-
de de aprender a caminhar não da forma de partilha dos meios de
transcende o tempo, não se cristaliza produção herdada das gerações
em um objeto inde-pendente do passadas. O conceito de produção
corpo. O aprender a falar não está engloba tanto a aparência como a
objetivado em coisas separadas do essência, tanto a criação de novos
corpo. Mas a bicicleta, o computador produtos como sua distribuição. A
ou o livro, sim. Esta é uma diferença produção nunca é um fato individual
radical. Quando a aprendizagem se ou separado no tempo. É um processo
realiza por meio de utensílios, que se cria com base em uma
quaisquer que forem, estes podem ser distribuição preestabelecida (passada)
monopolizados, e seu acesso de meios de produção, com meios e
restringido. instrumentos do presente e para
A distinção nos conduz às distribuição e consumo no futuro.
relações sociais. O requisito para que Todo processo de produção tem, por
existam relações sociais é que existam sua vez, uma base material, que
coisas que se “herdam” de uma reflete o nível técnico alcançado e o
geração a outra. A fabricação de ins- tipo de distribuição dos meios de
trumentos tornou possível o primeiro produção, e uma trama simbólica de
passo nes-se sentido. Mas, tão logo o regras que reconhece essa distribuição.
trabalho humano se objetiva em Com a fabricação de instrumen-
coisas que per-duram, estas se tornam tos, o Homo deu um passo revolucio-
passíveis de monopólio, e surgem nário no comportamento diante de
regulações que estabelecem uma seu meio. Por um lado, porque
divisão social do trabalho, a partir do começou a potencializar sua capaci-
controle ou posse des-sas coisas. A dade biológica para adaptar o meio
divisão sexual do trabalho, que tem ambiente às suas necessidades. Isso
bases biológicas, passa a ser constituiu um processo sem fim. O
governada pelas relações de produ- Homo saPiens se expandiu para todo
ção, uma vez que existem instrumen- o globo terrestre, ainda com uma
tos que podem transferir-se de umas técnica lítica, excetuando-se os pólos.
pessoas às outras, de geração a E isso, desde esse começo, teve efeitos
geração. O que começa como uma devastadores sobre certas espécies13.
partilha do trabalho a partir de Mas, por outro lado, a produção
diferenças biológicas ter-mina em impôs uma revolução no interior da
uma repartição do trabalho a partir própria espécie humana. Converteu

13 Existem interessantes hipóteses de como os caçadores paleolíticos exterminaram os grandes mamíferos


da América e Australásia (Crosby, 1988).

19
a contradição entre congêneres de Conclusões
bio-lógica em social. A luta pela A moderna tecnología, ou a
sobrevivência deixou de ter como ideologia produtivista que a expressa,
resultado a so-brevivência do mais é comumente identificada como a
apto, como acontece com os outros causa humana da atual crise ambien-
seres vivos. Os sobre-viventes ta!. Entretanto, trata-se das manifesta-
passaram a ser os que conseguiam a ções mais aparentes de uma essência
posse dos melhores meios de não tão visível, as relações sociais.
produção. As relações de produção Nas páginas anteriores revisamos
dominaram as relações biológicas de criticamente a origem do gênero
repro-dução no que se refere à Homo e sua evolução. Por meio
evolução humana. Com isso, o delas, mostramos que o ser humano
comportamento hu-mano em relação aprofunda al-gumas tendências
a seu ambiente passou a depender do presentes nas outras espécies, como
tipo de relações so-ciais de produção. a liberação do meio. O salto
Não é o momento de explicar como qualitativo que representaram a
as diferentes relações de produção posição ereta e a conseqüente libe-
implicam leis específicas de uso do ração das mãos foi o elemento desen-
meio ambiente. Basta recordar o cadeante de todas as transformações
exemplo do item anterior, no qual se posteriores nos hominídeos e no
comparava o caçador da sociedade gênero Homo.
de caça com o desportista yuppie. No O eixo ou atrativo em torno do
primeiro caso, a natureza é o qual se organizou toda a vida humana
armazém da comunidade como um foi a produção da vida material, que
todo, de maneira que as decisões teve raiz na fabricação de instrumen-
sobre o modo de sua utilização, assim tos. A fabricação de instrumentos
como os resultados do trabalho, são permitiu um relacionamento novo
coletivas. No segundo caso, a com o meio ambiente. Primeiro,
propriedade privada permite a desenvolvendo com sua prática
decisão individual sobre o uso dessa mesma um conceito de tempo que
parcela da natureza. A contradição distingue a ação (presente) dos objetos
entre o interesse individual e o (passados) com os quais se realiza e
interesse da comunidade é tão- do propósito (futuro). Segundo, o fato
somente uma das diferenças que de produzir instrumentos sem a
geram comportamentos diferentes pressão da necessidade imediata
com respeito ao meio ambiente e que permitiu a produção de objetos para
deram lugar à polêmica sobre a satisfazer necessidades não imediatas
“tragédia dos bens coletivos”14. e, com isso, a criação de inúmeras

14 Hardin, “The tragedy of commons”, 1968.

20
necessidades espirituais. Terceiro, resolvem basicamente pela via
possibilitando que o produto do biológica da seleção natural, para o
trabalho, junto com a natureza ser humano elas aparecem mediadas
mesma que se emprega na ação, pelas relações sociais de produção.
apareça como elemento obje-tivo, Toda atividade humana, qualquer que
passível de ser reordenado e seja, realiza-se com base nas
comparado com o desenho mental. mediações com utensílios pré-
Essa dialética objeto-sujeito permitiria fabricados, que constituem a base
o desenvolvimento tecnológico, assim material da sociedade humana. À
como a reflexão sobre os limites de medida que são consumidos, esses
seu controle. Por certo, esse relacio- produtos são repro-duzidos por meio
namento novo com o meio ambiente de instrumentos e objetos de trabalho.
implicará, por si mesmo, uma série Por isso, a distribui-ção dos meios de
de conseqüências (transformação de produção é a base e a condição para
ritmo crescente, amplitude de utiliza- a reprodução de toda a sociedade. As
ção de materiais, separação de relações sociais de produção
elementos, efeitos imprevistos etc.), estabelecem, em cada momento
resultados que constituem a base histórico, combinações de proprie-
objetiva dos que creditam à dade/acesso/uso desses meios e, ao
tecnologia a causa da atual crise fazê-lo, condicionam as próprias
ambienta!. Não obstante, uma relações técnicas, ou seja, a forma de
transformação derivada dessas relacionamento com a natureza. Daí
relações técnicas, a mudança no se conclui que a principal revolução
relacionamento entre congêneres, que ocorreu como resultado do
passou a condicionar as próprias surgimento do gênero Homo foi não
relações técnicas. tanto o fato técnico de haver
Se o relacionamento com o meio possibilitado uma transformação
ambiente pode ser desagregado em formal da natureza mais profunda e
re-lações com o meio abiótico, com ampla, mas o fato social de o ser
o restante dos seres vivos e com os humano haver transformado a si
congêneres, a forma como o ser mesmo, gerando relações entre
humano lida com as duas primeiras é congêneres que condicionam todo o
por meio das rela-ções técnicas. Mas, comportamento posterior com o meio
enquanto entre o restante dos seres ambiente.
vivos as relações entre congêneres se

21
II - TRABALHO, SOCIEDDE E VALOR*

Já vimos, na Introdução, que o trata-se de uma categoria que, além


objetivo da Economia Política é o de indispensável para a compreensão
estu-do das leis sociais que regulam da atividade econômica, faz referên-
a produção e a distribuição dos meios cia ao próprio modo de ser dos
que permitem a satisfação das homens e da sociedade. Por essa
necessidades dos homens, historica- razão, leste capítulo não trataremos
mente determinadas. Tais meios - que, o trabalho apenas como pertinente à
em seu conjunto, representam a Economia Política, mas indicaremos
riqueza social - asseguram aquela sobretudo algumas das determinações
satisfação, sem a qual a sociedade que em dele uma categoria central
não pode manter-se e reproduzir-se. para a compreensão do próprio
Assim, pois, o objeto da Economia fenôme-no humano-social. Só ao
Política são as relações sociais final deste capítulo, depois dessas
próprias à atividade econômica, que considerações mais abrangentes, é
é o processo que envolve a produção que retomaremos a argumentação
e a distribuição dos bens que satisfa- mais pertinente à Economia Política.
zem as necessidades individuais ou
coletivas dos membros de uma 1.1. Trabalho: transformação da
sociedade. natureza e constituição do ser social
Na base da atividade econômica Como observaremos mais
está o trabalho - é ele que toma adiante, as condições materiais de
possível a produção de qualquer bem, existência e reprodução da sociedade
criando os valores que constituem a - vale dizer, a satisfação material das
riqueza social. Por isso, os econo- necessidades dos homens e mulheres
mistas políticos sempre concederam que constituem a sociedade -
ao trabalho uma “importância obtêm-se numa interação com a
especial em seus estudos. natureza: a sociedade, através dos
Entretanto, o trabalho é muito seus membros (homens e mulheres)1
mais que um tema ou um elemento transforma matérias naturais em
teórico da Economia Política. De fato, produtos que atendem às suas

* Este texto foi extraído do livro Economia Política - uma introdução crítica, de Jose Paulo Netto e Marcelo
Braz.
1. Ao longo deste livro, a partir de agora, quando nos referimos apenas a homem/homens para não repetir
homem e mulher/homens e mulheres, estamos remetendo aos membros do gênero humano, constituído
necessária e concretamente por homens e mulheres.

22
necessidades. Essa transformação é conhecimentos que se adquirem
realizada através da atividade a que inicialmente por repetição e experi-
denominamos trabalho. mentação e que se transmitem
Sabe-se que atividades que mediante aprendizado;
atendem a necessidades de sobrevi- • em terceiro lugar, porque o traba-
vência são generalizadas entre lho não atende a um elenco limitado
espécies animais - pense-se, por e praticamente invariável de neces-
exemplo, no ciclo de vida de alguns sidades, nem as satisfaz sob formas
pássaros, de alguns roedores e de fixas; se é verdade que há um con-
certas colônias de insetos (estas, aliás, junto de necessidades que sempre
podem apresentar complexa organi- deve ser atendido (alimentação,
zação gregária). Tais atividades, proteção contra intempéries, repro-
contudo, processam-se no interior de dução biológica etc.), as formas
circuitos estritamente naturais: desse atendimento variam muitíssi-
realizam-se no marco de uma mo e, sobretudo, implicam o
herança determinada geneticamente desenvolvimento, quase sem limites,
(o joão-de-barro nasce “programado” de novas necessidades.
para construir sua casa, as abelhas
nas-cem “programadas” para cons- Essas características do trabalho
truir colméias e recolher pólen etc.), não são próprias das atividades
num relação imediata entre o animal de-terminadas pela natureza; elas
e o seu meio ambiente (os animais configuram, em relação à vida
atuam diretamente sobre a matéria natural, um tipo novo de atividade,
natural) e satisfazem, sob formas em exclusivo de uma espécie animal, só
geral fixas, necessidades biologica- por ela praticado - espécie que,
mente estabelecidas (necessidades precisamente por essa prática,
praticamente invariáveis ). diferencia-se e distancia-se da
O que chamamos trabalho é algo natureza. Essa atividade, quando
substantivamente diverso dessas inteiramente desenvolvida, é o
atividades. Na medida em que foi se trabalho. Antes de prosseguir com a
estruturando e desenvolvendo ao nossa argumentação, é preciso
longo de um larguíssimo decurso aprofundar as anotações anteriores,
temporal, o trabalho rompeu com o que permitem distinguir o trabalho de
padrão na-tural daquelas atividades: qualquer ou-tra atividade natural.
• em primeiro lugar, porque o trabalho
Para fazê-lo, vale a pena tomar como
não se opera com uma atuação referência algumas reflexões de Marx:
imediata sobre a matéria natural; · (...) O trabalho é um processo
diferentemente, ele exige instrumen- entre o homem e a natureza, um
tos que no seu desenvolvimento, vão processo em que o homem, por sua
própria ação, media, regula e
cada vez mais se interpondo entre controla seu metabolismo com a
aquele que o executam e a matéria; natureza. ·(...) Não se trata aqui das
• em segundo lugar, porque o trabalho primeiras formas instintivas, animais,
não se realiza cumprindo determi- de trabalho. (...) Pressupomos o
nações genéticas; bem ao contrário, trabalho numa forma em que
per-tence exclusivamente ao
passa a exigir habilidades e

23
homem. Uma aranha executa elementares da história, coloca para
operações semelhantes às do tecelão o sujeito do trabalho o problema dos
e a abelha envergonha mais de um meios e dos fins (finalidades) e, com
arquiteto humano com a construção ele, o problema das escolhas: se um
dos favos de suas colméias. Mas o
machado mais longo ou mais curto é
que distingue, de antemão, o pior
arquiteto da melhor abelha é que ele ou não adequado (útil, bom) ao fim a
construiu o favo em sua cabeça, que se destina (a caça, a autodefesa,
antes de construí-lo em cera. No fim etc.).
do processo de trabalho obtém-se Esses dois problemas, postos pelo
um resultado que já no início deste trabalho, determinam, para a sua
existiu na imaginação do trabalha- efetivação, componentes muito
dor, e por-tanto idealmente. Ele não especiais. De uma parte, o fim (a
apenas efetua uma transformação da finalidade) é como que antecipado
forma da matéria natural; realiza, ao
mesmo tempo, na matéria natural, o nas representações do sujeito:
seu objetivo. (...) Os elementos idealmente (mentalmente, no seu
simples do processo de trabalho são cérebro), antes de efetivar a atividade
a atividade orientada a um fim ou o do trabalho, o sujeito prefigura o
trabalho mesmo, seu objeto e seus resultado da sua ação. Não é
meios. (...) O processo de trabalho importante saber em que medida o
(...) é a atividade orientada a um fim fim a ser alcançado corresponderá
para produzir valores de uso, apro- mais ou menos á idealização
priação do natural para satisfazer a (prefiguração) do sujeito; importante
necessidades humanas, condição
universal do metabolismo entre o
é destacar que sua atividade parte de
homem e a natureza, condição natural uma finalidade que é antecipada
eterna da vida humana e, portanto, idealmente, é sublinhar que sua
(...) comum a todas as suas formas atividade tem como ponto de partida
sociais (Marx, 1983: 149-150, 153). uma intencionalidade prévia – mais
À diferença das atividades exatamente, é importante ressaltar
naturais, o trabalho se especifica por que o trabalho é uma atividade
uma relação mediada entre o seu projetada, teleologicamente direcio-
sujeito (aqueles que o executam, nada, ou seja: conduzida a partir do
homens em sociedade) e o seu objeto fim proposto pelo sujeito. Entretanto,
(as várias formas da natureza, se essa prefiguração (ou, no dizer de
orgânica e inorgânica). Seja um Lukács, essa prévia ideação) é
machado de pedra lascada ou uma indispensável à efetivação do
perfuradora de poços de petróleo com trabalho, ela em absoluto o realiza: a
comando eletrônico, entre o sujeito realização do trabalho só se da
e a matéria natural há sempre um quando essa pré figuração ideal se
meio de trabalho, um instrumento (ou objetiva, isto é, quando a material
um conjunto de instrumentos) que natural, pela ação material do sujeito,
torna, mediada a relação entre ambos. é transformada. O trabalho implica,
E a natureza não cria instrumentos: pois, um movimento indissociável em
estes são produtos, mais ou menos dois planos: num plano subjetivo (pois
elaborados, do próprio sujeito que a prefiguração se processa no âmbito
trabalha. A criação de instrumentos de do sujeito) e num plano objetivo (que
trabalho, mesmo nos níveis mais

24
resulta na transformação material da erguimento de um aranha-céu) exige
natureza); assim, a realização do que o sujeito conheça as propriedades
trabalho constitui uma objetivação do da natureza. Não basta prefigurar
sujeito que o efetua. idealmente o fim da atividade para
De outra parte, tanto o fim que o sujeito realize o trabalho; é pre-
quanto os meios do trabalho põem ao ciso que ele produza, também ideal-
sujeito exigências e impõem a ele mente, as condições objetivas em que
condições que vão além das determi- atua (a dureza da pedra etc.) e possa
nações naturais. Em primeiro lugar, o transmitir a outrem essas representa-
sujeito deve fazer escolhas entre ções. Estas, a pouco a pouco, tendem
alternativas concretas; tais escolhas a se desprender da experiência
não se devem a pulsões naturais, mas empírica imediata – tendem a recobrir
a avaliações que envolvem o outras situações, projetadas para
elemento (útil, inútil, bom, mau, etc.) outros lugares e tempos; ou seja: a
pertinentes à obtenção dos resultados partir das experiências imediatas do
do trabalho. Em segundo lugar, as trabalho, o sujeito se vê impulsado e
objetivações em que se realiza o estimulado a generalizar e a universa-
trabalho (seus produtos), tendo por lizar os saberes que detém. Ora, tudo
matéria a natureza, enquanto efetivi- isso requer um sistema de comunica-
dades, não se identificam com o ção que não deriva de códigos
sujeito: elas e o sujeito têm existência genéticos, uma vez que se relaciona
autônoma (o machado de pedra passa a fenômenos que não se configuram
a ter uma existência independente do como processos naturais, mas a
seu criador, o refúgio construído existe fenômenos surgidos no âmbito do ser
independentemente do seu constru- que trabalha – por isso, o trabalho
tor) – é assim, pois, que, no traba- requer e propicia a constituição de um
lho,surge primariamente a distinção tipo de linguagem (a linguagem
e a relação entre sujeito (aquele que articulada) que, além de aprendida,
realiza a ação) e objeto (a matéria, o é condição para o aprendizado. Atra-
instrumento e/ou o produto do vés da linguagem articulada, o sujeito
trabalho). Em terceiro lugar, a questão do trabalho expressa as suas represen-
dos meios e dos fins do trabalho põe tações sobre o mundo que o cerca.
duas ordens de exigências interliga- Contudo, aqui, a comunicação
das, sem a solução das quais o é tanto mais necessária se se leva em
trabalho é inviável: o conhecimento conta que o trabalho jamais é um
sobre a natureza e a coordenação processo capaz de surgir, de se
múltipla necessária ao sujeito. desenvolver ou, ainda, de se realizar,
em qualquer tempo, como atividade
Tanto a feitura de instrumentos
isolada de um ou outro membro da
quanto a de produtos (da produção espécie humana. O trabalho é,
de um machado até a confecção de sempre, atividade coletiva: seu sujeito
um instrumento mais complexo, da nunca é um sujeito isolado, mas
construção de um abrigo de pedra ao sempre se insere num conjunto (maior

25
ou menor, mais ou menos estruturado) Nossa argumentação chega,
de outros su-jeitos. Essa inserção agora, a um momento extremamente
exige não só a coletivização de importante: estamos afirmando que o
conhecimentos, mas sobretudo trabalho, tal como o viemos caracteri-
implica convencer ou obrigar outros zando até aqui, só deve ser pensado
à realização de atividades, organizar como a atividade exercida exclusiva-
e distribuir tarefas, estabelecer ritmos mente por homens, membros de uma
e cadências etc. - e tudo isso, além sociedade, atividade através da qual
de somente ser possível com a - transformando formas naturais em
comunicação propiciada pela produtos que satisfazem necessidades
linguagem articulada, não está regido - se cria a riqueza social; estamos
ou determinado por regularidades afirmando mais: que o trabalho não
biológicas; conseqüentemente, o é apenas uma atividade específica de
caráter coletivo do trabalho não se homens em sociedade, mas é,
deve a um gregarismo que tenha também e ainda, o processo histórico
raízes naturais, mas, antes, expressa pelo qual surgiu o ser desses homens,
um tipo específico de vinculação o ser social. Em poucas palavras,
entre membros de uma espécie que estamos afirmando que foi através do
já não obedece a puros determinis- trabalho que a humanidade se
mos orgânico-naturais. Esse caráter constituiu como tal. É preciso que nos
coletivo da atividade do trabalho é, detenhamos, mesmo que brevemen-
substantivamente, aquilo que se te, nessa questão essencial.
denominará de social.
Como se pode observar, 1.2. TRABALHO, NATUREZA E SER SOCIAL
portanto, o trabalho não transforma A sociedade não pode existir sem
apenas a matéria natural, pela ação a natureza - afinal, é a natureza,
dos seus sujeitos, numa interação que trans-formada pelo trabalho, que
pode ser caracterizada como o propicia as condições da manutenção
metabolismo entre sociedade e da vida dos membros da sociedade.
natureza. O trabalho implica mais que Toda e qualquer sociedade humana
a relação sociedade/natureza: implica tem sua existência hipotecada à
uma interação no marco da própria existência da natureza - o que varia
sociedade, afetando os seus sujeitos historicamente é a modalidade da
e a sua organização. O trabalho, relação da sociedade com a natureza:
através do qual o sujeito transforma a variam, ao longo da história, os tipos
natureza (e, na medida em que é uma de transformação que, através do
transformação que se realiza material- trabalho, a sociedade opera nos
mente, trata-se de uma transformação elementos naturais para deles se
prática), transforma também o seu servir, bem como os meios emprega-
sujeito: foi através do trabalho que, dos nessa transformação. Vale dizer:
de grupos de primatas, surgiram os modificam-se, ao longo da história da
primeiros grupos humanos -numa humanidade, as formas de produção
espécie de salto que fez emergir um material da vida social e, por
novo tipo de ser, distinto do ser natural conse-guinte, as condições materiais
(orgânico e inorgânico): o ser social. de existência nas quais vivem os

26
homens. Mas é invariável o fato de características não po-dem ser
que a reprodução da sociedade deduzidas das características da
depende da existência da natureza (a matéria inorgânica. As condições que
natureza, porém, pode existir e propiciaram aquele salto, que
subsistir sem a socie-dade). inscreveu a vida no universo que
Por natureza entendemos o conhecemos, ainda permanecem
conjunto dos seres que conhecemos como objeto de pesquisa (e de
no nosso universo, seres que polêmica) entre os especialistas e
precederam o surgimento dos primei- mesmo as hipóteses mais ousadas
ros grupos humanos e continuaram a propostas pela ciência contempo-
existir e a se desenvolver depois desse rânea carecem de plena compro-
surgi-mento. Ela se compõe de seres vação e consensualidade.
que podem ser agrupados em dois As formas elementares desse
grandes níveis: aqueles que não novo ser vivo, capazes de se manter
dispõem da propriedade de se e reproduzir apenas no quadro de
reproduzir (a natureza inorgânica) e mútuas interações e de interações
aqueles que possuem essa proprie- com a natureza inorgânica, também
dade, os seres vivos, vegetais e mediante processos evolutivos
animais (a natureza orgânica). A complicados e muitíssimo largos em
distinção entre os níveis inorgâ-nico termos temporais, diferenciaram-se
e orgânico, contudo, não significa a enormemente e se desenvolveram a
existência de uma” dupla natureza” - ponto de constituir organismos
de fato, a natureza é uma unidade, animais bastante com-plexos,
articulando seus diferentes níveis verdadeiramente superiores na escala
numa totalidade complexa. natural - os mamíferos primatas. As
Não há estudos científicos indicações científicas disponíveis
conclusivos que expliquem sufi- mais seguras permitem afir-mar que
cientemente como se deu a foi dos primatas, através de outro salto
diversificação entre os níveis inorgâ- qualitativo, sobre o qual carecemos
nico e orgânico; sabe-se, apenas, que de conhecimentos detalhados
o surgimento da vida, ligado a (embora existam várias hipóteses),
complexos processos físico-químicos, que surgiu a espécie humana.
foi produto de um longo caminho Trata-se, mesmo, de um outro
evolutivo, ao cabo do qual, sobre a salto - o surgimento da espécie
base da matéria inorgânica, emergiu humana não configura uma neces-
um novo tipo de ser, dotado da sidade da evolução biológica nem o
capacidade de se reproduzir: o ser desdobramento de uma programação
vivo, orgânico. Esse surgimento genética: foi uma autêntica ruptura
confi-gurou uma espécie de salto nos meca-nismos e regularidades
qualitativo na dinâmica da matéria naturais, uma passagem casual como
inorgânica (até então, a única forma a da natureza inorgânica à orgânica
de existência da natureza), uma vez e foi precedida, certamente, de
que a passa-gem do inorgânico ao modificações ocorrentes numa escala
orgânico fez aparecer na natureza um temporal de largo curso. A espécie
tipo de ser com uma estrutura de humana desenvolve-se como um
complexidade diferente e maior, cujas outro novo tipo de ser, até então

27
inexistente, e cujas peculiaridades palavras: foi através do trabalho – tal
não se devem à herança biológica como sinalizamos nas páginas
nem a condições geneticamente precedentes – que grupos de primatas
predeterminadas: um modo de ser se transformaram em grupos
radicalmente inédito, o ser social, humanos, foi através do trabalho que
dotado de uma complexidade de a humanidade se constituiu como tal.
novo tipo e exponencialmente maior Ou, se quiser: o trabalho é fundante
que a verificável na natureza do ser social, precisamente porque é
(inorgânica e orgânica). de ser social que falamos quando
Na base desse salto está um falamos de humanidade (sociedade).
fenômeno desconhecido no mundo A sociedade não é simplesmente
natural: está uma atividade que gru- o agregado dos homens e mulheres
pos de primatas começaram a que a constituem, não é um somatório
exercitar e que responde pelo desen- deles, nem algo que paira acima
volvimento que os distinguiria e deles; por outro lado, os membros da
destacaria de todas as outras formas sociedade não são átomos nem
vivas. Uma atividade que se inscrevia nômades, que reproduziriam a
no conjunto de esforços que os grupos sociedade em miniatura. Não se pode
tinham de efetivar para sobreviver - separar a sociedade dos seus mem-
esforços voltados para extrair da bros: não há sociedade sem que
natureza os meios de manter e estejam em interação os seus
reproduzir a sua vida, voltados para membros singulares, assim como não
atender às necessidades elementares há seres sociais singulares (homens e
de manutenção e repro-dução física mulheres) isolados, fora do sistema de
dos grupos e seus membros. Essa relações que é a sociedade. O que
atividade desencadeou transforma- chamamos sociedade são os modos
ções substantivas em tais grupos e de existir do ser social; é na sociedade
seus membros: o seu exercício e nos membros que a compõem que
deter-minou o surgimento de relações o ser social existe: a sociedade, e seus
e desdobramentos inexistentes na membros, constitui o ser social e dele
natureza. Essa atividade, num grau de se constitui.
desenvolvimento que certamente O surgimento do ser social foi o
deman-dou um dilatadíssimo lapso resultado de um processo mensurável
de tempo2, adquiriu características numa escala de milhares de anos.
especiais, configurando o que já Através dele, uma espécie natural,
denominamos trabalho. Noutras sem deixar de participar da natureza,

2. Em todo este capítulo, menciona-se que os processos aqui relacionados implicaram longos períodos de
tempo. Com efeito, pesquisas arqueológicas e antropológicas indicam que a primeira forma hominídea
(autralopithecus anamensis) surgiu sobre a terra há cerca de 4 milhões de anos e que a evolução que
levou ao aparecimento da forma hominídea de que descendemos (homo sapiens sapiens) culminou há
cerca de 100 mil anos. Até à invenção da escrita, o aparecimento do homem configura a chamada “pré-
história”, que geralmente se divide em três períodos: o paleolítico (“idade da pedra lascada”), que se
estendeu por mais de 2,5 milhões de anos, o neolítico (“idade da pedra polida”), iniciado há mais de 20
mil anos (a transição do paleolítico para o neolítico designa-se por mesolítico) e a idade dos metais, que
começou por volta de 6.000 a.C.

28
transformou-se, através do trabalho, quanto mais se toma ser social, tanto
em algo diverso, da natureza - mas menos o ser natural é determinante
essa transformação deveu-se à sua em sua vida. Dois exemplos podem
própria atividade, o trabalho: foi ilustrar o que estamos afirmando.
mediante o trabalho que os membros O primeiro diz respeito à fome.
dessa espécie se tornaram seres que, A fome é a sinalização natural de que
a partir de uma base natural (seu o organismo necessita de insumos
corpo, suas pulsões, seu metabolismo (calóricos, protéicos) para a continui-
etc.), desenvolveram características e dade do seu funcionamento. Sob esse
traços que os distinguem da natureza. aspecto, a fome de um homem não
Trata-se do processo no qual, se distingue da fome de um cão.
mediante o trabalho, os homens Entretanto, a satisfação da fome
produziram-se a si mesmos (isto é, se humana é radicalmente distinta da
autoproduziram como resultado de satisfação da fome animal (natural):
sua própria atividade), tornando-se - implica procedimentos de transforma-
para além de seres naturais - seres ção do insumo (o alimento), implica
sociais. Numa palavra, este é o valores e rituais. Um cão faminto
processo da história: o processo pelo recolherá seu alimento onde e sob a
qual, sem perder sua base orgânico- forma em que o encontrar; o
natural, uma espécie da na-tureza comportamento do leitor deste livro,
constituiu-se como espécie humana quando estiver com fome, será
- assim, a história aparece como a inteiramente diverso - certamente só
história do desenvolvimento do ser a satisfará sob condições muito
social, como processo de huma- precisas, historicamente determina-
n i z a -ção, como processo da das (alimento preparado, garantia de
produção da humanidade através da higiene, padrões de gosto e prazer
sua auto-atividade; o desenvolvi- etc.). Sem a satisfação da fome, ou
mento histórico é o desenvolvimento seja: da necessidade natural de se
do ser social. alimentar, os homens e os animais não
Esse desenvolvimento supõe as podem viver - mas o atendimento
estruturas naturais, supõe a natu- dessa necessidade, entre os homens,
rali-dade do homem (seu corpo etc.). é rigoro-samente social.
O desenvolvimento do ser social não Um segundo exemplo pode ser
a suprime - o homem terá, sempre, referenciado à reprodução biológica.
uma naturalidade que indica a sua Nos homens e nos animais, ela está
con-dição originária de ser da vinculada a pulsões que se diriam
natureza. Constituindo-se a partir instintivas, pulsões sem as quais a
dela, o desenvolvimento do ser social reprodução seria impensável- há a
faz com que ela perca, cada vez mais, necessidade de dar curso a essas
a força de determinar o compor- pulsões, tanto nos animais quanto nos
tamento humano: o que é próprio do homens. Entre os animais, existindo
desenvolvimento do ser social as condições de fertilidade da fêmea,
consiste, sem eliminar a naturalidade a sua cobertura pelo macho realiza-
do homem, em reduzir. o seu peso e se como um dado imediato, mesmo
a sua gravitação na vida humana - que precedido, no caso de algumas
quanto mais o homem se humaniza, espécies, de rodeios comandados por

29
mecanismos reiterativos de seleção limites) naturais em meio às quais se
biológica. Entre os homens, as pulsões move a sociedade e a própria
são largamente mediatizadas por naturalidade dos homens são
escolhas, valores, normas e rituais - a insuprimíveis, mas as suas implica-
pulsão natural é metamorfoseada por ções para a vida humana decrescem
componentes que articulam um tipo à medida que, pelo trabalho, os
de relação sexual que está muito homens transformam a natureza e se
distanciada do comando biológico: o transformam a si mesmos. O homem,
leitor deste livro certamente exercita portanto, é natureza historicamente
a sua pulsão sexual no marco de transformada - mas o que é propria-
exigências que, muito para além da mente humano reside nessa trans-
diferenciação biológica macho/ formação (autotransformação, já que
fêmea, envolvem respeito para com propiciada pelo trabalho realizado
o parceiro, jogos eróticos, comunica- pelos homens), que situa o homem
ção, expressividade, confiança etc. para além da natureza e o caracteriza
Sem a pulsão biológica, sem o como ser social.
chamado “instinto sexual” natural, os O processo de constituição do
homens não se reproduziriam; mas a ser social tem seu ponto de arranque
modalidade de vazão des-se nas peculiaridades e exigências
“instinto” nada tem de natural, é colocadas pelo trabalho; a partir
substantivamente social3. dessas exigências (que já assinalamos
Retomemos à nossa argumenta- no item 1.1.: a atividade teleologi-
ção: o desenvolvimento do ser social camente orientada, a tendência à
- ou a história mesma - pode ser universalização e a linguagem
descrito como o processo de humani- articulada), os sujeitos do trabalho
zação dos homens, processo através experimentam um multimilenar
do qual as determinações naturais, processo que acaba p distingui-los da
sem deixar de existir, jogam um papel natureza: o processo de humani-
cada vez menos relevante na vida zação. Aquelas exigências vão se
humana. O desenvolvimento do ser tornando mais complexas e se tomam
social significa, pois, que, embora se também mais complexas, objetiva-
mantenham as determinações ções daqueles sujeitos e suas
naturais, elas são progressivamente interações com os outros sujeitos. Essa
afastadas, empurradas para trás, crescente complexidade requer e
sofrendo um recuo. As barreiras (ou oferece, simultaneamente, condições

3. Pode-se argumentar contrariamente a esses exemplos, recorrendo-se a situações nas quais homens satisfazem
sua fome ou sua pulsão sexual quase sem mediações sociais (situações que podem muito bem encontrar-
se fora de um quadro excepcional, como as guerras etc.); pense-se, à guisa de ilustração, nos segmentos
da população urbana extremamente pauperizada que busca alimentos nos lixões ou na forte incidência
de violações sexuais (de que mulheres e crianças são as vítimas preferenciais). Mas, nesses casos, o que se
tem são expressões de regressão da sociabilidade que, como o comprova a vida nas sociedades capitalistas
contemporâneas, podem muito bem coe-xistir com altos níveis de desenvolvimento do ser social - nessas
sociedades, a barbarização da vida social se afere exatamente pela escala em que necessidades humanas,
sociais, são de tal modo degradadas que sua satisfação retrocede ao nível do natural, animal.

30
para um desenvolvimento específico da magia em face do trabalho vai se
desses sujeitos, desenvolvimento que, realizar, engendrando objetivações
pouco a pouco, configura a estrutura cada vez mais diferenciadas entre si
do ser social. e elas mesmas regidas por dinâmicas
Quanto mais se desenvolve o ser próprias: a partir da magia, ao cabo
social, tanto mais diversificadas sã( as de milhares de anos, pensamento
suas objetivações. Assim, no seu religioso, ciência, filosofia e arte
desenvolvimento, ele produz objeti- tomaram-se objetivações autonomi-
vações que, embora relacionadas ao zadas do processo de trabalho,
processo do trabalho, dele se afastam constituindo expressões do ser social
progressivamente - objetivações desenvolvido.
crescentemente ideais (isto é, no O avanço do processo de
mundo das idéias), de que são humanização pode ser compreen-
exemplo as formas iniciais do dido, pois, como a diferenciação e a
pensamento mágico, nas quais estão complexificação das objetivações do
contidos os vetores que, após uma ser social. O trabalho aparece como
evolução multimilenar, apresentar-se- a objetivação primária e ineliminável
ão diferenciados nas expressões do do ser social, a partir da qual surgem,
pensamento religioso, da reflexão através de mediações cada vez mais
científica e filosófica e da arte. complexas, as necessidades e as
A referência à magia é impor- possibilidades de novas objetivações.
tante, porque mostra o processo de O trabalho, porém, permanece como
humanização em sua dinâmica a objetivação primária do ser social
básica: de uma parte, a vinculação num sentido amplo: as outras formas
com o trabalho e, de outra, a sua de objetivação, que se estruturam no
autonomização em face dele. O ritual processo de humanização, supõem os
mágico e as suas representações traços fundamentais que estão
(pense-se nas pinturas rupestres) vinculados ao trabalho (vamos repeti-
conectavam-se às atividades que os los: a atividade teleologicamente
grupos sociais deveriam realizar para orientada, a tendência à universaliza-
assegurar sua reprodução físico- ção e a linguagem articulada) e só
material, especialmente a caça; neles podem existir na medida em que os
se combinavam, sincreticamente, os supõem; somente com eles tomam-
objetivos a serem alcançados (o se possíveis o pensamento religioso,
animal a ser morto), os conhecimen- a ciência, a filosofia e a arte.
tos acumulados (a figura do animal, É assim, ao cabo de um longuíssi-
os instrumentos para atingí-lo), a mo decurso histórico, que aqueles
convocação e a organização necessá- traços, metamorfoseados pelo enri-
rias à ação coletiva (a participa-ção quecimento e pela intensificação que
no ritual) e a invocação de forças lhes proporcionam as novas objetiva-
favoráveis à caça (o apelo ao ções, configuram a estrutura do ser
sobrenatural, tanto maior quanto social. Desenvolvido e articulado
menos os homens conheciam o meio como o conhecemos hoje, o ser social
ambiente e suas próprias capaci- constitui-se como um ser que, dentre
dades). É no curso do desenvolvi-
mento histórico que a autonornização

31
todos os tipos de ser, se particulariza liberdade: ser livre é poder escolher
porque é capaz de: entre elas; o ser social é um ser capaz
1. realizar atividades teleologica- de liberdade. Pensar, conhecer,
mente orientadas; proje-tar, objetivar-se, escolher - tudo
isso supõe a capacidade de se
2. objetivar-se material e idealmente;
desprender do dado imediato, das
3. comunicar-se e expressar-se pela singularidades dos fenômenos: supõe
linguagem articulada; a capacidade de universalizar. E,
4. tratar suas atividades e a si mesmo enfim, para reproduzir-se como tal,
de modo reflexivo, consciente e ampliar-se e enriquecer-se - o que não
autoconsciente; pode fazer através de mecanismos
5. escolher entre alternativas concretas; meramente genéticos ou biológicos -
6. universalizar-se; e , o ser social dispõe da capacidade
de sociabilização, isto é, ele é passível
7. sociabilizar-se.
de apropriação e desenvolvimento
O ser social é a síntese dessas por parte dos membros da sociedade
determinações estruturais. Só ele é no interior da própria sociedade,
capaz de agir teleologicamente, só ele através, fundamentalmente, dos
se propõe finalidades e antecipa processos de interação social,
metas - em suma, só ele dispõe da especialmente os educativos (formais
capacidade de projetar. Só ele cria e informais).
produtos e artefatos, representações O ser social, assim estruturado e
e símbolos que ganham objetividade caracterizado, não tem nenhuma
na medida em que concretizam proje- similaridade com o ser natural (inor-
tos e, assim, têm uma existência que gânico e/ou orgânico); ele só pode ser
transcende a(s) existência(s) singu- identificado como o ser do homem,
lar(es) do(s) seu(s) criador(es). Todas que só existe como homem em
essas atividades só são possíveis com socieda-de. E, assim compreendido,
o concurso da linguagem articulada, o ser social se revela não como uma
que comunica e expressa conheci- forma eterna a-temporal, a-histórica,
mentos e relações obtidas mediante mas como uma estrutura que resulta
a reflexão e a auto-reflexão operadas da auto-atividade dos homens e
pelo pensamento e constitutivas da permanece aberta a novas possibili-
consciência; a linguagem articulada dades – é uma estrutura histórica
tanto exterioriza o pensamento inconclusa, apta a reconfigurar-se e a
quanto o viabiliza -pela consciência, enriquecer-se no curso da história
o ser social toma a sua atividade e se presente e futura. Erguendo-se a partir
toma a si mesmo como objeto de do ponto de diferenciação com a
reflexão; através dela, o ser social natureza assinalado pelo surgimento
conhece a natureza e se conhece a do trabalho, o ser social constituiu-se
si mesmo. Na sua ação e na sua na história pela ação dos homens e
atuação, o ser social sempre encontra constituiu historicamente o ser dos
alternativas e sempre pode escolher homens - e só se pode pensar num
- e a escolha entre alternativas con- ponto terminal de seu desenvolvi-
cretas configura o exercício da mento se pensar numa paragem
terminal da história, hipótese que

32
contraria todos os conhecimentos O desenvolvimento do ser social
científicos e teóricos disponíveis4. implica o surgimento de uma racio-
Cabe, enfim, sublinhar que essa nalidade, de uma sensibilidade e de
caracterização do ser social só se uma atividade que, sobre a base
tornou possível quando ele pôde ser necessária do trabalho, criam objeti-
apreendido em seu mais alto nível de vações próprias. No ser social
desenvolvimento. Sabemos que seu desenvolvido, o trabalho é uma das
aparecimento deveu-se ao surgimento suas objetivações - e, como já
do trabalho, que sua evolução assinalamos, quanto mais rico o ser
marcou-se pela sua diferenciação e social, tanto mais diversificadas e
complexificação. Nunca será demais complexas são as suas objetivações.
repetir que o chamado fenômeno O trabalho, porém, não só permanece
humano é produto de um processo como a objetivação fun-dante e
histórico de larguíssimo curso e que necessária do ser social - permanece,
a visibilidade do ser social, como ainda, como o que se pode-ria
inteiramente diverso do ser natural, e chamar de modelo das objetivações
relativamente recente; cumpre do ser social, uma vez que todas elas
mesmo afirmar que tal visibilidade só supõem as características constitutivas
se tornou possível há pouco mais de do trabalho (a atividade teleologi-
dois séculos e meio, quando o modo camente orientada, a tendência à
de produção capitalista se consoli- universalização e a linguagem
dou como dominante no Ocidente e articulada).
operou a constituição do mercado Para denotar que o ser social é
mundial, que permitiu o contato entre mais que trabalho, para assinalar
praticamente todos os grupos que ele cria objetivações que
humanos. transcendem o universo do
trabalho, existe uma categoria
1.3. PRÁXIS, SER SOCIAL E SUBJETIVIDADE teórica mais abrangente: a cate-
O trabalho é constitutivo do ser goria de práxis. A práxis envolve o
social, mas o ser social não se reduz trabalho, que, na verdade, é o seu
ou esgota no trabalho. Quanto mais modelo - mas inclui muito mais que
se desenvolve o ser social, mais as ele: inclui todas as objetivações
suas objetivações transcendem o humanas. Por isso mesmo, no trato
espaço ligado diretamente ao traba- dessas obje-tivações, dois pontos
lho. No ser social desenvolvido, devem ser salientados:
verificamos a existência de esferas de
objetivação que se autonomizaram • deve-se distinguir entre formas de
das exigências imediatas do trabalho práxis voltadas para o controle e a
- a ciência, a filosofia, a arte etc. exploração da natureza e formas

4. Estamos nos referindo ao caráter infinito do desenvolvimento histórico. Outra questão é a da própria
existência da sociedade, da natureza, enfim do universo na forma em que os conhece-mos hoje - não há
nenhuma garantia da existência infinita dessas realidades. Da mesma forma que a vida surgiu casualmente
no universo que conhecemos, ela pode perfeitamente desaparecer.

33
voltadas para influir no comporta- histórico-sociais em que se realiza
mento e na ação dos homens. No (vale dizer: con-forme as estruturas
primeiro caso, que é o do trabalho, sociais em que se insere a atividade
o homem é o sujeito e a natureza é dos homens), a práxis pode produzir
o objeto; no segundo caso, trata-se objetivações que se apresentam aos
de relações de sujeito a sujeito, homens não como obras suas, como
daquelas formas de práxis em que sua criação, mas, ao contrário, como
o homem atua sobre si mesmo algo em que eles não se reconhecem,
(como na práxis educativa e na como algo que lhes é estranho e
práxis política); opressivo. Em determina-das condi-
• os produtos e obras resultantes da ções histórico-sociais, os produtos do
práxis podem objetivar-se material- trabalho e da imaginação humanos
mente e/ou idealmente: no caso do deixam de se mostrar como objetiva-
trabalho, sua objetivação é neces- ções que expressam a huma-nidade
sariamente algo material; mas há dos homens - aparecem mesmo como
objetivações (por exemplo, os algo que, escapando ao seu controle,
valores éticos) que se realizam sem passa a controlá-los como um poder
operar transformações numa que lhes é superior. Nessas condições,
estrutura material qualquer. as objetivações, ao invés de se
revelarem aos homens como a
A categoria de práxis permite expressão de suas forças sociais vitais,
apreender a riqueza do ser social impõem-se a eles como exteriores e
desenvolvido: verifica-se, na e pela transcendentes. Numa palavra: entre
práxis, como, para além das suas os homens e suas obras, a relação
objetivações primárias, constituídas real, que é a relação entre criador e
pelo trabalho, o ser social se projeta criatura, aparece invertida - a criatura
e se realiza nas objetivações materiais passa a dominar o criador.
e ideais da ciência, da filosofia, da Essa inversão caracteriza o
arte, construindo um mundo de fenômeno histórico da alienação. E
produtos, obras e valores - um mundo se trata mesmo de um fenômeno
social, humano enfim, em que a histórico porque, embora se configu-
espécie humana se converte inteira- rando como um fato de grande
mente em gênero humano. Na sua perdurabilidade, verdadeiramente
amplitude, a categoria de práxis trans-histórico, as condições sociais
revela o homem como ser criativo e em que ele se processa não são eter-
autoprodutivo: ser da práxis, o ho- nas nem naturais -são condições que
mem é produto e criação da sua auto- podem ser superadas no curso do
atividade, ele é o que (se) fez e (se) faz. desenvolvimento histórico. Basica-
Mas da práxis não resultam mente, a alienação é própria de socie-
somente produtos, obras e valores que dades onde têm vigência a divisão
permitem aos homens se reconhe- social do trabalho e a propriedade
cerem como autoprodutores e privada dos meios de produção
criativos. Conforme as condições fundamentais5, sociedades nas quais

5. O esclarecimento dessas duas categorias teóricas encontra-se, adiante, no Capítulo 2, item 2.2.

34
o produto da atividade do trabalhador construído pela ação e pela interação
não lhe pertence, nas quais o dos homens, concretizando-se em
trabalhador é expropriado - quer produtos e obras, valores e normas,
dizer, sociedades nas quais existem padrões e projetos sociais. Com-
formas determinadas de exploração preende-se, pois, que o ser social seja
do homem pelo homem. patrimônio comum de toda a
Com seus fundamentos na humanidade, de todos os homens,
organização econômico-social da não residindo em nenhum deles e,
sociedade, na exploração, a aliena- simultaneamente, existindo na
ção penetra o conjunto das relações totalidade de objetivações de que
sociais. Manifestando-se primaria- todos podem participar.
mente nas relações de trabalho (entre O ser social plasma o gênero
o trabalhador, seus instrumentos de humano (ou a genericidade humana),
trabalho e seus produtos), a alienação do qual todos os membros da socie-
marca as expressões materiais e ideais dade podem partilhar enquanto seres
de toda a sociedade - esta e seus singulares, como portadores e
membros movem-se numa cultura (re)criadores: portadores porque, por
alienada que envolve a todos e a tudo: intermédio dos mecanismos de
as objetiva-ções humanas, alienadas, sociabilização (interação social,
deixam de promover a humanização educação e auto-educação), incorpo-
do homem e passam a estimular ram as objetivações já realizadas;
regressões do ser social. (re)criadores porque, através de suas
Essa referência à alienação e suas próprias objetivações, atualizam e
bases efetivas (a divisão social do renovam o ser social. Quanto mais os
trabalho e a propriedade privada dos homens, em sua singularidade,
meios de produção fundamentais) é incorporam as objetiva-ções do ser
necessária para que se possa com- social, mais se humanizam, mais
preender que o processo de humani- desenvolvem em si o peso da
zação, iniciado com a atividade do sociabilidade em detrimento das
trabalho, não é algo linear e unívoco. “barreiras naturais”.
Páginas atrás, afirmamos que o ser À medida que o ser social se
social é o constitutivo da socieda-de desenvolve - ou seja: à medida que a
e de seus membros, que a sociedade sociedade mais se diferencia da
e os homens são os modos de ser do natureza e se enriquece com novas
ser social. Agora, cabe notar que objetivações -, mais complexa se
nenhum homem, tomado singular- toma a relação entre os homens
mente, expressa o conjunto de tomados singularmente e a generici-
possibilidades do ser social. dade humana. Para compreender essa
Em cada estágio do seu desen- crescente complexidade, devemos
volvimento, o ser social é o conjunto levar em conta pelo menos duas
de atributos e das possibilidades da ordens de razões.
sociedade, e esta é a totalidade das Em primeiro lugar, há que
relações nas quais os homens estão considerar o próprio enriquecimento
em interação. Assim, em cada estágio do ser social. Quanto mais as suas
do seu desenvolvi-mento, o ser social objetivações se diversificam e se
condensa o máximo de humanização tomam mais densas, a sua incorpora-

35
ção pelos homens singulares requer singulares que se humanizam e, à
mais em-penho, mais esforços e mais base da socialização que lhes torna
tempo. Ou seja: quanto mais rica em acessíveis as objetivações já
suas objetivações é uma sociedade, constituídas do ser social, constroem-
maiores são as exigências para a se como personalidades inconfundí-
sociabilização dos seus membros. veis. No seu processo de amadureci-
Em segundo lugar, dado que o mento, e conforme as condições
desenvolvimento histórico se efetivou sociais que lhe são oferecidas, cada
até hoje especialmente em socieda- homem vai se apropriando das
des marcadas pela alienação (isto é, objetivações existen-tes na sua
em sociedades fundadas na divisão sociedade; nessa apropriação reside
social do trabalho e na propriedade o processo de construção da sua
privada dos meios de produção subjetividade. A subjetividade de
fundamentais, com a exploração do cada homem não se elabora nem a
homem pelo homem), a possibilidade partir do nada, nem num quadro de
de incorporar as objetivações do ser isolamento: elabora-se a partir das
social sempre foi posta desigualmente objetivações existentes e no conjunto
para os homens singulares. Ou seja: de interações em que o ser singular
até hoje, o desenvolvimento do ser se insere. A riqueza subjetiva de cada
social jamais se expressou como o homem resulta da riqueza das
igual desenvolvimento da humaniza- objetivações de que ele pode se
ção de todos os homens; ao contrário: apropriar. E é a modalidade peculiar
até nossos dias, o preço do pela qual cada homem se apropria das
desenvolvimento do ser social tem objetivações sociais que responde pela
sido uma humanização extrema- configuração da sua personalidade.
mente desigual - ou, dito de outra Como se vê, qualquer contrapo-
maneira: até hoje, o processo de sição do tipo indivíduo x sociedade
humanização tem custado o sacrifício falseia o problema real da sociabiliza-
da maioria dos homens. Somente ção; de fato, o indivíduo social,
numa so-ciedade que supere a homem ou mulher, só pode constituir-
divisão social do trabalho e a se no quadro das mais densas e
propriedade privada dos meios de intensas relações sociais. E a marca
produção fundamentais pode-se de originalidade de cada indivíduo
pensar que todas as possibilidades do social (originalidade que deve nuclear
desenvolvimento do ser social se a sua personalidade) não implica a
tomem acessíveis a todos os homens. existência de desigualdades entre ele
Observe-se que estamos mencionan- e os outros. Na verdade, os homens
do homens singulares - ainda não são iguais: todos têm iguais possi-
tocamos na noção de individualidade bilidades humanas de se sociabilizar;
social. Com efeito, o homem não a igualdade opõe-se à desigualdade -
nasce indivíduo social: ao nascer, os e o que a originalidade introduz entre
homens são puras singularidades; os homens não é a desigualdade, é a
somente no seu processo formativo- diferença. E para que a diferença (que
social, no seu amadurecimento não se opõe à igualdade, mas à
humano, os homens podem tomar-se indiferença) se constitua, ou, seja:
indivíduos sociais - isto é, homens para que todos os homens possam

36
construir a sua personalidade, é personalidade. Só esse tipo de
preciso que as condições sociais para sociedade - “em que o livre desen-
que se sociabilizem sejam iguais para volvimento de cada um é a condição
todos. Em resumo: só uma sociedade para o livre desenvolvimento de
onde todos os homens disponham das todos” (Marx’:’Engels, 1998: 31) -
mesmas condições de sociabilização pode garantir tanto a superação do
(uma sociedade sem exploração e individualismo 6 quanto a oportu-
sem alienação) pode oferecer a todos nidade de todos os homens e
e a cada um as condições para que mulheres singulares se construírem
desenvolvam diferencialmente a sua como indivíduos sociais.

6. Individualismo não significa a defesa dos valores do indivíduo socialmente constituído; antes, é uma
ideologia que justifica a priorização e o favorecimento de interesses singulares con-trapostos ao
desenvolvimento da genericidade humana.

37
III - ELEMENTOS SOBRE A TEORIA DA ORGANIZAÇÃO NO CAMPO
LEMENTOS

Clodomir Santos de Morais

1. ORIGENS DA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

de milhares de anos, observar o que


1.1. A divisão social do trabalho ocorria com as sementes e os restos
A Organização do Trabalho tem de alimentos jogados fora. Isso
origens bastante remotas e seu marco remonta a etapas primitivas da
mais longínquo se situa na Divisão sociedade, cuja economia se baseava
Natural do Trabalho. A sociedade na coleta de frutos, na pesca e na
humana, em seus primórdios, não caça. O homem não semeava mas
conheceu mais que a Divisão Natural colhia os frutos silvestres, não criava
do Trabalho. Ou seja, primitivamente, animais, mas os caçava. Tudo o que
quando o homem vivia em tribos, o recolhia ou que caçava nos bosques
trabalho se dividia da seguinte forma: pertencia a todos os membros da tribo
o trabalho mais pesado (a guerra, a e era repartido entre todos. Este
caça de animais de grande porte, etc.) regime se denominava Comunal
era tarefa dos homens adultos Primitivo.
enquanto o trabalho mais leve cabia Através de uma longa e perma-
à mulher, aos anciãos e às crianças1. nente observação do que acontecia
A mulher permanecia mais tem- com as sementes dos frutos jogados
po no lar cuidando dos filhos e por fora, a mulher passou a semear; e
este motivo a mulher pode, ao longo desse modo, aparece a agricultura. A

1 «A primeira divisão do trabalho da história da sociedade humana não possui a ainda o caráter de divisão
profissional do trabalho. É a chamada divisão natural do trabalho que se realiza entre os homens e em
parte também, entre pessoas de diferentes idades. As mulheres começam a se ocuparem do trabalho
agrícola e do jardim. Os homens, ao contrário, se encarregam da caça ou da pesca. Engels estudou o
desenvolvimento da divisão profissional do trabalho, dentro da qual, distinguiu três etapas: A primeira
grande divisão social do trabalho é a diferenciação das tribos de pastores, que teve lugar na época da
comunidade pré-histórica. Conduziu ao intercâmbio regular de produtos da economia pastoril por outros,
especialmente produtos agrícolas. Nesta época, amiúde, se usava o gado como dinheiro. A segunda grande
divisão social do trabalho se acha relacionada com os inícios da produção e utilização do ferro. Nessa
época se separa o trabalho artesanal (a produção industrial) da agricultura. A produção de ferramentas e
armas de ferro, a transformação de outros metais (ouro, prata) e em parte também a fabricação de tecidos
se convertem em particulares. Em relação a isso, se desenvolvem as cidades e se produz uma separação
entre a cidade e o campo. A terceira grande divisão do trabalho consiste na diferenciação do comércio.
Surge a profissão de comerciantes, que atua como mediador no intercâmbio das mercadorias produzidas
pelas diferentes profissões. O comerciante é sobretudo, mediador entre o artesão e a agricultura, entre a
cidade e o campo e também entre as cidades individuais. Aparece o dinheiro metálico. A profissão de
comerciante é a primeira grande profissão que não se dedica à produção». (LANGE, Oskar) «La Economia
en Ias Sociedades Modernas». Editorial Grijalbo, S/A. México, 1976. Pág. 253.

38
mulher, ao longo de milhares de anos, mulheres sustentavam as tribos nas
desenvolveu a primitiva técnica duras épocas de escassez, gerando-
agrícola. Ela sabia semear e de que se com isso o matriarcado, marco
forma deveria fazê-lo. social em que as mulheres decidiam
Simultaneamente, a mulher foi a sorte de todos e mandavam em
domesticando a galinha, o porco, a todos2.
vaca, o cavalo, o cachorro e outros À medida em que foram
animais que encontravam nas sobras desenvolvendo a agricultura e a
de alimentação do homem, mais criação, as tribos se especializaram:
facilidades de obter comida sem umas em agricultura e outras em
arriscar sua vida com as feras dos pecuária. Já não viviam da incerteza
bosques. da caça e da coleta de frutos. E desde
Nas épocas em que escasseavam esta longínqua época que o homem
os frutos e os animais de caça, a tribo conhece a Divisão Social do Trabalho
se apoiava na incipiente e primitiva na qual uns se dedicam à caça: outros
agricultura e criação que a mulher à coleta de frutos, outros a agricultura
havia desenvolvido. e outros à pecuária3.
Por este motivo é que, segundo
alguns autores, em sociedades
primitivas, a economia esteve
baseada na técnica e no trabalho
desenvolvido pela mulher. As

2 “Por causa da maternidade, a mulher ocupou uma posição particular entre os membros da tribo. É à
mulher que a humanidade deve o descobrimento da agricultura, descobrimento extremamente importante
para seu desenvolvimento econômico. E este descobrimento foi o que, por um longo período, determinou
o papel da mulher na sociedade e na economia, colocando-a no cume das tribos que praticavam a
agricultura”.
“A divisão do trabalho das tribos que praticavam ao mesmo tempo a caça e a agricultura, trouxe junto os
seguintes fatos: As mulheres, responsáveis pela produção, pela organização dos locais de habitação,
desenvolvem mais suas capacidades de raciocínio e de observação, enquanto que os homens, em
decorrência de suas atividades de caça e de guerra, desenvolveram bem mais sua musculatura, sua destreza
corporal e sua força. Naquela fase, da evolução, a mulher era intelectualmente superior ao homem, e no
seio da coletividade, ocupava certamente, a posição dominante, ou seja, a do matriarcado”.
“KOLLONTAI, Alexandra. “Sobre Ia Liberación de Ia Mujer” Editorial Fontamara, Barcelona, Espanha,
1979. pp. 51,53. Por outro lado, foi tão acentuada a influência da mulher que os antigos gregos, por
exemplo, tinham como deusa da agricultura uma mulher, Ceres (donde a origem do nome cereais) e em
algumas culturas do arquipélago indonésio, o vocábulo com que se denomina a mulher “pasi-gadong”
significa pasi (meios de obter) e gadong (alimentos)”. Entre algumas culturas pré-colombiana da América
Central Xilónem (zil = bulbo, ot = fruto e nem = alimento) era a deusa do milho, formosa princesa que se
sacrificou para que seu povo não perecesse de fome.
3 Apesar que as primeiras manifestações de divisão social do trabalho aparecem nos últimos períodos do
modo de Produção Comunal Primitivo ou nos começos do Modo de Produção Escravista ou do polêmico
Modo de Produção Asiático, alguns remanescentes da antiga Divisão Natural do Trabalho, no entanto
continuam ainda aflorando inclusive em países considerados capitalistas.
É fácil comprová-los, por exemplo, nas fronteiras agrícolas das áreas de bosques do vale centro-americano
do Caribe e de toda o vale amazônico. De fato, ali sobrevivem milhares de indígenas que se dedicam à
coleta de frutos, da caça e da pesca, enquanto a mulher . sedentária, dedica seu tempo á família, à criação
de animais e aves domésticas, à agricultura 4incipiente de umas poucas lavouras de milho, mandioca e
outros tubérculos .

39
1.2- A mercadoria çoando seu modo de trabalhar e
Desse modo, à medida em que gerando excedentes de produção.
algumas tribos se especializaram na Durante milhares de anos foi se
agricultura e outras na pecuária ou ampliando a Divisão Social do
pastoreio, foi aparecendo a proprie- Trabalho e os homens se especiali-
dade privada na forma de tribos4. E zaram em diferentes atividades. Na
em razão de que cada tribo era agricultura: uns foram se especiali-
proprietária de tudo o que produzia, zando em grãos, outros em hortaliças.
a obtenção de alguns produtos Na pecuária: uns se especializavam
requeria o intercâmbio com as demais na criação de ovinos, outros na
tribos. Ou seja, a tribo que produzia criação de cavalos, de bois, etc. No
grãos e necessitava de couros ou de artesanato: uns se especializaram em
carne, trocava seus produtos agrícolas olarias (produção de jarras, panelas,
por produtos de pecuária das tribos etc.) enquanto outros se dedicavam a
que viviam do pastoreio. Eis aqui produtos de couro, dividindo-se em
como aparece a Mercadoria. sapateiros, seleiro, etc. Outros ainda
A mercadoria é todo artigo que se dedicavam a trabalhar a madeira:
se produz para a troca, para a venda, carpinteiros,marceneiros, constru-
objetivando adquirir outro artigo que tores de casas, etc. As comunidades
não se produz. O artigo que alguém destes produtores eram auto-
produz para usar ou comer não é suficientes, ou seja, produziam tudo
mercadoria. A mercadoria é somente o que necessitavam sem ter que trocar
o artigo que se produz para o produtos com outras comunidades.
intercâmbio. Algo semelhante acontecia aos
Para que a mercadoria surgisse produtores dentro de sua comuni-
foi necessário, que existisse primeira- dade: cada qual produzia o que fosse
mente, a divisão social do trabalho e preciso para atender as suas
a propriedade privada. Sem a necessidades fundamentais. A este
propriedade privada não pode existir período de produção para auto-
a mercadoria, pois é necessário que consumo, se denomina economia
a tribo ou alguém diga: esta coisa me natural.
pertence e assim possa dispor dela
para trocá-la por outra coisa que 1.3. A economia mercantil simples
pertença a outra tribo ou a outro Finalmente, ao longo de milhares
individuo. de anos, a constante divisão social do
À medida em que foi se trabalho foi criado campos de espe-
ampliando a divisão social do cializados, até chegar ao ponto em
trabalho em cujo marco, umas tribos que o intercâmbio de produtos se
ou uns indivíduos se especializaram torna uma necessidade imperiosa: os
em alguns artigos ou em um tipo de homens e suas comunidades
atividade, os homens foram aperfei- produzem para a venda, ou seja, para

4 A propriedade privada aparece inicialmente sob o caráter de “propriedade tribal” como o denomina Karl
KAUTSKY em “Etica y Concepcion Materialista de la Historia” (Cuadernos de Pasado y Presente. Córdoba,
Argentina, 1975 p. 98).

40
o mercado, generalizando deste 1.4. Valor da mercadoria
modo a economia mercantil. Toda mercadoria tem valor e seu
A economia mercantil em cujo valor é determinado pelo trabalho que
marco os homens trocam seus está incorporado nela mesma. Desse
produtos por outros artigos se chama modo a fonte do valor da mercadoria
economia mercantil simples. é o trabalho5.
Na economia mercantil simples Trabalho é todo o esforço que
os homens inicialmente tiveram alguém emprega para produzir bens
dificuldades para intercambiar seus materiais. Há dois tipos de trabalho:
produtos. O produtor buscava trocar trabalho concreto e trabalho abstrato.
a jarra que havia produzido por um Trabalho concreto é aquele esforço
saco de trigo que ele precisava. Outro que o produtos emprega para
produtor oferecia um carneiro por produzir um artigo qualquer. O
dois machados que o ferreiro esforço que um alfaiate emprega para
produzia. Assim que nessa época, a produzir uma roupa ou o esforço que
economia mercantil simples se um camponês emprega para produzir
desenvolvia lentamente em forma de um saco de milho, se chama trabalho
troca de mercadorias. Mais tarde o concreto.
homem escolheu uma mercadoria Nos esforços que vários campo-
que servisse de medida de valor de neses, com diferentes meios de produ-
todas as demais mercadorias visando ção e habilidades, empregam na
com isso facilitar o intercâmbio. produção de milho, assim como nos
Muitos povos primitivos esforços que vários alfaiates com
escolheram o gado, os grãos e outros diferentes meios de produção e
escolheram semente de cacau como habilidades empregam para produzir
um equivalente geral para roupas se define o Trabalho Abstrato.
intercambiar mercadorias. O valor de um produto é medido
Finalmente com a evolução da pela quantidade de trabalho que
técnica para produzir metais o alguém emprega para produzi-lo.
homem criou a moeda como Pode acontecer, que um camponês
equivalente geral de intercâmbio de gaste cem dias de trabalho para
mercadorias. E a partir dessa época produzir 20 sacos de milho enquanto
tudo se pode trocar por moedas, posto outro camponês utilizando juntas de
que, com a moeda se pode comprar bois, arados, etc., produza a mesma
outras mercadorias. quantidade em 50 dias.

5 Aqui se simplifica o máximo possível (mesmo quando se tenha que deixar de lado o rigor da linguagem e
dos conceitos científicos) a fim de que o cidadão comum, o operário ou o camponês possa entender um
pouco do VALOR da mercadoria. O método mais simplificado ainda para explicar a TEORIA DO VALOR
foi conseguido por FERNANDO CORREIA DA SILVA em seu livro “25 CONTOS DE ECONOMIA” (Calado
Trindade, Malho’ Editorial, LISBOA, 1978). Os que quiserem se aprofundar no tema deverá ler P. NIKITIN
em sua obra “Las Teorias del Valor” (Ediciones de Cultura Popular, México, 1975) ou ler também as
“Lecciones de Economia Política” de ANTONIO PESENTI (Ediciones de Cultura Popular, México, 1974).

41
É possível que um marceneiro de uma mercadoria se mede pelo
gaste três meses de trabalho tempo durante o qual se investiu em
fabricando uma cadeira com um tal trabalho.
desenho complicado e que outro Assim que, a partir do momento
marceneiro com mais habilidades e em que aparece a mercadoria, o valor
melhores instrumentos de trabalho dela depende da quantidade de
fabrique este tipo de cadeira em trabalho social para produzi-la em
apenas três dias. função de uma quantidade de tempo
No momento de vender as necessário. Daí que, com a
cadeiras, o primeiro marceneiro pede mercadoria ou com a economia
R$ 2700,00 por sua complicada mercantil, o tempo passa a ser
cadeira para cuja produção gastou 90 considerado. Aquele que produz
dias do trabalho. Ninguém quer artigos que só têm o valor de uso, não
comprá-la por ser muito cara.No tem pressa, não considera o tempo.
entanto, este marceneiro acredita que Ao contrário, aquele que produz
este é o valor da cadeira, já que artigos para o mercado, o faz em
durante os 90 dias dedicados à sua função do tempo.
produção ele gastou uma média de
R$30,00 diários de comida, vestuário, 1.5 A organização do trabalho
etc. Para conseguir produzir uma
Se de repente os clientes ou mercadoria ou uma quantidade de
compradores dizem que o máximo mercadorias em menor quantidade de
que podem dar por tal cadeira é R$ tempo, o produtor não apenas busca
150,00 porque este é o preço de uma ter instrumentos de trabalho
cadeira, o marceneiro reage furioso: aperfeiçoados como também busca
- A vender esta cadeira por uns racionalizar a forma de produção, ou
miseráveis R$ 150,00, eu prefiro ficar seja, organizar o trabalho em função
com ela ou presenteá-la a um amigo do tempo que ele dispõe para
que a use! Desse modo se constata produzir mercadorias. Daí que toda
que a cadeira só tem valor de uso. atividade produtiva está relacionada
Não tem valor de troca, ou seja, não com unidades de tempo, as quais são
é uma mercadoria. determinadas conforme o grau de
O que cria o valor de uso da desenvolvimento das forças produ-
mercadoria é o trabalho concreto e tivas ou de seus instrumentos de
por outro lado, o que cria seu valor trabalho.
de troca é o trabalho abstrato. Entre os camponeses, por
Desta maneira é que o valor de exemplo, as unidades de tempo são
troca provém do trabalho social dos indefinidas em geral são longas: um
produtores, materializados em “momentinho”, um “momento”, meio
mercadorias. Uma vez que o valor da dia, uma semana, a próxima lua nova,
mercadoria é criado pelo trabalho, a a colheita, etc. Já entre os operários
magnitude do valor de qualquer de uma fábrica o tempo se mede em
mercadoria é resultado da quantidade segundos, minutos, uma hora, etc.
de trabalho contido em uma deter- Com o desenvolvimento da economia
minada mercadoria. A quantidade de mercantil o tempo também passa a ter
trabalho que alguém põe na produção valor. Os ingleses dizem: ‘’tempo é

42
dinheiro”. Ninguém quer perder Nesta sentido, à medida em que
tempo porque perder tempo significa se organiza o trabalho nas oficinas, a
perder dinheiro, e o produtor, à técnica do produção evolui e se
medida em que se especializa em inventam máquinas para produzir em
uma atividade, menor é a quantidade menor quantidade de tempo e maior
de tempo que gasta para produzi-la. quantidade de mercadorias. O
Quanto mais barato lhe sai uma aparecimento da máquina hidráulica
mercadoria, maior facilidade terá de (movida por água) e a máquina a
vendê-la no mercado. Por isso a maior vapor gerou a Revolução Industrial
preocupação que tem o produtor é a que começou na Inglaterra há pouco
de produzir a maior quantidade de mais de duzentos anos6.
mercadoria na menor quantidade de Com o advento da revolução
tempo possível. industrial, a produção se complicou
A Divisão Social do Trabalho mais ainda. Antes da revolução
implica na especialização dos industrial a produção cabia aos
produtores e na medida em que vão artesãos de diferentes ofícios. Um
se especializando também vão alfaiate, por exemplo, começava e
aperfeiçoando seus instrumentos de terminava seu produto (um paletó ou
trabalho e as formas de produção. Um uma calça). Ou seja, o artesão
dia os produtores chegam à conclusão desenvolvia sozinho todo o processo
de que para obter uma maior produtivo para fabricar uma roupa.
produção se faz necessário reunir os Na revolução industrial, o
artesãos em uma oficina. artesão que vendia sua oficina, por
Daí que, às vezes, pela simples não poder concorrer com a fábrica ou
diferenciação da velocidade ou por dívidas, terminava metendo-se
do ritmo com que as pessoas e numa fábrica. Na fábrica já não ia
seus veículos se movimentam produzir sozinho todo o artigo a
nas ruas, pode-se distinguir um roupa, esta será feita por muitos
núcleo populacional de maior operários.
desenvolvimento da economia A partir deste momento, aquele
mercantil capitalista de um outro artesão que se tornou operário com a
no qual predomina a economia única tarefa de cortar bolsos ou pregar
mercantil simples e de um botões, já não realizaria todo o
terceiro núcleo de produtores processo produtivo. Cabe-lhe intervir,
situados na economia natural. A apenas em uma parte do processo
velocidade cresce em razão produtivo, nada mais. De modo que,
direta ao desenvolvimento da desde este momento histórico, a
produção e da circulação divisão social do trabalho se ampliou
mercantil. mais: os produtores foram divididos

6 Veja-se: FOHLEN, CLAUDE - “Nascimiento de una Civilizacion Industrial” em “HISTORIA GENERAL DEL
TRABAJO” Ediciones Grijalbo S.A. Barcelona, España, 1965, e MAURICE DOBB “Estudios sobre EI
Desarrollo del Capitalismo”. Siglo Veintiuno Editores, Buenos Aires, 1975, apêndice referente ao “prefácio
da Revolução Industrial”.

43
não apenas em ocupações, em ramo 1.6-Economia mercantil capitalista
de produtos, como também se Foi visto que a economia natural
dividiram de modo que se fossem se baseia na produção para o
uma pequena parte de um artigo ou consumo. Também foi visto que a
da mercadoria. Uma roupa passa pela economia mercantil simples se baseia
mão de dezenas ou centenas de no intercâmbio de mercadorias. Além
homens de uma fábrica. Cada um faz disso, se viu que o trabalho concreto
uma pequena parte da roupa, da é aquele que estabelece apenas valor
mesma forma que em uma grande de uso. A medida em que avançam
plantação de bananeiras. Ali, cada as condições sociais médias da
trabalhador agrega uma parte de produção, ou seja, o nível técnico e
trabalho na produção de cachos de o grau de habilidade dos produtores
bananas; uns irrigam, outros em seu conjunto, mais prevalece o
semeiam, alguns capinam, outros trabalho abstrato e em conseqüência
podam, uns pulverizam, outros se arruínam os produtores que não
transportam, etc. Em uma plantação podem vender mercadorias nas quais
de bananas; assim como numa se investiu muito trabalho concreto.
fábrica, pode existir centenas de Daí o empobrecimento dos produto-
divisões sociais do trabalho7. A divisão res sem meios para melhorar seus
social do trabalho, quando estabelece cultivos ou sua produção artesanal.
a divisão de atividades dentro de um Os produtores que vão se
só produto, uma só peça, quer seja arruinando ou empobrecendo,
banana, uma roupa ou um sapato, se terminam vendendo seus meios de
chama divisão social do processo produção e instrumentos de trabalho
produtivo ou divisão técnica do ou mesmo os perdendo em razão de
trabalho. dívidas contraídas ao agiota. Final-

(7) “Em lugar da roca, do tear manual e do martelo do ferreiro, apareceram a máquina de fiar, o tear mecânico
e a máquina a vapor; no lugar da oficina individual, a fábrica que impõe a colaboração de centenas e
milhares de pessoas. Do mesmo modo que os meios de produção, transformaram a própria produção,
que deixou de ser uma série de ações individuais para ser uma sucessão de atos sociais e desse modo
também, os produtos deixaram de ser produtos de indivíduos para serem produtos sociais. Os fios, os
tecidos e as mercadorias metalúrgicas que agora saíam da fábrica eram produtos comuns de muitos
operários, por, cujas mãos tinham que passar sucessivamente antes de estar terminados. Nenhum indivíduo
pode dizer: isto eu fiz, é meu produto” .
“Porém sempre que a forma básica da produção é a divisão espontânea do trabalho no seio da sociedade,
esta divisão imprime aos produtos a forma de mercadoria, cujo recíproco intercâmbio, cuja compra e
cuja venda possibilitam aos produtores individuais a satisfação de suas diversas necessidades. Assim
aconteceu na Idade Média. O camponês; por exemplo, vendia produtos agrícolas ao artesão e comprava
em troca, produtos artesanais. O novo modo de produção penetrou nessa sociedade de produtores
individuais, de produtores de mercadorias. E dentro dessa divisão do trabalho espontâneo, sem plano, ela
colocou a divisão planejada do trabalho, tal como estava organizada nas diversas fábricas. Os produtos
de ambas procedências se vendiam a preços aproximadamente equivalentes. Porém a organização
planejada era muito mais potente que a divisão espontânea do trabalho; as fábricas, trabalhando
socialmente, obtinham seus produtos mais baratos que os pequenos produtores isolados”. (ENGELS,
FRIEDERICH) - Anti-Dhuring, Editorial Grijalbo S.A. México, 1964, pg. 266 .

44
mente, como não podem produzir trabalho (artesãos ou camponeses
mercadorias, vendem os meios de arruinados) e compradores da força
produção: a oficina, o pedaço de de trabalho (latifundiários, industriais)
terra. Porém, esta não é a última a economia mercantil apresenta outro
mercadoria da qual o agricultor caráter e passa a ser denominada
empobrecido dispõe. Sua última economia mercantil capitalista, ou
mercadoria mesmo é a força de seja, a economia em que prevalece a
trabalho, que vai oferecer ao latifun- compra e venda da força de trabalho
diário ou ao dono da fábrica, em troca também se torna mercadoria e o
de um salário como qual busca comer resultado do trabalho social, a produ-
e atender a outras necessidades. ção, é apropriada de forma individual
A partir de momentos em que pelo capitalista proprietário dos
aparecem vendedores de força de meios de produção.

45
IV - O DESENVOLVIMENT
DESENVOLVIMENTO DA COOPERAÇÃO1
VIMENTO

Em toda história da humanidade, vam em torno do Feudo. O Feudo era


as sociedades se organizaram de um determinado território que
diferentes maneiras para atender suas pertencia à um Senhor de Terras.
necessidades de sobrevivência. E esta Neste período, o trabalhador do
organização das sociedades era campo era chamado de servo. Ele
determinada, entre outras coisas, pela tinha a tarefa de produzir no campo
forma como as pessoas realizavam o e de tudo o que servo produzia, uma
trabalho e quem ficava com o produto parte era destinada ao seu Senhor e a
deste trabalho. outras instituições, como a família real
Antes do capitalismo, se um e a Igreja. As famílias de um feudo
camponês precisava de móveis, era a cooperavam entre si, dividindo o
sua própria família ou comunidade trabalho no campo, em geral entre
que fabricava. Se precisassem de homens e mulheres, e de acordo com
roupas, a comunidade ou a própria a força física de cada um e uma. Tinha
família do camponês tosquiava, fiava, uma área de produção para o senhor,
tecia e costurava. A indústria se fazia que era a maior parte, e um pequeno
dentro de casa e o propósito da terreno para produzir para si; além
produção era simplesmente o de disso, pagavam vários impostos/
satisfazer as necessidades domésticas. tributos ao senhor, pela terra onde
O comércio, nesta época, era plantavam para si, pelo uso das ferra-
pequeno. E muitos fatores contri- mentas, pelo uso dos moinhos, etc.
buíam para isso: as estradas eram O servo pertencia ao feudo, ele
ruins e inseguras; os impostos muito não podia sair livremente pelo mundo
altos para quem fosse de uma aldeia e devia prestar contas ao senhor
vender alguma coisa para outra; além feudal que detinha o poder naquela
disso, cada aldeia ou comunidade terra. A terra não pertencia ao servo,
tinha sua própria moeda2. mas o servo pertencia a terra. Mesmo
Na Europa, este período foi que o feudo trocasse de dono, o novo
chamado de feudalismo3, porque a dono não poderia tirar os servos da
economia e a sociedade se organiza- terra, e o antigo dono não poderia

1
Texto elaborado por Miguel Enrique Stedile Janaina Stronzake e Adalberto Martins.
2
Sistema familiar: os membros de uma família produzem artigos para seu consumo, e não para a venda. O
trabalho não se fazia com o objetivo de atender ao mercado. Princípio da Idade Média.
3
Feudalismo foi um modo de produção existente entre os séculos VI e XV, na Europa. Era caracterizado pelas
relações de servidão entre o servo e o senhor feudal e de vassalagem entre senhor feudal com a realeza.

46
levar os servos consigo. Os servos Existiam as corporações de
estavam presos à terra e aos tributos ofício, que congregavam vários
que pagavam ao Senhor do Feudo. artesãos do mesmo ramo, e lhes
Com as guerras entre os davam certa proteção; tinham as
europeus católicos e os mulçumanos, funções parecidas com o que serão
que viviam principalmente do Oriente os sindicatos no futuro.
Médio e no norte da África, as Cada oficina que compunha
chamadas Cruzadas, o comércio uma corporação tinha seu dono, o
ganhou um novo fôlego. Rotas mestre. Ele coordenava os demais
comerciais que antes eram contro- trabalhadores, comprava, vendia, e
ladas pelos árabes foram tomadas também trabalhava na produção.
pelos europeus, trazendo novos Tinha os aprendizes, que eram
produtos, criando feiras e centros admitidos pelo mestre para aprender
comerciais, desenvolvendo as o ofício, tendo eles a intenção de um
cidades e utilizando o dinheiro como dia ser também mestres de ofício. E,
referência nas transações comerciais. esporadicamente, o mestre contratava
Essa nova situação no comér- os serviços de um jornaleiro, alguém
cio, aliada a novas técnicas agrícolas que não dispunha de capital para ser
que permitiram maior produção de mestre, e tinha algum conhecimento
alimentos, levaram a um aumento do ofício para ajudar quando havia
considerável da população, e muitos sobrecarga de trabalho; era chamado
sairam do campo para viver como jornaleiro porque trabalhava por
artesãos na cidades. Estes artesãos jornada, isto é, por dia ou por um
trabalhavam com suas próprias tempo previamente estipulado4.
ferramentas e em seus próprios espa- Mas a roda da história continua-
ços, mas foram se organizando em va girando cada vez mais rápido. O
corporações de ofícios, como uma comércio seguia crescendo, assim
espécie de “sindicato”, que controla- como as cidades. O artesão e as
va o mercado, dizia quem poderia ou corporações conseguiam dar conta de
não trabalhar como artesão, etc. produzir para uma cidade. Normal-
Esta é uma mudança importante: mente, o freguês vinha à sua casa e
antes, as mercadorias não eram feitas fazia uma encomenda. Agora, o
para serem comercializadas, mas para comércio exige mercadorias para
atender as necessidades da casa, da outras cidades e até mesmo para
família, da comunidade aldeã. Agora, outros países. E aqui, muda a figura
elas são produzidas para um mercado do comerciante.
externo, fabricadas por artesãos O comerciante, de simples
profissionais, donos das matérias- transferidor de mercadorias de um
primas e das ferramentas, que vendem lugar para outro, abastecendo os
estas mercadorias acabadas. mercados e trocando os excedentes,

4
Sistema de Corporações: produção realizada por mestres artesãos independentes, com dois ou três
empregados, para o mercado, pequeno e estável. Os trabalhadores eram donos tanto da matéria-prima
que utilizavam como das ferramentas com que trabalhavam. Não vendiam o trabalho, mas o produto do
trabalho. Durante toda a Idade Média.

47
passa a ser um intermediário entre E assim, este comerciante
produtores. capitalista começa a acumular algum
O intermediário entrega a capital. Antes, o artesão fabricava
matéria-prima ao artesão, e compra uma mercadoria, que trocava por
o produto acabado. Assim, a função dinheiro para adquirir outra
do artesão passa a ser apenas produzir mercadoria. Já o comerciante
mercadorias acabadas depois de capitalista, tem um dinheiro, que
receber a matéria-prima. Este interme- troca por mercadoria, para trocar por
diário foi se apropriando de parte do mais dinheiro do que tinha anterior-
trabalho do mestre, permitindo a este mente. Assim a origem da riqueza vai
permanecer mais tempo em sua se modificando. Se antes o
oficina, sem que saísse para comprar comerciante ganhava dinheiro
matérias-primas ou vender sua comprando um produto por
produção. determinado preço e revendendo-o
Com isso, os artesãos das por um preço maior; agora o
corporações deixam de ter contato comerciante capitalista vai ganhar seu
direto com o mercado. Antes era o dinheiro através da extração de mais
freguês, diretamente, que lhe fazia as valia (trabalho excedente não pago
encomendas, ou ele levava pessoal- aos tralhadores).
mente sua produção às feiras. Agora Possuir o capital nesta nova
é o comerciante quem faz isso, e lógica de organizar o trabalho e o
somente este comerciante terá comércio era muito importante. Era
contato com o consumidor. O artesão, preciso muito dinheiro para contratar
agora, só controla o processo do muitos trabalhadores; era preciso ter
trabalho e passa a depender do muito dinheiro para organizar a
comerciante para ter matéria-prima e distribuição da matéria-prima e sua
para vender seus produtos. venda como produto acabado. Era
Este método em que cada esse capitalista comerciante, o
trabalhador produz em sua casa, homem do dinheiro, quem coor-
empregado por um comerciante, é denava o sistema doméstico.
chamado de “sistema doméstico”5. Ao mesmo tempo, com a
Estes comerciantes são os chegada dos europeus na América, os
primeiros capitalistas. No caso da capitalistas puderam dar um salto
fabricação de roupas, por exemplo: ainda maior. Os cofres da Europa
o comerciante era o dono do tecido, foram ficando abarrotados do ouro
era ele quem vendia no mercado e roubado das Américas e do lucro da
quem ficava com os lucros. O mestre venda de escravos da África. Além de
artesão e os jornaleiros eram apenas fornecerem matéria-prima, estes
empregados assalariados, mesmo que continentes foram se tornando
ainda fossem donos das ferramentas. também novos mercados para os

5
Sistema doméstico: produção realizada em casa para um mercado em crescimento, pelo mestre artesão
com ajudantes, tal como no sistema de corporaçõcs. Com uma diferença importante: os mestres já não
eram independentes; tinham ainda a propriedade dos instrumentos de trabalho, mas dependiam, para a
matéria-prima, de um empreendedor que surgira entre eles e o consumidor. Passaram a ser simplesmente
tarefeiros assalariados. Do século XVI ao XVIII.

48
produtos europeus. Estes primeiros Porém, a manufatura vai avançar
capitalistas precisavam produzir mais rapidamente para outras formas de
e mais barato, para quebrar seus cooperação mais complexas, impul-
concorrentes. sionada pela necessidade de lucro do
Além disso, o sistema doméstico capitalista, aquele que detêm os
também enfrentava resistência dos meios de produção: as ferramentas,
artesãos. Era comum que os trabalha- o edifício, a matéria-prima, e o capital
dores desviassem parte da produção, para viabilizar tudo isso. Agora não
falsificassem os produtos, usassem mais um comerciante capitalista, mas
outras matérias-primas de baixa sim, um capitalista que se especia-
qualidade no lugar daquela que o lizou em fabricar manufaturas, dei-
capitalista trazia, etc. xando o comércio para outro
Portanto, o capitalista precisava capitalista que irá se especializar
tanto produzir mais rápido e com mais nesta atividade.
eficiência, quanto controlar de forma Os trabalhadores vão se
mais dura e rígida os trabalhadores, especializando em determinadas
para que trabalhassem mais horas e tarefas na manufatura, conforme sua
mais rápido. Outra necessidade do habilidade, sua força, sua aptidão e
capitalista era de controlar as inova- as tarefas que cada trabalhador realiza
ções tecnológicas, para que elas só vão ser cada vez mais parciais. Cada
pudessem ser aplicadas para acu- um passa a fazer uma parte do
mular capital. Surge assim uma produto. Surge o trabalhador parcial
característica específica do capita- – aquele que se especializa mas ainda
lismo: a manufatura. realiza ou detém o domínio sobre os
Na manufatura, o trabalhado é elementos técnicos que constituem
organizado, primeiro, na forma de sua atividade.
Cooperação Simples: todos fazem a Ao invés de um único artesão
mesma tarefa, só que juntos de outros fazer uma cadeira inteira, vários
trabalhadores, num mesmo local, artesãos trabalharão na mesma
num mesmo edifício. Por enquanto, cadeira. Um trabalhador faz as
a única diferença entre a manufatura pernas, outro faz o encosto, outro só
e a oficina onde os artesãos trabalha- junta tudo, outro prega, outro pinta,
vam antes é a quantidade de e assim por diante. Logo esta unidade
trabalhadores, num mesmo local, de produção, composto por diversos
trabalhando para o mesmo capitalista. trabalhos parcelados, mas conexos, só
A manufatura teve uma dupla gerará um produto final com a soma
origem. Por um lado a combinação destes trabalhos parciais. É assim que
de ofícios independentes, diversos, surge o trabalhador coletivo, pois
que perdem sua independência e se cada trabalhador se especializa em
tornam especializados sob o uma tarefa e o produto final só será
comando de um mesmo capitalista. possível com a soma de todas estas
Por outro a cooperação de artífices tarefas interdependentes.
de determinado ofício, decompondo E essa é também uma novidade
o ofício em suas diferentes operações do capitalismo: a divisão técnica do
particulares. trabalho.

49
As ferramentas, que até então As relações sociais capitalistas
eram de propriedade do trabalhador, tornaram possível o desenvolvimento
também passam por mudanças. de uma determinada tecnologia, que
Antes, uma mesma ferramenta servia supunha a priori a expropriação dos
para várias funções. Agora, elas saberes daqueles que participam do
passam ser adaptadas para algumas processo de trabalho.
funções específicas de acordo com a Temos assim, neste estágio da
tarefa que o trabalhador realiza na Manufatura, uma determinada
manufatura. As ferramentas são combinação de relações técnicas e
simplificadas, aperfeiçoadas e sociais: O capitalista é ao mesmo
diferenciadas e passam a ser proprie- tempo proprietário e o que controla
dade do dono da fábrica. (pessoalmente ou por um represen-
A existência deste trabalho tante seu) o processo de produção.
coletivo, no qual cada trabalhador Por outro lado temos o trabalhador
desenvolve tarefas altamente especia- que não é proprietário dos meios de
lizadas, faz necessária a existência de produção, mas ainda controla o
uma direção que harmonize as manejo dos meios de produção com
diferentes atividades individuais. Esta os quais trabalha (o trabalho ainda
função de controle, vigilância e depende da habilidade do trabalha-
direção do processo de trabalho, que dor, não estando totalmente subord-
nasce como uma das tantas tarefas do inado ao capital, pois as ferramentas
trabalhador coletivo, separa-se dele ainda estão nas mãos dos operários).
e se transforma em uma função que o Em resumo, na manufatura,
domina e o controla. Surge assim o vamos encontrar:
supervisor. Um trabalhador que não
• Uma quantidade maior de traba-
atua diretamente no processo de
lhadores – assalariados – reunidos
trabalho mas que o fiscaliza e
num único local e subordinados ao
ideologicamente não se reconhece
capitalista.
como trabalhador, mas como um
substituto do patrão lá dentro do local • Uma combinação de diferentes
de trabalho. trabalhos para a produção de uma
Por isto, não foi somente o mercadoria final.
progresso tecnológico que deter- • O trabalhador que só conhece uma
minou a reunião dos trabalhadores parte da produção, não domina
nas fábricas. Este sistema existiu, pois todo o processo produtivo.
possibilitou a disciplina e a hierarquia • A hierarquia entre trabalhadores
na produção e a supressão do contro- especializados e não-especializados.
le técnico do processo de trabalho • O Capitalista controlando o trabalho,
pelos trabalhadores. As próprias através da disciplina dos
inovações tecnológicas iam à direção trabalhadores.
de garantir a ordem, disciplina e
controle da produção por parte do O avanço da divisão técnica do
capitalista. Em fim, significou o trabalho vai permitir que as
domínio do capitalista sobre o manufaturas, em pouco tempo, se
processo de trabalho. tornem fábricas. Como vimos, as
fábricas não surgem do avanço

50
tecnológico, mas da necessidade do produção e precisa vender sua força
capitalista aumentar seu controle de trabalho para o capitalista para
sobre os trabalhadores, controlando sobreviver.
também o processo técnico. Além disso, antes era o
Como cada trabalhador realiza trabalhador que sabia como fazer
uma tarefa simples e específica com uma cadeira, um vestido ou um
uma ferramenta também específica, sapato. Agora, ele só conhece uma
este processo vai permitir que o parte do processo de produção. Ele é
capitalista desenvolva máquinas para capaz de colar uma sola, mas não de
realizar estas tarefas simples. fabricar um sapato inteiro.
Vejamos: não é possível criar uma Na fábrica, o capitalista é ao
máquina que faça um sapato inteiro mesmo tempo o proprietário e o que
sozinha. Mas é possível criar uma controla e dirige o processo de
máquina que corte a sola, outra que produção. O operário, encontra-se
costure a borda, uma máquina para totalmente separado dos meios de
lixar, outra para polir, etc. produção: não é seu proprietário e
Além disso, a necessidade não os controla, por isto se encontra
permanente do Capitalista em ter totalmente submetido ao capital,
cada vez mais lucros encontra limites social e tecnicamente.
na capacidade física do trabalhador Com o desenvolvimento da
em produzir incessantemente. Assim, ciência e da tecnologia, as máquinas
o sistema de fábricas irá se diferenciar foram sendo aperfeiçoadas, chegando
da manufatura, porque introduz a ao estágio da Grande Indústria. A
máquina no processo de produção6. Grande Industria capitalista
Com a máquina, a produção diferencia-se da Manufatura pela
tona-se ainda mais eficiente. Mas ela forma que adquiriu nela o meio de
também separar definitivamente o trabalho – a introdução da Máquina
trabalhador dos meios de produção. Ferramenta no processo de produção.
Agora, os meios de trabalho já não Estas máquinas integram uma unidade
dependem da aptidão ou das técnica dos aparelhos e ferramentas
características do trabalhador para com os quais trabalhava o operário
realizar uma tarefa. manual (passam a compor “ferra-
Antes, o trabalhador, quando era mentas mecânicas”).
artesão, era dono das ferramentas, da A Máquina Ferramenta ao
matéria-prima e controlava seu tempo colocar em marcha os meios de
e sua produção. E sua sobrevivência trabalho já não depende da aptidão
dependia de sua produção. Agora, o pessoal do operário. Agora a
trabalhador está completamente organização da produção passa a ser
separado do seu meio de trabalho: ele completamente independente das
não possui nenhum dos meios de características da força humana de

6
Sistema fabril: produção para um mercado cada vez maior e oscilante, realizada fora de casa, nos edifícios
do empregador e sob rigorosa supervisão. Os trabalhadores perderam completamente sua independência.
Não possuem a matéria-prima, como ocorria no sistema de corporações, nem os instrumentos, tal como
no sistema doméstico. A habilidade deixou de ser tão importante como antes, devido ao maior uso da
máquina. O capital tornou-se mais necessário do que nunca. Do século XVIII até hoje.

51
trabalho. Estabelece-se uma completa Quanto ao trabalho, sob o
separação entre o trabalhador e seu regime da produção capitalista, torna-
meio de trabalho. Por outro lado, se trabalho assalariado e sob estas
estabelece-se uma unidade entre os condições converte-se cada vez mais
Meio de Produção e o Objeto de em trabalho alienado, onde o produto
trabalho. do trabalho de cada trabalhador lhe
Assim o processo de produ- é estranho e não lhe pertence; a
ção já não pode ser definido como a natureza se distância. Logo o ser
reunião de um certo número de humano aliena-se da sua própria
operários, mas como um conjunto de relação com a natureza.
máquinas dispostas a receber Este trabalhador trabalha para
qualquer operário. Isso reduz ainda o outro, contrafeito. Não gera prazer.
mais os saberes dos trabalhadores, É uma atividade imposta que gera
pois agora este saber está concentrado sofrimento, aflição. Logo o trabalho
na máquina. deixa de ser a ação própria da vida
O trabalho coletivo passa a para converter-se num meio de vida.
ser aqui, uma necessidade técnica e O tempo de trabalho é vendido ao
se converte em trabalho socializado. capitalista, e esse tempo já não é mais
Torna-se cada vez mais impossível vivido, já não é passado nem
determinar qual o papel que desfrutado; o tempo passa a ser gasto,
desempenha o trabalhador individual e tempo vira dinheiro. Alienando-se
na produção do produto final. da atividade que o humaniza, o ser
O fato de que a maioria dos humano se aliena de si próprio.
trabalhadores de uma fábrica não Alienando-se de si próprio como ser
precisava ter conhecimentos para humano, se tornando coisa (sou força
efetuar o trabalho produtivo, levou a de trabalho que a vendo para viver) o
um queda geral nos salários, e a um indivíduo afasta-se do vínculo que lhe
aumento no lucro do capitalista. une à espécie humana. O trabalho ao
Além disso, aprofundou a invés de tornar-se um elo do indivíduo
separação entre poucos trabalhadores com a humanidade, transforma-se
qualificados, que passam a ocupar num meio individual de garantir a
cargos de gerência e de controle, e própria sobrevivência. Assim me
muitos trabalhadores desqualificados, alieno da espécie humana.
que apenas sabem lidar com uma das Portanto, o desafio para a classe
máquinas da linha de produção. trabalhadora, é como gerar no
Portanto, com o capitalismo, a processo revolucionário e no
cooperação torna-se uma necessida- socialismo, a organização da produ-
de técnica do processo produtivo, ção que elimine a propriedade
independentemente da vontade do privada, a exploração dos trabalha-
trabalhador ou do capitalista. O dores, eliminando a alienação do
capitalista para manter-se enquanto trabalho, tornado-o realmente
tal, passa a requerer mais e mais das emancipador dos seres humanos.
inovações tecnológicas, afirmando a
extração da mais valia relativa, como
a base da exploração tipicamente
capitalista.

52
Bibliografia:

_ DECCA, Edgar Salvadori de. O Nascimento das Fábricas. Coleção Tudo é


História. São Paulo: Brasiliense, 1993.
_ HARNECKER, Marta. Os conceitos elementais do materialismo histórico
_ HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 19.ª ed. Rio de Janeiro:
Zahar editores, 1983.
_ IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo:
Expressão Popular, 2007.
_ MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1. Volume 1. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

53
V - A COOPERAÇÃO AGRÍCOLA

1. O QUE PODEMOS ENTENDER POR


COORPERAÇÃO

processo produtivo socialmente


1.1. O que é cooperação
dividido, pois, o trabalhador faz
Cooperação é as pessoas se
apenas uma parte do processo
ajudarem para fazerem uma
produtivo (no frigorífico ele apenas
determinada tarefa. Em outras
faz a lingüiça, por exemplo).
palavras, é o jeito de organizar a
produção através da divisão social do
1.2. O que é cooperação agrícola
trabalho.
É a introdução na agricultura
Antigamente, cada pessoa fazia
dessa divisão social do trabalho, de
tudo sozinho. Mas, com o
forma cooperada. A agricultura não
desenvolvimento da sociedade, a
conseguirá se desenvolver se cada
humanidade descobriu a necessidade
assentado ou pequeno agricultor
de se ajudar. Começaram ajudando
familiar continuar fazendo tudo
as pessoas com problemas de saúde,
sozinho ou com a sua família. Fazen-
trocando dias de serviço (na colheita,
do desde o preparo do solo até a
por exemplo), fazendo mutirões (ou
colheita. E cada um plantando um
puxirões), trabalhando juntos, e assim
pouco de tudo e criando tudo o que
foram dividindo o trabalho entre
for “bicho”.
muitas pessoas. Isto se chama
Então, a Cooperação Agrícola, é
cooperação.
o jeito de juntar ou somar os esforços
Através da divisão social do
de cada assentado (agricultor
trabalho, cada trabalhador se especia-
individual ou familiar), para fazer
liza em uma linha de produção ou
coisas em conjunto: comprar ferra-
tarefa. Assim começaram a fazer as
mentas, comprar e utilizar máquinas
coisas cada vez melhor, aumentando
(trilhadeira, trator, ceifadeira, etc),
a produção, diminuindo custos,
comprar matrizes animais, produzir
diminuindo o tempo de trabalho.
uma lavoura em conjunto. E, até
Com o avanço da cooperação e
chegar ao ponto de ter a terra, capital,
a implantação das unidades agroin-
trabalho em conjunto. Surge assim o
dustriais e Industriais, em alguns
agricultor familiar cooperado.
assentamentos, a divisão social do
Para comercializar os produtos
trabalho está ficando cada vez mais
também fica mais fácil. Ao juntar as
complexa. Está surgindo a divisão
pequenas compras individuais e as
técnica do trabalho que exige um
pequenas vendas individuais dos

54
produtos, O assentado garante maior 1.4. A cooperação é um processo
poder de barganha de preços e dá Ao iniciar uma experiência de
menos despesas com transporte, cooperação os assentados envolvidos
material, mão-de-obra, etc. devem ter clareza de que na medida
Os pequenos agricultores, em que acontecem determinadas
também, estão começando a se juntar condições objetivas a cooperação
para resistirem no campo e não serem precisa mudar deforma, precisa
engolidos pelos grandes. A coope- avançar. Sem este salto de qualidade
ração agrícola é a saída que estão a forma entra em crise, estagna e
encontrando para: aumentarem a tende a quebrar. A cooperação
produtividade do trabalho: aumenta- precisa ser compreendida como um
rem o volume da produção; não terem processo.
que deixar o campo ou virarem mão-
de-obra explorada pelos latifundiá- 1.5. Algumas razões para
rios; para debaterem os seus defendermos a cooperação agrícola
problemas e lutarem com mais força
contra o neoliberalismo. 1.5.1. Razões econômicas
A cooperação agrícola ajuda a
1.3. A concepção de cooperação do avançarmos na área econômica:
MST a) Aumentar o capital constante
Os assentados devem buscar Todo o produto que vai para o
uma cooperação que traga desenvol- mercado (mercadoria) tem o seu
vimento econômico e social desen- valor composto por uma parte de
volvendo valores humanistas e capital constante e outra parte de
socialistas. A cooperação que busca- capital variável.
mos deve estar vinculada a um
projeto estratégico, que vise à • O capital constante são as
mudança da sociedade. Para isto deve máquinas, os insumos indus-
organizar os trabalhadores, preparar triais (adubos, ferramentas, etc),
e liberar quadros, ser massiva, de luta a energia, etc. quê são frutos de
e de resistência ao capitalismo. trabalho acumulado.
Para nós a cooperação não é • O capital variável é o trabalho
vista apenas pelos objetivos sócio- vivo incorporado no processo
políticos, organizativos e econômicos produtivo para produzir uma
que ela proporciona. Ela é, para nós, nova mercadoria, isto é, a mão-
uma ferramenta de luta, na medica de-obra.
em que ela contribui com: a Só aumentando o trabalho, o
organização dos assentados em aumento de produção é muito
núcleos de base, a liberação de pequeno e muito lento. Para que se
militantes, a liberação de pessoas para possa aumentar o volume da
a luta econômica e, principalmente, produção numa mesma área de
para a luta política. terra e num mesmo tempo, é
necessário que se aumente o uso de
máquinas e insumos, que é o capital
constante (trabalho já acumulado).

55
O aumento do valor da produção desde que tenha viabilidade, para
somente ocorre quando se aumenta parte das atividades.
a parte do capital constante no valor c) Aumentar a divisão do trabalho e a
final de uma mercadoria. Os especialização
capitalistas aumentam o capital A Cooperação Agrícola é a única
constante através da exploração dos forma de ir introduzindo e aumen-
seus empregados que permite um tando a divisão do trabalho na
lucro elevado para aumento de agricultura. E esta, por sua vez,
máquinas, etc. Os assentados e permite e exige uma maior especia-
pequenos agricultores precisam lização dos trabalhadores em cada
desenvolver a cooperação agrícola. linha de produção, em cada tarefa,
Ou seja, juntando as suas pequenas aumentando o rendimento do
sobras, entre muitos assentados, ou trabalho e o resultado da produção.
reorganizando o capital constante d) Racionalizar a produção de acordo
que já possuem é que conseguem com os recursos naturais Solo (terra)
aumentar o capital constante e, e clima são dois fatores importan-
conseqüentemente, aumentar a tíssimos e que influem na produtivi-
produção. dade e na produção agrícola.
Uma outra forma é conseguir Em uma propriedade familiar
que o governo repasse a mais valia individual em que o assentado tem
social acumulada pelo Estado que produzir um pouco de tudo,
(através do PROCERA, por exem- para poder sobreviver, é muito
plo) para que possam aumentar o difícil aproveitar corretamente as
capital constante. potencialidades do solo e do clima.
b) Aumentar a produtividade do Já em uma área em que se aplica
trabalho a cooperação agrícola, pode se
Os assentados aumentam a aproveitar ao máximo as potenciali-
produtividade quando conseguem dades naturais e produzir para o
produzir cada vez mais, com a mercado, apenas os produtos
mesma, ou melhor, qualidade em próprios para o tipo de solo e clima.
menos tempo. Através da intercooperação
Para se conseguir aumentar econômica, todos terão os produtos
sempre mais a produtividade do necessários para a sobrevivência e
trabalho na agricultura é preciso também para o mercado.
implementar, através da coopera- e) Fazer uma adequação tecnológica
ção agrícola, pelo menos, a divisão A cooperação facilita uma maior
social do trabalho. Então, cada racionalização das máquinas e
trabalhador fará menos atividades equipamentos agrícolas e a introdu-
ou atuará em apenas uma linha de ção de tecnologias apropria-das ao
produção, mas fará com mais habi- trabalho cooperado e ao meio
lidade (mais rápido) e com mais ambiente.
qualidade.
Outro fator que influiu no f) Conseguir melhores preços para os
aumento da produtividade do produtos
trabalho é a introdução de máqui- No mercado capitalista sempre
nas (dias de trabalho acumulados), se consegue os melhores preços

56
quando se negocia quantidades os que crescerem mais e se desen-
maiores e produtos de melhor volverem rapidamente terão mais
qualidade, na época certa. A dias de serviço em forma de capital,
cooperação aumenta a chance de que poderão ser aplicados em
armazenamento, classificação, maquinarias para a agroindústria.
padronização dos produtos e com Na agroindústria, como em
isto resultados financeiros mais qualquer indústria, se consegue
rentáveis. produzir independente do clima.
g) Desenvolver a agroindústria e a Temos assentamentos que ficam
indústria parados mais de cem dias por ano por
Quando os assentados passam a causa do tempo. A agroindústria,
fazer muitas coisas em conjunto, também, ajuda a racionalizar e
sobra cada vez mais força de planejar melhor a produção da
trabalho, porque a uso da mão-de- lavoura e de animais.
obra foi racionalizada. Para utilizar
a mão-de-obra disponível e 1.5.2. Razões sociais
aumentar o valor dos produtos é A Cooperação Agrícola,
possível instalar unidades agro- também, deve estar vinculada ao bem
industriais ou industriais, de estar das pessoas assentadas. Ela
pequeno ou médio porte, para promove condições necessárias para
transformar o produto da lavoura e que os trabalhadores possam melho-
da criação. rar a sua qualidade de vida e ter
Darmos este passo é importante acesso a avanços e benefícios sociais.
porque: a) Urbanização das moradias
· A tendência na Cidade é o povo A cooperação Agrícola em uma
consumir cada vez mais alimentos determinada área de produção ou
em conservas, resfriados, embuti- assentamento permite que as casas
dos, enlatados em função do pouco dos assentados sejam organizadas
tempo que estas pessoas dispõem mais próximas, em agrovilas.
para cozinharem. Vivendo na É um erro vincular a existência
cidade é impossível fornecer a da agrovila a forma de trabalho e de
todos, produtos frescos. Por isso vai produção. Nela podem morar assen-
se tronando cada vez mais neces- tados que trabalham individualmente
sário industrializar os alimentos. O e assentados que estão em alguma
agricultor deixa de produzir forma de cooperação.
alimentos para produzir matéria- Isso permite quebrar o isola-
prima para a indústria processadora; mento social das famílias e cria laços
· Para produzir para tanta gente de integração comunitária (se recria
que não vive na agricultura, será a estrutura social). Também permite
preciso utilizar sistemas industriais a realização de inúmeras atividades
que consigam um melhor aproveita- comunitárias e culturais, de forma
mento da comida; permanente, o que é impossível se as
· Vai sobrar muitos dias de pessoas estão distantes.
serviço e não se terá onde aplicar
mais capital na agricultura. Então,

57
b) Infra-estrutura básica terrupção do processo produtivo
O fato das casas estarem quando adoece. E o desgaste físico do
próximas e com certa urbanização, agricultor é muito grande porque
viabiliza economicamente a desenvolve muitas atividades braçais.
possibilidade de se realizarem Com o desenvolvimento da
investimentos sociais, por parte do cooperação e a organização do
Estado ou da própria comunidade, em assentamento, criam-se condições
obras de infra-estrutura que represen- para que se resolvam estes problemas
tam melhoria da qualidade de vida, relacionados com a saúde do
como: energia elétrica, esgotos trabalhador do campo. Primeiro
sanitários, água encanada e potável, porque cria melhores possibilidades
telefonia, etc. de atendimento social da comunida-
c) Educação de, sem que interrompa a produção
A ausência de escolas e as porque um trabalhador adoece.
dificuldades enfrentadas pelos filhos Segundo porque a mecanização e a
dos assentados e acampados divisão do trabalho diminuem o
estudarem levou o MST a criar o Setor esforço físico individual.
de Educação. O fato de morarem f) igualdade de direitos entre homens
próximos contribui para a luta pela e mulheres
conquista da escola, tanto de 1 º como A mulher agricultora é uma das
de 2º grau, e de uma educação mais oprimidas da sociedade. Em
especifica para os “sem-terra”. Isso especial as que vivem no regime de
traz inclusive menor sacrifício para as propriedade familiar individual. Tem
crianças que não precisarão mais dupla ou até tripla jornada de trabalho
fazer caminhadas penosas para e são totalmente subordinadas ao
chegar até a escola. Permite também, “chefe” econômico da família. Não
uma maior participação e controle da desfrutam de nenhum direito social.
escola pela comunidade. Na Cooperação agrícola criam-
A cooperação também agiliza a se condições materiais para que a
necessidade de organizarmos a mulher participe da divisão do
creche e a pré-escola (para as crianças trabalho, evite as duplas e triplas
até 6 anos de idade). jornadas e tenha menos afazeres
d) Transporte coletivo domésticos. Também ela conquista
A concentração das casas e dos uma certa autonomia financeira.
trabalhadores em locais mais centrais g) maiores possibilidades de lazer
permite a utilização de transportes O lazer e o passeio (visita aos
coletivos para outros locais. Tanto de familiares) costumam estar ausente da
pessoas como de mercadorias. E a um vida dos assentados. Com a coopera-
custo bem mais baixo do que o ção, é possível, mesmo com precarie-
transporte para cada proprietário dade, garantir o direito ao lazer e ao
individual. passeio dos assentados, sem que o
e) Saúde processo produtivo se interrompa:
Este é um dos problemas mais haverá outros trabalhadores para
sérios do assentado desorganizado. substituí-los enquanto estiverem fora.
Falta de atendimento adequado e in-

58
1.5.3. Razões políticas só organizar a produção. Se faz
a) Ampliar a resistência ao capitalismo necessário que os assentados
Os pequenos agricultores estão participem em lutas solidárias (de
sendo tragados pela política outras categorias).
agrícola do governo e, ao mesmo e) Fazer articulação política
tempo, expulsos do campo e Precisamos articular alianças
excluídos da sociedade. para as lutas políticas, e para o
Para o MST a cooperação é uma desenvolvimento econômico .
ferramenta que permite a resistência f) Acumular forças para a trans-
no campo dos assentados E dos formação social
pequenos agricultores. Neste Precisamos contribuir nas lutas
sentido se faz necessário massificar do MST e do conjunto da classe
a cooperação para ampliarmos a trabalhadora. Só assim consegui-
resistência. remos ir acumulando as forças
b) Construir a retaguarda do MST necessárias para a transformação da
Precisamos organizar todos os sociedade.
assentamentos, constituindo os
núcleos de base em vista da 2. PRINCÍPIOS DA COOPERAÇÃO AGRÍCOLA
organicidade do MST e para 2.1. A necessidade comanda a
consolidar o Programa Agrário. Só vontade..
assim os assentamentos e as A razão central para organizar e
cooperativas serão a retaguarda, ou manter a cooperação, mais do que a
melhor, a base de sustentação e de voluntariedade dos assentados, é a
avanço do MST. necessidade de cooperar para melhor
Precisamos criar condições sobreviver. A necessidade, portanto,
materiais para a luta, dispondo ou é quem comanda a vontade.
proporcionando infra-estrutura para Se os assentados não tivessem
o MST: telefone, carro, etc. E, sentindo a necessidade de coopera-
inclusive contribuir com recursos rem entre si para melhorar a sua
financeiros. qualidade de vida, seja para adquirir
c) Proporcionar militantes e dirigentes máquinas em conjunto, comercia-
Precisamos formar militantes lizar, produzir sementes, seja para o
para o MST e para a sociedade, para que for, teriam ficado trabalhando
fazerem a luta política, econômica sozinhos em seus lotes individuais ou
e social. apenas com a sua família.
Precisamos mapear os militantes A forma de cooperação proposta
e dirigentes que já temos para em uma determinada realidade só
melhor atender as demandas do prosperará se o assentado tornar-se
MST. dependente dela. Ele se manterá
vinculado a esta forma se ele perceber
d) Desenvolver a consciência política que sem esta não conseguirá
dos assentados desenvolver-se econômica e social-
Precisamos investir na formação mente. Não adianta organizar a
político-ideológica, especialmente cooperação em torno de atividades
da nossa base (os assentados), e não

59
que os assentados individualmente 2.3. Neutralidade religiosa, racial e
conseguem desenvolver. partidária
2.2. Gestão democrática Como nossas cooperativas
Todos os associados em uma regem não apenas a vida econômica
empresa associativa, legal ou não, das famílias, mas também a vida
devem ter os mesmos direitos e social e cultural é preciso saber em
deveres. Entre eles está o direito/dever que manter a neutralidade e em que
de participar das decisões, do não se deve ser neutro.
planejamento, do trabalho, a Não devemos confundir neutra-
distribuição das sobras. Enfim, em lidade partidária com neutralidade
todos os momentos da vida da política. Na política jamais devemos
empresa associativa. ter neutralidade. Fazemos política,
Cada experiência de cooperação embora se tenha que buscar um
deve definir os espaços (instâncias) e método de atuação para avançarmos
as formas que permitam organizada- nesta área de ação.
mente a participação de todos. Quem Embora todos tenham direito a
tem a função de dirigir, o faz em nome escolher o seu partido político, a sua
de todos. Quem é coordenador de um religião e ter opções culturais dife-
setor de trabalho ou de um núcleo de rentes, deve-se evitar que a ignorância
base deve saber coordenar de forma prejudique tanto a vida individual
participativa para que todos se sintam quanto a coletiva. Neste sentido a
bem e aprendam com isso. formação política-ideológica tem um
Tudo que envolve a vida da papel de destaque.
cooperativa deve estar vinculado à Nenhum desses aspectos, porém
vida de cada sócio e à democracia devem ser empecilhos para se
interna. Se tudo ficar sob a responsa- organizar uma experiência de
bilidade da diretoria, a cooperativa cooperação e fazê-la funcionar.
terá limites de crescimento e o Importante é entender que a socieda-
descontentamento estará sempre pre- de se divide em classes sociais onde
sente. É preciso distribuir as responsa- uma domina a outra. O partido, a
bilidades para que haja participação cultura, a raça, o sexo, são elementos
integral de todos os sócios. que compõe a vida das pessoas e é
Por outro lado, a democracia preciso saber tolerar, aperfeiçoar e dar
significa também participação continuidade ao que está correto e
econômica tanto no pagamento das eliminar de forma radical tudo o que
quotas partes como na distribuição está errado e atrapalha a vida da
das sobras. Significa responsabilidade organização.
pessoal e disciplina, respeito às 2.4. Cumprir um papel formativo
decisões do coletivo, prestação de Sabendo que a Cooperação foi
contas com comprovantes e com desenvolvida no capitalismo, e no
transparência aos sócios. Punição aos socialismo sofre um aperfeiçoamento
que erram e prejudicam o andamento ao eliminar a exploração do capital
do conjunto da empresa. sobre o trabalho, sua referência
fundamental e sua base de organiza-
ção é a economia.

60
Lênin acrescentou outro elemento à pode manifestar-se politicamente
cooperação que é o aspecto político, como prega um dos princípios
procurando através das cooperativas cooperativistas.
e da cooperação como um todo, As cooperativas, como os
realizar um dos grandes objetivos do sindicatos no capitalismo, são
socialismo a revolução cultural no instrumentos de luta dos direitos
campo. Visava com isso, elevar o econômicos, sociais e políticos dos
nível de conhecimento dos campo- trabalhadores. Isto porque, por mais
neses e garantir a defesa do estado que uma cooperativa funcione e
socialista que se iniciava. Mas desenvolva. nunca terá facilidades
acrescentava que “mesmo nos países por parte do Estado e dos monopólios
capitalistas (como na França e Itália tanto em termos de créditos, preços
na época onde se desenvolviam lutas mínimos, escoamento da produção,
anti-monopolistas), a cooperação etc. Por tanto a luta é de resistência à
podia desempenhar um papel exploração do capital e das políticas
importante como forma de governamentais sobre os trabalhadores.
organização de classe dos campone- Por outro lado a cooperação
ses como instrumento de luta contra dentro do capitalismo deve ter um
monopólios na modernização das sentido estratégico, sem cair em
economias camponesas, no cresci- desvios. Mas fazer com que os
mento dos rendimentos, na elevação trabalhadores elevem seu nível de
de sua capacidade de concorrência”. consciência a partir do desenvol
Neste sentido a cooperação deve vimento de experiências coletivas.
ser vista como forma de organizar os Portanto a cooperação, no capitalis
assentados para a luta. E então a mo além de cumprir este papel de
cooperação é um “instrumento de luta organizar os trabalhadores em torno
e cumpre um papel educativo entre da produção cumpre um papel
os camponeses”. fundamentalmente educativo.
Acrescentou Lênin que, “a
cooperação pode torna-se um fato 3. P RINCÍPIOS DE IMPLANTAÇÃO DA
político importante, contribuindo COOPERAÇÃO
para a unificação dos camponeses na O MST definiu alguns princípios
sua luta pela reforma agrária radical, para implantarmos a cooperação nos
pela completa transformação do assentamentos. Vejamos:
regime existente. Incutindo nos 3. 1. Massificar a cooperação
camponeses o hábito de direção Temos que incentivar e organizar
coletiva na economia”. a cooperação agrícola nos assenta-
Há que reconhecer então, que as mentos. O SCA deve conscientizar
cooperativas tanto podem servir para todos os assentados para ingressarem
fortalecer politicamente o capitalis- na cooperação agrícola, indepen-
mo, como também podem servir dente da forma de cooperação, para
como instrumento de luta contra o resistir aos impactos das políticas dos
capitalismo. Mas, as cooperativas não governos capitalistas. Massificar a
são um partido para ter que definir cooperação entre os assentados
estratégias revolucionárias, nem representa também, a garantia da
tampouco uma irmandade que não

61
organização de base desses trabalha- maiores serão as possibilidades de
dores, dentro de uma organização de desenvolvimento.
massa. Amplia-se, portanto, a 3.3. Das formas mais simples para as
organicidade do MST. mais complexas
3.2. O importante não é a forma, mas A cooperação pode começar
o ato de cooperar com as formas mais simples (mutirão,
Estamos convencidos de que só troca de serviços, de insumos, etc) e
é possível resistir na terra através da ir complexificando aos poucos, sem
cooperação. O “jeca tatu” isolado em pressa, até chegar à forma mais
seu lote individual dificilmente desenvolvida de cooperação, que
conseguirá sobreviver. A necessidade para nós é a Cooperativa de Produção
tem demonstrado que precisamos Agropecuária (CPA) totalmente
cooperar para ir resolvendo as nossas coletiva. Neste sentido o desenvolvi-
dificuldades e ir superando os nossos mento da cooperação deve respeitar
problemas. as condições objetivas da realidade
Para o MST o que importa é que (proximidade do mercado, qualidade
todos os assentados participem de da terra, infra-estrutura, etc) e as
uma experiência de cooperação, condições subjetivas (vontade e
rompendo assim com o isolamento. entendimento dos assentados). Por
Pois a cooperação tem como objetivo isto este processo é lento, ainda mais
principal o desenvolvimento da quando se trata do ciclo agrícola onde
produção. Ela visa contribuir com o o tempo de trabalho é muito diferente
avanço da organização da produção do tempo de produção. Mas isto não
em vista da melhoria da qualidade de deve nos levar a trilhar caminhos mais
vida das famílias assentadas. Uns fáceis ou cômodos. Devemos nos
podem apenas trocar dias de serviço. esforçar para constituir formas cada
Outros podem comercializar em vez mais superiores de organização
conjunto. Outros podem ter uma social da produção, onde de fato os
associação de máquinas. Outros fatores terra, trabalho e capital sejam
podem ter alguma linha de produção gestados coletivamente.
em comum. Outros podem estar em Cabe lembrar que a prática vem
grupos coletivos. Outros podem estar nos mostrando que as CPAs, apesar
ligados a uma cooperativa. Outros de não massificar a cooperação, nos
estão em uma cooperativa totalmente permite as melhores condições para
coletiva. Não interessa se a produção o avanço da consciência política,
é individual ou coletiva, pois a forma para a liberação dos militantes, para
da cooperação é secundária. O a disponibilidade de recursos para a
fundamental é o ato de cooperar. luta. Por isto, as CPAs continuam
Nota-se, portanto, que o nome sendo uma forma estratégica que
dado a forma pretendida de coope- deve ser perseguida por todos com
ração não importa. O fundamental é tenacidade.
estar engajado em algum ato de 3.4. O que determina o avanço da
cooperação, sabendo que quanto cooperação são as condições
mais fatores de produção (terra, objetivas e não a vontade dos
trabalho, capital) forem cooperados, assentados

62
Nenhuma experiência de representantes para a coordenação do
organização deve ser decidida apenas assentamento e conselho da
pela vontade ou pelo sonho dos cooperativa.
assentados. No período de acampa- Os núcleos devem ser
mento, quando se discute a constituídos a partir de experiências
cooperação, os sem-terra sonham organizativas existentes (grupos de
com as formas mais avançadas de famílias, grupos de PROCERA, etc.).
cooperação. Portanto, não existe uma receita para
A forma de cooperação a ser a constituição dos mesmos e muito
adotada depende, mais que da menos, todos os núcleos serão iguais.
vontade dos assentados das condições A prática tem nos mostrado de que os
objetivas inerente a cada uma das núcleos se organizam a partir de
formas. Deve-se ter o cuidado de não diferentes necessidades, sejam elas:
dar um salto no escuro. econômicas, de prestação de serviços,
de discussão política.
4. PRINCÍPIOS ORGANIZATIVOS 4.2. A direção deve ser exercida
4.1. Organização da base social via coletivamente
núcleos de base Faz parte dos princípios de
Todos os assentamentos, inde- direção do MST a direção coletiva,
pendente da forma de cooperação, tendo todos os participantes da
devem ir se organizando em núcleos instância igual direito e poder.
de base. Eles são um espaço para Em se tratando de cooperativas
discutir os problemas do assenta- centrais (CCAs) devemos observar que
mento, a organização da produção, a direção política do SCA é superior
a luta dos trabalhadores e o avanço a direção legal da CCA. Para nós o
da cooperação. que vale é a direção política; a
Nas cooperativas não podem direção legal é “próforma”. A direção
existir nenhum associado que esteja política deverá ser eleita ou referen-
desvinculado de algum núcleo. Ao dada pelos Encontros Estaduais, de
mesmo tempo, os núcleos de base forma participativa e democrática.
não são “propriedade” da coopera- Recomenda-se que parte dos
tiva. Eles são núcleos do MST, e o membros da direção política sejam
conjunto do movimento tem respon- também da direção legal do SCA para
sabilidade para que eles funcionem não criar dicotomia.
de fato.
4.3. A distribuição de sobras
O núcleo não deve ser entendido
Os excedentes ou as sobras
apenas como uma estrutura formal.
devem ser distribuídos aos associados
A principal razão é garantir a gestão
de acordo com a participação de cada
democrática do assentamento e da
um nas operações da cooperativa.
cooperativa. Na verdade, o núcleo é
O sistema de distribuição
um espaço de construção da
igualitário foi o primeiro a ser adotado
democracia participativa e do poder
nas experiências de cooperação
popular: ele analisa as demandas,
agrícola do MST. Funciona assim: um
elabora e aprofunda as propostas,
grupo com 10 famílias colheu 1.000
participa de elaboração e implemen-
sacas de milho, na distribuição cada
tação da estratégia e elege os seus
63
família recebe 100 sacas, mais utilizado no momento, ainda
independentemente de quanto cada enfrentamos algumas dificuldades
uma realmente trabalhou. Esta forma que precisam ser superadas. Vamos
de distribuição trouxe inúmeros citar as duas principais:
problemas para os grupos que a a) Desestímulo ao trabalho
adotaram, resultando na extinção da O sistema de distribuição
ampla maioria deles. Os principais igualitário acaba desestimulando as
problemas estavam ligados à pouca pessoas a se esforçarem mais
capacidade produtiva, que em muitos porque não recompensava as
momentos nem supria a subsistência, diferenças de contribuição entre os
somada ao fato de que a distribuição sócios. Com a adoção do sistema
igualitária, independentemente do por horas/dias o problema diminui,
trabalho apostado pelas pessoas, mas permanece presente por dois
estimulava a vadiagem, o “encosto”. fatores: o primeiro é que nos anos
Com isso a tendência era das pessoas iniciais são poucos os grupos que
trabalharem menos (porque recebiam conseguem um volume significativo
a mesma quantia que os outros) de sobras e que possam ser
justamente no momento em que o distribuídas conforme o princípio
grupo mais precisava aumentar o adotado (horas ou dia). Com isso
trabalho na produção. consegue-se produzir apenas o
Outra forma de distribuição mínimo para a sobrevivência e
adotada refere-se aos dias trabalha- portanto na prática as pessoas
dos. Mas adiante passou a ser confor- vivem e sentem como se o princípio
me as horas trabalhadas. Nos dois adotado fosse o igualitarista.
sistemas procura-se recompensar as b) Produtividade do trabalho
pessoas que trabalham mais tempo Ninguém pode garantir que 10
para o coletivo. Em ambos é estabele- horas trabalhadas por um sócio
cido um sistema de controle do tempo produziram mais em termos reais
trabalhado onde se marcam os dias (rendimento físico do trabalho. Por
(no primeiro caso) ou as horas de exemplo: número de sacos de milho
serviço dos associados. Ao final do colhidos) do que as horas trabalha-
ano (ou mesmo nas antecipações das por outro sócio, ou seja, uma
durante o ano) a distribuição das mesma hora trabalhada por 2
sobras é feita não por igual para todos, pessoas diferentes tende a resultar
mas na PROPORÇAO das horas ou em diferentes produtividades físicas.
dias trabalhados. Esse mecanismo E somente adotando-se mecanismos
estimula as pessoas a dedicarem o que permitam medir efetivamente
maior tempo possível de trabalho à produtividade física do trabalho é
cooperativa ou grupo coletivo, e que se conseguirá avançar,
premia os que mais se esforçaram. remunerando mais aquele que mais
Com isso a produção cresce, produziu. .
melhorando as condições de bem Atualmente nenhum grupo
estar e os recursos para investimentos coletivo encontra-se nesse estágio,
na produção. mas vários já começam a discutir e
Porém, apesar de o sistema de a pensar mecanismos que permitam
controle por horas trabalhadas ser o

64
introduzi-lo em algumas das 5.2. Divisão de tarefas e funções
atividades produtivas. Logicamente Tojos devem assumir a sua parte
essa discussão necessitará de um na aplicação das tarefas definidas,
longo tempo para ser implementada respeitando as qualidades e aptidões
com amplitude, e seus resultados pessoais, valorizando a participação
terão que comprovar na prática a de todos e evitando a centralização e
superioridade que ora se apresenta o paternalismo. A decisão é coletiva,
teoricamente. mas a responsabilidade é individual.
Por outro lado essa discussão 5.3. Profissionalismo
deve estar acoplada ao desenvolvi- Todos devem ser militantes da
mento de uma mística do trabalho organização (ter amor e dedicação à
dentro das nossas experiências causa) e, ao mesmo tempo, ser um
associativas. Precisamos estimular a especialista (um técnico), procurando
discussão, a emulação e a organiza- aperfeiçoar-se cada vez mais,
ção de formas mais avançadas de naquelas funções e tarefas que lhe
produção e que sirvam para alavancar foram designadas.
o desenvolvimento econômico dos 5.4. Polivalência
assentamentos e o crescimento da Ninguém pode perder a noção
consciência política dos assentados. de conjunto, isto é, deve saber como
4.4. Ser mais uma ferramenta de luta funciona cada uma das partes do
Os assentamentos e, de forma todo, cada uma das partes da
especial, as cooperativas ligadas ao organização.
SCA devem ser uma ferramenta de luta 5.5. Disciplina
para a conquista da Reforma Agrária Aplicar o princípio de que
e a transformação da sociedade. disciplina é o respeito às decisões do
O seu caráter de luta deve se coletivo, desde o cumprimento de
manifestar internamente através da horários, mas sobretudo o cumpri-
formação político-ideológica, da mento de tarefas e deliberações
mística, da capacidade de crítica e políticas.
outocrítica, da formação da cons-
ciência política, e externamente 5.6. Planejamento
através da participação nas lutas do Aplicar o princípio de que nada
MST e da classe trabalhadora e das acontece por acaso, mas tudo deve ser
ações de solidariedade com a planejado, preparado, programado.
finalidade de romper com a lógica de 5.7. Vinculação com as massas
exclusão social. A garantia do avanço da luta e
da aplicação de uma linha política
5. PRINCÍPIOS DE DIREÇÃO correta é a vinculação permanente
5. 1. Direção coletiva com a base. Dela devemos aprender
Todas as decisões, salvo casos as aspirações, anseios, necessidades
raros, deverão ser tomadas coletiva- e a partir da experiência corrigir as
mente, com igual direito e poder. nossas propostas e encaminhamentos.
Tudo será decidido pela maioria. 5.8. Crítica e autocrítica
Aplicar sempre o princípio da
avaliação crítica de nossos atos

65
(revisão de prática e de vida) e, 2. Finalidade Produção
sobretudo, ter a humildade de realizar (organização da produção, da roça
a autocrítica, procurando corrigir os até a industrialização) Comércio
nossos erros e encaminhar soluções (circulação da mercadoria)
para os desvios. 3. Organização do Trabalho - Pro-
5.9. Centralismo democrático dução Familiar Cooperativada (visa
Todos precisam compreender de incentivar o desenvolvimento da
que deve existir a máxima democra- cooperação). Produção familiar
cia no processo de discussão e na individual
tomada das decisões, bem como nas 4. Base da Cooperativa
avaliações, mas, após tomada a Trabalho com todos os associados
decisão todos devem se subordinar a e não associados.Trabalha com os
ela, inclusive as pessoas que tiveram interessados (os associados)
a sua proposta derrotada pela maioria. 5. Valorização do associado
5.10. Formação Visa ser MASSIVA. Trabalha para
A nossa formação política deve não perder os associados. Por isso
estar vinculada com a nossa prática busca formas de incluí-los.
atual e com a prática da classe Vale se der retorno econômico, por
trabalhadora ao longo da história. isso procura SELECIONAR os
associados. É excludente.
Devemos estimular e dedicar-se
ao estudo de todos os aspectos que 6. Classe dos associados
dizem respeito às nossas atividades, Uniclassista (só pequenos). Algumas
especialmente na apropriação do colocam estatutariamente limite de
conhecimento científico. Quem não área de terra para se associar.
Pluriclassista (grandes e pequenos
sabe, é como quem não vê. E quem
na mesma cooperativa). Na prática
não sabe, não pode dirigir e nem
ajudar no processo de formação da beneficia mais os grandes.
base. Para aprofundar o estudo o 7. Distribuição das sobras
mesmo deve ser discutido com os Deve ser distribuído para o asso-
companheiros e as companheiras. ciado em dinheiro (retorno direto) ou
em serviços por eles decidido
6. PRINCÍPIOS PARA UM COOPERATIVISMO
(retorno indireto). Normalmente não
ALTERNATIVO
distribui. É reinvestido na coope-
Vejamos algumas diferenças rativa. Algumas chegam a não
existentes ou que devem ser corrigir o capital dos sócios para
consideradas: aumentar o capital da cooperativa.
√ Cooperativismo Alternativo
8. Direção Coletiva com res-
√ Cooperativismo Tradicional
ponsabilidades pessoais.
A direção legal fica em segundo
1.Caráter sociedade Político plano. Legal (presidencial)
(visa a transformação da empresa 9. Poder dos associados para
econômica – buscar melhores defender seus interesses
condições de vida dos assentados) Através dos NÙCLEOS (discutem
Empresa econômica antes) Através da escolha da
direção.

66
10.Organização Cooperativista 21. Rotação de dirigentes
Construir um espaço alternativo. Deve investir na formação de novos
Filiação a OCB e as OCEs dirigentes Baixa
11. Método dar condições para os 22. Preocupações com a Viabilidade
associados descobrir, perceber. Do conjunto dos associados D a
Apresentar proposta prontas ou cooperativa (cada vez mais se
induzir para que os associados tornam um empresa de capital)
assumam os planos da direção.
12. Núcleos ferramenta para const- 1. AS FORMAS DE COOPERAÇÃO AGRÍCOLA
ruir a organicidade. Funciona de Atualmente existe nos assenta-
baixo para cima. Instrumento da mentos várias formas de cooperação,
Direção. Procuram cooptar o líder pois para nós o importante não é a
para ele passar os interesses da forma, mas o ato de cooperar. Desde
direção. Funciona de cima para as formas mais simples até as mais
baixo. complexas: vejamos:
13. Acesso a informação a) Mutirão, puxirão, troca de serviço:
Alto Baixo É a forma mais simples de coopera-
14. Participação dos Associados ção. Ela acontece ocasionalmente
Alto Baixo entre os assentados individuais,
15. Planejamento especialmente entre vizinhos ou
De baixo para cima De cima para parentes, para fazer: capina, plantio,
baixo colheita, etc.
16. Formação
Político-ideológica e técnica b) Núcleos de produção
São assentados individuais que
Técnica
se unem, por proximidade, paren-
17. Associado tesco ou linha de produção (o leite,
A mulher, o homem (casal) e os por exemplo) com a finalidade de
filhos maiores que trabalham em organizar a produção.
casa. Um por família (empresa), isto c) Associações
é, o chefe (normalmente o homem). Podem ser vários tipos:
18. Desenvolvimento • Para aquisição de animais (junta
Conforme um projeto de de bois, vacas de leite, etc);
desenvolvimento regional. • De máquinas ou implementos
Um por família (empresa) isto é, o agrícolas (trilhadeira, trator,
chefe (normalmente o homem) ceifadeira, colhetadeira, sistema
19. Participação na Luta de irrigação, etc);
Política (solidariedade) e econô- • De transporte (caminhão, ônibus,
mica Econômica etc)
20. Projetos ou planos • De comercialização (compra e
Os associados participam da venda de produtos); De benfei-
elaboração através de “pacotes”. Já torias (armazém, serraria,
vem prontos e são apresentados farinheira, etc);
para serem aprovados. · De representação política de
todos os assentados.

67
A produção acontece no lote h) Cooperativas de Crédito
familiar ou no simi-coletivo. A Com a finalidade de fazer
associação apenas presta algum circular o capital financeiro dos assen-
serviço de interesse comum. Elas tados entre os assentados facilitando
normalmente são legalizadas, mas assim o acesso ao crédito.
existem alguns grupos semi-coletivos i) Cooperativas de Produção e
que usam o nome de associação. Prestação de Serviço (CPPS)
d) Grupos Semi-coletivos Visa planejar, organizar, transfor-
Quando as pessoas produzem no mar e comercializar uma ou mais
lote familiar (normalmente a linhas de produção de forma coleti-
subsistência) e tem uma ou duas vas. Além de planejar, organizar e
linhas de produção em conjunto, comercializar várias linhas de
voltadas para o mercado. Apesar de produção desenvolvidas nos lote
terem um estatuto, esta forma não é familiar dos associados (produção
registrada. individual).
e) Grupos Coletivos j) Cooperativa de Produção
A produção é toda coletiva. Agropecuária. (CPA)
Mesmo tendo estatuto e regimento Esta cooperativa é coletiva, já
interno, elas não são registradas. A que a terra está nas mãos da coopera-
comercialização é realizada em tiva. Ela é de propriedade social (os
conjunto, mas no nome dos trabalhadores são os donos) e de
assentados. produção social (os donos trabalham
f) Cooperativas de prestação de e repartem as sobras entre si conforme
serviço de um assentamento (CPS). o trabalho aportado de cada um).
Visa planejar e organizar as
principais linhas de produção de 2. C ARACTERISTICAS DAS FORMAS DE
todos os assentados que produzem no COOPERAÇÃO
lotes familiar, no semi-coletivo ou em 2.1. Núcleos de Produção (NP)
grupos coletivos. A CPS faz a comer- Esta experiência é nova no SCA
cialização das famílias ali assentadas, e está em fase de implantação. É
presta serviços de assistência técnica direcionada a assentamentos onde os
e fornece insumos agrícolas e produz companheiros já estão estabelecidos
algum produto (ração, por Exemplo). de forma individual e têm dificuldade
g) Cooperativas de Prestação de em evoluir para experiências
Serviços Regionais (CPSR) associativas mais avançadas
Elas também são conhecidas O núcleo de produção é uma
como Cooperativas Regionais. É uma fusão de algumas famílias, que podem
CPS com maior área de abrangência ser aglutinadas por proximidade,
(vários assentamentos lindeiros ou parentesco ou por linha de interesse
próximos). Normalmente ela atua na de produção, com a finalidade de
área da comercialização, da discussão política do MST e da
produção e de insumos agrícolas, no organização da produção.
beneficiamento, na assistência
técnica e, algumas, na organização
da produção.

68
• Terra: Permanece como lote semi-coletivos ou mesmo de produ-
individual. ção coletiva. Há casos em que o
• Capital: Os meios de produção - núcleo de produção desenvolve uma
como tratores, juntas de bois, atividade econômica em conjunto.
trilhaderias ou implementos Por exemplo, os condomínios de leite.
agrícolas em geral - permanecem 2.2. Associação (A)
como propriedade individual. A associação pode gerar diversas
• Trabalho: O trabalho é, no máximo, atividades e se constitui, na maioria
organizado em nível familiar. dos casos, como associação de
• Planejamento da produção: A terra prestação de serviços. É formada por
e os meios de produção estão sob pessoas que se juntam para resolve-
controle individual. Portanto, o rem um problema que dificilmente
indivíduo planeja a produção no conseguiriam sozinhos. A associação
seu lote. O chefe da família discute de máquinas é uma das experiências
apenas com seus parentes. mais desenvolvidas em nossos
Se o núcleo de produção estiver assentamentos.
vinculado a outra experiência de • Terra: Normalmente permanece
cooperação, por exemplo, a uma como lote individual.
cooperativa de comercialização e • Capital: Neste caso, o capital (meios
prestação de serviços, o planeja- de produção) pode permanecer em
mento da produção pode estar parte com o indivíduo e em parte
subordinado a um plano mais com a associação. Por exemplo,
centralizado. parte dos recursos do PROCERA
• Moradia: No núcleo, normalmente, podem ser investidos no individual
as moradias localizam-se nos lotes e o restante pode ser investido na
individuais, o que não impede de associação, para ampliar seu
ter agrovila, mesmo que seja por parque de máquinas. Todos os
aproximação de lotes ou outro. investimentos feitos na associação
• Aspectos legais: Em geral, os grupos estarão sob controle da associação
de famílias fazem parte da estrutura e não do indivíduo.
orgânica de grandes associações ou • Trabalho: Na associação de
cooperativas de prestação de máquinas permanece o sistema de
serviços regionais. Nesse caso, trabalho familiar. A associação
funcionam como uma instância de pode, eventualmente, organizar
base da cooperativa ou associação trabalho coletivo para alguma
e não têm registro legal autônomo. atividade, mas isso não significa que
Eventualmente, podem ser haja divisão social do trabalho.
organizados grupos de familiares • Planejamento da produção: Na
mesmo que não exista uma organi- maioria das associações o planeja-
zação do tipo grande (associação ou mento da produção se dá no lote
cooperativa de prestação de serviços). individual. Somente naquelas
Com o tempo, o núcleo de produção atividades coletivas o planejamento
familiar deve ser estimulado para é centralizado pela associação. Isso
evoluir para outra forma de significa que ela decide, por
cooperação como grupo ou associa- exemplo, onde vai ser plantado o
ção de máquinas, grupos de produção milho, o arroz, o feijão ou outros.
69
• Moradia: Na maioria das asso- estável. Ou ele avança para um nível
ciações as casas são construídas nos maior de cooperação ou retrocede
lotes individuais, mas isso não é para uma individualização cada vez
regra. Há diversas experiências em maior do processo de produção. A
assentamentos onde, mesmo sendo contradição principal deste grupo está
o trabalho individual, há agrovilas em conciliar os interesses pessoais
justificadas do ponto de vista (materializados na propriedade
econômico, político e social dada individual) com o interesse coletivo.
e facilidade ao acesso à eletrifi- Se não tivermos uma política de
cação, à escola, ao posto de saúde, acompanhamento permanente e nem
à água encanada etc. Podemos e criarmos mecanismos que amenizem
devemos estimular a formação de e, ao mesmo tempo, ajudem a superar
agrovilas nos assentamentos, essa contradição interna, dificilmente
mesmo que o sistema de produção manteremos o grupo unido, e a
seja individual. tendência é a de sua desintegração.
• Aspectos legais: A maioria das • Terra: Parte da terra é destinada para
associação são registradas. Elas tem uso do coletivo e parte permanece
personalidade jurídica, com para uso do indivíduo. A proporção
estatuto, regimento interno, livro de destinada a um ou outro varia de
atas, diretoria e seus associados grupo para grupo.
estabelecem regras de utilização ou • Capital: Parte dos investimentos
prestação de serviços a todos os para meios de produção é feita de
sócios. Ela não é considerada forma coletiva e parte de forma
organização econômica. Mesmo individual.
podendo comercializar para o • Trabalho: No grupo semi-coletivo
ingresso de recursos, ela não pode já existe um certo grau de divisão
auferir lucro e, portanto não pode social do trabalho porque parte da
distribuí-lo aos associados. Existem produção é desenvolvida de forma
nos assentamentos algumas asso- coletiva. O tempo restante é
ciações não legalizadas, que tem dedicado pelas pessoas, em seus
apenas um regimento interno e lotes, de forma. individual. Alguns
caderno de atas para registrar as grupos estabeleceram um esquema
decisões. onde durante três dias a pessoa
2.3. Grupo semi-coletivo (GS) trabalha no coletivo e três dias no
Essa experiência de cooperação seu lote individual.
na produção, no MST, teve grande • Planejamento da produção: Na
desenvolvimento durante o período parte individual quem planeja a
de 1985-1988. Foi a experiência de produção é o indivíduo com sua
cooperação mais presente nesse família. Na área destinada à
período, depois das associações. Com produção coletiva quem planeja é
o tempo, o número foi reduzido o conjunto dos sócios através de
drasticamente restando atualmente suas instâncias de decisão (ex.
poucas experiências. Assembléia).
Com a prática, comprovou-se • Moradia: Normalmente a moradia
que o grupo semi-coletivo não é é organizada em forma de agrovila,

70
mas há diversas experiências onde nível de consciência mais elevado,
as casas permanecem nos lotes há uma divisão social do trabalho
individuais. e toda a mão-de-obra do grupo está
• Aspectos legais: Em geral, os grupos submetida ao planejamento feito
sem i-coletivos são organizados pelo coletivo. Os grupos são
informalmente, isto é, não têm organizados por setores de produ-
registro legal. Porém, pode haver ção e a distribuição, organização e
grupos sem i-coletivo organizados especialização da mão-de-obra se
em forma de associações ou mesmo dá através deles.
de CPAs. Mesmo sem legalização, • Planejamento da produção: Como
o grupo deve elaborar seu a terra, o capital e o trabalho estão
regimento interno, registrar suas sob controle do coletivo o planeja-
decisões em livro de atas e manter mento da produção também é
em dia a contabilidade básica. decidido pelo coletivo de sócios.
2.4. Grupo coletivo (GC) Aprova-se um plano centralizado a
OS grupos de produção coletiva partir de uma ampla discussão do
representam um passo a frente na conjunto dos membros e a decisão
organização da produção, pois já final é a da assembléia.
exige um grau de consciência mais • Moradia: Nos grupos de produção
elevado por aglutinar pessoas ou coletivizada, por sua própria
famílias que já estão dispostas a natureza, normalmente se cons-
organizar o processo de produção de troem agrovilas.
forma coletiva. Nessa forma, não se • Aspectos legais: O grupo de
exige um número mínimo ou máximo produção coletivizada é organizado
de participantes porque trata-se ainda informalmente, ou seja, não é
de um grupo informal que pode legalizado. Por não precisar ser
funcionar sem necessidade de legalizado não significa que
legalização. dispensa organização ou controle.
• Terra: Em geral, nas nossas expe- Os coletivos têm um regimento
riências, o título de propriedade ou interno aprovado por seus membros
concessão de uso permanece em e registram suas decisões em livros
nome do cadastrado membro do de atas. Existem várias normas
grupo. Não se faz o parcelamento regulamentando seu funcionamento.
da terra que fica sob controle do O grupo de produção coletiva é
coletivo. A parcela sob controle do uma experiência importante como
indivíduo é a destinada aos exercício prático para se avançar na
produtos de subsistência para a direção da formação de Cooperativas
família, a não ser que o grupo de Produção Agropecuárias (CPA).
resolva destinar toda a terra para o Mesmo não legalizada, deve ter
coletivo. controles, planejar e organizar a
• Capital: Está sob controle do produção, organizar o trabalho. Há
coletivo, ou seja, todos os limite apenas para a compra e venda
investimentos em meios de (comercialização).
produção são feitos coletivamente.
• Trabalho: Nessa experiência de
cooperação, como já existe um

71
2.5. Cooperativa de prestação de formas de cooperação. Também pode
serviços (CPS) buscar recursos para investimentos
Como o nome diz, a Cooperativa centralizados para a cooperativa que
de Prestação de Serviços (CPS) beneficiam o conjunto dos
dedica-se basicamente a comercia- associados.
lização (organizar o processo de • Trabalho: A CPS não organiza o
compra e venda da de insumos, da trabalho, que é tarefa dos associa-
produção e de bens de consumo para dos através da formas de
os associados), da assistência técnica, cooperação nas quais se encon-
do serviço de máquinas, da formação tram. Nem organiza diretamente a
política e da capacitação técnica, da produção.
organização da produção (definição • Planejamento da produção: Todo o
da estratégia de desenvolvimento da processo de planejamento fica a
região. definição de linhas de cargo dos associados, organizados
produção), da implantação de em núcleos. Mas é tarefa da CPS, a
unidades de processamento (moinho partir de estudo de viabilidade
de milho, descascador de arroz, econômica, definir suas linhas de
soque de erva-mate, despolpadeira, produção prioritárias a serem
etc.) para beneficiar a produção dos desenvolvidas e elaborar planeja-
assentados. mento centralizado da produção
Por causa da sua abrangência, no vinculado a cooperativa. Também
SCA, elas se dividem em: pode direcionar os recursos e a
a) Cooperativas de Prestação de assistência técnica para essas linhas
Serviços (CPS) quando elas envol- prioritárias, porque seu objetivo
vem apenas um assentamento ou principal é centralizar toda a
assentamentos lindeiros ou produção para viabilizar a
assentamentos de um determinado comercialização e industrialização.
município. • Moradia: A CPS não controla a
b) Cooperativas de Prestação de moradia, que é definida pelas
Serviços Regionais (CPSR) ou formas de cooperação, individuais
Cooperativa Regional quando ou coletivas.
envolvem vários assentamentos, em • Aspectos legais: Todas as coope-
vários municípios próximos. rativas, obrigatoriamente, têm de
• Terra: A propriedade ou está na mão ser legalizadas, e até mesmo serem
do associado que produz (parcela registradas na junta Comercial (e
familiar) ou está na mão do grupo não no cartório, como as associa-
coletivo ou da CPA, que são sócios ções). Existem leis específi-cas que
da CPSR. regulamentam as atividades das
• Capital: Neste caso o capital social cooperativas. Por serem empresas
está sob controle da cooperativa. As com fim claramente econômico são
sobras podem ser distribuídas entre fiscalizadas com mais rigor pelo
os associado. governo, o que exige um maior grau
Mas é importante salientar que a de controle interno muito mais do
cooperativa pode buscar recursos que associações ou grupos
para investir na produção, ou seja, nos informais.
lotes individuais, associação, e outras

72
2.6. Cooperativa de produção e Neste nível de cooperação ainda
prestação de serviços (CPPS) se adequaria ou por assentamento
Esta é uma nova forma que ou Município ou micro região, até
estamos criando. Ela acontece regional. Neste nível de cooperação
quando, para avançar na cooperação, não se entraria na organização
uma CPS começa a desenvolver a coletiva da produção com os
produção de um ou mais produtos. associados, isto caberia a outro
Ela é uma forma de transição entre a nível que veremos agora.
CPS e a CPA. b) O nível mais avançado
Ela pode ser classificada em dois Este novo modelo de coopera-
níveis: tivas e uma combinação dos
a) O nível mais simples interesses dos indivíduos com
A CPS, dependendo do nível de interesse do coletivo num nível mais
desenvolvimento da região ou do avançado de cooperação. A
assentamento em que estiver cooperativa passa a desenvolver
localizada, pode avançar mais em parte das atividades centralizadas
seu desenvolvimento econômico e como cooperativa e parte da
com isto pode alterar sua produção ficaria com os sócios que
característica passando de poderia ser organizada de diversos
cooperativa que principalmente níveis.
fornecia a prestação de serviços Terra: Nesta forma de cooperação
para uma cooperativa de produção a terra pode ter dois tipos de
e prestação de serviços ( CPPS). procedimentos:
O que determina esta nova a) Ser de propriedade do coletivo: Se
característica da Cooperativa? Isto constituindo como área de
ocorre quando a cooperativa produção coletiva.
alcançar um certo nível de
desenvolvimento econômico ou b) Outra forma só pertencer ao
pela sua localização ou pelo coletivo, ou seja, a Cooperativa, a
volume de capital incorporado na terra onde estejam feitos investi-
mesma. A cooperativa entrará na mentos coletivos e o restante pode
produção de determinada merca- ser de propriedade individual.
doria para o mercado. Colocar uma Capital: Todos os investimentos
unidade agro-industrial para considerados estratégicos para a
transformação dos produtos dos cooperativa. devem ser centraliza-
sócios ou de terceiros etc. Ex.: micro dos sob controle da CPPS. Por
usina de pasteurização de leite; exemplo: Se a produção de leite,
frigorífico; ervateira; fábrica de confinamento de bovinos e ou
ração, etc. Nesta situação a suinocultura é estratégia a
cooperativa deixa de ser apenas cooperativa deve organizar todo o
uma CPS e se transforma numa processo de produção e centralizar,
CPPS. Isto porque ela própria passa pelo menos, a parte de transforma-
a ser produtora de mercadoria ção ou industrialização.
enquanto mista de produção e A CPPS, após ter seu projeto
serviço (CPPS) . econômico de exploração da área
anteriormente elaborado (ele é uma

73
das condição para formar este tipo de regulamentam as atividades das
cooperativa) determinará quais são os cooperativas. Por serem empresas
seus investimentos estratégicos, com fim claramente econômico são
direcionados ao mercado. fiscalizadas com mais rigor pelo
• Trabalho: A organização nesta forma governo o que exige um maior grau
de cooperação também deve ser de de controle interno, muito mais do que
duas formas: associações ou grupos informais.
a) Nas atividades centralizadas, a 2.7. Cooperativa de Produção
cooperativa deve organizar todo o Agropecuária (CPA)
trabalho em função de viabilizar as As CPAs foram implantadas
linhas de produção, ou seja, o como experiência de cooperação no
trabalho coletivo. Para este fim cada MST a partir de 1989, e despontam
núcleo deverá colocar a disposição como uma forma superior de
a mão-de-obra necessária. organização da produção. Na
b) Outra forma é o assalariamento da verdade, uma CPA não se diferencia
mão-de-obra incorporando um muito de um grupo coletivo ou de
associado para cada posto de uma associação coletiva, na sua
trabalho necessário para viabilizar essência e muito menos na sua
a produção, conforme os critérios constituição. O que difere é a perso-
estabelecidos. Esta é mais simples nalidade jurídica porque ao ser
do ponto de vista organizativo e registrada como uma empresa
mais complexa do ponto de vista cooperativista será regida pela
jurídico, por causa do vinculo legislação cooperativista brasileira.
empregatício (mesmo sendo Uma CPA é complexa porque se
associado devemos registrar em constitui como empresa de produção
carteira e pagar todos os encargos coletiva, gestão coletiva e de traba-
sociais previstos na CLT). lhos coletivos. Há também complica-
• Planejamento da produção: O Plano
ções burocráticas com a legislação
de produção deve ser centralizado, trabalhista, fiscal e previdenciária.
Hoje, para se constituir uma CPA
definido o que será produzido para
existem alguns condicionantes:
o mercado pela CPPS e o que será
pelos associados nas demais formas √ A terra deve estar sob controle do
de cooperação. coletivo:
√ Ela deve liberar quadros;
• Moradia: A CPPS não controla a
moradia. que é definida pelas √ Deve estar em uma área estratégica:
unidades de produção, individuais √ Ter um plano estratégico de
ou coletivas, mas incentiva a desenvolvimento.
construção de agrovilas. • Terra: Permanece sob controle do
• Aspectos legais: Todas as cooperati- coletivo, a não ser a pequena
vas. obrigatoriamente têm de ser parcela destinada à produção de
legalizadas, e até mesmo serem “subsistência mínima” de cada
registradas na junta Comercial (e associado. Em quase todas as
não no cartório como as associa- nossas CPAs, o título de proprieda-
ções). Existem leis específicas que de ou concessão de uso da terra

74
permanece em nome do indivíduo, • Moradia: Na CPA, normalmente,
que passa para o controle da organiza-se em agrovilas. O
cooperativa através de contrato de esquema de moradia se diferencia
comodato ou de arrendamento apenas no tamanho do lote para a
simbólico. Mas pode haver título construção das casas.
em nome da CPAs. No Rio Grande • Aspectos legais: As cooperativas têm
do Sul e Santa Catarina já existem que ser legalizadas obrigatoria-
cooperativas com título de mente, inclusive com registro na
propriedade em nome da CPA, Junta Comercial (e não no cartório
concedido pelo Estado (INCRA). como as associações). Existem leis
• Capital: Todos os investimentos de específicas que regulamentam as
capital acumulado estão sob atividades das cooperativas. Por
controle e em nome da CPA. Como serem empresas com fim clara-
a cooperativa tem capital social, mente econômico, as cooperativas
este é subdividido em quotas-partes são fiscalizadas com maior rigor
que vão sendo integralizadas na pelo governo, exigindo um nível
conta de cada associado. A mais elevado de controles internos
cooperativa controla de outra forma do que a associação ou grupos
a parte do capital acumulado que informais.
se tornam investimentos considera- Precisamos avançar na con-
dos pela legislação fundos indivisí- cepção de gestão democrática
veis. Neste caso, tornam-se patri- ascendente (decisão) e descendente
mônio social e não podem ser (responsabilidade nas metas de
divididos em caso de dissolução. produção, com aplicação de normas
• Trabalho: A CPA organiza o trabalho técnicas no processo de produção),
em setores, a partir da divisão do bem como nos instrumentos de gestão
trabalho, na lógica de “postos de (concepção de negócio agrícola).
trabalho”, que são determinados
pela atividade econômica desen- 2. Os Aspectos Filosóficos deste
volvida e pela capacitação técnica Novo Impulso Organizativo
dos associados-trabalhadores. O a) Mudar a existência para modificar
trabalho é controlado por produtivi- a consciência
dade física, na lógica do desem- De maneira geral podemos dizer
penho, e se faz a emulação dos que cultura é tudo o que criamos,
trabalhadores pela sua eficiência fazemos e sentimos ao produzir a
política e econômica. nossa existência. É o jeito de plantar,
• Planejamento da produção: Na as ferramentas que utilizamos, são os
CPA, os planos de produção (a hábitos alimentares, a forma de se
curto, médio e longo prazo) são vestir, os tipos de músicas que se
centralizados no coletivo. A partir produz, a maneira de se relacionar,
de uma ampla discussão, baseada etc. Se a cultura então é o ato de fazer
em estudos técnicos, define-se as a vida, a consciência é o ato de refletir
liinhas de produção e a ordem de sobre esta realidade vivida. É como
prioridades para serem implan- eu analiso, penso e assimilo a
tadas. realidade que vivo. Portanto, cultura

75
e consciência estão intimamente aproximar as pessoas, estimulando a
ligadas e se desenvolvem em plena convivência, sua participação social
unidade. e as ações cooperadas.
Apesar de ser algo abstrato, a Esta estrutura física, planejada
consciência, faz parte da realidade desde o início, será o objeto que
social. Esta consciência relacionada pressionará o sujeito a avançar em sua
ao ato de refletir sobre a existência convivência comunitária, enrique-
social, assimilando os aspectos cendo sua consciência social. É
imediatos que envolvem a vida das evidente que esta estrutura por si
pessoas, podemos denomina-la de mesma não dará conta da evolução
consciência social. O seu desenvolvi- da consciência política de nossa base,
mento esta intimamente ligada, ao mas será um bom ponto de partida. A
grau de convivência e de participação consciência política a que nos
da pessoas na sociedade. referimos agora, esta relacionada com
Será através da convivência a formação da consciência a partir dos
social e da participação que o ser conhecimentos científicos, avançado
humano irá desenvolver naturalmente a compreensão além da visão
a sua consciência social. Logo imediatista e espontânea da realidade,
precisamos planificar as condições elevando-se para assimilar aspectos
para que isto ocorra. da realidade global interligada com a
Assim ao projetarmos os realidade social. Aqui a consciência
assentamentos, precisamos compre- se transforma em ação política. Logo
endê-lo como uma nova “Estrutura a consciência política, não se
Social” que deverá ser desenhado de desenvolve naturalmente, ela neces-
maneiras a criar estas condições, de sita de elementos teóricos que vem
forma que esta estrutura não regrida de fora da vida cotidiana, que vão
com o passar do tempo. além dos elementos imediatos que a
Portanto, o formato da área é vida nos traz, requerendo o estudo
decisivo para o futuro do assenta- científico.
mento. Ele deverá levar em conta os O assentamento com uma estrutura
fatores que possibilitem esta convi- física planejada para impulsionar a
vência e esta participação, bem como convivência, a participação social e a
crie as condições para a cooperação cooperação agrícola, terá maior êxito
agrícola. na medida em que se oportunice
A aproximação das moradias e a insumos produtivos e de serviços que
constituição dos núcleos de base são sejam indivisíveis, que sejam de
condicionantes essenciais para o usufruto comum pela comunidade.
estimulo à convivência e a participa- Quanto maior for a necessidade
ção social. Concebidos desde o início, destes “insumos indivisíveis” para a
esta estrutura física do assentamento reprodução da existência dos indiví-
terá mais dificuldades de regredir com duos na comunidade, maior será o
o passar do tempo. Por isto, insistimos êxito na vivência comunitária,
na importância de concebermos criando-se a necessidade objetiva de
desde o primeiro momento do assen- um gestão coletiva destes insumos,
tamento, as condições físicas para que independente da vontade individual
ele mantenha a base estrutural para de cada assentado.

76
Portanto, podemos concluir que fazenda. Portanto, o lote individual
a planificação da “estrutura social” familiar é que se afirmou no horizonte
(assentamento), seja na projeção da das famílias que lutam pela terra.
estrutura física, aproximando as Quais são as implicações desta
moradias, reservando as áreas opção histórica do campesinato
cooperadas, seja garantindo insumos brasileiro? Ao afirmar o lote individual
indivisíveis essenciais à reprodução familiar, este ser social, não esta
social dos indivíduos, seja pela ação afirmando somente a propriedade
política da militância do MST, sobre a terra, apesar de ser uma
constituindo os núcleos de base, são propriedade centrada no trabalho
fatores essenciais para a mudança na familiar e não no trabalho assalariado
existência das pessoas proporcio- (exploração de terceiros, além da
nando o amadurecimento da família). Ele esta sinalizando para o
consciência social dos indivíduos que MST que esta disposto a fazer
ali moram, criando condições para o individualmente seu próprio destino
florescimento de uma consciência e o de sua família, que passa também
política de classe. a ser sua propriedade. Este ser não
b) O efeito da Propriedade Privada possui apenas o lote, mas estabelece
na visão de mundo do Camponês sobre ele o seu próprio governo, com
Todos nós temos clareza da leis próprias, com a organização do
profunda exploração a que foram trabalho a partir de sua vontade e
submetidos os camponeses e a classe desejo, com planos de produção,
trabalhadora brasileira, ao longo de relações de trabalho e de comercia-
nossa história. Os atuais Sem Terra, lização próprios e ninguém poderá
sejam eles camponês ou assalariados intervir, a não ser nos aspectos em que
urbanos de origem camponesa, ao ele decide contribuir.
lutarem pela terra trazem em seu Esta relação individualizada e
horizonte, a posse da terra individual individualizante com a propriedade,
familiar, como a melhor maneira de determinará o modo de agir e de
superar sua condição de exploração pensar destes ser social e se tornará
e de privação. Estes trabalhadores, cada vez mais rígida quanto maior for
entendem que sua libertação passa o tempo de duração dessa relação.
pelo acesso à propriedade privada da Assim fica claro a perversidade
terra, para poderem dispor pela da propriedade privada da terra nos
primeira vez em suas vidas de forma assentamentos e o seu reflexo na
plena e livre o seu destino e gerirem consciência das pessoas. Por mais que
autonomamente as suas vidas. esta propriedade privada seja familiar,
Não se constituiu na consciência onde na maioria dos casos não há
destes trabalhadores, o rompimento exploração da mão de obra de outras
destas condições de exploração, pelo pessoas além da sua família, a
caminho da coletivização da terra. A propriedade privada afirma uma
imagem que os camponeses e mesmo ideologia oportunista na mentalidade
aqueles que trabalharam como dos assentados. Além de afirmar seu
assalariados possuem da propriedade poder individual, dispensando a ação
da terra é justamente o sítio ou a comunitária e da organização, ele se
relacionará com as estruturas sociais

77
(cooperativas, associações, organiza- ajuda a acumula forças (seja gente
ções políticas e religiosa, etc) somente organizada, seja gente com
para tirar vantagem, buscando consciência política). E não simboliza
proteger e ampliar seus bens privados. nada de novo para a sociedade futura
Estes assentados, via de regra, que desejamos construir. Portanto,
participarão da vida social e econô- deveremos garantir nos assenta-
mica, seguindo a lógica do seu mentos, formatos organizativos que
interesse material e do prazer superem o “quadrado burro” (puro
individual, revelando-se um ser loteamento), introduzindo algumas
altamente egoísta. Sua consciência se formas comunitária, cooperada ou
desenvolve em torno do aspecto da coletiva no uso da terra.
propriedade da terra, dos bens e dos O MST, já desenvolve diversas
interesses da família. Sua participação experiências neste sentido, que
na vida social ou das lutas políticas poderemos estudar e conhecer
somente terá sentido se ele perceber melhor. Como poderá desenvolve
que terá ganhos ou benefícios, outras experiências distintas destas,
tendendo a valorizar e a compreender mais ajustadas as diversas realidades
somente os aspectos econômicos da regionais. Bem como, poderá
luta, se afastando das ações desenvol-ver experiências novas
organizadas que visem aspectos como por exemplo, as empresas de
políticos nas reivindicações. co-gestão, onde se combine ativida-
Por isto todo esforço será des produtivas das famílias, com áreas
necessário para evitarmos a proprie- de produção coletivas administradas
dade privada da terra, pois com ela em conjunto pelo MST e assentados,
traremos um conjunto de fatores aproveitando melhor os recursos
objetivos que reforçaram na consciên- naturais existentes no assentamento ou
cia social dos assentados, os aspectos melhor gerindo estruturas produtivas
conservadores e retrógrados da existentes na fazenda desapropriada.
consciência burguesa, aproximando- Enfim, precisamos aprender com as
os desta classe. experiências, como devemos perder o
A neutralização ou rompimento medo de inovar em nossas
dos efeitos da propriedade privada da formulações, buscando superar a
terra nas consciências dos assentados, propriedade privada familiar,
será possível na medida que avançando em sua função social.
atribuirmos uma função social para c) O trabalho na construção do ser
estas terras libertadas do latifúndio. social
Além da produção de alimentos, um Como já foi dito, a cultura pode
outro aspecto importante desta função ser compreendida como todas as
social refere-se a superação do atividades que a pessoa desenvolve
loteamento tradicional, conhecido para produzir e garantir sua existên-
como “quadro burro”. Este loteamen- cia, sendo que de todas as atividades
to do assentamento é um retrocesso humanas a principal é o trabalho. O
organizativo e limita o desenvolvi- homem ao relacionar-se com a
mento social, econômico e cultural natureza, atuando com seu corpo,
das famílias. Esta forma tradicional empregando força física e mental, irá
desqualifica a reforma agrária e não

78
transformá-la imprimindo-lhe forma e o raciocínio associativo. Assim a
útil à vida humana. Nesta relação, o nossa ação organizativa e formativa
homem ao atuar sobre a natureza deverá transformar esta natureza
externa modificando-a de acordo complexa e ingênua em uma natureza
com seus interesses, estará também desmitificada, a partir de novos
modificando a si mesmo. Por isto referencias e padrões de vida e de
podemos dizer que o trabalho criou convivência.
o homem e que não haverá sociedade Além desta visão mítica que o
humana sem trabalho. trabalho camponês adquire na
Será no desenvolvimento da relação direta com a natureza,
atividade produtiva que o ser humano devemos compreender que o trabalho
vai adquirindo conhecimentos e familiar, pouco cria as condições para
instituirá seu próprio comportamento. a planificação das atividades, consti-
É através da prática que o ser humano tuindo-se numa unidade de produção
modifica a natureza das coisas e assim sem qualquer divisão técnica do
moldará sua própria conduta. É desta trabalho. Este processo único de
relação com a natureza que o ser trabalho das famílias assentadas,
humano torna-se parte da própria equivalente ao trabalho artesanal,
natureza como uma de suas forças. implica ao longo do tempo na
Portanto o trabalho produtivo é constituição de uma ideologia
necessário como uma condição subjetivista, constituindo um compor-
eterna de qualquer sociedade. Logo tamento aventureiro e anárquico,
os nossos assentamentos deverão ser que prescinde do planejamento.
projetados como locais de trabalho e O rompimento desta visão
de produção daqueles que lá vivem. artesanal do processo produtivo de
Todos deverão gerar o seu sustento. trabalho, virá com a organização de
Se por um lado a propriedade atividades cooperadas, que melhor
privada da terra aproxima o assentado planeje o uso dos recursos naturais
da ideologia burguesa, gerando uma disponíveis, melhor utilize a força de
visão de mundo pequeno burguesa, trabalho existente e melhor aplique o
por outro lado, o trabalho exercido uso das máquinas, equipamentos e
por ele, tornando-se agente direto da animais.
produção, lhe aproxima da classe Se o trabalho é a condição básica
trabalhadora. Por isto o trabalho nos para o desenvolvimento do ser social
converte em membros desta classe, e e da sociedade humana, a coopera-
devemos afirmá-lo em nossas áreas. ção produtiva é a base para o
Somente através do trabalho que nos aumento da produtividade deste
integramos ao conjunto da classe. trabalho e a condição para o avanço
No entanto, o trabalho do das forças produtivas sociais.
camponês, visto esta intensa relação d) A cooperação e suas implicação
com as forças da natureza, tende à no desenvolvimento do ser
reforçar em sua consciência os A cooperação agrícola, torna-se
aspectos espontâneos e imediatos, em nossas linhas políticas, um
assumindo características bem elemento estratégico, justamente, por
próprias do universo camponês, como criar condições para o melhor desen-
o mito, à superstição, à contemplação volvimento do trabalho social, indo
79
além do trabalho familiar individual vários momentos produtivos e da
e da propriedade privada. circulação. Uma cooperação
É evidente que a cooperação é plenamente socializada, onde se
algo amplo, que pode ser desenvol- combine e se articule a terra, o
vido em diversas esferas da vida trabalho e o capital.
humana, indo além da dimensão Sabemos que quanto maior for a
produtiva. Pode-se organizar a combinação destes elementos do
cooperação para solucionar aspectos processo produtivo, maior será a
sociais, como a construção de uma complexidade de gestão e
escola, reformar uma ponte, etc., administração desta unidade de
como pode-se lançar mão da coope- produção. Mas em contra partida,
ração para uma ação política, como maior serão as condições de
a ocupação de um latifúndio, como resistência econômica, num ambiente
a marcha para alguma capital. econômico capitalista.
Mas queremos agora chamar a Evidentemente que esta
atenção para a cooperação produtiva, cooperação complexa, será
seja ela diretamente na produção desenvolvida por aqueles grupos de
agrícola, seja ela na organização dos trabalhadores que possuem uma
serviços de apoio a esta produção. consciência mais evoluída,
Pois será ela que mexerá com os conseguindo superar a propriedade
elementos essenciais da reprodução privada e o trabalho familiar como
da vida dos assentados. referencia para o desenvolvimento
É sabido que historicamente os social.
camponeses sempre lançaram mão da No entanto, isto não é a
cooperação como uma estratégia realidade da maioria de nossa base
econômica para enfrentar a escassez social. Portanto, além desta formas
de mão de obra ao longo do ciclo complexas de cooperação, precisa-
agrícola. Espontaneamente os mos conceber formas mistas de
camponeses constituíram os mutirões, cooperação na produção que
puxirões, troca de dias, troca de viabilize no mínimo o planejamento
insumos ou equipamentos/animais, da produção e sua respectiva
tornando-se cultura. circulação. Logo estamos falando de
Trata-se agora de tornar cultura uma produção que vá além da
um outro tipo de cooperação, um subsistência, uma produção que se
pouco mais complexa, uma coope- oriente e se destine ao mercado.
ração que deixe de ser pontual para Uma cooperação que seja
uma determinada atividade, mas que superior a uma atividade pontual,
proporcione o planejamento do ciclo classicamente desenvolvida pelos
produtivo, entendido não apenas camponeses. Enfim, uma cooperação
como o momento da produção, mas que embora seja executado pela força
como algo mais amplo incorporando de trabalho familiar, em áreas
também o momento da circulação. cooperadas, seja pelo menos plane-
O objetivo é chegarmos num jada coletivamente e que disponha de
processo produtivo onde se pratique insumos indivisíveis que proporcione
o processo de trabalho socialmente este planejamento conjunto.
dividido, com uma planificação dos

80
O planejamento é mais do que e de exercitar a comercialização,
uma técnica de administração. É pois, verificando suas imperfeições sociais
uma lógica de pensamento, uma e técnicas, perdendo o medo de agir
lógica que poderá ser enriquecida na economicamente com os demais
medida que envolva diversos assentados.
elementos da produção e os diversos A cooperação produtiva, é
momentos dela. elemento chave em nossa estratégia,
Ao realizar o planejamento pois combinados com os demais
coletivamente, os assentados, estarão aspectos anteriormente citados,
rompendo sua visão exclusivista da poderão criar condições materiais e
sua propriedade, enxergando um objetivas para a melhoria de vida das
pouco mais além do seu lote, famílias, bem como permitir o
exercitando uma planejamento mais florescimento de uma consciência
amplo, uma visão mais totalizante do social que ajude aos assentados a
assentamento, proporcionando o compreender a complexidade da luta
encontro e o contato com o “outro”, de classes no país e gere condições
com os demais assentados. Nesta para que estes companheiros(as) se
relação ele terá oportunidade de insiram na luta política em curso.
enxergar outras maneiras de se
relacionar, de organizar a produção

81
BALANÇO POLÍTICO DA COOPERAÇÃO NO MST (Caminhos percorridos e seus limites)7

a) Introdução
Este texto tem por objetivo expor b) Antecedentes ao Primeiro Ciclo
a caminhada do MST no tocante a de Formulações do MST
formulação de sua política para a A cooperação agrícola,
organização da cooperação agrícola desenvolvida pelo MST nos anos 80,
nos assentamentos, entre o período de foi fortemente marcada pela orienta-
1989 à 2005, não dando conta ção dos assessores vinculadas à igreja
portanto de uma análise mais católica, constituindo uma coopera-
criteriosa deste tema8. ção com base no princípio de cada
O texto se apóia na seqüência um segundo as suas necessidades,
utilizada pelo autor na exposição com uma distribuição igualitária da
deste tema durante seminário do Setor produção obtida. Estimulava-se
de Produção, em abril de 2006. pequenos grupos de cooperação com
Portanto, a organização dos períodos ações pontuais organizados entorno
ou ciclos que estruturam este texto, de alguma máquina, equipamentos
seguem os critérios do seu autor, não ou unidades de processamento,
sendo necessariamente a cronologia geralmente formalizadas juridica-
utilizada pelo MST. mente em associações. Já existiam
Ao tratar deste tema, o texto neste período algumas experiências
misturará elementos da conjuntura de grupos informais com a terra
política em cada período ou ciclo, coletiva.
juntamente com a política geral do Esta perspectiva de estimular
MST, para uma melhor compreensão pequenos grupos será alterada na
das formulações e orientações medida em que o MST, ao se
políticas da cooperação. organizar na região do Nordeste
Cabe lembrar ainda, que esta brasileiro, em meados dos anos 80,
trajetória certamente teve distintas tomará contato com associações com
repercussões nas diferentes realidades grande número de associados.
do MST, e nem sempre coincidem Outro fator importante para o
com à aplicação destas orientações surgimento de associações com
nas regiões onde a cooperação foi grande número de trabahadores, veio
organizada. a partir de 1986, com a exigência do
repasse dos recursos subsidiados pelo
governo federal, inicialmente conhe-

7
Exposição realizada por Adalberto Martins durante o Seminário sobre a Organização dos Assentamentos e
a Cooperação no MST, em abril de 2006.
8
Para uma análise mais criteriosa desta política veja o Caderno de Cooperação Agrícola n8 – “A evolução da
concepção de cooperação agrícola do MST (1989-1999)”, publicada pela Concrab, em agosto de 1999.

82
cido como “fim social do BNDES”, Será neste ambiente de debate
que marcou o início do PROCERA. político da reforma agrária que se
Era necessário que cada assentamento organizará a principal entidade dos
tivesse a sua Associação para viabili- latifundiários: a UDR. Além de dar os
zar o repasse do crédito. Assim sur- contornos ideológicos a ação dos
gem diversas associações com latifundiários, organizar a reação
finalidade de representação política militar e repressiva aos trabalhadores,
dos assentados frente ao aparelho do a UDR, tratou de financiar e articular
Estado, diferentemente da associações uma expressiva bancada de depu-
anteriormente organizadas para tados federais constituintes buscando
viabilizar ações produtivas. bloquear a reforma agrária no plano
Durante os anos 80, o MST constitucional. Ela afirmava que a
amadureceu sua análise sobre a reforma agrária não teria nenhum
complexidade da reforma agrária em sentido econômico para o desenvol-
um país capitalista marcado por uma vimento brasileiro, sendo aceitável
industrialização retardatária e apenas para correção pontual de
dependente do capital internacional. alguns casos de injustiça social. Deste
Já a esta época o MST compreendia: raciocínio, derivava a idéia de que os
1. o desenvolvimento do capitalismo assentamentos, pelo seu baixo grau
no Brasil se fez sem realizar a de desenvolvimento, não passavam
reforma agrária clássica burguesa; de favelas rurais, sendo irracional
gastar dinheiro público para promo-
2. para a burguesia brasileira não foi ver este tipo de ação social.
e nem era necessário fazer a Será neste ambiente que o MST,
reforma agrária; tratará de discutir o fortalecimento dos
3. neste contexto a reforma agrária só assentamentos, buscando demonstrar
viria como obra dos trabalhadores, para a sociedade brasileira a sua
não podendo esperar pelo Governo viabilidade social e econômica. A
e nem pela burguesia. ênfase aqui, foi justamente ampliar o
Entre os anos de 1986 a 1988, a acesso ao crédito e melhor aplicá-lo,
redemocratização burguesa com o bem como tratar de fortalecer a
fim da ditadura militar, colocará em cooperação agrícola. É neste sentido
curso o processo de formulação de que com a nova constituição de 1988,
uma nova constituição brasileira. bloqueou a possibilidade de interven-
Entre os temas que marcará o debate ção do Incra na Cooperativas, tratou-
na sociedade brasileira e a assembléia se de estimular a conversão dos grupos
constituinte, será justamente o da coletivos e ou associações de terra
reforma agrária. As forças democrá- coletiva em cooperativas de produção
ticas e populares iniciam uma grande coletiva, sobretudo na região sul do
campanha pela “emenda popular da país. É neste ambiente efervescência
reforma agrária” reunindo mais de um política que o MST definirá sua
milhão de assinaturas, sendo entregue orientação política em 1989, expressa
em 1987, em grande ato político em na palavra de ordem “Ocupar, Resistir
defesa da reforma agrária na e Produzir”, bem como elabora seu
explanada dos ministérios em Brasília. Documento Básico, tratando de

83
planificar o seu desenvolvimento no 1989 à 1992 – Organiza-se o Sistema
período de 1989 à 1993. Cooperativista dos Assentados e
O crescente movimento popular, Prioriza-se as CPAs
e a crescente polarização política da Buscando demonstrar para
sociedade brasileira, terá o seu sociedade brasileira a viabilidade
desenlace em 1989, quando da econômica e social dos assentamen-
primeira eleição presidencial no país tos, o MST, acentua sua atenção para
após os 21 anos de regime militar. As a demanda econômica do crédito
forças sociais progressistas, demo- rural, ao ponto de discutir a
cráticas e de esquerda estavam constituição de um Banco Popular
articuladas entorno do projeto político para esta finalidade, ou mesmo uma
democrático e popular expresso pela Cooperativa de Crédito Nacional.
candidatura Lula, que sai derrotado Será nos debates desenvolvidos
pela candidatura Collor. Esta derrota entre 1989 e 1990 e com as visitas
no terreno eleitoral, representou uma realizada à outras experiências
profunda derrota política para as cooperativadas em diversos países,
forças de esquerda no Brasil, que que o MST entenderá que os limites
juntamente com o contexto interna- econômicos dos assentamentos não
cional da queda do bloco socialista se solucionariam com o acesso a um
no leste europeu, levará a um forte volume mais expressivo de crédito. É
refluxo ideológico das organizações com este entendimento que se
dos trabalhadores e dos movimento desenvolve o seminário sobre as
sociais. Este governo eleito, tratou de “Experiências da Cooperação Agríc-
iniciar os ajustes econômicos, ola”, em julho de 1990, definindo-se
revelando que a classe dominante pela criação de um sistema de coope-
brasileira já havia aderido ao modelo ração articulado por cooperativas,
neoliberal de desenvolvimento, denominado Sistema Cooperativista
mesmo sendo sócia menor deste novo dos Assentados (SCA). Neste semi-
ciclo de expansão do capital nário se define um plano de implanta-
financeiro internacional. A repressão ção do SCA em 6 estados. Bem como
aos movimentos sociais também não define-se as seguintes orientações:
tardou por vir e o MST foi um de seus
a) Ter um sistema articulado em 3
alvos, sendo duramente afetado.
níveis: de base, ao nível dos assen-
II) O Primeiro Ciclo de tamentos, através das Cooperativas
Formulações Políticas do MST para de Produção Agropecuária (CPAs),
a Cooperação (1989 à 1996) plenamente coletivas que também
teria como tarefa ajudar o planeja-
Talvez este seja o período de mento da produção dos assentados
maior fecundidade na elaboração individuais; No nível intermediária
política e na aplicação prática da teria a Cooperativa Central dos
cooperação nos assentamentos do Assentados da Reforma Agrária
MST, com um rumo bem definido, (CCAs), buscando envolver todas as
com metas claras, com formação formas de cooperação, tendo
específica definida e com um método também uma função econômica,
de organização elaborado. de coordenação de negócios a nível

84
estadual; No plano superior cooperativas coletivas (CPAs), e isto
teríamos a CONCRAB. ocorreu visto as metas estabelecidas,
b) Passar da produção de subsistência mas também por motivação político
para a produção de mercadorias; ideológica de constituir no campo
c) O SCA, deveria ser de todos os relações sociais de produção superio-
assentados, tendo ao nível estadual res, como embriões de uma sociedade
uma única estrutura organizativa socialista. Mas esta opção pelas CPAs
dos assentados; também levou em conta uma necessi-
dade específica que a luta política
d) Incentivar todas as formas de trazia ao movimento. Visto a forte
cooperação; repressão do Governo Collor ao MST,
e) Buscar ter cooperativas exemplares. as CPAs seria a possibilidade de
O debate nesta época nos manter algum espaço de resistência
indicava: e de retaguarda do movimento, onde
f) a necessidade de definir uma se localizariam os militantes frente a
forma organizativa do setor de forte ofensiva do governo. São estes
produção em vários níveis os fatores que marcam o estímulo às
articulados e um planejamento das CPAs.
ações; Boa parte das CPAs que surgiram
g) evoluir para o desenvolvimento neste período foram constituídas a
econômico mercantil, indo além da partir de um método de capacitação
produção de subsistência; massiva denominado de Laboratórios
Organizacionais de Campo, que
h) cuidado com o economicismo,
eram organizados pelo MST nos
não ficando preso a uma única
assentamentos, com duração média
forma de cooperação;
dee 35 dias, onde as famílias assenta-
i) sinalizar para a sociedade a das vivenciavam uma experiência
importância da reforma agrária, organizativa que ao final gerava as
tendo cooperativas exemplares e cooperativas coletivas.
uma produção de excendentes Com as CPAs no horizonte
mercantis para os trabalhadores nas político organizativo, o setor de
cidades; produção também tratou de organizar
j) avançar nas relações sociais indo uma formação técnica específica para
além do lote individual familiar. o gerenciamento delas. É com este
Ao se definir metas claras, objetivo que nasce o curso Técnico de
materializadas na organização das 3 Administração de Cooperativas (TAC),
CPAs em cada um dos 6 estados, e em junho de 1993, com um método
com elas a constituição das coope- formativo que buscava reproduzir o
rativas centrais, chega-se em 15 de ambiente organizativo e político das
maio de 1992, com a fundação da CPAs, implicando aos educandos a
Concrab, após a realização do constituição de uma cooperativa real
primeiro curso nacional para para a gestão coletiva e uma vivência
dirigentes do SCA. autogestionária do curso.
Este período será marcado
fortemente pela constituição das

85
a) 1994 – Massificar a Cooperação feriria na forma como o assentado
Agrícola organizaria o seu trabalho no lote
Na totalidade dos casos, as CPAs, individual, mas pretenderia orientar
foram constituídas a partir da opção esta produção e lhe dar apoio através
das famílias em aderirem a esta forma de serviços de máquinas, de acesso a
organizativa da produção e da vida insumos agropecuários, de processa-
comunitária. No entanto, o número mento da produção, de comercializa-
de adesões não era orientada pelas ção, como também serviços de
possibilidades reais de geração de assistência técnica e de elaboração de
trabalho e de renda, levando a um projetos.
rápido processo de crise interna nestes Inicia-se assim o impulso as
agrupamentos sociais. Será neste Cooperativas de Prestação de
processo de intensa desistências de Serviços (CPSs), que ganham uma
famílias e rachas internos nas CPAs dimensão regional e se expandem
que em 1994, define-se por realizar rapidamente, não somente pela nova
um novo seminário nacional sobre a orientação política, mas também
cooperação9. No entanto, nos debates influenciada pela facilidade de acesso
preparatórios evidencia-se que os ao crédito para integralização de
problemas da cooperação no MST, capital social em cooperativas (Teto
não se relacionavam diretamente com II do PROCERA), através de projetos
as CPAs, mas sim pelo abandono do de desenvolvimento econômico nas
trabalho político organizativo do regiões onde se situavam estas
conjunto das famílias assentadas. cooperativas.
Logo o centro das discussão deveria O outro debate polêmico neste
passar pela definição de qual seminário se referia à definição
estratégia o MST adotaria: manter estratégica do que queremos com os
uma política de cooperação restrita a assentamentos: queríamos massa
pequenos grupos coletivos ou organizada ou quantidade de terras
massificar a cooperação desenvolven- submetidas ao desejos privados das
do-a com o conjunto das famílias famílias assentadas? Para este tema,
assentadas. o seminário, não definiu uma
A resposta a esta questão viria orientação política específica.
durante o “Seminário Nacional sobre Nele também será definida a
as Perspectivas da Cooperação concepção de cooperação do MST,
Agrícola no MST”10, em dezembro de expressa na seguinte frase: Os
1994, onde definiu-se pela orienta- assentados devem buscar uma
ção para a organização da coopera- cooperação que traga desenvolvi-
ção através da prestação de serviços mento econômico e social, desenvol-
e apoios às produções individuais vendo valores humanistas e socia-
familiares. Esta cooperação não inter- listas. A cooperação que buscamos

9
Para compreender estas sucessivas desistências foi elaborado o documento A crise das cooperativas de
produção, de setembro/94, elaborado por Paulo Ricardo Cerioli e Pedro Ivan Cristhofolli.
10
O documento básico deste seminário foi Perspectivas da cooperação do MST, de Setembro/94, elaborado
por Ademar Bogo.

86
deve estar vinculadas a uma projeto recursos financeiro conquistados e já
estratégico, que vise a mudança da se ensaiava como força social capaz
sociedade. Para isto deve organizar de enfrentar este modelo econômico.
os trabalhadores, preparar e liberar Em julho de 1995, realiza seu III
quadros, ser massiva, de luta e de Congresso Nacional com mais 5.000
resistência ao capitalismo11. delegados, definindo a palavra de
Do ponto de vista da conjuntura ordem Reforma Agrária: uma luta de
política, será neste mesmo período todos, sinalizando que a reforma da
que a burguesia brasileira se unifica estrutura fundiária no país só viria se a
entorno do projeto neoliberal, sociedade brasileira se envolve-se e a
materializado pelo novo governo apoia-se. Aprova-se neste congresso
eleito de Fernando Henrique o Programa Agrário do MST.
Cardoso, consolidando o Plano Real. b) 1996 – Reforçar o Entendimento
Este plano econômico teve por base das Linhas Políticas para a
um forte arrocho salarial sobre a Cooperação
classe trabalhadora e uma intensa
transferencia de renda da agricultura A aplicação das orientações
para os setores exportadores e políticas dos vários seminários foram
industriais, levando a uma profunda gerando contradições internas, sendo
crise no setor agrícola. Além do necessário reafirmar as linhas políticas
desmonte do aparelho do Estado para para a cooperação e esclarecer os
a agricultura, veremos nestes meados impasses que surgiam, tais como:
dos anos 90, a desnacionalização da a) As cooperativas centrais deveria
economia brasileira. representar apenas as cooperativas
Este contexto econômico fez-se filiadas ou deveria representar o
sentir no movimento operário conjunto das famílias assentadas?
brasileiro, reduzindo ainda mais sua Esta tensão expressava também
força político e organizativa. Estava outro problema: afinal quem deve-
em curso uma profunda restruturação ria definir a distribuição dos recur-
produtiva das empresas, buscando se sos do Procera: as CCAs das coope-
ajustar o contexto de abertura total da rativas ou outra instância do MST
economia brasileira. Este refluxos das que representasse o interesse das
lutas operárias é marcada simbolica- maioria das famílias assentadas? Isto
mente com a derrota da greve dos ocorria pois em vários estados quem
petroleiros, logo no início do governo decidia sobre esta distribuição era o
de FHC. O esmagamento e o isola- MST e não o governo e a base
mento político dos petroleiros, foi a assentada questionava a legitimi-
resposta de FHC às forças populares dade das CCAs para fazer isto.
que buscassem lutar contra o modelo b) As cooperativas, sobretudo as
neoliberal em curso. regionais, deveriam ter direção
No entanto, na contra mão deste própria, sem vinculo público com
contexto, o MST, crescia, ampliando o MST ou deveriam estar explicita-
o número de assentamentos e de mente vinculadas ao MST?

11
CONCRAB, Caderno de Cooperação Agrícola n 5– Sistema Cooperativista dos Assentados, 2 ed., 1998.

87
c) O caráter da cooperativa: era II) Segundo Ciclo de Formulações
empresa econômica ou uma (1997 à 2002)
ferramenta de luta? Neste novo ciclo, as formulações
d) Disto derivava a questão sobre a quanto à cooperação agrícola no
gestão da cooperativa: seria uma MST, estarão diluídas dentro de uma
gestão profissionalizada, pautada abordagem focada na construção de
pela eficiência econômica própria um projeto popular para o Brasil.
de empresa inserida no mercado Portanto não tem um sentido tão claro
capitalista ou seria uma gestão do e lógico como no ciclo anterior (as
“rolão”, muito comum nos movi- ações para os assentamentos tornam-
mentos populares de base? se referências gerais, deixando de ser
A formulação para boa parte o foco principal das preocupações do
destas questões será elaborada MST). As razões disto devem ser
durante o “II Seminário sobre as encontradas no contexto político
Perspectivas da Cooperação Agrícola brasileiro e no contexto específico da
no MST” 12, obtendo as seguintes agricultura.
orientações: A avassaladora hegemonia do
e) O SCA é a retaguarda política do modelo neoliberal em nossa socie-
MST e deve ter uma estrutura única; dade, encontrou resistência popular
apenas em um setor social, justamente
f) O SCA deve proporcionar aquele que secularmente fora
militantes e condições econômicas excluído do processos econômico e
para a luta social; sociais brasileiro. Serão os Sem Terra,
g) O nosso cooperativismo deverá ser com suas ocupações e marchas que
Diferente, Alternativo e de irão dizer não a este modelo,
Oposição; expressando o sentimento das frações
h) As cooperativas no capitalismo mais lúcidas dos trabalhadores. Será
devem ser entendidas como uma justamente a questão agrária o único
tema social a incidir na agenda
ferramenta de luta, tendo um duplo
política neoliberal. Esta temática
caráter: de empresa econômica e
de caráter político. ganha força na sociedade, sobretudo
após os massacres as trabalhadores
Também em 1996, em reuniões rurais empreendido pela truculência
e seminário específico se define por dos latifundiários. Os massacres de
criar uma primeira experiência de Corumbiará (dez/95) e de Eldorado de
cooperação no crédito. Surge assim Carajás (abril/96) repercutiram
a primeira cooperativa de crédito, a profundamente nas consciências de
Crehnor, em Sarandi, no Rio Grande nossa sociedade e Marcha para
do Sul. Brasília, em 1997, colocou em che-
que a política fundiária do Governo

12
Para melhor compreensão do conjunto das orientações políticas destes vários seminários, a Concrab,
decidiu reuni-la em uma cartilha. Assim em 1997 publica-se o Caderno de Cooperação Agrícola n5 –
Sistema Cooperativista dos Assentados.

88
FHC. Assim o MST, converteu-se na viabilidade de uma outra forma de
maior organização popular e de organizar a sociedade que desse
massas em luta contra o neoliberalis- conta das soluções dos problemas
mo no Brasil, tornando-se uma básicos do seu povo.
referencia política para a militância Assim, as atividades gerais das
social, obrigando-se a elaborar cooperativas e dos assentamentos
orientações políticas para a constru- eram de ajudar nas tarefas estratégicas
ção de um projeto societário que do MST, compreendidas naquele
apontasse para o acumulo de forças período como a ajuda no avanço das
em vistas da revolução brasileira, lutas de massas; na contribuição da
buscando articular forças sociais organização da base assentada e do
entorno deste projeto. O MST, povo da região; ajuda na elevação da
converte-se em um organização de consciência dos assentados e na
classe e suas tarefas políticas transcen- contribuição com experiências con-
deram as dimensões corporativas da cretas que materializassem o Projeto
reforma agrária e o inimigo deixou de Popular para o Brasil.
ser apenas o Latifúndio, e passou a Quanto a crise interna nos assen-
ser a burguesia e o Estado Burguês, tamentos era interpretada como uma
com seus governos burgueses. O MST, crise geral da agricultura que nos
tornou-se o inimigo número um da afetava e tornava mais difícil a viabili-
burguesia e do imperialismo no Brasil. zação dos assentamentos e a resis-
Por outro lado, a profunda crise tência das famílias assentadas na terra.
em que se encontrava a agricultura b) 1999-2000: o modelo neoliberal
brasileira, resultado das políticas para a questão agrária no Brasil
neoliberais, atinge as cooperativas do Inicia-se o segundo mandato de
MST, materializada pela Crise das FHC, agora com uma política definida
Dívidas do Crédito Rural. Começam para a questão agrária brasileira. Se
a vencer os financiamentos obtidos em seu primeiro mandato o governo
pelas cooperativas e pelos assentados, FHC não sabia como tratar esta
ficando todos inadimplentes. Esta questão, agora, ele definiu uma
situação crítica absorveu o esforço e política, que bloqueava o avanço e
a atenção de muitos militantes do as conquistadas do MST e agradava
setor de produção que priorizaram o os interesses dos latifundiários.
acompanhamento desta crise finan- Tratava-se de implementar a
ceira das cooperativas e dos assentados. Reforma Agrária de Mercado,
a) 1997-1998: a incidência da disputando na sociedade a bandeira
estratégia política nas formulações da reforma agrária do MST. Agora se
sobre a cooperação o Sem Terra precisa-se de terra deveria
As formulações existentes na recorrer ao mercado de terras que
Concrab, nestes dois anos apontavam através do Banco da Terra viabilizaria
para os aspectos gerais do projeto a sua aquisição. Se o assentado
político para o Brasil, de maneiras que necessita-se de crédito deveria buscar
os assentamentos deveriam ensaiar o mercado financeiro, e contrair um
novas relações sociais de produção e financiamento bancário. Se estes
de convivência demonstrando a necessitassem de assistência técnica,

89
deveria recorrer ao mercado de Será neste contexto delicado e
trabalho e contratar os técnicos. complexo da luta política que o MST
Esta política unificou a ação da tomará consciência da tremenda
classe dominante contra o MST. Seja fragilidade organizativa de sua base
o judiciário, o executivo, o legislativo, social nos assentamentos, bem como
seja a Mídia brasileira, seja os partidos despertará para os limites em que
políticos, seja a intelectualidade vaci- chegou o seu modelo de organização
lante, seja organizações não governa- da cooperação. As análise críticas
mentais, seja os latifundiários, todos neste momento foram as mais
aderiram a idéia de uma reforma diversas, mas foi possível consensuar
agrária viabilizada pelo mercado, os seguintes elementos quanto a
pretensamente dentro da ordem, sem fragilidade do modelo implantado13:
conflito e sem violência.
a) De fato o neoliberalismo nos anos
Agora o MST passa a sentir todo
90 afetou de forma negativa e
o peso do aparelho do Estado contra
profunda a reprodução social dos
ele, ao mesmo tempo que a repressão
camponeses. Parte da nossa crise foi
política batia forte nas ações de
resultado deste processo de empo-
resistência de nossa militância. Se por
brecimento do campo brasileiro;
um lado o governo estrangulava o
MST, impedindo conquistas concretas b) Do ponto de vista político-organi-
como a terra, crédito, assistência zativo, a cooperação se institucio-
técnica, com gigantesca campanha nalizou nas cooperativas. Logo um
publicitária nos meios de comunica- modelo organizativo a partir da
ção, por outro disputava a base social empresa econômica. E o mais
do movimento através de programas complicado disto é que delegamos
governamentais, como o Cadastra- para as cooperativas, um agente
mento dos Sem Terra pelos Correios, econômico-corporativo, a tarefa
o Pronaf, os empreendedores sociais política de organização dos
nos assentamentos, etc. assentamentos e de direção da
Neste período qualquer ação assistência técnica;
econômico-reivindicatória, fora c) Do ponto de vista da organização
convertida pelo governo em luta da produção agrícola, percebemos:
política, pois tratava-se de derrotar e 1. adotamos acriticamente um
isolar o MST. Estava evidente que as modelo de agricultura conven-
conquistas econômicas que urgiam cional e produtivista, que já
em sua base, viria de uma luta mais estava em crise;
longa, mais prolongada e massiva. 2. reproduzimos a matriz produtiva
Viria portanto do desenlace da luta dominante, com base na mono-
política de classes no Brasil, o que cultura, na produção de commo-
exigiria da sua base social um amadu- dities para os mercados nacionais
recimento em suas consciências. monopolizados;

13
Esta análise esta expressa no documento Os assentamentos neste novo período da luta pela reforma agrária,
elaborado em abril de 2001, e discutido na Direção Nacional do MST.

90
3. reproduzimos a matriz tecno- f) Do ponto de vista ideológico, o
lógica convencional com base na nosso modelo gerou:
química, genética e mecânica, 1. uma cultura de dependência do
poupadora de mão de obra e Estado;
demandadora de capital; 2. um acomodamento da base,
4. reforçamos o ideário do consu- aguardando sempre a ação
mo de tipo urbano em nossos clientelista do governo;
assentamentos; 3. reforçou o viés economicista em
5. acabamos vendendo a ilusão de nossa base, lutando somente por
que se inserindo no mercado, reivindicações imediatistas e
competitivamente, nos viabili- econômicas, bem como estabe-
zaríamos economicamente; lecendo uma relação oportunista
6. Enfim, não organizamos a produ- com as cooperativas, participan-
ção e nem os assentados, que do dela até o momento que esta
agora, além de pobres, tornaram- lhe trouxesse algum benefício;
se endividados. 4. Levou ao legalismo das nossas
d) Do ponto de vista financeiro o organizações, seja para se rela-
nosso modelo foi baseado no alto cionar com os mercados, seja
subsídio do Estado, alimentando para se relacionar com o Estado.
uma postura paciva e clientelista, Desta severa análise do modelo
gerando uma cultura de não desenvolvido, o MST, concluiu que
pagamento dos empréstimos os assentamentos não representavam
contraídos; de modo geral um acúmulo político
e) Do ponto de vista dos investi- e de força social na luta pela reforma
mentos, construímos uma estrutura agrária e pelo socialismo. Tomamos
centralizada, geralmente grande, consciência que desenvolvemos uma
gerando: reforma agrária possível, num con-
1. distanciamento dos assentados; texto de refluxo da luta de classes no
2. concentração de poder na mãos Brasil, mas uma reforma agrária des-
de alguns dirigentes; qualificada, atrasada e insustentável.
3. elevado endividamento; Contribuem para este amadu-
recimento político interno, reforçando
4. forte necessidade de capital de sua consciência dos desvios internos,
giro; reflexões como a Vez dos valores, a
5. subsidiamos os assentados a Revolução Cultural, a orientação
custa do crédito, mantendo uma sobre o embelezamento dos assen-
relação paternalista com a base; tamentos, e com ela a campanha
6. Enfim, construímos as estruturas Plantando Seremos Milhões, além da
para depois discutir a estratégia formulação dos Dez Compromissos
econômica a ser desenvolvida na com a Vida e com a Terra, divulgada
região. na forma de cartaz. Outra contribui-
ção importante, foram os documentos
de Horácio Martins de Carvalho, que
tratavam da Crise de Identidade dos

91
Camponeses e da Comunidades de as pequenas iniciativas de
Resistência e Superação14. processamento.
No tocante às formulações da Quanto à crise financeira das
Concrab, em vistas deste balanço cooperativas, o MST, seguiu tentando
crítico e do amadurecimento político renegociar as suas dívidas, buscando
deste período, ela tratou de discutir abrir novas linhas de financiamento.
as novas formas de organização dos Internamente as cooperativas tende-
assentamentos, organizando em ram para um saneamento econômico
2000, o “Encontro sobre as Novas buscando desmobilizar parte do
Formas de Assentamento”, gerando a patrimônio adquirido, eliminando
publicação em 2002, da cartilha O serviços aos assentados, reduzindo
que levar em conta na organização seu quadro de funcionários e
dos assentamentos. separando as atividades econômicas
Neste encontro explicita-se as viáveis do restante.
idéias básicas para a retomada do tra-
c) 2001 à 2003: surge o setor de
balho organizativo nos assentamentos,
produção, cooperação e meio
expressa em duas orientações:
ambiente (SPCMA)
a) Mudar as pessoas juntamente com
Com a percepção de sua
o meio: o MST deveria induzir a
fragilidade interna, o MST, tratou de
partir de um novo desenho das
impulsionar um forte processo de
estruturas sociais dos novos
formação política de sua base e
assentamentos, as condições para
militância. Surge, em 2001 o
a mudança na existências das
Programa de Formação com os 500
pessoas, buscando aproximar as
monitores, desembocando mais
moradias, organizando as famílias
adiante na reflexão sobre a nova
em núcleos de base e estimulando
organicidade do MST.
a cooperação produtiva nos
Será neste contexto que se
assentamentos.
reformulará os princípios organi-
b)Buscar um novo padrão de zativos do movimento, buscando
desenvolvimento dos assenta- radicalizá-lo, de maneiras que a
mentos: este novo padrão deveria massa de assentados e acampados,
vir com a diversificação da fossem convertidos em base social do
produção, ampliando e garantindo MST, participando da vida desta
a alimentação básica, substituindo organização. Para isto seria importan-
os insumos químicos por orgâni- te aprofundar os princípios de Direção
cos, sobretudo romper a depen- Coletiva, Distribuição de Tarefas e do
dência das semente híbridas, recu- Centralismo Democrático, buscando
perando as sementes crioulas, envolver um número maior de
buscando se inserir nos mercados
locais, valorizando e auxiliando

14
Ver deste autor os seguintes documentos: A crise de identidade dos pequenos produtores rurais familiares:
possibilidades de superação (setembro/00), Causas estruturais da crise de identidade dos pequenos
produtores rurais familiares (novembro/00) e a cartilha Comunidade de Resistência e de Superação (fevereiro/
02).

92
pessoas nas discussões e decisões promoção de um meio ambiente
tomadas pelo movimento. saudável e uma biotecnologia
Outra decisão importante própria. Para não se ter dúvidas sobre
referiu-se a mudança na lógica da estas tarefas o Setor passaria a se
Representatividade Social dos Diri- chamar, Setor de Produção, Coope-
gentes. Agora cada dirigente deverá ração e Meio Ambiente.
representar um número determinado Para ampliar a sua capacidade
de famílias e não mais uma região. É de ação em nível nacional, ele seria
com esta lógica que surge uma nova organizado em Frentes, as quais
forma de compor a estrutura organi- constituiriam coletivos para a elabora-
zativa do MST, organizando brigadas ção e execução das atividades. Foram
a cada 500 famílias, onde cada organizadas as frentes de meio
militante terá responsabilidade por ambiente e biotecnologia; de
acompanhar 50 famílias organizadas formação e capacitação técnica; de
em 10 núcleos de base. Este processo organização da base social e do setor;
foi denomina-do de nova organici- a frente de cooperação agrícola e
dade e ainda encontra-se em aplica- cooperativas e a frente de assistência
ção em todos os estados onde o MST técnica. Buscava-se com as frentes
esta organizado. dividir tarefas e envolver mais
Esta percepção crítica da pessoas.
realidade também se faz sentir no Do ponto de vista da orientação
desenvolvimento de novos métodos geral a ser seguida neste período, o
de trabalho e de consulta da base. debate junto a direção nacional
Desenvolve-se, em 2002, o Mutirão apontou por priorizar 4 metas: a
“Vamos Ouvir a Nossa Base”, torna- formação político ideológica e
do-se referencia para outras consultas técnica; avançar nas experiências de
de base no MST. novos formatos de assentamentos,
Estes conjunto de ações imple- buscando organizar as famílias
mentadas pelo MST, recolocou os assentadas em núcleos de base;
assentamentos no centro do seu incentivar a cooperação na produção
debate e das suas ações, tornando e motivar as mudanças na matriz
claro que todos os setores do movi- tecnológica, sobretudo a produção de
mento deveriam atuar auxiliando na sementes crioulas15.
organização deles. As decisões da direção nacional
No entanto, caberia ao setor de também apontaram para a realização
produção algumas atividades espe- de um novo encontro nacional para
cíficas, definidas após intenso debate articular as frentes e compreender o
na direção nacional do MST. Assim novo processo organizativo do setor.
este setor teria como tarefa específica Este evento ocorreu no início de 2002,
a organização da produção, o no município de Ibirité/MG.
estimulo a cooperação agrícola e a

15
Para melhor compreensão do novo formato organizativo e as prioridades de trabalho veja o documento
“Subsídios para a DN – sobre a restruturação do setor SCA”, de outubro de 2001.

93
Este período é marcado portanto julho de 2005 (Goiânia), quando se
pelo esforço de reorganização interna debateu a situação dos assentamentos.
do setor e pela novas demandas de O referido documento apresenta
formulações de políticas públicas uma análise política do contexto
para a reforma agrária, advindas com brasileiro e dos assentamentos, e
o início do governo Lula em 2003. busca apontar uma papel para eles
neste período histórico, esclarecendo
IV) Terceiro Ciclo de Formulações
que a estratégia do setor será o de
(2005 até os dias atuais)
construir e consolidar um novo
Com o Governo Lula, as políticas modelo agrícola. Este novo modelo
macroeconômicas neoliberais deverá considerar 4 pilares: a
continuaram, mas no tocante a soberania alimentar; criar novos
questão agrária, elas foram diluídas, valores; construir uma consciência de
mas não eliminadas. No entanto o classe e despertar para a cooperação.
novo governo não avançou com a Para se chegar a isto, o docu-
reforma agrária, optando por valorizar mento sugere dois grupos de ações: a
o agronegócio, visto a importância externa para a sociedade e as ações
estratégica deste na geração de internas nos assentamentos. Estas
superávit. Um governo que acredita ações internas são de duas naturezas:
na possibilidade da convivência sem uma orgânica focando na organiza-
conflitos da agricultura familiar e do ção da participação social e nas novas
agronegócio, no campo brasileiro. formas de organização dos assenta-
Isto gera uma política de favore- mentos e outra de caráter produtivo,
cimento dos interesses do agrone- focando na matriz produtiva e tecno-
gócio, mantendo a agricultura familiar lógica e focando na cooperação.
e a para a reforma agrária no terreno O documento termina apon-
das políticas compensatórias e tando os cuidados com o método de
pontuais, não gerando políticas ação, destacando a importância de se
estruturais que reposicione o pensar e agir como MST dentro dos
campesinato em um plano mais assentamentos e a necessidade de agir
favorável par continuar resistindo e como setor de produção e não como
lutando por uma sociedade socialista. partes fracionadas através das frentes.
Quanto ao setor de produção, Além deste documento, o setor de
neste período, tratou-se de discutir em produção, avaliou neste período que
suas instâncias um novo documento as ações organizadas em frentes, se
que reuni-se as diversas orientações por um lado ampliaram o envolvi-
políticas dispersas nas diversas mento de mais pessoas, levaram no
cartilhas e atualiza-se a compreensão entanto ao fracionamento das
do momento político vivido. Formula- atividades, pulverizando-as, perden-
se assim o documento Elementos para do a noção de conjunto e o
a elaboração de uma estratégia para discernimento do que eram as tarefas
os assentamentos de reforma agrária estratégicas, implicando na quebra da
no atual contexto da luta de classes. unidade interna do setor.
Este documento foi estudado durante Por isto, está se buscando
a coordenação nacional do MST, em construir um planejamento estraté-
gico do setor, superando a ação

94
fracionada das frentes, mas mantendo Diferentemente dos períodos
seus coletivos como forma efetiva da anteriores, agora não será mais
distribuição das tarefas. Espera-se que possível, visto a complexidade
com a definição deste planejamento, organizativa do MST e da luta política
o setor consiga agir mais unitariamen- estabelecida na sociedade, definir
te entorno das suas tarefas estratégicas. uma “receita” ou uma “forma
Desenvolve-se também ativida- padrão”, para a organização dos
des buscando recompor e acompa- assentamentos e para a promoção da
nhar os coletivos estaduais de produ- cooperação agrícola. Muitos de
ção que em muitos estados também nossos militantes esperam das novas
se desorganizaram. formulações esta “receita pronta e
Agora em 2006, será promovido aplicável”. No entanto, agora, preci-
dois grandes seminários, o primeiro saremos nos guiar por fundamentos
já realizado, do qual este texto é um filosóficos e elementos gerais
dos seus resultados, para aprofundar orientativos que nos indiquem o
as elaborações do MST no tocante a caminho, mas não a forma, de cons-
organização dos assentamentos e o truir as novas experiências, exigindo
novo impulso à cooperação agrícola; uma maior discernimento e
o segundo seminário para se discutir compreensão da nossa militância,
a matriz produtiva e tecnológica dos bem como capacidade para estabe-
assentados. lecer um método de trabalho ajustado
Portanto inicia-se um novo ciclo à cada realidade. Isto torna o trabalho
de formulações políticas retomando de base bem mais difícil e exigente.
o foco nos assentamentos e na sua
inserção na luta de classes, abril – 2006
culminando no V Congresso do MST,
previsto para janeiro de 2007.

95
BIBLIOGRAFIA

_ Caderno de Cooperação Agrícola N.° 11 – “ A Constituição e o Desenvolvimento


de Formas Coletivas de Organização e Gestão do Trabalho em Assentamentos de
Reforma Agrária”. São Paulo: CONCRAB, 2004.
_ Caderno de Cooperação Agrícola N.° 5 – “Sistema Cooperativista dos Assentados”.
São Paulo: CONCRAB, 1998.
_ Foladori , Guillermo. Limites do desenvolvimento sustentável. Campinas: Unicamp,
2001.
_ Neto, Jose Paulo Netto e Braz Marcelo. Economia Política: uma introdução crítica.
3ª ed. - São Paulo: Cortez, 2007;

96
97

Você também pode gostar