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Ghassan Kanafani

— anticolonialismo e
alternativa socialista
na Palestina

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“A causa palestina não é uma causa apenas dos
palestinos, mas uma causa para todo revolucionário
e revolucionária, onde quer que esteja, uma causa
das massas exploradas e oprimidas de nossa era.”

Ghassan Kanafani

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FICHA TÉCNICA

Organizador:
Yasser Jamil Fayad

Tradução do árabe:
Khader Othman, Abed El Rahman Ali Mustafa Aref Kardo, Ayman Abdalla
Salem Mady, Jamil Abdalla Fayad, Dauli Baja e Jadallah Safa.

Tradução do inglês:
Yasser Jamil Fayad e Gercyane Mylena Pereira de Oliveira.

Guilherme Rodrigues e Fábio Bosco - No texto gentilmente cedido os


direitos de tradução pela Editora Sundermann: A Revolta de 1936-1939
na Palestina – 2015.

Corretora de língua portuguesa:


Rosa Helena dos Santos

Revisão geral:
Yasser Jamil Fayad e Jamil Abdalla Fayad

Designer gráfico:
André Jaime Lopes

Capa do artista palestino:


Nader Asmar

Produzido pelo Movimento pela Libertação da Palestina - Ghassan


Kanafani.

ISBN: 978-65-00-51290-8

Fayad, Yasser (org.)


Ghassan Kanafani - anticolonialismo e alternativa socialista na Palestina
1. ed. - Florianópolis: Fedayin, 2022.

I. Causa palestina.
II. Socialismo e luta anticolonialista.
III. Literatura palestina.

1ª edição: 2022
Fedayin Editora

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Apresentação
O projeto que o leitor brasileiro tem em mãos é o resultado de uma articulação
entre as esquerdas brasileiras e as palestinas sob o legado anticolonialista, anti-
imperialista, internacionalista e por uma alternativa socialista representados na figura
de Ghassan Kanafani. Um dos nossos esforços como Movimento pela Libertação
da Palestina - Ghassan Kanafani no Brasil foi e, continua sendo, o de aproximar as
esquerdas brasileiras da nobre causa palestina.
Neste ano de 2022, mais precisamente no dia 8 de julho, completam 50 anos do
martírio de Ghassan Kanafani. Este livro tem também como objetivo congregar todas as
dimensões dessa rica figura histórica palestina que foi jornalista, militante, dramaturgo,
pintor, escultor, escritor, intelectual e político. O simbolismo da data, o desejo de “reve-
lar” uma totalidade de Ghassan Kanafani ao Brasil e a necessidade de reforçar nossos
laços de solidariedade com a luta do povo palestino, enquanto campo político brasilei-
ro, produziu esse belo projeto. Nele dezenas de militantes, intelectuais e dirigentes de
importantes organizações políticas de esquerda, na Palestina e no Brasil, contribuíram
de forma decisiva. As páginas que condensam esse esforço conjunto também ocultam
a ajuda de tantos camaradas, que articularam em prol deste livro, e fazemos questão de
registrar nosso profundo agradecimento. Não citamos nomes, pois não podemos fazê-lo
dada a perseguição colonialista aos palestinos se aqui fossem apresentados.
O livro está dividido em duas partes. Na primeira, o leitor terá em mãos textos
em árabe e português, diretamente, produzidos para esse projeto:

Da Palestina:
• Uma compilação de textos de importantes intelectuais e dirigentes das organizações
partidárias da esquerda Palestina, notadamente, a Frente Popular de Libertação
da Palestina (FPLP), Frente Democrática de Libertação da Palestina (FDLP) e o
Partido do Povo Palestino (PPP). Todos expressam a importância e significado
de Ghassan Kanafani e de seu legado para luta de libertação na Palestina.
• Um texto do atual editor-chefe da revista Al Hadaf, fundada e dirigida nos seus
primeiros anos por Ghassan Kanafani, discorre sobre o significado e impacto
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cultural da revista em seus primeiros anos de fundação e o papel crucial que
Ghassan desempenhou nela.
• Um texto produzido por um intelectual e dirigente palestino fora do campo da
esquerda, ligado ao HAMAS - Movimento de Resistência Islâmica, que explicita
a envergadura do intelectual militante palestino Ghassan Kanafani para além da
esquerda, como herói e mártir do povo palestino. A presença desse texto reforça
a unidade dos que realmente lutam pela libertação dentro de uma frente política
unificada, assim como ensina a todos da esquerda brasileira que organização
terrorista é a entidade colonialista de Israel e as suas ações, não quem luta contra
ela, tampouco quem o imperialismo define como tal.

Do Brasil:
• Uma compilação de textos de organizações partidárias, movimentos populares
e sindicais da esquerda brasileira, reforçando seus laços de solidariedade
com o povo palestino em sua luta de libertação. As notas e textos foram
assinados por dirigentes nacionais das seguintes organizações: PT (Partidos
dos Trabalhadores), PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados),
PC do B (Partido Comunista do Brasil), PCB (Partido Comunista Brasileiro),
UP (Unidade Popular pelo Socialismo), MAB (Movimento dos Atingidos por
Barragens), MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e CSP-Conlutas
(Central Sindical e Popular Conlutas). Foram convidados movimentos sociais,
sindicais e outras organizações partidárias, contudo não obtivemos respostas
apropriadas.
• Textos dos apoiadores: Organizações que apoiam a causa palestina e o projeto
desse livro: IBRASPAL e MEMO.
• Textos de intelectuais e escritores brasileiros ligados à nobre causa palestina. São
vozes importantes na defesa da Causa, na análise e divulgação dela no nosso país.
A presença do camarada Jamil Murad nessa seção também é uma homenagem a
sua trajetória de luta em favor da nobre causa palestina no Brasil.
• Textos de literatura política e poesias de combate ligadas a nobre causa palestina
no Brasil. Textos que ligam arte e luta de libertação no Brasil com o claro sentido
de seguir os passos de Ghassan Kanafani.
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Terminando essa primeira parte no livro, o leitor terá em mãos uma série de
cartazes e arte produzidos em homenagem a Ghassan Kanafani, por artistas palestinos
e do mundo inteiro.
A segunda parte do livro traz as contribuições mais próximas de Ghassan Kana-
fani, tendo como sentido geral, aproximar o público brasileiro desse grandioso escritor
e intelectual palestino em suas diversas facetas:
• Temos um relato biográfico feito por sua viúva Anni Kanafani, publicado um ano
após a morte de Ghassan Kanafani. O texto sintetiza uma biografia de ambos,
aspectos da vida familiar e traz à tona os últimos momentos da vida de Ghassan
Kanafani.
• Carta de Anni Kanafani para o esposo após seu assassinato. Trata-se de uma de-
claração de amor ao seu companheiro e camarada.
• Carta de Fayez Ghassan Kanafani, ainda menino, para o Pai. Mostra a relação afe-
tuosa da criança com seu pai, ampliando assim a dimensão humana de Ghassan
Kanafani, aqui apresentada.
• Carta escrita, logo após a sua morte, por George Habash, icônico dirigente da
esquerda palestina, presta solidariedade à família e dá significado ao martírio de
Ghassan Kanafani.
• A carta aberta de Imad Shehadeh, uma demonstração pública de respeito ao mártir
Ghassan Kanafani e uma amostra de como foi e é lembrado.

O conjunto desses textos supracitados nos dão outras dimensões do autor


para além da política como esposo carinhoso, pai atencioso, amigo fraterno etc.
Na sequência, temos uma ampla seleção de escritos analíticos e literários com
forte cunho político do próprio Ghassan Kanafani, traduzidos do árabe ou do inglês
para o português:
• Análise histórica marxista: A Revolta de 1936 – 1939 na Palestina. Texto clás-
sico de análise marxista do principal momento histórico de luta do povo palesti-
no anterior à Nakba. Ghassan expõe o movimento das classes sociais palestinas,
assim como as articulações com forças externas, desnudando os atores, sujeitos,
instrumentais e objetivos.
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• Análise literária: A literatura de resistência palestina: um estudo (fragmento).
Texto em que expõe as diferenças da literatura produzida na Palestina, no perío-
do anterior à Nakba, pós-Nakba e a de resistência que se tornava mais relevante
naquele momento histórico, com especial atenção a produção poética. De certa
forma, seguindo e revelando o movimento político do povo palestino que deixa
de se lamentar (poesia pós-Nakba) para reorganizar a luta (poesia de resistência).
• Romance: Retorno a Haifa. Texto que expõe uma literatura política mais madura,
de Ghassan Kanafani. Os personagens adentram em diálogos que tocam em temas
profundos para os palestinos do pós-Nakba.
• Teatro político: Breve conclusão. Texto que sintetiza a moral militante dando os
elementos que o autor entendia serem necessários aos lutadores da Causa.
• Cartas: A esposa; Visão de Gaza; Visão de Ramallah; Curiosidade de uma
criança ou destino de um homem. No texto “a esposa” conta a história heroica
de resistência de um vilarejo palestino de forma literária; “Visão de Gaza” é uma
carta ficcional que expressa seu desejo de permanecer na Palestina mesmo com
a opção de outra vida, o que de certa maneira sintetiza a posição de parte de
sua geração; em “Visão de Ramallah” lembra a Nakba, a grande catástrofe pla-
nejada contra os palestinos, mesclando memórias e histórias que o ligam ao que
os autores árabes chamam de a “geração da Nakba”; “curiosidade de uma criança
ou destino de um homem” é o momento comovente em que Ghassan reconhece
no filho a passagem da inocência da infância à aspereza da vida adulta palestina
como refugiado.
• Contos: Muros de ferro; A terra das laranjas tristes; amostra de contos da per-
sonagem Umm Sa’ad: A chuva; A guerra acabou; A proteção. “Muros de ferro”
sintetiza uma afirmação profunda que Ghassan repetiria ao longo de seus textos
e análises, só é um palestino vivo aquele que luta para se libertar. “A terra das
laranjas tristes” famoso texto em que o autor utiliza elementos de sua própria ex-
periencia pessoal e familiar para descrever os impactos decorrentes da Nakba no
tecido social palestino. Na amostra de contos da personagem Umm Sa’ad, vemos
como Ghassan reverencia as mães dos campos de refugiados, que sentem orgu-

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lho de verem seus filhos lutarem para libertar a Palestina, ao mesmo tempo que
sofrem pelo medo da morte e das condições miseráveis nos campos. “O jasmim
cresceu, rapazes” se trata da memória da cidade de Akka e da casa da família Ka-
nafani, que o autor traduz uma dor comum a tantos palestinos expulsos de suas
casas, vilas, cidades e pátria.
• Entrevista: Entrevistado por Richard Carleton. Nessa icônica entrevista, fa-
cilmente acessível em plataformas de vídeos, Ghassan deixa clara a intransigên-
cia revolucionária que marcou sua postura como porta-voz oficial e dirigente da
FPLP.

Para ajudar o leitor a organizar uma linha temporal temos dados e nota biográfi-
cas, bibliografia simplificada e fotos de Ghassan Kanafani:
• Dados e breve nota biográfica de Ghassan Kanafani
• Bibliografia de Ghassan Kanafani
• Fotos de Ghassan Kanafani e família.

Seleção de produção de outras obras artísticas, como forma de enriquecer a rela-


ção entre arte e luta, que tanto caracterizou a contribuição de Ghassan Kanafani:
• Cartazes de Ghassan Kanafani
• Pinturas de Ghassan Kanafani
• Escultura de Ghassan Kanafani

O livro ainda traz fotos, pinturas, frases, poesias... como elementos necessá-
rios à iniciativa revolucionária. Todo o projeto político revolucionário também é um
projeto cultural. Os aspectos de luta cultural e de identidade do povo palestino estão
presentes nessa obra.
Não poderíamos deixar de agradecer profundamente ao professor e amigo Emir
Sader, importante intelectual da esquerda brasileira e latino-americana, por sua con-
tribuição ao livro e defesa sempre intransigente da nobre causa palestina. Também nos
honra, imensamente, a introdução dessa obra ser feita por nada mais nada menos do
que Leila Khaled, militante histórica e icônica da esquerda palestina e árabe, engrande-

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cendo muito esse projeto, que carrega as marcas do legado de Ghassan Kanafani e, por
isso mesmo, cumpre determinadas exigências que gostaríamos de explicitar:
a) Aglutinadora: Ghassan sempre foi uma figura política que aglutinou em torno
de si intelectuais, artistas e militantes em defesa da causa palestina. Esse livro também
pretende ser aglutinador dos defensores da nobre causa palestina no Brasil, dadas as
óbvias limitações de um livro, como a de não poder contemplar todos, optamos por
deixá-lo mais representativo possível do campo da esquerda. Não é, portanto, um livro
de uma corrente, grupo, fração ou partido. É uma iniciativa que não precisa e não nega
os outros, diante da necessária grandeza que essa nobre Causa carrega.
b) Conscientizadora: Todo esforço para clarificar o significado profundo da luta
do povo palestino foi uma marca de Ghassan Kanafani. O livro também tem esse pro-
pósito, além de ser um marco na reafirmação de solidariedade com a luta Palestina por
parte do campo da esquerda brasileira, também que ser fonte de conscientização para
todos os seus leitores sobre a justeza e dignidade dessa Causa. Desta forma abastece a
todos com elementos históricos e análises desse rico processo de libertação.
c) Multiplicador: Uma das características mais relevantes de Ghassan Kanafani é
multiplicar apoiadores e lutadores da nobre causa palestina. Como jornalista a primazia
da linguagem que se comunica com o outro, que se interessa em explicar a mais aguda
análise de forma a ser compreendido; como escritor, suas obras queriam sempre tocar e
convencer seus leitores da importância da luta e da justeza da Causa. Esse livro também
pretende diálogar como os eleitores nessa mesma direção - multiplicar a militância
política em favor da nobre causa palestina no Brasil.
d) Articulador: O livro também se inspira em Ghassan Kanafani ao preten-
der articular sua existência com outros momentos e movimentos em defesa da nobre
causa palestina no Brasil. Todo o exercício de diálogo entre os grupos políticos, a
construção de espaços de lançamento do livro e debate, a utilização do mesmo como
formação política,... são alguns dos desdobramentos necessários para que o livro não
se encerre em si.
e) Reflexiva: Essa iniciativa e os desdobramentos dela têm de ser necessariamen-
te reavaliadas no sentido de melhoramento político, de buscar maior eficácia das nossas

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ações. Qualquer revolucionário deve ter essa capacidade de corrigir seus erros tendo
como horizonte o aperfeiçoamento da luta. A evolução histórica de Ghassan Kanafani
demonstra isso também.
f) Ligação entre arte e política: É uma das marcas mais importantes de Ghassan
Kanafani, talvez o campo em que mais contribuiu para com a nobre causa palestina. Ele
imprimiu em todo o movimento de libertação da Palestina, em especial para a esquerda
Palestina, a ideia de que a arte era essencial para a construção de uma identidade de
luta do povo palestino. Esse livro é composto por cartazes, poesias, caligrafias, fotos,
pinturas, bordados, cerâmicas... que remetem à cultura Palestina, sua resistência à colo-
nização e a positiva autoestima de um povo milenar inabalável na certeza de sua vitória
e justeza de sua causa.
g) Socialismo: É necessário pensar uma alternativa para Palestina, que seja capaz
de criar paz, justiça, dignidade, solidariedade, equidade social,... o socialismo é a melhor
síntese que representa isso, além de ser a antítese perfeita da colônia monstro Israel. Ghas-
san Kanafani sempre compreendeu a alternativa socialista como a mais adequada para re-
solução saudável da questão Palestina e mais, a viu como parte integrante de um processo
maior do mundo árabe e além. Superar o sistema capitalista inventor, promotor e aprofun-
dador do colonialismo e de outros tantos desastres sociais, ambientais, econômicos é uma
questão que o livro também traz em seu centro sem tergiversar.
h) Internacionalismo: A nossa luta converge contra o sistema capitalista e nesse
sentido nos solidarizamos uns com os outros, independentemente de nossas origens
culturais, idiomas, etc. Esse é um livro essencialmente internacionalista, unindo tradi-
ções brasileiras e palestinas no que temos de melhor. Ghassan era um ardoroso defensor
do internacionalismo proletário.
A escolha do “anticolonialismo” é para reforçar essa concepção essencial do
melhor da produção histórica da esquerda mundial. Isso não exclui o que de impor-
tante se produziu e produz, contemporaneamente, como pensamento decolonial ou
descolonial. Para as forças revolucionárias socialistas o anticolonialismo nunca foi
um fim em si mesmo.
O livro também carrega uma das marcas da cultura árabe palestina, da qual
Ghassan Kanafani tanto se orgulhava: a generosidade. Um projeto como esse tem de ser

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generoso com as forças políticas que o integram e com os seus leitores. Generosidade
que se inscreve também no fato desse livro, não ter fins lucrativos, não se interessar por
direitos autorais, seu papel é ajudar a luta Palestina no Brasil, por isso a reprodução e a
fotocópia são liberadas em favor da nobre causa palestina.

Desejamos a todos os leitores –


boas lutas pela nobre causa palestina e pelo socialismo.

Yasser Jamil Fayad


Jamil Abdalla Fayad
Khader Othman
Jadallah Safa
Dauli Baja
Ayman Abdalla Salem Mady
Abed El Rahman Ali Mustafa Aref Kardo

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Sumário

Apresentação...................................................................................................... 4
Introdução por Leila Khaled........................................................................... 16

PARTE 1

Poema:
Espírito dos livres....................................................................................... 22

As esquerdas palestinas e o legado de Ghassan Kanafani


Al Kanafanyia
por Marwan Abdel Aal da Frente Popular de Libertação
da Palestina (FPLP)................................................................................... 28
Ghassan Kanafani, a dualidade do criativo revolucionario
por Ismael Abu Hashhash da Frente Democrática de Libertação
da Palestina (FDLP)................................................................................... 52
Ghassan Kanafani: um ser humano e uma causa
por Fahmi Shaheen do Partido do Povo Palestino (PPP)........................... 56
Revista Al Hadaf: A Marcha Contínua
por Wissam Faqaawi da Revista Al Hadaf................................................ 61

Ghassan Kanafani – para além da esquerda na Palestina


Ghassan Kanafani do ponto de vista do HAMAS
por Salah Al Bardawil do Movimento de Resistência
Islâmica (HAMAS)..................................................................................... 75

As esquerdas brasileiras e a nobre causa palestina


Ghassan Kanafani, a FPLP e a Revolução Palestina
Nota da Unidade Popular pelo Socialismo(UP)......................................... 84
Em memória de Ghassan Kanafani
Nota do Partido Comunista Brasileiro (PCB)............................................ 87
“Corrigir a marcha da história”: da resistência popular palestina à luta
de todos os povos oprimidos contra o imperialismo
Nota do Partido Comunista do Brasil (PC do B)....................................... 89
Ghassan Kanafani: a palavra como arma para a libertação da Palestina
Nota do Partido dos Trabalhadores (PT)................................................... 93
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Nossa Homenagem ao revolucionário socialista Ghassan Kanafani
Nota do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU)............. 96
Ao povo palestino
Nota do Movimento dos(as) Atingidos(as) por Barragens (MAB)............ 99
Ghassan Kanafani e o MST
Nota do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)...................... 100
A classe trabalhadora e a questão palestina
Nota da Central Sindical e Popular (CSP-CONLUTAS)........................... 104

Notas de apoiadores desse projeto


Martírio de Ghassan Kanafani é lembrar que a luta não pode parar
até a vitória final
por Ahmed Shehada e Sayid Marcos Tenório – IBRASPAL..................... 110
O caminho de volta à terra dos laranjais
por Rita Freire e Ahmad Alzoubi – MEMO............................................. 111

Intelectuais e escritores brasileiros e a nobre causa palestina


A heróica luta do povo palestino para a conquista de
seu estado soberano
por Jamil Murad....................................................................................... 117
Resistência palestina expõe as veias abertas da academia
por José Arbex Jr....................................................................................... 120
Ghassan Kanafani, o mártir palestino que uniu literatura e
revolução, a caneta e o fuzil
por Sayid Marcos Tenório........................................................................ 133
Dos tristes laranjais, o desabrochar de um revolucionário
por Soraya Misleh................................................................................... 143
Ghassan Kanafani e a FPLP: as vozes mais coerentes do movimento de
libertação nacional palestino
por Marcelo Buzetto................................................................................. 151
Uma experiência de solidariedade com a causa palestina em SP
por Lejeune Mirhan.................................................................................. 161

Literatura e poesia de combate pela nobre causa


palestina no Brasil
Carta para Ghassan Kanafani
por Yasser Jamil Fayad............................................................................. 177

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Poemas:
A chave.......................................................................................................194
O verbo.......................................................................................................197
O escritor de Akka......................................................................................200

Cartazes em homenagem a Ghassan Kanafani.......................... 203

PARTE 2

Lembranças sobre Ghassan Kanafani


Ghassan Kanafani
por Anni Kanafani................................................................................... 231
Para Ghassan - meu marido e professor
por Anni Kanafani................................................................................... 249
Ao meu pai, Ghassan Kanafani
por Fayez Ghassan Kanafani.................................................................... 253
Carta para Anni
de George Habash..................................................................................... 257
Carta aberta
de Imad Shehadeh.................................................................................... 261

Ghassan Kanafani – seleção de escritos políticos e literários


Análise histórica marxista:
A Revolta de 1936-1939 na Palestina...................................................... 267
Análise literária:
A literatura de resistência palestina: um estudo (fragmento).................. 333
Romance:
Retorno a Haifa........................................................................................ 341
Teatro político:
Breve Conclusão....................................................................................... 384
Cartas:
A Esposa................................................................................................... 395
Visão de Gaza........................................................................................... 404
Visão de Ramallah................................................................................... 409
Curiosidade de uma criança ou o destino de um homem?...................... 413
Contos:
Muros de Ferro......................................................................................... 418
A terra das laranjas tristes....................................................................... 424
14
O jasmin cresceu, rapazes......................................................................... 430
Amostra de contos da personagem Umm Sa’ad
A chuva, o homem e a lama..................................................................... 434
A guerra acabou....................................................................................... 437
A proteção................................................................................................. 443
Entrevista:
de Ghassan Kanafani ao jornalista Richard Carleton............................ 448

Dados e breve nota biográfica de Ghassan Kanafani................ 454

Bibliografia de Ghassan Kanafani................................................. 461

Fotos de Ghassan Kanafani.......................................................467

Cartazes de Ghassan Kanafani.................................................472

Pinturas de Ghassan Kanafani...................................................... 483

Escultura de Ghassan Kanafani..................................................... 493

Poema:
Razão de viver................................................................................................ 497

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Introdução ao livro Ghassan Kanafani
– anticolonialismo e alternativa
socialista na Palestina.

Escrever sobre Ghassan Kanafani é doloroso e triste, mas é incrível, porque não
importa o quanto tentemos as palavras ficam aquém de descrevê-lo.
Os romances ou obras políticas de Ghassan Kanafani são adequadas para todos
os tempos e para todas as gerações. Se quisermos resumir o personagem Ghassan, o
mínimo que se pode dizer é que é um personagem épico da história palestina, que escre-
veu para a Palestina e sobre a Palestina. Ele mesmo afirmou de forma eloquente: “Com
sangue, escrevemos a Palestina”.
Os artigos de Ghassan, desde o início de seu mandato, na imprensa, têm sido
sobre a Palestina e todos os eventos estão relacionados a ela. Quanto aos seus roman-
ces, são criativos para além da criatividade e se debruçam sobre a Nakba e suas re-
percussões. Sua obra-prima “Homens ao Sol” é a chave para entender o efeito claro
da migração de refugiados palestinos que continua sem parar. O tema é a migração
para os países do petróleo, qualquer país do Golfo. Em meio a essa tentativa, surge
o oportunista “Abu Al Khayzaran”, que aproveita da necessidade dessas pessoas para
transferi-las ao exílio em direção à fonte de sustento (“petróleo”), não se importando
com o que lhes acontecesse posteriormente.
A maioria dos romances de Ghassan deixa o leitor com uma pergunta, e o leitor
deve dar a resposta, “Bata no tanque”, que ressoa sempre quando “as circunstâncias se
tornam mais difíceis”. É assim que a genialidade de Ghassan se reflete em sua herança
literária. Desde seu martírio (seu assassinato), alguns dos romances de Ghassan Ka-
nafani foram transformados em filmes e se espalharam globalmente depois de serem
traduzidos para muitas línguas. O mais importante, tornaram-se parte dos cursos li-
terários em muitas universidades, não apenas em nível local, mas também em nível
regional e internacional.
Mulheres: A mulher ocupou um amplo espaço na literatura de Ghassan. O ro-
mance “Mulheres de Ameixa” foi inspirado na história da amiga Wedad Qamri que con-
seguiu escapar das garras da ocupação, quando saiu de Al Quds. O trabalho não foi
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concluído, porque Ghassan foi martirizado há apenas dois dias antes da publicação e a
companheira Wedad deixou a vida depois de cair doente após uma trajetória cheia de lu-
tas. O romance “Umm Sa’ad” também testemunha o interesse de Ghassan Kanafani pelas
mulheres palestinas e seu papel na luta. “Uma tenda para uma tenda que separa” - é o
ditado de Ghassan na boca da protagonista do romance, “Umm Sa’ad”. O leitor descobri-
rá as implicações deste dito.
A Criança: A literatura de Ghassan também tratou do tema das crianças e suas
peças, sendo a mais importante “A Lanterna” e, neste campo, podemos concluir que os
romances de Ghassan descrevem sobre todas as gerações e todas as classes sociais.
Revolução: Seu livro sobre a revolução de 1936-1939, na Palestina, é uma das
melhores análises desse episódio histórico que foi liderado por um curto período pelo
Sheikh Izz Al Din Al Qassam, nela Ghassan esclarece os principais erros que os líderes
daquela fase cometeram.
Um texto não é suficiente para falar sobre Ghassan Kanafani, o jornalista, o escri-
tor, o romancista, o político, pois suas obras e visão revelam um jornalista com robusta
formação intelectual de esquerda. Não vamos esquecer que Ghassan Kanafani também
foi pintor e o conteúdo de suas pinturas simbólicas é sobre a Palestina e a revolução.

Conclusão

Tive a honra de escrever sobre Ghassan Kanafani e aconselho os leitores a volta-


rem aos seus romances e textos, nos quais se manifesta a extraordinária genialidade de
um ser humano cuja causa carregava em seus próprios olhos.
Após seu assassinato, Golda Meir disse: “Um batalhão armado foi liquidado”.
Os inimigos temem o pensamento, a palavra, assim como a arma.
Somos guiados pela esperança, e eles pelo medo e ódio.

Leila Khaled –
militante histórica e icônica da luta pela libertação da Palestina,
da esquerda revolucionária e da Frente Popular de
Libertação da Palestina (FPLP).

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‫ليىل خالد تكتب‬
‫مقدمة لكتاب عن غسان كنفاين‬
‫الكتابة عن غسان كنفاين مؤملة وموجعة لكنها مذهلة إذ مهام حاولنا فالكلامت عصية‬
‫‪.‬عن وصف غسان كنفاين‬
‫‪.‬أعامل غسان كنفاين الروائية أو السياسية تصلح لكل األزمان ولكل األجيال‬
‫فإذا أردنا وصف شخصية غسان فأقل ما يقال إنه ملحمة تاريخية فلسطينية‪ ،‬هو كتب‬
‫‪.‬لفلسطني وعن فلسطني‪ .‬ولخص ذلك بقوله "بالدم نكتب فلسطني" إنه أبلغ وصف‬
‫مقاالت غسان منذ بدء عهده بالصحافة كانت حول فلسطني‪ ،‬وكل حدث متعلق بفلسطني‪،‬‬
‫أما رواياته فهي إبداع ما بعده إبداع‪ .‬هي عن النكبة الفلسطينية وتداعياتها‪ .‬وما رائعته‬
‫"رجال يف الشمس" إال مفتاح لفهم نتاج واضح لهجرة الالجئ الفلسطيني املستمرة‪ .‬واألهم‬
‫‪.‬هو الهجرة نحو بالد النفط‪ .‬أي دول الخليج‬
‫ويف غامر هذه الهجرة يربز االنتهازي "أبو الخيزران" الذي استغل حاجة هؤالء لنقلهم من‬
‫‪.‬منفاهم إىل مصدر الرزق "النفط" غري آبه مبا سيحدث لهم فيام بعد‬
‫"وهنا يربز السؤال لكل قارئ لهذه الرواية "ملاذا مل يطرقوا باب الخزان؟‬
‫معظم روايات غسان ترتك للقارئ سؤاالً‪ ،‬وعىل القارئ أن يعطي الجواب "اطرقوا الخزان"‬
‫‪.‬يرتدد صداها كلام اشتد "الظرف صعوبة‪ ".‬هكذا تتجىل عبقرية غسان يف تراثه األديب‬
‫ومنذ استشهاده (اغتياله) تحولت بعض روايات غسان كنفاين إىل أفالم‪ ،‬كام أنها انترشت‬
‫عامليا بعد ترجمتها للعديد من اللغات‪ .‬واألهم أنها أصبحت جزءا من مساقات أدبية يف‬
‫‪.‬العديد من الجامعات ال عىل املستوى املحيل‪ ،‬بل عىل املستوى اإلقليمي والدويل‬
‫املرأة‪ :‬أخذت املرأة يف أدب غسان حيزا واسعا – رواية "برقوق نساء" مستوحاة من قصة‬
‫الرفيقة وداد قمري التي متكنت من اإلفالت من قبضة االحتالل عندما غادرت القدس –‬
‫ومل تستكمل الرواية ألن غسان استشهد [فقط قبل يومني غادرت الرفيقة وداد الحياة بعدما‬
‫أقعدها املرض بعد حياة حافلة بالنضال] كام أن رواية "أم سعد" تشهد عىل اهتامم غسان‬
‫‪.‬كنفاين باملرأة الفلسطينية ودورها بالنضال‬
‫خيمة عن خيمة بتفرق" هذه مقولة غسان عىل لسان بطلة الرواية "أم سعد" وهي رواية"‬
‫‪.‬حقيقية من خالل سرية حياة أم سعد‬
‫‪.‬سيتكشف القارئ مدلوالت هذه املقولة‬
‫الطفل‪ :‬أدب غسان تناول موضوع األطفال أيضا ومرسحياته‪ ،‬وأهمها "القنديل الصغري"‬
‫‪18‬‬
‫‪.‬وبهذا املجال تختم روايات غسان الذي كتب عن كل األجيال ولكل الطبقات يف املجتمع‬
‫إن كتابه عن ثورة ‪ ١٩٣٦‬يف فلسطني من أرقى التحليالت لتلك الثورة التي قادها لفرتة قصرية الشيخ‬
‫وبي غسان األخطاء الكبرية التي وقعت به قيادات تلك املرحلة‬
‫‪.‬عز الدين القسام‪ّ ،‬‬
‫ال تكفي مقالة واحدة للحديث عن غسان كنفاين الصحفي واألديب والروايئ والسيايس‪ ،‬إذ إن مقاالته‬
‫‪.‬السياسية ومبراجعة لها تفصح عن صحايف ذي خلفية فكرية يسارية‬
‫‪.‬ال ننىس أن غسان كنفاين كان رساما أيضا‪ ،‬ومضمون لوحاته الرمزية هي عن فلسطني والثورة‬
‫إنني وقد ترشفت بالكتابة عن غسان كنفاين‪ ،‬أنصح القراء بالعودة إىل رواياته‪ ،‬ففيها تتجىل عبقرية‬
‫‪.‬فذة إلنسان هو القضية بعينها‬
‫"إذ بعد اغتياله قالت غولدمائري‪" :‬تم تصفية كتيبة مسلحة‬
‫‪.‬األعداء يخافون الفكر‪ ،‬الكلمة‪ ،‬كام يخافون السالح‬
‫نحن محكومون باألمل وهم محكومون بالخوف‬

‫– ‪Leila Khaled‬‬
‫‪militante histórica e icônica da luta pela libertação da Palestina,‬‬
‫‪da esquerda revolucionária e da Frente Popular de‬‬
‫‪Libertação da Palestina (FPLP).‬‬

‫‪19‬‬
20
Parte 1
21
Espírito dos livres

22
Quero morrer
na minha terra natal.

No solo
de meus antepassados.

Quero ser enterrado


como vivi,
em pé,
de cabeça erguida,

pois nunca
me curvei ao invasor.

Quero ser
enterrado junto
aos rebeldes,
guerrilheiros,
aos que sempre lutaram,

pois ali
o solo é sagrado.

23
Quero que na lápide
do meu túmulo
esteja escrito:

“Aqui jaz
um verdadeiro palestino,
nunca
abandonou a luta
e deixou
como sua maior herança
o espírito dos livres”.

Yasser Jamil Fayad

24
As esquerdas
palestinas
e o legado
de Ghassan
Kanafani

25
Artista: Ismail Shammout
26
“Descobrimos, primeiro e sempre, que no fundo
de sua consciência, ele compreendia que a cultura
é uma das várias origens da política e que não há
projeto político sem projeto cultural.”

Mahmoud Darwish sobre Ghassan Kanafani

27
Al Kanafaniya

Meio século depois de sua partida e a pergunta não se apagou, “ele


bate nas paredes do tanque”, herdamos a pergunta, então somos a geração
da pergunta, nascemos e vivemos com ela, a pergunta digna da extensão de
sua ausência, adiada e decorrente de uma série de sucessivas decepções e
fracassos... será que alcançaremos sua profecia? Seremos a geração futura, da
revolução e das equações corretas? Será que perceberemos nossa responsa-
bilidade histórica pelo passado e também pelo futuro? Tudo para evitar que
nosso inimigo assassine nossa vontade nos convencendo da “inevitabilidade
da derrota”, como alternativa à cultura, da “inevitabilidade da vitória”!
Quem quiser aprender sobre a lei da gravidade deve ler Newton e
quem quiser aprender lições sobre o patriotismo deve ler Ghassan Kanafani.

Documento de nascimento

A verdadeira lealdade é completar o caminho de Ghassan e não trans-


formá-lo em clichês e fotocópias, em rituais anuais em sua memória repe-
tindo textos, ditos e frases... e basta! Restaurar Al Kanafaniya significa fazer
da memória de seu martírio um documento de seu nascimento e registro de
sua imortalidade no ponto de intersecção individual, coletiva, cultural e po-
lítica. Como disse o poeta palestino Mahmoud Darwish a lembrar Kanafani:
“Descobrimos, primeiro e sempre, que no fundo de sua consciência, ele tinha
convicção de que a cultura é uma de várias origens da política, e que não há
projeto político sem projeto cultural”.
Por que Ghassan é um modelo “incompleto”? Ele estava escrevendo,
lutando, desenhando e editando uma revista enquanto estava em uma
situação de exceção, um palestino perseguido pelos lugares e tempos. Existem
até mesmo romances, obras, estudos, projetos de recomendações e sugestões
28
escritos por Ghassan que nunca foram concluídos! São ideias inacabadas
como se estivessem em estado de exceção... frases que formulava como se
terminassem com uma vírgula e não com um ponto que sinaliza o fim da
sentença! E mais do que isso, a própria vida de Ghassan não está completa!
Os inimigos não quiseram que fosse concluída, então o mataram aos 36
anos de idade. Mesmo assim, conseguiu estabelecer certos elementos não
chegando a completá-los, isso desde os primeiros estágios de cristalização
da estratégia do conflito, com o nascimento do Movimento Nacional de
Libertação Palestino, que ele considerava a incubadora coletiva desse projeto.
Em cada lembrança de sua ausência e de sua vida fugaz, procuramos
por ele e nele, com suas dimensões e origens, em seu pensamento e sonho,
para descobrir cada vez mais que nossa perda cresce e nossa tristeza se ex-
pande. Existe uma história inacabada, uma história que se acrescenta e uma
pergunta que inflama. A primeira-ministra israelense Golda Meir comentou
sobre seu assassinato, dizendo: “Hoje nos livramos de uma brigada ideológi-
ca armada, porque Ghassan, com sua caneta, representava mais perigo para
Israel do que mil guerrilheiros armados”.

Inteligência imparcial

Dizemos que é um símbolo da “inteligência” revolucionária os pensa-


dores que praticam sua ação cultural a partir de uma perspectiva crítica das
condições sociais e políticas existentes. Al Kanafaniya nos ensina que a polí-
tica é esvaziada de seu conteúdo e valor quando é deixada, exclusivamente,
nas mãos dos políticos e o intelectual se ausenta dela, em sua forma orgânica,
como um observador social que reflete a presença de alertas e dilemas de
consciência. É um erro fazer da política monopólio para um alguns que gos-
tam de brincar com o tempo coletivo e adaptá-lo, ao tamanho, de seu tem-
po individual. Quanto aos intelectuais revolucionários, esses esculpem seu
29
tempo individual de acordo com o tempo coletivo. Sua tarefa é analisar sem
interferência direta, o que exige imparcialidade em sua obra intelectual ou
mesmo literária, o que define os limites entre ser uma intelectualidade neutra
e uma intelectualidade desafiadora. Como mostra Milan Kundera, o papel
do romance é criticar os sistemas vigentes, e não copiar, mas derrubar o que
é natural e ser uma porta de entrada para superar os preconceitos. Escrever
um romance é ter um espaço de criação de personagens e isso não pode ser
feito pelo romancista ideólogo, no sentido de que consome ideologia, mas
sim produto dela que pode intervir no texto de forma criativa. Para que o
romance não se torne um mero discurso ideológico, é necessário assim um
discurso político e social profundo e denso. Quem conheceu Kanafani de perto
sabe o quão rebelde era contra o sectarismo esquerdista e a infância que gover-
navam o comportamento de alguns líderes, intelectualmente desqualificados,
que se escondem atrás de slogans ressonantes, extremismo e pedantismo. Ele
também tinha um espírito de abertura para os outros e estava pronto para o
diálogo, interação e doação. Ideologia baseada em um pensamento que não
rompe com a realidade.

Inteligência unida

A “cultura Kanafani” está na formação da consciência dos grupos e


gerações subsequentes, pois ainda somos alunos em suas mãos. Ela entrou na
linguagem política a partir de seu recurso literário, estudos, pesquisas, arti-
gos, textos, contos, vocabulário e símbolos, os quais tiveram a marca de sua
personalidade e criatividade. Ghassan agiu com sua intelectualidade crítica
e expressou, com brilho, a verdade palestina e falou em nome do direito do
povo palestino, como uma realidade antes de ser ideológico. O intelectual
que vira as costas para a sociedade não é digno de ser chamado de intelectual
verdadeiro e, portanto, o “intelectual” é aquele que não aceita ser testemu-
nha do acontecimento, mas sim um sujeito positivo, ativo, experimentado em
30
questões, acontecimentos, consciência, influência e que transforma seu valor
artístico independentemente de ser lutador, em uma literatura que reflete o
valor da luta, da vida consciente e prática. Quanto mais absorvi o que Ghas-
san escreveu e buscava em seus textos as ferramentas cognitivas, artísticas e
criativas, descobri o quanto ele era um lutador e, até o porquê se tornou um
mártir. Ele foi capaz de fazer desaparecer o material ideológico por trás do
sabor artístico, do texto interessante e das notícias atraentes, assim como as
vitaminas desaparecem em um delicioso suco de laranja.
Não é o tipo de intelectualidade que vive em um mundo feito por si
mesmo, que não se cruza com a realidade, exceto raramente, mas sim, aquela
que vive em um mundo feito por nossos sonhos se esforçando para reali-
zá-los na vida real. Ele diferencia entre ideologia fechada e ideologia como
uma visão abrangente da vida, crenças, experiências humanas e construção
de sociedades. A Al Kanafaniya redefine esse conceito novamente, não o res-
tringindo às pessoas educadas que obtiveram o ensino superior e se espe-
cializaram em ciências, pelo contrário, os certificados científicos abstratos
não podem necessariamente tornar o titular educado, por mais que o façam
sofrer com a “doença do aprendizado”, como Malik Bin Nabi a chamou, mas
inclui aqueles que se engajam em práticas culturais e sociais críticas, como
vanguarda política, força progressista e libertadora.

Inferno da verdade

Na batalha da narrativa, Ghassan buscou elementos artísticos


elevados que iluminassem os caminhos de gerações de romancistas e
escritores palestinos. No início dos anos sessenta do século passado,
um grande segmento das elites culturais árabes, com uma orientação
geralmente nacionalista, envolveu-se, subitamente, na descoberta da
filosofia existencialista francesa e da ideia do absurdo, representada pelas
traduções árabes de Jean-Paul Sartre e Albert Camus em termos filosóficos,
31
romancistas e teatrais. No polo oposto, os intelectuais marxistas continuaram
a exigir uma “literatura comprometida” com as questões sociais e a libertação
humana, pregaram a escola realista e o “realismo socialista”, como nos
romances de Maxim Gorky e Mikhail Sholokhov. Seu romance “Homens ao
Sol”, publicado em 1963, constituiu um divisor de águas na literatura palestina,
um salto qualitativo na forma e no conteúdo: o romance do exílio, a questão
do retorno, do “inferno da verdade” à “bem-aventurança da ilusão”. A porta
de entrada para o céu, na Palestina e, não, no exílio ou deserto árido? Voltar
para a Palestina é o paraíso? Os personagens oportunistas desse romance
perguntam: Para onde você está fugindo? Ele disse: É uma longa história.
Esta foi a resposta dos mais conscientes deles. O outro disse: “Primeiro vem
o tubarão, depois a moral”. O pai egoísta e o adolescente que busca uma nova
vida, portanto, não esperamos que eles batam nas paredes do tanque, pois são
personagens submissos e derrotados por dentro! Para falarmos sobre a fase
anterior a “Homens ao Sol” e seus desdobramentos dentro do cenário geral
da literatura palestina e árabe temos de entender que esse romance combina,
com grande habilidade, a preocupação nacional, existencial e a preocupação
sociopolítica de um seleto grupo representativo de palestinos “reais”, sem
molduras e desprovidos de todas as abstrações elegíacas, trágicas, românticas
e melodramáticas.

Inteligência insignificante

Ghassan era um símbolo da intelectualidade revolucionária desafia-


dora, elevando a consciência das massas, diante da disseminação da intelec-
tualidade contrarrevolucionária, que manipula as consciências e a opinião
pública, dissemina a cultura do desespero com toda a insignificância que ela
carrega, com sua essência de racismo, sectarismo, sedição e fragmentação.
Além disso, essa intelectualidade contrarrevolucionária mantém uma con-
tradição com a unidade, normalização com o inimigo, faz muita conversa, te-
32
orização e fofoca sem prática, se transforma em uma “inteligência” incomple-
ta, que se esconde atrás de suas seitas, lê a realidade conforme o que a CNN
noticiou, se move em todas os cenários com múltiplas características como
especialista, analista, ativista e escritor por todos os meios de comunicação.
Ghassan Kanafani zombava desse tipo de “intelectual” o apelidando de táxi,
pois como dizia ele: “Aquele que paga carona! Como um táxi”. Essa inteligên-
cia trai não apenas a si mesmo e seu papel de influenciador, mas também se
perde, enquanto aqueles que se aplicam são inteligentes, descendentes dos
sacerdotes, profetas, monges, eruditos ou são seus herdeiros. Preocupam-se
em escrever a história, ler experiências, prever o futuro e, principalmente,
buscar preservar a verdade, também se preocupam com os valores coletivos e
sagrados que identificam um grupo, sociedade e civilização. Ghassan, o “in-
telectual” que se transformou em sinônimo de compromisso com questões
vitais da sociedade, política e cultura, temos que lê-lo como um pensador da
revolução, que desempenhou um papel diferente no destino de nossas vidas,
nos transformou em um momento fugaz de crianças a adultos, sem passar
pela fase da juventude. O sonho motiva as pessoas a alcançar o impossível.
O sonho aqui é o apego à esperança na busca de um futuro mundial melhor,
como se estivéssemos realizando um processo de auto pesquisa para nossas
vidas como lutadores ou mártires.
Sua atividade literária se mesclou com atividade política, organizacional
e jornalística, a ponto de parecer que sua personalidade se distribuía entre
essas três atividades de maneira igualitária e complementar. Até sua morte
precoce, ele publicou dezoito livros e centenas de artigos sobre cultura e
política, preenchendo a lacuna entre literatura e política, revelando o papel
da literatura em estimular e aguçar a imaginação política. Como um espelho
que mostra nosso rosto em uma imagem do futuro e, não do passado, que
é sintetizada por um intelectual irredutível. Ghassan Kanafani... o escritor
lutador, intelectual lutador, pensador lutador. Não é pelo fato de que a
grandeza de sua criatividade veio de ser um lutador ou um mártir, sua
33
experiência incorpora o conceito de elite cultural de vanguarda, que merece
ser chamada de símbolo de “inteligência” entre os intelectuais de tendência
libertária, crítica e progressista.

Batalha de conscientização

Meio século atrás, a batalha de conscientização que Ghassan Ka-


nafani iniciou ainda está em andamento. Os seus estudos documentados
para revisão crítica e histórica intitulada “ A Revolta de 1936-39 na Pales-
tina”, leem a história da causa palestina. Ele produziu uma análise política
aprofundada sobre o pano de fundo da grande Revolução Palestina de
1936-39 contra o colonialismo britânico e o estabelecimento do Estado
sionista. Demonstra o papel de forças que fortalecem os judeus sionistas
frente aos camponeses, trabalhadores e intelectuais árabes, na guerra de
1948, na Nakba, que tiveram papel na guerra de 1967 e mesmo após. A
queda em batalha da nossa geografia e história impõe o processo de com-
promisso com a literatura, com o espírito estético do texto, para acompa-
nhar as revoluções que eclodem, causadas pela mudança e criatividade.
Ghassan detém a patente do termo “literatura de resistência” utilizando-o
pela primeira vez no mundo, como mencionado em um artigo publicado
em 1966, posteriormente, defendendo o conceito de literatura de resis-
tência em todas as suas obras. Ele completou estudos importantes, não
menos que seus romances e coleções de histórias, mais notavelmente, nos
livros sobre “Literatura sionista” e “Literatura de Resistência na Palestina
Ocupada”. Esses dois livros se estabeleceram no campo do estudo literá-
rio. Já em seu romance “Homens ao Sol”, elaborou dentro do campo da
imaginação criativa, ou seja, introduziu no vasto mundo árabe uma lite-
ratura que destaca lugares como Haifa, Jaffa, Akka e Cisjordânia expondo
a especificidade palestina e a alma árabe, da terra ao mar.
34
Waw e a bondade

O verdadeiro intelectual não é apenas um cavaleiro dos púlpitos; o


novo estilo “intelectual” não depende da retórica como um motor externo de
sentimentos e emoções, mas deve contar com uma participação positiva na
vida prática da sociedade como líder. Ele diz:

“O novo estilo de vida ‘intelectual’ não pode mais girar em torno da


eloquência e da excitação superficial e imediata de sentimentos e ca-
prichos. Em vez disso, tornou-se necessário que ele participasse dire-
tamente da vida prática como um capitão e organizador convincente.”

Ao apresentar as obras literárias completas de Ghassan Kanafani,


Mahmoud Darwish se referiu ao dilema da conjunção “waw”, que separa
as palavras “escritor” e “lutador” na definição de Kanafani.
Separação essa presente na literatura dos escritores e poetas árabes na
Palestina ocupada, em 1948. Logo, os holofotes sobre essa literatura se expan-
diram no tempo para incluir toda a literatura escrita sobre a questão Palesti-
na, em árabe ou não, fosse o escritor palestino, árabe ou estrangeiro. Ghassan
Kanafani, nesse sentido, deu à política uma nova e diferente dimensão, na ca-
pacidade de formular um conceito mais profundo e preciso de ação política,
quando esteve envolvido nos estágios iniciais da formulação da estratégia do
conflito e da construção da nação palestina em movimento portador de um
projeto nacional de libertação. Seu lugar não estava entre os idealistas, nem
tampouco os que se contentam com fofocas, os moradores dos salões, salas
de conferências e da cultura paga pelos fundos dos países doadores, pelos
bancos de financiamento internacional com seus cheques para saciar a men-
dicância que fabrica vocabulário de subjugados, normalizados e derrotados.
35
Grito de coragem

Ghassan descreveu essa literatura como um “grito de coragem”, que


encarnava um estado de “firmeza frente ao ocupante na vida cotidiana”,
“um compromisso consciente com a causa” são estruturas capazes de con-
duzir os passos da literatura de resistência. Essa literatura liga duas dimen-
sões política e social, traduzindo-se em resistência ao ocupante israelense
e libertação nos países árabes e no mundo. É literatura que expressa o eu
(consciente de sua identidade e aspirando à liberdade) diante do outro, o
agressor, sendo que o escritor deve estar vinculado a sua comunidade e
nação, preservando todos os seus virtuosos valores, pois não aspira à liber-
dade, no sentido de salvação individual.
Al Kanafaniya detém a patente da literatura de resistência, pois não é
slogan nem uma profissão, tampouco um material para mobilização geral
ou mandato político; foi através do conceito de “literatura como ciência da
beleza” e, no caso palestino, da resistência que possibilitou Ghassan com uma
atitude humanitária extrair sua própria obra dessa realidade, valorizando as
palavras de Brecht: “Aquele que escreve literatura ruim trai as massas”.
Muitas produções literárias estão ligadas a uma compreensão humana
profunda, triste e corajosa, com uma abertura ilimitada ao homem em sua
força e fraqueza, fé e ingratidão, e a cada momento são expostos sentimentos,
dado que não se pode estar no púlpito em todos os momentos da vida, mas,
sim, convivendo e compreendendo as pessoas em suas realidades. Assim,
seus textos literários mantiveram a espontaneidade, criatividade, valor esté-
tico e profundidade emocional sem abrir mão da crítica social à ordem do-
minante, ao mesmo tempo que apresentou a vida das pessoas, falou em seus
nomes, sondou as profundezas do espírito palestino, suas formas de pensar,
seus métodos e padrões expressivos. Em suas mãos, o romance se tornou
uma publicação que circulava pelas massas, chegando ao ponto de inspirar a
36
consciência, esperança e firme confiança na vitória da verdade, do bem e da
justiça ante as nossas tragédias. Tornou-se uma dimensão estética de nossa
identidade e nosso hino épico.
O desafio da literatura está na capacidade de responder ao movimento
da realidade em constante mudança e de se beneficiar da leitura do passado,
criando um quadro que torna legível o curso do tempo humano.
Al Kanafaniya é também uma nova formulação que se rebela contra as
armas de subjugação, tentação e colonização. Da graduação da exclusão ou
antagonismo para uma relação de continuidade entre a memória clássica e a
moderna, vertical e horizontal, temporal e espacial, é que a memória antiga
foi registrada como narrativa documental vivida, herdada e imortalizada na
memória coletiva. Já a memória moderna se encolheu ao nível de poucas
palavras, tornou mais importante a frase, a última linha que resume o texto,
como se estivéssemos diante de uma geração que já não precisa saber tudo,
mas que tenta inventar sua própria memória, distinta da clássica. O modelo
é a transformação das emoções de uma memória estática em uma memó-
ria viva, como a experiência da literatura de resistência palestina em poesia,
romance e pensamento, quando os bosques de Haifa, as laranjas de Jaffa, as
pedras de Al Quds, as uvas de Al Khalil e as azeitonas da montanha de fogo
foram transformadas em um movimento mental esclarecedor, depois em um
ato de resistência. Através da literatura se conectou duas memórias, estáti-
ca e ativa, sem interrupção na batalha pela libertação de sua terra, a fim de
preservar sua herança, identidade e existência, reivindicando seus direitos
nacionais de retorno, liberdade e independência.

O significado da Palestina

Defino Al Kanafaniya também como uma força que estabelece um


projeto cultural capaz de agregar valores, ao mesmo tempo que mantém o
desafio de construir e produzir novos sentidos. A literatura de resistência não
37
pode ficar estagnada em lamentos negativos, obsessivos e choros sobre ruínas
ou continuando a fórmula que exagera a dor, acreditando que quanto mais
a Nakba é apresentada assim, mais o mundo entenderia a causa palestina. A
literatura de resistência é resistente diante do subdesenvolvimento e de todos
os resíduos de decadência, corrupção, reacionarismo e é libertadora quando
brota na vida, das condições reais para laçar o milagre da emancipação
humana. A perda desse sentido é o primeiro prelúdio para perder a guerra,
tendo como condição de vitória a continuidade.
A luta continua entre dois fronts distintos, de um lado os que protegem
o sentido da Palestina e o reproduzem permanentemente na consciência e
espírito, do outro aqueles que buscam gerar desorientação entre a luta e seu
sentido nacional para negar a existência da Palestina, destruí-la e apagá-la, se
possível. A literatura de resistência contribuiu para a consciência dos nossos
erros sem exagerar a dor ou apenas heroísmo, pois o objetivo não é fazer
um super-homem ou um personagem ilusório e vencedor, mas fornecer um
testemunho vivo sobre a questão de quem somos realmente. Somos heróis ou
perseguidores? Marinheiros ou afogados? Lutadores ou mortos? A verdade
diz: O vencedor pode ser mau e não, necessariamente, decente. Há pessoas
que formularam a teoria da libertação com seu sangue e, assim, preservaram
o sentido do roubo e da falsificação através da consciência humana crítica
diante da injustiça, da escuridão e do obscurantismo, pois são formas
complementares da ignorância, opressão, escravização e ocupação, e a outra
é gêmea da libertação, o sentido e meta da humanidade.

Narração e ideologia

Apesar da mudança de condições e do desenvolvimento dos meios de


alienação e das diferentes novas formas que surgiram, ainda existe uma bata-
lha atual e contínua pela libertação e liberdade. “Os defensores da liberdade
sempre se encontram, independentemente dos obstáculos de tempo e lugar”,
38
disse Che Guevara. Não vamos esperar a nossa vez no matadouro, porque o
sol é mais forte que a escuridão. Ele preserva os valores humanos, eleva o sig-
nificado e abre caminho para um renascimento progressivo com um espírito
renovado. O caminho justo é alcançar os grandes objetivos que sonharam em
sua essência, foram os homens da caneta, do pensamento e da palavra.
Como recompor o passado disperso? É possível? Onde está a diferença
no conflito entre duas narrativas? E quem pode? Pode ser entre dois roman-
cistas que usam o mesmo assunto histórico, mas a implicação é na forma
como o texto real e o texto falso são inferidos. Por que o conflito tende para
este lado e não para o outro? Por que a história de um é composta enquanto
a do outro falha? É preciso retornar à formação intelectual, à força, à cons-
ciência e à revolução da intelligentsia, a mente por trás da literatura. Não é
apenas conversa fiada, é sim o tesouro dos valores, história e patrimônio da
nação. Por isso, alguns críticos consideram o romance histórico um romance
ideológico. Isso significa que o romancista pode interferir em seu texto, por
meio de seus personagens e suas posições, a ponto de vestir pesados casacos
ideológicos, que podem parecer maiores que seus corpos normais e não se
encaixam no estilo e simplicidade desses personagens. Essa consciente viola-
ção ideológica não percebe o segredo da inteligência que fez com que todos
os anos de ausência não extraíssem de seu tempo palestino, o poder da narra-
ção, manifestado em seus contos, escritos e heróis, mais vivo em nosso tempo
de Al Quds até Gaza, Jenin e a intifada de heroísmo em toda a Palestina.

A literatura do lutador

Vimos, vivemos e não apenas lemos o livro “Tudo o que resta para
você” e a “Morte na cama número 12” e o que foi escrito “Sobre homens e
armas”. Vimos “Umm Sa’ad” ir para as fronteiras e “Homens ao sol” que se
recusam a morrer como mercadorias contrabandeadas em guetos racistas,
39
“Retorno a Haifa”, que confirma sua identidade nacional e qual é a pátria
onde tudo isso não acontece! E o “Chapéu e o Profeta”, “A Porta” e “Um
mundo que não é nosso” e a “A terra das laranjas tristes”.
Queremos que essa literatura criada por Ghassan provoque uma re-
volução na semântica, de modo que o romance se torne um espaço de li-
berdade tanto em seu absurdo e aleatoriedade, bem como em seu equilíbrio
e sua conexão com a realidade, com o privado e público, humano e exis-
tencial; apontando para a impossibilidade de diálogo e convivência entre o
filho legítimo da terra e seu usurpador.
Al Kanafaniya cultural constituiu um escudo protetor contra o peso
da experiência contemporânea, que desencadeia gemidos das gargantas
abatidas, o grito raivoso reprimido das profundezas e o riso inocente das
crianças. Se nossa capacidade não permitir a violência, então momento de
paz! Nem em momentos de recuo, trégua ou descanso significa que o conflito
parou. Queremos que a literatura aborde a questão da existência, não como
uma tragédia digna de pena, mas, sim, como a profundidade da consciência
humana, realidade e sonho, preservando a existência... para preservar a si
mesmo. Porque o conflito é contínuo, é uma fusão contínua, é assim que
Ghassan o define, significando que essa fusão, que é o conflito, ainda tem
as razões para sua continuação objetivamente. Pode ser adiado, mas não
cancelado, se não for um objetivo imediato e declarado.
Lealdade a Ghassan Kanafani é o despertar de seu projeto cultural inte-
grado, um projeto de carne, sangue e sonho, vindo da vida, misturado com a
experiência humana, não somente filho de seu momento, como relembrando
seu passado e sonhando com o futuro, sem separar a literatura e política de
sua realidade ou história, para não nos tornarmos prisioneiros de um idea-
lismo. Diante desse projeto integrado, é necessária uma visão alternativa e
moderna para renovar e enraizar o conflito com novas ferramentas de ações
capazes de impulsionarem inovações.
40
Precisamos de Ghassan, o intelectual revolucionário com sua estra-
tégia cultural abrangente, que partidos e instituições inteiras não consegui-
ram alcançar. Ele teceu, a partir de fios coloridos contendo sonhos coleti-
vos, desejos políticos, valores e objetivos nobres um tecido onde todas as
coisas o celebram e permanecem ligadas às grandes questões existenciais.
Afinal, o ser humano é uma causa e a Palestina não é uma recordação de
memórias, mas uma fábrica de futuro.

Marwan Abdel Aal –


escritor e liderança da Frente Popular de
Libertação da Palestina (FPLP).

41
‫الكنفانية‬
‫الحنني اىل أنتلجسيا التحدي‬

‫*مروان عبد العال‬


‫نصف قرن عىل رحيله وما استقال السؤال‪ ،‬يقرع جدران الخزان‪ ،‬لقد أورثنا السؤال‪ ،‬لذلك نحن‬
‫جيل السؤال‪ ،‬ولدنا فيه ونقيم فيه‪ ،‬السؤال املستحق عىل مدى غيابه واملؤجل واملستتبع يف‬
‫سلسلة الخيبات املتتالية والفشل املستمر‪ ،‬هل سنصل نبوءته بأن نكون جيل املستقبل وجيل‬
‫االنقالب واملعادالت الصحيح؟ هل سندرك مسؤوليتنا التاريخية ملا مىض ومسؤوليتنا ملا ييل‪،‬‬
‫!"فقط ليك مننع عدونا بأن يغتال إرادتنا بإقناعنا بـ "حتمية الهزمية" كبديل لثقافة " حتمية النرص‬
‫عليه‬ ‫ان يقرأ نيوتن‪ ،‬ومن يريد أن يتعلم درس الوطنية‬ ‫من يريد أن يتعلم قانون الجاذبية عليه‬
‫‪.‬ان يقرأ غسان كنفاين‬

‫الوفاء الحقيقي بإكامل درب غسان وليس بتحويله إىل كليشهات ونسخ مصورة عنه وإقامة‬
‫تعني تحويل‬ ‫استعادة الكنفانية‬ ‫طقوس سنوية وتكرار نصوص ومقوالت وعبارات وكفى!‬
‫ذكرى االستشهاده اىل وثيقة ميالده وسجل خلوده يف نقطة التقاطع الفردي والجامعي والثقايف‬
‫والسيايس‪ .‬كام قال فيه الشاعر الفلسطيني محمود درويش‪“ ،‬نكتشف‪ ،‬أوالً ودامئاً‪ ،‬أنه يف عمق‬
‫وعيه‪ ،‬كان يدرك أن الثقافة أصل من عدة أصول للسياسة‪ ،‬وأنه ما من مرشوع سيايس دون‬
‫مرشوع ثقايف”‪ .‬ألن غسان منوذج "مل يكتمل"؛ كان يكتب ويناضل ويرسم ويحرر مجلة وهو‬
‫يف حالة جريان‪ ،‬فلسطيني مطارد باألمكنة واألزمنة‪ ،‬حتى أن هناك روايات واعامل ودراسات‬
‫ومشاريع لتوصيات واقرتاحات كتبها غسان ومل تكتمل! وأفكار مل تكتمل كأنها يف حالة جدل‪،‬‬
‫وجمل صاغها كأنها تنتهي بفاصلة وليس بنقطة يك تنهي الجملة! وأكرث من ذلك عمر غسان‬
‫مل يكتمل! مل يرد األعداء أن يكتمل فقتلوه يف عمر ال ‪ 36‬سنة‪ ،‬مع ذلك أسس ومل يكمل ومنذ‬
‫املراحل األوىل لبلورة اسرتاتيجية الرصاع‪ ،‬مع بدايات الحركة الوطنية الفلسطينية التي اعتربها‬
‫‪.‬الحاضن الجمعي والوطني للمرشوع التحرري‬
‫يف كل ذكرى لغيابه وحياته الخاطفة نبحث عنه وفيه‪ ،‬بأبعاده وخلفياته‪ ،‬يف فكره وحلمه‪،‬‬
‫ولنكتشف كل مرة أن خسارتنا فيه تكرب وحزننا يتسع‪ ،‬وأن مثة قصة مل تكتمل‪ ،‬وحكاية تضاف‪،‬‬
‫وسؤال يشتعل‪ .‬علقت رئيسة وزراء االحتالل‪ ،‬غولدا مائري‪ ،‬عىل عملية اغتياله قائلة‪" :‬اليوم‬
‫تخلصنا من لواء فكري مسلح‪ ،‬فغسان بقلمه كان يشكل خطرا ً عىل إرسائيل أكرث مام يشكله‬
‫‪".‬ألف فدايئ مسلح‬

‫‪42‬‬
‫انتلجنسيا الحيادية‬

‫تتجوف من محتوها‬ ‫بان السياسة‬ ‫نقدي لألوضاع االجتامعية والسياسية القامئة‪ .‬‫ الكنفانية تعلمنا‪،‬‬
‫بيد السياسيني حرصا ً ‪ ،‬ويغيب عنها املثقف بصيغته العضوية كرقيب مجتمعي‬ ‫ترتك‬ ‫وقيمتها عندما‬
‫اللعب‬ ‫يعكس حضور الضمري املنبه واملوجه يف ذات الوقت ‪ .‬لجعل احتكار السياسة لفئة متتهن‬
‫أما رجال الفكر فينحتون زمنهم الفردي عىل‬ ‫الفردي ‪.‬‬ ‫مقاس زمنها‬ ‫بالزمن الجامعي وتطويعه عىل‬
‫مقاس الزمن الجامعي‪‬.‬مهمتها ان تحلل دون التدخل املبارش‪ ،‬تدعو اىل الحيادية يف عملها الفكري‪،‬‬
‫او حتى االديب‪ ،‬وال وتحديد التخوم بني ان تكون انتلجنسيا حيادية وانتلجسيا متحدية ؛ كام يبني‬
‫"ميالن كونديرا"‪ ،‬أن دور الروايــة نقد النظُم الســائدة‪ ،‬وليس نسخ بل قلب مــا هــو طبيعـي‪ ،‬ومدخالً‬
‫ملقاومة األفكار املسبقة‪ .‬فالكتابـة الروايـة هـي مساحة لخلـق الشـخوص‪ ،‬وهذا ال ميكن ان يفعله‬
‫الروايئ املؤدلج باملعنى املستهلك لاليدولوجيا‪ ،‬بل املتتج لها والذي باستطاعته ان يتدخل يف النص‬
‫بشكل مبدع‪ ،‬حتى ال تتخول الرواية إىل خطاب آيديولوجي مكرر‪ ،‬فتك ّرس خطابًا سياسيا واجتامعيا‬
‫ممال وباهتا‪ .‬من عرفه عن قرب يعرف كم كان متمردا ً عىل االنغالق والطفولة اليسارية التي كانت‬
‫الرنانة والتطرف واملزايدة ‪.‬‬ ‫تحكم سلوك بعض القيادات الغري مؤهلة فكرياً فاختبأت وراء الشعارات‬
‫كام كان يتمتع بروح منفتحة عىل االخرين ومهيأة للحوار والتفاعل والعطاء‪ .‬االيديولوجيا املبنية عىل‬
‫‪.‬فكر ال ينقطع عن الواقع ‪.‬و األكرث حرصاً عىل تطابق الفكر مع الواقع‬

‫انتلجنسيا متحدًّية‬

‫الثقافية يف صياغة وعي الجامعة وأجيال مازالت تتلمذ عىل يديه‪ .‬دخلت يف اللغة‬ ‫تكون الكنفانية‬
‫كان‬ ‫السياسية من موردها األديب‪ ،‬دراسات وابحاث ومقاالت ونصوص وحكايات ومفردات ورموز‪،‬‬
‫عبت عن سطوع الحقيقة‬
‫براءة اخرتاعها وإبداعها ‪ .‬مثل غسان االنتلجنسيا املتحدية ّ‬ ‫له فيها بصمة‬
‫الفلسطينية ونطقت باسم الحق الفلسطيني‪ ،‬كواقع قبل ان يكون ايديولوجياً‪ ،‬فاملثقف الذي يدير ظهره‬
‫للمجتمع لن يكون جديرا بتسمية املثقف الحقيقي‪ ،‬وبالتايل فإن “املثقف” هو ذاك الذي ال يرىض أن‬
‫يكون شاهدًا عىل الحدث بل فاعالً إيجابيا متمرسا يف قضاياه وأحداثها وعياً وتأثريا ً‪ ،‬ويحولها اىل قيمة‬
‫فنية مبعزل عن أنه مناضل‪ ،‬بل من باب قراءة نصوص يف أدبه كانت ومازالت تعكس قيمة نضالية‪،‬‬
‫نعيشها وعياً ومامرسة ‪ ،‬كلام استغرقت فيام كتب وبحثت عن أدواته املعرفية والفنية واإلبداعية تعرف‬
‫األيديولوجية تختفي‬ ‫كم كان مناضالً ‪ ،‬بل ملاذا صار شهيدا ً ؟؟ "لقد كان قادرا ً عىل ان يجعل املادة‬
‫‪43‬‬
‫وراء النكهة الفنية و القصة املاتعة والخرب الجذّاب‪ ،‬كام تختفي الفيتامينات يف برتقالة يافاوية او‬
‫صيداوية شهية‪ .‬ويا له من مه ّرب حاذق يحسن سوق املفيد يف لفائف املثري واملخدر واملستطاب"‪.‬‬
‫‪ .‬كام وصف كتابات غسان كنفاين املفكر العرويب منح الصلح‬
‫التي تعيش يف عامل من صنع ذاتها ال يتقاطع والواقع إال ما ندر ‪ ،‬ولكن‬ ‫ليس من طراز االنتلجنسيا‬
‫أن تعيش يف عامل من صنع أحالمنا تسعى جاهدا لتحقق هذا الحلم عىل أرض الواقع ‪ ،‬أما وقد‬
‫أختارت االنتلجنسيا الخيار السلبي بدالً من التعاطي االيجايب ‪ ،‬تكون املحصلة أن الشقة بينها وبني‬
‫كرؤية‬ ‫يفرق بني األيديولوجيا املقفلة وااليديولوجيا‬ ‫الجامهري التي تعتمد الفطرة تتسع يوماً بعد يوم‪.‬‬
‫شاملة للحياة وللمعتقدات وللخربات اإلنسانية ولبناء املجتمعات‪ .‬لكن الكنفانية اعادة تعريف هذا مفهوم‬
‫أولئك املثقفني الذين حصلوا عىل تعليم عال وتخصصوا يف‬ ‫ال تتوقف عند‬ ‫من جديد ‪ ،‬ان املسألة‬
‫العلم‪ ،‬بل ال ميكن للشهادات العلمية املجردة أن تجعل حاملها مثقفا بالرضورة‪ ،‬بقدر ما تجعله مصابا‬
‫لكنه يشمل الذين انخرطوا باملامرسة الثقافية واالجتامعية‬ ‫مبرض “التَعالُم” كام أسامه مالك بن نبي‪.‬‬
‫‪.‬النقدية وبوصفهم طليعة سياسية أو قوة تقدمية تحررية‬

‫جحيم الحقيقة‬

‫بحث يف معركة الرسد الروايئ عن عنارص فنية عالية‪ ،‬أضاءت دروب ومسارات أجيال من الروائيني‬
‫الفلسطينيني‪ .‬يف مطلع الستينيات من القرن املنرصم كانت رشيحة واسعة من ال ُنخَب الثقافية العربية‪،‬‬
‫ذات التو ّجه القومي عموماً‪ ،‬قد انخرطت فجأة يف اكتشاف الفلسفة الوجودية الفرنسية وفكرة العبث‪،‬‬
‫كام مثّلتها الرتجامت العربية جان بول سارتر وألبري كامو الفلسفية والروائية واملرسحية‪ .‬ويف القطب‬
‫املقابل كان املثقفون املاركسيون يواصلون الدعوة إىل «األدب امللتزم» بالقضايا االجتامعية وتحرير‬
‫ويبشون باملدرسة الواقعية و بـ «الواقعية االشرتاكية» كام يف روايات مكسيم غوريك‬
‫ّ‬ ‫اإلنسان‪،‬‬
‫وميخائيل شولوخوف‪ .‬شكّلت روايته «رجال يف الشمس» التي صدرت عام ‪ 1963‬عالمة فاصلة يف‬
‫األدب الفلسطيني‪ ،‬وقفزة نوعية يف الشكل واملحتوى‪ ،‬رواية اللجوء‪ ،‬وقضية العودة من "جحيم الحقيقة"‬
‫اىل "نعيم الوهم "‪ ،‬باب الجنة يف فلسطني وليس يف املنفى او بالصحراء القاحلة ؟ العودة اىل فلسطني‬
‫؟ قال‪:‬انها قصة‬ ‫عندما سأل‪ :‬اين انتم هاربون‬ ‫هي الجنة ؟ الشخصيات االنتهازية يف الرواية‪،‬‬
‫طويلة؟ هكذا كانت إجابة االكرثهم وعياً‪ .‬واألخر قال‪" :‬القرش أوال ثم االخالق"‪ ،‬واالناين أبو الخيزران‬
‫واملراهق الذي يبحث عن حياة جديدة ‪ .‬لذلك مل ننتظر ان يقرعوا جدران الخزان‪ ،‬النهم شخصيات‬
‫مستسلمة ومهزومة من داخلها! بحيث ميكن الحديث عن طور ما قبل «رجال يف الشمس» وما بعدها‬
‫ضمن املشهد العام لألدب الفلسطيني والعريب‪ .‬وهذه الرواية جمعت‪ ،‬مبهارة رفيعة‪ ،‬بني اله ّم القومي‬
‫‪44‬‬
‫الوجودي واله ّم االجتامعي السيايس عند مجموعة متثيلية منتقاة من الفلسطينيني «الفعليني»‪ ،‬الغري‬
‫‪.‬امل َؤ ْسطَرين واملج ّردين من كامل التجريدات الرثائية والرتاجيدية والرومانتيكية وامليلودرامية‬

‫انتلجنسيا التفاهة‬

‫انتشار‬ ‫يف مواجهة‬ ‫الثورية املتحدية‪ ،‬حاملة الوعي اىل الجامهري‪،‬‬ ‫غسان شكل رمزا ً لألنتلجنسيا‬
‫حاملة التالعب بالوعي اىل الرأي العام وما تحمله من ثقافة اليأس‪،‬‬ ‫انتلجنسيا الثورة املضادة‬
‫والتفاهة‪ ،‬بتظريها للعنرصية والطائفية والفنت والتجزئة وتناقضها مع الوحدة‪ ،‬والتطبيع مع العدو‪ ،‬وكرثة‬
‫وتتحول اىل " انتلجنسيا نص كُم" ناقصة تصطف خلف‬ ‫الكالم والتنظري والرثثرة بدون مامرسة‪،‬‬
‫وتتنقل عىل كل الشاشات بصفات متتعدة من املختص ‪ CNN ،‬طوائفها وتقرأ الواقع حسب ما تردده‬
‫التي سخر منها غسان‬ ‫عرب كل والوسائل االعالمية‬ ‫اىل الخبري اىل املحلل‪ ،‬والناشط والكاتب‬
‫بقوله "من يدفع يركب! مثل سيارة االجرة"‪ .‬هذه االنتلجنسيا‬ ‫كنفاين يوما اطلق عليه اعالم التكيس‬
‫االنتلجنسيا‪،‬‬ ‫بينام من ينطبق عليهم‬ ‫تخون ليس فقط ذاتها ودورها كأنتلجنسيا‪ ,‬بل تخرس نفسها‪.‬‬
‫فهم املتحدرون من الكهنة واألنبياء والرهبان واملتعلمني أو هم ورثتهم‪ .‬إنهم املعنيون بكتابة التاريخ‬
‫وقراءة التجارب واسترشاف املستقبل وبالدرجة األوىل بالبحث عن الحقيقة واالحتفاظ بها‪ ،‬كام هم‬
‫معنيون بالقيم الجمعية واملقدسة‪ ،‬تلك التي تتحكم يف جامعة ويف مجتمع ويف حضارة‪ .‬ولكن غسان‬
‫“املثقف” الذي تحول إىل حالة من االلتزام بالقضايا الحيوية يف املجتمع والسياسة والثقافة‪ ،‬نريد ان‬
‫نقرأه كمفكر للثورة التي مارست دورا مغايرا يف مصري حياتنا‪ ،‬وحولتنا يف لحظة خاطفة من اطفال اىل‬
‫التمسك‬
‫ُّ‬ ‫ال ُحلْم يُحفِّز البرش إىل تحقيق املستحيل‪ ،‬فال ُحلْم هنا هو‬ ‫دون املرور مبرحلة الصبا‪.‬‬ ‫رجال‬
‫باألمل يف السعي إىل مستقبل عامل أفضل‪ ،‬كأمنا نجري عملية بحث ذايت لحياتنا او ننظر اىل مرآة‬
‫تظهر لنا وجوهنا يف صورة املستقبل وليس املايض التي يخترصها مثقف غري قابل لالختزال‪ ،‬غسان‬
‫كنفاين الكاتب املناضل‪ ،‬املثقف املناضل‪ ،‬األديب املناضل‪ ،‬املفكر املناضل ‪ .‬وليس من باب أن‬
‫عظمة إبداعه جاءت من كونه مناضالً أو شهيدا ً؛ جسدت تجربته مفهوم النخبة الثقاقية الطليعية التي‬
‫‪.‬تستحق ان يطلق عليه كرمز “األنتلجنسيا” ومن املثقفني ذوي النزعة التحررية‪ ،‬النقدية والتقدمية‬
‫امتزج نشاطه األديب بنشاطه السيايس والتنظيمي مع نشاطه الصحفي‪ ،‬وبدا يف أكرث من طور أن‬
‫شخصيته تتوزّع عىل هذه األنشطة الثالثة بطريقة متساوية ومتكاملة‪ .‬أصدر حتى تاريخ وفاته املبكّر‬
‫مثانية عرش كتاباً ومئات املقاالت يف الثقافة والسياسة جرس من خاللهم الهوة بني األدب والسياسة‪،‬‬
‫وكشف دور األدب يف تحفيز وشحذ الخيال السيايس‬

‫‪45‬‬
‫معركة الوعي‬

‫مازالت مستمرة يف دراساته امل ُوثقة‬ ‫نصف قرن مضت ومعركة الوعي التي اشعلها غسان كنفاين‬
‫تقرأ‬ ‫بعنوان «ثورة ‪ 36-39‬يف فلسطني‪ :‬خلفيات وتفاصيل وتحليل»‬ ‫للمراجعة النقدية والتاريخية‬
‫تاريخ القضية الفلسطينية‪ .‬جاءت كتحليل سيايس ُمعمق حول خلفيات الثورة الفلسطينية الكربى ‪1936‬‬
‫ضد االستعامر الربيطاين وإرساء دعائم الدولة الصهيونية‪ .‬ومتكني اليهود عىل حساب الفالحني‬
‫والعامل وامل ُثقفني العرب وحرب ‪ 1948‬والنكبة ومن ثم حرب ‪ 1967‬والنكسة‪ ،‬فكان السقوط املتكامل‬
‫ملعركة الجغرافيا والتاريخ م ًعا‪ ،‬يفرض عملية االلتزام يف األدب كإلتزام بروح جامليات النص أوالً‪،‬‬
‫ثم برصد الثورات التي تندلع منه محدثه التغيري ومن ثم اإلبداع‪ .‬يحمل غسان براءة اخرتاع مصطلح‬
‫«أدب املقاومة» واستخدمه أول مرة يف العامل إذ ذكره ألول مرة يف مقال له نرشه عام ‪ ،1966‬ودافع‬
‫عن مفهوم أدب املقاومة يف أعامله كلها‪ .‬أنجز دراسات هامة ال تقل أهمية عن رواياته‪ ،‬ومجموعاته‬
‫القصصية أبرزها أدب املقاومة يف فلسطني املحتلة‪ ،‬وكتاب يف األدب الصهيوين" أدب املقاومة يف‬
‫فلسطني املحتلة»‪ ،1966 ،‬و«األدب الفلسطيني املقاوم تحت االحتالل»‪ .1968 ،‬هذان الكتابان‬
‫قاما يف حقل الدراسة األدبية مبا قامت به رواية «رجال يف الشمس» يف حقل التخييل اإلبداعي‪ ،‬أي‬
‫تعريف الشارع العريب العريض عىل أدب متميّز يف أماكن مثل حيفا ويافا وعكا والجليل‪ .‬ولقد لعب‬
‫الكتابان‪ ،‬وما تض ّمناه من نصوص كانت تُنرش للم ّرة األوىل يف العامل العريب‪ ،‬دور حلقة الوصل‬
‫الذهبية بني الداخل الفلسطيني والعمق العريب من املحيط إىل الخليج‬

‫واو العطف‬

‫يعتمد عىل البالغة‪،‬‬ ‫املثقف الحقيقي ليس مجرد فارس منابر‪ ،‬وأسلوب “املثقف” الجديد ال‬
‫كمحرك خارجي مؤقت للمشاعر والعواطف‪ ،‬بل يجب عليه أن يعتمد عىل املشاركة اإليجابية‬
‫يف الحياة العملية كبان ومنظم لها”ومن هذا التصور للمثقف العضوي يخاطب غراميش املثقفني‬
‫بدعوتهم إىل االلتزام السيايس‪ ،‬فيقول “مل يعد باإلمكان ان يتمحور نسق حياة “املثقف” الجديد‬
‫حول الفصاحة واإلثارة السطحية واآلنية للمشاعر واألهواء‪ .‬بل صار لزاما عليه ان يشارك مبارشة‬
‫يف الحياة العملية كبان ومنظم مقنع دامئا‪ ،‬لذلك يف تقدميه ألعامل غسان كنفاين األدبية الكاملة‪،‬‬
‫مفردت «الكاتب»‬
‫َْ‬ ‫أشار محمود درويش إىل معضلة حرف العطف‪« ،‬الواو»‪ ،‬الذي يفصل بني‬
‫‪.‬و«املناضل» يف تعريف كنفاين‬
‫‪46‬‬
‫يعني األدب الذي قدمه أدباء وشعراء عرب فلسطني املحتلة عام ‪ .48‬مل تلبث أن اتسعت دائرة‬
‫الضوء املسلطة عىل هذا األدب ومتدد زمكانياً ليشمل كل ما كتب من أدب يف القضية الفلسطينية‬
‫باللغة العربية أو بغريها سواء أكان الكاتب فلسطينياً أم عربياً أم أجنبياً‪ .‬غسان كنفاين بهذا املعنى‬
‫منح السياسة بعدا ً جديدا ً ومغايرا ً‪ ،‬يف القدرة عىل صياغة املفهوم األعمق واألدق للعمل السيايس‪،‬‬
‫حني كان مشاركاً يف املراحل األوىل لبلورة اسرتاتيجية الرصاع‪ ،‬وبناء الحركة الوطنية الفلسطينية‬
‫كحامل وطني للمرشوع التحرري‪ ..‬مل يكن مكانه بني املثاليني الذين يكتفون بالرثثرة‪ ،‬املقيمني يف‬
‫صالونات وقاعات املؤمترات املدفوعة الكلفة واألبحاث‪ ،‬وزمن الثقافة املدفوعة األجر من صناديق‬
‫‪.‬الدول املانحة وبنوك التمويل الدولية وشيكات التسول لصناعة مفردات الرتويض والتطبيع والتمييع‬

‫رصخة شجاعة‬

‫وصف غسان هذا األدب بـ"رصخة شجاعة"‪ ،‬جسدت حالة من حاالت "الصمود للمحتل يف الحياة‬
‫اليومية"‪ ،‬وأن "االلتزام بالقضية‪ ،‬االلتزام الواعي‪ ،‬هو اإلطار الذي أستطاع أن يقود خطوات أدب‬
‫املقاومة"‪ ،‬وأنه استطاع يف فرتة مبكرة الربط بني البعدين السيايس االجتامعي‪ ،‬والربط كذلك بني‬
‫قضية مقاومة املحتل اإلرسائييل وقضايا التحرر يف البالد العربية والعامل‪ .‬هو األدب "املعرب‬
‫عن الذات (الواعية بهويتها) و(املتطلعة إىل الحرية) يف مواجهة اآلخر العدواين‪ ،‬عىل أن يضع‬
‫الكاتب نصب عينيه جامعته وأمته‪ ،‬ومحافظًا عىل كل ما تحفظه من قيم عليا‪ ..‬ليس متطل ًعا إىل‬
‫‪".‬الحرية مبعنى الخالص الفردي‬

‫الكنفانية انتلجنسيا متلك براءة اخرتاع أدب املقاومة بوصفه ليس مفهوماً شعارتياً وال هو مهنة وال مادة‬
‫"األدب هو علم جامل" املقاومة‪ ،‬كموقف وقضية‬ ‫التعبئة العامة او التفويض السيايس‪ ،‬بل عرب مفهوم‬
‫إنسانية مكنت غسان أن يجرتح من هذا الواقع أسطورته الخاصة‪ ،‬مؤمناً بقول بريخت‪" :‬من يكتب أدبًا‬
‫رديئًا فإنه يخون الجامهري"‪ .‬متواليات أدبية عديدة يربطها فهم إنساين‪ ،‬عميق وحزين وشجاع‪ ،‬وانفتاح‬
‫غري محدود عىل اإلنسان يف قوته وضعفه‪ ،‬يف إميانه وجحوده‪ ،‬ويف كل لحظة يتعرض لها إحساس‬
‫هذا اإلنسان الذي ال يستطيع أن يكون فوق املنرب كل لحظات حياته‪ ،‬وال بد له من أن يعيش مع‬
‫‪.‬الناس‪ ..‬ويفهم كيف يعيشون‬
‫لذلك ظل النص األديب عنده محتفظ بعفويته وابداعيته وقيمته الجاملية وعمقه الوجداين دون أن‬
‫يتنازل عن نقد العوامل االجتامعية السائدة وطرح حياة الشعب الذي ينطق باسمه‪ ،‬وسرب أغوار الروح‬
‫الفلسطينية العميقة والبعيدة وطرق تفكريها وأساليبها وأمناطها التعبريية‪ .‬صارت الرواية يف يده منشورا ً‬

‫‪47‬‬
‫رسياً تتداوله الجامهري يصل بها حد امتالك الوعي الكامل‪ ،‬واألمل والثقة الراسخة بانتصار الحق‬
‫والخري والعدالة‪ ..‬صارت فسحة نتأمل فيها تجربتنا‪ ،‬ندون عليها مآسينا‪ ..‬صار لها بعدا ً جاملياً لهويتنا‬
‫‪.‬ولنشيدنا امللحمي‬
‫تحدي األدب يكمن يف القدرة عىل االستجاب ِة لحرك ِة الواقع املتغري باستمرار‪ ،‬واالستفادة بقراءة‬
‫األدب ويرتقي إىل مستويات أعىل‬ ‫املايض‪ ،‬ولكن يف إطار مجرى الزمن اإلنساين‪ ،‬فحني يتجد ُد‬
‫وبقيمة أغنى وأكرث إنسانية‪ ،‬ترقى كلامته إىل املبتغى منه‪ ،‬وما التطو َر التدريجي الذي جرى عىل‬
‫‪.‬منط الرواية العربية عموما فقد أوصلها إلی ٍ‬
‫حد صارت فيه قابل ًة للقراءة علی املستوی اإلنساين‬

‫عىل أسلحة التطويع واالغراء واالخرتاق‪ .‬و تخر َجها من اإلقصائية‬ ‫متمردة‬ ‫كصياغ ٍة جديد ٍة‬ ‫االكنفانية‬
‫أو التضاد‪ ،‬إىل عالقة تواصل واستمرارية بني ذاكر ٍة كالسيكي ٍة وأخرى حديثة‪ ،‬عامودية وأفقية‪ ،‬زمانية‬
‫ومكانية‪ ،‬وإن الذاكر َة القدمي َة ُسجلت بواسطة الرسد التسجييل املعاش الذي ُوجدت له مكانة مازالت‬
‫تقلّصت إىل مستوى أن مفتاح الجملة بات أهم‬ ‫تو ّرث وتخلّد يف الذاكرة الجامعية‪ ،‬وبني ذاكرة حديثة‬
‫من الجملة‪ ،‬والسطر األخري يلخص النص‪ ،‬كأننا أمام جيلٍ مل يعد بحاجة ملعرفة كل يشء بل من‬
‫كل يشء يشء ‪ ،‬يحاول ابتكار ذاكرته الخاصة التي ليس لها عالقة باألصل‪ .‬إن النموذج الصحيح‬
‫الفلسطيني املقاوم‬
‫ُّ‬ ‫األدب‬
‫ُ‬ ‫يكون من بوابة تحويل العواطف من ذاكرة جامدة إىل ذاكرة حية‪ ،‬كتجربة‬
‫وعنب الخليل‪ ،‬وزيتو ُن جبل‬
‫ُ‬ ‫ُ‬
‫وبرتقال يافا وحجار ُة القدس‬ ‫شعرا ً ورواي ًة وفكرا ً‪ ،‬عندما تحولت بياراتُ حيفا‬
‫األدب املقاو ُم ذاكرة اإلنسا َن الفلسطيني‬
‫ُ‬ ‫النار إىل حرك ٍة عقلية تنويرية‪ ،‬وثم إىل فعلٍ مقاوم‪ ،‬وبذلك نقل‬
‫من السلبي إىل اإليجايب وأوصل بني ذاكرتني ال انقطاع بينهام يف معركة تحرير أرضه‪ ،‬صيان ًة لرتاثه‬
‫‪.‬و ُهويته وبقائه‪ ،‬مطالباً بحقوقه الوطنية يف العودة والحرية واالستقالل‬

‫معنى فلسطني‬

‫بوصف الكنفانية كقوة ثقافية مؤسسة للمرشوع الثقايف فهي ايضاً متتلك القيمة املضافة من خارج‬
‫الرشوط الشكلية للمعنى إىل املعنى ذاته‪ ،‬تحدي صيانة وبناء وإنتاج املعنى‪ ،‬أسست ألدب‬
‫ال يقف عند النحيب السلبي اإلستحواذي والبكاء عىل األطالل‪ ،‬أو االستمرار‬ ‫املقاومة‪ ،‬الذي‬
‫استيعاب‬
‫ُ‬ ‫بصيغ ِة املبالغة بالوجع ووصف األمل‪ ،‬معتقدا ً أنه إذا جعل النكبة أكرث إيالماً ونزفاً كان‬
‫للقضية أكرثَ وبصورة أعظم‪ .‬فاألدب املقاوم يكون مقاوماً يف مواجهة التخلف‪ ،‬وكل رواسب‬ ‫العامل‬
‫االنحطاط والفساد والرجعية‪ ،‬ويكون األدب مقاوماً حني يكون تحرريا بامتياز وتقدميا ينطلق يف‬

‫‪48‬‬
‫رحاب الحياة الجرتاح معجزة التقدم اإلنساين‪ ،‬كام أن خسارة املعنى هي املقدمة األوىل لخسارة‬
‫لتلك‬ ‫من أجل إنتاج الغاية الجامعة والفكرة املحفزة‬ ‫الحرب‪ ،‬رشط النرص هو يف استمرار الكفاح‬
‫‪" .‬القوة الروحية يف ميزان املعنى واملعنويات مثل "معنى فلسطني‬
‫وتعيد إنتاجه باستمرار يف العقل‬ ‫إن الرصاع مستم ٌر بني جبهتني‪ ،‬واحدة تحمي معنى فلسطني‪،‬‬
‫والوجدان والروح‪ ،‬وأخرى تسعى لخلق التباس بني النضال ومعناه الوطني‪ ،‬وبني معنى الوطن من أجل‬
‫يف وعي الهزمية من دون املبالغ ِة‬ ‫نفي وجوده وتدمريه ومحوه إن استطاع‪ .‬إن األدب املقاو َم ساهم‬
‫بالوجع أو املبالغة بالبطولة‪ ،‬ألن الهدف ليس صناعة سوبرمان أو شخصية املنترص الوهمي‪ ،‬بل‬
‫هو يقدم شهادة حية عن سؤال الذات وعن من نكون‪ ،‬فهل نحن أبطال أم مالحقون؟ بحارة أم غرقى‪،‬‬
‫رص قد يكون رشيرا ً وليس بالرضورة أن يكون عفيفاً‪،‬‬
‫مقاتلون أم قتىل؟ والحقيقة تقول‪ :‬إن املنت َ‬
‫فهناك أشخاص صاغوا بدمهم نظرية الحرية‪ ،‬وصانوا املعنى من الرسقة و التزوير عرب الوعي‬
‫الشكل املك ّم ُل للجهلِ والقهر واالستعباد‬
‫ُ‬ ‫التفاؤيل اإلنساين يف مواجهة الظلم والظالم والظالمية‪ ،‬ألنها‬
‫‪ .‬واالحتالل‪ ،‬فإذا كان يف األدب اإلبداع الذي هو توأم الحرية فإن املعنى هو غاية اإلنسانية‬

‫الرسد وااليديولوجيا‬

‫رغم تبدل األحوال وتطور وسائل الخداع واختالف األشكال ما زالت معركة راهنة وقامئة من أجل‬
‫عوائق الزمان واملكان " هكذا‬
‫ُ‬ ‫التحرر والحرية " إن أنصار الحرية يلتقون عىل الدوام مهام كانت‬
‫الشمس أقوى من الظالم‪ ،‬الثورة الحقيقة من‬
‫َ‬ ‫قال تيش غيفارا‪ ،‬لن ننتظ َر دو َرنا يف املذبحة‪ ،‬ألن‬
‫تصون قيم اإلنسان ورفعة املعنى ودالالتها النبيلة‪ ،‬وتشق طريقاً لنهضة تقدمية بروح متجددة‪،‬‬
‫وحدها الطريق الصالح إىل تحقيق األهداف العظيمة التي حلم بها العظامء يف الصميم‪ ،‬فكان‬
‫‪.‬رجال القلم والفكر والكلمة‬
‫كيف السبيل اىل إعادة تركيب املايض املتناثر؟ هل ميكن ؟ وأين يكمن الفارق يف الرصاع بني‬
‫روائيي يستخدمان ذات املوضوع التاريخي‪ ،‬ولكن الضمون‬
‫ْ‬ ‫رسديتني؟ ومن يقدر؟ قد يكون الشكل بني‬
‫ملاذا مييل الرصاع بأتجاه هذه الجهة‬ ‫يتحقق يف كيفية االستدالل عىل النص الحقيقي والنص املزيّف‪.‬‬
‫دون غريها؟ وملاذا تتألف رواية أحدهام فيام تفشل األخرى؟ ال بد من العودة اىل الخلفية الفكرية‪ ،‬قوة‬
‫امنا هو خزانة قيم‬ ‫االنتلجسيا‪ ،‬العقل الذي يقف خلف االدب‪ ،‬فهو ليس مجرد لغو‪،‬‬ ‫ووعي وثورية‬
‫األمة وتاريخها وتراثها لذا يعترب البعض من النقاد بأن الرواية التاريخية هي رواية أيديولوجيا؛ يعني‬
‫أن الروايئ قد يتدخل يف نصه‪ ،‬من خالل شخوصه ومواقفهم‪ ،‬إىل درجة إلباسهم معاطف آيديولوجية‬

‫‪49‬‬
‫مقاسا من أجسادهم العادية‪ ،‬وال تتناسب مع منط هذه الشخصيات وبساطتها‪،‬‬
‫ً‬ ‫ثقيلة‪ ،‬قد تبدو أكرب‬
‫فكيف ميكن لجم انفالت اآليديولوجيا يك ال تعيث بالنص خرابًا‪ ،‬كيف نحمي النص الروايئ من‬
‫االنتلجنسيا التي جعلت كل سنوات الغياب تفشل من انتزاعه‬ ‫انتهاكه آيديولوج ًيا‪ ،‬امنا مل تدرك رس‬
‫من زمنه الفلسطيني‪ ،‬قوة الرسدية‪ ،‬التي تجلت يف حكاياته وكتاباته وأبطاله‪ ،‬وجدناها حية يف لزمن‬
‫‪.‬قادم من سيف القدس اىل غزة و جنني وانتفاضة البطولة يف كل فلسطني‬

‫االدب املقاتل‬

‫وعشنا ومل نقرأ فقط ما تبقى لكم وموت رسير رقم ‪ ،١٢‬وما كتب للرجال والبنادق‪ .‬رأينا أم‬ ‫شاهدنا‬
‫سعد تذهب إىل الحدود و لرجال يف الشمس يرفضون املوت كبضاعة مهربة يف غيتوات عنرصية‪،‬‬
‫وعائد إىل حيفا الذي يؤكد هويته الوطنية‪ ،‬وعام هو الوطن حيث ال يحدث ذلك كله! والقبعة والنبي‬
‫والباب وعامل ليس لنا‪ ،‬والربتقال الحزين‪ .‬نريد لهذا االدب كام ابدعه غسان أن يحدث انقالباً يف‬
‫الداللة‪ ،‬فتغدو الرواية مساحة حرية وانطالق يف عبثيتها وعشوائيتها‪ ،‬كام يف اتزانها وارتباطها بالواقع‬
‫ويف ربطها بني الشخيص والعام واإلنساين والوجودي‪ ..‬نريد لألدب لن يكون له شكال ًرافضاً مقاتالً‬
‫لرشط الوطن املصادر من احتالل نيو استعامري‪ ،‬مشريا ً إىل استحالة الحوار والتعايش بني ابن‬
‫‪..‬األرض الرشعي ومغتصبها‬
‫درعاً حامياً من وطأة التجربة املعارصة التي تطلق آهات الحناجر املذبوحة‪،‬‬ ‫شكلت الكنفانية الثقافية‬
‫ورصخة األعامق الغاضبة املكبوتة‪ ،‬وضحكة األطفال الربيئة‪ ..‬نريد لألدب أن يطرح أسئلة كبرية‬
‫وعميقة‪ ،‬وأن يعرض مفهوم الزمن‪ ،‬حرباً أم اشتباكاً‪ ..‬أي الرصاع املستمر بأشكال ال رضورة أن تكون‬
‫عنيفة إن مل تسمح قدرتنا بها‪ ،‬لذلك فلحظة السالم! وال لحظات التقهقر أو الهدنة أو الراحة تعني أن‬
‫الرصاع قد توقف‪ ..‬نريد لألدب أن يعالج سؤال الوجود‪ ،‬ليس كأمساة تستحق الشفقة‪ ،‬بل عمق اإلنسان‬
‫وجودا ً ووجدان‪ ،‬واقعاً وحلم‪ ،‬حفظ الوجود‪ ..‬أن تحتفظ بنفسك‪ .‬وما عدا ثانياً‪ ..‬أي ما تستطيعه قدرتك‬
‫وليس رغبتك‪ .‬ملاذا؟ ألن الرصاع مستمر‪ ،‬هو التحام متواصل‪ ،‬هكذا يعرفه غسان‪ ،‬أي أن هذا االلتحام‬
‫وهو الرصاع ما زال ميتلك أسباب استمراره موضوعياً وإال ملاذا الفضيلة بحفظ البقاء وما عدا يأيت؟‬
‫‪.‬هو مؤجل ولكن ليس ملغياً إن مل يكن هدفاً آنياً ومعلناً‬

‫الوفاء لغسان كنفاين هو استنهاض مرشوعه الثقايف املتكامل‪ ،‬مرشوع من لحم ودم وحلم‪ ،‬قادم من‬
‫الحياة‪ ،‬معجون بتجربة البرش‪ ،‬ليس ابن لحظته بل يتذكر سابقه ويحلم بالقادم‪ ..‬أن يكون برزخاً بني‬
‫عاملني‪ ،‬حيث القطائع غري نهائية وال انعطافية‪ ،‬بل تكميلية باتجاه االرتقاء‪ ،‬دون قطع األدب والسياسة‬

‫‪50‬‬
‫عن واقعهم‪ ،‬أو عن التاريخ‪ ،‬ودون جعلهم أرسى الطارئ الدخيل حتى ال منوت معه وفيه‪ .‬أمام مرشوع‬
‫‪.‬متكامل‪ ،‬مطلوب رؤية بديلة وحديثة تجدد وتؤصل الرصاع وأدوات فعل جديدة قادرة عىل االبتكار‬

‫الثقافية الشاملة‪ ،‬التي عجزت عنها أنظمة وأحزاب‬ ‫باسرتاتيجيته‬ ‫نحتاج غسان املثقف الثوري‬
‫ومؤسسة كاملة‪ .‬وصاغها من خيوط ملونة فيها أحالم جامعية وحوافز إنسانية ورغبات سياسية وقيم‬
‫وغايات نبيلة ولكن يف بوتقة واحدة‪ ،‬قامشة تسمى األسطورة حيث تحتفي بها كل األشياء وتظل‬
‫مرتبطة باألسئلة الوجودية الكربى‪ .‬فاإلنسان يف نهاية األمر هو قضية‪ ،‬وأن فلسطني ليست استعادة‬
‫‪.‬للذكريات‪ ،‬بل هي صناعة للمستقبل‬

‫– ‪Marwan Abdel Aal‬‬


‫‪escritor e liderança da Frente Popular de‬‬
‫‪Libertação da Palestina (FPLP).‬‬

‫‪51‬‬
Ghassan Kanafani,
a dualidade do criativo revolucionário.

Essa junção entre os dois personagens, o autor de texto e o revolucionário


nacional é a forma que se desenhou a imagem de Ghassan Kanafani na mente e
na consciência palestina e, até mesmo, o apresentou internacionalmente.
Seus escritos costumavam a devorar, meditar e inflamar nossas cons-
ciências. Somos filhos da segunda e terceira gerações da Nakba, seus escritos
tocam nossas feridas abertas e iluminam nossas mentes com uma literatura
refinada de fácil absorção. Como foi capaz através de uma narrativa fluída,
detalhada da causa palestina, com clareza sobre os eventos da Nakba e suas
consequências, nos colocar diante do desnudamento dos posicionamentos
das elites, correntes internacionalistas e até povos inteiros? Diante de outra
narrativa, a colonial sionista, com toda a extensão, insistência e arrogância de
uma narrativa fabricada.
Ghassan Kanafani desenhou o sofrimento do povo palestino, leu em
si mesmo e na vida do homem palestino (virada de cabeça para baixo pela
Nakba), na vida da cidade e da aldeia, na história dessa sociedade enraizada
em ambiente original, à vida de sem-teto em busca de um lar e de um susten-
to, como se olhando no espelho visse a realidade das pessoas se transforman-
do em outra existência e identidade nacional. Foi ele quem viveu a Nakba
com os detalhes de sua ocorrência diária, aquele menino da cidade de Akka,
que foi desalojado de Jaffa, apenas para se descobrir uma criança sem-teto.
Sua consciência de uma realidade amarga fez com que amadurecesse rapi-
damente, então viveu o surgimento da revolução, que transformou o campo
de refugiados em um campo de revolução, na qual esteve envolvido desde o
início. Descarregou suas experiências e até mesmo suas visões de salvação
em abundantes produções literárias, em romances, contos e artigos de jornal.
Nossa primeira consciência se abre para as expressões dos textos e
narrações de Kanafani: “O homem é uma causa”, “Por que não bateram nas

52
paredes”, “Tenda sobre tenda que separa”... e muitas outras. Ghassan saltou
dos textos de seus romances para os espaços da vida dos palestinos em exílio,
na terra Palestina e no exterior, contemplando e se inspirando neles, aquelas
expressões que transbordavam dor e sofrimento, viajavam em sua língua,
mudando seus contextos nos zigue-zagues da sua causa e nas etapas, motivando
e indicando o caminho da salvação. Fez isso na consciência de gerações e era
como uma escola de mobilização com conteúdo de libertação nacional, não
perdeu seu brilho nem a força de sua influência, desde o início até o momento
das mudanças sofridas pela Causa. A narrativa palestina da história da sua
causa versus a contra-narrativa sionista aprofundou uma consciência nacional
e as atitudes de solidariedade dos povos e intelectuais, em todo o mundo.
É por isso que a inteligência inimiga apressou seu assassinato e desapa-
recimento, em 1972, quando estava no início de sua carreira e tinha apenas
trinta e seis anos à época.
Eles sabiam que se o fuzil do rebelde fosse baseado na cultura se tor-
nariam mil fuzis, agregando mais credibilidade e legitimidade. Sua morte foi
uma vitória para a narrativa colonial.
Ele se foi cedo, mas e se vivesse mais? Talvez amadureceríamos melhor,
seríamos mais criativos ao escrever o texto sobre a nossa causa, englobarí-
amos e elevaríamos amplamente nossa credibilidade através de sua criati-
vidade textual como a de um Neruda, Lorca, Nazim Hikmet e Mahmoud
Darwish, para horizontes mais amplos do que foi possível em sua curta vida.
Ele teria vivido as curvas da Causa, suas vitórias e insucessos, a que se de-
dicou desde a primeira juventude, depois perceberia com a experiência dos
idosos que há um estoque de fatores de retrocesso, que dificulta o progresso
e é matéria real para o espírito e o gênio do pensador.

Ismael Hashhash –
Comitê Central da Frente Democrática
de Libertação da Palestina (FDLP).
53
‫غسان كنفاين ‪ ،‬ثنائية املبدع الثائر‬

‫هذا التالزم بني السمتني‪ ،‬املبدع يف النص والثائر الوطني ‪ ،‬هو ما رسم صورة غسان كنفاين ‪ ،‬يف‬
‫العقل والوجدان الفلسطيني ‪ ،‬بل وقدمه اىل عرشات الثقافات األممية األخرى‬
‫كتاباته التي كنا نلتهمها التهاما‪ ،‬نتأملها فتلهب وجداننا ‪ ،‬نحن أبناء الجيلني الثاين والثالث للنكبة ‪،‬‬
‫ليس فقط ألنها متس جروحنا املفتوحة‪ ،‬بل ألنها تيضء عقولنا‪ ،‬وأدب راق من صنف السهل املمتنع‪.‬‬
‫فكيف استطاع بهذا الرسد املتدفق يف تفاصيل الرواية الفلسطينية ووضوحها حول أحداث النكبة‬
‫نخبا وتيارات أممية بل وشعوبا بأكملها يف االصطفاف‬ ‫وما تداعى عنها ‪ ،‬أن يضعنا بل وميوضع‬
‫يف وجه الرواية األخرى ‪ ،‬الرواية الصهيونية االستعامرية ‪ ،‬بكل هذا االمتداد واإلرصار أمام صلف‬
‫‪ .‬الرواية املصطنعة‬
‫غسان كنفاين رسم معاناة الشعب الفلسطيني‪ ،‬استقرأها يف ذاته ‪ ،‬وقرأها يف حياة اإلنسان الفلسطيني‬
‫من حياة املدينة والقرية بكل ما متلكه من تاريخ ورسوخ املجتمع‬ ‫التي قلبتها النكبة رأسا عىل عقب‪.‬‬
‫املتجذر يف بيئته التاريخية ‪ ،‬إىل حياة الترشد واللجوء‪ ،‬بحثا عن مأوى ولقمة عيش ‪ ،‬كأنه ينظر إىل‬
‫املرآة فريى واقع الشعب الذي آل إليه حياتيا وهوية وطنية ‪ .‬فهو من عاش النكبة بتفاصيل حدثها‬
‫نضج وعيه عىل‬ ‫اليومي‪ ،‬ذلك الفتى ابن مدينة عكا والذي تهجر من يافا ‪ ،‬ليجد نفسه طفال مرشدا‪.‬‬
‫واقع مرير ‪ ،‬ثم عاش انبثاق الثورة ‪ ،‬التي حولت مخيم اللجوء إىل معسكر للثورة التي انخرط فيها‬
‫يف بداياتها ‪ .‬فأفرغ معايشاته بل ورؤاه نحو الخالص يف منتجات أدبية غزيرة ‪ ،‬يف الرواية والقصة‬
‫‪ .‬القصرية واملقالة الصحفية‬
‫تفتح وعينا األول عىل التعبريات اإليحائية املختزلة يف نصوص وروايات كنفاين‪ " ،‬اإلنسان قضية‬
‫" ‪ " ،‬ملاذا مل تطرقوا جدران الخزان " ‪ " ،‬خيمة عن خيمة بتفرق " ‪...‬وكثري غريها ‪ .‬قفزت من نصوص‬
‫رواياته إىل فضاءات حياة الفلسطينيني يف منافيهم‪ ،‬يف األرض الفلسطينية وخارجها‪ ،‬يتأملونها‬
‫ويستوحونها ‪ ،‬تلك التعبريات التي فاضت بالوجع واملعاناة ‪ ،‬ثم رست يف لغتهم تأخذ سياقاتها يف‬
‫تعرجات قضيتهم ويف سياقات مراحلها‪ ،‬تحفز وتشري إىل طريق الخالص وتدفع نحو امتشاق أدواته‪.‬‬
‫فعلت فعلها يف وعي األجيال ‪ .‬كانت كأنها مدرسة تعبوية باملضامني الوطنية التحررية ‪ ،‬مل تفقد ألقها‬
‫أو قوة تأثريها منذ البدايات وحتى اللحظة عرب تقلبات حال القضية ‪ .‬تعمق الرسد الفلسطيني لتاريخ‬
‫‪ .‬القضية مقابل الرواية املضادة يف الوعي الوطني ويف مواقف الشعوب والنخب الحرة حول العامل‬
‫لهذا عجلت استخبارات العدو يف اغتياله وتغييبه عام ‪ ، ١٩٧٢‬وهو يف بدايات عطائه‪ ،‬مل يكن قد‬
‫‪ .‬تجاوز عامه السادس والثالثني حينها‬
‫كانوا يدركون أن بندقية الثائر إن استندت إىل الثقافة ‪ ،‬تصبح ألف بندقية ‪ ،‬بل تضيف مزيدا من‬
‫‪ .‬املصداقية والرشعية وفيها انتصار للرواية‬
‫رحل مبكرا ‪ ،‬لكن ماذا لو عاش عمرا أطول ؟ رمبا لنضج إبداعيا أكرث يف كتابة النص املنحاز‬
‫‪54‬‬
‫لقضية ‪ ،‬وتعومل أكرث وحمل قضيته عىل جناح إبداعه النيص كام نريودا‪ ،‬ولوركا‪ ،‬وناظم حكمت‬
‫‪،‬ومحمود درويش ‪ ،‬إىل آفاق أوسع مام تسنى له يف عمره القصري ‪ .‬ولكان قد عايش إنحناءات‬
‫القضية ‪ ،‬انتصاراتها وانكساراتها‪ ،‬التي كرس ذاته من أجلها منذ شبابه األول‪ ،‬ثم كان قد أدرك بخربة‬
‫الكهل ان هناك مخزون من عوامل الشد إىل الخلف ‪ ،‬ما يعيق زخم التقدم إىل األمام ‪ ،‬وساهم يف‬
‫‪.‬عالجها مبا أويت من روح ومن عبقرية املفكر الثائر‬

‫– ‪Ismael Hashhash‬‬
‫‪Comitê Central da Frente Democrática‬‬
‫‪de Libertação da Palestina (FDLP).‬‬

‫‪55‬‬
Ghassan Kanafani: um ser
humano e uma causa

Ghassan Kanafani é considerado um dos ícones mais proeminen-


tes da “palavra palestina de resistência, a palavra de luta” no enfrenta-
mento e resistência à ocupação sionista e sua falsa narrativa, e a pri-
meira vítima de assassinatos e extermínios realizados pelas forças de
ocupação, após 1967.
Ele é o escritor e lutador revolucionário progressista que, em suas
posturas e escritos, se comprometeu com as questões da terra e do ser
humano. Kanafani é testemunha e mártir no caminho da luta contra a
ocupação e todas as formas de exploração, opressão nacional e de classe
social, defendendo a identidade e os direitos de seu povo contra os ini-
migos do ser humano e da dignidade, por isso foi assassinado.
Ghassan Kanafani, com suas ricas obras, se destacou como roman-
cista e contador de histórias, crítico, escritor político comprometido e
altamente capaz com alto grau de consciência, é autor de uma produção
literária que está sempre interagindo com sua vida e as preocupações
das massas populares, apostando nas suas energias, ensinando e apren-
dendo com elas seus escritos muitas vezes refletem uma realidade que
ele mesmo experimentou, viveu ou foi afetado.
Sobre isso diz Kanafani: “Aprendemos com as massas e as ensi-
namos, mas parece-me certo de que ainda não nos formamos nas esco-
las das massas. O verdadeiro mestre permanente da revolução, tem na
pureza de suas visões, parte inseparável do pão e da água, do trabalho
árduo e o batimento cardíaco.”
Tudo isso somado ao seu caráter de perseverança no trabalho,
senso delicado, humildade, honestidade, sacrifício e fidelidade às suas

56
convicções humanas e patrióticas, que é sintetizado no ditado popular:
“Uma pessoa que não se vende, nem se compra”.
Após a difusão dos escritos e criações de Ghassan Kanafani, que
contribuíram para iluminar diversos caminhos em nível nacional e
humanitário, seus romances foram traduzidos para vários idiomas,
entre eles: “A terra das laranjas tristes, Homens ao sol, Umm Sa’ad,
Tudo o que resta para você, Um mundo que não é nosso... e outros,
foram traduzidos em alemão, inglês, dinamarquês, italiano, espanhol,
francês e, agora, em português.
A contribuição de Ghassan Kanafani, como outros ativistas e
criadores ilustres, levou à difusão da causa palestina em grande escala,
estimulando e fortalecendo a solidariedade internacional com ela. Por
tudo isso, Ghassan se tornou modelo proeminente da cultura nacional
e da literatura de resistência palestina, bem como da literatura e valo-
res de luta por liberdade em todos os níveis.
Ghassan Kanafani dedicou seus escritos para transmitir o sofri-
mento dos palestinos na diáspora e sempre enfatizou que o exílio nos
campos não é uma solução para o povo palestino. Assim, em seu ro-
mance “A morte na cama número 12”, descreveu como pessoas se trans-
formam em números no exílio e acabam vivendo em estado de solidão
sem pensar em uma solução coletiva para o retorno: “eles não tinham
sentimento de pertencimento e os outros não se sentiam árabes.”
Ele foi assassinado pelas mãos das forças de ocupação sionistas
na manhã de sábado, 08/07/1972, após a explosão de um grande arte-
fato explosivo que foi colocado em seu carro em sua casa. Essa ação
resultou em sua morte quando tinha apenas 36 anos, juntamente com
o martírio de sua sobrinha Lamis Hussein Najm, 17 anos. São capítu-
los de sua épica luta em que Ghassan Kanafani pagou com a vida um
alto preço, por suas posturas e seus ilustres escritos.

57
Hoje, passados cinquenta anos desde seu assassinato, cujos ob-
jetivos, não alcançados, eram calar sua voz, apagar seu legado revolu-
cionário, que tanto contribuiu para destacar e proteger a identidade
nacional do povo palestino.

Fahmi Shaheen –
Comitê Central do Partido do Povo Palestino (PPP).

58
‫غسان كنفاين‪ ..‬انسان وقضية‬

‫يعد كنفاين واحدا من أبرز رموز "الكلمة الفلسطينية املقاومة‪ ،‬الكلمة املقاتلة" يف مجابهة ومقاومة‬
‫االحتالل الصهيوين وروايته املزيفة‪ ،‬وأول ضحايا عمليات االغتيال والتصفيات الجسدية التي قامت‬
‫‪.‬بها أجهزة االحتالل بعد العام ‪1967‬‬
‫إنه األديب واملناضل الثوري التقدمي الذي التزم يف مواقفه وكتاباته بقضايا األرض واإلنسان‪ ،‬وهو‬
‫الشاهد والشهيد عىل درب النضال ضد االحتالل وجميع أشكال االستغالل واالضطهاد القومي‬
‫والطبقي‪ ،‬والدفاع عن هوية وحقوق شعبه‪ ،‬وهو الذي أكد مجددا َ مع غريه من املبدعني واملناضلني‬
‫الفلسطينيني‪ ،‬أن الكلمة أمىض عىل أعداء االنسان وكرامة ومصالح الشعوب من السالح‪ ،‬ولهذا‬
‫‪.‬أغتيل‬
‫لقد مثل غسان كنفاين بأعامله الذاخرة والرثية‪ ،‬منوذجاً خاصاً للروايئ والقاص والناقد‪ ،‬والكاتب‬
‫السيايس امللتزم واملتمكن بدرجة عالية من الوعي‪ ،‬وهو صاحب إنتاج أديب متفاعل دامئاَ مع حياته‬
‫وحياة وهموم الجامهري الشعبية‪ ،‬مراهناَ عىل طاقاتها وتعليمها والتعلم منها‪ ،‬وكثري ما عكست كتاباته‬
‫‪.‬واقعا عايشته وعايشه أو تأثر به‬
‫عن ذلك يقول كنفاين‪ :‬إننا نتعلم من الجامهري ونعلمها‪ ،‬ومع ذلك فإنه يبدو يل يقينا أننا مل نتخرج‬
‫بعد من مدارس الجامهري؛ املعلم الحقيقي الدائم الذي تكون الثورة يف صفاء رؤياه جزءا ال ينفصم‬
‫‪.‬عن الخبز واملاء وأكف الكدح ونبض القلب‬
‫كل هذا إىل جانب ما متيزت به شخصيته من مثابرة بالعمل‪ ،‬حس مرهف‪ ،‬تواضع ونظافة يد‪،‬‬
‫وتضحية ووفاء لقناعاته االنسانية والوطنية‪ ،‬وهو الذي ينطبق عليه قول‪ :‬اإلنسان الذي ال يباع وال‬
‫‪.‬يشرتى‬
‫بعد انتشار كتابات وابداعات غسان كنفاين التي أسهمت يف أضاءت دروبا عدة عىل املستوى‬
‫الوطني واالنساين‪ ،‬جرى ترجمة رواياته إىل العديد من اللغات‪ ،‬وبينها‪" :‬أرض الربتقال الحزين‪ ،‬رجال‬
‫يف الشمس‪ ،‬أم سعد‪ ،‬ما تبقى لكم‪ ،‬عامل ليس لنا‪ ..‬وغريها‪ ،‬إىل األملانية واإلنكليزية والدامناركية‬
‫‪،‬واإليطالية واإلسبانية والفرنسية‬
‫إن ذلك أدى إىل اسهام غسان كنفاين كغريه من املبدعني واملناضلني املميزين يف نرش القضية‬
‫الفلسطينية عىل نطاق واسع‪ ،‬وتحفيز التضامن األممي معها وتعزيزه‪ .‬وبسبب كل ذلك أصبح غسان‬
‫رمزا َ بارزا َ من رموز الثقافة الوطنية وأدب املقاومة الفلسطينية‪ ،‬وكذلك أدب وقيم النضال والحرية عىل‬
‫‪.‬األصعدة كافة‬
‫لقد كرس غسان كنفاين كتاباته لنقل معاناة الفلسطينيني يف الشتات‪ ،‬وكان دامئاَ يؤكد أن اللجوء يف‬
‫املخيامت ليس حال للشعب الفلسطيني‪ .‬فعىل سبيل املثال وليس الحرص‪ ،‬كتب يف روايته "موت‬
‫رسير رقم ‪ "12‬كيف يتحول الغرباء إىل أرقام باملنايف‪ ،‬ويعيشون حالة الوحدة دون التفكري يف حل‬
‫‪59‬‬
‫‪".‬جامعي بالعودة‪" ،‬فهم مل يكونوا يشعرون باالنتامء‪ ،‬واآلخرون مل يشعروهم بأنهم عرب‬
‫لتكتمل فصول ملحمته الكفاحية‪ ،‬دفع غسان كنفاين حياته مثناَ باهظاَ نتيجة مواقفه وكتاباته املميزة‪،‬‬
‫فقد تعرض لجرمية اغتيال عىل يد أجهزة االحتالل الصهيوين صباح يوم السبت املوافق ‪،8/7/1972‬‬
‫إثر إنفجار عبوة ناسفة كبرية كانت وضعت يف سيارته تحت منزله‪ ،‬ما أسفر عن استشهاده وهو بعمر‬
‫‪.‬الـ‪ 36‬عاماَ فقط‪ ،‬إىل جانب استشهاد إبنة شقيقته مليس حسني نجم ‪ 17‬عاماَ‬
‫اليوم وقد مر خمسون عاماَ عىل جرمية اغتياله التي اريد منها اسكات صوتاَ‪ ،‬إال انها مل تستطع ان‬
‫‪.‬تطمس اسامَ وإرثاَ ثورياَ أسهم يف إبراز وحامية الهوية الوطنية لشعبه‬
‫فهمي شاهني – فلسطني‬

‫– ‪Fahmi Shaheen‬‬
‫‪Comitê Central do Partido do Povo Palestino (PPP).‬‬

‫‪60‬‬
Revista Al Hadaf:
A Marcha Contínua

Escrever sobre a experiência da revista Al Hadaf, após 52 anos de sua


fundação pode não ser fácil, diante da escassez de fontes nas quais o escritor
pode contar, para investigar com objetividade e trabalhar para dar informa-
ções conclusivas sobre as insinuações desde o início de sua fundação. Espe-
cialmente nesse caso, pois o seu fundador e primeiro editor-chefe, aquele,
que detém as chaves de algumas janelas fechadas de uma experiência midiá-
tica única: intelectual, política e literária. Aqueles que sobreviveram e acom-
panharam essa experiência ou escreveram sobre ela, não presenciaram todos
os detalhes e contextos do processo de fundação ou a morte fez desaparecer
os que sabiam, e assim já não podemos mais retornar àqueles detalhes. Tra-
balhamos o máximo possível para investigar as informações e detalhes que
achamos úteis para o leitor, do nosso ponto de vista, e colocá-lo diante de um
bom resultado da história do Al Hadaf: fundamento, experiência e caminho.
Temos plena convicção de que a trajetória de 52 anos de vida contínua Al
Hadaf merece ser registrado em mais de um artigo.

Sobre os primórdios: Al Hadaf veio


à tona no ventre da crise.

Começou-se a pensar seriamente na necessidade de ter uma revista ou


jornal falando em nome da Frente, em 1968, mas o assunto não se cristalizou
em sua plenitude até 1969, quando foram cumpridas as exigências para o
lançamento da revista. A Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP)
precisava ter uma revista ou jornal de mídia que expressasse suas visões po-
líticas e ser fonte de mobilização para suas bases e as massas da revolução
palestina. Não é possível contornar a crise interna que afligiu o Movimento

61
Nacionalista Árabe (MNA), surgida devido a uma série de contradições, sen-
do a mais proeminente:

Um grupo de líderes adotou um novo pensamento e tentou introduzi-lo


nas linhas gerais do movimento, suscitando amplo debate e polêmica em
seus núcleos em todo o mundo árabe. O grupo que supervisionou e con-
trolou a publicação da revista da Liberdade, “porta-voz do movimento
MNA”, dedicou um número da revista para expressar um ponto de vista
sobre a transição para uma organização “marxista-leninista”. Sem dei-
xar espaço de argumentação para o ponto de vista contrário.

A Frente (FPLP) herdou essa crise, desde o início, de sua fundação,


expressa pela cisão da Frente Democrática com controle contínuo da revista
Liberdade. O que desencadeou a ação de George Habash e Wadie Haddad
para lançar uma revista da organização palestina, unindo interesses nacio-
nais e internacionais, encarregando o saudoso combatente Abu Maher Al
Yamani de buscar um “privilégio de publicar um jornal” e comprá-lo, pois as
concessões no Líbano eram limitadas e as emissões de novas haviam sido in-
terrompidas. O mercado de concessões se tornou limitado e seus preços au-
mentaram drasticamente, mas um dos amigos do movimento nacionalista, o
falecido lutador Tawfiq Al Tibi, possuía a concessão para publicar um jornal
chamado “Al Hadaf ” e, junto com Ghassan Kanafani, discutiram sobre a pre-
sidência da revista. Ghassan era, na época, um dos jornalistas mais brilhantes
da comunidade libanesa. Ele tinha cidadania libanesa - por sua habilidade -
principalmente porque o franqueador e o gerente responsáveis deveriam ser
libaneses, de acordo com as leis vigentes no Líbano à época. Assim sendo, a
franquia de Al Hadaf foi registrada em nome de Ghassan Kanafani, e Ghada
seu editor-chefe, enquanto um jornalista libanês concordou em assumir o
cargo de diretor responsável perante os tribunais (Bassam Abu Sharif). Em
1969, foi publicado o primeiro número da revista Al Hadaf tendo Ghassan
como editor-chefe com o título Ghassan Kanafani – A Entrevista.
62
Ghassan Kanafani e Al Hadaf:
um romance de dentro

Ghassan Kanafani conta que sua vida política começou em 1952, aos
quatorze ou quinze anos, quando conheceu o Dr. George Habash, em 1953,
pela primeira vez, em Damasco. Assim que começou sua vida política, tra-
balhava como revisor em uma gráfica, quando decidiu se juntar às fileiras
do Movimento Nacionalista Árabe (MNA).
Durante a permanência de Ghassan no Kuwait, exerceu atividades
políticas dentro do movimento e, em 1960, foi convidado a mudar para
o Líbano para trabalhar no jornal do partido. Em 1967, após a derrota de
junho, foi convidado a se juntar à Frente Popular de Libertação da Palesti-
na (o braço palestino do Movimento Nacionalista Árabe), que foi fundado
em dezembro de 1967, e continuou a trabalhar na comunidade jornalística
libanesa até a fundação da revista Al Hadaf, chefiando sua redação.
De acordo com Ghassan, Al Hadaf fazia parte da estrutura midiática
da FPLP, segundo o conceito de mídia, que não se limita apenas à propa-
ganda, mas vai além na educação, formação política etc. Essa foi sua missão,
confiada pelo Comitê Central de Mídia, que Ghassan representou através
de sua presidência, auxiliado por um grupo especializado em ler e avaliar a
Al Hadaf, escrever artigos e discutir editoriais conjuntamente.
Além do benefício geral das massas com as matérias publicadas
nas páginas da revista, segundo Ghassan, os membros do partido que
trabalhavam no campo organizacional também se beneficiaram na orga-
nização de palestras, programa educativo interno, reuniões e formação
de comunicadores para expressar o ponto de vista da Frente Popular de
Libertação da Palestina. Além do fato de que pelas regras da organização,
eles eram consultados sobre materiais que poderiam ser usados na comu-
nicação de massas.
63
Ghassan diz:

“Trabalhar [no jornal] é muito estressante. É assim que me sinto agora


que terminei a edição desta semana. Estou exausto e é terrível para al-
guém trabalhar em um jornal como este. No momento em que termina
a última frase da outra edição, você se encontra de repente cerca de
vinte páginas em branco que você precisa preencher. O jornal está su-
jeito a críticas e trabalhar com ele não é como trabalhar em um jornal
comum, no qual você só tem que fazer o seu trabalho. Quanto ao nos-
so jornal, os detalhes mais minuciosos são discutidos pelos [diferentes
círculos dentro da frente], como eles são lidos com atenção, e por isso é
muito difícil para uma pessoa fazer um trabalho integrado perante este
grande corte que consiste em [outros] membros da Frente. Uma pessoa
tem que colocar muito esforço... e é difícil para os outros acreditarem
que só três pessoas, lideram Al Hadaf... A gente consegue ajuda [extra]
de uma quarta pessoa, às vezes não conseguimos, na melhor das hipó-
teses, mais de quatro pessoas para preencher vinte páginas. Não acho
que nenhum dos camaradas trabalhe menos de 13 a 14 horas por dia,
sem parar, sem férias e sem pena dos críticos.”

Vale notar que a revista não preencheu todas as suas páginas com arti-
gos e escritos políticos, desde a edição do primeiro número, arte e literatura
de todos os tipos teve presença permanente em suas páginas. Assim duas
páginas foram dedicadas à literatura, crítica de cinema, arte teatral, desenho
e outros. Ghassan dizia que achava esses dois jornalistas que integravam a re-
vista, os mais populares, porque muitos dos integrantes da FPLP conheciam
a linha de pensamento de esquerda através deles.

64
Os escritores críticos: com fome
ou saciados juntos

Um dos marcos luminosos que registra a marcha e a experiência da


revista Al Hadaf foi levantar o slogan “Toda a verdade para as massas”, vincu-
lando a luta de libertação palestina à libertação árabe e internacional, como
uma referência para todos os revolucionários. Durante o curto período desde
sua criação, conseguiu atrair em poucos anos muitos escritores e intelectuais
árabes, cujo número chegou à metade dos trabalhadores da revista na pri-
meira metade dos anos setenta do século passado. A ironia é que a maioria
deles eram críticos aos regimes políticos de seus países árabes, aqueles com
os quais a FPLP mantinha relações formais como o Iraque ou algum tipo de
comunicação como o Líbano e Síria.
De acordo com o que foi narrado pelo falecido Hani Habib (Nabil Sha-
nino), e confirmado pelo diretor iraquiano Qassem Hawl quando Ghassan
Kanafani o encontrou, depois de fugir do Iraque, dizendo-lhe: “Venha co-
nosco, passe fome conosco quando tivermos fome e esteja satisfeito conosco
quando estivermos saciados”. Foi o que aconteceu: criação de uma ramifi-
cação para o cinema apresentou a primeira peça “Criança sem endereço”, a
primeira experiência de Qassem com Al Hadaf, após a criação de uma escola
de teatro para jovens e crianças.
Hawally afirma:

“Ao longo do meu trabalho na revista Al Hadaf, Ghassan Kanafani não


omitiu uma única letra dos meus artigos. Ele era um excelente jornalis-
ta, que dominava a arte das manchetes, ou seja, como dar título a um
artigo. Costumava nos dizer: O título deve ser vago e indireto, além de
interessante.” “Hawl” continua: “Aprendemos com Ghassan bondade e
humildade; durante o horário de trabalho, você só via Ghassan Kana-
65
fani vagando entre os departamentos. Costumávamos comer enquanto
trabalhávamos; você o via tirando uma azeitona deste e um pedaço de
pão daquele. Ele criou uma família inteira; não éramos funcionários da
revista Al Hadaf, éramos a família da Al Hadaf ”.

Mencionamos nomes de escritores e intelectuais árabes, muitos dos


quais ainda vivos: Ghayer Qassem Hawal, Abdul-Hussein Shaaban, Saad Al
Maleh, Adnan Badr Helou (trabalhou como secretário editorial da Al Ha-
daf), Nabil Zaki, Mahmoud Dawarji (diretor artístico da Al Hadaf na época),
Muhammad Jamal Barout, Ahmed Saeed Najm, Hani Daniel, Qais Al Az-
zawi, Youssef Al Nasser, Al Qasimi Abu Al Saber, Hassan M. Youssef, Adnan
Hussein... a lista continua.

Pausa e continuidade em
um processo sucessivo

A marcha do Al Hadaf não tomou uma linha ascendente em termos de


sua continuação, pois foi submetida a muitas interrupções editoriais. Dadas
as condições objetivas vividas, pela revolução palestina, incluindo a FPLP,
refiro-me à guerra que o inimigo sionista lançou contra nós, no Líbano, em
1982. Embora tenha se transformado durante os quase três meses de guerra,
de uma revista semanal em uma publicação diária, no entanto, a saída das
forças revolucionárias palestinas, incluindo a FPLP, paralisou a publicação
da revista, até que foi reeditada novamente, em Damasco, em 1983. Também
deixou de ser emitida no início dos anos noventa, devido à crise financeira
que se abateu sobre a FPLP; na época não se conseguiu cumprir as obrigações
financeiras para a publicação da revista. É útil mencionar, em meados da
década de 1970, os rendimentos financeiros da revista eram apenas oriundos
da venda nos Estados Unidos e cobriam as despesas com sobras. Da mesma
forma, foi reeditada novamente e também interrompida mais de uma vez. O
66
último deles durou sete anos, até que foi tomada a decisão de reeditá-la - di-
gitalmente e em papel - em março de 2019. Até a redação deste artigo foram
publicadas 37 edições de um total de 1511 edições emitidos em sequência
geral. E a marcha do Al Hadaf continua.

Wissam Al Faqawi –
editor-chefe da revista Al Hadaf.

67
‫د‪ .‬وسام الفقعاوي‬

‫رئيس تحرير مجلة وبوابة الهدف‬

‫قد ال تكون الكتابة عن تجربة مجلة الهدف بعد ‪ 52‬عا ًما عىل تأسيسها أم ًرا يس ًريا‪ ،‬خاصة يف‬
‫ضوء شح املصادر التي ميكن أن يعتمد عليها الكاتب الذي يتحرى املوضوعية ويعمل عىل إعطاء‬
‫معلومات شافية حول اإلرهاصات التي واكبت بداية تأسيسها‪ ،‬خاصة وأن مؤسسها ورئيس تحريرها‬
‫األول‪ ،‬وبالتايل من ميلك مفاتيح بعض النوافذ املغلقة عىل تجربة إعالمية‪ :‬فكرية وسياسية وأدبية‬
‫فريدة؛ تم اغتياله بعد أقل من ثالث سنوات من تأسيسها‪ ،‬وعليه فإن استقاء املعلومات حول هذه‬
‫سهل أو يس ًريا‪ ،‬لكنه عكس ذلك‪ ،‬خاصة وأن من بقي عىل قيد الحياة ممن‬
‫التجربة قد يبدو للبعض ً‬
‫واكب تجربتها األوىل أو كتب عنها‪ ،‬إما مل يعارص تفاصيل وكواليس عملية التأسيس أو غيبه املوت‬
‫ومل يعد مبقدرتنا العودة إليه يف بعض تلك التفاصيل‪ ،‬لكن عملنا قدر اإلمكان عىل تحري املعلومات‬
‫والتفاصيل التي رأيناها مفيدة للقارئ – من وجهة نظرنا – وتضعه أمام حصيلة ال بأس بها من تجربة‬
‫تأسيسا وتجرب ًة ومسريةً‪ ،‬رغم قناعتنا التامة أن تجرية ‪ 52‬عا ًما من عمر “الهدف” املتواصل؛‬
‫ً‬ ‫الهدف‪:‬‬
‫‪.‬تستحق تسجيلها فيام هو أكرث من مقال‬

‫عن البدايات‪ :‬الهدف تخرج إىل النور من رحم األزمة‬

‫بدأ التفكري جديًا يف رضورة وجود مجلة أو صحيفة ناطقة باسم الجبهة‪ ،‬يف عام ‪ ،1968‬لكن مل يكن‬
‫األمر قد تبلور بصورته الكاملة إال يف عام ‪ ،1969‬عندما اكتملت متطلبات إطالق املجلة‪ ،‬فإىل‬
‫جانب أن الجبهة (الحزب) الناشئ بحاجة ملجلة أو صحيفة إعالمية تعرب عن آرائه السياسية وتكون‬
‫مصدر تعبئة لقواعده ولجامهري الثورة الفلسطينية‪ ،‬فإنه ال ميكن تجاوز األزمة الداخلية التي كانت قد‬
‫عصفت بحركة القوميني العرب‪ ،‬والتي نشأت بسبب عدد من التعارضات وكان أبرزها؛ تبني مجموعة‬
‫من الكوادر فك ًرا جديدًا؛ حاولت طرحه داخل صفوف الحركة‪ ،‬مام أثار نقاشً ا وجدلً واس ًعا يف صفوفها‬
‫يف كل أقاليمها‪ ،‬وقامت املجموعة التي كانت مرشفة عىل إصدار مجلة الحرية “الناطقة باسم الحركة”‬
‫ومسيطرة عليها‪ ،‬بتكريس املجلة لطرح وجهة نظر واحدة حول التحول إىل تنظيم “ماركيس لينيني”؛‬
‫دون إفساح املجال لوجهة النظر املخالفة لتأخذ حي ًزا عىل صفحاتها‪ ،‬وكانت الجبهة قد ورثت هذه‬
‫األزمة منذ بداية تأسيسها‪ ،‬والتي ُع ّب عنها من خالل انشقاق الجبهة الدميقراطية واستمرار سيطرتها‬
‫عىل مجلة الحرية‪ ،‬مام عجل عند جورج حبش ووديع حداد التفكري برضورة العمل إلصدار مجلة‬
‫خاصة بالتنظيم الفلسطيني لحركة القوميني العرب‪ ،‬ولها اهتاممات قومية وأممية وكلف املناضل‬

‫‪68‬‬
‫الراحل أبو ماهر اليامين بالبحث عن “امتياز إصدار صحيفة” لرشائه‪ ،‬حيث كانت االمتيازات يف‬
‫لبنان محدودة وكان قد أُوقف إصدار امتيازات جديدة؛ فأصبحت سوق االمتيازات سوقًا محدودة‬
‫وارتفعت أسعارها بشكل كبري‪ ،‬لكن أحد أصدقاء حركة القوميني وهو املناضل الراحل توفيق الطيبي‪،‬‬
‫كان ميلك امتياز إصدار صحيفة باسم “الهدف”‪ ،‬حيث جرى جمع مبلغ االمتياز من بعض أصدقاء‬
‫حركة القوميني العرب يف األردن‪ ،‬وكُلف بسام أبو رشيف‪ ،‬ببحث أمر رئاسة املجلة أو الصحيفة‪ ،‬مع‬
‫غسان كنفاين وكان غسان حينها‪ ،‬من أملع الصحفيني يف الوسط اللبناين؛ فقد كان يحمل الجنسية‬
‫اللبنانية – بسبب مهارته وتفوقه ‪ -‬خاصة وأن صاحب االمتياز يجب أن يكون لبنانيًا واملدير املسؤول‬
‫كذلك أيضً ا يجب أن يكون لبنان ًيا‪ ،‬بحسب القوانني املعمول بها يف لبنان‪ ،‬لذلك ُسجل امتياز الهدف‬
‫باسم غسان كنفاين‪ ،‬وغدا رئيس تحريرها‪ ،‬بينام وافق صحفي لبناين عىل شغل موقع املدير املسؤول‬
‫أمام املحاكم‪( ،‬بسام أبو رشيف) ويف عام ‪ 1969‬صدرت أوىل أعداد مجلة الهدف التي بارش غسان‬
‫رئيسا لتحريرها (غسان كنفاين ‪ -‬املقابلة‬
‫‪).‬عمله ً‬

‫غسان كنفاين والهدف‪ :‬رواية من الداخل‬

‫يروي غسان كنفاين بأن حياته السياسية بدأت عام ‪ 1952‬عندما كان يف الرابعة عرشة أو الخامسة‬
‫عرشة من عمره‪ ،‬حيث كان قد التقى بالدكتور جورج حبش عام ‪ 1953‬يف دمشق ألول مرة عن طريق‬
‫الصدفة‪ ،‬وكان يعمل يومها مصح ًحا يف مطبعة‪ ،‬وانخرط يف صفوف حركة القوميني العرب وهكذا‬
‫‪.‬ابتدأت حياته السياسية‬
‫خالل إقامة غسان يف الكويت‪ ،‬مارس نشاطات سياسية ضمن الحركة‪ ،‬ويف عام ‪ 1960‬طُلب منه‬
‫أن ينتقل إىل لبنان للعمل يف صحيفة الحزب‪ .‬ويف عام ‪ ،1967‬وتحددًا بعد هزمية يونيو‪/‬حزيران؛‬
‫طُلب منه أن يعمل مع الجبهة الشعبية لتحرير فلسطني (الفرع الفلسطيني لحركة القوميني العرب) التي‬
‫كانت قد تأسست يف كانون أول‪/‬ديسمرب ‪ ،1967‬واستمر يف العمل يف الوسط الصحفي اللبناين إىل‬
‫‪.‬أن تأسست مجلة الهدف التي ترأس تحريرها‬
‫بحسب غسان؛ فقد شكلت “الهدف” جز ًءا من البنية اإلعالمية للجبهة‪ ،‬حسب مفهوم اإلعالم الذي ال‬
‫يقترص عىل الدعاية فقط‪ ،‬بل يتعداها إىل التثقيف والتعليم إلخ‪ ...‬لهذا كانت مهمتها؛ مناطة باللجنة‬
‫املركزية لإلعالم‪ ،‬التي مثلها غسان من خالل رئاسته لتحريرها‪ ،‬حيث كانت هناك لجنة تقرأ “الهدف”‬
‫‪.‬وتقيّمها وتكتب املقاالت وتناقش االفتتاحيات‬
‫إىل جانب االستفادة العامة من قبل الجامهري من املواد الصادرة عىل صفحات املجلة‪ ،‬بحسب ما‬
‫يروي غسان؛ كان يستفيد أيضً ا العاملون يف املجال التنظيمي منها‪ ،‬يف ترتيب املحارضات والربنامج‬
‫التعليمي الداخيل واللقاءات واالتصاالت مع الجامهري للتعبري عن وجهة نظر الجبهة الشعبية‪،‬‬
‫إضافة إىل أن القواعد التنظيمية كان تستشريهم يف املواد التي ميكن أن يستفاد منها يف التواصل‬
‫‪69‬‬
‫‪.‬مع الجامهري‬
‫يقول غسان‪“ :‬إن العمل [يف الصحيفة] مرهق جدا ً‪ .‬هذا هو شعوري اآلن وقد أمتمت عدد هذا األسبوع‪.‬‬
‫إنني أشعر باإلرهاق وأنه ألمر مروع ألي كان أن يعمل يف صحيفة كهذه‪ .‬ففي اللحظة التي تنهي بها‬
‫آخر جملة من العدد اآلخر؛ تجد نفسك فجأة تجاه عرشين صفحة فارغة عليك أن متألها‪ .‬كام أن كل‬
‫سطر وعنوان وصورة يف الصحيفة تناقش من قبل [أعضاء] الجبهة ويرصد أقل خطأ كان‪ .‬فالصحيفة‬
‫إذن عرضة للنقد والعمل بها ال يشبه العمل يف صحيفة عادية‪ .‬ففي الصحيفة العادية عليك فقط أن‬
‫تنجز عملك أما يف صحيفتنا فإن أدق التفاصيل توضع موضع النقاش من قبل الدوائر [املختلفة داخل‬
‫الجبهة] إذ أنها تقرأ بإمعان‪ ،‬وبالتايل من الصعب جدا ً عىل اإلنسان أن يقوم بعمل متكامل أمام هذه‬
‫املحكمة الكبرية التي تتألف من [سائر] أعضاء الجبهة‪ ،‬وبالتايل يشعر اإلنسان بأن عليه أن يبذل جهدا ً‬
‫أكرث‪ ...‬وإنه ملن الصعب أن يصدق اآلخرون بأن ثالثة أشخاص فقط‪ ،‬يقومون بتحرير الهدف‪ ...‬ونحن‬
‫نحصل عىل مساعدة [إضافية] من شخص رابع أحيانًا؛ غري أنه يُسحب منا ثم نحصل عىل غريه وتعاد‬
‫الكرة من جديد‪ ،‬وبالتايل نحن مل نحصل يف أحسن الحاالت عىل أكرث من أربعة أشخاص كان عليهم‬
‫أن ميلؤوا عرشين صفحة‪ ..‬ال أظن أن أيًا من الرفاق يعمل أقل من ‪ 13-14‬ساعة يف اليوم‪ ،‬وذلك بال‬
‫‪”.‬توقف وبال عطلة وبال شفقة من الناقدين‬
‫ومن الجدير ذكره‪ ،‬أن املجلة مل متأل جميع صفحاتها باملقاالت والكتابات السياسية؛ فمنذ صدور العدد‬
‫األول‪ ،‬كان للفن واألدب بأنواعه حضو ًرا دامئًا عىل صفحاتها‪ ،‬حيث كانت صفحتني منها مخصصة‬
‫لألدب والنقد السيناميئ والفن املرسحي والرسم وغريه‪ ،‬ويقول غسان‪ :‬بأنه كان يظن أن هاتني الصحفيتني‬
‫‪.‬هام األكرث روا ًجا‪ ،‬ألن الكثريين من أعضاء الجبهة يتعرفون عىل خط التفكري اليساري من خاللهام‬

‫ال ُكتَّاب من املعارضني العرب‪ :‬نشبع ونجوع م ًعا‬

‫من املعامل املضيئة التي تستوقف املرء وتسجل من مسرية وتجربة مجلة الهدف التي رفعت شعار‬
‫“كل الحقيقة للجامهري”‪ ،‬وهي التي ربطت النضال التحرري الفلسطيني بالنضال التحرري العريب‬
‫والعاملي‪ ،‬بحيث شكلت عنوانًا ورافدًا للثوريني عىل املستويني العريب والعاملي؛ انه خالل فرتة وجيزة‬
‫من انطالقتها استطاعت أن تستقطب الكثري من ال ُكتَّاب واملثقفني العرب‪ ،‬والذين وصل عددهم يف‬
‫النصف األول من سبعينيات القرن املنرصم؛ إىل نصف العاملني يف املجلة‪ ،‬واملفارقة هنا أيضً ا أن‬
‫معظمهم من املعارضني ألنظمتهم السياسية؛ تلك األنظمة التي كانت الجبهة تقيم مع بعضها عالقات‬
‫رسمية‪ ،‬مثل‪ :‬العراق أو هناك نوع من أنواع االتصال والتواصل‪ ،‬مثل‪ :‬لبنان وسوريا؛ فبحسب ما‬
‫روى الراحل هاين حبيب (نبيل شنينو)‪ ،‬وأكده املخرج العراقي قاسم حول‪ ،‬حينام التقاه غسان كنفاين‬
‫قائل له‪ :‬تعال معنا‪ ،‬جوع معنا عندما نجوع‪ ،‬واشبع معنا عندما نشبع‪ ،‬وهذا ما‬
‫بعد هربه من العراق‪ً ،‬‬
‫وقدمت أول مرسحية “طفل بال عنوان”‪ ،‬وهي التجربة األوىل‬
‫ُ‬ ‫حصل‪ ،‬حيث تم تأسيس فرع للسينام‬
‫‪70‬‬
‫‪.‬لقاسم مع “الهدف”‪ ،‬بعد أن تم تأسيس مدرسة لتعليم املرسح للشباب واألطفال‬
‫ويذكر “حول”‪“ :‬أنه طوال عميل يف مجلة الهدف‪ ،‬مل يحذف غسان كنفاين من مقااليت حرفًا واحدًا‪ ،‬فإذا‬
‫كان يرغب بالتعديل‪ ،‬يُعدّل بعض الكلامت لغويًا‪ .‬غسان مل يكُن يتدخّل يف إبداعنا‪ ،‬وهو من الصحفيّني‬
‫ُ‬
‫يقول لنا‪ :‬إ ّن العنوان يجب أن يكون‬ ‫األفذاذ‪ ،‬الذين يتقنون ف ّن ال َعنونة‪ ،‬أي كيف يعن َون املقال‪ .‬وكان‬
‫غامضً ا غري مبارشٍ‪ ،‬وكذلك ُمش ّوقًا”‪ .‬ويكمل “حول”‪“ :‬لقد تعلّمنا من غسان الطيبة والتواضع؛ خالل فرتة‬
‫الدوام ما تشوف إال غسان كنفاين يتجول بني األقسام‪ ،‬كُ ّنا نأكل ونح ُن نعمل؛ فرتاه يأخذ حبة زيتون من‬
‫‪”.‬هذا‪ ،‬وقطعة خبز من ذاك؛ فخلق أرس ًة كاملة؛ مل نكُن موظفني يف مجلة الهدف‪ ،‬بل كُ ّنا أرسة الهدف‬
‫نذكر من أسامء ال ُكتَّاب واملثقفني العرب والذين ما يزال منهم العديد عىل قيد الحياة؛ غري قاسم حول‪،‬‬
‫عبد الحسني شعبان‪ ،‬سعد املالح‪ ،‬عدنان بدر حلو (عمل كسكرتري تحرير للهدف)‪ ،‬نبيل زيك‪ ،‬محمود‬
‫داورجي (املخرج الفني للهدف حينها)‪ ،‬محمد جامل باروت‪ ،‬أحمد سعيد نجم‪ ،‬هاين دانيال‪ ،‬قيس‬
‫العزاوي‪ ،‬يوسف النارص‪ ،‬الجمعي القاسمي أبو الصابر‪ ،‬حسن م‪ .‬يوسف‪ ،‬عدنان حسني‪ ..‬والقامئة‬
‫‪.‬تطول‬

‫انقطاع ووصل يف مسرية مستمرة‬

‫مل تتخذ مسرية الهدف خطًا متصاعدًا لجهة استمرار صدورها‪ ،‬حيث تعرضت مسريتها إىل العديد من‬
‫عمليات االنقطاع عن الصدور؛ بسبب الظروف املوضوعية التي عاشتها الثورة الفلسطينية ومنها‬
‫الجبهة الشعبية‪ ،‬وأقصد الحرب التي شنها العدو الصهيوين ضدها يف لبنان عام ‪ ،1982‬عىل الرغم‬
‫من أنها تحولت طيلة أيام الحرب التي قاربت الثالث شهور؛ من مجلة تصدر مرة أسبوعيًا إىل مجلة‬
‫تصدر يوم ًيا‪ ،‬إال أن خروج قوات الثورة الفلسطينية ومنها الجبهة أوقف صدور املجلة‪ ،‬إىل أن أعيد‬
‫صدورها مرة أخرى من دمشق عام ‪ ،1983‬وكذلك تعطلت عن الصدور يف بداية سنوات التسعينيات؛‬
‫بسبب األزمة املالية التي عصفت بالجبهة‪ ،‬حيث مل تستطع يف حينه اإليفاء بااللتزامات املالية‬
‫املستحقة لصدور املجلة؛ يف حني قد يكون من املفيد ذكر‪ ،‬أنه يف منتصف السبعينيات كانت العوائد‬
‫املالية من ريع بيع املجلة يف الواليات املتحدة وحدها؛ تغطي مصاريفها وتزيد‪ .‬وكذلك‪ ،‬أعيد إصدارها‬
‫آخرها استمر إىل سبع سنوات إىل أن ا ُتخذ قرار بإعادة‬ ‫مجددًا وتكرر انقطاعها أيضً ا أكرث من مرة؛‬
‫إصدارها مجددًا ‪ -‬رقم ًيا وورق ًيا ‪ -‬يف شهر آذار‪/‬مارس ‪ ،2019‬وحتى كتابة هذا املقال؛ صدر منها‬
‫رقيم (‪ )1511‬عددًا بالتسلسل العام‪ ..‬وما تزال مسرية الهدف مستمرة‬
‫‪ )37(.‬عددًا ً‬

‫– ‪Wissam Al Faqawi‬‬
‫‪editor-chefe da revista Al Hadaf.‬‬
‫‪71‬‬
Ghassan Kanafani
- para além da
esquerda na
Palestina

72
Artista: Nabil Anani

73
“A luta pela libertação da Palestina, por um Estado
laico, democrático e livre de todas as formas de
discriminação racial e religiosa é uma parte vital da
luta internacional por justiça e igualdade.”

Ghassan Kanafani

74
Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.

Ghassan Kanafani do ponto de vista do HAMAS.

Eu sou Dr. Salah Al Bardawil tenho doutorado em literatura pales-


tina, sou membro do Bureau político do HAMAS e estudei a literatura de
Ghassan Kanafani.
A propósito, fui editor-chefe do jornal Al Risala, que é publicado, em
Gaza, e escrevi uma coluna política satírica e realista sob o título “Das ruas
da pátria”. Escrevi ao longo de cinco anos cerca de 500 histórias curtas, que
conquistaram a admiração dos leitores da época e influenciaram seus pensa-
mentos, principalmente, as classes populares e os intelectuais.
Por ser também um escritor, sinto muito por Ghassan Kanafani, sua
literatura e suas histórias contêm um repertório de memórias do refugiado,
de sofrimento dos palestinos, de sentimento de injustiça e incitação contra o
opressor. Sua redação maravilhosamente sarcástica, com um estilo às vezes
choroso, repleto de pertencimento, comprometimento, sentimentos abun-
dantes e inteligência na captura de cenas ricas em significados profundos e
símbolos baseados na alta cultura e no entendimento refinado.
Escrevo sobre Ghassan Kanafani com muito amor e não discuto a di-
ferença intelectual entre mim como islamita e ele como comunista, mas olho
para os resultados de sua arte e me encontro nela, sinto seus sentimentos, e
lendo a revolução nas entrelinhas encontro-me envolvido em sua corrente.
Ghassan Kanafani, embora não tenha vivido muito tempo, deixou um
maravilhoso impacto humano e nacional ainda presente em nós até este mo-
mento. Encontramo-nos repetindo suas palavras como se fossem produto do
momento, embora mais de cinco décadas se passaram, relemos suas obras,
as reproduzimos à luz da amarga realidade recorrente e da grande esperança
enraizada em nós como estava nele.
75
Milhares de artigos, livros e leituras foram escritos e seu amor ainda se
renova em nós e sua sabedoria está em nossos corações.
Ele gritou para nós: “Por que você não bateu nas paredes do tanque,
então nós compensamos o erro grave, apagamos nossa vergonha e confiamos
em nós mesmos e batemos na parede do universo, então nossas estradas fica-
ram retumbantes em todos os lugares e nós não morremos, aqueles que nos
entregaram à morte morreram e nós não morremos , aqueles que nos traíram
morreram e nós não morremos, e aqueles que apostaram na morte de nossos
mais velhos e o esquecimento dos nossos filhos, nós não esquecemos e nós
não vamos esquecer.”
Ghassan nos ensinou que não morremos antes de sermos páreos na
batalha existente, a batalha da existência, assim fomos e a resistência foi o
melhor caminho. Vimos Tel Aviv ser esmagada por milhares de mísseis e a
espada de Al Quds foi erguida, os padrinhos da normalização se esconderam
atrás do véu da vergonha e não haverá mais lugar para eles.
O que dizemos sobre Ghassan, quando seu sangue testemunha, dizen-
do que o ocupante é muito covarde para enfrentar um verdadeiro pensamen-
to, arte ou sentimento.
Ghassan não foi morto!
Naji Al Ali não foi morto!
Majed Abu Sharar não foi morto!
E outros e outros, não estão mortos!
Eles viveram e espalharam a alma em muitos corpos superando o
medo e hesitação neles contidos. Nazir Qabbani os descreveu assim: “Têm
pessoas vivas que vivem num túmulo de mármore e tem pessoas mortas que
estão de pé.”
Meu conselho a todos que lêem Ghassan e que escrevem sobre ele não
se deixem cegar por um partidarismo estreito ou ângulos intelectuais enfa-
donhos, abram bem a página de Ghassan Kanafani para ver a tragédia, a bela
arte e aprender a pintar com as palavras o que este artista foi capaz de dese-
nhar por gerações. Nele o homem aprende como a humanidade pode trans-
76
por barreiras e ouvidos surdos para traduzir suas obras em um grande nú-
mero de idiomas e influenciar leitores. Sua página e jornal foram resistência
que derrota o ocupante, a caneta é arma mais poderosa que a espada, então
o inimigo trabalha com todas as suas forças para quebrá-la, descobre que são
sementes que se renovam com o tempo, o inimigo permanece pequeno e o
dono da verdade imortal e grande.

Que Deus tenha misericórdia de Ghassan Kanafani.

Salah Al Bardawil –
Doutor em Literatura Árabe, membro sênior
do Bureau Político do HAMAS, porta-voz
do Movimento de Resistência Islâmica (HAMAS),
deputado legislativo da Palestina.

77
‫بسم الله الرحمن الرحيم‬
‫غسان كنفاين‬
‫من منظور حمساوي‬

‫أنا د‪ .‬صالح الربدويل أحمل رسالة الدكتوراة يف األدب الفلسطيني‪ ،‬وما زلت عضوا ً يف املكتب‬
‫‪.‬السيايس لحركة حامس‪ ،‬ودرست أدب غسان كنفاين‬

‫وباملناسبة فقد رأست تحرير صحيفة الرسالة التي تصدر يف غزة‪ ،‬وكتبت فيها عمودا ً قصصيا‬
‫واقعياً سياسياً ساخرا ً تحت عنوان (من شوارع الوطن) وصل عدد القصص التي كتبتها عىل‬
‫مدار خمس سنوات حوايل (‪ )500‬قصة قصرية جدا ً‪ ،‬وقد حازت عىل أعجاب القراء يف حينه‬
‫وأثرت يف مشاعرهم وال سيام الطبقات الشعبية منهم‪ ،‬كام أن الرموز التي تخللتها حازت عىل‬
‫‪.‬إعجاب املثقفني منهم‬

‫وألنني كذلك فإين اشعر بشكل كبري بغسان كنفاين وأدبه وقصصه التي تحمل يف طياتها مخزوناً‬
‫من ذكريات الالجئ ومعاناة الفلسطيني واإلحساس بالظلم والتحريض عىل الظامل واألسلوب الرائع‬
‫الساخر البايك أحيانا املفعم باالنتامء وااللتزام واملشاعر الفياضة والذكاء يف التقاط املشاهد‬
‫‪.‬املكتنزة باملعاين العميقة والرموز التي تتم عن ثقافة عالية وفهم راق‬

‫أكتب عن غسان كنفاين بحب كبري‪ ،‬وال أناقش الفارق الفكري بيني كإسالمي وبينه كيساري ولكني‬
‫أنظر إىل مخرجات فنه فأجد نفيس فيها وأتلمس أحاسيسه فأجدين أحس بها نفسها وأقرأ الثورة بني‬
‫‪.‬سطوره وأجدين منخرطاً يف تيارها‬

‫غسان كنفاين رغم أنه مل يعمر طويالً يف حياته فقد ترك أثرا ً انسانياً ووطنياً رائعاً ما زال حتى هذه‬
‫اللحظة حارضا ً فينا فنجد أنفسنا نكرر مقوالته كأنها وليدة اللحظة رغم أنه مىض عليها أكرث من‬
‫خمسة عقود من الزمان‪ ،‬ونعيد قراءة أعامله‪ ،‬ونعيد انتاجها يف ضوء الواقع املرير املتكرر واألمل‬
‫‪.‬الكبري املتجذر فينا كام كان متجذرا ً فيه‬

‫‪.‬آالف املقاالت والكتب والقراءات كتبت يف أعامله وما زال عشقه يتجدد فينا وحكمته تخالج صدورنا‬

‫‪78‬‬
‫رصخ فينا‪ :‬ملاذا مل تدقوا جدران الخزان‪ ،‬فاستدركنا الخطأ الجسيم ومحونا عارنا واعتمدنا عىل‬
‫أنفسنا وطرقنا جدار الكون فأصبحت طرقتنا مدوية يف كل مكان ومل منت‪ ،‬لقد مات من أسلمونا‬
‫للموت ومل منت‪ ،‬ومات من خذلونا ومل منت‪ ،‬ومات من راهنوا عىل موت كبارنا ونسيان أوالدنا‪،‬‬
‫‪.‬فلم ننىس ولن ننىس‬

‫غسان علمنا أن ال منوت قبل أن نكون ندا ً يف املعركة القامئة‪ ،‬معركة الوجود‪ ،‬فكنا وكانت‬
‫املقاومة خري ند‪ ،‬ودُكت تل أبيب بآالف الصواريخ و ُرفع سيف القدس عالياً وتوارى عرابو التنسيق‬
‫‪.‬خلف غياهب العار ولن تقوم لهم قامئة‬

‫ماذا نقول يف غسان وقد قالت دماؤه أكرث مام ميكننا أن نشهد عليه‪ ،‬قالت‪ :‬إن املحتل أجنب من‬
‫‪،‬أن يواجه فكرا ً أو فناً أو شعورا ً صادقاً‬
‫أمل يقتل غسان؟‬
‫أمل يقتل ناجي العيل؟‬
‫أمل يقتل ماجد أبو رشار؟‬
‫!وغريهم وغريهم‪ ،‬فهل ماتوا؟‬

‫لقد عاشوا وبثوا الروح يف أجساد كثرية كادت أن تنطوي يف لحود الجنب والخوف والرتدد حتى قال‬
‫‪:‬فيهم نزار قباين‬
‫حي رخام القرب مسكنه ورب ميت عىل أقدامه انتصبا‬
‫رب ّ‬
‫يا ُ‬

‫نصيحتي لكل من يقرأ غسان أن يكتب عنه أن ال تعميه الحزبية الضيقة أو الزوايا الفكرية املتبلدة‪،‬‬
‫وأن يفتح صفحة غسان كنفاين عىل مرصاعيها لريى فيها املأساة ويرى التعايل عىل املأساة ويرى‬
‫فيها الفن الجميل ويتعلم كيف يرسم بالكلامت ما استطاع هذا الفنان أن يرسمه لألجيال ويتفحص‬
‫فيها غسان االنسان ويتعلم منه كيف لإلنسانية أن تخرتق ال ُجدر واآلذان الصامء لترتجم أعامله إىل‬
‫عدد كبري من اللغات وتؤثر يف أصحابها‪ ،‬وتقرأ يف صفحته وصحيفته شكالً من أشكال املقاومة‬
‫التي تقهر املحتل‪ ،‬وسالحاً أمىض من السيف‪ ،‬إنه القلم وإنه الفن الذي يشبه بالنسبة للعدو مرآة‬
‫مقعرة يرى فيها نفسه صغريا ً وحقريا ً فيعمل بكل ما أويت من قوة لكرسها فيجد أنها مرايا تتجدد مع‬
‫‪.‬الزمن ويظل العدو صغريا ً ويظل صاحب الحق خالدا ً كبريا ً‬

‫‪79‬‬
‫رحم الله غسان كنفاين‬

‫ صالح الربدويل‬.‫د‬
‫عضو املكتب السيايس لحركة حامس‬

Salah Al Bardawil –
Doutor em Literatura Árabe, membro sênior
do Bureau Político do HAMAS, porta-voz
do Movimento de Resistência Islâmica (HAMAS),
deputado legislativo da Palestina.

80
As esquerdas
brasileiras e
a nobre causa
palestina

81
Artista: Nabil Anani

82
“Tudo neste mundo pode ser roubado e retirado, exceto uma
coisa; esta coisa é o amor que emana de um ser humano
para um compromisso sólido com uma convicção ou causa.
Você tem algo neste mundo, então defenda isso.”

Ghassan Kanafani

83
Ghassan Kanafani, a FPLP e a
Revolução Palestina

Todas as organizações, que são parte desse movimento internacional


de solidariedade com o povo palestino, aprenderam a admirar os contos e
a literatura de resistência desse dirigente político da esquerda marxista pa-
lestina. Ghassan Kanafani foi um grande formador de toda uma geração
de militantes revolucionários na Palestina, no Líbano e em todo o mundo
árabe. Conhecido pelos seus textos e sua contribuição em revistas e jornais
progressistas e de esquerda, desenvolveu uma profunda análise da realidade
econômica, social, política e cultural da luta de classes na Palestina. Com-
binando uma reflexão sobre as classes sociais existentes, no interior de sua
pátria, com uma proposta justa e correta para a luta de libertação nacional e
resoluções dos problemas sociais da maioria do povo, da classe trabalhado-
ra. Kanafani identificou de maneira muito precisa os principais inimigos da
justa e heroica luta do povo palestino: 1. Sionismo: Foi – e continua sendo
– um movimento nacionalista judaico conservador, antidemocrático, racista
e pró-colonialista, que se fortaleceu entre 1897 e 1947, implementando um
processo de colonização da Palestina, com apoio do imperialismo britânico,
francês e estadunidense. O imperialismo britânico dominava militarmente a
Palestina, desde 1918, quando foi derrotado o Império Turco-Otomano que
colonizava anteriormente a Palestina. Sionismo e imperialismo atuaram jun-
tos na colonização da Palestina, tomando terras e reprimindo o seu povo; 2.
Colonialismo/Imperialismo: Nenhum palestino vivo conheceu sua pátria
livre, independente e soberana, nem seus pais, seus avós ou bisavós. A Pales-
tina, pela sua localização geográfica, história e cultura, foi considerada pe-
las potências colonialistas/imperialistas um território estratégico, seja como
uma rota comercial terrestre ou marítima, seja como uma região com alguma
importância do ponto de vista militar e geopolítico. 3. As elites árabes locais:
Kanafani sempre denunciou a colaboração das elites e da classe dominante

84
árabe com o colonialismo/imperialismo, sua tendência à realização de acor-
dos e compromissos ficando de fora o povo e suas legítimas organizações. As
elites palestinas sempre procuravam interromper qualquer processo efetiva-
mente revolucionário de libertação nacional, pois quando as massas popu-
lares tomavam consciência, se organizavam e ampliavam sua capacidade de
mobilização, como foi entre 1936 e 1939, essas elites perdiam o controle do
processo de luta, que avançava na direção de ruptura com o colonialismo/
imperialismo, tal posicionamento ameaçava os acordos estabelecidos entre
a burguesia comercial, agrária e industrial palestina e as autoridades colo-
nialistas. É impressionante a atualidade das reflexões de Kanafani, pois um
segmento dessa burguesia palestina empurrou a Organização para a Liber-
tação da Palestina (OLP) para os famigerados e fracassados Acordos de
Oslo (1993/1994), em que somente os palestinos fizeram concessões, e um
setor da direção política do movimento nacional palestino, representado
por Yasser Arafat e um grupo de seu partido, o Movimento de Libertação
Nacional (FATAH), decidiu aceitar as imposições de Israel, às quais destru-
íam direitos históricos e inalienáveis do povo palestino, como o direito de
retorno e à recuperação de todas as suas terras, tomadas ilegalmente, pelo
colonialismo israelense.
Ghassan Kanafani foi um formador de novas lideranças políticas da es-
querda marxista palestina, no interior do movimento de libertação nacional.
É impossível separar sua atividade de jornalista, comunicador popular, for-
mador político e escritor de sua atividade como dirigente da Frente Popular
de Libertação da Palestina (FPLP). Era um intelectual orgânico do movimen-
to de libertação nacional e um representante do marxismo árabe-palestino,
mas também o porta-voz da FPLP no Líbano, a figura pública de maior im-
portância nesse país repleto de refugiados palestinos, com dezenas de cam-
pos em Beirute e em outras cidades do país. A FPLP mostrou a necessidade
de combinar a luta por libertação nacional com a luta pelo socialismo; afir-
mando que a Revolução Palestina era parte da Revolução no Mundo Árabe e
dos processos revolucionários em curso em diferentes países, como em Cuba,
85
Vietnã, Nicarágua, El Salvador e outras regiões do mundo onde, nos anos 60
e 70, a luta anti-imperialista/anticolonialista se desenvolvia intensamente. A
FPLP de Ghassan Kanafani soube se integrar a essas lutas, e tornou-se a mais
importante organização política marxista no interior do movimento nacional
palestino, sendo até hoje a segunda força política dentro da OLP e a terceira
força política no Conselho Legislativo Palestino (parlamento).
A Unidade Popular pelo Socialismo (UP) celebra a divulgação do pen-
samento de Ghassan Kanafani para a classe trabalhadora brasileira. É mais
um dos mártires da luta internacional contra o imperialismo. O governo do
chamado “Estado de Israel” vem praticando, desde 1948, uma política de ge-
nocídio, de apartheid e de limpeza étnica contra o povo palestino.
A Unidade Popular pelo Socialismo (UP) reafirma sua solidariedade
com o povo palestino, apoiando as diversas formas de luta para que um dia
seja conquistado o Estado Palestino Laico e Democrático, em todo o terri-
tório originário, desde o Mar Mediterrâneo até o Rio Jordão, para que assim
exista uma paz justa e duradoura com muçulmanos, judeus, cristãos, ateus
ou membros de outras religiões vivendo com direitos iguais, sem racismo,
sem colonialismo, em uma República Palestina com independência nacional
e justiça social.

Vivian Mendes –
dirigente nacional da Unidade
Popular pelo Socialismo (UP)

86
Em memória de Ghassan Kanafani

A luta do povo palestino contra a ocupação israelense merece o apoio


militante de todos aqueles que lutam contra a arrogância imperialista e sio-
nista em todo o planeta. Lutando de todas as formas, desde as pedras às ar-
mas, a resistência palestina vem realizando uma das páginas mais heroicas
da luta popular pela libertação da Palestina. Mesmo diante de uma repres-
são brutal, com prisões, torturas, assassinatos, ocupação de terras, punições
contra populações inteiras, o povo palestino resiste bravamente à ocupação,
apesar dos imensos sacrifícios dos milhares que morreram, que estão nas
prisões sionistas, que são reprimidos diariamente nas ruas e das tramas ma-
quiavélicas dos serviços secretos israelenses.
Nessa longa trajetória de lutas, muitos heróis palestinos caíram na ba-
talha pela libertação de seu povo, entre os quais destaca-se Ghassan Kanafani.
Como milhares de palestinos, teve que seguir o caminho do exílio, junto com
sua família, aos 12 anos, em função da repressão sionista nas terras ocupadas.
Após estudos na Universidade de Damasco, Kanafani foi professor, jornalista
e editor do jornal da Frente Popular de Libertação da Palestina.
Kanafani estudou profundamente o marxismo adaptado às
condições do mundo árabe e chegou à conclusão de que a derrota do
imperialismo e dos sionistas, bem como o fim da ocupação israelense, só
poderia acontecer diante de uma luta bem maior, contra o imperialismo,
principal sustentáculo sionista, e da revolução socialista. Foi a partir
dessas conclusões que se ligou à Frente Popular de Libertação da Palestina,
tornando-se um de seus principais dirigentes e estrategista da luta pela
libertação da palestina.
Com essa compreensão, Kanafani criticava os governos árabes reacio-
nários, bem como já alertava para as vacilações e tendências burguesas da
Organização para a Libertação da Palestina. Ele era contrário às negociações
com o inimigo sionista, porque entendia que essa atitude só poderia levar ao
87
enfraquecimento do movimento e semear ilusões em relação aos sionistas,
com sérias consequências para a resistência palestina. A vida provou que Ka-
nafani estava correto em sua avaliação dos entendimentos entre os ocupantes
e a liderança palestina.
Por suas posições corajosas e corretas se tornou um grande inimigo
dos sionistas, que buscaram de todas as formas eliminá-lo, como é prática
comum do serviço de inteligência de Israel. De forma covarde, o Mossad
colocou uma bomba em seu automóvel que o matou, aos 36 anos, junto com
sua sobrinha de 17 anos.
Além de revolucionário, Kanafani era um grande escritor. Seus ro-
mances e contos ainda hoje são editados e lidos com entusiasmo pelas várias
gerações de lutadores palestinos, porque como intelectual orgânico, sempre
procura refletir em suas obras a realidade palestina, especialmente a neces-
sidade de resistência contra a opressão israelense. E, como sempre dizia, a
resistência palestina estava ligada à resistência mundial contra a o imperialis-
mo, o sionismo e a opressão.
O exemplo revolucionário de Ghassan Kanafani, bem como a sua vasta
literatura de resistência, constitui um grande testemunho e um exemplo para
todos os revolucionários do mundo. Os comunistas brasileiros, que sempre
estiveram na linha de frente da solidariedade internacional à causa palestina,
prestam uma homenagem a este grande revolucionário palestino, na certeza
de que a luta pela libertação da Palestina é parte da luta dos trabalhadores
de todo o mundo pela sociedade da abundância e da felicidade humana, a
sociedade comunista.
Camarada Ghassan Kanafani, presente. Agora e sempre.

Edmilson Costa –
Secretário-Geral do Partido
Comunista Brasileiro (PCB).
88
“Corrigir a marcha da história”:
da resistência popular palestina à luta de todos
os povos oprimidos contra o imperialismo

Ghassan Kanafani, acertadamente, viu a causa palestina como mais


que uma causa em si mesma e o martírio do povo palestino como uma ex-
pressão de “toda a miséria do mundo”.1 Embora seja, para as forças solidárias
com a causa palestina por libertação nacional, uma constatação consensual,
esta reflexão carrega um conjunto de teses que o pensador revolucionário de-
senvolveu em textos de diferentes gêneros. É uma reflexão sobre o confronto
entre a potência da resistência de um povo oprimido e o poder do seu car-
rasco, sustentado no tripé sionismo-imperialismo-reacionarismo árabe bur-
guês.2 Uma reflexão que reflete o caráter verdadeiramente internacionalista
da práxis revolucionária de Kanafani.
Professor, escritor e editor fundador do órgão da FPLP, Al Hadaf, Ka-
nafani definiu “a história do mundo” como “a história dos fracos lutando
contra os fortes. Dos fracos que têm uma causa correta, lutando contra pode-
rosos que usam a sua força para explorá-los”.3 Por isso, e em semelhança com
o pensamento do brasileiro Paulo Freire, Kanafani considerava que o objetivo
da educação era “corrigir a marcha da história”, motivo pelo qual “precisamos
estudar história e apreender a sua dialética para construir uma nova era his-
tórica em que os oprimidos viverão, depois da sua libertação, pela violência
revolucionária, da contradição que os cativou.”4

1-Abu-Manneh, Bashir (2016) “Ghassan Kanafani’s revolutionary ethics”, em The


Palestinian Novel: From 1948 to the Present. Cambridge: Cambridge University
Press, pp. 71-95.
2-Kanafani, Ghassan (2015 [1972]) A revolta de 1936-1939 na Palestina. São Paulo:
Editora Sundermann.
3-Ghassan Kanafani, entrevistado por Richard Carleton, Beirute, 1970, disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=Veoy32G7trY.
4-S. Marwan, “The Struggle of the Oppressed of the World” [A Luta dos Oprimidos do
Mundo], em Al Hadaf, 8 de julho de 1972, disponível em http://newjerseysolidarity.
net/resources/kanafani/kanafani6.html.
89
Para os palestinos, a contradição primeira manifesta-se no imperia-
lismo, o sionismo e o racismo.5 Mais ainda: “O imperialismo esparramou o
seu corpo por todo o mundo: a cabeça no leste da Ásia, o coração no Oriente
Médio, suas artérias alcançando a África e a América Latina”, Kanafani prog-
nosticou.6 Explicava, então, que como a dos vietnamitas, cuja luta e revolução
se refletiria nas lutas de outros povos, “a causa palestina é não só uma causa
dos palestinos, mas uma causa para todo revolucionário, onde estiver, como
uma causa das massas exploradas e oprimidas de nossa era.”
Trata-se, portanto, de contradição internacional, para a qual a única
saída defendida era a luta armada por libertação, em espírito internacionalis-
ta, em uma estratégia devidamente definida, que considere situações políticas
conjunturais para a definição da tática, rejeitando de partida o “moralismo
burguês” de apelos retóricos em prol de um direito internacional particu-
lar, que, no fim, garanta o estado de coisas.7 Assim, o diálogo como fim em
si mesmo e naquelas condições de opressão brutal e total, dizia a respeito
dos chamados hipócritas às negociações com Israel - enquanto os palestinos
resistiam à vida nos campos de refugiados, no exílio forçado, no cotidiano
violento da ocupação e nas masmorras do ocupante - não abrem caminhos
emancipatórios, assim como a paz, como mote vazio de conteúdo transfor-
mador, transcendente e revolucionário, não interessa aos anti-imperialistas.
Serve apenas àquela ilusão burguesa mantenedora do status quo.
Kanafani dedicou a vida à causa do seu povo - categoria empregada
não apenas no sentido nacional como também de classe, popular - na luta
contra o colonialismo sionista como instrumento de expansão capitalista
na fase imperialista para aquela região, a Palestina, movimento para o qual,
como se sabe, como em outras paragens, foi sempre necessário contar com o
reacionarismo nativo. Por isso, tanto a catástrofe quanto a resistência do povo
palestino só podem ser vistas do ângulo internacional.

5-Idem.
6-V. Nota 4.
7-Kanafani, Ghassan (1971) “On the PFLP and the September Crisis”, em New Left
Review, 1(67), pp. 50-57
90
Como outros pensadores e combatentes da resistência anticolonial
e anti-imperialista - Che Guevara, Patrice Lumumba etc. - Kanafani foi
assassinado em sua juventude, aos 36 anos, na turbulenta Beirute de 1972,
junto com a sua jovem sobrinha Lamis Najm. Com a família, aos 12 anos de
idade, foi obrigado a fugir do “terror sionista” para a Síria, comprometendo-
se desde cedo com a luta do seu povo desde, ao menos os anos 50, portanto,
ainda jovem, Kanafani tomou o seu lugar na história do movimento de
libertação nacional palestino atuando nas principais entidades da resistência,
estandartes da insubmissão, desde o Movimento Árabe Nacionalista até e
especialmente a FPLP, um pilar da luta genuinamente nacional palestina, de
que foi dirigente, sob a liderança de George Habash.
Engajado na literatura de resistência, Kanafani ofereceu ao seu povo
elementos cruciais para revigorar o legado cultural árabe-palestino, tan-
to para brandi-lo contra a propaganda sionista e imperialista antipalestina
quanto para fortalecer a cultura nacional como componente fundamental
edificante de uma nova sociedade. Para além do resistir, trata-se de definir
e implementar a estratégia que impulsionará o progresso histórico rumo à
libertação nacional e à emancipação social.
Daí a significância da adoção do marxismo-leninismo pela FPLP, no
decisivo 1967, ano do grande revés materializado pela ocupação do restante
da Palestina e demais territórios árabes por Israel. O anti-imperialismo, se
não for abandonado em meio à batalha, como disse Kanafani, deve levar ao
socialismo, porque a luta contra o imperialismo depende das classes que lu-
tam tanto pela dignidade quanto pela sobrevivência.8
Acrescentou Kanafani, em icônica entrevista: a causa da paz deve
ser uma causa pela liberdade, pela libertação, pelos direitos mais básicos
- violados diariamente sob qualquer regime de opressão e dominação,
colonialista e capitalista - e pelos direitos mais avançados.9 Por isso, assim
como a luta de outros povos resistindo às versões locais dos mesmos

8-Idem.
9-Ver Notas 2 e 6
91
carrascos (colonialismo, imperialismo e reacionarismo burguês) sem o qual
os primeiros não subsistem, a luta pela qual Kanafani deu a vida era a luta pela
emancipação do seu povo e de todos os povos oprimidos, uma emancipação
por completo.

Ana Preste –
secretária de Relações Internacionais do Comitê Central
do Partido Comunista do Brasil (PC do B).

92
Ghassan Kanafani: a palavra como arma
para libertação da Palestina

“A causa palestina não é uma causa apenas dos


palestinos, mas uma causa para todo revolucionário
e revolucionária, onde quer que esteja, uma causa
das massas exploradas e oprimidas de nossa era.”

Ghassan Fayez Kanafani nasceu em 9 de abril 1936, na mediterrâ-


nea cidade palestina do Akka (Acre). Lá sua vida era a de uma criança
palestina da época, mas acontecimentos catastróficos negaram a ele a in-
fância e tudo o mais.
Repentinamente, ele era uma das centenas de milhares de vítimas da
limpeza étnica que sofreu o povo palestino, processo iniciado ainda em de-
zembro de 1947 e que levou, com o transcurso de 1948 até março de 1949,
à tomada violenta de 76% do território da Palestina, a mais de 70 massacres
com pelo menos 15 mil mortos, ocupação de 774 cidades e povoados pales-
tinos, dos quais 531 totalmente destruídos e à expulsão de mais de 60% do
povo palestino. Esta cifra passou de 85% na parte da Palestina em que Israel
se autoproclamou Estado.
Sua vida de jovem refugiado, que aos 12 anos vê seu mundo desapare-
cer, repentinamente, o levou ao desafio de buscar reverter tudo que se abateu
sobre ele, sua família, seus amigos e todo seu povo. Não pegou em armas.
Nunca manejou uma AK-47, tão presente entre os guerrilheiros palestinos
que povoavam os campos de refugiados que o abrigavam e à sua família.
Manejou uma caneta, sua arma em prol da pátria Palestina, como poucos o
fizeram antes e depois dele.
Foi esta sua habilidade com a escrita e com as palavras que o torna-
ram - e assim segue até os dias atuais - um dos palestinos mais visados por
aqueles que o desterraram e o fizeram refugiado.
93
A partir do Líbano ou de Damasco, ou de onde quer que estivesse,
Kanafani foi o verbo da libertação da Palestina. Se tornou professor da Agên-
cia das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina. Com tal,
escreveu histórias curtas para ensinar as crianças palestinas refugiadas e fazer
com que elas compreendessem sua história.
Foi escritor, jornalista, editor e porta-voz da Frente Popular de Liber-
tação da Palestina, formação revolucionária à qual aderiu em 1969, aos 33
anos. O projeto colonial que combatia lhe roubou a vida em 1972 e o fez tão
violentamente quanto o havia feito quando lhe roubou a pátria, 24 anos antes.
A explosão assassina, em 8 de julho, na Beirute que abrigava centenas de mi-
lhares que ali estavam pela mesma razão que ele, levou também Lamis Najm,
sua sobrinha de apenas 17 anos.
O Mossad, serviço secreto de Israel assumiu o assassinato. Alegou re-
taliar uma operação guerrilheira promovida pela FPLP. Assassinou quem ja-
mais pegou em uma arma. Assassinou, na verdade, quem empunhava a mais
poderosa das armas, a palavra, com a qual fazia o mundo enxergar o quão
era criminoso o regime de apartheid, nascido da limpeza étnica da Palestina.
A morte brutal de Kanafani é o seguimento da limpeza étnica da Pales-
tina, que segue atingindo seu povo, inclusive no exílio. Para o colonialismo,
que rouba a Palestina todos os dias, é insuportável a palavra, a escrita e a voz
dos que denunciam seus crimes de lesa-humanidade.
Mas a morte de Kanafani não foi em vão. De suas palavras ditas ou
escritas em artigos, livros e novelas vieram a consagração e para Israel, que
tanto denunciou, a atual condenação internacional. Enquanto Kanafani é re-
verenciado por seu povo e em todo o mundo, Israel colhe os relatórios que
lhe detalham e desnudam como um regime violento e autoritário, protago-
nista de um novo modelo de apartheid, que promove perseguição ao povo
palestino com vistas e eliminá-lo.
A bomba, que o atingiu em Beirute naquele triste 1972, não impediu
que Kanafani permanecesse como uma referência para o seu povo.

94
A história está fazendo seu julgamento e deu razão a Kanafani. De
onde ele quer que esteja, assiste o julgamento de Israel pelos seus crimes.
Palestina Livre! Kanafani Vive!

Assinam essa nota:


Pedro Uczai – Deputado Federal do PT/ SC;
Paulo Pimenta – Deputado Federal PT/RS;
Enio Verri – Deputado Federal PT/PR;
Alexandre Padilha – Deputado Federal PT/SP;
Romenio Pereira – Secretário de Assuntos
Internacionais do PT e
Misiara Oliveira – Executiva Nacional do PT.

95
Nossa homenagem ao revolucionário
socialista Ghassan Kanafani

Neste ano se completam 50 anos do covarde assassinato de Ghassan


Kanafani. Mais que nunca é necessário retomar seu legado político para dar
continuidade à sua luta pela libertação de toda a Palestina e por um mundo
árabe socialista.
Frente à limpeza étnica e apartheid impostos pelo Estado de Israel com
o apoio de todas as potências imperialistas há 74 anos, a estratégia socialista
e internacionalista preconizada por Kanafani se revela o único porto seguro
para a luta palestina.
Em sua obra “A Revolta de 1936-1939 na Palestina” publicada no Brasil
pela Editora Sundermann, Kanafani descreve os inimigos da causa:

“Entre 1936 e 1939, o movimento revolucionário palestino sofreu


severo revés nas mãos de três inimigos que se constituíram, juntos,
na principal ameaça ao movimento nacionalista na Palestina, em
todos os estágios subsequentes de sua luta: a lideração local reacio-
nária; os regimes dos estados árabes vizinhos; e o inimigo imperia-
lista-sionista.”

Nesta obra, Kanafani aponta os interesses opostos entre as classes so-


ciais palestinas em meio à luta contra a colonização britânica e sionista. A
classe dos grandes proprietários buscavam uma “melhor posição dentro do
regime colonialista”. Já os camponeses e trabalhadores pobres lutavam para
pôr fim a toda a forma de colonização. O que para a classe proprietária era
uma oportunidade de negócios, para os camponeses e trabalhadores pobres
era uma questão de sobrevivência.
Segundo Kanafani, esta mesma contradição de classe está presente
nos países árabes ao redor da Palestina. Enquanto “movimento de massas

96
pan-árabe servia de catalizador do espírito revolucionário das massas
palestinas, os regimes estabelecidos nos países árabes faziam de tudo para
impedir e minar o movimento de massas palestino”.
Esta análise e esta estratégia que une a luta palestina com as massas
árabes em oposição à burguesia palestina, aos regimes árabes e ao sionismo/
imperialismo marca o pensamento do revolucionário palestino e influenciou
a esquerda marxista palestina que popularizou esta estratégia com os slogans:
“Combater o inimigo em toda a parte” e “O caminho para Al Quds (Jerusa-
lém) começa no Cairo, Damasco e Amã”.
Kanafani não apenas desenvolve uma análise de classe a nível local e
regional, mas também opera sob uma lógica internacionalista. Ele escreveu:

“O imperialismo pousou seu corpo sobre o mundo, a cabeça na Ásia


oriental, o coração no Oriente Médio, suas artérias atingindo a África
e a América Latina. Onde quer que você o golpeie, você o enfraquece
e serve à Revolução Mundial.”

Por fim, Kanafani trabalhou para construir uma organização socialis-


ta que, enraizada nas lutas cotidianas de palestinos, jordanianos, egípcios,
sírios, libaneses e árabes em geral, liderasse a luta pela libertação de toda a
Palestina e por um mundo árabe socialista.
Infelizmente, hoje não temos essa organização. A crise de direção re-
volucionária, identificada por Kanafani em sua análise de A Revolta de 1936-
1939, segue e se aprofunda. Descoladas do majoritário sentimento da massa
e sobretudo da jovem vanguarda que se forma na resistência, as principais
organizações da esquerda palestina terminaram por reconhecer como um
fato consumado a “solução provisória” de dois estados e viraram as costas
para as revoluções populares que sacudiram os países árabes, em particular,
a revolução síria afogada em sangue pelo ditador Bashar Al Assad e seus alia-
dos iranianos, russos e libaneses.

97
Com certeza, no calor de novas Intifadas palestinas e revoluções ára-
bes, as ideias pelas quais Kanafani lutou vão se tornar o guia para milhões de
trabalhadores e trabalhadoras árabes, e o povo trabalhador palestino poderá
derrotar seus três inimigos e se reunificar em uma Palestina laica e democrá-
tica, do rio ao mar, parte de um mundo árabe socialista.
Esta luta é de todos e todas nós. Como escreveu Kanafani:

“A causa palestina não é uma causa apenas dos palestinos, mas uma
causa para todo revolucionário e revolucionária, onde quer que este-
ja, uma causa das massas exploradas e oprimidas de nossa era.”

Zé Maria –
dirigente nacional do Partido Socialista dos
Trabalhadores Unificado (PSTU).
.

98
Ao povo palestino,
do(as) Atingidos(as)
por Barragens (MAB).

Nós, atingidos e atingidas por barragens do Brasil, nos solidarizamos


com a luta e sofrimento do povo palestino. Nossa realidade também consiste
na perda de nosso território de modo violento por interesses de poderes
econômicos e políticos, e há 30 anos lutamos pelo direito de dizer não a
empreendimentos energéticos, hídricos e minerários para que possamos
continuar vivendo e desenvolvendo nossos meios de vida, cultura e tradições.
A violência brutal, recorrente e desproporcional praticada pelo Estado
de Israel contra a Palestina, não é uma disputa entre iguais. Mas a força de
resistência e luta do povo palestino nos inspira a continuar nos organizando
coletivamente e lutando para transformar nossa realidade.
Por sermos irmãos e irmãs na luta contra o colonialismo e o imperia-
lismo, no Brasil, na Palestina e no mundo, nos solidarizamos profundamente
com a causa palestina. A resistência do povo palestino é um exemplo de luta
contra toda e qualquer injustiça praticada. Ghassan Kanafani foi uma lide-
rança desta resistência, e neste momento em que se completam 50 anos de
seu assassinato político, se faz importante reafirmar esta luta internacionalis-
ta e anti-imperialista.
A luta contra a ocupação israelense na Palestina é uma luta de todos os
povos que lutam por autodeterminação, soberania e liberdade.
Lutaremos juntos até que todos os povos sejam livres.

Atingidos e atingidas de todo Brasil –


Movimento dos(as)Atingidos(as) por
Barragens (MAB).

99
Ghassan Kanafani e o MST

“Convidamos as crianças, pra pintar no muro da desigualdade.


É o Sem Terrinha, cantando e ocupando com a sua ginga.
Reforma Agrária, justiça e liberdade, uma canção de roda.
Palestina livre, um sonho que também é brasileiro.
Oh, Palestina!
Menino livre, solta pipa e joga bola.
Nossa ciranda, convida tuas crianças pra dançar na roda.
E de mãos dadas, sonhando a liberdade a ser conquistada
Oh Palestina!”
(Música das crianças Sem Terrinha do Brasil às
crianças palestinas)

Quando em 2011, o MST decidiu enviar um grupo de militantes para


participar da Campanha da Colheita da Azeitona na Palestina, já tínhamos
uma forte relação com a luta do Povo Palestino e com várias organizações da
esquerda Palestina.
Queremos aqui lembrar de um momento especialmente místico para
o nosso Movimento e que continua na memória e nos corações de todos/as
os/as Sem Terra:
Há 20 anos, em 2002, o dirigente do MST, Mario Liu, esteve em Ra-
mallah junto com outros membros/as da Via Campesina, durante os bom-
bardeios israelenses à Cisjordânia.
Mario e a delegação da Via Campesina estavam na sede da Autoridade
Palestina, junto com Yasser Arafat e outras lideranças palestinas. A sede foi
atacada e sitiada pelo exército de Israel por 22 dias. Água e luz foram corta-
das. A entrada de comida foi proibida.

100
Durante esse período dividiram a mesma pouca comida e muita revol-
ta, empunhando a bandeira do MST lado a lado à bandeira Palestina, repre-
sentando a solidariedade e o apoio de cada Sem Terra à causa palestina.
Nesses 20 anos que separam esse momento histórico, que marca pro-
fundamente a cultura internacionalista do MST, fortalecemos nossos laços de
solidariedade e irmandade com o povo palestino.
Nossa identidade com a luta e a resistência palestina vem de nossos
objetivos comuns: a luta pela terra, contra todo o tipo de colonialismo e im-
perialismo e por transformações sociais. Os mais de 70 anos de resistência
palestina são uma grande inspiração para o MST e para todos os povos em
luta do mundo.
Essa identidade está presente nas várias articulações nacionais e in-
ternacionais em solidariedade à Palestina das quais o MST faz parte. Está
presente na nossa estreita relação com a UAWC – União dos Comitês
Agrícolas da Palestina, uma das principais organizações articuladoras da
Via Campesina na região do Magreb e do mundo árabe ou na experiência
dos vários militantes e dirigentes do MST que foram à Palestina e pude-
ram conviver, pessoalmente, com a luta popular do povo palestino contra
a ocupação israelense.
Está presente também em cada assentamento e acampamento do
MST, em cada bosque plantado em nossas áreas em homenagem ao Dia
da Terra Palestina, em cada bandeira palestina pendurada ou hasteada em
nossos Centros de Formação, encontros, cursos, lutas etc. Está presente
em nossas crianças, que cantam que a Palestina Livre também é um sonho
brasileiro, a ser conquistado de mãos dadas.
Mas voltando à nossa decisão de 2011, decidimos levar nossa contri-
buição para a Campanha de Colheita de Azeitonas, oferecer nossa militância
– o maior patrimônio de nossa organização – para a luta do povo palestino
e proteger, com nossos corpos, as oliveiras e os camponeses e camponesas
palestinas contra os ataques do exército e dos colonos israelenses.

101
E como toda Brigada Internacionalista do MST, que são nomeadas em
homenagem a processos de luta ou lutadoras/es locais, essa também precisa-
va de um nome, de uma identidade, porém ainda que tivéssemos essa forte
relação com a luta palestina, conhecíamos muito pouco dos homens e mu-
lheres que ofereceram sua vida a essa causa.
Foi então que, depois que alguém sugeriu o nome de Ghassan Kana-
fani, estudamos e conhecemos a história desse lutador e soubemos que real-
mente se identificava com a proposta da Brigada e do próprio MST.
E assim Kanafani entrou definitivamente na vida do MST.
Internacionalista convicto, como é nossa Brigada, Kanafani dizia que
“a causa palestina não é uma causa apenas dos palestinos, mas uma causa
para todo revolucionário e revolucionária, onde quer que esteja, uma causa
das massas exploradas e oprimidas de nossa era”, e sempre defendeu que “o
problema da Palestina não poderia ser resolvido de forma isolada de toda a
situação social e política do mundo árabe”.
Kanafani desempenhou um papel importante no aumento da
consciência na luta anti-imperialista internacional: “O imperialismo pousou
seu corpo sobre o mundo, a cabeça na Ásia oriental, o coração no Oriente
Médio, suas artérias atingindo a África e a América Latina. Onde quer que
você o golpeie, você o enfraquece e serve à Revolução Mundial”.
Essa é a concepção de internacionalismo que o MST também defende!
Como um princípio, um valor, mas também uma estratégia central na luta
revolucionária!
Através de Kanafani conhecemos tantos outros e outras, mulheres e
homens (in)comuns que defenderam sua terra e sua liberdade com uma dig-
nidade e persistência inquebrantáveis!
Um deles é Abou Othman, o “barbeiro de Ramallah”. Em “Visão de
Ramallah” (Cartas da Luta Palestina), Kanafani conta que “quando começou
a última guerra da Palestina, [Abou Othman] vendeu tudo o que tinha para
comprar armas, que distribuía entre os parentes, pedindo-lhes que cumpris-
sem seu dever. A barbearia se transformou em depósito de armas e muni-
102
ções. Ele nunca pediu nada em troca desses sacrifícios”. Sua esposa e filha fo-
ram executadas na sua frente por soldados sionistas na tomada de Ramallah.
Abou Othman carregou sozinho os corpos para serem enterrados no cemi-
tério da cidade, onde ele mesmo queria ser enterrado. Enterrou-os com um
lençol branco, que pegou na sua barbearia.
Depois “entrou no escritório do comandante sionista para um inter-
rogatório. Quando colocou os pés lá dentro, todos ouviram uma pavorosa
explosão. O prédio inteiro desabou e o corpo de Abou Othman desapare-
ceu entre os escombros. Mais tarde, minha mãe contou, enquanto cami-
nhávamos pelas montanhas rumo à Jordânia, o que houve. Abou Othman,
ao entrar na barbearia antes de enterrar sua mulher, não havia retornado
somente com o lençol branco”.
Ghassan Kanafani foi assassinado pelo Mossad no dia 8 de julho de
1972, aos 36 anos. 36 anos! Uma vida curta que tanto viveu e produziu! Um
jovem com experiência de sábio ancião. Um escritor-revolucionário e revo-
lucionário-escritor. Um nacionalista-internacionalista.
Nenhum outro nome poderia honrar mais nossa Brigada Internacio-
nalista do que o dele! E não há melhor forma de honrar seu legado do que
seguir, incansavelmente, na luta anti-imperialista e revolucionária!
Obrigada Ghassan, por sua vida e por dar vida a Abou Othman e tan-
tos homens e mulheres que empenham a luta cotidiana.

Brigada Internacionalista Ghassan Kanafani –


Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra (MST).

103
A classe trabalhadora e a questão palestina

No aniversário de 50 anos do assassinato do marxista revolucionário


palestino Ghassan Kanafani, é importante conhecer suas ideias e refletir so-
bre os caminhos para a libertação da Palestina.
Em sua resistência secular, o povo palestino lutou muito e das formas
que pôde. Levantou-se na grande revolta de 1936-1939, construiu a OLP e
organizou os fedayins, fez duas Intifadas e no ano passado superou sua frag-
mentação para enfrentar o inimigo sionista simultaneamente em Al Quds, na
Palestina ocupada em 1948, na Cisjordânia, em Gaza e na diáspora.
Mas enfrenta três inimigos poderosos como definiu Kanafani: o sionis-
mo/imperialismo, os regimes árabes vizinhos e a própria burguesia palestina.
Então, quais são os aliados com quem a causa palestina pode contar?
Ghassan Kanafani se inspirou na visão de mundo de Karl Marx na qual
o proletariado, essa classe trabalhadora despossuída e oprimida, é quem tem
as condições históricas de cumprir o papel de coveiro do capitalismo e sua
ordem mundial, que gera monstruosidades como o Estado racista de Israel.
Kanafani pôde vivenciar este potencial de ligação da classe trabalha-
dora com a causa palestina no Líbano, onde morou a partir de 1960, até seu
assassinato em 1972.
A derrota dos exércitos árabes, em 1967, teve um profundo impacto
na sociedade libanesa em um momento no qual operários, camponeses e es-
tudantes lutavam por suas reivindicações contra os interesses da burguesia
libanesa e seu estado repressor.
De um lado, os trabalhadores, os camponeses e estudantes simpati-
zavam com os palestinos e sua resistência armada que se implantou no sul
do Líbano. Exemplo disso foi o funeral do primeiro mártir libanês Khalil Al
Jamal, morto em confronto com o exército israelense na Jordânia, realizado
em Beirute em 27 de abril de 1968 com a participação de 150 mil pessoas,
o mais numeroso ocorrido no Líbano até então. Inspirados pela resistência
104
palestina, milhares de libaneses ingressaram nas organizações palestinas ou
nas organizações de esquerda libanesas para lutar contra Israel.
De outro lado, a maioria da burguesia libanesa se aliava aos inte-
resses sionistas e reprimia duramente os palestinos a quem tratava como
“estrangeiros”.
Esta realidade, vivida por Kanafani, confirmava os postulados de Marx
de luta de classes. A burguesia libanesa eventualmente até discursa em favor
dos palestinos, mas na prática os reprime e chegou até mesmo a se aliar dire-
tamente com Israel durante a guerra civil. Já os explorados e oprimidos liba-
neses se mostraram os aliados naturais dos palestinos. A mesma realidade se
observa até hoje no Líbano bem como nos demais países árabes.

O movimento sindical e a causa palestina

Infelizmente há organizações sindicais que não trabalham para cons-


truir a solidariedade que a causa palestina necessita.
É o caso da principal organização sindical mundial, a Confederação
Sindical Internacional (ITUC - International Trade Union Confederation),
que aceita a central sindical israelense Histadrut em suas fileiras e desta for-
ma trabalha pela normalização de relações com instituições israelenses.
A Histadrut não é uma central sindical “normal”. É um dos três pilares
da formação do Estado de Israel, constituído através da expulsão de 800 mil
palestinos de suas casas e terras e pela destruição de 500 vilas palestinas, que
implementa a limpeza étnica e o apartheid contra os palestinos até os dias de
hoje como finalmente reconheceu a Anistia Internacional e a Human Rights
Watch (HRW).
Já a Federação Sindical Mundial (WFTU - World Federation of Trade
Unions) apoia os palestinos apesar de defender a malfadada “solução de dois
estados”, ou seja, a constituição de um estado palestino independente com
105
base nas fronteiras de 1967 e com Jerusalém Oriental como capital.
A Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas a qual está vin-
culada a CSP - Conlutas apoia a campanha de Boicote, Desinvestimento e
Sanções (BDS) contra o Estado de Israel e as instituições israelenses e luta por
uma Palestina Livre do rio ao mar.
O crescimento da campanha de BDS em todo o mundo, principalmen-
te entre a juventude da classe trabalhadora, traz a certeza de que os pales-
tinos, cada vez mais, poderão contar com o apoio dos trabalhadores e das
trabalhadoras de todo o mundo em sua luta para libertar toda a Palestina.
A publicação da obra de Ghassan Kanafani em português, certamente,
contribuirá para popularizar as ideias da revolução palestina entre a classe
trabalhadora e a juventude brasileira.

Fabio Bosco –
Dirigente da Central Sindical
e Popular (CSP – Conlutas).

106
Notas de
apoiadores desse
projeto

107
Artista: Nabil Anani

108
“Minha posição política brota de eu ser um romancista.
No que me diz respeito, a política e o romance são um
caso indivisível e posso afirmar, categoricamente, que
me comprometi politicamente porque sou romancista,
não o contrário. Comecei a escrever a história da
minha vida palestina antes deencontrar uma posição
política clara ou ingressar em qualquer organização”.

Ghassan Kanafani

109
Martírio de Ghassan Kanafani é lembrar
que a luta não pode parar até a vitória final

O projeto de unir escritores brasileiros, o movimento de solidariedade, par-


tidos e organizações que apoiam a luta de libertação do povo palestino em torno
desta obra, que lembra os 50 anos do martírio de grande palestino e internaciona-
lista Ghassan Kanafani, é um dos feitos mais importantes neste ano no Brasil.
Kanafani é um gigante do povo palestino na luta anticolonialista e an-
ti-imperialista. Seu legado transcende gerações, porque é a somatória da luta
de resistência precedente à ocupação da Palestina pelos judeus europeus que
autoproclamaram um “estado” e um regime de apartheid de supremacia ju-
daica. Vem de mártires como Yasser Arafat, o Sheikh Ahmed Yassin, Salah
Shehada e outros combatentes pela liberdade.
Lembrar-se do seu martírio, ocorrido em 8 de julho de 1972 em Bei-
rute, quando tinha apenas 36 anos, é um alerta para que a luta não pode se
desviar nem parar. Que seguirá até a vitória final. A bomba, que tirou a sua
vida e a de sua sobrinha, e Lamis Najm, na época com 17 anos, silenciou o
poeta, o escritor, o revolucionário, mas não calou os tambores simbólicos da
guerra contra a ocupação.
Ghassan Kanafani representa uma das sínteses de uma geração de pales-
tinos de boa têmpora que nos inspiram a continuar nesse jihad pela libertação
da Palestina. A memória do seu martírio é um convite para a luta sem tréguas
perante e em honra do sacrifício e do sangue de milhares de mártires palestinos
que caíram na luta, fonte de inspiração e esperança aos que lutam para pôr fim
à ocupação e estabelecer a soberania e a independência da Palestina.

Ahmed Shehada, Presidente


Sayid Marcos Tenório, Vice-Presidente –
Instituto Brasil-Palestina (IBRASPAL).
110
O caminho de volta à terra dos laranjais

A solidariedade entre os povos requer laços, compreensão, empatia e


reconhecimento de experiências, mesmo que distantes. A arte, a literatura,
memórias e testemunhos são fundamentais para a construção do vínculo
afetivo e solidário entre pessoas que não, necessariamente, se conhecem no
tempo presente ou se conectaram em vida. Mas que se tornam próximas pela
percepção das jornadas em comum.
Ghassan Kanafani é uma dessas fontes geradoras da empatia e da so-
lidariedade com o povo palestino e com os povos que lutam por libertação
frente ao assalto colonial. Ele consegue transmitir a percepção do sofri-
mento da terra usurpada ao lhe emprestar o mesmo olhar do menino que
observava pelo caminho forçado em direção ao exílio, amontoado no ca-
minhão com a família expulsa pela Nakba, os laranjais da infância deixada
abruptamente para trás.

“Quando chegamos em Sayda, daquela tarde em diante, nós nos tor-


namos refugiados… A estrada nos engoliu.”
(A terra das laranjas tristes, 1963)

Aos dezesseis anos, o futuro escritor palestino já detinha o olhar com-


passivo do adulto que percebeu, como professor da UNRWA, o sono que se
abatia em aula sobre as crianças já esgotadas por dias extenuantes de traba-
lho. Triste ainda era a orientação curricular que pedia às crianças desenhos
de frutas que elas nunca viram ou comeram - como uma maçã ou banana.
Com Kanafani, pelo menos, podiam deixar a tortura de lado e desenhar sua
realidade, as coisas que viam ao seu redor, no campo de refugiados.
Esses registros mostram um escritor que teve a vida toda relaciona-
da com a resistência, embora não fosse simplesmente um ativista escre-
vendo sobre a causa palestina, mas um dos mais importantes expoentes
da literatura de resistência.
111
A terra palestina está viva nas obras de Kanafani por toda parte, na pai-
sagem, nas videiras, no som dos passarinhos, na personificação do deserto,
no vínculo carregado e cultivado no refúgio.
Ler Kanafani transporta leitores para a compreensão de um século
colonial e colonizador de cara contemporânea, através de uma Palesti-
na resguardada na memória de perda dos que partiram e do cotidiano
precário de figuras esmagadas pela colonização, mas cujas vidas são sua
própria narrativa.
A desagregação do tecido social palestino refugiado, Kanafani con-
segue mostrar através de personagens como Mariam grávida, da obra
“Tudo o que resta para você”, impactando a vida ao redor e a sua própria,
e sobre a qual pesam as cobranças pelos valores desestruturados. O escri-
tor está atento ao controle do corpo da mulher pela cultura patriarcal que
acompanha o exílio.

“Quando retrato a miséria do palestino, estou, na verdade, apresen-


tando-o como um símbolo de miséria no mundo todo”, disse ele pró-
prio sobre seus trabalhos, lembrando que, no começo, escrevia sobre a
Palestina como uma causa em si e de si mesma. Mas depois passou a
perceber a Palestina como “um símbolo da humanidade”.

Kanafani foi assumidamente um militante de esquerda, um revolucio-


nário marxista. Mas é interessante o modo como ele indica o poder da arte
para o despertar das consciências e testemunha sua própria trajetória política
originada no fato de ser escritor. Ela parte, não da militância como um ca-
minho indutor de sua escrita literária, mas da literatura como um caminho
que o conduziu à compreensão de seu papel na resistência. Sobre isso, ele diz:

“Minha posição política brota de eu ser um romancista. No que me


diz respeito, a política e o romance são um caso indivisível e posso
afirmar, categoricamente, que me comprometi politicamente porque
sou romancista, não o contrário. Comecei a escrever a história da
112
minha vida palestina antes de encontrar uma posição política clara
ou ingressar em qualquer organização”.

Em apenas uma década de seu mais intensivo trabalho literário,


concentrado nos 1960, deixou uma obra diversificada em contos, ensaios
e romances, além de desenhos, pinturas e peças teatrais, e do contínuo la-
bor jornalístico, como editor de periódicos nos lugares onde viveu - Jor-
dânia, Líbano, Kuwait. No início dos anos 70, ele tornou-se o porta-voz
oficial da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), editando o
jornal Al Hadaf, da organização.
Parte do que Kanafani produziu não pode ser concluído. Ele morreu
precocemente, assassinado em 1972, aos 36 anos, juntamente com a sobrinha
de apenas 17 anos. Uma bomba foi instalada em seu carro pelo Mossad.
O obituário do jornal libanês Daily Star o descreveu como “um coman-
dante que nunca disparou um tiro, cuja arma era uma caneta esferográfica e
a sua arena eram as páginas dos jornais”.
Resgatar a vida e obra de Kanafani para o público brasileiro significa
possibilitar esse acesso a uma Palestina que resiste na memória e na cultura
de milhões de refugiados e descendentes, e que se enriquece da arte literária
de um dos mais atentos narradores desse legado fundamental para a conti-
nuidade da resistência.
A dor do refúgio não apaga a Palestina deixada, mas amplia a perspec-
tiva do seu resgate, ao ser compartilhada. Mais do que falar aos palestinos, a
obra de Kanafani produz empatia, identificação e solidariedade dos que car-
regam outras experiências de um passado colonial e seus legados. Alimenta o
desejo dos leitores de ajudar seus personagens a trilharem o caminho de casa,
o direito do retorno até uma terra feliz com seus laranjais.

Rita Freire e Ahmad Alzoubi –


Monitor do Oriente Médio (MEMO).
113
Intelectuais
e escritores
brasileiros e
a nobre causa
palestina

114
Artista: Nabil Anani
115
“O imperialismo pousou seu corpo sobre o mundo, a cabeça
na Ásia oriental, o coração no Oriente Médio, suas artérias
atingindo a África e a América Latina. Onde quer que você
o golpeie, você o enfraquece e serve à Revolução Mundial.”

Ghassan Kanafani

116
A heróica luta do povo palestino para
a conquista de seu estado soberano

Quando a Assembleia Geral da ONU em 1947, dirigida pelo brasileiro


Oswaldo Aranha, votou que as terras da Palestina ficassem divididas, ficando
56% para o Estado de Israel e 44% para um Estado Palestino, transformou a
vida do povo palestino em uma tragédia sem fim.
Já em maio de 1948 foi instalado o Estado de Israel e nesses 74 anos os
palestinos lutam e morrem pelo seu Estado, com sucessos parciais. Apesar de
tudo, o povo palestino se firmou como nação, tem o reconhecimento de qua-
se todos os países da ONU, menos dos seus algozes. Participa da Assembleia
Geral da ONU como observador em vários de seus departamentos.
Com o fim da primeira guerra mundial, a Inglaterra ficou com a ad-
ministração da Palestina histórica, mas em vez de defendê-la, assumiu, junto
ao movimento sionista, o compromisso de instalação do Estado de Israel, na
Palestina, através da Declaração de Balfour, firmada pelo governo britânico e
o movimento sionista.
Os palestinos foram vítimas desde a primeira metade do século XX,
sofreram massacres, perseguições, expulsões e mais de 700 mil perderam
suas casas, terras, vilas e todos os seus bens sob a ação terrorista dos sionistas.
Entre 1936 e 1939, houve um levante árabe-palestino de grande enver-
gadura, como resistência às destruições e expulsões. O movimento sionista
já sinalizava que desejava as terras palestinas, mas não os palestinos. Estes
foram e são até hoje vítimas da política do apartheid. De 1948 para cá, foram
muitas guerras, cujos resultados têm sido mais sequestros do território pales-
tino. Hoje, Israel ocupa mais de 80% da Palestina. Há milhões de palestinos
refugiados, mais de cinco mil prisioneiros políticos nos cárceres israelenses,
além de assassinatos de incontáveis lideranças palestinas.
Os EUA, até recentemente, como poder unipolar no mundo, declaram
e praticam uma política de parceria estratégica e garantem bilhões de dólares

117
e armamentos, por ano, a Israel. A diplomacia americana se comporta sem-
pre a favor de Israel. Seja um governo republicano ou democrata dos EUA,
sempre garantem esse compromisso de defesa de Israel, independentemente
dos crimes praticados por este. Nada é aprovado no Conselho de Segurança
da ONU para punir os crimes de Israel.
O imperialismo norte-americano tem Israel como sua ponta de lança
na disputa por seus interesses no Oriente Médio, principalmente, quanto
ao petróleo.
Israel e o imperialismo norte-americano sempre atuam, aberta ou
secretamente, para impedir a existência de um Estado Palestino soberano,
embora os EUA procurem camuflar a sua posição. Com isso Israel já tem o
controle de mais de 80% do território da Palestina. As ações expansionistas
de Israel não se limitam à Palestina. Além de ocupar uma parte do território
da Síria, desde 1967 até hoje, Israel ocupou também parte do Líbano, mas foi
expulso pelo Hezbollah com apoio do Irã.
A resistência do povo palestino já tem mais de um século de lutas e
organização para garantir suas terras, casas, direito de viver em paz na sua
própria pátria Palestina. A resistência, nas suas mais variadas formas, nunca
foi interrompida: O povo palestino tem seu Conselho Nacional, declarou sua
independência, tem sua bandeira e suas instituições, é uma sociedade organi-
zada; conquistou o direito de ser membro da ONU como observadora, além
de participar de seus departamentos.
Os palestinos construíram a OLP (Organização para Libertação da Pa-
lestina) que era composta pelo Al FATAH e FPLP (Frente Popular de Liber-
tação da Palestina), FDLP (Frente Democrática de Libertação da Palestina)
e PPP (Partido Popular Palestino). Mais recentemente foi organizado o HA-
MAS e a Jihad de orientação islâmica, que não participam da OLP.
Após a dissolução da União Soviética, em 1991, o mundo ficou sob
comando da única potência política, militar e econômica - os EUA, aliado
incondicional de Israel.

118
O povo palestino continuou sua luta em período muito mais adverso,
todos os crimes de Israel contra os palestinos foram justificados pela super-
máquina de propaganda do ocidente, a serviço dos EUA.
Atualmente os EUA estão em declínio, seu poder unipolar já é contra-
posto pela ascensão da China e seus aliados como a Rússia, Irã entre outros
países, configurando um mundo multipolar, o que contribui com a luta pela
libertação da Palestina.
A causa do Estado Palestino é uma LUTA NACIONAL, compreender
isto é chave da vitória tão almejada e esperada. As forças políticas e sociais
palestinas são plurais em seus projetos para o seu futuro ideal, mas não há
futuro ideal, se não houver o primeiro e principal passo que é a conquista de
seu ESTADO NACIONAL. Se cada força buscar e trabalhar pelo seu projeto
de sociedade, as forças coletivas se dividem e enfraquece a luta de EMANCI-
PAÇÂO NACIONAL. Israel tem se beneficiado desta divisão.
Só os palestinos podem decidir que é a união de forças que potenciali-
za e garante a vitória pelo seu Estado Palestino Independente.

Viva a unidade dos palestinos!


Viva a Palestina Livre!

Jamil Murad -
médico, sindicalista, ex-deputado estadual e ex-federal por São Paulo, mi-
litante histórico do Partido Comunista do Brasil (PC do B), presidente do Centro
Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (CEBRAPAZ), autor do
livro Palestina ao vivo: Relato da
viagem parlamentar oficial aos territórios ocupados
(Editora da Câmara dos Deputados) – 2005.

119
Resistência palestina expõe
as veias abertas da academia

A classe trabalhadora e a questão palestina

Se hoje a “questão palestina” ocupa um lugar central em qualquer de-


bate sério sobre o presente e o futuro da “ordem internacional” – unipolar,
multipolar ou outro nome que se pretenda dar ao jogo de força entre as po-
tências mundiais, certamente isso se deve, fundamentalmente, a um único
fator: a resistência heroica, inabalável, teimosa, perseverante do povo pales-
tino. É a resistência nacional e popular palestina ao projeto sionista – final-
mente, condenado como um sistema organizador do apartheid pela Anistia
Internacional, em fevereiro de 2022 – que abre o caminho aos intelectuais.
É isso, também, que coloca um enorme peso sobre a pesquisa e a produção
acadêmica que têm a “questão palestina” como tema. Não se trata de um
mero debate de ideias e teorias políticas, mas sim da luta viva de um povo que
teima em existir, desafiando os interesses diretos da mais poderosa superpo-
tência já instalada na história da humanidade: os Estados Unidos.
Personalidades importantes do mundo universitário e midiático,
incluindo os estadunidenses Edward Said (de origem palestina) e Noam
Chomski, o brasileiro Milton Santos e o jornalista britânico Robert Fisk, en-
tre vários outros, postularam que os intelectuais, no exercício de sua profis-
são, não podem nem devem ficar restritos aos limites impostos pelo saber
acadêmico, mas sim têm a obrigação de transbordar as fronteiras engessadas
de suas especializações para enfrentar os dilemas colocados pela injustiça.
A exigência de uma suposta “imparcialidade” e “objetividade” na produção
científica se reduz a uma farsa, quando se trata de debater o futuro de milhões
de seres humanos que lutam contra o legado do colonialismo, do escravismo,
do racismo, da xenofobia e dos sistemas opressivos em todos as suas formas.

120
Não há imparcialidade possível, quando se trata de denunciar a opressão do
ponto de vista do oprimido. O silêncio é conivente com o poder.
A “questão palestina”, como expressão da opressão exercida sobre todo
um povo, não diz respeito, unicamente, aos palestinos, mas concentra todas
as contradições de um recente passado colonial francamente em vigor até os
anos 70, e que não foi ainda superado. Ao contrário, o passado colonial tende
a ser retomado com ainda mais força no século 21, graças à lógica de um
sistema econômico mundial de concentração de riquezas sem precedente.
Estatísticas da organização internacional Oxfam (uma confederação de 19
organizações que atua em mais de 90 países) mostram que oito indivídu-
os concentram mais riqueza em suas mãos do que a metade mais pobre da
humanidade. Enquanto Elon Musk se diverte com o envio de foguetes para
o espaço, um bilhão seres humanos passa fome, mais de cem milhões são
refugiados, um sem número é completamente destituído do direito às suas
próprias terras, ao exercício pleno da cidadania, a uma vida digna. São todos
dilemas vividos há décadas pela Palestina.
A tremenda desigualdade só pode ser mantida às custas da desumani-
zação das vítimas. Elas perdem a sua densidade humana e são transformadas
em fantasmas. Não precisamos ir muito longe para verificar como se dá esse
processo. No Brasil, segundo dados divulgados pela Organização das Nações
Unidas (ONU), cerca de 60 mil pessoas são assassinadas por ano. Dessas,
pelo menos 75% são jovens de cor preta, com idade variando entre os 15 e
30 anos, vivendo nas periferias das grandes cidades. Em outros termos, no
Brasil está em curso, há décadas, um processo de extermínio da juventude
negra pobre. Mas, qual a visibilidade que esse processo adquire nos grandes
veículos de comunicação? Quantos brasileiros têm consciência disso? Quan-
tos se deixam sensibilizar por um quadro tão desolador, tão absurdo? Tudo
se passa, de fato, como se os negros das periferias não fossem humanos, ou,
pelo menos, não tão humanos quanto o componente branco da população.
É o que ocorre quanto existe o apagamento da humanidade do ser humano,
quando ele é reduzido a um espectro de si mesmo. Nenhum intelectual tem o
121
direito de silenciar sobe uma questão como essa. Ao contrário, tem a obriga-
ção e o dever de denunciar. Os jovens negros, que são mortos nas periferias
das grandes cidades brasileiras, são, nesse sentido, os “nossos palestinos”.
Trata-se do mesmo processo que, em escala planetária, coloca na peri-
feria do mundo, na condição de subumanos os quase 2 bilhões de seguidores
da fé islâmica, sempre tratados pela mídia como “suspeitos de terrorismo”
simplesmente por serem seguidores do Corão. Não por acaso, aliás, o Islã
cresce nas periferias brasileiras, especialmente entre os jovens, como nota a
jornalista Eliane Brum, em excelente reportagem publicada na revista Época,
intitulado “O islã na laje”, em 30 de janeiro de 2009:

“Cinco vezes ao dia, os olhos ultrapassam o concreto de ruas irre-


gulares, carentes de esgoto e de cidadania, e buscam Meca, no outro
lado do mundo. É longe e, para a maioria dos brasileiros, exótico.
Para homens como Honerê, Malik e Sharif, é o mais perto que con-
seguiram chegar de si mesmos. Eles já foram Carlos, Paulo e Ridson.
Converteram-se ao islã e forjaram uma nova identidade. São pobres,
são negros e, agora, são muçulmanos. Quando buscam o coração is-
lâmico do mundo com a mente, acreditam que o Alcorão é a respos-
ta para o que definem como um projeto de extermínio da juventude
afro-brasileira: nas mãos da polícia, na guerra do tráfico, na falta de
acesso à educação e à saúde. Homens como eles têm divulgado o islã
nas periferias do país, especialmente em São Paulo, como instrumen-
to de transformação política. E preparam-se para levar a mensagem
do profeta Maomé aos presos nas cadeias. Ao cravar a bandeira do
islã no alto da laje, vislumbram um estado muçulmano no horizonte
do Brasil. E, ao explicar sua escolha, repetem uma frase com o queixo
contraído e o orgulho no olhar: “Um muçulmano só baixa a cabeça
para Alá – e para mais ninguém”.1
1-(http://revistaepoca.globo.com/Revista/
Epoca/0,,ERT25342-15228-25342-15228-25342-3934,00.html,acessado em
29.04.2022).
122
A Palestina funciona como uma espécie de “laboratório” dos méto-
dos de desumanização de populações inteiras, com o processo de limpeza
étnica realizada pelo Estado sionista, praticado com a conivência dos maio-
res veículos de comunicação, como demonstra cabalmente o historiador
israelense Ilan Pappé, professor da Universidade de Exeter (Inglaterra) e
persona non grata em seu próprio país. Ou, como admitiria cinicamente
ninguém menos que o general Moshe Dayan: “Nós viemos para este país
que já era habitado pelos árabes, e aqui estamos estabelecendo um Estado
hebreu, isto é judaico. Em áreas consideráveis do país, compramos as terras
dos árabes. Cidades judaicas foram construídas no lugar das cidades árabes.
Vocês nem sabem o nome das cidades árabes, e eu não os culpo por isso,
porque nem existem mais os antigos livros de geografia; mas não apenas os
livros não mais existem, como as cidades árabes também desapareceram.”
(Haaretz, de 4 de abril de 1969)
A Palestina é também usada como “laboratório” por forças de seguran-
ça interna, que se transformaram em exportadoras de tecnologia de conten-
ção e repressão a movimentos sociais e insurreições urbanas. Os “caveirões”
- carros blindados - e equipamentos utilizados pela polícia militar do Rio
de Janeiro e de São Paulo, por exemplo, são fabricados em Israel, assim como
muitos de seus oficiais são ali treinados. Em 25 de agosto de 2021, o Brasil
assinou com o Estado judeu mais um entre vários “acordos de segurança pú-
blica”. Israel também exporta o seu know how policial e repressivo “de ponta”
para os Estados Unidos. Os serviços de câmara de segurança e policiamento
por câmaras de alta definição, robôs e drones instalados ao longo do muro
que separa o país de Tio Sam do México também portam a marca da estrela
de David. Em síntese, Israel pratica a repressão e técnicas de controle social
e espionagem contra a população palestina, para em seguida exportá-las
para todo o planeta.
A desumanização da população palestina passa, na imprensa, por
aquilo que Robert Fisk qualifica como a “dessemantização” das palavras, isto
é, o esvaziamento de seu significado por uma mídia covarde, ignorante ou,
123
simplesmente, cúmplice. Como exemplo, Fisk nota que no mais importante
jornal estadunidense, The New York Times, a expressão “territórios ocupados”
recebe o nome de “vizinhança” (neighborhood), a muralha construída por
Israel para fragmentar o território palestino recebe o nome de “cerca” (fence)
e as organizações da resistência são caracterizadas como terroristas. Assim,
quando palestinos enfrentam com paus e pedras um dos mais poderosos e
bem armados exércitos do planeta, o noticiário descreve como “terroristas”
aquelas pessoas que vivem “na vizinhança” e ficam enfurecidas por causa
de uma simples “cerca”. Para fazer uma analogia, a mesma tática perversa
é usada no Brasil, quando os meios caracterizam as operações feitas pelo
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) como “invasões” e jamais
como “ocupações” que, tecnicamente, é o nome correto.
Num sentido mais simbólico e profundo, a resistência do povo pales-
tino, que teima em se manter viva, jamais submetida ou domesticada, é o
ponto mais alto da denúncia prática, no terreno mesmo da luta, do processo
de construção da islamofobia e da arabofobia - isto é, da desumanização de
quase 2 bilhões de seres humanos - pela mídia, por uma parte dos intelec-
tuais e das instituições universitárias comprometidos com a “ordem”. A resis-
tência palestina é o que evidencia o fracasso das tentativas dos imperialismos
- novos e antigos - de sufocar a presença de um povo que não se deixa sub-
meter. E os ataques são formidáveis, incessantes e monumentais.
Os exemplos da construção diária da islamofobia e da arabofobia se
multiplicam quase que diariamente nos grandes meios de comunicação
dos Estados Unidos e da Europa. Eles fazem parte daquilo que hoje se
convenciona chamar de “guerra híbrida”, isto é, a massiva utilização dos
meios de comunicação e da “guerra cultural” como legitimadores do terror
de Estado e de ações militares que têm como objetivo conquistar territórios,
ainda que isso signifique o massacre de populações inteiras. De fato,
alguns dos principais veículos de comunicação do mundo contemporâneo
(incluindo jornais, revistas e emissoras de televisão) tendem a vincular a
prática do terrorismo ao mundo islâmico (e, por extensão, ao árabe), como se
124
fossem quase sinônimos. Sintomaticamente, a cobertura midiática de ataques
armados praticados nos Estados Unidos, mesmo aqueles que resultam em
dezenas de mortos e feridos, qualifica os atentados como “terroristas” apenas
quando a ação é praticada por indivíduos de nome ou aparência árabe e/ou
islâmica. Quando os ataques são praticados por pessoas de aparência e nome
estadunidenses ou não árabes, são normalmente descritos como “insanos”,
“psicopatas”, “desajustados” e adjetivos semelhantes, nunca “terroristas”.
Apenas para citar um recente e bastante ilustrativo, basta lembrar o
massacre praticado em Orlando (Flórida, EUA), em 12 de junho de 2016,
em uma boate frequentada pelo público LGBT, resultando em 50 mortos e
53 feridos. O autor, Omar Mateen, 21 anos, um estadunidense de origem
afegã, era conhecido por suas declarações de “ódio aos gays”. Apesar disso,
de imediato, a mídia passou a especular sobre seus supostos vínculos com o
terrorismo islâmico:

“O FBI diz que o homem de 29 anos morto pela polícia aparentemente


‘tinha inclinação’ para a ideologia islâmica radical, embora ainda
não esteja claro se o ataque terrorista esteve ligado à ação de algum
grupo estrangeiro. O diretor do FBI, James Comey, afirmou que há
‘indicações fortes de radicalização e de uma potencial inspiração
por parte de organizações terroristas estrangeiras’. (...) O presidente
americano, Barack Obama, afirmou que o inquérito sobre o massacre
na Pulse está sendo tratado como uma investigação sobre terrorismo,
mas acrescentou que não há provas claras de que Omar Mateen tenha
sido orientado pelo Estado Islâmico.”2

Mesmo quando não se apressava a caracterizar o massacre, categori-


camente, em títulos de artigos, como um ato terrorista, os jornais deixavam
margem a essa possibilidade, como faz, por exemplo, a Folha de S. Paulo: “As-
sassino, que dizia ter nojo de homossexuais, se disse leal ao Estado Islâmico,

2-(Portal BBC. 14.06.2016, disponível em https://www.bbc.com/portuguese/


internacional-36520424, acessado em 29.04.2022).
125
mas polícia vê evento como algo isolado.” (Folha de S. Paulo, 13.06.2016). Ou
O Globo: “O FBI diz que o homem de 29 anos morto pela polícia aparente-
mente ‘tinha inclinação’ para a ideologia islâmica radical, embora ainda não
esteja claro se o ataque terrorista esteve ligado à ação de algum grupo estran-
geiro.” Isto é, o suposto vínculo com o terror islâmico tinha que aparecer de
alguma forma, mesmo como hipótese a ser investigada.
Nunca foi encontrada prova de vínculo entre Mateen e qualquer grupo
terrorista organizado. Tratava-se de um rapaz mentalmente perturbado. O
seu pai Seddique Mateen declarou e repetiu que o ataque “não tinha nada a
ver com religião”, que seu filho ficou “muito bravo” após ver dois homens se
beijando no centro de Miami, e que a família não sabia que ele estava plane-
jando um ataque. “Estamos chocados como todo o país.” Segundo o agente
especial do FBI Ron Hopper, Mateen já havia sido interrogado duas vezes, em
2013, após fazer comentários inflamados a colegas dizendo que tinha ligação
com o Estado Islâmico, e que a investigação foi encerrada porque as autori-
dades não conseguiram confirmar as alegações. Mas Mateen foi interroga-
do outra vez em 2014 sobre uma possível conexão com Moner Mohammad
Abu-Salha, um americano que cometeu um atentado suicida na Síria. A in-
vestigação do FBI, em resumo, não descobriu nenhuma “relação substancial”
entre Mateen e Abu-Salha e o caso foi fechado.
Em franco contraste com esse quadro, como já referido anteriormente,
a suposta conexão com o “terrorismo islâmico” ou com qualquer outra
forma de terror jamais aparece quando os autores dos atentados são pessoas
de aparência e nome estadunidenses ou não árabes. Ataques, por exemplo,
como o ocorrido em Las Vegas, em 02 de outubro de 2017, praticado pelo
contabilista estadunidense Stephen Paddock, que deixou 58 mortos e
centenas de feridos. O massacre foi descrito como “um ato insano” e de “pura
maldade” pelo então presidente Donald Trump e pelos principais veículos de
comunicação nos Estados Unidos. Não se mencionou a palavra “terrorismo”.
As reportagens, ao contrário, assumem uma postura cautelosa - como
sempre deveria acontecer - indagando as motivações do crime e tentando
126
conhecer e descrever o perfil do criminoso, sem assumir nada em princípio
e sem saltar para conclusões precipitadas. A mesma narrativa cautelosa foi
adotada pelos principais jornais no Brasil, descrevendo Paddock como um
“sujeito pacato” com motivações pouco claras para o atentado.
Os exemplos poderiam ser monotonamente multiplicados, com a ci-
tação de dezenas de massacres perpetrados por jovens em escolas do ensi-
no secundário e universidades dos Estados Unidos, apenas para reafirmar
a existência de um padrão de cobertura. Nunca se fala em terrorismo, mas
em pessoas “perturbadas”, com “distúrbios mentais”, “famílias disfuncionais”
etc. Mesmo no caso extremo do ataque violento e armado ao prédio do Con-
gresso Nacional (Capitólio) e ao conjunto das instituições democráticas nos
Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, enquanto a maior parte dos meios
de comunicação denunciaram e condenaram o “radicalismo”, o “extremis-
mo”, o “terrorismo doméstico” e o “trumpismo”, foi notória a total ausência de
referências, nas manchetes e chamadas, ao caráter fundamentalista religioso
cristão das manifestações. Nunca foi usada, por exemplo, a expressão “terro-
rismo cristão”, embora os invasores do Capitólio portassem faixas e cartazes
com alusões a Jesus Cristo e aos Evangelhos. Vamos imaginar, por um mo-
mento, que os grupos que cercaram o Capitólio portassem imagens e símbo-
los do Islã. Como seriam as manchetes?
A predisposição a criminalizar o Islã e os árabes não está presen-
te apenas nas coberturas feita pela mídia estadunidense, mas é também o
procedimento padrão na Europa. Tornou-se mundialmente conhecido, em
16 de outubro de 2020, por exemplo, o caso do professor de ensino médio
da escola pública de Bois d’Aulne, em Conflans-Sainte-Honorine, nos arre-
dores de Paris, Samuel Paty, supostamente decapitado por um extremista
islâmico. Paty havia proposto um debate sobre o exercício da liberdade de
expressão, levando à sala de aula cartuns satíricos envolvendo o profeta
Mohamed, publicados pelo semanário satírico Charlie Hebdo, alvo de um
atentado, em 2015, que matou 12 pessoas. O suspeito pelo assassinato de
Paty foi um jovem muçulmano de ascendência tchechena, de 18 anos, mor-
to a tiro pela polícia no próprio dia.
127
O presidente Emmanuel Macron imediatamente caracterizou o ato
como “característico ataque terrorista islâmico”. O professor”, afirmou Ma-
cron, “foi morto hoje porque ensinou, porque explicou aos seus alunos li-
berdade de expressão, liberdade de acreditar e liberdade de não acreditar.” A
polícia francesa iniciou uma vasta operação de “caça” e deportações sumárias
de pessoas “suspeitas de ligações com o terrorismo islâmico”. O assassinato
e as operações subsequentes tiveram grande repercussão mundial, sem que
nenhum veículo de grande tiragem colocasse em questão o caráter suposta-
mente terrorista islâmico da decapitação. Ninguém falou de “gesto insano” de
alguém que “entrou em surto” ou que tinha a “mente perturbada”. Foi terro-
rismo islâmico e ponto final.
Em 18 de outubro de 2020 - apenas dois dias após a decapitação do
professor, um grupo de cinco mulheres, cidadãs francesas, usando o hijab
passeavam com seus filhos no Campo de Marte, perto da Torre Eiffel, em
Paris, quando foram atacadas e esfaqueadas por outras duas mulheres “de
aparência europeia”, aos gritos de “árabes sujas” e “aqui não é lugar de vo-
cês”. Duas das vítimas foram hospitalizadas em estado grave. O caso não teve
qualquer repercussão na mídia. Ninguém falou em terrorismo, muito menos
em “terrorismo cristão”. As autoras do ataque foram acusadas de “violência
agravada pelo uso de arma, embriaguez e comentários racistas”. (Segue o de-
poimento de uma das vítimas: https://www.youtube.com/watch?v=_n5OiYi-
GG5c, acessado em: 22.04.2022)
Como no caso dos Estados Unidos, os exemplos poderiam ser mul-
tiplicados por páginas e páginas, apenas para constatar o mesmo padrão e,
por extensão, na mídia brasileira, que raramente desenvolve uma cobertura
autônoma e diferenciada da praticada pelas agências internacionais (Reuters,
AFP, EFE, AP e outras) e pelas emissoras internacionais (em particular, a rede
CNN). De fato, o investimento dos veículos nacionais em contratação de cor-
respondentes e o espaço dedicado à cobertura de notícias internacionais são
cada vez menores. A imprensa nacional, na maioria dos casos, contenta-se
em reproduzir aquilo que é noticiado pelos grandes veículos internacionais.
128
Mas a relação de equivalência entre “Islã”, “árabe” e “terror” não se apli-
ca apenas aos programas noticiosos e às páginas dos jornais. Estende-se tam-
bém à esfera do entretenimento, em especial no cinema made in Hollywood.
O documentário “Reel bad arabs – how Hollywood villifies a people”, produ-
zido e apresentado pelo professor Jack Shaheen, da Universidade de Illinois,
expõe, de maneira detalhada, como o cinema de Hollywood mostra os árabes
de forma distorcida e preconceituosa. Uma longa lista de filmes - das fan-
tasias de Disney aos filmes de ação contemporâneos que têm o terrorismo
por tema - apresenta os árabes como “mágicos”, habitantes de um mundo
exótico, bandidos, violentos, lascivos, corruptos, perdulários ou, claro, como
como terroristas armados e prestes a explodir pessoas e lugares. Em contra-
partida, suas mulheres são submissas, perversas, infantilizadas, encarnações
do Mal. (Documentário disponível em <https://www.youtube.com/watch?-
v=Ko_N4BcaIPY>, acessado em: 22.04.2022).
Alimenta-se, com isso, uma perigosa narrativa islamofóbica e arabo-
fóbica - aqui definida como sentimento de ódio, aversão, temor ou mesmo
percepção negativa com relação ao Islã como sistema religioso e à cultura is-
lâmica num sentido geral e, mais particularmente ao mundo árabe. De fato, a
islamofobia e a arabofobia são componentes centrais da “guerra híbrida”. Não
por acaso, o debate acadêmico e científico sobre a existência da islamofobia
ganha impulso e no mesmo momento em que se instalou a CNN, a primeira
rede mundial de televisão com capacidade para transmitir notícias para todo
o mundo em tempo real, ao vivo e em cores. Sua primeira transmissão nessas
condições ocorreu durante a 1ª Guerra do Golfo (janeiro/fevereiro de 1991),
quando, supostamente, os Estados Unidos teriam inventado a “guerra sem
mortes”, com ataques feitos com armas dotadas de “precisão cirúrgica” para
atingir precisamente os alvos, sem produzir perdas humanas. Hoje se sabe
que pelo menos 200 mil crianças, mulheres, idosos e civis iraquianos em ge-
ral foram mortos na “guerra sem mortes”. Mas o mundo mal ficou sabendo
disso, mais uma vez, graças ao processo de desumanização dos povos árabes
e islâmicos. E quando a surge a evidência da morte de civis, bem, a expressão
utilizada á a ocorrência de “danos colaterais”.
129
Obviamente, é uma narrativa interessada, que procura legitimar o
processo de dominação dos Estados Unidos e potências aliadas europeias
sobre os povos do Oriente Médio, região onde estão localizadas as maiores
reservas de gás e petróleo do planeta. Mais uma vez, cabe a Robert Fisk
uma observação amarga, temperada com grande sarcasmo: “Se, em vez de
petróleo, o Oriente Médio fosse rico, em digamos, aspargos, essa discussão
toda nem existiria”. Mas, não se trata aqui, obviamente, de mapear com de-
talhes os efeitos das “novas narrativas” sobre o imaginário dos povos - tan-
to os colonizadores quanto os colonizados - tarefa, aliás, já desenvolvida
pelo próprio Edward Said e muitos outros autores. Essa, definitivamente, é
uma responsabilidade central dos intelectuais e é uma das grandes questões
abertas para os historiadores e críticos da cultura no mundo contemporâ-
neo. Trata-se, aqui, de assinalar que os sentimentos islamofóbicos e arabo-
fóbicos fazem parte de história e de tradição eurocêntrica e “ocidental” que
a resistência palestina à Nakba coloca a nu.
É uma tradição que se inscreve com força na própria produção cien-
tífica do mundo europeu ocidental, sobre a forma de um “racismo epistê-
mico”, observa Ramón Grosfoguel, professor associado de Estudos Étnicos
na Universidade da California, Berkeley, e principal pesquisador associado
da Casa das Ciências do Homem (la Maison des Sciences de l´Homme) de
Paris. O racismo epistêmico tem implicações profundas, pois ele estrutu-
ra a formação dos intelectuais, estejam eles ou não conscientes disso. Em
outros termos, para sequer enxergar a existência do racismo epistêmico, o
intelectual deve fazer a crítica de sua própria formação, colocar em cheque
os seus preconceitos, as suas certezas sobre o mundo, a começar sobre as
convicções que o filiam ao pensamento moderno, ancorado no racionalis-
mo cartesiano e no Iluminismo.
Grosfoguel encontra uma íntima e inextrincável relação entre a lógica
cartesiana que consagrou o racionalismo como elemento fundador da
modernidade e a concepção de mundo que embalou e justificou a empreitada
colonial. A “reconquista” de Granada, em 1492, consagrando a derrota
130
definitiva dos reinados islâmicos na Península Ibérica, teria sido um dos
pilares desse processo:

“No entanto, ainda há um elo perdido entre o “conquisto, logo existo”


e o “penso, logo existo”. Não há condição inerente e necessária para
derivar do “conquisto, logo existo” o “universalismo idólatra” (a visão
dos olhos de Deus), nem o “racismo/sexismo epistêmico” (a inferiori-
dade de todos os conhecimentos vindos dos seres humanos classifica-
dos como não ocidentais, não masculinos ou não heterossexuais) do
“penso, logo existo”. O que conecta o “conquisto, logo existo” (Ego con-
quiro) com o idolátrico “penso, logo existo” (Ego cogito) é o racismo/sexis-
mo epistêmico produzido pelo “extermino, logo existo” (Ego extermino).
É a lógica conjunta do genocídio/epistemicídio que serve de mediação
entre o “conquisto” e o racismo/sexismo epistêmico do “penso” como
novo fundamento do conhecimento do mundo moderno e colonial. O
Ego extermino é a condição sócio-histórica estrutural que faz possível
a conexão entre o Ego conquiro e o Ego cogito. Em seguida, se susten-
tará que os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI são
as condições da possibilidade sócio-histórica para a transformação
do “conquisto, logo existo” no racismo/sexismo epistêmico do “penso,
logo existo”. Esses quatro genocídios/epistemicídios ao longo do século
XVI são: 1. contra os muçulmanos e judeus na conquista de Al An-
dalus em nome da “pureza do sangue”; 2. contra os povos indígenas
do continente americano, primeiro, e, depois, contra os aborígenes na
Ásia; 3. contra africanos aprisionados em seu território e, posterior-
mente, escravizados no continente americano; e 4. contra as mulheres
que praticavam e transmitiam o conhecimento indo-europeu na Eu-
ropa, que foram queimadas vivas sob a acusação de serem bruxas.3

3-A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo


epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista
Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1, Janeiro/Abril 2016, págs. 31-32.
Disponível em https://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00025.pdf.
Acesso em 27.04.2022.
131
Do ponto de vista dos intelectuais, portanto, a “questão palestina”,
ao desnudar as falácias inerentes a uma concepção de mundo eurocêntri-
ca, ocidental, “moderna”, coloca questões que, como dissemos no início de
nossa breve reflexão, vão muito além de qualquer limite epistêmico para
transbordar todos os “muros” de contenção do saber engessado e consagra-
do pela academia. A “questão palestina” é a “questão” da juventude negra
que está sendo dizimada nas periferias brasileiras; é a “questão” do racismo
estrutural e estruturante que marca a própria história do Brasil; é a denún-
cia de um sistema cruel e perverso que concentra a riqueza mundial nas
mãos de meia-dúzia de indivíduos, enquanto condena centenas de milhões
de seres humanos à fome, aos campos de refugiados, ao desespero, a uma
vida sem futuro nem perspectiva. A “questão palestina” concentra todos
esses problemas, mais uma vez, graças à resistência viva de seu povo. Esse
é o fato diante do qual os intelectuais são chamados a se posicionar, ainda
que para isso tenham que cortar a própria carne e expor seus preconceitos.
Não é um desafio menor.

José Arbex Jr. –


jornalista, doutor e professor da PUC-SP,
autor do livro Terror e Esperança na Palestina
(Editora Casa Amarela) – 2002.

132
Ghassan Kanafani, o mártir palestino
que uniu literatura e revolução,
a caneta e o fuzil

“Sou daqui, sou de lá. Mas não estou


nem aqui nem lá. Muitas rosas jogarei
até chegar à rosa da Galileia.”
Mahmoud Darwish1

Falar de Ghassan Kanafani é falar de um revolucionário que uniu li-


teratura e revolução, a caneta e o fuzil, até que uma bomba detonada pelos
terroristas do “estado judeu” interrompesse sua vida em 8 de julho de 1972
em Beirute, aos 36 anos, misturando a tinta de sua caneta com o sangue do
seu martírio, para que seu nome ficasse registrado no panteão dos imortais
do povo palestino.
Aos 13 anos presenciou sua paisagem ser despedaçada, de casas em
chamas e de numerosas famílias em fuga, entre as quais a sua própria famí-
lia. Conheceu as dores e agruras do exílio logo cedo, quando o colonialismo
judeu sionista se abateu sobre a Palestina em 1948, dando início ao processo
da Nakba, que perdura por todos esses anos.
A sua formação revolucionária, que começou no berço, por assim dizer,
porque nasceu sob o som dos combates da revolta de 1936-1939; a revolução
que foi o batismo de fogo do movimento nacional palestino contemporâneo,
em abril de 1936; os distúrbios locais de árabes contra o colonialismo britâni-
co; e a imigração em massa de judeus sionistas se projetaram nacionalmente
numa revolta generalizada dos palestinos, após o início de uma greve geral
em 8 de maio de 1936.2

1-DARWICH, Marmoud. Ainda é longo o caminho. Revista Brasileira, Fase VIII, Ano
II, n. 77, p. 183, out./nov./dez. 2013. Disponível em: https://www.academia.org.br/sites/
default/files/publicacoes/arquivos/revista-brasileira-77.pdf. Acesso em: 21 abr. 2022.
2-TENORIO, Sayid Marcos. Palestina, do mito da terra prometida à terra da resistência.
2. ed. São Paulo: Anita Garibaldi, IBRASPAL, 2022. p. 92.
133
Mais tarde, Kanafani escreveria sobre aquelas lutas no seu livro A Re-
volta de 1936-1939 na Palestina, no qual ele avalia que:

Na verdade, a real causa da revolta foi o fato de que os violentos con-


flitos que envolviam a transformação da Palestina de uma sociedade
agrícola-feudo-clerical árabe em uma sociedade burguesa industrial
sionista (ocidental) haviam atingido o seu clímax, como visto antes. 3

A Revolta de 1936-1939 não visava apenas impedir do avanço do projeto


colonial sionista na Palestina, mas, sobretudo, derrotar as autoridades britâni-
cas, de quem os palestinos exigiam a formação de um governo nacional inde-
pendente. A resposta das autoridades britânicas na Palestina veio na forma de
represálias contra os palestinos, cuja luta de libertação do jugo do Mandato era
encarada como obstáculo fundamental para a colonização sionista.
Dessa maneira, o conflito desenhou-se como uma luta de longo prazo,
envolvendo múltiplos protagonistas, como os colonialistas ingleses, os judeus
sionistas, os nacionalistas palestinos e as lideranças operárias e populares,
árabes e judias, com seus interesses divergentes e conflitivos.
Kanafani sublinhou que o conflito na Palestina não era apenas conjun-
tural, mas tinha como essência a luta dos palestinos por seus direitos funda-
mentais de liberdade e independência do colonialismo britânico. Isso quer
dizer essencialmente sobre a pátria, tema que o autor trataria com mais pro-
eminência na novela Retorno a Haifa (1969), na qual questiona o significado
dessa categoria tão importante de ser definida pelos palestinos, depois que a
viram ser arrancada de suas vidas pelo colonialismo sionista.

Eu perguntei: o que é a pátria? Pergunto-me isso há algum tempo.


Naturalmente, o que é a pátria? São essas duas cadeiras que perma-
neceram nesta sala por vinte anos? Essa mesa? Essas penas de pavão?

3-KANAFANI, Gassan. A Revolta de 1936-1939 na Palestina. São Paulo: Sundermann,


2015. p. 68.
134
Aquela foto de Jerusalém na parede? A fechadura de cobre? O carva-
lho? A varanda? São apenas questões.4

Ao dizer que são apenas questões sobre a pátria, Kanafani aponta para
a essência da luta de libertação do seu povo, que envolve as fronteiras da Pa-
lestina Histórica e o status da cidade sagrada e ecumênica de Jerusalém, que a
Organização das Nações Unidas (ONU) pretendeu internacionalizar no con-
junto de injustiças e ilegalidades decorrentes do Plano da Partilha de 1947,
no qual o território destinado ao “estado judeu” ficou com aproximadamente
57% das melhores terras da Palestina, embora os sionistas possuíssem apenas
7% da terra privada na Palestina naquele momento.
No entanto, a decisão transitou no sentido oposto das aspirações ára-
bes por um grande estado independente e unitário, que surgiria da união das
antigas províncias do Império Otomano. Esse desejo foi traído pelo Acordo
Sykes-Picot, sacramentado pelo imperialismo britânico e francês, com a cria-
ção de Estados separados e artificiais, abrindo caminho para a criação dessa
aberração, a que deram o nome de “Estado de Israel”, sobre os escombros
provocados pela usurpação de terras, casas, vidas e sonhos palestinos.
Sobre a traição de Sykes-Picot, o oficial da Força Aérea Britânica Tho-
mas Edward Lawrence, conhecido como Lawrence da Arábia, que exercia o
cargo de Consultor de Assuntos Árabes da Divisão Oriente Médio do De-
partamento Colonial do governo britânico, relata, em seu livro Sete Pilares
da Sabedoria, que os árabes confiaram na promessa do governo britânico de
uma recompensa após a Guerra.

Os árabes foram persuadidos a lutar por nós com a promessa defini-


tiva e clara de autodeterminação depois. Era evidente, desde o início,
que se vencêssemos a guerra as promessas seriam tratadas como papel
sem valor. 5
4-KANAFANI, Ghassan. Palestine’s children: Returning to Haifa and other stories.
Tradução de Barbara Harlow e Karen E. Riley. Boulder: Lynne Rienner Publishers,
Inc, 2000. p. 184.
5-LAWRENCE, Thomas Edward. Sete Pilares da Sabedoria. São Paulo: Record, 2000.
p. 21-22.
135
Precisamos falar mais sobre a Nakba, esse episódio que está na raiz do
conflito que perdura até os nossos dias, e relembrar que os sefarditas (judeus
oriundos de Portugal e da Espanha) e os asquenazes (judeus oriundos da
Europa Central) representavam menos de um terço da população em 1948,
sendo uma grande porcentagem deles imigrantes transferidos em levas da
Europa, após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Com a fundação do “Estado de Israel”, em 14 de maio de 1948, o povo
palestino foi atingido pela catástrofe, que causou a destruição de mais de 400
aldeias e a expulsão deliberada de cerca de 800 mil pessoas – mais do que
toda população judaica existente naquela época. Esses palestinos perderam
suas casas e seus bens e tornaram-se refugiados dentro do seu próprio terri-
tório e nos países vizinhos, somando hoje uma população de cerca de cinco
milhões de pessoas no exílio.
Para Kanafani, a violência de 1948 serve para explicitar sua impotência
diante do que restou daquele processo de ocupação colonial judaico-sionista.
Quando a primeira Nakba foi concluída pelas forças sionistas em 1949, o
novo estado de “Israel” compreendia 77% do território que, dois anos antes,
havia sido dividido pela ONU, restando apenas a Cisjordânia, incluindo Je-
rusalém Oriental e a Faixa de Gaza, que estavam sob o controle da Jordânia e
do Egito, respectivamente.
Na agressão e expansão colonialista que ficou conhecida como Guerra
dos Seis Dias, em um ataque terrorista das forças de ocupação israelenses
ocorrido entre 5 e 10 de junho de 1967, que ocupou a Faixa de Gaza, o Sinal
(Egito) e as Colinas de Golã (Síria), “Israel” ocupou os 22% restantes. A colo-
nização, por meio de assentamentos para colonos judeus, começou logo em
seguida, e continua até hoje, com os sionistas se apressando em executar o
processo de judaização completa da Palestina.
“Israel” continua executando esse processo em todos os campos. Não foi
à toa que, em 19 de julho de 2018, o Knesset aprovou a chamada Lei Básica do
Estado-Nação do Povo Judeu,6 por meio da qual “Israel” passa a ser legalmente
6-O texto da Lei Básica do Estado-Nação do Povo Judeu pode ser encontrado em:
http://institutobrasilisrael.org/noticias/politica/texto-integral-da-lei-que-define-
israel-como-estado-nacao-do-povo-judeu. Acesso em: 23 abr. 2022.
136
um Estado exclusivo para judeus. A adoção dessa legislação discriminatória
representou uma vitória da extrema-direita sionista, que governa Israel, e uma
derrota do resto do mundo, onde não há precedente dessa natureza, além de
contrariar a quase totalidade dos países membros da ONU, que reconhece o
direito dos palestinos ao seu estado independente e soberano.
É gritante a simetria dos acontecimentos de 1948 com o que esta-
mos assistindo atualmente na cidade sagrada de Jerusalém, onde colonos
judeus-sionistas de extrema-direita, apoiados pelas forças militares da ocu-
pação, estão atacando o Bairro Sheikh Jarrah e suas vizinhanças, pratican-
do invasões, saques, incêndios de terras agrícolas, violência e apropriações
ilegais de propriedades.
Ainda sobre as análises de Kanafani sobre a revolução de 1936-1939,
ele observou que a “principal ameaça” ao movimento nacional palestino es-
tava apoiada num tripé formado por

[...] três inimigos que se constituíram, juntos, na principal ameaça


ao movimento nacionalista na Palestina, em todos os estágios sub-
sequentes de sua luta: a liderança local, reacionária; os regimes dos
estados árabes vizinhos; e o inimigo imperialista-sionista. 7

A compreensão de Kanafani permanece inteiramente atual se obser-


varmos os desdobramentos da política interna e externa palestina, em que a
Autoridade Palestina se converteu num instrumento das políticas do apar-
theid israelense. Nesse sentido, cito dois episódios recentes que ilustram
essa avaliação.
O primeiro diz respeito ao não encaminhamento das conclusões de
uma importante reunião de unidade das forças palestinas, realizada em 5 de
setembro de 2020, na qual tomaram parte os partidos e grupos políticos de
resistência, a partir de Beirute, em que firmaram um acordo de ação conjunta
para confrontar a ocupação sionista. Do ponto de vista da resistência
7-KANAFANI, Ghassan. A Revolta de 1936-1939 na Palestina. São Paulo: Sundermann,
2015. p. 27.
137
palestina, essa foi uma reunião histórica, porque os seus desdobramentos
ofereceram instrumentos e mais força para o enfrentamento do projeto
colonial sionista na Palestina.
Na declaração final do encontro, evidenciou-se que a unidade das for-
ças palestinas tem como objetivo acabar com a divisão e promover a recon-
ciliação e a parceria nacional o mais rápido possível. Com isso, pretende-se
alcançar os objetivos estratégicos de acabar com a ocupação e estabelecer o
Estado palestino independente em todos os territórios ocupados, com Jeru-
salém como sua capital.
Uma das principais concordâncias foi o estabelecimento de uma
cláusula democrática que unificasse as correntes políticas num sistema
político democrático, com uma autoridade e uma lei que garantam o
pluralismo político e uma transição pacífica de poder por meio de eleições
livres e transparentes, realizadas com base na representação proporcional
e em outras normas internacionais de democracia. O Movimento da
Resistência Islâmica (HAMAS) foi a força que mais reclamou por essa
questão, já que o FATAH controla a Autoridade Palestina desde 2005 e a
usa em benefício político dos seus dirigentes.
No entanto, todo esse esforço foi quebrado com a postura assumida
pelo presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, que agiu unila-
teralmente para cancelar as eleições e outras iniciativas acertadas para a uni-
dade das forças palestinas. O que prevaleceu foram os cálculos eleitorais do
presidente Mahmoud Abbas e do movimento FATAH, que não se mostraram
dispostos a prosseguir com qualquer processo eleitoral justo e transparente
que possa prejudicar seu domínio sobre a Organização para a Libertação da
Palestina (OLP) ou a Autoridade Palestina.
O líder político do HAMAS, Ismail Haniyeh, declarou, em uma entre-
vista ao canal de TV Al Aqsa8, que as votações palestinas tinham sido adiadas
por “razões absolutamente não convincentes”. “O atraso [da eleição palestina]

8-Haniyeh regrets Abbas’ decision to cancel Palestinian votes, calls for national meeting.
Disponível em: https://hamas.ps/en/post/3379/Haniyeh-regrets-Abbas-decision-to-
cancel-Palestinian-votes-calls-for-national-meeting. Acesso em: 23 abr. 2022.
138
significa abolir e aproveitar o direito do povo palestino de exercer seu direito
natural garantido por todas as normas e leis internacionais”. Ele disse, ainda,
que o HAMAS não tinha nenhum desacordo com o FATAH ou qualquer
outro partido sobre a necessidade de realizar as eleições palestinas em Jeru-
salém, “mas Abu Mazen sucumbiu à vontade da ocupação israelense.”
No segundo aspecto, aquele que diz respeito aos regimes dos estados
árabes vizinhos, o que se tem observado, ao longo dos anos, é uma marcha de
traições das dinastias árabes contra os objetivos estratégicos do povo palesti-
no. Estimulados pelos EUA, alguns países árabes iniciaram negociações para
a normalização de relações com o estado sionista: Emirados Árabes Unidos,
Bahrein, Sudão e Marrocos. Ou seja, essas ditaduras árabes decidiram fazer,
à luz do dia, aquilo que faziam na surdina, em traição aos irmãos palestinos,
vítimas do apartheid racista do autoproclamado “Estado judeu”.
Uma das “normalizações” que mais causaram indignação foi a do Rei-
no do Marrocos, anunciada dias após a retomada da guerra pela Frente POLI-
SARIO9, cansada de esperar pela implementação das cláusulas do cessar-fogo
negociado em 1991. Por incrível que pareça, o rei do Marrocos, Mohamed
VI, é o presidente do Comitê de Al Quds, criado em 1975 para defender(!) a
cidade sagrada de Jerusalém das agressões do ocupante sionista.
Por seu lado, a Arábia Saudita e seus apoiadores afirmam que ela é a
protetora dos muçulmanos sunitas, incluindo o HAMAS e os palestinos. Es-
ses mesmos sauditas mantêm mais de 60 palestinos encarcerados, entre eles
o representante do HAMAS no Reino, Dr. Mohammed Al Khodari, que é um
homem doente com mais de 80 anos, e seu filho. Como acreditar que a Ará-
bia Saudita, a exemplo de Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Marrocos, está
pronta para apoiar os palestinos quando “se lança, cada dia mais, nos braços”
do inimigo sionista e adota um tratamento tão desumano, dispensado por
autoridades sauditas a palestinos presos?

9-Frente Popular de Libertação de Saguía el Hamra e Rio do Oro é o movimento


político-revolucionário em favor da libertação do colonialismo do Marrocos e pela
autodeterminação do Saara Ocidental.
139
A terceira observação de Ghassan Kanafani, quanto à ação do inimigo
imperialista-sionista, demonstra que é necessária a permanente atenção com
as falsas alternativas criadas pelo inimigo com o objetivo de dispersar esfor-
ços palestinos e oferecer soluções falsas para um problema complexo.
Em janeiro de 2020, o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald
Trump, anunciou um arranjo traiçoeiro que não teve a participação dos pa-
lestinos, que ele chamou de “acordo do século”, uma iniciativa unilateral, pro-
veniente de pressão do lobby judeu dos EUA, visando a continuação das ane-
xações de territórios palestinos, o reconhecimento e a legalização dos crimes
que o “estado judeu” vêm praticando desde 1948. Aquilo que parecia ser uma
alternativa para a “paz duradoura” era, na verdade, um plano macabro para
acabar com a Palestina como nação.
O objetivo da ocupação israelense é a completa destruição da Palestina
para que haja finalmente o estabelecimento do Estado de supremacia judaica
nos territórios ocupados, sem fronteiras definidas e em permanente expan-
são, transformando o que sobrar da Palestina em pequenas ilhas de terra,
como se fosse um miniestado, pulverizado, cercado e sufocado pelo ocupante
por todos os lados.
Porém, esses são movimentos fadados ao fracasso diante do evidente
crescimento da impopularidade e rechaço de Israel em todo o mundo. As ruas
de várias cidades continuam sendo palco de inúmeras manifestações de apoio
à causa palestina e de franco repúdio às ações do apartheid sionista. Ao mes-
mo tempo, constatamos ações de instituições internacionais, como o Tribunal
Penal Internacional, que deu início a um inquérito para investigar os crimes
de guerra e de lesa-humanidade praticados contra a Faixa de Gaza desde 2014.
Se observarmos, os acontecimentos na Ucrânia, com a Operação Mi-
litar Especial do exército russo para desnazificar o país e o regime ucrania-
no dos bandos neonazistas, que tem como braço armado o denominado
Batalhões Azov, infestado de mercenários de várias partes do mundo, ser-
viram para expor a hipocrisia das mídias ocidentais, das corporações e dos
governos que as sustentam.
140
A maior corporação de mídia da atualidade, a Meta, uma plataforma
que controla Facebook, Instagram e WhatsApp, controlada pelo judeu sionis-
ta Mark Zuckerberg, alterou as regras para permitir que usuários pudessem
adotar um discurso de ódio e violência contra militares e cidadãos russos em
todo o mundo. Ao mesmo tempo, essas redes sociais censuraram, bloquea-
ram e removeram milhares de perfis que defendem as ações russas e contas
que se aliam à justa causa do povo palestino.
Essas mídias descrevem a resistência do povo palestino como “terroris-
mo”, enquanto os crimes do apartheid e o racismo de “Israel” são considera-
dos “legítimo direito de defesa”. Os acusados e perseguidos por essas mídias
sociais são desde as organizações não governamentais (ONGs) que prestam
serviços humanitários aos palestinos, vítimas das constantes agressões dos
agentes do apartheid judaico, até as organizações da resistência palestina, que
exercem o seu legítimo direito de confrontar, por todos os meios, a ocupação
e o projeto colonial israelense.
Já que essas potências ocidentais se dizem justas com as vítimas das
guerras e injustiças, como em relação ao que ocorre na Ucrânia e com os
refugiados ucranianos, por que não se posicionam pela punição dos crimes
de guerra e contra a humanidade praticados pelo apartheid de supremacia
judaica exercido pelos sionistas contra o povo palestino?
A comunidade internacional precisa reavaliar o seu envolvimento e
apoio ao regime de apartheid sionista e adotar abordagens centradas na defe-
sa dos direitos humanos de palestinos, responsabilizando e punindo o “Esta-
do judeu” pelas constantes violações, além de estabelecendo uma Comissão
de Inquérito no âmbito da ONU para investigar a discriminação e a repressão
sistemática de “Israel” contra palestinos e suas organizações humanitárias.
A análise detida da evolução da luta de resistência do povo palesti-
no, sobretudo aquela que se associam ao pensamento de Ghassan Kanafani,
nos leva a concluir que o ocupante colonialista e seu apartheid estão cada
dia mais distantes de destruir as forças da resistência palestina. Apesar de
todo aparato militar moderno, Israel não tem conseguido dobrar as forças da
141
resistência nem impedir a realização de manifestações anti-Israel em várias
cidades onde residem judeus e palestinos de Israel. O confronto de maio de
2021 foi um divisor de águas e demonstrou a capacidade dos palestinos da
Cisjordânia, de Gaza e dos territórios atribuídos a Israel unirem-se em uma
grande ação de apoio à resistência e de contestação à ocupação sionista.
Ghassan Kanafani pertence a uma geração de palestinos que lutaram
e deixaram um legado de exemplos e escritos destinados a movimentar a
resistência, política e culturalmente, capazes de superar as narrativas dos que
subordinaram os povos colonizados. O movimento sionista acabou se inse-
rindo e se tornando a pedra a ser removida para a libertação da Palestina.
Seu trabalho é para uma literatura de resistência, que aponta o caminho da
justiça. A jihad e o martírio de Kanafani são combustíveis para a luta pela
liberdade palestina contra a ocupação colonial israelense.

Sayid Marcos Tenório –


historiador e especialista em Relações Internacionais,
autor do livro Palestina – Do mito da terra prometida à
terra da resistência (Editora Anita Garibaldi) – 2019.

142
Dos tristes laranjais, o desabrochar
de um revolucionário

“O tempo estava um pouco nublado e uma sensação fria impelia meu


corpo. [...] Eu estava sentado em silêncio, agarrando meus joelhos, com o
queixo entre eles. Laranjais orlavam todo o caminho… havia um medo que
corroía a todos nós. E a caminhonete, entre um solavanco e outro, subia pelo
solo úmido. Enquanto tiros distantes como que ecoavam o adeus.” Assim o
jornalista e escritor revolucionário palestino Ghassan Kanafani relata a ex-
pulsão de sua terra em 1948 no conto intitulado “A terra das laranjas tristes”,
publicado em 1963.
Na escrita, que une ficção e realidade, seus olhos de menino observam
as plantações que simbolizavam orgulhosamente o vínculo da família com
a terra, na simbiose homem-natureza de quem deita suas raízes em tempos
imemoriais, cujas mãos camponesas calejadas partilharam o solo fértil e vi-
ram brotar as laranjas que a violência sionista obrigou a deixar para trás. A
tristeza se reflete nos vastos campos ao caminho, cujas plantações perecem
ao ritmo das perdas palestinas. É a perda da inocência de uma criança que,
de uma hora para outra, se torna refugiada.
Aquela memória, contudo, seria o desabrochar de sementes que renas-
cem e florescem, suportadas por raízes que carregam consigo a identidade e
pertencimento à terra ancestral. O espírito revolucionário de Ghassan Ka-
nafani é consolidado sobre tais bases, já em seu refúgio, e eternizado em seu
legado reivindicado pelas novas gerações 50 anos após seu assassinato pelos
sionistas. A bomba plantada em seu carro em 8 de julho de 1972, que matou
também sua sobrinha ainda menina, não pôde calar sua voz. Pelo contrário,
encontrou eco como se carregada pelo vento, alcançando toda uma socieda-
de condenada à fragmentação e distanciamento. A violência das armas não
pode subjugar uma ideia, uma causa.
Afinal, como ensinou Kanafani, “tudo neste mundo pode ser roubado e
retirado, exceto uma coisa; esta coisa é o amor que emana de um ser humano
143
para um compromisso sólido com uma convicção ou causa. Você tem algo
neste mundo, então defenda isso”. O sionismo lhe tirou tudo: terra, amanhã,
vida. Menos sua causa, que não é somente a dos palestinos, mas sim, em suas
palavras, a de todo revolucionário, onde estiver, “como uma causa das massas
exploradas e oprimidas de nossa era”.

Da tragédia se forja a consciência

A Nakba - catástrofe cuja pedra basilar é a formação do Estado ra-


cista de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada -
atravessaria o destino desse jovem revolucionário, que nasceu já ao signo da
revolta contra a injustiça. Kanafani chegou ao mundo em 9 de abril de 1936,
na cidade de Akka (Acre), na Palestina. Segundo seu relato em “A Revolta de
1936-1939 na Palestina” (São Paulo: Editora Sundermann, 2015), dois me-
ses antes de seu nascimento, as primeiras chamas do levante popular, que se
elevaria para poderosa revolução, foram acesas na cidade de Yafa (Jaffa), a
terra das laranjas tristes retratada em seu conto semificcional, que Kanafani
observava ao ser expulso com a família de Akka.
Com apenas dez dias de vida, chegavam, de forma incompreensível aos
ouvidos do bebê, que mal abrira os olhos para a vida, as vozes de uma cidade
que se somava à greve geral que se iniciava. Esse movimento detonaria a re-
volução palestina contra o mandato britânico e a colonização sionista que se
expandia sob a bênção de seu aliado europeu, o imperialismo do momento.
A Grã-Bretanha ficou com o mandato sobre a Palestina como espólio após a
vitória dos aliados na Primeira Guerra-Mundial (1914-1918). Em meio a esse
processo, já à iminente derrota do Império Turco-Otomano, a Grã-Bretanha
emite a Declaração Balfour, em 2 de novembro de 1917 em que dá seu aval
ao projeto colonial sionista inaugurado em fins do século XIX. A revolução
de 1936-1939 chega perto da libertação nacional almejada em 1937, mas é
derrotada devido à ação dos poderosos inimigos da causa palestina, identifi-
144
cados por Kanafani em sua análise marxista sobre esse processo: os regimes
árabes, a “elite feudal e clerical” árabe-palestina (burguesia) e o imperialis-
mo/sionismo. Inimigos que lamentavelmente se mantêm na atualidade.
A derrota dessa revolução abriria o caminho para a Nakba, selando o
destino de Kanafani, de sua família e de outros 800 mil palestinos expulsos
em 1948 da Palestina. A limpeza étnica promovida pelas forças paramilitares
sionistas - fortemente armadas com a contribuição decisiva de Stalin - al-
cançou a histórica Akka, terra natal do revolucionário, em 18 de maio de
1948. Segundo o portal Palestine Remembered, dos 13 mil habitantes da re-
gião, apenas 3 mil conseguiram permanecer em suas terras. À ocupação na
cidade, 79 palestinos foram massacrados.
A difícil vida sob refúgio e a luta pela sobrevivência estarão impressas
em sua produção literária anos depois, cujos personagens revolvem a
realidade palestina. A consciência se eleva diante da tragédia, e Kanafani
inicia seu engajamento na luta por libertação nacional nos anos 1950. Sob
influência dos revolucionários marxistas, em meados dos anos 1960, torna-
se um dos principais dirigentes da Frente Popular de Libertação da Palestina
(FPLP), que se constituiu à época como ala esquerda da Organização para a
Libertação da Palestina (OLP). Suas ideias revolucionárias se refletiam em
elaborações políticas, discursos e escritos literários.

Adab Al Mukawama

Dos escombros da Nakba, surge a adab Al Mukawama (literatura de


resistência), termo cunhado por Kanafani. Segundo ele descreve em sua obra
“Literatura de resistência na Palestina ocupada 1948-1966”1, a Nakba - que

1 KANAFANI, Ghassan. Resistance Literature in Occupied Palestine 1948-1966


(Cyprus: Rimal Publications, 23 de julho de 2013), n.p.. Disponível exclusivamente
em árabe. Tradução da Introdução e do Capítulo 1 para minha tese de doutorado
intitulada “Uma história das mulheres palestinas: dos salons aos primórdios da
literatura de resistência”, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos
Árabes da Universidade de São Paulo (árabe-inglês): jornalista sírio Victorios Shams.
145
teve como consequência a expulsão violenta de 2/3 dos palestinos de suas
terras em 1948 e o surgimento da questão dos refugiados – sacudiu a es-
trutura social na Palestina ocupada a partir de então: “Mais de três quartos
dos 200 mil árabes remanescentes após a ocupação sionista eram residentes
das aldeias. Quanto aos moradores das áreas urbanas, a esmagadora maioria
deixou a Palestina durante ou logo após a guerra de 1948 e essa realidade
causou um abalo tumultuoso no seio da comunidade árabe de lá, já que as
cidades não eram apenas o centro da liderança política, mas também, como
na maioria dos casos, o principal centro de liderança intelectual.” Na obra,
ele continua: “Assim [...], o ambiente estava totalmente preparado para não
só atingir um perigoso processo de contenção de qualquer tendência po-
lítica ou literária que surgisse apenas a partir daí, como também plantar
sementes naquele solo.”
Primeiro a trazer uma abordagem materialista para explicar a litera-
tura inserida no processo histórico pós-Nakba, Kanafani descreve na obra o
que poderia ser apresentado simbolicamente como a figura mitológica grega
da Fênix, a ave que ressurge das cinzas após sua morte.
Sob o que Kanafani denomina “cerco cultural”, os escritores que per-
maneceram nas áreas de 1948, após a Nakba, se viram impedidos de publicar
suas obras, realizar intercâmbio com correntes modernas na região e com as
novas influências no refúgio. As restrições visavam ainda impedir a formação
das novas gerações, restringindo-lhes sobremaneira o acesso à educação.
O resultado, conforme Kanafani, é que no pós-Nakba, entre os 200
mil palestinos remanescentes em suas terras agora sob jugo sionista, o per-
centual de estudantes árabes em relação a judeus era de pelo menos 12%.
No ensino médio os primeiros representavam apenas cerca de 3% do total.
Nos institutos superiores, eram menos de 1%, sendo apenas 100 estudan-
tes árabes. E mesmo nas escolas secundárias, os palestinos, conforme sua
descrição, recebiam “aulas de línguas estrangeiras abaixo do padrão, o que
leva à incapacidade de muitos deles obterem o diploma do ensino médio e
concluiren seus estudos superiores”.
146
As estatísticas oficiais à época, como continua Kanafani na mesma
obra, indicavam que a maioria dos estudantes árabes era obrigada a deixar
as escolas na faixa etária entre 14 e 15 anos, para trabalhar e garantir subsis-
tência. Ele informa ainda que, consequentemente, apenas 10% do já pequeno
número de estudantes palestinos obtinham sucesso a cada ano no ensino mé-
dio, e aqueles cujo status econômico e social poderia qualificá-los a entrarem
na universidade estavam sujeitos a uma série de condições que os impediam
ingressar em certas faculdades – como as dedicadas a estudos literários orien-
tais. “É uma deficiência deliberada. Esses poucos graduados são submetidos a
outra série de perseguições políticas, administrativas e constantes tentativas
de destruir seu moral e qualificações.” Frequentemente, destaca Kanafani na
mesma obra, “o desemprego é o destino, ou emprego, na melhor das hipó-
teses, em áreas diferentes das de especialização do graduado”. Essa situação
“tem levado à destruição contínua de todas as gerações da cultura árabe que
estavam prestes a cumprir seu papel pioneiro [...]”.
Ademais, apenas jornais árabes sob a tutela dos sionistas podiam ser
publicados, determinando também quais livros que circulavam nas capitais
de países vizinhos poderiam ou não ser reimpressos internamente. Assim,
nenhum que tratasse da questão do nacionalismo árabe era permitido.
Na tentativa de dotar o recémcriado Estado de Israel de um verniz
democrático, as autoridades sionistas, como aponta Kanafani em sua obra,
incentivavam ainda os judeus vindos de países árabes a publicarem sua
produção no idioma: três dos 16 jornais que circulavam em árabe eram
editados por estes; um diário era governamental e os outros (oito semanais
e sete mensais), atrelados a partidos sionistas, expressando pontos de vista
que, segundo descreve o revolucionário, davam a aparência de diversidade
na sociedade colonial.
Ainda de acordo com Kanafani, o primeiro romance impresso em
Israel na língua árabe era de autoria de Ibrahim Musa Ibrahim, um judeu
iraquiano. Ele seria parte dos 28 autores, entre os quais poetas - oito deles
judeus orientais -, que escreviam no idioma nos territórios ocupados em
147
1948, com base em estimativas das próprias autoridades sionistas: “O que foi
publicado e impresso em árabe, a partir de 1948, não ultrapassa 15 cole-
tâneas de poesia e cerca de cinco romances. Não há necessidade de julgar
aqui a maioria deles - desde que antes de ir ao mercado tenham tido a
permissão da censura.”
Kanafani revela que muito do que foi publicado era “insignificante e
trivial em forma e conteúdo”. Dada sua condição, muitos poetas palestinos se
aproximavam do marxismo e suas ideias revolucionárias. Passaram a escre-
ver para o jornal Al Ittihad, fundado pelo Partido Comunista em 1944, e sua
revista literária mensal Al Jadid, lançada em 1951 – os únicos que aceitavam
publicar seus textos no período. Não obstante, os palestinos enfrentavam
tanto a pesada censura por parte do Estado sionista quanto a recusa dos isra-
elenses de publicarem escritos com forte conteúdo nacionalista e até mesmo
expulsão das fileiras da organização vinculada a Moscou, se ameaçassem “a
segurança” de Israel.
Vale reiterar, aqui, que a União Soviética sob Stalin deu contribuição
decisiva à Nakba, ao enviar através da Tchecoslováquia armas às paramilícias
sionistas. E apenas dois dias após a catástrofe palestina, em 17 de maio de
1948, a União Soviética reconheceu de fato e de direito o Estado de Israel.
Chegou mesmo a votar contra a Resolução 194 da ONU, relativa ao direito
de retorno dos refugiados palestinos às suas terras.
Mas internamente, sob jugo sionista, o advento da revolução no Egito
em 1952, que derrubou a Monarquia do Rei Farouk e instalou a República,
abalou essa estrutura. Após esse acontecimento, descreve Kanafani, “os jor-
nais judeus [...] foram surpreendidos por uma mudança qualitativa decisiva
nas cartas que começaram a receber à sequência do anúncio de sua disposi-
ção em publicar qualquer produção de poesia em árabe”.
Na verdade, não tinham essa intenção, se isso significasse avançar
nos limites impostos à expressão cultural. O resultado é que começaram a
se realizar diwans (recitais de poemas) nas aldeias que “estavam sempre se
transformando em manifestações nacionais devido à intensidade do compa-

148
recimento e entusiasmo”. A maioria dos poetas árabes participantes nessas
noites, contudo, como descreve Kanafani, foi levado muitas vezes aos gover-
nantes militares de seus vilarejos para interrogatórios, e proibiu-se a realiza-
ção dessas atividades.
A resistência a essa ordem preparou o terreno para a adab Al Mukawa-
ma se firmar enquanto movimento cultural em cinco anos. Para Kanafani, o
outro lado do que se dava também no exílio.
Internamente, emoções fluíram através da produção literária a partir
da percepção de que passaram a ser uma minoria indefesa remanescente em
meio a uma estranha multidão com amargo sentimento de perda, solidão e
alienação que se transformaram em sua força e existência. Esse movimento
foi seguido pelos palestinos nas áreas que viriam a ser ocupadas militarmente
por Israel em 1967 - Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental.
Ele cita que em território ocupado essa literatura foi formulada com a
participação de mulheres e carregava no estilo “persuasivo, profundo, podero-
so e mais próximo da terra”. Assimilada a catástrofe que se abatera sobre toda a
sociedade palestina, dos escombros resultantes e cerco cultural, nasce a litera-
tura de resistência nos anos 1950.
Entre os diversos gêneros literários, Kanafani considera em sua obra
“Literatura de resistência na Palestina ocupada 1948-1966” a poesia como
“uma força pioneira no chamado à resistência”, por ser facilmente memori-
zada e transmitida boca a boca. Com boa recepção em culturais orais como
as dos palestinos, muitas poesias eram vertidas para canções populares ou
recitadas e mesmo incluídas nos currículos escolares, sobretudo em cam-
pos de refugiados.
Para Kanafani, a adab Al Mukawama que norteará sua produção lite-
rária se enquadra na prática cultural denominada sumud (palavra árabe que
significa firmeza ou persistência). O sumud integra uma consciência coletiva
de luta aliando resiliência à resistência, como sinônimo de existência.
Sob ocupação, sumud aponta para forte determinação em não deixar
a terra e sobrepujar todas as dificuldades impostas pela ocupação israelense
149
na afirmação cotidiana da vida, seja replantando uma oliveira derrubada
ou recusando-se a deixar a terra mesmo que sua casa seja demolida, seja
tentando viver apesar do apartheid, sem contudo normalizar essa situação. Na
diáspora, implica não permitir que sua identidade seja apagada, mas manter
vínculos com suas raízes e sentimento de pertencimento, propugnando o
direito inalienável e inegociável ao retorno aos refugiados.
Sumud ressoa as vozes e narrativas. Sumud é a resistência permanente,
sob todos os meios, rumo à Palestina livre, do rio ao mar e à revolução socia-
lista mundial, projeto ao qual Kanafani dedicou sua vida.

Soraya Misleh–
jornalista e doutora em estudos árabes,
autora do livro Al Nakba – Um Estudo Sobre a
Catástrofe Palestina (Editora Sundermann) – 2017.

150
Ghassan Kanafani e a FPLP: as vozes mais
coerentes do movimento de libertação
nacional palestino

A correta identificação dos principais


inimigos da causa palestina

Um dos mais completos e interessantes relatos sobre as contradições


no interior do movimento nacional palestino foi escrito por Ghassan Kanafa-
ni, um intelectual palestino que foi, também, um dirigente político revolucio-
nário. Kanafani é um dos principais representantes da conhecida “literatura
palestina de resistência”, com inúmeros contos sobre a realidade de seu povo,
em especial a situação dos refugiados. Ele foi dirigente da Frente Popular de
Libertação da Palestina (FPLP), principal organização da esquerda marxista
na Palestina. Foi assassinado em 08 de julho de 1972, em Beirute (Líbano),
quando exercia a função de porta-voz da FPLP. Em seu livro A Revolta de
1936-1939 na Palestina, Kanafani avalia que:

“Entre 1936 e 1939, o movimento revolucionário palestino sofreu se-


vero revés nas mãos de três inimigos que se constituíram, juntos, na
principal ameaça ao movimento nacionalista na Palestina, em todos
os estágios subsequentes de sua luta: a lideração local reacionária; os
regimes dos estados árabes vizinhos; e o inimigo imperialista-sionis-
ta.” (KANAFANI, 2015, p.27)

O autor palestino busca compreender a “relação dialética” entre essas


três forças que atuaram no sentido de promover a divisão e o enfraqueci-
mento das lutas populares e revolucionárias nos anos 30 do século XX. Ele
percebe que a ofensiva do sionismo na Palestina acabou contribuindo para
que a questão nacional adquirisse uma posição central nas discussões sobre

151
a situação política na Palestina, sendo que as contradições sociais e a luta de
classes acabavam se tornando temas secundários, fato que favorecia a elite/
burguesia palestina, que estava à frente do movimento nacionalista. Kanafani
identifica a existência de alguns conflitos de interesses entre a “liderança local
feudal/clerical” e o imperialismo britânico, que estava no controle daquele
território desde 1918, através do Mandato Britânico na Palestina, um resul-
tado do Acordo Sykes-Picot, assinado em 1916 (entre França e Inglaterra). O
imperialismo britânico teria encontrado nos sionistas um aliado mais con-
fiável e adequado aos seus propósitos e, nesse sentido, a nascente burguesia
palestina se via contrariada com a concentração de poder econômico “nas
mãos da máquina sionista”. A relação da administração colonial britânica
com a burguesia comercial, industrial e financeira judaico-sionista só se am-
pliava, gerando lucro, benefícios e privilégios que desagradavam setores im-
portantes da elite palestina, que vivia um período de transição de “sociedade
semifeudal para capitalista” (Idem, p. 28 e 29). Essa burguesia judaico-sionis-
ta foi controlando o processo de industrialização, que estava se iniciando, e
os comunistas palestinos vivenciaram uma situação de isolamento tanto dos
trabalhadores árabes quanto dos trabalhadores judeus.
O sionismo atua em conjunto com o imperialismo britânico para im-
pedir, a qualquer preço, a unidade entre trabalhadores árabes e judeus, tese
defendida pelo Partido Comunista Palestino (PCP). As forças progressistas
vão sendo enfraquecidas no interior do movimento sindical, e o surgimen-
to da Histradut (a Federação Geral dos Trabalhadores Judeus/de Israel), em
1920, um instrumento da colonização sionista, separa de vez a classe operária
árabe e judaica. Histradut vai negociar a substituição gradativa de trabalha-
dores árabes por trabalhadores judeus-sionistas em várias empresas, durante
o período do Mandato Britânico na Palestina.
Segundo Kanafani, em 1935 “os judeus controlavam 872 de um total
de 1.212 estabelecimentos industriais na Palestina, empregando 13.678 tra-
balhadores, enquanto os demais eram controlados por árabes-palestinos e
empregavam 4 mil trabalhadores”. Nesse mesmo ano “o capital judeu contro-
152
lava 90% das concessões do governo do mandato britânico” (Ibidem, p. 33).
O crescimento do número de desempregados árabes-palestinos entre 1920
e 1935 era acompanhado por uma situação de diminuição do número de
fábricas sob o controle da burguesia nativa (árabe-palestina). Tudo isso agra-
vou as condições de vida da ampla maioria da população. Milhares de cam-
poneses vendiam suas terras e eram expulsos de seus vilarejos por grupos e
milícias sionistas que ampliavam o controle da zona rural, com a colaboração
do exército britânico.
A análise de Ghassan Kanafani continua atual, pois os inimigos da
causa palestina continuam os mesmos. Foi a colaboração entre esses três ini-
migos (liderança palestina local reacionária, regimes árabes vizinhos e impe-
rialismo-sionismo) que sempre dificultou ou interrompeu uma vitória con-
tundente da resistência popular palestina. Setores majoritários da burguesia
palestina historicamente optaram pelo controle rigoroso do movimento de
libertação nacional, buscando evitar e coibir o surgimento de novas lideran-
ças, especialmente entre a juventude, com posições políticas que pregavam
uma ruptura revolucionária com o colonialismo, imperialismo, sionismo. A
burguesia palestina também vive sob a influência de um desenvolvimento
capitalista tardio. A integração da Palestina ao processo de expansão mundial
do capital, entre os séculos XIX e XX, ocorre de maneira submissa e subordi-
nada aos interesses externos, dos colonialismos Turco-Otomano e Britânico.
Diante dessa situação percebemos que os movimentos de libertação nacio-
nal com forte potencial revolucionário sempre foram uma ameaça não só
ao colonialismo, mas também para seus aliados internos e regionais. Não é
incomum, na história da resistência anticolonialista na Palestina, encontrar
lideranças da burguesia palestina fazendo acordos, concessões e cooperando
em várias áreas com a potência colonial do momento, o que revela a inca-
pacidade da burguesia de países coloniais, semi-coloniais ou dependentes
de levar até as últimas consequências um processo de luta pela libertação
nacional. Sob a direção política de qualquer força burguesa - ou inspirada
nas ideias burguesas - será improvável (ou impossível) a efetiva libertação
153
nacional e a construção de uma República Democrática com independência
econômica e política em relação a qualquer potência imperialista.
A burguesia palestina e os governos árabes e/ou muçulmanos que são
aliados históricos do imperialismo e do sionismo (com destaque, na atualida-
de, para Arábia Saudita e monarquias árabes, e também para a representante
da OTAN na região, a Turquia) são aqueles que buscam pressionar e influen-
ciar nas decisões do movimento nacional palestino no sentido de convencer,
empurrar e/ou chantagear suas lideranças na direção de uma saída negociada
para o conflito existente, um acordo baseado em “concessões de ambos os
lados”. Essa posição da maioria da burguesia palestina e setores/partidos/go-
vernos árabes e muçulmanos da região da Ásia Ocidental (“Oriente Médio”)
levou a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) para os fracassados
Acordos de Oslo. Fracasso para o povo palestino, vitória para o governo da
Entidade Sionista (“Estado de Israel”). Apesar de todas as experiências histó-
ricas demonstrarem que o meio mais eficaz para se derrotar o colonialismo
e o imperialismo é uma guerra popular prolongada de libertação nacional,
partidos e governos árabes, aliados ao imperialismo-sionismo ou adeptos das
posições equivocadas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
empurraram o movimento de libertação nacional palestino para reavivar ou
fazer renascer a ilegal posição conhecida como “solução de dois Estados”.
De um lado a pressão econômica, financeira, midiática, cultural, política e
militar imperialista-sionista e das monarquias árabes, de outro a pressão da
URSS e seus partidos comunistas aliados no mundo árabe, entre eles o Par-
tido Comunista Palestino (PCP) e o Partido Comunista da Jordânia (PCJ).
Ghassan Kanafani e a Frente Popular de Libertação da Palestina
(FPLP) tiveram o mérito e a ousadia de construir uma análise crítica
de todas essas posições que sugeriam ou queriam impor uma solução
negociada na base da Resolução 181 da ONU, de 29 de novembro de 1947.
Kanafani tinha certeza da legitimidade da causa palestina e olhava para
todos os cantos do planeta e observava como cada povo estava resolvendo
seu conflito com o colonialismo: guerra popular prolongada de libertação
154
nacional. Foi assim para libertar a Indochina e a Argélia do domínio
colonial francês, estava sendo assim para libertar Angola, Moçambique e
Guiné Bissau do colonialismo português e, especialmente, estava sendo o
caminho para derrotar o imperialismo estadunidense no Vietnã. Kanafani e
a FPLP também se apropriavam da experiência das lutas anti-imperialistas
na América Latina, seja a vitória da Revolução Cubana ou o processo em
curso em países como a Nicarágua, onde a Frente Sandinista de Libertação
Nacional (FSLN) toma o poder e derruba a ditadura em 19 de julho de
1979. Em seu escritório em Beirute, estavam os posters de Marx, Engels
e Lenin, ao lado de Mao Tsé Tung, Che Guevara, Ho Chi Minh e George
Habash (médico palestino de origem cristã, um dos fundadores da FPLP).
A FPLP sempre teve a mais coerente análise sobre o conflito Palestina-
Entidade Sionista (“Israel”), afirmando que a Revolução Palestina era parte
indissociável da Revolução no Mundo Árabe e do movimento revolucionário
e anti-imperialista mundial. Portanto, Kanafani não foi daqueles que só
fez uma boa reflexão, foi um dos construtores e protagonistas de uma
experiência organizativa, foi um intelectual organicamente vinculado
ao movimento real da classe trabalhadora árabe e palestina. Construiu
um partido político marxista com influência nas massas populares, no
proletariado e em setores da pequena burguesia rural e urbana, elaborando
uma Estratégia de Libertação Nacional que levava em conta, também, os
problemas sociais e a situação das classes sociais e da luta de classes na
Palestina. Isso contribuiu muito para que a FPLP não alimentasse ilusões
sobre as lideranças palestinas que representavam os interesses da burguesia
local, mais interessados, muitas vezes, em acumular capital, fazer negócios,
obter lucro do que financiar ou apoiar uma Revolução Palestina.

155
Ghassan Kanafani e a impossibilidade
de aceitar a entrega da sua pátria ao
colonialismo sionista-israelense

Defender as ideias de Kanafani e, ao mesmo tempo, defender a “solu-


ção de dois Estados”, é uma grave contradição, assim como defender as ideias
de Kanafani e não defender a FPLP é uma grande contradição. Kanafani foi
um comunicador popular, um escritor, um poeta, um representante da lite-
ratura palestina de resistência, um formador e um organizador. Representava
a principal força política do marxismo palestino e foi um dos seus ideólogos,
contribuindo na elaboração teórica e dos princípios da FPLP. Não resta dú-
vida que a FPLP dos dias atuais continua seguindo os mesmos princípios e
a mesma coerência teórica e analítica da época em que foi assassinado um
de seus principais porta-vozes. Alguns setores da esquerda brasileira, ao ho-
menagear Kanafani, criticam duramente a FPLP, especialmente pela posição
dessa organização sobre a chamada “primavera árabe”. O uso indevido da
imagem e da história de uma liderança revolucionária para projetar partidos
e grupos que são antagônicos ao pensamento dessa liderança revolucionária
não é algo novo, mas Ghassan Kanafani e sua organização, a FPLP, tem sobre-
vivido a tudo e a todos os ataques, de todos os lados.
O povo palestino sempre será o principal protagonista de sua própria
libertação. Somente o povo palestino e suas legítimas organizações vão decidir
o que fazer, como lutar, quando lutar, qual o caminho a seguir, que tipo de
Estado devem construir, se devem entregar parte majoritária de sua pátria ao
inimigo sionista-colonialista ou se devem libertar todas as suas terras, do Mar
Mediterrâneo até o Rio Jordão. Estas são questões que ninguém pode decidir
a não ser o próprio povo palestino, no entanto não teve o direito de decidir
sobre os Acordos de Oslo. Uma cúpula burocrática empurrou o movimento
de libertação nacional para uma derrota, uma concessão nunca antes vista
em nenhuma luta de libertação nacional. Os Acordos de Oslo foram uma
capitulação feita por uma cúpula dirigente corrupta e corrompida, que
156
abandonou princípios, ideias e valores para obter privilégios econômicos,
políticos e pessoais. Não houve nenhum plebiscito ou referendo popular para
que o povo palestino pudesse decidir sobre o seu próprio destino. Ao estudar
o pensamento de Ghassan Kanafani e a história do movimento nacional
palestino tiramos algumas conclusões, aprendemos algumas lições:
1. Desde os tempos de Abraão até o dia 15 de maio de 1948 aquele terri-
tório era conhecido como Palestina;
2. A Palestina sempre foi colonizada, e os palestinos sempre lutaram pela
independência. As últimas potências coloniais: Império Turco-Oto-
mano, Inglaterra e “Israel”;
3. A ONU não tinha soberania sobre a Palestina, portanto, não poderia
legislar sobre aquele território e suas fronteiras, nem aprovar nenhum
Plano de Partilha da Palestina. Essa decisão não tem base nos princí-
pios do direito internacional;
4. O chamado “Estado de Israel” foi criado através de um golpe de Estado
realizado por vários grupos terroristas sionistas-colonialistas, entre os
dias 14 e 15 de maio de 1948;
5. A população palestina era, em 1947/1948, de maioria muçulmana, mas
lutavam por uma República Laica e Democrática, onde todos os ci-
dadãos, independentemente da religião ou posição política, pudessem
viver em paz e com direitos iguais;
6. O “Estado de Israel” nunca reconheceu o Plano de Partilha da ONU,
portanto, nunca aceitou a solução de dois Estados (Resolução 181 da
ONU);
7. Os fundadores do chamado “Estado de Israel” eram líderes de organi-
zações terroristas e responsáveis por vários crimes cometidos contra
a população civil palestina. E a ONU desconsiderou esse histórico de
violência, genocídio e limpeza étnica realizada pelos sionistas.
Como a correlação de forças está em permanente transformação,
na Palestina, na Ásia Ocidental (Oriente Médio) e no mundo, com o
crescimento da influência chinesa na economia e na política internacional,
com a aproximação da China e Rússia, através de uma aliança considerada
157
estratégica em muitos temas, com o protagonismo russo e iraniano na Síria,
causando derrotas pontuais e importantes para a política dos EUA na região,
com a construção daquilo que o General Suleimani, do Irã, chamou de
“Eixo da Resistência” (Síria, Líbano/Hezbollah, Yemen, Iraque, Irã, setores
da Resistência Palestina), com a aproximação e fortalecimento dos laços de
amizade e solidariedade entre os povos e governos do Irã e Iraque e com o
fracasso e rejeição dos Acordos de Oslo pela ampla maioria do povo palestino,
talvez esteja sendo construído um caminho não imaginado até agora por
muitos estudiosos da região, um caminho que pode surpreender e levar a
uma derrota contundente de uma potência colonialista/pró-imperialista que
até agora ainda consegue manter a imagem de indestrutível, apesar de ter
sofrido derrotas em 1973, em 2000 e em 2006. Talvez o futuro mostre que
Israel, assim como os EUA, é uma potência militar que pode ser derrotada
nos mais diferentes campos de batalha, inclusive no campo militar. O povo
vietnamita não abdicou de seus direitos inalienáveis, lutou até o fim e foi
vitorioso. O povo libanês também não fez acordos e concessões inadmissíveis
ao inimigo invasor de seu território. Também lutou até o fim e foi vitorioso.
Ghassan Kanafani, a FPLP e o povo palestino sempre buscaram a cons-
trução de um mundo onde as relações internacionais sejam baseadas na paz,
na justiça, na cooperação e na solidariedade entre povos e nações, um mundo
sem colonialismo, sem imperialismo e sem o sionismo. Paz, justiça, solidarie-
dade e cooperação entre os povos e nações, com respeito à soberania e à au-
todeterminação nacional e cultural, por isso lutou nosso querido, admirado
e inesquecível Ghassan Kanafani.

Marcelo Buzetto –
cientista social, doutor e professor do IFSP
autor do livro A Questão Palestina: guerra,
política e relações internacionais
(Editora Expressão Popular) – 2015.
158
Sugestão de Leitura:

• ARAFAT, Yasser (s/d). Porque lutam os palestinos? Rio de Janeiro: Para-


lelo.

• BUZETTO, Marcelo (2003). Nacionalismo e questão nacional: a esquer-


da e a luta anti-imperialista. Em revista Lutas Sociais n. 09/10, São Pau-
lo, NEILS/PUC-SP.

• BUZETTO, Marcelo (2004). As guerras de libertação nacional e o pro-


cesso de expansão mundial do capital. Em revista Lutas Sociais n. 11/12,
São Paulo, NEILS/PUC-SP.

• BUZETTO, Marcelo (2019). A questão palestina: guerra, política e re-


lações internacionais (2a. reimpressão). São Paulo: Editora Expressão
Popular.

• CATTAN, Henry (s/d). A Palestina e o Direito Internacional. Curitiba:


Grafipar.

• CIUDAD, Ricardo (1970). La resistência palestina. Madrid: Guadarra-


ma.

• FRENTE POPULAR DEMOCRÁTICA DE LIBERTAÇÃO DA PALES-


TINA FPDLP (1971). Setembro 1970: a quinta tentativa de cerco e de
liquidação da resistência palestiniana. Porto: Portucalense Editora.

• FPLP (2018). Estratégia para a Libertação da Palestina. São Paulo: Edi-


ções Nova Cultura.

• KANAFANI, Ghassan (2015). A Revolta de 1936-1939 na Palestina. São


Paulo: Editorial Sundermann.

•__________________ (1986). Contos da Palestina: o povo sem terra.


São Paulo: Brasiliense.

• KANAFANI, Ghassan e outros (1971). Lamentos dos Oprimidos: poemas


palestinos. Rio de Janeiro: Missão da Liga dos Estados Árabes.

159
• MUSALLAM, Dr. Sami Fayez (1987). Organizacion para la Liberacion
Palestina.

• Estructura Institucional. México DF: OLP en Mexico.

• PAPPE, Ilan (2007). História da Palestina Moderna: uma terra, dois po-
vos. Lisboa, Caminho.

• QUINTANA, Santiago (1980). La resistência palestina: estratégia, táctica


y clases sociales. México DF: Ediciones Era.

• SALEM, Helena (1977). Palestinos: os novos judeus. Rio de Janeiro: El-


dorado.

• SAYEGH, Fayez e outros (1980). La Revolución Palestina frente a Camp


David. México DF, PROLIBRO/OLP.

• SUWWAN, Dr. Farid (1987). OLP - Organização para a Libertação da


Palestina (Breve Estudo). Brasília: OLP no Brasil.

• WARSCHAWSKI, Michel (2010). Desastre programado: a política isra-


elense em ação. São Paulo: Radical Livros.

160
Uma experiência de solidariedade
com a causa palestina em SP

A classe trabalhadora e a questão palestina

Desde que entre os dias 16 e 18 de setembro de 1982 houve o massa-


cre em Sabra e Shatila no Líbano, onde morreram quase quatro mil pales-
tinos, eu tenho sido um militante abnegado da causa desse sofrido povo.
Nessa época - ano de eleições para governadores no Brasil, as primeiras
desde 1964 - ainda vivíamos uma ditadura no Brasil.
E já se vão 40 anos. Nessas quatro décadas muita coisa ocorreu, em
especial o Congresso de fundação da COPLAC na Assembleia Legislativa
de SP em 1984, o curso sobre a História Palestina na UNIMEP em 1985,
onde fundamos a FEPAL. Realizamos muitas passeatas na Avenida Pau-
lista contra massacres constantes a palestinos pelo exército de ocupação
israelense.
O período mais significativo foi entre dezembro de 2008 e janeiro
de 2009, quando outros quase quatro mil moradores da Cidade de Gaza
foram assassinados por Israel em quase um mês de bombardeios diários.
Realizamos duas passeatas imensas.1
Não podemos esquecer as manifestações contra a primeira agressão
ao Iraque, em janeiro de 1991, no governo de Bush pai. Mais uma vez,
fomos às ruas. Também fizemos passeatas gigantes na Paulista em feve-
reiro e março de 2003, contra a segunda Guerra no Golfo, sob o governo
de Bush filho.

1-Esse episódio redundou em um dos meus livros, cujo título é E se Gaza cair... de 2012,
da Editora Anita Garibaldi, que lançamos no Fórum Social Mundial Palestina Livre
em 29 de novembro de 2012. Esse livro é prefaciado pelo embaixador da Palestina no
Brasil, meu amigo Prof. Dr. Paulo Daniel Farah, da USP. Ele pode ser adquirido neste
endereço: <https://bit.ly/3fRWbLp>;
161
Praticamente em todas essas atividades, invariavelmente, formávamos
um Comitê, seja de solidariedade, seja de luta, seja contra a guerra. Sempre
formado pelas entidades gerais representativas de todos os setores e
segmentos da sociedade brasileira.
Era comum nós dizermos, entre militantes e ativistas da causa pales-
tinas e demais causas internacionalista, que os comitês eram formados “a
quente”, no sentido que sempre que havia mortes e cadáveres no caminho,
uma primeira reação acontecia. No entanto, nunca houve uma continuidade
nessas manifestações de solidariedade.
A seguir eu relato uma história do Comitê de Solidariedade ao Povo
Palestino mais longeva que fui testemunha da existência, participante e mes-
mo da coordenação executiva. Foi o que chamamos de Comitê “Estado da
Palestina Já”, formado por sugestão do Movimento dos Trabalhadores sem
Terra - MST, em 2011 e que durou até janeiro de 2014.
A seguir o meu relato, publicado no meu livro sobre a história da Pa-
lestina, este prefaciado pelo meu amigo e décadas, Dr. Ibrahim Al Zeben,
embaixador do Estado da Palestina no Brasil.2

Comitê pelo “Estado da Palestina Já”

O Comitê de Campanha pelo “Estado da Palestina Já!” surgiu no dia


6 de junho de 2011, por iniciativa de um conjunto de entidades e partidos,
em especial o PT, o PCdoB, a CUT, a CTB e o MST. Desse dia em diante e
até quando foi desarticulado definitivamente em dezembro de 2014, foram
realizadas em torno de 45 reuniões, que variaram entre 10 e 40 pessoas
alternando-se o local das mesmas entre as entidades gerais que compõe o
Comitê e integram a campanha. Algumas dessas reuniões, em momentos
especiais, ultrapassaram a cem participantes.

2-Editora Apparte, 2019, com 510 páginas, tendo tido uma segunda edição. O texto
acima está publicado nas páginas 53 a 67.
162
Em seguida a esse início a Força Sindical integrou-se de forma mais
intensa, juntamente com diversas entidades árabe-brasileiras e muitos ati-
vistas e militantes da causa palestina que não integram entidades.
O CEP tem uma concepção frentista, não sendo ele próprio uma en-
tidade, mas um conjunto de entidades. Seu objetivo mais geral é apoiar
todas as iniciativas para a criação do Estado da Palestina.
A campanha teve seu lançamento público realizado no dia 29 de
agosto deste mesmo ano, às 17h, no Sindicato dos Engenheiros do Estado
de SP, que contou com a presença de 150 pessoas e mais de 50 entidades
nacionais e estaduais, além de parlamentares de todas as instâncias.
Nesse mesmo dia uma coletiva de imprensa foi concedida e informa-
ções sobre a campanha foram publicadas em centenas de páginas e blog na
Internet, além de notas em jornais impressos. Neste livro, no encarte foto-
gráfico, publicamos as principais imagens desse lançamento.
O CEP é integrado por cerca de 30 entidades gerais e nacionais de
todos os setores e segmentos da sociedade civil brasileira, em especial
os partidos políticos do campo progressista, todas as centrais sindicais,
as organizações de jovens e de estudantes, as entidades de mulheres, de
negros, movimentos comunitários, de moradia e de luta pela terra, bem
como organizações de luta pela paz e entidades nacionais e culturas da
comunidade árabe e palestina no Brasil. Além disso, outras 40 entidades
regionais e instituições integram o CEP.
O Comitê tem dado orientação em plano nacional para que nos es-
tados surjam comitês unitários, composto pelas mesmas entidades em pla-
nos regionais. Isso acabou por acontecer em alguns estados brasileiros, mas
também todos esses comitês estaduais vivem com altos e baixos em seus
funcionamentos.
Alguém já disse certa vez, que a mobilização mais ampla em
solidariedade aos palestinos ocorre sempre “a quente”, o seja, quando temos
“cadáveres” deixados pelo caminho por Israel. Eu lamento isso. No entanto, a
experiência do CEP é a mais longeva de todos os períodos que o velho Comitê
163
de Solidariedade de 1982 funcionou de forma ininterrupta. Registro, para
efeitos históricos, que o MST, fundador do Comitê, participou até a quinta
reunião, tendo se retirado do mesmo, ainda que tenha sempre comparecido a
todas as suas atividades de massa, de rua, debates etc.
O que unifica todas as entidades, partidos, personalidades que inte-
gram o Comitê pelo Estado da Palestina desde o seu surgimento foi o pedi-
do feito pela Autoridade Palestina junto ao Conselho de Segurança e à As-
sembleia Geral da ONU para que a Palestina fosse admitida como seu 194º
Estado-Membro ou mesmo Estado não membro, que acabou sendo votado
somente no dia 29 de novembro de 2012.
No total, são 71 entidades nacionais, estaduais e regionais integram
o Comitê pelo Estado da Palestina Já! Algumas participam ativamente de
todas as suas reuniões mensais e outras se fizeram presentes nos debates que
ocorrem em lista específica para essa finalidade. O CEP sempre teve uma
pequena coordenação executiva, que se reunia semanalmente nas entidades
e nos partidos que integravam a sua direção. Tive a honra, como militante, de
ser fundador do CEP e integrar o seu comitê executivo.
O CEP organizou a 1ª Missão de Solidariedade ao Povo Palestino in-
tegrada por seis brasileiros que visitou a Palestina ocupada entre os dias 10
e 20 de junho de 2012. O seu coordenador foi o engenheiro Emir Mourad,
também ele fundador do CEP e antigo militante da causa palestina, além de
secretário geral da FEPAL.
A 2ª Missão ocorreu entre os dias 17 e 28 de abril de 2013 e foi inte-
grada por 22 pessoas de todos os segmentos da sociedade brasileira, inclusive
parlamentares e tive a honra de ser o seu coordenador. Ela visitou Emirados
Árabes Unidos, Jordânia e Palestina, onde ficou oito dias em intensas ativida-
des, contatos políticos com organizações da resistência palestina, instituições
da sociedade civil e governo do Estado da Palestina. Por fim, tivemos a 3ª e
última Missão, realizada 25 de março a 4 de abril de 2014 e foi integrada por
oito representantes de entidades da sociedade civil, da qual também tive a
honra de coordenar.
164
Informações sobre a história e as realizações do CEP:
Início: a ideia de sua constituição ocorreu no dia 6 de junho de
2011, com a presença de 11 pessoas na sala de reuniões do CC do PCdoB.
Ali estavam PT e PCdoB; CUT e CTB, FEPAL, FEARAB e o MST entre
outras entidades;
Lançamento público: ocorreu na sede do Sindicato dos Engenheiros
do Estado de São Paulo no dia 29 de agosto de 2011 com a presença de 150
pessoas e dezenas de entidades;
Passeata: reuniu três mil pessoas no dia 20 de setembro de 2011 que
desfilou pelas ruas centrais da cidade de São Paulo;
Solidariedade na Assembleia Legislativa: ocorrido no Plenário da As-
sembleia Legislativa do Estado de São Paulo no dia 29 de novembro de 2011
que contou com a presença de 200 pessoas e mais de 60 entidades;
Dia da Terra: em 30 de maro de 2012 foi realizado no teatro da Fun-
dação Cásper Líbero na Avenida Paulista e que contou com a presença de
500 pessoas e em 30 de março de 2013 ocorreu um debate com 50 pessoas
na BibliASPA;
Sabra e Shatila: lembramos os 30 anos do massacre de Sabra e Sha-
tila no Líbano, ocorrido em Beirute em 18 de setembro de 1982. Reali-
zamos um ato de recordação no auditório do Clube Homs, no dia 18 de
setembro de 2012, que contou com a presença de 100 pessoas. Concomi-
tante a isso foi realizado uma mostra de fotos sobre o massacre na Biblio-
teca Alceu Amoroso Lima, organizado por Cláudio Daniel com centenas
de visitantes ao local.
Fórum Social Mundial Palestina Livre - Organizado na cidade de
Porto Alegre-RS, no Brasil entre os dias 28 de novembro e 1º de dezembro
de 2012, contou com a participação de pelo menos 10 mil pessoas. O Comi-
tê e suas entidades participaram ativamente desse evento. O CEP organizou
o maior evento do FSMPL que foi a sua Plenária pelo Estado da Palestina
com 300 pessoas e dezenas de entidades nacionais.

165
São as seguintes as entidades que integraram o
Comitê de Campanha:

1. Partidos Políticos e Institutos Partidários: Consulta Popular; Fundação


Maurício Grabois; Instituto “Presidente João Goulart”; Partido Comu-
nista do Brasil - PCdoB; Partido Comunista Libanês - PCL; Partido
dos Trabalhadores - PT; Partido Nacional Social Sírio - PNSS; Par-
tido Pátria Livre - PPL; Partido Socialista Árabe Sírio Baath; Partido
Socialista Brasileiro - PSB.
2. Centrais Sindicais e Confederações: Federação Sindical Mundial -
FSM; Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil - CTB;
Central Geral dos Trabalhadores do Brasil – CGTB; Central Única dos
Trabalhadores - CUT; Força Sindical - FS; Nova Central Sindical dos
Trabalhadores - NCST; União Geral dos Trabalhadores - UGT; Con-
federação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino
- CONTEE.
3. Entidades de Mulheres: Centro Feminista “8 de março”; Confederação
das Mulheres do Brasil - CMB; Federação Democrática Internacional
de Mulheres - FDIM; Marcha Mundial de Mulheres - MMM; Sempre
Viva Organização Feminista - SOF; União Brasileira de Mulheres -
UBM.
4. Organizações Comunitárias e de Luta pela Terra: Central dos Movi-
mentos Populares - CMP; Confederação Nacional das Associações de
Moradores - CONAM; Federação das Associações de Moradores do
Estado de São Paulo - Facesp; Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra - MST; Movimento em Defesa da Moradia.
5. Entidades de Negros (as) e Luta Antirracista: Congresso Nacional
Afro-Brasileiro - CNAB; Grupo Kilombagem; Movimento Negro
Unificado - MNU; União dos Negros pela Igualdade - Unegro.
166
6. Entidades Estudantis e de Jovens: Associação Nacional de Pós-Gradu-
andos - ANPG; Centro de Memória da Juventude - CEMJ; Juventude
do PT; Juventude Pátria Livre; Organização Continental Latino-Ame-
ricana de Estudantes - OCLAE; União Brasileira de Estudantes Secun-
daristas - UBES; União da Juventude Pró-Palestina do Brasil; União
da Juventude Socialista - UJS; União Estadual dos Estudantes de São
Paulo - UEE/SP; União Nacional dos Estudantes - UNE; União Pau-
lista de Estudantes Secundaristas - UPES.
7. Entidades Árabes, Islâmicas, Religiosas e de Luta pela Paz: Associação
Beneficente Islâmica do Brasil - ABIB; Sociedade Beneficente Islâmica
de São Paulo - SBISP; Biblioteca América do Sul Países Árabes - Bi-
bliASPA; Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz
- Cebrapaz; Conselho Latino-Americano de Igrejas; Conselho Mun-
dial da Paz - CMP; El Marada (Líbano); Federação das Entidades Ára-
be-Palestinas do Brasil - Fepal; Federação das Entidades Árabes (de
SP, do Brasil e das Américas) - Fearab; Instituto Brasileiro de Estudos
Islâmicos - IBEI; Instituto Jerusalém do Brasil - IJB; Jornal Gazeta
Árabe; Movimento Patriótico Livre - MPL (Líbano); Portal Arabesq;
Revista Sawtak; Sociedade Palestina de SP.
8. Entidades Sindicais Estaduais e Nacionais: Federação Interestadual de
Metalúrgicos e Metalúrgicas do Brasil - FitMetal; Federação Nacional
dos Farmacêuticos - Fenafar; Federação Nacional dos Médicos - FE-
NAM; Federação Nacional dos Sindicatos de Docentes das Universi-
dades Federais - Pró-IFES; Sindicato dos Advogados de SP; Sindicato
dos Bancários de SP; Sindicato dos Eletricitários de SP; Sindicato dos
Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo - Apeoesp; Sin-
dicato dos Radialistas do Estado de São Paulo; Sindicato dos Trabalha-
dores no Poder Judiciário da Bahia - Sinpojud.
9. Outras Entidades e Instituições: Nação Hip Hop; Portal Vermelho; Re-
vista Zunái.
167
Pela importância e representatividade que a 2ª Missão teve, entendo
como muito importante, para efeitos de registro histórico e documentação,
que a sua memória e seu relato sejam aqui publicados, como segue abaixo.
Relatos da 2ª Missão de Solidariedade ao Povo Palestino
Idealizado pelo Comitê pelo Estado da Palestina, a 2ª Missão ocor-
reu entre os dias 17 e 28 de abril de 2013 e contou com a participação de
22 integrantes.
Faço aqui um relato resumido com dados objetivos dos encontros,
eventos e resultados da viagem. Este relatório deve subsidiar as discussões
da 35ª reunião do CEP que ocorrerá no dia 7 de maio, terça-feira, na sede da
BibliASPA.
1. Coordenação da Missão: Prof. Lejeune Mirhan, membro do CEP, soci-
ólogo, escritor e especialista em Mundo Árabe e Oriente Médio (ara-
bista).
2. Integrantes da 2ª Missão: Antônio Barreto de Souza; Antônio Marsica-
no de Miranda; Antônio Moisés Dantas Sobrinho; Denirce Rodrigues;
Elias Nunes Dourado; Geraldo Eugênio Alves Galindo; Jean Fabrício
Falcão; João Batista da Silveira; Jorge Roberto Saade; José Álvaro Fon-
seca Gomes; Leandro José Taques; Marcelino Orosimbo da Rocha; Ma-
ria José dos Santos; Moara Crivelente; Nair de Farias Miranda; Paulo
Victor Fanaia Teixeira; Rafael Martins de Oliveira; Robertone Mercês
Nascimento; Ruth Coelho Monteiro;
3. Departamento da OLP visitados com quem tivemos reuniões: Depar-
tamento de Refugiados; Departamento de Desenvolvimento Social;
Departamento de Organização Popular. Estivemos ainda com o secre-
tário-geral da Organização, Yasser Rebbo. Ao todo, dos 17 membros da
Comissão Executiva da OLP, estivemos com sete.
4. Partidos Políticos da OLP com quem mantivemos reuniões: FATAH
(a maior de todas as organizações); Frente Popular de Libertação da
Palestina - FPLP; Frente Democrática de Libertação da Palestina -
FDLP; Frente de Luta Popular; Partido do Povo Palestino (ex-Partido
168
Comunista); Frente Árabe-Palestina, totalizando os seis maiores par-
tidos da Organização. Estivemos com os mais altos dirigentes dessas
organizações, presidentes e secretários-gerais.
5. Órgãos de Governo da Autoridade Palestina: Estivemos com o secre-
tário-geral da presidência; com o Ministério das Relações Exteriores e
com a Defesa Civil.
6. Organizações populares e de massa: Fizemos reuniões com a juventude
palestina, com membros da campanha do BDS (Boicote, Desinvesti-
mento e Sanções), com a maior organização de mulheres palestinas,
com os Comitês de Resistência Popular Não-Violenta; com a União
Geral dos Trabalhadores Palestinos (GUPW na sigla em inglês, a maior
central sindical do país e filiada à FSM) e mais 10 sindicatos, envolven-
do de engenheiros, advogados, professores e diversos outros setores.
7. Reuniões com prefeitos: Fizemos reuniões com os prefeitos das cida-
des de Betúnia e Kobar, localidades onde residem muitos brasileiros,
seguidos de reuniões com essa comunidade e um jantar e um almoço.
Em Betúnia, registre-se, estavam presentes os 13 integrantes da Câma-
ra de Vereadores. No almoço com mais de cem pessoas, havia dezenas
de pessoas que moraram no Brasil e falavam o português fluentemente.
8. Reuniões com Governadores: reunimo-nos com os governadores pales-
tinos de Jericó, de Hebron e de Jerusalém (Oriental e árabe, onde ficam
os pontos sagrados para os cristãos).
9. Cidades Visitadas: Conhecemos ao todo sete cidades, a saber: Ramalah
(considerada hoje a capital da Palestina), Jericó, Belém, Jerusalém, He-
bron, Betúnia e Kobar.
10. Aldeias visitadas: Fomos às aldeias milenares (mais de cinco mil anos)
de Nabih Saléh e de Bil’in onde conhecemos a experiência da resistên-
cia Não-Violenta. Nessa localidade, fomos agredidos pelo exército de
Israel com bombas de gás lacrimogênio e de pimenta.3

3-Especificamente na aldeia de Nabih Saleh, visitamos a família Tamimi, cuja filha,


Ahed, ficou mundialmente conhecida por ter enfrentado o exército sionista e ter sido
169
11. Locais considerados sagrados que visitamos: Visitamos em Hebron os
monumentos (tumbas) em memória de Abraão, Izaac e Raquel. Co-
nhecemos as Mesquitas Al Aksa e Domo da Rocha, ambas situadas na
Esplanada das Mesquitas, Nobre Santuário, na cidade antiga de Jeru-
salém. Visitamos a Igreja do Santo Sepulcro e o Gólgota em Jerusalém,
bem como a Igreja da natividade que fica em Belém. Em Jerusalém,
visitamos ainda o seu bazar e mercado que são milenares.
12. Escolas visitadas e campo de refugiados: Visitamos uma escola pa-
lestina mantida pela ANP, na aldeia de Bil’in onde presenciamos um
jogo de futebol em homenagem a um mártir assassinado por Israel
há quatro anos. Visitamos ainda uma escola da UNRWA, agência da
ONU para refugiados da ONU para os palestinos. Visitamos o campo
de refugiados de Aida da UNRWA na cidade de Belém, onde residem
seis mil palestinos de 1948 ou seus descendentes.
13. Mausoléus e museu visitado: Visitamos e fizemos oferendas florais
nos túmulos-monumentos de Yasser Arafat, fundador e presidente da
OLP e Mahmoud Darwish, maior poeta palestino e árabe, bem como
conhecemos o Museu sobre sua vida. Estivemos ainda no Centro de
Reconstrução da cidade milenar de Hebron, parcialmente ocupada por
400 israelenses que tomaram casas de palestinos e interditaram um ter-
ço da cidade, tendo quatro mil soldados a lhes protegerem.
14. Muro da Vergonha: Conhecemos e passamos em várias localidades
onde existe o chamado Muro da Vergonha, construção de oito me-
tros de altura que divide a Palestina e protege colônias israelenses na
Cisjordânia.
15. Escritório de Representação do Brasil junto ao Estado da Palestina:
Fomos recebidos e nos deu total apoio e suporte em Ramallah, o Em-
baixador Paulo Roberto França. Esteve com a delegação em nossa pri-
meira noite, tomando refeições conosco. Acompanhou-nos na visita
à prefeitura de Betúnia. Por fim, nos recebeu na sede da embaixada.
Agradecemos o apoio que nos foi concedido.
presa tendo apenas 16 anos
170
16. Impressões Preliminares: De todos os debates que tivemos com os
vários departamentos da OLP, seus partidos, suas organizações de
massa, anotei três observações pessoais que são importantes serem
registradas: 16.1. Percebemos uma forte unidade política e ideológica
na discussão com todos os dirigentes da Organização, sejam eles de
quaisquer partidos ou entidade de massa da base da OLP; 16.2. As con-
versas dos dirigentes da OLP sobre o HAMAS são sempre fraternas, na
linha de trazê-los para o seio da OLP. Mas, como é partido religioso e
o movimento da resistência palestina sempre foi laico, eles demarcam
o campo, registrando suas divergências com o gru po; 16.3. Quando
falam em libertação da Palestina, falam em libertação também dos is-
raelenses que os oprimem, citando passagem da obra de Karl Marx
sobre o assunto.
17. Estados presentes na delegação: Estiveram presentes na Missão repre-
sentantes dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso,
Paraná e Sergipe.
18. Impressões sobre nossa Missão: Aqui apenas dois registros importantes:
a) recebemos e sentimos a imensa e gigantesca solidariedade desse
povo palestino, que adora o Brasil, sabe da nossa importância na sua
luta e na solidariedade. Fomos recebidos com imenso carinho; b)
entre os membros da Missão desenvolveu-se uma grande amizade,
solidariedade e camaradagem.
19. Lista geral de autoridades contatadas: Abdallah Abu Rahma -
Coordenador dos Comitês Populares da Resistência; Abdullah
Abdullah - Chefe do Comitê Político do Conselho Legislativo
Palestino; Abed Al Menim Wahdan - Comissário Assistente
para Assuntos de Juventude do Departamento de Organização e
Mobilização do FATAH; Adnan Husseini - Governador de Jerusalém
e Ministro para Assuntos de Jerusalém; Ahmad Hannoun – Diretor
Geral do Departamento de Refugiados Palestinos da OLP; Emad
A. Hamdan - Diretor Geral do Comitê de Reabilitação da cidade
171
de Hebron; Ghazi Abu Hanani - Diretor Geral do Escritório da
Presidência Palestina de Mahmoud Abbas; Hanna A. Amireh -
Membro do Bureau Político do Partido do Povo Palestino e membro
do Comitê Executivo da OLP; Husni Abdel Wahed - Embaixador e
do Ministério das Relações Exteriores; Hussein Al Araj - Secretário-
Geral da Presidência da ANP, de Mahmoud Abbas; Ibrahim Issa
Abu Srour - Oficial das Nações Unidas/UNRWA para o Campo
de Refugiados Palestinos de Aida em Belém; Ibtisam Zeidan -
Presidente da União dos de Luta das Mulheres Palestinas; Jamil
Shadah - Secretário-Geral da Frente Árabe-Palestina; Jawad Abdel
Galeel - Membro do Comitê da América Latina da Comissão de
Relações Exteriores do FATAH; Kamel Hemeid - Governador de
Hebron; Mahmoud El Habil - Diretor Geral do Departamento
do Trabalho e Organização Popular da OLP; Mahmoud Esma’el -
Chefe do Departamento do Trabalho e Organização Popular da
OLP e membro do Comitê Executivo da OLP; Majed Al Fityani -
Governador de Jericó e Al Aghwar; Mohamed Odeh - Presidente
do Comitê de América Latina da Comissão de Relações Exteriores
do FATAH; Mohammad Yahya Arqawi - Secretário-Geral da União
Geral dos Trabalhadores Palestinos; Mufteh Nadi - Membro do
Bureau Político da Frente Árabe-Palestina e Membro do Conselho
Nacional Palestino; Muna Namura - Secretária-Geral da União Geral
das Mulheres Palestinas e membro do Conselho Nacional Palestino;
Nazmi Mhanna - Diretor Geral do Departamento de Fronteiras e
Passagens; Ribhi W. Dola - Prefeito Municipal de Betúnia; Samir Saif
- Membro do Comitê Central do Partido do Povo Palestino; Sultan
Abo Al Einein - Major-General e membro do Comitê Central do
FATAH e Comissão para Organizações Nãogovernamentais; Taysir
Jaradat - Embaixador e vice-ministro das Relações Exteriores; Yasser
Abed Rabbo - Secretário-Geral do Comitê Executivo da OLP.
172
Estas são as informações objetivas que apresentamos para subsidiar
os debates no âmbito do Comitê. Nenhum dos integrantes que participou
da 2ª Missão nunca teve a menor dúvida de sua importância, da sua vitória
e de como os brasileiros foram recebidos com carinho pelo povo palestino.

Lejeune Mirhan–
sociólogo, doutor e professor aposentado da UNIMEP,
autor de Palestina: história, sionismo e suas perspectivas
(Editora Apparte) - 2019.

173
literatura
e poesia de
combate pela
nobre causa
palestina no
Brasil

174
Artista: Sliman Mansour

175
“Ele foi um dos que lutou sinceramente pelo desenvolvimento do
movimento de resistência, de um movimento de libertação nacionalista
palestino para um movimento socialista revolucionário pan-árabe do
qual a libertação da Palestina seria uma componente vital. Sempre
salientou que “o problema da Palestina não poderia ser resolvido de
forma isolada de toda a situação social e política do mundo árabe”.

Anni Kanafani sobre seu marido Ghassan Kanafani.

176
Carta para Ghassan Kanafani

Para começar uma pergunta ao leitor: já lhe aconteceu de desejar muito


falar com alguém, longamente, sobre determinado assunto e na hora não con-
seguir fazê-lo?
É dessa angústia que nasceu esse texto...
Era um dia de final de semana durante a pandemia de Covid-19, naquele
isolamento físico os dias tendiam a parecerem iguais, então me dediquei a tra-
duzir textos e entrevistas de Ghassan Kanafani, o célebre intelectual e escritor
marxista palestino. Fui naquela noite dormir como de costume. Tomei meu ba-
nho, vesti o pijama, escovei meus dentes, tomei um copo de água e fui me deitar.
Nada de mais até então, somente um rito cotidiano. O que não sabia era que não
seria uma noite qualquer, pois tive um impactante sonho e desejo lhe contar em
detalhes, caro leitor.
Nele me encontrava em uma espécie de longo corredor e caminhava
apressado como se soubesse aonde ir, tendo em mãos um envelope pardo. Aca-
bei adentrando a uma sala ampla com uma grande janela lateral, da qual não
se via o exterior, dada a forte intensidade de luz solar que irradiava o ambiente.
A decoração do local remetia, claramente, a um espaço de militância política,
repleto de cartazes com figuras de luta, revolucionárias, lideranças políticas
de todo mundo e um lindo mapa da Palestina bordado ao modo tradicional.
Entre as imagens e faces que me rodeavam estavam a de Che Guevara, Mao
Tsé-Tung, Lênin... mas fixo meu olhar na de Ho Chi Minh, o inconfundível
líder comunista vietnamita, já velhinho, com sua barba rala e branca como sua
roupa. Aquele sereno semblante sempre me transmitiu a segurança de um sá-
bio ancião que compreende que um povo unido é mais forte que os impérios.
Ao fundo, se ouviam vozes que falavam em árabe, algumas palavras eram in-
teligíveis outras não, pareciam que vinham de duas direções distintas: de atrás
de uma porta fechada que conseguia ver em um canto da sala ampla onde me
encontrava e, por vezes, também do corredor onde passara. Estranhamente
177
me sentia ansioso, sem entender ao certo o porquê, ao mesmo tempo sabia que
algum desfecho importante estava prestes a acontecer. Em um dado momento,
alguém chama meu nome em árabe “Sr. Yasser Jamil Fayad”, não consigo ver
nenhuma feição do rosto e a voz se dirige a mim dizendo que Ghassan Kana-
fani logo chegará para me encontrar.
O sonho me havia transportado para Beirute, a bela capital libanesa,
mais especificadamente, no início da década de 70, antes de meu nascimento
que só ocorreria uma década depois. A sala ampla em questão era a “famosa”
recepção do escritório da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP),
local que emanava revolução. As imagens que tanto conhecia das entrevistas
e encontros captados em vídeos e fotos, que o então porta-voz oficial da FPLP
fazia naquele local, me permitiram reconstruí-la em sonho com um grande
nível de detalhamento.
Nesse momento a sensação de ansiedade cresceu, exponencialmente. Sen-
to em uma cadeira próxima à extensa mesa e meu corpo traduz minha inquieta-
ção. Movimentos rítmicos dos meus dedos, como um trote de cavalo acelerado
sobre a mesa do escritório e um balanço de pernas em movimentos curtos e
repetitivos para cima e para baixo.
A porta se abre e eis que entra Ghassan, com sua feição jovial e inconfun-
dível bigode preto, me dirige uma saudação rápida e estende a mão. Ele devia ter
uns 34 anos de idade, curiosamente, eu era o mais velho - nos sonhos os mortos
não envelhecem. Emudeço, mas consigo ficar rapidamente em pé e apertar sua
mão em resposta. Ele fala um árabe que consigo entender e, nitidamente, se
esforça para falar de forma pausada, como se soubesse que seu interlocutor não
domina o idioma em questão.
Contudo o que acontece é que apesar de compreender as questões que
perguntava, não conseguia responder, aumentando assim minha tensão e
ansiedade. Ghassan me observava como se esperasse minhas respostas. Então,
sem hesitação, lhe dei o envelope pardo que carregava em mãos sem saber o
que tinha em seu interior. Ghassan abriu cuidadosamente e ficou a observar seu
178
conteúdo... uma foto! Pude vê-la de relance. Após examiná-la olhou para mim
como quem queria uma explicação sobre aquela imagem e gesto... Acordei.
Estava suado e conseguia recordar todo o sonho em detalhes, algo que
nunca acontecera antes! O que faço ao perceber que tudo não passou de um
sonho? Respondo, imediatamente, as questões feitas por Ghassan em portu-
guês quase como uma forma de desabafo.
Esse sonho me atormentou por dias. Primeiro porque interpretei que
a minha falta de domínio do idioma árabe havia impedido o sonho de pros-
seguir e revelado algum desfecho distinto. Gostaria tanto de ter conhecido e
conversado com Ghassan Kanafani que não consegui, mesmo em sonho, frus-
trou-me enormemente.

Ghassan Kanafani no escritório da FPLP

Depois de muito pensar e refletir sobre o que aconteceu, como uma res-
posta necessária creio, decidi tomar a iniciativa de escrever uma carta para Ka-
nafani. Isso mesmo, caro leitor, escrever para uma pessoa que foi assassinada há
50 anos! Uma carta! Sim... com claro objetivo de preencher a lacuna que o sonho
deixou em aberto. Você, meu amigo leitor, pode achar estranho o caminho que
tomei, mas creio que o conteúdo lhe será também interessante se a forma não lhe
contentar. Além do mais, Ghassan adorava cartas e escreveu várias como forma
de literatura, desse modo me sinto autorizado a fazer o mesmo. Então, vamos lá:
179
“Querido camarada Ghassan Kanafani,
Nosso encontro não terminou como desejava, por isso, me sinto na
obrigação de retomá-lo. É verdade, a culpa foi minha e não sua para o desfe-
cho não satisfatório e assumo-a. Como tenho muito a lhe dizer acabei fican-
do com um gosto amargo na boca e espero, francamente, que essa carta me
faça reverter essa desagradável sensação.
Primeiro vou responder as suas questões feitas no sonho:
- Estou me sentindo bem! Muito obrigado por perguntar.
- De fato venho de longe, de um país do outro lado do Atlântico, o Brasil.
Descendo de libaneses... como você suspeitou. Meus avós deixaram essa terra
rumo ao Brasil e acredite você, nem eles ao certo me souberam dizer o porquê
dessa emigração. Gosto de imaginar, Ghassan, que isso tem a ver conosco, com
a nossa cultura árabe, essa ideia bonita de sair em caravana pelo mundo como
se ele fosse nosso quintal.
Você deve estar se perguntando por que lhe dei essa foto em particular?
Preciso dizer que a foto é de um rapaz em uma cadeira de rodas, com
ambas as pernas amputadas, lançando uma pedra com seu estilingue caseiro,
em di reção ao exército invasor israelense. É possível perceber, na imagem,
que se trata de uma paisagem de conflito dada a fumaça preta de pneus quei-
mando ao fundo. Depois de retratada, devido à forma como nos comunicamos
no mundo moderno, ela se espalhou rapidamente. Hoje, usamos computado-
res, celulares e outros dispositivos eletrônicos capazes de difundir, velozmen-

180
te, uma imagem como essa. “Viralizar” é o termo usado e acredite em mim,
Ghassan, quando lhe digo que milhões e milhões de pessoas viram essa mesma
imagem ao redor do mundo. O fotógrafo Mahmud Hams que, notavelmente,
a registrou assim como as outras fotos dessa sequência, recebeu elogios e prê-
mios internacionais como aclamado 25º Prêmio de Correspondentes de Guer-
ra Bayeux-Calvados. É uma imagem forte... Você concorda?
Também preciso lhe dizer algo a mais sobre a pessoa nessa foto: o nome
dele é Saber Al Ashqar, teve as pernas amputadas após um bombardeio isra-
elense à Faixa de Gaza, em 2014, e tinha à época da foto 29 anos de idade.
Tinha?
Sim. Ele foi dado como assassinado pelos israelenses naqueles dias de
maio de 2018 e outras fotos surgiram apresentadas como sendo de seu funeral
em Gaza. O que aconteceu, Ghassan, é que os jornais vinculavam a foto que lhe
dei e a do funeral como sendo a mesma pessoa, contudo não era.
Recapitulando, o homem da foto não foi assassinado como disseram os
veículos de comunicação mundo afora. Como poderia se produzir um erro des-
se tipo? Dado que essa foto havia se tornado “famosa” e o homem em questão ser
um cadeirante com ambas as pernas amputadas?
Para que você possa entender isso preciso lhe contar, mais especificada-
mente, sobre quem aparecia nas fotos em um funeral, erroneamente atribuído a
Saber Al Ashqar. As fotos da cerimônia de adeus eram de um rapaz, coincidente-
mente, de 29 anos de idade (30 anos dependendo de outras fontes), também com
ambas as pernas amputadas em consequência, igualmente, de um bombardeio
israelense, andava de cadeiras de rodas na mesma época e região que se encon-
trava Saber Al Ashqar... em maio de 2018 na Faixa de Gaza.
Você pode estar ficando confuso ou me achando confuso? Calma. Escla-
recerei melhor.
O funeral em questão era de um homem de nome Fadi Hassan Abu Salah.
Ele havia perdido as duas pernas em uma amputação traumática para lhe salvar
a vida após um bombardeio israelense na Faixa de Gaza, como Saber Al Ashqar
identicamente o foi, mas o ano noticiado era distinto: 2008. Mais uma vez se

181
produziu um erro, pois ambos factualmente foram vítimas dos bombardeios de
2014. Você deve estar pensando o porquê desse novo erro? Aqui preciso fazer
uma digressão sobre a Faixa de Gaza, pois ela não é a mesma que você conheceu,
Ghassan. Só assim, creio que ficará mais clara a razão desse segundo equívoco.
O território agora se restringe a 41 quilômetros de comprimento por 6 a 12
quilômetros de largura e concentra 1,9 milhões de pessoas sendo, atualmente, a
maior densidade humana por Km² do planeta. Ela se tornou uma imensa prisão
a céu aberto, um verdadeiro campo de concentração gigantesco, todo sitiado por
terra, ar e mar. Pior, Ghassan, é um laboratório tenebroso em que seres humanos
são cobaias para testes de armamentos de guerra e equipamentos de controle
populacional. Essa execrável situação construída e planejada, milimetricamente,
pelos sionistas produziu dezenas
e dezenas de experimentos
macabros sobre o povo palestino.
Entre esses estão os sucessivos
bombardeios à Faixa de Gaza em
2008, 2012, 2014, 2021 e 2022.
São tantos que é compreensível
a confusão, acerca de qual
bombardeio gerou a amputação
dos nossos dois cadeirantes,
concorda comigo? Agora,
isso não explica o porquê de
tantos bombardeios, também
há de concordar comigo? Para
entender esses acontecimentos Mapa da Faixa de Gaza
tenho que lhe falar sobre a função
social da guerra para Israel.
Muito mudou de sua época para os dias de hoje, Ghassan. Se a expansão
em guerras de alta intensidade foi a tônica israelense, de 1948 até 1967/1973,
depois continuou em baixa intensidade, permanentemente até os dias de hoje,

182
nesse processo de expansão lenta, contudo confinado ao território histórico da
Palestina em uma limpeza étnica, cultural, histórica, patrimonial, arqueológica
da existência do povo palestino. Dessa forma, a expansão foi a primeira função
evidenciada. Você vivenciou na pele essas incursões que fabricaram assassina-
tos, chacinas, tristezas e refugiados. Visivelmente, Ghassan, outro papel é o uso
de armas e técnicas novas nesses momentos de alta intensidade contra a Faixa
de Gaza, como serve também à repressão e à tentativa de controle das forças de
resistência e libertação nacional palestinas. Dessa maneira, inovação tecnoló-
gica de guerra, controle, evidenciamento da real força de resistência e liberta-
ção do povo palestino foram a segunda e terceira funções evidenciadas. Esses
ataques, em alta intensidade, também servem para coesionar, internamente, os
israelenses pelo ódio aos palestinos, além de servir como forma de recruta-
mento e treinamento militar de combate, visto que o exército israelense aplica,
fundamentalmente, uma ação de polícia colonial. Desse jeito, a coesão do teci-
do social heterogêneo interno israelense pelo ódio ao colonizado, associado ao
treinamento militar maciço constituem a quarta e quinta funções evidenciadas.
A sexta função é manter a tensão interna e o clima belicoso para obter consen-
sos dos mais variados. Não é à toa que em épocas eleitorais e diante de crises
internas os ataques contra Gaza funcionam como uma antessala de novo acordo
interno ou uma cortina de fumaça. A sétima função é um dos propósitos da
existência desse enclave colonialista no Oriente próximo: sabotar, desestabilizar,
assassinar lideranças políticas, vigiar, infiltrar agentes, atos de terrorismo etc. em
toda a região, servindo aos interesses do imperialismo.
Além do mais suponho, Ghassan, que a data de 2008 foi noticiada, equi-
vocadamente, como sendo aquela em que Fadi Hassan Abu Salah teria sido gra-
vemente ferido, pois foi uma das ações mais genocidas de Israel. Por isso, lhe
conto mais sobre ela. De dezembro de 2008 a janeiro de 2009, Israel perpetuou
mais um gigantesco crime contra Gaza, se valendo desta vez, até mesmo de ar-
mas químicas. Dá para acreditar, Ghassan? Usaram fósforo branco e as imagens
das queimaduras químicas sobre os corpos de civis são atrozes. Acho, inclusive,
impróprio mostrá-las nessa carta além, é claro, de ser repugnante. Espero que

183
você me entenda. Deixaram mais de 1400 mortos e milhares de feridos, en-
tre esses últimos se noticiou, erroneamente, Fadi Hassan Abu Salah. É comum,
você bem sabe, aos bombardeios desse tipo multiplicarem feridos com sequelas
permanentes e a nossa velha Gaza é um reduto desses. São milhares e milhares
de amputações e deformações em mãos, braços, pés, pernas, olhos, surdos, quei-
mados, etc. Mais uma criação nefasta de Israel!
Voltemos a história que lhe contava. Esse último rapaz, Fadi, era filho de
refugiados, assim como você, Ghassan. Tinha perdido a perna como Nádia, fato
mencionado em sua poderosa e magnífica “Visão de Gaza”, que sintetiza muito
bem você e aqueles da sua geração que optaram em ficar e lutar pela Palestina.
Você deve estar se perguntando: o quê dois homens, em cadeiras de ro-
das, com ambas as pernas amputadas, localizados na Faixa de Gaza, próximo à
linha de fronteira, em maio de 2018... estavam fazendo ali?
Para isso, meu querido Ghassan, tenho que lhe revelar que eles não es-
tavam sozinhos, e mais, tenho que lhe explicar a Grande Marcha do Retorno.
Após tanto tempo inventando e reinventando formas de resistir e de lutar, o
povo palestino criou um movimento lindo para lembrar os 70 anos da Nakba,
protestar contra a mudança da embaixada dos EUA para Jerusalém e reafirmar
o seu direito inalienável de retornar a seu território original. Essa linda Marcha
se iniciou em 30 de março, o Dia da Terra Palestina, que recorda o ano de 1976,
quando no norte da Palestina camponeses reagiram ao roubo contínuo de suas
terras por parte de Israel. A Grande Marcha do Retorno, já lhe explico pron-
tamente, não era composta apenas por amputados fisicamente como Saber Al
Ashqar ou Fadi Hassan Abu Salah, mas por centenas e milhares de palestinos
na Faixa de Gaza, acompanhados na Cisjordânia e nos campos de refugiados
dos países árabes circunvizinhos. Apesar da afirmação acima, Ghassan, já foi
dito que o exílio é uma sensação permanente de falta, de um vazio de algo que
lhe é fundamental, é uma incompletude... uma “amputação”, metaforicamente,
falando. Nesse sentido, a Grande Marcha do Retorno congregou milhares de
palestinos que são também amputados, física e/ou metaforicamente.

184
A resposta sionista foi a mesma de sempre: violência e mais violência,
morte e mais morte. O nosso Fadi Hassan Abu Salah foi assassinado, em 14 de
maio de 2018, uma segunda-feira, o dia mais sangrento de ataques à Grande
Marcha do Retorno, totalizando 61 mortos em um único dia. Atiraram em uma
pessoa de cadeira de rodas! Dá para acreditar nisso? Como sempre invocaram
a carta preferida para esconder os crimes, a tal “segurança de Israel”, atribuíram
a Fadi e aos outros 60 assassinados a pecha de terroristas perigosos. Um cadei-
rante com ambas as pernas amputadas carregando uma bandeira da Palestina
era uma ameaça iminente a segurança de Israel – segundo eles. Ghassan, ele
foi morto em Abasan Al Jadida, perto de Khan Yunis, ao sul da Faixa de Gaza,
com o disparo efetuado por um atirador de elite em seu peito, enquanto rezava
embaixo de uma árvore! Fadi deixou a mulher, Amina Abu Salah e cinco filhos,
sendo três meninos e duas meninas.
Atiraram em uma pessoa de cadeira de rodas enquanto rezava! Dá para
acreditar nisso, Ghassan?
Ele não foi o único. Naqueles dias as cenas de assassinatos à céu aberto
eram aterrorizantes. Os números de mortos e feridos aumentavam de hora em
hora, pessoas desarmadas, em um protesto pacífico sendo abatidos como “in-
setos”. Naquela segunda-feira, de 14 de maio, já se somavam um total de 118
mortos e mais de 1800 feridos. As cifras, nesses casos, sempre escondem mais
do que revelam e deixam ocultos nomes, idades, parentescos, laços de amizade,
relações amorosas, enfim histórias de vida e as sequelas que ficarão para sempre.
Bestialmente, os sionistas continuaram perpetrando crimes até mesmo
contra um bebê... Sim, Ghassan! Dá para acreditar nisso? Um bebê foi envene-
nado com gás lacrimogêneo. As reportagens escondiam essa história entre as
cifras ou, raramente, citavam “um bebê”. Mais um palestino sem nome e sem
história que a mídia cúmplice desinforma, em oposição às dramáticas e longas
reportagens das “vítimas israelenses”. Esse é um papel teatral que conhecemos
muito bem dos sionistas, sempre se apresentando como eternas vítimas, quando
na verdade são somente carrascos sádicos e cínicos.

185
Foto do funeral de Fadi Hassan Abu Salah, incorretamente,
associado à famosa foto de Saber Al Ashqar

Foto de Fadi Hassan Abu Salah

Foto dos cinco filhos de Fadi Hassan Abu Salah

186
A criança se chamava Laila Anwar Al Ghandour, uma menina de apenas
oito meses de idade, cuja a família era do campo de refugiados de Al Shati,
na Faixa de Gaza. Laila... é também o nome de sua filha, Ghassan. A mãe da
criança a havia deixado adormecida junto a parentes a mais de um quilômetro
da fronteira, no que considerou ser uma distância “segura” das manifestações.
Não existe essa certeza para nenhum palestino sob colonização. Segurança é
uma palavra sempre relativa para os palestinos sob limpeza étnica israelense. A
quantidade imensa de gás lacrimogênio lançado naquele dia terrível, segunda-
feira 14 de maio de 2018, transformou toda a região em uma espécie de enorme
câmara de gás aberta. Foi assim que executaram a pequena Laila. Ghassan... não
lhe parece que as crianças palestinas, antes mesmo de saber quem são, já carregam
o fardo de onde nascem? São tratadas pelo colonizador como potenciais adultos
palestinos e assim, corriqueiramente, torturadas, presas e assassinadas.
Diante daquele festival diabólico e indigno conduzido pelos israelenses,
esses não escondiam a satisfação por cada morte, comemoraram como cães se-
dentos por sangue. Isso porque durante os dias da gloriosa Grande Marcha do
Retorno, os militares israelenses testaram novos dispositivos e armas, entre elas
a chamada “chuva de gás lacrimogêneo”, que intoxicou a pequena Laila.
Você deve estar se perguntando: Como aqueles que se classificam na con-
dição de “ocidente político”, de maneira geral, reagiram a tudo isso?
Da maneira de sempre Ghassan, diante do trágico se retira da vítima sua
humanidade e, assim se torna aceitável, o horror como algo trivial. Você sabe
mais do que ninguém que essa foi a forma deles de “resolução” do trágico na
modernidade, não reconhecendo a tragédia, pela desumanização do outro. Os
palestinos foram vítimas dessa ação. Como no livro de Franz Kafka em que a
personagem Greta Samsa não reconhece, em determinado momento, humani-
dade em seu irmão “metamorfizado” e, assim, pode pedir para varrê-lo para fora
como a um “inseto” qualquer. A “metamorfose” que os palestinos sofreram é o
orientalismo que os apresenta como seres incapazes, menores, agressivos, vio-
lentos, terroristas, irracionais, etc. Com essa falsa imagem construída fica fácil
aceitar seus assassinatos e varrê-los em uma limpeza étnica à céu aberto, à luz do
dia e a olhos vistos.
187
Início da chuva de gás lacrimogêneo- Foto de Mahmud Hams

Foto da pequena Laila Anwar Al Ghandour já assassinada

Isso, obviamente, nada tem em comum para eles com o horror do assassi-
nato de milhares de europeus que professavam o judaísmo cometido por outros
europeus, durante a Segunda Guerra. Tanto que registraram protestos em livros,
filmes, palestras, museus, memoriais, etc. sobre tal tema. É um horror que tem
nome (holocausto), as vítimas têm suas histórias humanas contadas e se nega a
“metamorfose” produzida pelo nazismo. Aquela que dizia que o europeu judeu é
portador de todas as maldades. Contudo, meu caro Ghassan, para os palestinos
que, notoriamente, não são europeus, o destino é o apagamento dos horrores por
eles sofridos. Nada diferente do destino comum dos demais povos originários
vítimas do colonialismo desses mesmos europeus nas Américas, África e Ásia.
188
Não lhe parece ironia da histó-
ria, Ghassan, que as falsas e ca-
luniosas acusações nazistas em
parte tenham se transformado
em verdades pelas mãos dos
judeus sionistas na Palestina?
Sabemos quantas e quantas
maldades esses colonizadores
fizeram e fazem na terra santa.
Não existe o trágico, não
existe limpeza étnica, nem ge-
nocídios, os eventos históricos
não possuem nomes, tam-
pouco as vítimas têm nomes e
histórias de vida. A vítima no Foto de Laila Anwar Al Ghandour

fundo não é uma igual, sempre


inferior, quase uma semi-humana por assim dizer.
Se é possível produzir tal forma de “metamorfose” sobre aparência de
um povo inteiro, é também possível fazê-lo em outro com sinal trocado. As-
sim, Ghassan, o monstro colonial sionista produtor de bestialidades é maquia-
do, transformado na imagem e recriado na aparência: como uma invenção
divina para fanáticos religiosos ou ainda como a única “dádiva” democrática
do oriente próximo, que faz Apartheid, limpeza étnica e agressão militar aos
vizinhos permanente e impunemente. De bastião das forças reacionárias do
mundo, o que Israel o é, querem até mesmo transfigurá-lo em progressista.
Dá para acreditar nisso? A lista poderia seguir, longamente, mas o ponto que
queria lhe chamar a atenção já foi cumprido.
A violência dos sionistas não é algo novo para você, Ghassan. Você foi ví-
tima dela. Desde sua infância até a sua morte. E a foto que lhe dei agora adquire
contornos mais nítidos e dela surge uma questão que gostaria de conversar com
você e não consegui no sonho, sendo essa a razão de ter lhe dado essa foto em
particular:
189
Será que Saber Al Ashqar é uma espécie de Dom Quixote palestino?
Não estranhe a minha pergunta.
Porque ao que se sabe, Al Ashqar continuou vivo. Mais ainda, prosseguiu
indo as manifestações da Grande Marcha do Retorno, e mesmo depois dela, ape-
sar dos assassinatos, prisões e torturas que se sucederam naqueles dias.
Não lhe parece brotar similaridades entre ambos, Ghassan?
Digo isso, pois como o cavaleiro da novela medieval, montado em seu
débil “Rocinante”, Saber Al Ashqar tinha sua velha e débil cadeira de rodas.
Também queria, como o primeiro, transformar profundamente o mundo que
o cercava, só que no caso de Saber Al Ashqar, libertar a sua amada Palestina da
colonização sionista. Em ambos existe uma incongruência entre meios e fins, o
que me faz questionar:
Será que Al Ashqar achou que um cadeirante com ambas as pernas ampu-
tadas munido de um estilingue caseiro em mãos conseguiria derrotar o exército
israelense? Com todo o apoio bélico que esse recebe do império?
Dizendo de outra forma: Será que Saber Al Ashqar não compreendia rea-
listicamente a correlação de forças?
Ao que tudo indica, Ghassan, o nosso Saber Al Ashqar não sofria de
nenhuma falta de princípio de realidade, que é uma característica marcante do
personagem de Cervantes. Distintamente de Dom Quixote de La Mancha que
via em simples moinhos de vento terríveis gigantes, o nosso Saber Al Ashqar
vê, a seu modo, a entidade sionista como ela é: uma monstruosidade à serviço
da lógica do Capital.
Quanto ao terreno da utopia, a de Dom Quixote, não se liga ao real, paira
no alto das ideias e não sofre nenhum tensionamento da práxis, ou seja, não se
autoavalia, não é reflexiva, não aglutina outros para se tornar mais forte, não
conscientiza outros para disputar hegemonia, não se multiplica para mudar a
correlação de forças, não muda o seu próprio projeto utópico (no sentido de
porvir) dadas as possibilidades que o real abre ao longo da história, enfim é uma
utopia estática. Parece que Saber Al Ashqar compreende esses elementos a seu
modo, não sofre dessa mesma caraterísticas do cavaleiro espanhol.

190
Apesar disso a questão permanece: se ele não nutria tolas ilusões e nem
se auto enganava na correlação de forças desproporcionais que tinha à frente; se
tinha clareza na incongruência dos seus instrumentos, uma velha e débil cadeira
de rodas e um estilingue caseiro, para a tarefa de libertar a Palestina inteira e se
compreendia, minimamente, a seu modo as exigências de uma práxis revolucio-
nária... por que ele continuava a arremessar pedras, Ghassan?
Dito de outra forma: Por que não abdicou da luta diante da falta de instru-
mentais apropriados e eficientes? Ou dada a correlação de forças estar momen-
taneamente desfavorável? Por que não reduziu a sua luta a um pretenso realismo
político? Por que não optou pela prudência como conselheira?
Imagino que todas as lutas de libertação colonial que triunfaram, e mais
ainda as revoluções sociais vencedoras, tenham em algum momento se apresen-
tado como tarefas impossíveis ou improváveis para a prudência de um tipo de
realismo político covarde, que se multiplica na esquerda em todo o planeta. Sob
o pretexto de um realismo que sempre restringe as possibilidades, o que se faz é
se acomodar e se adequar as demandas do Capital em uma esquerda da ordem
ou da regra do jogo. Esse nunca foi nosso caminho, Ghassan. Arrisco a dizer que
nenhum revolucionário foi chamado de prudente na história.
Quanto ao nosso Saber Al Ashqar, não sei ao certo a resposta meu amigo,
nunca cheguei a conversar com ele, mas gosto de pensar que compreendeu a sua
literatura. Digo isso, pois que ele descobriu, a seu próprio modo, que poderia
sobreviver sobre uma velha e débil cadeira de rodas em uma vida desfeita pela
colonização sionista ou optar por lutar contra ela. O que inclui a possibilidade
real da morte, assassinato, tortura e o que nos remete ao seu personagem Ab-
dul-Jabbar, na peça teatral “Breve conclusão”, em que o mesmo clarividenciou:
“Mais importante (...) É achar um nobre ideal, antes da morte.”
Além de ter um nobre ideal para se viver, existem momentos na história de
um indivíduo e mesmo de um povo, em que a morte não é antagonizada pela vida,
mas pela luta. É como se só está vivo realmente quem luta, como o pássaro do seu
conto “Muros de Ferro”.

191
Além do mais é preciso ter clareza que as configurações políticas, que sus-
tentam Israel regional e mundialmente, mudarão e que a história está aberta. Há
momentos em que um povo deve resistir para que no passo seguinte possa der-
rotar o inimigo. Nesse quesito nenhum povo, no século XX, foi mais bravo do
que os palestinos, que enfrentaram uma colonização de substituição apoiada por
vários impérios. Apesar de todo o esforço empregado por esses para apagarem
da existência o povo palestino, não conseguiram e nem conseguirão. O povo
palestino me lembra o velho, sábio e sereno Ho Chi Minh que compreendia que
venceria todos os impérios e a colonização, somente com um povo unido na
luta. Sem luta não há existência e nem tampouco libertação.
Para a história de um povo é fundamental também que a geração pre-
sente saiba que os seus do passado lutaram – esse é o legado precioso a ela re-
passado. É a ligação necessária para contar a história a contrapelo, para salvar
a memória dos que lutaram e lutam pela libertação. A geração presente pre-
cisa dessa certeza do passado, que a dignifica e orgulha no presente, pois são,
fundamentalmente, os que não se resignaram que servem de exemplo para o
presente, os outros são esquecidos.
Quando examinamos o conteúdo de todos esses legados existem aqueles
que se sobressaem. Por sua capacidade de projetar não uma Palestina do pas-
sado que se perdeu, mas uma de um futuro solidário, fraterno, amoroso, com
equidade, sem exploração e sem opressões de todos os tipos. Uma Palestina
que é sinteticamente antítese de Israel. Capaz de radiar valores generosos para
os demais árabes, outros povos da região como os persas, turcos entre outros...
para o mundo todo. Essa poderosa visão de uma Palestina socialista é um legado
precioso que você ajudou a nos deixar, meu querido Ghassan.
É isso que imagino que Saber Al Ashqar compreendeu: ter na digna e
linda causa palestina o seu nobre ideal, lutar para antagonizar a morte como
produto do vil colonizador e como condição necessária para vencê-lo, por fim,
se impregnar do legado precioso do passado de luta do nosso povo como fonte
inspiradora do presente. É exatamente essa conjunção que sinteticamente melhor
192
lhe representa para mim, Ghassan Kanafani. Nesses 50 anos de seu martírio,
lanço luzes no seu legado precioso, que é exemplo vivo na memória e no coração
dos que lutam no presente por um nobre ideal onde quer que estejam.

Do seu camarada e irmão –


Yasser Jamil Fayad

P.S: Ghassan quero que saiba de duas coisas: primeiro que voltei a estudar o
idioma árabe e espero de coração que em nosso próximo encontro já consiga falar com
desenvoltura e, segundo, que vou publicar essa carta, pois acho que devem existir leitores
desejosos em ter um encontro como esse. Espero que possa inspirar as cartas deles
para você e, assim quem sabe, publicarmos, em um futuro breve, um livro de Cartas a
Ghassan Kanafani.

193
A chave

Homenagem a
Ghassan Kanafani

194
Perseguiram suas pegadas
como uma caça desejada.

O nariz aguçado desses cães


de guerra farejaram seu sangue.

Com um vil desejo de morte


mordiam excitados os lábios.

Queriam seu corpo sem vida


Como troféu a ser exposto.

Queriam calar-lhe
a voz de protesto, lucidez
e sua literatura combatente.

Parar, definitivamente, suas mãos


de construir e organizar
resistências.

Cessar, eternamente, sua energia


que contagiava a todos.

195
Quebrar, para sempre, sua esperança
de libertação.

Secar, para todo o sempre, suas forças criativas


que insistem em enfrentar
muros,
guaritas,
cercos,
enfim... a colonização sionista.

Tantas vezes mataram seu corpo


e tantas mais
ressuscitou
nas crianças e jovens palestinos.

Ghassan,
você é a chave que nos liberta!

Yasser Jamil Fayad

196
O verbo

Homenagem a
Ghassan Kanafani

197
Conjugue um verbo precioso para todos os palestinos –
diz o professor.

O aluno responde:
Eu resisto
Tu resistes
Ele resiste
Nós resistimos
Vós resistis
Eles resistem

Ótimo!

Agora conjugue um verbo


que define o caminho da libertação –
diz o professor.

Outro aluno responde:


Eu luto
Tu lutas
Ele luta
Nós lutamos
Vós lutais
Eles lutam

Parabéns!

198
Conjugue um verbo que congrega o significado
de resistir, lutar, libertar e construir uma sociedade
equânime, fraterna, solidária e justa
na Palestina.

Todos respondem em coro:


Eu Kanfano
Tu Kanafanas
Ele Kanafana
Nós Kanafamos
Vós Kanafais
Eles Kanafanam

Bravo! Bravo! Bravo!


Muitos aplausos.

Yasser Jamil Fayad

199
O escritor
de Akka

Homenagem a
Ghassan Kanafani

200
Sou
escritor
dos mortos
em batalhas,

dos torturados,
dos refugiados,
dos bombardeados,
dos presos políticos.

Faço
da minha voz
a dos outros

dos jovens dos campos de refugiados


das mulheres,
dos anciões,
dos homens,
dos que morreram
e dos que ainda não nasceram.

Sou escritor
do meu povo
de sangue árabe
espesso e grosso
da montanha e do deserto.

201
Sobretudo
sou escritor
da profecia.

E como tal
condiciono os caminhos do presente
ao futuro desejado.

Se, e somente, se
continuarmos a luta
seremos livres!

Yasser Jamil Fayad

202
Cartazes em
homenagem
a Ghassan
Kanafani

203
Artista: Ismail Shammout

204
“Voltar a escrever histórias? Eu escrevo bem
porque acredito em uma causa, em princípios.
No dia em que eu deixar estes princípios, as
minhas histórias ficarão vazias.”

Ghassan Kanafani

205
Tradução do árabe: Festival / Primeiro aniversário do
martírio do herói Ghassan Kanafani – 1973.
Autor: desconhecido.

206
O texto em árabe são títulos literários de
Ghassan Kanafani – 1977.
Autor: Jamal Al Abtah.

207
Tradução do árabe: “Ghassan Kanafani - O julgamento ...
a testemunha e o mártir” – 1980.
Autor: Marc Rudin.

208
Nona comemoração do martírio do camarada Ghassan – 1981.
Publicado pela Frente Popular de Libertação da Palestina.
Autor: Marc Rudin.

209
“O homem das cartas” – 1990.
Autor: Adnan Al Zubaidy (1951-2007).
.

210
“Um homem de literatura” – 1995.
Autor: Adnan Al Zubaidy (1951-2007).
.

211
Tradução árabe: “O ser humano, no fundo, é a causa.”
Frase de Ghassan Kanafani – 2012.
Autor: desconhecido

212
Tradução do árabe: “Ghassan Kanafani - De tenda
em tenda para defesa” – 2012.
Autor: Hafez Omar.

213
Tradução do árabe: “Com nosso sangue
escrevemos pela Palestina” – 2012
Autor: desconhecido

214
Tradução do árabe: “Estou falando
de liberdade ...e a liberdade é em si a
recompensa” – 2016.
Autor: Qasem Abdelqader.

215
Kanafani: 46º do Martírio – 2018.
Autor: Charbel Barakat.

216
2018
Autor: Nidal El Khairy.

217
“O imperialismo colocou o seu corpo sobre o mundo.
Onde quer que você o atinja, o fira, estará servindo a
revolução mundial - Ghassan Kanafani” – 2020.
Autor: Danya Zituni.

218
Cultura da resistência – 2021.
Autor: Kyle Goen.

219
Ancestrais - Kanafani – 2021.
Autor: Zelda Edmunds.

220
Cartaz em homenagem aos 50 anos do martírio de
Ghassan Kanafani – 2022.
Autor: Movimento pela Libertação da Palestina – Ghassan
Kanafani (MLP – Ghassan Kanafani).

221
Cartaz em homenagem aos 50 anos do martírio de
Ghassan Kanafani – 2022.
Autor: Movimento pela Libertação da Palestina – Ghassan
Kanafani (MLP – Ghassan Kanafani).

222
Cartaz em homenagem aos 50 anos do martírio de
Ghassan Kanafani – 2022.
Autor: Movimento pela Libertação da Palestina – Ghassan
Kanafani (MLP – Ghassan Kanafani).

223
Cartaz em homenagem aos 50 anos do martírio de
Ghassan Kanafani – 2022.
Autor: Movimento pela Libertação da Palestina – Ghassan
Kanafani (MLP – Ghassan Kanafani).

224
Cartaz em homenagem aos 50 anos do martírio de
Ghassan Kanafani – 2022.
Autor: Movimento pela Libertação da Palestina – Ghassan
Kanafani (MLP – Ghassan Kanafani).

225
226
Parte 2
227
Lembranças
sobre
Ghassan
Kanafani

228
Artista: Nabil Anani

229
“Nós escrevemos com o sangue pela Palestina.”

Ghassan Kanafani

230
Ghassan Kanafani –
por Anni Kanafani

231
O texto que se segue foi publicado 1 ano após o assassinato
de Ghassan Kanafani e se trata de um relato de sua viúva Anni
Kanafani. Nele temos uma síntese biográfica de ambos, relatos
da intimidade da família e a descrição dos últimos momentos
de vida de Ghassan e Lamis (sua sobrinha).
O objetivo é nos familiarizarmos com a história de vida
de Ghassan Kanafani e ampliarmos nossa visão sobre as outras
dimensões de sua existência para além da política.

Nota do organizador

232
Ghassan Kanafani1

Na manhã do assassinato, todos ficamos sentados mais tempo do que


o usual bebendo o nosso café árabe na varanda. Como sempre, Ghassan ti-
nha muitas coisas para falar e estávamos também sempre prontos para ouvir.
Estava nos contando sobre seus camaradas da FPLP2 e então, ele e sua irmã
Fayzeh, começaram a falar sobre a infância na Palestina.
Antes de sair para o escritório, consertou o trem elétrico para nosso
filho Fayez e seus dois primos. Os três estavam brincando dentro de casa.
Lamis, sobrinha de Ghassan, iria ao centro da cidade com o tio pela primei-
ra vez desde que chegara do Kuwait com a mãe e os irmãos há uma semana.
Ela ia visitar a casa de seu primo em Beirute — nunca chegou lá. Dois mi-
nutos depois de Ghassan e Lamis terem nos dado um beijo de despedida,
houve uma terrível explosão.
Todas as janelas da casa se quebraram. Desci correndo, apenas para
encontrar os restos em chamas de um pequeno carro. Encontramos Lamis a
poucos metros de distância, Ghassan não estava lá. Chamei pelo nome dele.
Então descobri entre os escombros da explosão a sua perna esquerda decepa-
da. Fiquei paralisada, enquanto Fayez batia a cabeça contra a parede e nossa
filha Laila chorava muito e gritava: Papai, papai...
Eu ainda tinha uma pequena esperança de que talvez estivesse apenas
gravemente ferido... mas o encontraram morto no vale ao lado de nossa casa
e o levaram embora – eu não tive chance de vê-lo novamente.
Usamah se sentou ao lado do corpo de sua irmã morta, dizendo a ela:
“Não se preocupe, Lamis, você vai ficar bem e vai me ensinar inglês de novo,
como antes.”
1-Texto do livro “Ghassan Kanafani by Anni Kanafani”. Publicado em abril de 1973
pelo “Palestine Research Center”. Beirute, Líbano. Tradução, adaptação e notas: Yasser
Jamil Fayad.
2-Frente Popular de Libertação da Palestina é uma organização política e militar
palestina de orientação marxista-leninista, fundada em 1967, que chegou a ser a
segunda maior força política entre os partidos palestinos.
233
À noite, nossa pequena Laila me disse: “Mamãe, pedi ao papai para
me levar no carro e comprar chocolate, mas estava ocupado e me deu uma
barra que tinha no bolso. Então me beijou e disse para ir para casa. Fiquei
sentada nos degraus para comer o chocolate, quando aconteceu um gran-
de estrondo. Mas mamãe, não foi culpa dele — os israelenses colocaram a
bomba no carro do papai.”
Eu sou a viúva de Ghassan Kanafani – um dos grandes mártires da
revolução palestina.
Meu país natal é a Dinamarca. Lembro-me, vagamente, da ocupação
alemã que começou em 9 de abril de 1940. Meu pai se juntou ao movimento
de resistência com outros homens e mulheres dinamarqueses. Muitos com-
batentes da liberdade deram suas vidas, outros acabaram nas prisões da Ges-
tapo ou campos de concentração em sua luta contra a ocupação alemã. Os
alemães chamavam os combatentes da resistência dinamarquesa de terroris-
tas, da mesma forma que as potências ocupantes maldizem aqueles oprimi-
dos que resistem à ocupação e começam a lutar por sua liberdade e indepen-
dência. O movimento de resistência dinamarquês também ajudou a resgatar
judeus dos nazistas alemães.
Quando Israel foi estabelecida, em 15 de maio de 1948, os
dinamarqueses, como a maioria das outras pessoas do “mundo civilizado”,
eram ignorantes o suficiente para ficarem felizes. Ouvimos algo sobre “os
refugiados árabes”, mas ninguém percebeu que todo um povo teve que pagar
o preço. Só doze anos depois tomei conhecimento da existência de um povo
palestino, expulso de seu país natal com a ajuda das grandes potências,
principalmente, EUA e Grã-Bretanha.
Em 1960, participei de uma Conferência Internacional de Professores
e, depois, de uma Conferência de Estudantes na Iugoslávia. Lá, pela primeira
vez, fui confrontada com a questão Palestina através de reuniões com alguns
estudantes palestinos. Ao voltar para casa, ingressei no Colégio Internacional
do Povo na Dinamarca3, onde continuei a discutir o problema com colegas
3-É uma escola secundária popular em Helsingor, no norte da Dinamarca, à uma hora da
capital Copenhague, tem um caráter internacional e residencial. Cerca de 100 alunos, de
muitos países diferentes ao redor do mundo e de idades variadas, frequentam a cada período
234
estudantes. Alguns de nós também foram para Londres e se juntaram à Marcha
de Aldermaston4, organizada pela Campanha pelo Desarmamento Nuclear e
liderada por Bertrand Russell. Quando morreu, aos 97 anos, ele ainda lutava
por justiça, desta vez pelos palestinos.
Naquele verão de Aldermaston, voltei à Iugoslávia com um conheci-
do grupo folclórico dinamarquês, “Tingluti”, do qual eu era membro há dez
anos. Alguns se juntaram a um campo de trabalho internacional onde en-
contramos estudantes israelenses, em outro campo encontramos estudantes
árabes; discutimos o problema palestino com ambos os grupos.
Em setembro de 1961, fui à Síria e ao Líbano para estudar in loco o pro-
blema palestino. Em Beirute, fui apresentada a Ghassan Kanafani, na época
um dos editores do semanário árabe Al Hurriya (a Liberdade). O jornal era
o órgão do MNA5 e Ghassan editava os assuntos relacionados aos palestinos.
Quando lhe pedi que me deixasse visitar alguns campos de refugia-
dos, Ghassan ficou em silêncio. – “Você acha que nosso povo palestino é
um animal de zoológico!”, gritou com raiva depois de um momento; e então
começou a explicar e me contou sobre seu povo e país: Como as Nações
Unidas contra sua própria carta6, tinham em novembro 29 de novembro
de 1947, dividido a Palestina contra a vontade de sua população árabe (que
então compunha dois terços da população total e possuía mais de 90% da
terra); como na votação final apenas um país asiático (Filipinas) e dois pa-
íses africanos (Libéria e África do Sul) votaram pela partilha, sendo que os
dois primeiros foram intensamente pressionados pelos Estados Unidos a

4-Primeira marcha, ocorreu no dia 7 de abril de 1958, com cerca de 15 mil pacifistas
protestando diante do centro de pesquisas nucleares de Aldermaston contra a
construção e o emprego de armas atômicas. Iniciando assim a tradição das chamadas
“Marchas de Páscoa”, com forte apelo pela paz e contra as armas nucleares durante a
guerra fria.
5-O Movimento Nacionalista Árabe (MNA) foi uma organização nacionalista pan-
árabe influente em grande parte do mundo árabe , particularmente, no movimento
palestino e libanês . Fundada por estudantes da Universidade Americana de Beirute
tendo como referências George Habash e Wadie Haddad.
6-Não há nenhum artigo na Carta das Nações Unidas que permita a partilha de qualquer
país contra a vontade de seu povo. A partilha da Palestina foi única na história das
Nações Unidas – é o primeiro e único exemplo. (Nota do original)
235
votarem a favor. Assim, o Estado colonialista de Israel se implantou forço-
samente no limiar do emergente Terceiro Mundo, sem obter o reconheci-
mento voluntário de um único Estado árabe, africano ou asiático, além da
África do Sul, racista do regime do aparthaid.
Em seguida, Ghassan começou a me contar sobre sua amada Palestina
e como foi forçado a deixá-la, em 1948, junto com seus pais e cinco irmãos.
Ele nasceu em Akka, no dia 9 de abril de 1936, no início da revolta ára-
be palestina contra as forças sionistas e a autoridade do Mandato Britânico.
Durante este tempo, os árabes palestinos fizeram uma greve geral - talvez a
mais longa da história - que durou meio ano. Quando, em 1939, a revolta foi
reprimida, 5.032 árabes foram mortos e 147.760 feridos, enquanto 110 foram
enforcados pelas autoridades britânicas.
Ghassan me contou sobre terrorismo israelense, como forçaram seu
povo a sair. Sua cidade natal, Akka, havia sido atribuída, de acordo com o
plano de partilha das Nações Unidas, aos árabes, contudo, como muitas
outras cidades e aldeias árabes, foi conquistada pelas forças sionistas e seus
habitantes expulsos pela força física ou psicológica.
Os árabes da Palestina estavam naquele momento em pânico após o
massacre da pacífica e desarmada aldeia Deir Yassin. Uma testemunha ocu-
lar, representante da Cruz Vermelha, Jacques de Reynier, relata como 254
mulheres, crianças e velhos foram, deliberadamente e a sangue frio, massa-
crados e muitos de seus corpos jogados em um poço pelos grupos terroristas
sionistas de nomes Irgun e Stern7.
As autoridades sionistas oficiais qualificaram o massacre como um “in-
cidente”. O Irgun, cujo líder Menachem Begin8, mais tarde integrou vários
governos israelenses, convocou uma entrevista coletiva para anunciar a ação,
enquanto os aldeões capturados, sobreviventes de Deir Yassin, foram despi-
dos e desfilaram nus pelos bairros judeus de Al Quds para serem cuspidos.

7-Dessas organizações terroristas sionistas saíram vários integrantes de alto escalão do


Estado colonialista de Israel.
8-O bielorruso Menachem Begin se tornou o sexto primeiro-ministro de Israel em 1977.
236
Mais tarde, foram soltos para contar seu destino, ao mesmo tempo que
carros com alto-falantes passavam por aldeias árabes anunciando: “A menos
que vocês saiam de suas casas, o destino de Deir Yassin será o seu destino”.
Menachem Begin escreveu: “O massacre não foi apenas justificado, mas não
teria havido um Estado de Israel sem a vitória de Deir Yassin”9.
Que o êxodo foi planejado pela política sionista é confirmado pelo ge-
neral de brigada Glubb, relatado em uma conversa entre um oficial britânico
da Legião Árabe da Jordânia e um oficial judeu, em dezembro. O oficial britâ-
nico perguntou se o novo Estado judeu não teria muitos problemas internos,
visto que seus habitantes árabes seriam em número igual ao dos judeus. O
oficial judeu respondeu: “Oh, não! Isso será corrigido. Alguns massacres cal-
culados logo se livrarão deles”10.
A Lidice11 palestina não se chama My Lai12 , mas Deir Yassin. Acon-
teceu em 9 de abril de 1948, no décimo segundo aniversário de Ghassan.
Ele nunca mais comemorou seu aniversário. Todos os anos nessa data, eu, a
viúva de Ghassan, ficarei em silêncio por ele e pelas vítimas inocentes de Deir
Yassin que foram massacradas há vinte e cinco anos. Nessa mesma data, em
1940, meu país, a Dinamarca, foi ocupada pelos nazistas.
A família de Ghassan deixou Akka pouco antes de 15 de maio de 1948,
nessa data, 800.000 árabes haviam fugido do terror sionista. E os árabes con-

9-Menachem Begin. A revolta (New York: Henry Schuman, 1953). (Nota do original)
10-Sir John Bagot Gkubb em Um soldado com os árabes (New York: Harper and
Brothers, 1957). (Nota do original)
11-Lídice é uma pequena cidade da antiga Tchecoslováquia, hoje República Tcheca,
famosa durante a Segunda Guerra Mundial quando foi totalmente destruída e a
grande maioria de seus habitantes assassinados, em junho de 1942, pelos alemães
nazistas como vingança pela morte de seu comandante e segunda maior autoridade
na SS nazista, Reinhard Heydrich. Lídice se tornou um símbolo da crueldade nazista
durante a guerra e diversos países batizaram cidades e vilas com o seu nome, para que
ela jamais fosse esquecida.
12-O massacre de My Lai foi um assassinato em massa de civis vietnamitas desarmados
por tropas dos Estados Unidos no distrito de Sơn Tịnh, província de Quảng Ngãi,
Vietnã do Sul. Considerado um dos tantos crimes de guerra dos Estados Unidos, em
16 de março de 1968, cerca de 504 civis vietnamitas inocentes, sendo 182 mulheres (17
grávidas) e 173 crianças, foram executados com requintes de crueldade por soldados
do exército dos Estados Unidos.
237
tinuaram a fugir, as mulheres e as crianças em primeiro lugar – os homens fi-
caram para defender as cidades e aldeias. Logo Jaffa, Haifa, Lydda etc... foram
“limpas” (a palavra é de Yigael Allon) de sua população árabe.
Quando a família de Ghassan foi expulsa da Palestina, saíram de mãos
vazias. Seu pai escolheu ficar em uma pequena vila libanesa, Ghazie, perto da
fronteira. Queria estar entre os primeiros a voltar para casa após os combates,
como todos os refugiados se tornaram autorizados a fazer de acordo com
a Resolução das Nações Unidas sobre Refugiados Palestinos (194,III, 11 de
dezembro de 1948). Todos sabemos que isso não aconteceu. As autoridades
israelenses não permitiram que nenhum árabe palestino retornasse. Os sio-
nistas queriam o país, mas não seu povo, e assim foi desde o início.
O pai de Ghassan mudou-se com toda a família para uma aldeia nas
montanhas, Zabadanie, na Síria. A vida ali era dura, fome e frio era a dieta di-
ária. Mais tarde, se mudaram para Damasco. O irmão mais velho de Ghassan
e ele começaram a montar livros de bolso para ganhar um pouco e ajudar no
sustento da família de oito membros e de outros oito parentes, que moravam
juntos. Depois de um tempo, ambos continuaram seus estudos na escola no-
turna, trabalhando durante o dia.
Naquela época, tinha treze anos. Sua irmã Fayzeh (mãe de Lamis) ob-
teve seu diploma de ensino médio e, em 1952, foi para o Kuwait, onde se
tornou uma das primeiras professoras do país, sendo uma das muitas palesti-
nas a contribuir para o desenvolvimento dos países árabes como professoras,
engenheiros, médicos, etc.
Depois de passar seu alistamento militar aos dezesseis anos, Ghassan
começou a ensinar em uma escola da UNRWA13 (Agência das Nações Unidas
de Assistência aos Refugiados da Palestina); junto com outro professor foi
responsáveis pelo ensino de 1.200 crianças refugiadas palestinas, porém seu
objetivo mais importante era conscientizar as crianças politicamente.
13-A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos no Oriente
(UNRWA ) é um órgão da ONU, fundado 8 de dezembro de 1949, em apoio aos
refugiados palestinos. Sua ação abrange as crianças deslocadas na Guerra da Palestina
de 1948 e os conflitos subsequentes, bem como seus descendentes. Pelos dados de
2019, mais de 5,6 milhões de palestinos estão registrados na UNRWA como refugiados.
238
Setenta por cento dos alunos de Ghassan na escola da UNRWA se tor-
naram guerrilheiros.
Antes de ingressar na escola da UNRWA, Ghassan trabalhava como
aprendiz em uma gráfica, em Damasco. Em 1955, se tornou membro do
MNA após ser convidado a trabalhar como editor do jornal Al Rai e na im-
pressão do mesmo.
No ano seguinte, juntou-se a sua irmã Fayzeh e a seu irmão Ghazi, no
Kuwait. Os três enviavam a maior parte de seus salários para a família em Da-
masco, assim a família tinha uma renda mensal para o sustento. Nesse meio
tempo, seu pai obteve a permissão para exercer advocacia, em Damasco, local
em que a maioria de seus clientes eram palestinos e pobres.
Durante os seis anos seguintes, no Kuwait, Ghassan continuou seu tra-
balho político. Estava ensinando arte e esporte, e de fato, aqueles anos prova-
ram ser uma parte muito importante de sua vida. Todo o seu tempo livre era
gasto pintando, escrevendo e lendo, principalmente política: Marx, Engels,
Lenin e outros. Em 1960, o Dr. George Habash convenceu Ghassan a deixar
o Kuwait para Beirute para trabalhar no Al Hurriah.
Desde os primeiros dias, em que encontrei Ghassan me senti conforta-
da por um ser humano excepcional. Nosso relacionamento evoluiu através da
causa palestina para um relacionamento pessoal. Apesar de uma situação in-
segura, como palestino, Ghassan não tinha passaporte, nem permissão para
trabalhar, não tinha dinheiro e, o pior de tudo, sofria de uma doença incu-
rável, diabetes. Logo percebemos que só a morte seria capaz de nos separar.
Comecei a dar aulas no jardim de infância. Dois meses depois da
minha chegada ao Líbano, nos casamos e não nos arrependemos. Como a
maioria dos outros palestinos, tivemos dificuldades econômicas e outras.
Em janeiro de 1962, quando a situação política era particularmente instá-
vel, Ghassan teve que permanecer escondido em casa por mais de um mês
por causa da falta de documentos oficiais. Nesse período, escreveu o ro-
mance Homens ao sol, que mais tarde se tornou conhecido em quase todo
o mundo árabe e o dedicou a mim.
239
Ghassan traduzia todos os seus romances e contos para mim enquanto
os escrevia, e também me familiarizei com seus escritos políticos. Sua
compulsão para escrever era ilimitada. Era como se tivesse uma fonte de
palavras e ideias das quais ele queria preencher página após página sobre a
Palestina, seu país e seu povo. Estava sempre ocupado, trabalhando como se
a morte estivesse ao virar da esquina. Ghassan era pintor e designer também.
Uma de suas pinturas desse período mostra o homem crucificado no tempo...
Fui muito influenciada pelas ideias de Ghassan, mas nunca por im-
posição. O mesmo acontecia com nossos amigos estrangeiros, que desco-
bririam a causa palestina por meio dele. Muitos, mais tarde, assumiram a
causa em seus próprios países. Minha relação com a família de Ghassan,
tornou-se muito próxima desde o início, me acolheram com toda hospita-
lidade e cordialidade. Passei a amá-los muito.
Nossa vida de casados foi baseada em confiança, respeito e amor, por
isso sempre foi significativa, bonita e forte. Nosso primeiro filho, um meni-
no, nasceu em 24 de agosto de 1962. Fayez – que significa Victor – recebeu o
nome de seu avô paterno.
Ghassan estava agora mais ocupado do que nunca e, completamente,
envolvido em seu trabalho como escritor e jornalista e, em 1963, lhe oferece-
ram o cargo de editor-chefe de um novo diário, Al Muharrer, representante
de forças nasseristas e progressistas. O jornal logo se tornou o segundo diário
no Líbano e também foi amplamente distribuído para outros países árabes.
Trabalhou por cinco anos neste jornal, ao mesmo tempo em que publicava o
semanário Falastina, o braço palestino da MNA.
Durante 1963-64, a MNA estava a caminho do socialismo científico e,
em 1964, decidiu se preparar para a luta armada na Palestina. Pouco depois, o
primeiro grupo de guerrilheiros foi estabelecido, embora no início não fosse
sensato realizar operações militares, mas contatar os árabes em Israel e criar
uma base para a luta armada que se aproximava.
A MNA logo daria seus primeiros mártires na luta pela libertação da
Palestina. Ghassan dedicou seu romance Tudo o que resta para você (mais
240
tarde receberia o prêmio de literatura libanesa de 1966) a um desses mártires
Khaled Al Haj – “o primeiro a voltar e que ainda está marchando”.
Em 1965, Ghassan foi oficialmente convidado para ir à China e à Índia,
onde conheceu o Ministro do Exterior chinês Chen Lee, o Primeiro-ministro
indiano Shastri e outros líderes políticos desses países. Discutiu o problema
palestino com eles e sem dúvida foi muito influenciado por esta viagem.
Depois de sua segunda viagem à China, participou da Conferência de
Escritores Afro-asiáticos. Fayez, de 4 anos, ganhou uma linda irmãzinha, em
1966. Nós a chamávamos de Laila, em homenagem à heroína de uma das his-
tórias mais famosas do folclore árabe. Laila também é um nome escandinavo,
comum entre os lapões ao norte do Círculo Polar Ártico.
Ghassan adorava seus filhos e comumente escrevia sobre eles. Mesmo
que seu tempo conosco fosse limitado, costumava brincar com as crianças e
lhes ensinava muitas coisas. Raramente perdia a paciência e nunca os batia.
Tinha um imenso prazer com a companhia deles e se estendia para incluir
seus amigos, muitas vezes os levava para o cinema ou participava de suas
brincadeiras em casa.
Uma semana antes da Guerra de Junho de 1967, a mãe de Ghassan
morreu subitamente de ataque cardíaco, em Damasco. Embora o amor por
sua mãe fosse muito real, não derramou uma lágrima durante o funeral,
em vez disso, tentou encorajar seu pai e toda a família. Contudo no
caminho de volta para Beirute, Ghassan desmoronou e pela primeira vez
vi lágrimas em seus olhos. Da mesma forma, quando o presidente Nasser
anunciou sua renúncia, após a Guerra de Junho, o que fez muitas pessoas
perderem a esperança. Ghassan se recusou a sucumbir ao derrotismo.
Em momentos críticos, era incrivelmente forte e tentava dar um pouco
dessa força aos outros. Somente mais tarde expressaria seu sentimento em
escritos políticos e literários.
Nunca tive dúvidas de que Ghassan havia escolhido o caminho correto.
Se tivesse tentado impedi-lo de sua luta e compromisso revolucionário, ainda
poderia ser meu marido, mas não a boa pessoa honesta que eu amo e admiro.
241
Fiz o meu melhor para me juntar a Ghassan e sua luta. Fiz contatos
com pessoas do Ocidente interessadas em saber a verdade sobre a luta pa-
lestina. Uma revista de esquerda dinamarquesa me pediu para escrever um
artigo sobre a Palestina, seria o primeiro de vários. Desde a Guerra de Junho,
escrevi centenas de cartas para velhos e novos amigos na Escandinávia e em
outros países. Uma dessas nossas correspondências foi com o conhecido es-
critor judeu antissionista nos Estados Unidos, Moshe Menuhim (autor de “A
decadência do judaísmo em nosso tempo”). Passamos a considerá-lo como
um de nossos amigos pessoais.
No outono de 1967, Ghassan ingressou no conselho editorial do Al
Amwar, um importante jornal nasserista e se tornou editor-chefe desta
revista semanal. Ao mesmo tempo, começou a desempenhar um papel de
liderança nas atividades informativas palestinas e da FPLP. É fato conhe-
cido que qualquer jornal ou revista para o qual tenha contribuído com
artigos ou editoriais elevaria seus padrões e distribuição rapidamente.
Seus artigos semanais em Al Amwar, “Por detrás das cenas”, devido a sua
análise política precisa, eram regularmente traduzidos pela França e em
outras embaixadas de Beirute.
No entanto, em 1969, Ghassan deixou a segurança de seu emprego no
Al Amwar, para iniciar o semanário político Al Hadaf, mesmo que represen-
tasse uma queda na sua renda. Nunca trabalhou por questões financeiras, sua
inspiração para escrever e trabalhar, incessantemente, foi à luta árabe pales-
tina, a libertação da Palestina. Em julho de 1969, as primeiras edições de Al
Hadaf apareceram com Ghassan como editor-chefe. Estava convencido de
que o jornal transmitiria a mensagem da FPLP e de outras forças progres-
sistas às massas árabes e à opinião pública mundial. Estava certo. Nos dois
anos seguintes, Al Hadaf se tornou um dos melhores semanários políticos do
mundo árabe, onde foi amplamente citado. Muitos de seus artigos e editoriais
foram traduzidos para outros idiomas.
Como teórico político, Ghassan participou da formulação dos progra-
mas políticos e manifestos da FPLP. Grande parte de seu trabalho fazia em
242
casa para estar perto de nós. Muitos de seus artigos e cartazes da FPLP foram
desenhados em casa, com Fayez e Laila como ajudantes dispostos e felizes ao
ver seu pai pintando e desenhando.
Ghassan trabalhou continuamente, contribuindo bastante para Al Ha-
daf. Quando também se tornou porta-voz oficial da FPLP, tinha cada vez me-
nos tempo para mim e para as crianças. Então o tempo que tínhamos juntos
sempre foi muito precioso. Eu não tinha vontade de detê-lo. Diariamente,
seus camaradas davam suas vidas na luta ou acabavam sob tortura nas pri-
sões israelenses. Era seu dever contar ao mundo sobre a Revolução Palestina.
Como o Daily Star colocou em 9 de julho de 1972:
“Ghassan era um soldado que nunca disparou uma arma. Sua arma era
uma caneta esferográfica e sua arena as páginas de jornal. E, mesmo assim,
ele feriu o inimigo mais do que uma coluna de soldados.”
Durante uma ação FPLP de sequestro de quatro aeronaves de com-
panhias ocidentais, não vimos Ghassan por mais de uma semana. Este se
tornou o período mais movimentado em sua ativa vida de porta-voz. Havia
retornado de Amã no último voo, às vésperas do terrível massacre instigado
pelo regime jordaniano contra o povo palestino e seu movimento de resis-
tência, na Jordânia.
Se nenhuma das centenas de correspondentes estrangeiros que ocupa-
vam o então lendário escritório de Al Hadaf, não conseguiram dobrar Ghas-
san em um diálogo, foi porque as respostas que deu sempre foram penetran-
tes, afiadas e precisas. A principal razão é que a causa que estava defendendo,
a luta revolucionária palestina, é justa. Muitos jornalistas e outros que, ho-
nestamente, tentaram entender o conflito no Oriente Médio nos visitaram
em casa, muitos voltaram, alguns se tornaram nossos amigos pessoais.
Ghassan foi um dos que lutou sinceramente pelo desenvolvimento do
movimento de resistência de um movimento nacionalista de libertação Pa-
lestina para um movimento revolucionário socialista pan-árabe, no qual a
Libertação da Palestina seria um componente vital. Ele sempre enfatizou que
o problema da Palestina não poderia ser resolvido, isoladamente, de toda a
situação social e política do mundo árabe.
243
Apesar dos protestos dos sindicatos de escritores e de jornalistas,
Ghassan foi preso em novembro de 1971, por um artigo na Al Hadaf, sobre
o regime reacionário em um determinado país árabe. A imprensa libanesa
registrou seus protestos contra sua prisão em artigos e editoriais.
Por causa de sua doença, passou o encarceramento no hospital da pri-
são, onde teve tempo para ler algumas das peças de Strindbergr e o longo
romance do vencedor islandês do Prêmio Nobel, Halldor Laxness, mas, fora
isso, não conseguia relaxar. Teve que trabalhar e escreveu uma parte de seu
romance inacabado sobre a Palestina. Neste romance, O amante, queria es-
crever sobre toda a luta palestina desde o início contra as autoridades britâ-
nicas e forças sionistas até a presente luta revolucionária pela libertação da
Palestina. Esse projeto estava em sua mente há vários anos. Entrevistou pales-
tinos de toda a Palestina, nos campos e em outros lugares, incluindo os com-
batentes da Revolta Palestina em 1936-39 e que ainda estavam lutando. Havia
planejado terminar O amante durante o verão de 1972. Uma parte dele já está
sendo publicada e, segundo os leitores, é um trabalho forte e comovente.
Além de escrever, pintava muito, principalmente, cavalos. O cavalo
desempenhou um papel importante em algumas de suas histórias e ro-
mances, pois para nós, árabes, disse ele, simboliza beleza, coragem, ho-
nestidade, inteligência, verdade e liberdade. Para mim, o próprio Ghassan
tem todas essas características. Seus cavalos, fez mais de vinte nos últimos
anos, agora estão pendurados nas paredes de nossa família e amigos na
Escandinávia e nos países árabes, nas paredes dos guardas, médicos e en-
fermeiras do hospital da prisão.
A obra literária de Ghassan andou lado a lado com suas atividades
jornalísticas e políticas. Muito antes de sua morte, era considerado um
dos melhores escritores árabes e palestinos. Geralmente, construía toda
a história, romance ou peça em sua mente e só então escrevia tudo em
pouco tempo, fazendo pouquíssimas correções. Todos seus textos foram
manuscritos, nunca fez nenhuma cópia.

244
No Líbano e no mundo árabe em geral, é proibido questionar a religião
e confessionalismo, mas Ghassan, em sua peça Al Bab (“a porta”), conseguiu
fazer isso por meio de uma metafísica árabe que trata da religião e do exis-
tencialismo. Aliás, embora fosse muçulmano e eu cristã, isso não foi obstácu-
lo para nosso relacionamento, pois partilhávamos do mesmo ponto de vista
sobre religião. Em 1964, Al Bab foi traduzido para o francês e apareceu na
revista literária L’Orient em Paris.
O amor de Ghassan pelas crianças foi expresso em sua coleção de con-
tos de 1965, “Um mundo que não é nosso”, dedicado a “Fayez, Lamis e todas
as outras crianças para quem queremos um mundo”. No mesmo ano, publi-
cou “Ensaios sobre a Literatura de Resistência na Palestina”; revelando pela
primeira vez ao mundo árabe a existência de fortes e determinados poetas
árabes palestinos, dentre eles estavam Mahmoud Darwish, Samih Al Kasem,
Tawfik Zayad e vários outros que, mais tarde, se tornaram conhecidos no
mundo árabe e em outros países.
Em 1969, Ghassan escreveu Umm Sa’ad (mãe de Sa’ad) inspirada na
homônima que era uma querida e velha amiga nossa, para ele é o símbolo da
mulher palestina nos campos de refugiados e da classe trabalhadora. O livro
fala diretamente do povo que ela representa, em cujos diálogos, Umm Sa’ad,
é a mulher analfabeta que fala, ele é o intelectual que ouve e faz as perguntas.
Ghassan amadureceu como marxista em sua obra literária. Umm
Sa’ad é escrito por um romancista marxista, mas vinha se desenvolvendo
ideologicamente desde os primórdios da Falastina, de modo que, em seus
últimos anos, também se tornara um analista marxista.
Em 1970, veio seu último romance, Retorno a Haifa, mas deixou dois
romances inacabados e uma peça inédita. Não há dúvida de que Ghassan era
um escritor muito talentoso, reconhecido em todo o mundo árabe. Estou certa
de que um dia esse reconhecimento se estenderá também ao resto do mundo.
Eles o mataram enquanto ainda estava em desenvolvimento, sentiam
que ele era perigoso demais como jornalista, porta-voz, artista e ser humano.

245
O suplemento do Daily Star14, de 16 de julho de 1972, dizia:
“Israel usou o ataque ao aeroporto de Lydda para construir a imagem de
Ghassan como o homem responsável, embora seu campo de trabalho dentro
da FPLP não o tenha envolvido mais diretamente do que os líderes mais anti-
gos. Os israelenses, provavelmente, foram motivados por 2 fatos: primeiro, era
um alvo fácil; segundo, não apenas justificariam (seu assassinato) para o mun-
do exterior, mas também apareceriam como tendo conseguido vingar o ataque
de Lydda”. O mesmo jornal também comentou que a imprensa ocidental, no-
tadamente, o Die Hamburger, Zeitung, La Stampa e The Daily Mail, fizeram o
jogo dos israelenses ao publicar provas falsas do envolvimento de Ghassan na
ação de Lydda, o que dá certa responsabilidade pelo que aconteceu.
Por que tiveram que matar Ghassan dessa maneira?
“Ele era como uma montanha e uma montanha só pode ser destruída
com dinamite”, escreveu um jornal de Beirute sobre ele.
Apenas uma hora após o assassinato, a rádio israelense anunciou que o
porta-voz oficial da FPLP havia sido morto, juntamente com sua esposa, após
a explosão de uma bomba em seu carro.
Os assassinos nos observaram por muito tempo? Sabiam que eu costu-
mava ir ao centro com meu marido todos os sábados? Durante a semana eu
trabalhava em uma escola para crianças com necessidades especiais. Só que
naquele sábado, em particular, não fui com Ghassan. Será que os assassinos
notaram que a garagem costumava ser o playground para todas as crianças
do prédio? Por um acaso as crianças tinham saído naquele dia pouco antes
da explosão. Se o carro tivesse explodido dentro da garagem, uma parte do
prédio teria sido completamente destruída.
Tenho sido uma viúva por quase um ano. O grande apoio moral e aju-
da de nossa família, do movimento de resistência palestino, vizinhos, amigos
conhecidos e desconhecidos de todo o mundo me consolaram muito neste
período. Ainda não é possível para as crianças e para mim acreditar que nos-
so amado Ghassan e nossa querida Lamis não estão mais conosco.
14-O Daily Star era um jornal de Língua Inglesa no Líbano que foi distribuído em todo
o Oriente Médio. Foi fundado 1952 e encerrou suas atividades 2021.
246
O assassinato aconteceu na manhã de sábado, 8 de julho. No dia ante-
rior, Ghassan havia levado Fayez, Lamis, eu e as crianças para a praia. Éramos
oito no carro, poderia ter acontecido naquele dia... na mesma noite voltou
para casa mais cedo, algo que vinha fazendo nas semanas anteriores.
O amor à vida exige violência. Ghassan não era um pacifista. Ele foi
morto na luta de classes como Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Ernst
Thalmann, Lumumba e Che Guevara, como eles, amava a vida. Como eles,
viu a necessidade de violência contra a opressão das classes exploradoras e
apesar das recorrentes ameaças contra sua vida, não foi subjugado.
O movimento de libertação palestino foi forçado a responder à violên-
cia com violência, sacrificando-se em uma luta desigual, enfrentando a morte
todos os dias. Um correspondente ocidental perguntou a Ghassan pouco an-
tes de seu assassinato: “A morte tem algum significado para você?”
“É claro que a morte significa muito. O importante é saber o porquê.
O auto sacrifício, dentro do contexto da ação revolucionária, é uma expres-
são da mais alta compreensão da vida e da luta para tornar a vida digna do
ser humano. O amor pela vida de um indivíduo torna-se um amor pela vida
das massas de seu povo, e a rejeição de que a vida persista em ser cheia de
contínua miséria, sofrimento e dificuldades. Assim, sua compreensão da vida
se torna uma virtude social, capaz de convencer o lutador militante de que
o auto sacrifício é uma redenção da vida de seu povo. Esta é uma expressão
máxima de apego à vida.”
Frequentemente visitamos os túmulos de Ghassan e Lamis. Eles estão
enterrados nas sombras das árvores, a terra está seca e vermelha como o solo
da Palestina, de onde seu povo foi expulso. Por sua luta para dar ao povo pa-
lestino a possibilidade de retornar as suas casas na Palestina, teve que pagar
com a vida. As pessoas o amavam e ele expressou suas esperanças e sonhos
provando que a vida pode ser diferente da miséria dos campos de refugiados.
As dezenas de milhares que acompanharam Ghassan ao túmulo, a
maior manifestação popular desde a morte do presidente Nasser, eram tra-
balhadores e camponeses, intelectuais, refugiados em campos no Líbano,
membros de diferentes grupos do movimento de resistência palestino, repre-
247
sentantes da maioria dos partidos políticos e personalidades da vida pública.
São os mesmos que afluíram às centenas para nossa casa, nos arredores de
Beirute, nos dias que se seguiram ao assassinato. Trabalhadores, intelectu-
ais, artistas conhecidos e membros de partidos políticos de todo o mundo
expressaram sua solidariedade com o movimento de libertação e com sua
família, ao mesmo tempo, prometeram continuar a luta pela qual Ghassan
dedicou sua vida.
Às vezes, passo a manhã no pequeno jardim que era o orgulho de
Ghassan. Lembro-me de como Hussein, o pai de Lamis, chegou feliz, na-
quela noite de sábado, para dizer à filha que ela havia sido aceita na Facul-
dade de Medicina de Amã para começar depois das férias de verão. Quando
chegou, sua filha estava morta. Agora, quando os pais de Lamis falam sobre
sua filha e Ghassan, seus olhos brilham e suas vozes são fortes. É impor-
tante para eles que outros saibam sobre Lamis e Ghassan, sobre suas vidas,
sobre a esperança e o desejo de que o povo palestino se una, disperso como
está pelo mundo árabe.
As atividades literárias de Ghassan começaram de fato com um pe-
queno livro para Lamis. Durante toda a sua vida ela foi sua musa. Naquele
sábado, 17 anos depois, foram mortos pela mesma bomba. Quando, após o
funeral, tentei confortar Hussein, ele disse: “Ela sempre amou Ghassan, sua
morte junto a ele foi seu presente para ele”. Quase todos os anos, Ghassan
enviava um livro para Lamis, escrito apenas para ela. Foram escritos à mão e
ilustrados com seus próprios desenhos.
Mesmo que Ghassan tivesse muitos oponentes políticos, não tinha
inimigos pessoais, pelo contrário, era querido e respeitado até mesmo por
aqueles com quem discordava. Seus oponentes costumam se encontrar com
ele, o seguiram até o túmulo e eu os encontrei em nossa casa, quando vieram
expressar sua solidariedade.
Os assassinos de Ghassan esperavam encorajar o derrotismo entre
os refugiados palestinos e uma divisão no movimento de resistência, no
entanto não conseguiram. As pessoas entendiam a grandeza de Ghassan,
o amavam e mostravam seu amor fechando fileiras na luta.
248
Para Ghassan, meu marido
e professor -
de Anni Kanafani

249
A carta aberta escrita, em 1973, por Anni Kanafani,
viúva de Ghassan Kanafani, aproximadamente um ano
após sua morte remete a dimensão afetuosa entre ambos, o
significado da vida e do assassinato de Ghassan.
É possível, a partir do relato do funeral e da análise de
Anni, compreender a dimensão, que só se agigantará ao longo
dos anos, da figura dele não só para esquerda palestina, mas
para todo o povo palestino.

Nota do organizador

250
Para Ghassan - meu marido e professor,1

Você disse uma vez: “A história de um povo não é obra de um indiví-


duo, mas a vontade de se unir à luta incessante das massas para derrotar todo
tipo de exploração nacional e de classe”.
Eu acredito que você estava certo; mas pessoas grandes e honestas
como você, Ghassan, são aquelas que dão exemplo para as pessoas que lu-
tam. Você provou ao seu povo palestino que eles estão travando uma batalha
justa e, agora com sua morte, você os está encorajando a continuar essa luta.
Vim para o Líbano há mais de 10 anos para “estudar” o problema da
Palestina. Em você encontrei a Palestina - a terra e seu povo - e através do
nosso casamento me tornei parte da Palestina, mãe de nossos dois filhos pa-
lestinos, Fayez e Laila.
Desde o primeiro momento em que nos conhecemos, confiei em você,
Ghassan. Você sempre foi completamente honesto, mesmo no momento de
propor casamento, você colocou as cartas na mesa - , sem futuro, sem di-
nheiro, sem passaporte e uma doença crônica muito grave2. Tudo isso não
fazia diferença para mim - era você, Ghassan, que eu amava e admirava.
Apesar das muitas “promessas” quebradas, você me deu quase onze anos - os
mais felizes e significativos da minha vida - dos quais posso tirar forças para
os anos difíceis que virão.
Para Fayez, Laila e eu, você não foi apenas um pai e marido
maravilhoso, também foi um professor e um camarada. Aos domingos,
você se entregava completamente a nós três; adorava nossa casa; trabalhar
no jardim e colocar as mãos na terra; brincar com as crianças e os gatos;
tomar café, enquanto traduzia para mim suas histórias e artigos. Às vezes,
apenas conversávamos juntos. Você gostava de trabalhar - escrever, pintar,

1-Texto extraído do livro “Ghassan Kanafani by Anni Kanafani”. Publicado em abril de


1973 pelo “Palestine Research Center”. Beirute, Líbano. Tradução: Yasser Jamil Fayad.
2-Ghassan Kanafani sofria de diabetes, dada à época e das condições de vida dele, era
uma sentença de morte. (Nota do organizador)
251
jardinagem... suas mãos e mente boas e bonitas estavam sempre criando,
deixando para nós, para as pessoas.
Sua grande capacidade de convencer os visitantes estrangeiros da justa
causa do povo palestino era bem conhecida. Você foi capaz de explicar em
termos simples as ideias políticas mais difíceis - é por isso que as pessoas
o ouviram, leram seus artigos e livros e continuarão a fazê-lo. E é por isso
que os inimigos tiveram que destruí-lo, mas eles não conseguiram. Ninguém
pode destruir um ser humano honrado e enraizado na luta revolucionária de
seu povo. Você sempre estará conosco, Ghassan - um mártir, um símbolo,
uma chama de libertação e revolução do povo palestino e para os outros po-
vos afro-asiáticos.
Parece a Fayez, Laila e a mim que você acabou de iniciar uma longa
jornada junto com Lamis, a quem você tanto amou e que o inspirou a escre-
ver histórias para ela desde o momento em que ela nasceu. Nossa querida
Lamis - tão boa, tão meiga, tão dócil e inteligente que todos tinham que
amá-la. Como você, ela amava os seres humanos e a vida - ela amava muito
seus pais e irmãos... e seu amor e admiração por você, Ghassan, eram profun-
dos e sinceros. Naquela manhã de sábado, 8 de julho, porque tive que ficar em
casa cuidando de Laila e Fayez, nossa querida Lamis se juntou a você em uma
inesperada viagem de volta a sua amada Palestina.
O cortejo fúnebre para você e Lamis foi a promessa do povo que a luta
revolucionária continuaria e cresceria. Estou, eternamente, orgulhosa por ser
sua esposa - não queria chorar, mas continuar sua luta. Enquanto caminhava
com nossa família, Umm Sa’ad e todas as pessoas fortes e maravilhosas dos
campos de refugiados e de outros lugares, senti tanta força que chamei Fayez
para se juntar a nós. Em sua caminhada orgulhosa todos reconheceram que era
filho de Ghassan, ninguém poderia duvidar que ele, junto com nossa amada
Laila e outras crianças palestinas, assumiram sua tocha e continuaram a luta do
povo palestino. Algum dia a Palestina se tornará aquele mundo que você queria
dar a Lamis, Fayez, Laila e todas as outras crianças que não têm um mundo.

Sua, Anni.
252
Ao meu pai, Ghassan
Kanafani -
de Fayez Kanafani

253
Mesmo diante da severidade e do rigor exigidos na luta
para libertar a Palestina, Ghassan Kanafani não deixou de ser
uma figura amorosa, para além da figura icônica do militante
aguerrido, sagaz intelectual orgânico da nobre causa palestina
e brilhante escritor - o que queremos demonstrar é o aspecto
afetuoso das relações humanas que ele nutriu ao longo da vida.
A carta aberta escrita, em 1973, por Fayez, seu filho,
que à época era apenas uma criança de 10 anos de idade
demonstra a relação paternal afetuosa entre ambos.

Nota do organizador

254
Ao meu pai, Ghassan Kanafani,1

Quando eu era pequeno, meu pai costumava me levar ao Al


Muharrer2, me fazia sentar em sua própria cadeira e pedia para fazer
alguns desenhos. Quando ele se mudou para Al Amwar, costumava
acompanhá-lo lá também. Então ele se mudou para Al Hadaf3 e me levou,
junto com minha irmã Laila, para conhecer seus colegas lá. Meu pai era
um bom homem. Ele me comprou tudo o que eu queria e eu ainda o amo,
embora ele esteja morto.
Achei o árabe difícil, mas ele me ensinou muitas coisas. Como re-
sultado, pude ler todos os artigos escritos sobre ele. Eu gostava de ter um
pai assim, porque ele era muito inteligente e as pessoas o amavam.
Quando estávamos na Dinamarca, Laila e eu costumávamos sentir
muita falta dele e pedíamos para minha mãe que nos levasse de volta para
ele. Quando voltávamos, costumávamos vê-lo trabalhando no jardim to-
dos os domingos, plantando flores com mãos gentis.
Às vezes, trabalhávamos juntos e, quando fazia calor, tirávamos
as camisas. Depois do trabalho, muitas vezes ele me ensinava a usar
um pequeno rifle que havia comprado para mim. Eu gostava de assistir
televisão com ele.
Quando eu crescer quero ser como meu pai e vou lutar para voltar
à Palestina, a terra natal de meu pai, a terra sobre a qual ele e Umm Sa’ad4
costumavam me falar muito.

1-Texto extraído do livro “Ghassan Kanafani by Anni Kanafani”. Publicado em abril de


1973 pelo “Palestine Research Center”. Beirute, Líbano. Tradução: Yasser Jamil Fayad.
2-Jornal diário publicado em Beirute
3-Semanário fundado por Ghassan Kanafani para representar a visão da Frente Popular
de Libertação da Palestina (FPLP).
4 Uma velha amiga de Ghassan Kanafani do campo de refugiados no Líbano.
255
A partir de agora, vou ajudar muito minha mãe e minha irmã, para
que não sintam tanto a falta dele. Mas nós nunca vamos esquecê-lo, ou a
Lamis que morreu com ele e a quem todos nós amamos muito - Lamis
que sempre foi gentil e nunca perdia a paciência.

Fayez Ghassan Kanafani.

256
Carta para Anni -
de George Habash

257
Na dura luta para libertar a Palestina, a camaradagem
e a solidariedade entre os que continuam na luta e aos que
são martirizados é expressa também pela proteção às famílias
desses lutadores assassinados.
A Carta de George Habash (Lida, 2 de agosto de 1926
- Amã, 26 de Janeiro de 2008), figura central na história da
esquerda palestina e famoso secretário-geral na Frente Popular
de Libertação da Palestina, o maior partido da esquerda
Palestina, para a viúva de Ghassan, Anni Kanafani, logo após
o funeral em Julho de 1972, é uma declaração de lealdade e
camaradagem para com um mártir da nobre causa palestina
e sua família.

Nota do organizador

258
Querida Anni,1

Irrita-me tanto que o inglês, não sendo minha língua materna, não me
permita expressar tudo o que sinto, tudo o que quero dizer, neste momento
crucial e difícil.
Ghassan, para mim pessoalmente e para nossa Frente como um todo,
era tão querido, tão precioso, tão indispensável... Devo confessar que recebe-
mos um golpe doloroso.
Agora Anni, todos nós, você em particular, enfrentamos a seguinte
pergunta: O que devemos fazer pelo homem, por um camarada, tão precioso
e tão sincero? Só há uma resposta: sofrer corajosamente todas as coisas que
nenhum de nós pode evitar e depois trabalhar mais e trabalhar melhor, lutar
mais e lutar melhor.
Você sabe muito bem, querida irmã, que Ghassan estava lutando por
uma causa justa, e que o povo palestino, há mais de 50 anos, luta uma guerra
justa. Recentemente, verdadeiros revolucionários em todo o mundo estão de-
fendendo e apoiando nossa justa luta. Isso significa que o sangue de Ghassan,
somado ao grande fluxo de sangue que nosso povo vem pagando há 50 anos,
é o preço que devemos pagar para conquistar a liberdade, justiça e paz.
Não preciso dizer que a experiência dos oprimidos em todo o mundo
diz que esta é a única maneira de derrotar o sionismo, o imperialismo e as
forças reacionárias.
Anni, eu sei muito bem o que a perda de Ghassan significa para você, mas
lembre-se que você tem Fayez, Laila e milhares de irmãos e irmãs que são mem-
bros da FPLP e, acima de tudo, tem a causa pela qual Ghassan estava lutando.
O que mais me dói, neste momento, é que Hilda e eu não podemos
estar ao seu lado. As razões são bem conhecidas para você... eu suponho. É

1-Texto extraído do livro “Ghassan Kanafani by Anni Kanafani”. Publicado em abril de


1973 pelo “Palestine Research Center”. Beirute, Líbano. Tradução: Yasser Jamil Fayad.
259
uma dor profunda para mim não ver o Ghassan e não poder falar com ele
antes do enterro.
Eu repito: precisamos da sua coragem e do seu sentimento de que você
não está e nunca estará sozinha.
Aguardando a primeira oportunidade de vê-la, Hilda e eu continua-
mos sendo sua irmã e irmão mais sinceros.

260
Carta aberta -
de Imad Shehadeh

261
O assassinato de Ghassan Kanafani gerou uma série
de manifestações públicas entre elas na importante imprensa
libanesa, que historicamente possui relevância em todo
mundo árabe.
A carta que se segue representa, em sentido geral, essas
manifestações e evidencia a relação de respeito que jornalistas,
intelectuais e artistas tinham para com mártir palestino.

Nota do organizador

262
Para Anni de Imad Shehadeh1

Prezada Sra. Kanafani2

Quando seu marido perdeu seu país, ele não o despediu com uma lá-
grima. Ele sabia que as lágrimas nunca corrigem um erro ou recuperam um
direito, que a dor seria uma consagração de sua perda, que a dor seria um
anúncio público da derrota. Seus olhos estavam secos, quando ele se compro-
meteu com seu país e seu povo.
Perdemos seu marido. Não o despediremos com uma lágrima. Cho-
rar por ele agora seria negar tudo o que ele representava, tudo pelo que
ele morreu.
Ghassan Kanafani morreu sozinho. Seu povo vive e, através dele, sua
esperança, sua coragem e sua determinação sobrevivem. Ghassan Kanafani,
falecido, foi dotado de onipresença por seu povo.
Quando seu povo perder de vista as esperanças dele, quando perder a
firmeza da coragem dele, quando abdicar da determinação dele — esse será
o momento de lamentá-lo.
Você perdeu o marido. Seus filhos perderam o pai. Para confortá-los,
podemos apenas oferecer o pensamento de que seu marido e o pai deles não
viveu em vão, nem teve uma morte sem sentido. Sua vida e sua morte deixa-
ram milhões de pessoas orgulhosas de sua identidade.

Atenciosamente,
Imad Shehadeh

1-Texto extraído do livro “Ghassan Kanafani by Anni Kanafani”. Publicado em abril de


1973 pelo “Palestine Research Center”. Beirute, Líbano. Tradução: Yasser Jamil Fayad.
2-Carta aberta no Daily Star de 16 de julho de 1972. O Daily Star era um jornal de língua
inglesa no Líbano que foi distribuído em todo o Oriente Médio. Foi fundado em 1952,
encerrou suas atividades em 2021.
263
Ghassan Kanafani
- seleção de
escritos políticos
e literários

264
Artista: Nabil Anani

265
“Temos uma causa pela qual vale lutar... Isso é muito!
O povo palestino prefere morrer de pé do que perder a causa.”

Ghassan Kanafani

266
Análise histórica marxista:
A Revolta de 1936-1939
na Palestina

267
Texto clássico de análise marxista do principal momento
histórico de luta do povo palestino contra o colonialismo
sionista e britânico, anterior à Nakba. Ghassan expõe de forma
brilhante o movimento das classes sociais palestinas, assim
como as articulações com forças externas, desnudando os
atores, sujeitos, instrumentais e objetivos.
Trata-se de seu texto político mais importante, que serviu
e serve para a formação política de esquerda na Palestina e em
todo o mundo.

Nota do organizador

268
Entre 1936 e 1939, o movimento revolucionário palestino sofreu severo
revés nas mãos de três inimigos que se constituíram, juntos, na principal
ameaça ao movimento nacionalista na Palestina, em todos os estágios
subsequentes de sua luta: a liderança local reacionária; os regimes dos estados
árabes vizinhos e o inimigo imperialista-sionista. Este estudo concentra-se
nas estruturas de cada uma dessas forças e na relação dialética entre elas.
A intensidade da experiência nacionalista palestina, que começou
em 1918 e foi acompanhada de certa forma pela luta armada, não pode se
refletir na superestrutura do movimento nacional palestino, que permaneceu
virtualmente sob controle da liderança semifeudal e semiclerical. Isso se deu
basicamente devido a dois fatores interligados:
1-A existência e a efetividade do movimento sionista, que deu à questão
nacional uma predominância relativa sobre as contradições sociais.
O impacto dessa questão era sistematicamente sentido pelas massas
árabes palestinas, que foram as principais vítimas da invasão sionista
apoiada pelo imperialismo britânico;
2-A existência de um conflito de interesses significativo entre a
liderança local feudal/clerical e o imperialismo britânico. Era de
interesse da classe dominante a promoção e o apoio a um certo grau
de luta revolucionária, ao invés de aliança completa com o poder
imperialista. Os imperialistas britânicos encontraram nos sionistas
“um aliado mais adequado”.
Tais fatores imprimiram à luta do povo palestino características par-
ticulares que não se aplicavam à luta nacionalista árabe em geral. Como
resultado, a liderança tradicional participou de uma forma mais avançada
de ação política (a luta armada) – ou ao menos a tolerou. Levantou reivin-
dicações progressivas e, ao fim e ao cabo, apesar de sua natureza reacio-
nária, proveu uma direção progressiva durante uma fase crítica da luta
nacional palestina. Entretanto, é relevante explicar como essa liderança
feudal/clerical conseguiu permanecer à frente do movimento nacionalista
Texto gentilmente cedido os direitos de tradução pela Editora Sundermann: A revolta de
1936 -1939 na Palestina – 2015. Mantido com todas as notas dessa publicação.
269
por tanto tempo (até 1948). A transformação da estrutura econômica e
social da Palestina, que ocorreu rapidamente, afetou basicamente o setor
judaico e se deu às expensas da pequena e média burguesia palestina, bem
como da classe trabalhadora árabe. A transição de sociedade semifeudal
para capitalista foi acompanhada por uma crescente concentração de po-
der econômico nas mãos da máquina sionista e, consequentemente, da
sociedade judaica na Palestina. É significativo que os árabes palestinos
defensores da conciliação, que se fizeram conhecidos nos anos 1930, não
eram fazendeiros ou camponeses ricos, mas sim elementos da alta bur-
guesia urbana, cujos interesses gradualmente coincidiram com os interes-
ses expansionistas da burguesia judaica. Essa última, através do controle
do processo de industrialização, foi criando seus próprios agentes.
Enquanto isso, os países árabes ao redor da Palestina jogavam dois
papéis conflitivos entre si: por um lado, o movimento de massas pan-árabe
servia de catalisador do espírito revolucionário das massas palestinas, já que
existia uma relação dialética entre os palestinos e as lutas árabes em geral. Por
outro lado, os regimes estabelecidos nos países árabes faziam de tudo para
impedir e minar o movimento de massas palestino.
O conflito cada vez mais agudo na Palestina ameaçava contribuir para
o desenvolvimento mais violento da luta nesses países, criando um potencial
revolucionário que suas classes dirigentes não podiam desprezar.
As classes dominantes árabes foram forçadas a apoiar o imperialismo
britânico contra seus similares na Palestina, que lideravam o movimento na-
cionalista em curso naquelas terras.
Em consonância, a aliança sionista-imperialista continuou a crescer.
O período entre 1936-1939 foi testemunha não só da cristalização do cará-
ter militarista e agressivo da sociedade colonial implantada firmemente pelo
sionismo na Palestina, mas também da relativa contenção e derrota da clas-
se trabalhadora local. Isso teve um efeito radical no curso da luta. Durante
esse período, o sionismo, em colaboração com o poder mandatário britâni-
co, conseguiu minar o desenvolvimento de um movimento sindical judaico
270
progressivo e uma unidade proletária árabe-judaica. O Partido Comunista
Palestino foi efetivamente isolado tanto dos trabalhadores árabes como dos
judeus, e a reacionária Histadrut dominou completamente o movimento sin-
dical judaico. A influência das forças progressivas árabes dentro de suas fede-
rações sindicais em Haifa e Jaffa diminuiu, o que deixou o espaço aberto ao
controle de lideranças reacionárias que monopolizaram a ação política.

Antecedentes: os trabalhadores

A imigração judaica para a Palestina não era simplesmente uma ques-


tão moral ou nacional. Tinha implicação direta sobre a situação econômica
dos árabes da Palestina, afetando sobretudo os pequenos e médios proprietá-
rios rurais, os trabalhadores e certos setores da pequena e média burguesia.
O caráter nacional e religioso, dado à imigração judaica, somente agravou os
reflexos econômicos.
Entre 1933 e 1935, 150 mil judeus imigraram para a Palestina, elevando
a parcela dessa população no país a 443 mil, ou seja, 29,6% do total. De 1926 a
1932, a média anual de imigrantes foi de 7.2011. Esse volume aumentou para
42.985 entre 1933 e 1936, como resultado direto da perseguição nazista na
Alemanha. Em 1932, 9 mil judeus alemães entraram na Palestina; em 1933,
30 mil; em 1934, 40 mil; e em 1935, 61 mil2. Três quartos dos novos imigrantes
se estabeleceram nas cidades. O nazismo aterrorizou os judeus e os forçou a
sair da Alemanha. Mas foi o capitalismo “democrático” o responsável por
direcionar um número comparativamente grande de imigrantes judeus para
a Palestina, em colaboração com o movimento sionista. De 2,562 milhões
de judeus que fugiram da perseguição nazista, os Estados Unidos aceitaram
somente 170 mil (6,6%), o Reino Unido, 50 mil (1,9%), enquanto a Palestina
recebeu 8,5%, e 1,930 milhão (75,2%) encontraram refúgio na URSS3. O

1-Himadeh, Said (ed.), Economic Organization of Palestine, American University of


Beirut, Beirute, 1939, p. 32.
2-Palestine Studies, Beirute, 1969.
3-Weinstock, Nathan, Le Sionisme - Contre Israel. Maspero, Paris, 1969.
271
severo impacto econômico da imigração para a Palestina pode ser observado
quando se considera o percentual comparativamente elevado de colonos
judeus basicamente capitalistas: em 1933 eram 3.250 (11%); em 1934, 5.124
(12%); e em 1935, 6.309 (10%)4.
De acordo com estatísticas oficiais, 1.370 imigrantes judeus e seus
17.119 dependentes que entraram na Palestina entre 1932 e 1936 possuíam
PL5 1 mil ou mais. E 130 mil foram oficialmente registrados como “em bus-
ca de trabalho” ou “dependentes de imigrantes já estabelecidos”6. Em outras
palavras, a imigração destinava-se não apenas a assegurar uma concentração
de capital judaico-europeu na Palestina que viria a dominar o processo de
industrialização, mas também a viabilizar esse esforço com um proletariado
judeu. A política de “trabalho exclusivo para judeus” teve graves consequên-
cias, pois levou ao rápido surgimento de padrões fascistas na sociedade de
colonos judeus. Além disso, possibilitou o desenvolvimento de uma competi-
ção entre os proletariados árabe-palestino e judeu, os camponeses, pequenos
proprietários e trabalhadores rurais árabes-palestinos e judeus. Esse conflito
também se estendeu às classes altas, já que os pequenos proprietários e a mé-
dia burguesia urbana árabe-palestina enxergaram no crescente capital judeu
uma ameaça a seus interesses.
Em 1935, por exemplo, os judeus controlavam 872 de um total de
1.212 estabelecimentos industriais na Palestina, empregando 13.678 tra-
balhadores, enquanto os demais eram controlados por árabes-palestinos e
empregavam 4 mil trabalhadores. O investimento industrial judaico totali-
zava PL 4,391 milhões, ante 704 mil dos árabes-palestinos. A produção das
empresas judaicas atingia PL 6 milhões, contra PL 1,545 milhão das árabes-
-palestinas. Além disso, o capital judeu controlava 90% das concessões do
governo do mandato britânico, equivalentes a um investimento total de PL
5,789 milhões e 2.619 empregos7.

4-Ibid.
5-Liras palestinas (N. do E.).
6-Himadeh, op. cit., pp. 26, 27.
7-Weinstock, op. cit.
272
Um censo oficial de 1937 indicava que um trabalhador judeu recebia
145% a mais em salários que um árabe-palestino. Na indústria têxtil, a dife-
rença entre trabalhadoras judias e árabe-palestinas atingia 433%, e na indús-
tria de tabaco, 233%8. “Em julho de 1937, o salário real de um trabalhador
árabe-palestino comum caiu 10%, enquanto o do judeu cresceu 10%.”9
A situação levou a um colapso quase completo da economia árabe na
Palestina, afetando basicamente os trabalhadores árabes-palestinos. Em seu
depoimento à Comissão Real Peel, George Mansour, secretário da Federação
de Trabalhadores Árabes-Palestinos de Jaffa, indicou que 98% dos trabalha-
dores árabes-palestinos tinham um nível de vida “bem abaixo da média”.
Baseada num censo abrangendo mil trabalhadores em Jaffa em 1936, a
federação descobriu que a renda de 57% dos trabalhadores árabes era menor
que PL 2,75 (a renda média mínima para uma família era de PL 11); de 12%
era inferior a PL 4,25; de outros 12%, a PL 6; de 4%, a PL 10; de 1,5%, a PL 12;
e de 0,5%, a PL 1510.
Quando o mandato proibiu uma manifestação de quase mil trabalha-
dores desempregados em Jaffa em 6 de junho de 1935, a federação emitiu
um comunicado alertando que, a menos que seus problemas fossem resol-
vidos, “o governo seria obrigado rapidamente a dar pão ou balas”11. Com a
deterioração contínua das condições de vida dos trabalhadores um levante
parecia iminente.
George Mansour (que fora anteriormente um membro do Partido
Comunista) incluiu dados chocantes em seu relato para a Comissão Peel: ao
final de 1935, 2.270 trabalhadores e trabalhadoras estavam desempregados
apenas na cidade de Jaffa, cuja população era de 71 mil habitantes12. Mansour

8-Himadeh, op. cit., p. 373.


9-Ibid, p. 376.
10-Collection of Arab Testimonies in Palestine before the British Royal Commission, Al
Itidal Press, Damasco, 1938, p. 54.
11-Ibid., p. 55.
12-Himadeh, op. cit. “Só em Jaffa o número de desempregados chegou a 4 mil após
1936”, cf. nota 5, p. 55.
273
apontou cinco razões para o alto índice de desemprego, quatro das quais
conectadas diretamente à imigração judaica:
1) assentamento de novos imigrantes;
2) migração urbana;
3) demissão de trabalhadores árabes de seus empregos;
4) situação econômica em deterioração;
5) política discriminatória do mandato em favor dos trabalhadores judeus13.
No período de nove meses, o número de trabalhadores vinculados à His-
tadrut cresceu em 41 mil. De acordo com um artigo publicado no jornal Davar
nº 3.460, ao final de julho de 1936, esses somavam 115 mil. Datado do mesmo
ano, relatório oficial do governo (página 117) indicava que esse número era de 74
mil ao final de 193514.
A política de demitir trabalhadores árabes-palestinos de empresas e
projetos controlados pelo capital judaico culminou com o início de embates
violentos. Nos quatro assentamentos judeus de Malbis, Dairan, Wadi Hunain
e Khadira, havia 6.214 trabalhadores árabes-palestinos em fevereiro de 1935.
Após seis meses, eram apenas 2.276 e, um ano depois, 61715. Estavam ocor-
rendo ataques contra os trabalhadores árabes-palestinos. Em certa ocasião,
por exemplo, a comunidade judaica forçou um empreiteiro árabe-palestino
e seus trabalhadores a abandonarem seu posto no edifício Brodski em Haifa.
Entre aqueles que estavam sistematicamente perdendo seus empregos, en-
contravam-se trabalhadores em pomares, fábricas de cigarros, canteiros de
obras, construção etc..16
Entre 1930 e 1935, as exportações da indústria de pérolas árabe-pa-
lestina caíram de PL 11.532 para PL 3.777 por ano. O número de fábricas
de sabão árabes-palestinas passou de 12 em 1929 para quatro em 1935 ape-
nas em Haifa. Suas exportações baixaram de PL 206.659 em 1930 para PL
79.311 em 1935.17

13-Collection, op. cit, p. 55.


14-Ibid., p. 55
15-Davar nº 3.462 (ver nota 13, p. 661.)
16-Collection, op. cit., p. 15.
17-Ibid., p. 66.
274
Estava claro que o proletariado árabe sucumbiu, “vítima do colonialis-
mo britânico e do capital judaico, sendo o primeiro o principal responsável”.18
Yehuda Bauer escreveu19: “Às vésperas dos distúrbios de 1936, a Pales-
tina era possivelmente o único país no mundo, além da URSS, não afetada
pela crise econômica mundial; de fato, ela gozava de verdadeira prosperi-
dade, devido à importação maciça de capitais (mais de 30 milhões ingres-
saram na Palestina). O capital estrangeiro não foi o bastante para todos os
programas de investimento.” Essa prosperidade, entretanto, estava baseada
em fundamentos frágeis que entraram em colapso, conforme o fluxo de
capitais privados cessou, dado o temor de guerra no Mediterrâneo. “O sis-
tema de crédito entrou em colapso. Havia indicações de desemprego forte,
e a atividade de construção em grande parte diminuiu. Os trabalhadores
árabes-palestinos eram demitidos tanto por patrões árabes como judeus, e
uma parte retornava as suas vilas. A consciência nacional crescia devido ao
agravamento da crise econômica.”20
Entretanto, Bauer omite o fator primário: a contínua imigração
judaica. Sir John Hope Simpson escreveu em seu relatório que “foi uma
má política, e talvez perigosa, permitir o investimento de grande soma de
dinheiro em indústrias não lucrativas na Palestina para justificar uma maior
imigração”. De fato, o argumento de Bauer era infundado, já que o fluxo de
capitais judeus continuou durante os anos a que ele se refere e atingiu seu
clímax em 1935, e o número de imigrantes também se expandiu durante
esses anos (o capital investido nas indústrias e firmas comerciais judaicas
cresceu de PL 5,371 milhões em 1933 para PL 11.637.300 em 1936).21 Além
disso, a demissão de trabalhadores árabes por empregadores judeus começou
muito antes desse período.22 Ao mesmo tempo, uma grande massa de

18-Ibid., p. 59.
19-Yehuda Bauer, “The Arab Revolt of 1936”, New Outlook, vol. 9 nº 6 (81). Tel-Aviv,
1966, p. 50.
20-Ibid., p. 51.
21-Op. cit., p. 323.
22-Em 1930, o número de árabes trabalhando na construção civil em Jerusalém caiu de
1.500 para 500, enquanto o número de judeus subiu de 550 para 1.600.
275
camponeses árabes-palestinos era despejada e expulsa de suas terras, como
resultado da colonização judaica de áreas rurais.23 Eles emigravam para as
cidades, enfrentando desemprego crescente. A máquina sionista aproveitou-
se da rivalidade entre os trabalhadores palestinos e judeus. Posteriormente,
esquerdistas “israelenses” observaram que os trabalhadores judeus não
se mobilizaram uma única vez por questões materiais ou pela federação
sindical num período de 50 anos de forma a desafiar o regime “israelense”.
“O proletariado judeu não conseguia se mobilizar por suas próprias causas.”24
Essa situação era resultado do eficiente planejamento sionista. Relem-
brando as palavras de Herzl: “Terras privadas em áreas alocadas para nós têm
que ser tomadas de seus donos. Habitantes pobres têm que ser rapidamente
evacuados para fora das fronteiras após assegurar-lhes empregos nos países
de seu destino. Deve-se negar-lhes emprego em nosso país. Quanto aos gran-
des proprietários, eles terminarão juntando-se a nós.”25
A síntese da política da Histadrut está expressa em sua declaração de
que “permitir que árabes penetrem no mercado de trabalho judeu implicaria
que o fluxo de capitais judeus seria empregado a serviço do desenvolvimento
árabe, o que é contrário aos objetivos sionistas. Além disso, o emprego de
árabes nas indústrias sionistas levaria à divisão de classes e de raças na Pales-
tina: capitalistas judeus empregando trabalhadores árabes. Se isso for permi-
tido, nós estaremos introduzindo na Palestina as condições que levaram ao
surgimento do antissemitismo.”26 Assim, a ideologia e prática que caracteri-
zavam o processo de colonização desenvolviam características fascistas nas
organizações sionistas, diante da escalada do conflito com a sociedade árabe
na Palestina. O sionismo usava as mesmas ferramentas que o fascismo na Eu-
ropa. O trabalhador árabe estava na base de uma complexa pirâmide social e

23-Até 1931, os sionistas expulsaram 20 mil camponeses árabes-palestinos, após


comprarem a terra onde eles trabalhavam.
24-Haim Hanagbi, Moshe Machover, Akiva Orr, “The Class Nature of Israel”, New Left
Review (65), Jan-Fev. 1971, p. 6.
25-Herzl, Theodor, Selected Works, Newman Ed., Vol. 7, Livro 1, Tel Aviv, p. 86.
26-Exco Foundation for Palestine Inc., Palestine. A Study of Jewish, Arab and British
Policies, Vol. 1, Yale University Press, 1947, p. 561.
276
sua condição piorou devido à confusão dentro do movimento sindical árabe.
Do início dos anos 1920 ao começo dos anos 1930, o movimento sindical
progressivo, tanto árabe como judeu, sofreu ataques esmagadores - o que,
aliado a fragilidades que vivenciava, resultou em sua paralisia. De um lado,
o movimento sionista rapidamente adquiria um caráter fascista e recorria
ao terrorismo para isolar e destruir o Partido Comunista, cuja maioria de
líderes era judaica e resistia a ser contida pelas organizações sindicais sionis-
tas. Por outro lado, a liderança feudal e clerical palestina não podia tolerar
a ascensão de um movimento sindical árabe independente de seu controle,
assim, perpetrava ações para aniquilá-lo. No início dos anos 1930, o grupo
do Mufti assassinou Michel Mitri, presidente da Federação de Trabalhado-
res Árabes em Jaffa. Anos depois, Sami Taha, um sindicalista e presidente
da Federação dos Trabalhadores Árabes em Haifa, também foi morto. Na
ausência de uma forte burguesia nacional econômica e politicamente, os
trabalhadores eram diretamente confrontados e oprimidos pela tradicional
liderança feudal. O conflito ocasionalmente levou a confrontos violentos,
que se reduziam sempre que a liderança tradicional conseguia assumir o
controle direto sobre as atividades sindicais. O resultado foi a perda do
papel essencial da atividade sindical na luta. Além disso, com a agudização
da luta nacional, uma identidade relativa de interesses unia os trabalha-
dores à liderança árabe tradicional. Enquanto isso, o Partido Comunista
eventualmente conseguia organizar a ação política. Em 1º de maio de 1920,
manifestantes comunistas e sionistas entraram em confronto em Tel Aviv.
Os primeiros foram forçados a fugir da cidade e se refugiar no quarteirão
árabe de Manshiya, em Jaffa. Posteriormente, houve confronto com a força
de segurança britânica, enviada para prender os bolcheviques.27
Em um manifesto distribuído no mesmo dia, o Comitê Executivo do
Partido declarava: “Os trabalhadores judeus estão aqui para viver com vo-
cês. Eles não vieram para persegui-los, mas para viver com vocês. Eles estão
prontos para lutar ao seu lado contra o inimigo capitalista, seja judeu, árabe

27-Kayyali, Abdulwahhab, Modern History of Palestine, Arab Institute of Studies and


Publication, Beirute, 1970, p. 174.
277
ou britânico. Se os capitalistas lhes incitam contra o trabalhador judeu, é com
o objetivo de se proteger de vocês. Não caiam nessa armadilha. O trabalhador
judeu, que é um soldado da revolução, veio para oferecer-lhes sua mão como
camaradas na resistência contra os capitalistas britânicos, judeus e árabes.
Chamamos vocês a lutarem contra os ricos que estão vendendo sua terra e
seu país para estrangeiros. Abaixo as baionetas britânicas e francesas! Abaixo
os capitalistas árabes e estrangeiros!”28
Nesse longo manifesto, chama atenção não só a descrição idealista da
luta, mas também o fato de que não se menciona em nenhum lugar a palavra
“sionista”, ainda que o sionismo representasse para os trabalhadores e cam-
poneses árabes-palestinos uma ameaça diária, bem como aos comunistas ju-
deus - 55 dos quais atacados por sionistas em Tel Aviv e expulsos para Jaffa.
O Partido Comunista Palestino permaneceu isolado da realidade polí-
tica até o fim dos anos 1930, quando seu Sétimo Congresso se realizou. Nas
resoluções aprovadas, o partido admitiu que tinha “essencialmente adotado
uma atitude errônea em relação ao nacionalismo palestino, o status da mi-
noria nacional judaica na Palestina e seu papel em relação às massas árabes.
O partido fracassou em se tornar ativo entre as massas árabes-palestinas e
permaneceu isolado, por trabalhar exclusivamente entre os trabalhadores ju-
deus. Seu isolamento foi ilustrado pela atitude negativa do partido durante o
levante árabe-palestino de 1929.”29
Embora na prática o partido sistematicamente tenha atacado a
burguesia palestina - que naquele momento estava em uma posição difícil -
e nunca tenha adotado uma política de frente popular e alianças com as classes
revolucionárias, os registros do Sétimo Congresso em 1930-1931 proveram
uma análise política muito valorosa. Os registros mostram que o partido
considerava a solução da questão nacional árabe-palestina como uma das
tarefas primárias da luta revolucionária. Ele viu seu isolamento do movimento

28-Documents of the Palestine Arab Resistance (1918-1939), Beirute, pp. 22, 23, 24, 25.
29-Action Among The Peasants And The Struggle Against Zionism, The Palestine
Communist Party Theses for 1931, Communist Internationalism and the Arab
Revolution, Dar a1-Haqiqa, Beirute, p. 54.
278
de massas árabe-palestino como o resultado de um “desvio influenciado pelo
sionismo, que impediu a arabização do partido”. Os documentos mencionam
“os esforços oportunistas para bloquear a arabização do partido”. O congresso
adotou a visão de que era obrigação do partido expandir os quadros das
forças revolucionárias capazes de direcionar a atividade dos camponeses
(isto é, quadros trabalhadores árabes-palestinos). A “arabização” do
partido, transformando-o em um partido real das massas trabalhadoras
árabes-palestinas, era a primeira condição para o sucesso de sua atividade
nas áreas rurais.30
O partido, entretanto, provou ser incapaz de cumprir com a tarefa de
mobilizar os árabes-palestinos, e os slogans revolucionários adotados pelo
congresso nunca se traduziram em ação: “Nem um único dunum31 para os
usurpadores sionistas e imperialistas”, “Expropriação revolucionária da terra
que pertence ao governo, aos ricos desenvolvedores judeus, às facções sionis-
tas e aos grandes latifundiários e fazendeiros árabes”, “Não ao reconhecimen-
to dos acordos de venda de terras”, “Luta contra os usurpadores sionistas”.32
O congresso também decidiu que “solucionar todas as questões candentes
e eliminar a opressão somente é possível através da revolução armada sob a
liderança da classe operária”.33
O Partido Comunista Palestino, então, nunca se “arabizou”. O campo
estava aberto para que as lideranças feudais e clericais dominassem o movi-
mento de massas árabe-palestino. Talvez uma razão por trás da linha e prá-
ticas do partido naquele período tenha sido a atitude revolucionária intran-
sigente pela qual o Comintern era famoso entre 1928 e 1934. Mas, apesar
de seu pequeno número, relativo isolamento e fracasso em atingir as massas
árabes-palestinas, particularmente nas áreas rurais, os comunistas jogaram
todo o seu peso na revolta de 1936. Eles mostraram grande coragem, coope-
raram com líderes locais e apoiaram o Mufti. Muitos foram mortos e presos.

30-Ibid., pp. 122, 121.


31-Cada dunum equivale a mil metros quadrados (N. do E.).
32-Ibid., p. 124.
33-Ibid., p. 162.
279
Mas eles não conseguiram se tornar uma força influente. Aparentemente, o
slogan de “arabização” se perdeu em algum momento posterior. Quase dez
anos depois, em 22 de janeiro de 1946, o Izvestia ousou comparar a “luta dos
judeus” na Palestina com a luta dos bolcheviques antes de 1917.
De qualquer forma, as resoluções do Sétimo Congresso do Partido Co-
munista Palestino somente foram reveladas recentemente. O processo de ara-
bização não aconteceu e, apesar do papel educativo do partido e das suas con-
tribuições para a luta nesse campo, ele não assumiu, naquele momento, o papel
junto ao movimento nacional palestino que lhe foi designado em seu Sétimo
Congresso. Durante a revolta de 1936, o partido rachou. Houve também outro
racha fundamental em 1948 e outro em 1965, por questões ligadas à arabiza-
ção. Os dissidentes defendiam uma atitude “construtiva” perante o sionismo.
Esse fracasso do Partido Comunista, a fragilidade da nascente burgue-
sia árabe e a desunião do movimento sindical árabe levaram as lideranças
feudais e clericais a jogarem um papel fundamental, conforme a escalada da
situação ao ponto de explosão em 1936.

Antecedentes: os camponeses

Essa era a situação relativa aos trabalhadores no início da revolta de


1936. Entretanto, o que consideramos até momento trata apenas de uma
frente de conflito entre as sociedades judia e árabe na Palestina, e posterior-
mente no interior dessas sociedades.
A outra frente são as áreas rurais, onde o conflito assumiu sua forma
basicamente nacionalista por conta do capital judeu que ingressava na
Palestina. Apesar de grande parte do capital judeu ter sido alocado para as
áreas rurais, e apesar da presença das forças militares imperialistas britânicas
e da imensa pressão exercida pela máquina administrativa em favor dos
sionistas, o resultado foi mínimo (um total de 6.752 novos colonos) em
comparação com os planos sionistas de estabelecer um estado judeu.

280
Não obstante, o status da população rural árabe-palestina foi seriamente
prejudicado. A propriedade de terras urbanas e rurais por grupos judeus
elevou-se de 300 mil dunums em 1929 para 1,250 milhão de dunums
em 1930. As terras adquiridas eram insignificantes do ponto de vista da
colonização maciça e da solução da “questão judaica”. Mas a expropriação de
quase 1 milhão de dunums - quase um terço da área agricultável - levou a
um severo empobrecimento dos camponeses e beduínos árabes. Em 1931, 20
mil famílias camponesas tinham sido despejadas pelos sionistas. Além disso,
a vida agrícola no mundo subdesenvolvido, e no mundo árabe em particular,
não é simplesmente um modo de produção, mas também um modo de vida
social, ritual e religioso. Então, além da perda de terras, a sociedade rural
árabe-palestina estava sendo destruída pelo processo de colonização.
Até 1931, apenas 151 em mil judeus dependiam da agricultura para so-
breviver, comparado com 637 em mil árabes. Dos quase 119 mil camponeses,
cerca de 11 mil eram judeus.34 Em 1931, enquanto 19,1% da população judia
viviam da agricultura, 59% dos árabes-palestinos viviam da terra. É claro que
a base econômica desse conflito é muito perigosa. Mas, para compreendê-la
totalmente, nós temos que ver sua face nacional.
Em 1941, 30% dos camponeses árabes-palestinos não possuíam terras,
enquanto quase 50% dos demais possuíam terrenos que eram muito peque-
nos para garantir sua sobrevivência. Enquanto 250 latifundiários feudais pos-
suíam 4 milhões de dunums, 25 mil famílias camponesas não tinham terras, e
46 mil possuíam uma média de 100 dunums. Quinze mil trabalhadores agrí-
colas trabalhavam para latifundiários. De acordo com pesquisa em 322 vilas
árabes-palestinas efetuada em 1936, 47% dos camponeses possuíam menos
que 7 dunums e 65%, menos que 20 (o mínimo necessário para alimentar
uma família média era de 130 dunums).35
Embora eles vivessem sob a tripla pressão da invasão sionista, da pro-
priedade feudal árabe da terra e das taxas pesadas impostas pelo governo do
34-Himadeh, Ibid., p. 39.
35-Communist Internationalism, pp. 135-145.
281
mandato britânico, as massas rurais palestinas eram basicamente conscientes
dos desafios nacionais. Durante os levantes de 1929 e 1933, muitos pequenos
camponeses árabes-palestinos venderam suas terras para latifundiários para
comprar armas para resistir à invasão sionista e ao mandato britânico. Foi
essa invasão que, por ameaçar o modo de vida no qual religião, tradição e
honra jogam um papel importante, capacitou os líderes feudais e clericais a
permanecerem em uma posição de liderança, apesar dos crimes que come-
teram. Em muitos casos, foram os elementos feudais que compraram a terra
para revendê-la ao capital judeu.
Entre 1933 e 1936, 62,7% de todas as terras compradas pelos
sionistas pertenciam aos proprietários de terra residentes na Palestina,
14,9% a proprietários ausentes e 22,5% a pequenos camponeses. Entre
1920 e 1922, 20,8% pertenciam a proprietários de terra residentes, 75,4% a
proprietários ausentes e 3,8% a pequenos camponeses.36 As leis aprovadas
pelo governo do mandato destinavam-se a servir aos objetivos dos
assentamentos judeus. Embora fossem elaboradas de forma a sugerir que
os camponeses estavam protegidos contra despejos ou venda forçada, na
verdade não garantiam tal proteção. Isso pode ser verificado nos casos de
Wadi Al Hawarith, uma área de 40 mil dunums; na vila de Shatta, com seus
16 mil dunums; e em muitas outras onde a terra foi tomada pelos sionistas
depois de expulsarem seus habitantes. Como resultado, 50 mil judeus que
viviam em assentamentos agrícolas possuíam 1,2 milhão de dunums - uma
média de 24 por habitante -, enquanto 500 mil árabes possuíam menos
que 6 milhões – uma média de 12 dunums por habitante37. O caso dos
8.730 camponeses despejados de Marj Ibn Amer (240 mil dunums), onde
a terra foi vendida aos sionistas pela família feudal Sursock, de Beirute,
permaneceu suspenso até o fim do mandato, em 194838.
36-Weinstock, Ibid.
37-Collection, p. 34.
38-A Sublime Porta havia dado esta terra para a família Sursock, do Líbano, em
retribuição por serviços prestados. Ver também: Hadawi, Palestine Under the
Mandate. 1920-1940, Palestine Studies, Kuwait Alumni Association, pp. 34, 36.
282
“Cada pedaço de terra comprado por judeus se transformava em terra
estrangeira para os árabes, como se fosse amputada do corpo da Palestina e
removida para outro país.”39 Essas eram as palavras de um grande líder feudal
palestino. Ele completou: “De acordo com os judeus, 10% da terra foi com-
prada de camponeses, e o resto, de latifundiários. Mas, de fato, 25% da terra
pertencia a camponeses.”40 Essa atitude apologética da parte dos feudalistas
não muda o fato que (tal como relatado por fontes judaicas) do total de terra
adquirido pelas três grandes companhias judaicas em 1936 (que contabili-
zava metade da terra comprada por capitais judeus até então), 52,6% per-
tenciam a proprietários ausentes, 24,6% a proprietários residentes, 13,4% ao
governo, a igrejas e companhias estrangeiras e 9,4% a camponeses41.
Essa transferência de propriedade da terra criou uma crescente clas-
se de camponeses despossuídos, transformados em trabalho assalariado de
temporada. A maioria eventualmente foi para as cidades e buscou trabalho
não especializado. “Para um camponês despejado de sua terra, era impos-
sível arranjar outro pedaço de terra, e a compensação era sempre muito
pequena, exceto nos casos em que o Mukhtar (prefeito) ou outros notáveis
da vila estavam envolvidos.”42
A maioria dos camponeses despossuídos então se mudou para as ci-
dades. “Em Jaffa, a maioria dos limpadores de rua veio das aldeias. A com-
panhia árabe de cigarros e tabaco em Nazaré relatou que a maioria de seus
trabalhadores também era das aldeias.”43 Isso ilustra o destino dos campo-
neses migrantes: “Nós perguntamos à companhia quantos trabalhadores ela
empregava, e a resposta foi 210. O total de salário pago semanalmente era de
PL 62, e o salário médio era de 29,5 piastras por semana.”44 No mesmo perí-
odo, a média do salário das trabalhadoras judias nas fábricas de tabaco era

39-Collection, p. 34.
40-Ibid., p. 39.
41-Hadawi., op. cit., p. 29.
42-Collection, p. 25.
43-Ibid., p. 56.
44-Ibid., p. 58.
283
de 170 a 230 semanais.45 Mesmo em empregos públicos, a média de um tra-
balhador judeu era 100% maior do que de um árabe.46 Em 1930, a Comissão
Johnson-Crosby estimou que a média anual de ingresso de um camponês era
de PL 31,37 antes do desconto de impostos. O relatório indica que a média
anual de impostos era PL 3,87. Se deduzimos PL 8 referentes à média de pa-
gamento de juros nos empréstimos dos camponeses, a renda líquida seria de
PL 19,5 anuais. De acordo com o mesmo relatório, a soma média necessária
para cobrir as despesas da família era de PL 26. “Os camponeses de fato eram
o grupo mais pesadamente taxado na Palestina... A política perseguida pelo
governo claramente buscava colocar o camponês em uma situação econômi-
ca que garantiria o estabelecimento de um lar nacional judeu.”47
A imigração judia e a transformação da economia palestina de uma
economia essencialmente agrícola e árabe para uma economia industrial
dominada por capitais judeus afetou principalmente os pequenos campone-
ses árabes-palestinos. Ao mesmo tempo, isenções fiscais eram concedidas a
imigrantes judeus e às importações necessárias para as indústrias judias, tais
como matérias-primas, produtos inacabados, carvão etc.. O imposto sobre
bens de consumo importados subiu, em média, de 11% no início do mandato
para mais de 26% em 1936: 110% sobre o açúcar, 149% sobre o tabaco, 208%
sobre a gasolina, 400% sobre o fósforo e 26% sobre o café.48
Este relato do arcebispo Gregorius Hajjar à Comissão Peel é um
exemplo da política do governo: “Certa vez, eu estava na vila de Roma, no
distrito de Akka, onde os habitantes vivem da produção de azeite de oliva.
Por muito tempo, eles reclamaram ao Alto Comissariado sobre a compa-
nhia de azeite que recebia ajuda do governo através de isenções fiscais sobre
suas importações de nozes, das quais ela extraía óleo, misturava ao azeite
de oliva e o vendia a preços mais baixos. O povo na aldeia pediu que sua
produção fosse protegida da produção da companhia. O governo for-

45-Himadeh, op. cit., p. 376.


46-Collection, p. 60.
47-Ibid., pp. 62-63.
48-Ibid., p. 62..
284
mou um comitê para ouvir os reclamos dos aldeões. Quando o comitê
foi a Roma, os aldeões ficaram furiosos ao saber que o chefe da delega-
ção era ninguém menos que o diretor da companhia.”49
Por outro lado, o sistema tributário era claramente discriminatório
em favor dos ricos. O imposto sobre a renda anual de PL 22,37 era de 25%,
enquanto os vencimentos anuais acima de PL 1.000 estavam sujeitos a um
imposto de 12%.50
Os pequenos e médios camponeses empobreceram não só como resul-
tado da perda de terras, mas também vítimas de práticas sionistas que se ba-
seavam nos slogans “Somente trabalho judeu” e “Somente produtos judeus”.
Os industriais judeus empregavam apenas trabalhadores judeus, pagavam
a eles salários superiores e vendiam seus produtos a preços mais altos. “Os
judeus eram encorajados a dar preferência aos produtos judeus, embora a
preços mais altos que os dos concorrentes árabes.”51
Matérias-primas eram isentas de tributos, enquanto altas taxas eram
impostas sobre bens importados, particularmente se bens similares fossem
produzidos por fábricas judaicas localmente.
Por outro lado, a classe que era conhecida como effendi e vivia nas
cidades ganhava a vida através do aluguel de terras agrícolas e de juros sob
empréstimos para os camponeses. (Os effendis não começaram a investir
na indústria até os anos 1940). Essa forma de exploração era de longe mais
danosa para os camponeses do que a colonização sionista.
Outro grupo rural eram os beduínos. Em 1922, eles somavam 103 mil,
mas em 1931 estavam reduzidos a 66.553 na Palestina. Eles tiveram um pa-
pel central na revolta de 1936, como já tinham feito no levante em agosto de
1929. Isso chamou a atenção do Partido Comunista no congresso anterior-
mente mencionado. Os beduínos eram quase 35% da população e constitu-
íam uma potencial força revolucionária. “Desesperados por causa do severo

49-Ibid., p. 44.
50-Ibid., p. 63.
51-Rony E. Gubbay, A Political Study of the Arab-Jewish Conflict, Librairie de Droz,
Genebra, 1959, p. 29. 109. Sifrl, op. cit., pp. 131-132.
285
empobrecimento e da fome constante, eles estavam sempre à beira de levan-
tes armados. Sua participação no levante de agosto mostrou que eles pode-
riam jogar um papel dirigente numa revolta de massas e, ao mesmo tempo,
evidenciou claramente que os líderes dessas tribos poderiam ser comprados
por dinheiro. Eles estavam sempre provendo o exército de camponeses sem
terra e semiproletários com novas mãos e bocas.”52
Concomitantemente, a pequena burguesia urbana árabe encontra-
va-se num estado de confusão, indecisão e fragmentação. A velocidade
com que a sociedade se transformava em uma sociedade industrial ju-
daica não deu nem à crescente burguesia nem aos feudalistas a chance de
tomarem parte ou lucrar com esse processo. Não foi surpresa, de forma
alguma, que a maioria dos líderes palestinos que testemunharam ante a
Comissão Peel em 1937 e as comissões anteriores elogiou o imperialismo
otomano e o modo como eram tratados em comparação com o imperia-
lismo britânico. Eles eram instrumento da Corte – o baluarte do sultão e
parte integral do sistema de dominação, opressão e exploração, enquanto
o imperialismo britânico os demitiu do posto de agentes-chefes, porque
encontrou no movimento sionista um agente mais qualificado, mais soli-
damente estabelecido e mais organizado.
Dessa forma, o papel que a liderança feudal-clerical deveria cumprir
estava estabelecido – seria uma “luta” por uma melhor posição dentro do
regime colonialista. Mas não poderia levar essa “luta” sem reunir por trás
de si as classes que estavam ansiosas por livrar-se do jugo da colonização.
Com esse horizonte, esses líderes elaboraram um programa claramente
progressista, adotaram slogans de massas – os quais não desejavam nem
eram capazes de levar até o seu final lógico – e seguiram um tipo de luta que
não estava de acordo com seu caráter.
É claro que essas lideranças não tinham liberdade de ação absoluta,
como muitos sugerem. Ao contrário, estavam expostas a todas as pressões
que moldavam o curso dos acontecimentos, até a crescente intensidade dos

52-Communist Internationalism, pp. 143-144.


286
conflitos e todas as influências já abordadas. Isso explica por que se desen-
volveram, de tempos em tempos, contradições entre seus interesses e aque-
les das classes dominantes dos países árabes vizinhos à Palestina, embora
ambos mantivessem os mesmos interesses de classe. Isso também explica
suas amplas alianças na estrutura de classes da Palestina.

Antecedentes: os intelectuais

Em 1930, após 13 anos de ocupação britânica da Palestina, o diretor


de educação admitiu em seu relatório que “desde o início da ocupação, o
governo nunca forneceu fundos suficientes para a construção de uma única
escola no país”. Em 1935, o governo rejeitou 41% das aplicações escolares
de árabes-palestinos. Nas 800 aldeias da Palestina, havia apenas 269 escolas
para meninos e 15 para meninas, sendo que apenas 15 meninas das aldeias
atingiram a sétima série do ensino fundamental.
Havia 517 aldeias árabes-palestinas que não tinham nenhuma escola,
nem para meninos nem para meninas. Também não havia uma única escola
secundária nas aldeias. Além disso, o governo “censurava livros e opunha-se
a quaisquer laços culturais com o mundo árabe. Ele não fez nada para elevar
o nível educacional dos camponeses...”.53
Em 1931, entre os muçulmanos, apenas 25,1% dos homens e 3,3% das
mulheres frequentavam a escola; entre os cristãos palestinos, 71,5% dos ho-
mens e 44,1% das mulheres; e entre os judeus, 94,3% dos homens e 78,7% das
mulheres54. Esses números dão uma ideia da situação da educação nas áreas
rurais, mas não da Palestina como um todo, que desempenhou um papel
pioneiro na educação desde o começo do ressurgimento árabe no início do
século XX. Na verdade, havia um grande número de jornais impressos na
Palestina antes da ocupação britânica. Entre 1904 e 1922, surgiram cerca de
53-Collection, p. 52.
54-Himadeh, op. cit., p. 45.
287
50 jornais em árabe. Antes da revolta de 1936, pelo menos mais dez jornais
de grande circulação foram lançados.
Uma série de fatores, sobre os quais não é possível se estender aqui, fez
da Palestina um importante centro da cultura árabe. Os esforços persistentes
de intelectuais, migrando para dentro e fora da Palestina, foram um fator
fundamental para seu papel cultural e ao estabelecimento de associações e
clubes literários a partir dos anos 1920.
Esse desenvolvimento cultural foi constantemente alimentado por um
fluxo de graduados árabes de Beirute e do Cairo foi acompanhado por uma
extensa atividade no campo da tradução do francês e inglês.
As missões estrangeiras, que foram atraídas para a Palestina principal-
mente por razões históricas e religiosas, tiveram papel de destaque na disse-
minação de um ambiente de educação nas cidades.
No entanto, não foi o clima cultural geral na Palestina durante esse pe-
ríodo que se tornou decisivo, mas sim a influência da crescente crise econô-
mica e política sobre o movimento cultural. O desenvolvimento da “cultura
popular” foi muito significativo. Ela representava certa consciência existente
nas áreas rurais, apesar do analfabetismo generalizado. Uma consciência es-
timulada pela realidade econômica e política em rápido desenvolvimento. A
poesia popular, em especial, reflete uma preocupação crescente por parte das
massas rurais sobre o curso dos acontecimentos. Essa tomada de consciência
espontânea levou a um espírito de mobilização nas aldeias.
A maioria dos intelectuais urbanos, por sua vez, tinha origem social
feudal ou na pequena burguesia comerciante. Embora basicamente defen-
dessem um tipo de revolução burguesa, as condições objetivas não eram
favoráveis para o desenvolvimento da classe que, logicamente, conduziria
essa luta. Mesmo assim, eles permaneceram, como ativistas políticos, sob o
controle da liderança tradicional. Seu trabalho, no entanto, reflete um grau
de consciência que, em geral, não foi compartilhada por seus colegas em
outros países árabes.

288
O conflito entre os defensores da revolução e reacionários nas áreas
rurais, e entre militantes revolucionários e elementos derrotistas nas cidades
se desenvolvia em favor da revolução. Não temos conhecimento de um único
escritor ou intelectual palestino nesse período que não tenha participado da
resistência contra o inimigo colonialista. Não há dúvida de que os intelectuais,
mesmo não sendo, em geral, mobilizados por um partido revolucionário,
desempenharam um papel importante na luta nacional.
A posição dos intelectuais palestinos era única. Tendo completado os
seus estudos e retornado para suas cidades, eles se tornaram conscientes da
incapacidade da classe a que pertenciam de liderar a luta nacional. Mas, ao
mesmo tempo, sofriam de sua impossibilidade de participar e se beneficiar
do processo de desenvolvimento industrial que foi essencialmente controla-
do por uma comunidade estranha e hostil. Por outro lado, nas áreas rurais da
Palestina, os camponeses, submetidos durante séculos à opressão social e na-
cional, viviam em uma sociedade arcaica na qual os líderes feudais e clericais
locais exerciam autoridade absoluta. A poesia popular refletia muitas vezes a
submissão dos camponeses55, que os intelectuais palestinos, e em particular
os poetas, não conseguiam combater facilmente. Alguns intelectuais tenta-
ram superar o estado de espírito submisso das massas rurais e desempenha-
ram um papel de destaque na disseminação de uma consciência progressista.
Wadi Al Bustani, um poeta de origem libanesa, que se formou na Uni-
versidade Americana de Beirute e se estabeleceu na Palestina, desempenhou
papel importante como um intelectual progressista. Ele foi o primeiro a aler-
tar contra a Declaração Balfour e os seus perigos, no mesmo mês em que essa
foi emitida. Seu período, no qual a Palestina estava à beira de uma revolta
armada, produziu uma poderosa vanguarda de poetas revolucionários, cujas

55-Exemplos de tais provérbios: Aquele que come do pão do sultão esgrime sua espada;
Que nenhuma grama cresça após a minha; O ovo de hoje é melhor do que a galinha
de amanhã (mais vale um pássaro na mão do que dois voando); Quando começamos
a venda de caixões, as pessoas começaram a morrer; A mais grave das dores é a atual;
Ele corre atrás do pão e o pão corre antes dele; A vida vai bem para quem fez bem
feito (“Arab Society”, do Dr. Ali Ahmed Issa, citado em Yusra Arnita, Folcloric Arts in
Palestine, Beirute, Palestine Research Center, OLP, p. 187).
289
obras tornaram-se parte da herança cultural das massas56. Em 29 de janeiro
de 1920, o governo do mandato britânico enviou uma carta para o editor da
revista cultural Karmel, que era publicada em Haifa, solicitando a publicação
de um poema do célebre poeta iraquiano Ma’ruf Al Risafi, dedicado ao Alto
Comissariado britânico, no qual o aclamava e o elogiava, juntamente com
um orador judeu chamado Jehuda.
O editor concordou em publicá-lo, juntamente com uma resposta. Al
Bustani redigiu a resposta na forma de um poema que dizia o seguinte:

Discurso de “Judá”? Ou atos de bruxaria? E ditos de Risafi? Ou


mentiras poéticas?
Sua poesia é de palavras bem escolhidas, você está bem familiarizado
com as joias do mar do verso
Mas esse mar é um (mar) político, se a justiça se estende ampla, sua
maré baixa começa
Sim! Ele, que atravessou o Rio Jordão, é o nosso primo, mas quem vem
do outro lado do mar é suspeito.57

Esse poema, que se tornou muito famoso à época, era de fato um


documento político único. Não só fez Al Risafi parecer um idiota, mas tam-
bém apontou, mesmo naqueles primeiros tempos, fatos políticos de grande
importância. Não só mencionou a imigração judaica e o perigo que consti-
tuía, mas também o papel desempenhado pela Grã-Bretanha em dividir os
árabes-palestinos, a Declaração Balfour e suas implicações etc.
Pouco tempo antes, em 28 de março de 1920, Al Bustani liderou uma
manifestação em que se cantava uma música composta por ele. Foi convo-

56-De acordo com Taufiq Ziyad, um poeta da resistência na Palestina ocupada


(Nazaré): “A nossa poesia revolucionária (Mahmud Darwish, Samih Al Qasim e eu) é
uma extensão da poesia revolucionária de Ibrahim Tuqan, Abd Al Rahim Mahmud,
Mutlaq Abd Al Khaliq e outros... porque nossa batalha é uma extensão da deles.”
(Sobre Poesia Popular, Dar Al Thawra, p. 15).
57-Yaghi, Dr. Abdul Rahman, Modern Palestinian Literature, Beirute, p. 232.
290
cado para um inquérito conduzido pelo Ministério Público, e em seus autos
consta o seguinte:

Ministério Público: Declarações feitas afirmam que você, carregado


nos ombros, disse para as pessoas que o seguiam: “Oh, cristãos;
Oh, muçulmanos.”
Acusado: Sim.
Ministério Público: E você também disse: “A quem vocês deixaram o
país?”
Acusado: Sim.
Ministério Público: Então você disse: “Matem os judeus e os infiéis.”
Acusado: Não. Isso viola a métrica e a rima. Eu não poderia ter dito
isso. O que eu disse tinha tanto rima quanto métrica. Chama-se
poesia58.

Nos períodos subsequentes, a poesia desempenhou um papel cada


vez mais importante para expressar, em todas as ocasiões, os sentimentos
das massas indefesas. Quando Balfour veio de Londres para participar da
cerimônia de abertura da Universidade Hebraica, em 1927, acompanhou-o
Ahmad Lutfi Al Said, representando o governo egípcio. O poeta Iskandar Al
Khuri escreveu as seguintes linhas, dirigidas a Balfour:

“Correndo, de Londres, você veio para agitar o fogo desta batalha


“Oh Senhor, eu não posso culpá-lo, visto que você não é a fonte da
nossa desgraça
“Já o Egito tem que ser culpado, uma vez que só estende até nós as
mãos vazias.”59

58-Ibid., p. 237.
59-Taufiq Ziyad descreveu esse poema com as seguintes palavras: “Eu não conhecia
uma obra de poesia equivalente na força, sacrifício e coragem desse grande poema.”
(Literatura e Literatura Popular, Dar Al Awda, p. 30).
291
Ibrahim Tuqan, Abu Salma (Abd Al Karim Al Karmi) e Abd Al Rahim
Mahmud foram, desde o início dos anos 1930, o ponto alto da onda de poetas
nacionalistas que inflamavam toda a Palestina com a consciência e agitação
revolucionárias, tais como As’af Al Nashashibi, Khalil Al Sakakini, Ibrahim Al
Dabbagh, Muhammed Hasan Ala Al Din, Burhan Al Abbushi, Muhammed
Khurshid, Qayasar Al Khuri, o padre George Bitar, Bulos Shihada, Mutlaq
Abd Al Khaliq e outros.
O trabalho de Tuqan, Al Karmi e Mahmud exibe um extraordinário
poder de apreciação do que estava acontecendo, o que só pode ser explicado
pela profunda compreensão do que fervia nos círculos das massas. O que
parece ser a profecia inexplicável e um poder de predição em seus poemas é,
na verdade, apenas a sua capacidade de expressar essa relação dialética entre
seu trabalho artístico e o movimento na sociedade.
O fato de nos concentrarmos no papel desempenhado pela poesia,
inclusive popular, não significa que outras manifestações culturais na Palestina
não desempenharam qualquer papel, ou que seu papel era insignificante.
Jornais literários e artigos, estórias e traduções, todos desempenharam um
significativo papel pioneiro. Por exemplo, em um editorial publicado por
Yusuf Al Isa em Al Nafa’is em 1920, lemos:

“A Palestina é árabe - seus muçulmanos são árabes, seus cristãos são


árabes e seus cidadãos judeus são árabes também. A Palestina nunca
ficará em paz se for separada da Síria e transformada em um lar
nacional para o sionismo...”

Foram expressões desse tipo, no início dos anos 1920, que formaram a
maré cultural revolucionária na década de 1930 desempenhando papel im-
portante na sensibilização e deflagração da revolta. Escritores como Arif Al
Arif, Khalil Al Sakakini (um escritor sarcástico de prosa ardente, filho de um
mestre carpinteiro), As’af Al Nashashibi (um membro da alta burguesia que
foi influenciado por Al Sakakini e adotou muitos dos seus pontos de vista),
292
Arif Al Azzuni, Mahmud Saif Al Din Al Irani e Najati Sidqi (um dos primei-
ros escritores de esquerda que, em 1936, exaltou o materialismo de Ibn Khal-
dun e deplorou o idealismo. Ele foi, provavelmente, o primeiro cronista que
o movimento nacionalista árabe teve desde o início do renascimento que fez
uma análise materialista dos acontecimentos. Publicou suas pesquisas em Al
Tali’a em 1937 e 1938). Abdullah Mukhlis (que em meados da década de 1930
chamou a atenção para a visão de que o colonialismo é um fenômeno de clas-
se, e que a produção artística deve ser engajada), Raja Al Hurani, Abdullah
Al Bandak, Khalil Al Badiri, Muhammad Izzat Darwaza e Isa Al Sifri (cujo
epitáfio de Al Qassam teve um significado profundamente revolucionário).
Essa efervescência na atmosfera cultural palestina atingiu o seu clímax
na década de 1930 e foi expressa de várias formas, mas, por diversos motivos
relacionados com a história da literatura árabe, a maior influência foi sempre
exercida pela poesia e pela poesia popular.
Isso por si só explica o papel que a poesia tomou para si nesse período,
que foi de pregação política quase direta.
Ibrahim Tuqan, por exemplo, comentando sobre a criação, em 1932,
do “fundo nacional” para impedir que a terra da Palestina fosse vendida aos
sionistas (esse fundo foi estabelecido pelos líderes feudais e clericais sob pre-
texto de impedir que a terra de pobres camponeses caísse nas mãos dos sio-
nistas), afirma: “Oito dos responsáveis pelo projeto desse fundo eram corre-
tores de terra para os sionistas.”
Já em 1929, Ibrahim Tuqan expôs o papel que os grandes proprietários
de terra estavam desempenhando na questão da terra:

“Eles venderam o país a seu inimigo por causa de sua ganância. São
seus lares que eles venderam. Eles poderiam ser perdoados se tivessem
sido obrigados a fazê-lo pela fome. Mas Deus sabe que eles nunca
sentiram fome ou sede.”
“Se apenas um dos nossos líderes jejuasse como Gandhi, talvez o jejum
fizesse algo de bom. Não há necessidade de se abster de alimentos -
293
na Palestina, um líder morreria sem comida. Que ele se abstenha de
vender a terra e mantenha um terreno para enterrar seus ossos.”60

No mesmo ano, Tuqan escreveu seu épico sobre as penas de morte


proferidas pelo governo do mandato aos três mártires Fuad Hijazi, de Safed,
e Muhammad Jumjum e Ata Al Zir, de Akka. Esse poema tornou-se muito
famoso e é considerado parte da herança revolucionária, assim como o poe-
ma de Abd Al Rahim Mahmud, escrito em 14 de agosto de 1935, no qual ele
se dirigiu ao Emir Saud, que visitava a Palestina:

“Você veio visitar a Mesquita de Al Aqsa, ou para dizer adeus a ela


antes que ela seja destruída?”
Esse poeta perdeu a vida na batalha de Al Shajara na Palestina em
1948. Até então, teve papel de destaque junto com Abu Salma e Tuqan, ao
lançar os fundamentos da poesia de resistência palestina que, mais tarde, sob
a ocupação israelense, viria a se tornar uma das manifestações mais visíveis
da resistência das massas palestinas.
A poesia - inclusive popular - acompanhou o movimento de massas
desde o início dos anos 1930, expressando a evolução dos acontecimentos
que precederam a eclosão da revolta.
O poema de Abu Salma, no qual ele narra a revolta de 1936, escreve
corajosamente a amarga decepção causada pela maneira como os regimes
árabes a abandonaram:

“Vocês que amam a pátria revolta contra a opressão atroz


“Libertem a pátria dos reis, libertem-na das marionetes...
“Eu pensei que tínhamos reis que poderiam liderar os homens
“Abaixo estes reis desavergonhados
“Por Deus, suas coroas não servem para sola de sapatos
“Nós somos os únicos a proteger a pátria e curar suas feridas.”

60-Ibid., p. 283.
294
Menção também deve ser feita ao poeta popular “Awad” que, na noite
anterior a sua execução em 1937, escreveu nas paredes de sua cela, em Akka
(Acre), um poema esplêndido, terminando com as linhas:

“O noivo pertence a nós. Ai daquele contra quem estamos lutando:


vamos cortar seu bigode com uma espada. Agite a lança com a bela
seta. De onde sois vós, bravos homens. Somos homens da Palestina -
Acolhemos com honra.”
“Pai do noivo, não se preocupe: bebemos sangue. Em Bal’a e Wadi
Al Tuffah houve um ataque e um choque armado... Oh, vós, belas
mulheres, cantam e cantam. No dia da batalha de Beit Amrin, ao
ouvir o som dos tiros, vejam-nos da varanda.”61

A raiva sentida contra os membros da trindade inimiga - a invasão


sionista, o mandato britânico e reacionários árabes, tanto locais como de
fora, cresceu constantemente, conforme a situação se tornava mais crítica.
A essa altura, o campo, com a escalada dos conflitos e os surtos de
levantes armados, estava desenvolvendo sua nova consciência através dos
contatos de seus elementos “culturais” com as cidades e da multiplicação de
fatores indutores dessa consciência:
“Pessoas do bem, o que é esse ódio? Um sionista com um ocidental?”62
e “a arma apareceu, o leão não; o cano da arma está cheio de orvalho” ou
“Seu rifle, junto com o vendedor, eu digo: meu coração nunca vai descansar
até que eu o compre. Seu rifle ficou enferrujado por falta de uso, mas ainda
anseia por seu lutador”.
Na verdade, o chamado inflamado à revolta foi a tais extremos que,
depois de todos os provérbios hereditários que aconselham à submissão e
constituíam uma liderança com autoridade infalível de tradições, a poesia
popular, de repente, tornou-se capaz de dizer: “Árabe, filho de mulheres fra-

61-Our Popular Songs, por Nimr Sirhan, Jordan Ministry of Culture and Information,
p. 157.
62-Ibid.
295
cas e pobres, venda a sua mãe para comprar uma arma. Uma arma vai ser
melhor do que a sua mãe quando a revolta aliviar seus cuidados.”63
À medida que o conflito se tornou mais e mais agudo, a “arma” se
transformou no instrumento que destruiu as muralhas antigas do chamado
à submissão, de repente, capaz de penetrar no coração da questão, e a revolta
se tornou a promessa para o futuro - mais do que as coisas mais fortes do
passado: a mãe e a família.
Mas, acima de toda essa efervescência, o feudalismo patriarcal foi os-
sificado com sua liderança impotente, sua autoridade e sua dependência em
relação ao passado.
Em meio a esses conflitos complexos e calorosos, que foram tanto se
expandindo como se aprofundando e afetaram principalmente os campo-
neses e trabalhadores árabes, embora também tenham pressionado forte-
mente a pequena e a média burguesias e os camponeses médios do país, a
situação foi se tornando cada vez mais crítica, expressando-se em surtos
armados ao longo do tempo (1929-1933).
Por outro lado, os líderes feudais e clericais palestinos sentiram que
seus próprios interesses também estavam ameaçados pela crescente força
econômica: o capitalismo judeu aliado ao mandato britânico. Mas seus in-
teresses também eram ameaçados pelo lado oposto - as massas pobres ára-
bes que já não sabiam a quem seguir. A burguesia urbana árabe era fraca
e incapaz de liderança nessa fase de transformação econômica que estava
ocorrendo com uma rapidez sem precedentes, e uma pequena parte dessa
burguesia tornou-se parasitária e permaneceu à margem do desenvolvimen-
to industrial judeu. Além disso, suas condições tanto subjetivas quanto obje-
tivas passaram por mudanças contraditórias em relação à direção geral que a
sociedade árabe perseguia.
Os jovens intelectuais, filhos das ricas famílias rurais, desempenharam
um papel de destaque em incitar a revolta popular. Eles haviam retornado de
suas universidades para uma sociedade que rejeitava a fórmula dos antigos

63-Ibid., p. 301.
296
relacionamentos, que se tornou obsoleta, assim como as novas fórmulas que
começaram a tomar forma no âmbito da aliança sionista-colonialista.
Assim, a luta de classes se tornou mista, com rigor extraordinário, com o
interesse nacional e os sentimentos religiosos, e essa mistura eclodiu no âmbito
da crise objetiva e subjetiva que a sociedade árabe na Palestina vivia. Devido
a isso, a sociedade árabe-palestina permaneceu prisioneira das lideranças
feudais-clericais. Tendo em vista a opressão social e econômica sobre os
pobres árabes-palestinos nas cidades e aldeias, era inevitável que o movimento
nacionalista assumisse formas avançadas de luta, adotasse slogans de classe e
uma ação baseada em conceitos de classe. Da mesma forma, diante da aliança
firme e cotidiana expressa entre a sociedade invasora construída pelos colonos
judeus na Palestina e o colonialismo britânico, era impossível esquecer o caráter
essencialmente nacionalista dessa luta. E tendo em vista o fervor religioso
terrível em que a invasão sionista da Palestina foi baseada, e que era inseparável
de todas as suas manifestações, era impossível que o subdesenvolvido mundo
rural palestino não praticasse o fundamentalismo religioso como uma
manifestação de hostilidade à incursão colonialista sionista.
Comentando sobre o surgimento do movimento dos Panteras Ne-
gras em “Israel”, a revista esquerdista de língua hebraica Matzpen (nº 5, de
abril de 1971) afirma: “Os conflitos de classe em Israel, por vezes, tendem
a assumir a forma de conflitos confessionais. Os conflitos de classe, mes-
mo quando expressos em termos confessionais, desde o início têm como
alvo o sionismo.” É claro que essa afirmação se aplica em grande medida
ao papel desempenhado pela religião contra a incursão sionista, como uma
forma de resistência nacional e de classe. Por exemplo: “Um dos produtos
do sionismo foi a transformação das celebrações do aniversário do Profeta
em comícios nacionalistas sob a direção do Mufti de Haifa e do poeta Wadi
Al Bustani e com a participação de todos os líderes e notáveis cristãos, não
sendo um único judeu convidado. Dessa forma, os dias santos, tanto mu-
çulmanos como cristãos, tornaram-se festas populares com um tom nacio-
nalista nas cidades da Palestina.”
297
As lideranças feudais-clericais começaram a impor-se à frente do mo-
vimento de massas. Para tanto, aproveitaram a inadequação da burguesia
urbana árabe e do conflito que era, até certo ponto, candente entre eles e
do colonialismo britânico, que estabeleceu a sua influência por meio de sua
aliança com o movimento sionista, dos seus atributos religiosos, do pequeno
tamanho do proletariado árabe e da inadequação de seu Partido Comunista,
que não estava apenas sob o controle dos líderes judeus, mas seus elementos
árabes tinham sido submetidos à opressão e intimidação por parte da lide-
rança feudal desde os anos 1920. Foi nesse contexto complexo no qual os
conflitos interligados e extremamente complicados foram inflamando-se que
a revolta de 1936 tomou lugar na história da Palestina.

A Revolta

Os historiadores não estão de acordo a respeito dos diferentes inci-


dentes que ocorreram em diversos locais enquanto causa da explosão da
revolta de 1936.
Segundo Yehuda Bauer, “o incidente que comumente é tido como o
início dos distúrbios de 1936” aconteceu em 19 de abril de 1936, quando
multidões de palestinos-árabes em Jaffa atacaram transeuntes judeus64. Na
perspectiva de Al Sifri65, Salih Mas’ud Buwaysir66 e Subhi Yasin67, a primeira
centelha foi acendida quando um grupo desconhecido de palestinos-árabes
(Subhi Yasin os descreve como um grupo Qassamista, incluindo Farhan Al
Sa’udi e Mahmud Dairawi) emboscou 15 carros na estrada entre Anabta e
a prisão de Nur Shams, roubando o dinheiro tanto dos passageiros judeus

64-Yehuda Bauer, op. cit. p. 49


65-Sifri, Issa, Arab Palestine Under the Mandate & Zionism, The New Palestine
Bookshop, Jaffa, 1937, Vol. II, p. 10.
66-Palestinian Struggle over half a century, por Saleh Bouyissir, Al Fatah House, Beirute,
p. 180.
67-The Great Arab Revolution in Palestine, Al Hana House, Damasco, Subhir Yasine,
p. 30.
298
quanto dos árabes. De acordo com Al Sifri, um dos três membros fez um
breve discurso aos palestinos-árabes, que eram a maioria dos passageiros,
em que disse: “Nós estamos tomando o seu dinheiro para que possamos lutar
contra o inimigo e defendê-los.”68
Dr. Abd Al Wahhab Al Kayyali pensa que a primeira centelha se acen-
deu antes disso - em fevereiro de 1936, quando um bando armado de pales-
tinos-árabes cercou uma escola que um grupo de empreiteiros judeus estava
construindo em Haifa, empregando exclusivamente trabalhadores judeus.69
Mas todas as fontes corretamente acreditam que o levante Qassamista,
impulsionado por Sheikh Izz Al Din Al Qassam, foi o verdadeiro começo da
revolta de 1936.
No entanto, o relatório da Comissão Real (Lorde Peel), o qual Yehu-
da Bauer considera como uma das fontes mais autorizadas escrita sobre a
questão palestina, ignora essas causas imediatas como o estopim da revolta e
atribui a erupção a duas causas principais: o desejo dos árabes de conquistar
independência nacional e a sua aversão e receio do estabelecimento de um
“lar nacional judeu” na Palestina.
Não é difícil enxergar que essas duas causas são, na verdade, uma só,
e que as palavras em que se encontram envoltas estão amenizadas e não ex-
pressam nenhum sentido preciso.
Lorde Peel, porém, menciona o que ele chama de “fatores secundários”,
os quais contribuíram para a explosão dos “distúrbios”. Esses são:
1 A difusão do espírito do nacionalismo árabe fora da Palestina.
2 Aumento da imigração judaica desde 1933.
3 O fato de que os judeus eram capazes de influenciar a opinião pública
na Grã-Bretanha.
4 A falta de confiança dos palestinos-árabes nas boas intenções do gover-
no britânico.
5 O temor dos palestinos-árabes a respeito da constante compra de terras
pelos judeus.
68-Bouyissir, op. cit., p. 181.
69-Kayyali, op. cit., p. 302.
299
6 O fato de que os objetivos finais do governo mandatário não estavam
claros.70
A maneira como a então liderança do movimento nacionalpalestino
entendeu que as causas podem ser deduzidas dos três slogans com os quais
ela adornou todas as suas demandas:
1 A imediata interrupção da imigração judaica.
2 Proibição da transferência da posse de terras palestinas-árabes aos
colonos judeus.
3 O estabelecimento de um governo democrático, no qual palestinos-
-árabes teriam a maioria, em conformidade com a sua superioridade
numérica.71
Mas esses slogans, nas versões bombásticas em que foram repetidos,
eram completamente incapazes de expressar a situação real. Na verdade, em
grande medida, tudo o que fizeram foi perpetuar o controle da direção feudal
sobre o movimento nacionalista.
A real causa da revolta foi o fato de que os violentos conflitos que
envolviam a transformação da Palestina de uma sociedade agrícola-feudo-
-clerical árabe em uma sociedade burguesa industrial sionista (ocidental),
haviam atingido o seu clímax, como visto antes.
O processo de estabelecimento das raízes do colonialismo e da trans-
formação de um mandato britânico em colonialismo sionista de assentamen-
tos, como já visto, atingiu o seu clímax em meados dos anos 1930 e, na ver-
dade, a liderança do movimento nacionalista palestino foi obrigada a adotar
certa forma de luta armada, porque já não era mais capaz de exercer a sua
liderança num tempo em que o conflito atingiu proporções decisivas.
Uma variedade de fatores conflitantes desempenhou um papel ao in-
duzir a então liderança palestina a adotar a forma de conflito armado.
Primeiramente, o movimento Izz Al Din Al Qassam.
Em segundo lugar, a série de fracassos sustentados por essa lide-
rança na época em que esteve à frente do movimento de massas, mesmo

70-Collection, p. 96.
71-Hadawi, op. cit., p. 38.
300
em relação às demandas mínimas e parciais que frequentemente os colo-
nialistas não hesitavam em ceder, na expectativa de absorver a frustração.
(Os britânicos levaram muito tempo para perceber o valor dessa mano-
bra; ainda assim, seus interesses foram salvaguardados através da existên-
cia de agentes sionistas competentes).
Em terceiro lugar, a violência sionista (os bandos armados, o slogan
“Somente trabalho judeu” etc.), além da violência colonialista (a maneira
como foi suprimido o levante de 1929).
Em qualquer discussão sobre a revolta de 1936-1939, deve ser reserva-
do um lugar especial para o Sheikh Izz Al Din Al Qassam. Apesar de tudo o
que já foi escrito sobre ele, não é demais dizer que essa personalidade única
ainda é muito desconhecida e provavelmente seguirá sendo assim. A maioria
do que já se escreveu sobre ele foi apenas a partir do exterior e, em função
dessa superficialidade no estudo de sua personalidade, muitos historiado-
res judeus não hesitaram em classificá-lo como “dervixe fanático”, enquanto
muitos historiadores ocidentais o ignoram por completo. Na verdade, está
claro que a incapacidade de compreender as conexões dialéticas entre reli-
gião e as tendências nacionalistas é a responsável por diminuir a importância
do movimento Qassamista.
Todavia qualquer que seja o ponto de vista sobre Al Qassam, não há
dúvidas de que o seu movimento (de 12 a 19 de novembro de 1935) represen-
tou momento decisivo na luta nacionalista e desempenhou papel importante
na adoção de uma forma mais avançada de luta no confronto com a direção
tradicional, que se tornou fragmentada diante das crescentes lutas.
Provavelmente, a personalidade de Al Qassam, por si, constituiu o
ponto simbólico de encontro daquela grande massa de fatores interligados,
os quais, por simplificação, vieram a ser conhecidos como a “questão palesti-
na”. O fato de que ele era “sírio” (nascido em Jabala, na periferia de Latakia)
constitui exemplo do elemento do nacionalismo árabe presente na luta; era
Azharista (ele estudou em Al Azhar) exemplifica o elemento nacionalista-re-
ligioso representado por Al Azhar no começo do século, por ter uma história
301
de envolvimento na luta nacionalista (participou da revolta Síria contra a
França em Jabal Horan em 1919-1920 e foi condenado à morte) ilustra a uni-
dade da luta árabe.
Al Qassam chegou a Haifa, em 1921, com os egípcios Sheikh Mu-
ammad Al Hanafi e Sheikh Ali Al Hajj Abid e, imediatamente, começou a
formar grupos secretos. O que é notável nas atividades de Al Qassam é a sua
avançada inteligência organizacional e sua paciência de ferro. Em 1929, ele se
recusou em precipitar-se a anunciar que estava armado e, a despeito do fato
de que sua recusa levou à divisão da organização, obteve sucesso em manter
o grupo unido e permanecer clandestino.
De acordo com um conhecido Qassamista72, Al Qassam programou
sua revolta em três estágios - preparação psicológica e a disseminação do es-
pírito revolucionário, a formação de grupos secretos, a formação de comitês
para recolher contribuições e outros para adquirir armas, comitês de treina-
mento, de segurança, espionagem, propaganda, informação e para contatos
políticos - e, então, revolta armada.
A maioria dos que conheceram Al Qassam afirma que quando ele par-
tiu para as colinas de Ya’bad com 25 de seus homens na noite de 12 de novem-
bro de 1935, seu objetivo não era declarar a revolta armada, mas disseminar
o chamado à revolta. Entretanto um encontro acidental levou à revelação
de sua presença e, a despeito da heroica resistência de Al Qassam e de seus
homens, uma força britânica facilmente os destruiu. Aparentemente, quan-
do percebeu que não poderia mais expandir a revolta com seus camaradas,
Sheikh Al Qassam adotou o seu famoso slogan: “Morrer como um mártir.”
É graças a Al Qassam que devemos entender esse slogan não em um
sentido “guevarista”, se podemos usar a expressão, mas num sentido nacio-
nalista comum. A pouca evidência que possuímos da conduta de Al Qassam
demonstra que ele estava ciente da importância de seu papel, enquanto ini-
ciador de um foco revolucionário avançado.

72-Yasin, Subhi, op. cit., pp. 22-23.


302
Esse slogan traria frutos imediatos. As massas seguiram o seu corpo
martirizado por dez quilômetros a pé até a vila de Yajur. Mas a coisa mais
importante que aconteceu foi a exposição dos líderes tradicionais, em face do
desafio colocado pelo Sheikh Al Qassam.
Esses líderes estavam tão cientes do desafio quanto o mandato britânico.
De acordo com um Qassamista, alguns meses antes deAl Qassam partir
para as colinas, ele enviou [um comunicado] para Hajj Al Amin Al Hussaini,
através do Sheikh Musa Al Azrawi, pedindo para que esse coordenasse as
declarações de revolta pelo país. Hussaini recusou, alegando que as condições
não estavam ainda maduras73. Quando Al Qassam foi morto, seu funeral foi
acompanhado somente por pessoas pobres.
Os líderes adotaram uma atitude indiferente, que logo perceberam ser
um erro. A morte de Al Qassam foi uma ocorrência de excepcional signifi-
cado, a qual eles não poderiam ignorar. Prova disso pode ser vista no fato de
que os representantes dos cinco partidos palestinos visitaram o Comissário
Superior Britânico apenas seis dias depois do assassinato de Al Qassam e
lhe submeteram um extraordinariamente atrevido memorando, no qual ad-
mitiam que “se eles não recebessem uma resposta a este memorando que
pudesse ser considerada satisfatória em geral, perderiam toda a influência
sobre seus seguidores; visões extremistas e irresponsáveis prevaleceriam e a
situação poderia deteriorar-se”.74 Eles obviamente queriam explorar o fenô-
meno Al Qassam para que pudessem dar um passo atrás.
Porém pela sua escolha da forma de luta, Al Qassam os impossibilitou
de retroceder. É, na verdade, o que explica a diferença entre a atitude dos
líderes palestinos, frente ao assassinato de Sheikh Al Qassam, imediatamen-
te a seguir e a postura que tomaram na cerimônia feita no quadragésimo
dia depois de sua morte. Durante esses 40 dias, eles descobriram que se não
tentassem entrar na grande onda que foi posta em movimento por Al Qas-
sam essa os engoliria. Eles, portanto, descartaram a indiferença que tinham

73-Ibid., p. 22.
74-Kayyali, op. cit. p. 296.
303
demonstrado em seu funeral e tomaram parte nos protestos e discursos na
cerimônia do quadragésimo dia.
Evidentemente, Hajj Amin Al Hussaini se manteria consciente sobre
essa lacuna, posteriormente. Mesmo 20 anos mais tarde, à revista Filastine, o
porta-voz do Alto Comitê Árabe tentou dar a impressão de que o movimen-
to Qassamista não era nada mais do que parte do movimento liderado pelo
Mufti, e que este e Al Qassam haviam sido “amigos pessoais”.75
Quanto aos britânicos, contaram a história de Al Qassam no relatório
dos incidentes de 1935 enviados a Gênova como segue:
“Havia rumores de que uma gangue terrorista havia sido formada
sob inspiração de fatores políticos e religiosos e em 7 de novembro de
1935, um sargento-policial e um policial estavam seguindo um ladrão nas
colinas do Distrito de Nazaré, quando duas pessoas desconhecidas atira-
ram contra eles, matando o sargento... Esse incidente logo levou ao des-
cobrimento de uma gangue operando nesse bairro, sob a direção de Izz
Al Din Al Qassam, um refugiado político sírio que gozava de considerável
prestígio como líder religioso. Ele havia sido objeto de fortes suspeitas
alguns anos antes e dizia-se que tinha as mãos metidas com atividades
terroristas.”
“No funeral de Sheikh Al Qassam em Haifa, estiveram presente multi-
dões e, apesar dos esforços feitos por influentes mulçumanos para manter a
ordem, houve manifestações e pedras foram atiradas. A morte de Al Qassam
levantou uma poderosa onda de sentimento entre os círculos políticos, den-
tre outros, do país e os jornais árabes concordaram em chamá-lo de ‘mártir’
nos artigos que escreveram sobre ele.”76
Os britânicos também estavam cientes do desafio representado pelo
assassinato de Al Qassam e tentaram fazer retroceder o relógio, como de-
monstrado pelo ponto de vista expresso pelo Alto Comissário em uma carta
escrita ao Ministro das Colônias. Nessa carta, disse que caso as demandas dos
75-Palestine, nº 94. Jan 1, 1969. Arab Higher Committee, Beirute.
76-Ibid., nº 94. p. 19.
304
líderes árabes não fossem atendidas, “eles perderiam toda a sua influência e
qualquer possibilidade de pacificação por meios moderados anteriormente
proposto desapareceriam”.77
Mas era impossível fazer retroceder o relógio, porque o movimento
Qassamista era, na verdade, uma expressão do padrão natural capaz de fazer
face à escalada do conflito e resolvê-lo. Não demorou muito antes que isso se
refletisse em números de comitês e grupos, a ponto da direção tradicional ser
obrigada a escolher entre confrontar essa escalada de vontade de lutar entre
as massas ou sufocá-la colocando-as sob seu controle.
Embora os britânicos tenham reagido rapidamente, propondo a ideia
de uma assembléia legislativa e suscitado interromper a venda de terras, já
era muito tarde: o movimento sionista, que começara a se cristalizar de forma
contundente no período, desempenhou seu papel em diminuir a efetividade
da proposta britânica. Da mesma forma, a direção do movimento naciona-
lista palestino não havia ainda decidido sobre sua atitude, mas foi extraordi-
nariamente vacilante, e até 2 de abril de 1936, os representantes dos partidos
palestinos estavam preparados para formar uma delegação e ir a Londres in-
formar ao governo britânico seu ponto de vista.
As coisas explodiram antes do que previa a direção do movimento na-
cionalista no entanto, quando as primeiras chamas foram acesas em Jaffa, em
fevereiro de 1936, os líderes do movimento nacionalista palestino acredita-
vam que ainda poderiam obter concessões parciais dos britânicos através de
negociações.
Mas eles foram surpreendidos pelos eventos subsequentes. Todos
aqueles intimamente associados com os eventos de abril de 1936 admitiram
que a erupção de violência e desobediência civil foi espontânea e, com exce-
ção dos atos instigados pelos Qassamistas sobreviventes, tudo o que ocorreu
foi expressão espontânea do nível crítico que o conflito havia atingido.
Mesmo quando a greve geral foi declarada, em 19 de abril de 1936, a
direção do movimento nacionalista ficou para trás. Ainda assim, eles rapi-

77-Kayyali, op. cit., p. 296.


305
damente entraram no trem antes que os deixasse para trás e foram bem-su-
cedidos, por todas as razões já mencionadas em nossa análise da situação
sociopolítica na Palestina, em dominar o movimento nacionalista.
Do ponto de vista organizativo, o movimento nacionalista palestino
era representado por um certo número de partidos, a maioria dos quais re-
manescente dos movimentos antiotomanos que surgiram no início do sécu-
lo. Isso significa que, ao mesmo tempo, não se engajaram em uma luta por
independência (como foi o caso do Egito, por exemplo) e não eram mais do
que estruturas gerais, sem princípios definidos, controlados por grupos de
notáveis e dependentes das lealdades enraizadas e provenientes da influência
que gozavam enquanto religiosos ou líderes feudais, ou proeminentes mem-
bros da sociedade; não eram partidos com bases organizadas.
Excetuando-se o próprio Al Qassam (e, naturalmente, os comunistas),
nenhum dos líderes do movimento nacionalista palestino à época possuía
quaisquer habilidades organizativas; nem mesmo Amin Al Hussaini, cujas
habilidades administrativas eram incomuns, tinha qualquer conceito de or-
ganização aplicada à luta.
Responsabilidades organizativas frequentemente eram baseadas em
talentos individuais, nos subcomitês e entre os quadros médios, mas eles fre-
quentemente eram incapazes de transformar suas habilidades em política.
Na véspera da revolta, a situação dos representantes do movimento
nacionalista palestino era a seguinte: com a dissolução do Comitê Executivo
Árabe em agosto de 1934, seis grupos emergiram:
1 O Partido Árabe Palestino, em maio de 1935, encabeçado por Jamal
Al Hussaini; este incorporou mais ou menos a política do Mufti re-
presentando os feudalistas e os grandes mercadores urbanos;
2 O Partido da Defesa Nacional, encabeçado por Raghib Al Nashashibi;
fundado em dezembro de 1934, representava a nova burguesia das ci-
dades e os oficiais mais velhos;
3 O Partido da Independência foi fundado em 1932, com Auni Abd Al Hadl
à sua testa. Incluía os intelectuais, a média burguesia e alguns setores da
306
pequena-burguesia; isso contribuiu para que sua ala esquerda desempe-
nhasse um papel especial;
4 O Partido da Reforma, fundado por Dr. Husain Al Khalidi em agosto de
1935, que representava certo número de intelectuais;
5 O Partido do Bloco Nacional, encabeçado por Abd Al Latif Salah;
6 O Partido da Juventude Palestina, encabeçado por Ya’ qub Al Ghusain.
Essa multiplicidade era puramente artificial; não era uma expressão
clara e definida da configuração de classe no país. A esmagadora maioria
das massas não estava representada (de acordo com Nevill Barbour, 90% dos
revolucionários eram camponeses que se viam como voluntários).
Um olhar sobre a estrutura de classe na Palestina, em 1931, mostra que
59% dos palestinos-árabes eram camponeses (19,1% entre os judeus), 12,9%
dos árabes trabalhavam na indústria da construção e mineração (30,6% dos
judeus), 6% dos palestinos-árabes trabalhavam em comunicações, 8,4% no
comércio, 1,3% na administração etc..78
Significa que a esmagadora maioria da população não estava represen-
tada por esses partidos, já que representavam os líderes clericais e feudais, a
burguesia “compradora79” urbana e certos setores da intelectualidade. Todos
estavam sempre sujeitos à liderança do Mufti e de sua classe feudal-clerical,
a qual era mais nacionalista do que os líderes que representavam a burguesia
urbana. Os últimos eram representados pelos effendis em um tempo em que
eles estavam começando a investir o seu dinheiro na indústria (essa tendên-
cia ficou mais marcada depois da derrota da revolta de 1936-1939).
A pequena burguesia em geral (pequenos comerciantes, lojistas, pro-
fessores, servidores civis e artesãos) não tinha direção. Enquanto classe,
não tinha influência ou importância sob o regime turco, que dependia da
classe dos effendis e lhes deu o direito de governo local, devido ao seu cres-
cimento em junção com a aristocracia feudal.
78-Percy, Lund H., Palestine’s Economic Future, Londres, 1946, p. 61.
79-Setor da burguesia de países em posição subordinada na divisão internacional do
trabalho (coloniais, semicoloniais ou independentes) que atuam como intermediários
para os negócios de empresas ou países imperialistas (N. do E.).
307
O movimento de trabalhadores recém se estabelecera e estava, como
resultado, exposto à opressão pelas autoridades, esmagado pela brutal com-
petição com o proletariado judeu e pela burguesia, e sujeito à perseguição pela
liderança do movimento nacionalista árabe.
Antes que o Alto Comitê Árabe fosse formado, com Hajj Amin Al Hus-
saini à frente, em 25 de abril de 1936, Jamal Al Hussaini, o líder do Partido
Árabe, estava insatisfeito pelo crescimento da crença de que os ingleses eram
o inimigo real - e o Partido da Defesa Nacional, que representava, primeira e
principalmente, a crescente classe compradora urbana, não estava realmente
disposto a um confronto aberto com os britânicos.
Apenas dois dias antes, em 23 de abril de 1936, Weizmann, o líder do
movimento sionista, havia feito um discurso em Tel Aviv descrevendo a luta
árabe-sionista, que começava a emergir, como um conflito entre elementos
construtivos e destrutivos, assim colocando as forças sionistas em seu lugar,
enquanto instrumento de colonialismo na véspera do conflito armado. Essa
era a posição sobre ambos os lados na véspera da revolta.
No campo, a revolta assumiu a forma de desobediência civil e insur-
reição armada. Centenas de homens em armas afluíram para juntar-se aos
bandos que haviam começado a espalhar-se pelas montanhas. O não paga-
mento de impostos foi decidido na conferência que ocorreu na Universidade
Raudat Al Ma’aref Al Wataniya em Jerusalém em 7 de maio de 1936, à qual
compareceram 150 delegados representando os árabes da Palestina. Uma re-
visão dos nomes dos delegados feita por Isa Al Safri80 demonstra que foi nessa
conferência que a liderança do movimento de massas comprometeu-se com
uma aliança imaterial entre um número limitado de intelectuais. A resolução
adotada por essa conferência era curta, mas era claro exemplo do alcance que
uma direção desse tipo era capaz de chegar.
“A conferência decidiu unanimemente anunciar que nenhuma taxação
será paga, a iniciar-se em 15 de maio de 1936, se o governo britânico não fizer
uma mudança radical em sua política, cessando a imigração judaica.”
80-Sifri, op. cit., pp. 39, 40.
308
A resposta do governo britânico à desobediência civil e à insurreição
armada foi atacar em dois pontos cruciais: primeiro, o quadro organizacio-
nal, na maioria das vezes, mais revolucionário do que a direção, e o segundo,
as massas empobrecidas que haviam tomado parte na revolta e que, na verda-
de, não tinham nada além de suas próprias armas para se proteger.
Aqui há um longo caminho para explicar porque as duas únicas pes-
soas que eram comparativamente competentes em organização - Auni Abed
el-Hadi e Mohammad Azat Darwazeh - foram presas, enquanto o restante
foi submetido tanto a prisões quanto a perseguições até o grau de total para-
lisia. Isso é demonstrado pelo fato de que 61 árabes responsáveis pela orga-
nização da greve (os quadros médios) foram presos em 23 de março. Ainda
assim, essas prisões não impediram o governo britânico de dar permissões a
quatro líderes da revolta - Jamal Al Hussaini, Shibli Al Jamal, Abd Al Latif
Salah e Dr. Izzat Tannus - para viajarem a Londres e encontrarem-se com o
Ministro para as Colônias, que havia sido empossado em 12 de junho. Não
havia nada fora do comum nesse incidente, que seria constantemente repeti-
do ao longo dos subsequentes meses e anos. O Alto Comissário Britânico ob-
servou com grande satisfação que “os sermões de sábado foram muito mais
moderados do que eu esperava, num tempo em que os sentimentos eram
fortes. Isso se deu principalmente graças ao Mufti”.81
Desde o início, a direção do movimento nacionalista palestino conside-
rou a revolta das massas como simplesmente voltada a exercer pressão sobre
o colonialismo britânico, com o objetivo de melhorar as condições de vida
das massas enquanto classe. Os britânicos estavam profundamente cônscios
desse fato e atuaram de acordo. Eles não se preocuparam, no entanto, em ga-
rantir a essa classe as concessões que queria; Londres seguiu cumprindo com
seus compromissos quanto a entregar a herança colonialista na Palestina para
o movimento sionista. Além disso, foi durante os anos da revolta de 1936-
1939 que o colonialismo britânico jogou todo o seu peso em executar a tarefa
81-Kayyali, op. cit., p. 311.
309
de apoiar a presença sionista e colocá-la de pé, como veremos mais adiante.
Os britânicos obtiveram sucesso nisso de duas maneiras: atacando os
camponeses revolucionários pobres com violência sem precedentes e utili-
zando sua extensa influência com os regimes árabes, fato que teve papel fun-
damental em liquidar a revolta.
Primeiro: os Regulamentos de Emergência Britânicos tiveram papel
efetivo. Al Sifri cita um grupo de sentenças aprovadas no período para de-
monstrar o quão injustos eram esses regulamentos: “Seis anos de prisão por
possuir um revólver - 12 anos por possuir uma bomba - 12 anos de trabalho
forçado por possuir 12 balas - oito meses sob a acusação de desorientar um
destacamento de soldados - nove anos sob a acusação de possuir explosivos
- cinco anos por tentar comprar munição de soldados - duas semanas de
prisão por possuir um bastão... etc”.82
De acordo com as estimativas apresentadas à Liga das Nações, o nú-
mero de palestinos-árabes mortos na revolta de 1936 foi por volta de mil,
além dos feridos, desaparecidos e internados. Os britânicos utilizaram a
política de explodir casas em larga escala. Além de explodir e destruir parte
da cidade de Jaffa (18 de junho de 1936), onde o número de casas explo-
didas estimado foi de 220 e o número de pessoas que ficaram sem teto, 6
mil. Além disso, centenas de cabanas foram demolidas em Jabalia, 300 em
Abu Kabir, 350 em Sheikh Murad e 75 em Arab Al Daudi. Está claro que os
habitantes dos quarteirões destruídos em Jaffa e os das cabanas destruídas
nos arredores eram camponeses pobres que haviam deixado o campo pela
cidade. Nos vilarejos, de acordo com as estimativas de Al Sifri, 143 casas
foram explodidas por razões diretamente ligadas à revolta83. Essas casas
pertenciam a camponeses pobres, a alguns médios e a um número muito
pequeno de famílias feudais.
Segundo: Emir Abdullah, da Transjordânia84, e Nuri Said começaram
82-Sifri, op. cit., p. 60.
83-Ibid., p. 93.
84-Antiga denominação do Reino Hachemita da Jordânia. Localiza-se na margem
oriental do Rio Jordão. A margem Ocidental (West Bank) é a Cisjordânia, que é parte
da Palestina (N. do E.).
310
a agir para intermediar junto ao Alto Comitê Árabe. As suas intermediações
foram mal-sucedidas, apesar da prontidão da direção em aceitar seus bons
ofícios. Mas o movimento de massas não estava ainda pronto para ser do-
mesticado em 1936, apesar desses contatos terem efeito negativo na revolta e
deixarem um sentimento de que o conflito então em desenvolvimento estava
receptivo a um acordo. E, realmente, essa iniciativa, que começou como fias-
co, seria completamente bem-sucedida em outubro do mesmo ano, apenas
sete semanas mais tarde.
Não que esses contatos fossem a única forma assumida pela dialética
das relações entre Palestina e os países árabes vizinhos. Essa dialética era mais
complicada e refletia a complexidade dos conflitos. Nós já vimos o que Al Qas-
sam representou nesse campo; e, na verdade, nesse sentido, o fenômeno Qas-
samista continua a existir. Grande número de lutadores árabes pela liberdade
verteram para a Palestina; dentre eles, estava Sa’id Al As, morto em outubro
de 1936, Sheikh Muhammad Al Ashmar e muitos outros. O fluxo também era
composto por certo número de oficiais nacionalistas aventureiros, dos quais
o mais proeminente era Fauzi Al Qawuqji que, pouco tempo após entrar na
Palestina chefiando um pequeno bando, em agosto de 1936, se autodeclarou
comandante-em-chefe da revolta.
Ainda que esses homens tenham melhorado e expandido as táticas dos
rebeldes, a maior parte do fardo de violência revolucionária no campo e o
comando das ações nas cidades seguiram sendo suportados pelos campo-
neses despossuídos. Foram os “oficiais” que emergiram das fileiras dos pró-
prios camponeses que continuaram a desempenhar o papel principal, mas
a maioria estava sujeita à direção do Mufti. Eles também representaram um
heroísmo legendário para as massas da revolução.
Apesar de os oficiais britânicos na Palestina não concordarem com-
pletamente com a política de Londres de imprudente apoio ao movimento
sionista e pensarem que havia espaço para uma direção de classe árabe, à qual
os interesses não estivessem ligados à revolta, para cooperar com o colonia-

311
lismo, a Grã-Bretanha finalmente aceitou, ao que parece, em 19 de junho de
1936, a “importância do vínculo orgânico entre a segurança dos interesses da
Grã-Bretanha e o sucesso do sionismo na Palestina”.85 A Grã-Bretanha deci-
diu intensificar suas forças na Palestina e aumentar as medidas repressivas.
Assustada com essa decisão, a liderança do movimento nacionalis-
ta palestino vacilou e perdeu as estribeiras. Hajj Amin Al Hussaini, Raghib
Nashashibi e Auni Abd Al Hadi se apressaram em encontrar o Alto Comissário
Britânico. É evidente pelos relatórios que esse enviou a seu governo no período
que eles confirmaram que estavam prontos a acabar com a revolta se os reis
árabes lhes pedissem. Eles não ousavam, no entanto, admitir às massas que
eram os autores dessa trama tortuosa e repetidamente negaram o fato.
Depois disso, um grande número de tropas britânicas, estimado em
20 mil, verteu para a Palestina e a 30 de setembro de 1936, quando todos ha-
viam chegado, um decreto foi emitido impondo a lei marcial. As autoridades
mandatárias intensificaram a sua política de implacável repressão, setembro
e outubro presenciaram batalhas de grande violência - as últimas cobrindo
praticamente a totalidade da Palestina.
Em 11 de outubro de 1936, o Alto Comitê Árabe distribuiu declaração
chamando o fim da greve e, assim, da revolta: “Na medida em que a submis-
são à vontade de Suas Majestades e Altezas, os reis árabes, e cumprir com os
seus desejos é uma das nossas tradições árabes hereditárias, e na medida em
que o Alto Comitê Árabe acredita firmemente que Suas Majestades e Altezas
só dariam ordens que estivessem em conformidade com os interesses de seus
filhos e com o objetivo de proteger os seus direitos; o Alto Comitê Árabe,
em obediência à vontade de Suas Majestades e Altezas, os Reis e emires e de
sua crença do grande benefício que resultará da sua mediação e cooperação,
exorta o nobre povo árabe a acabar com a greve e os distúrbios, em obediên-
cia a essas ordens, cujo único objetivo é o interesse dos árabes.”86
Exatamente um mês depois (a 11 de novembro de 1936), o “Comando-
-Geral da revolta Árabe no Sul da Síria-Palestina” anunciou que “chama a que
85-Kayyali, op. cit. p. 319.
86-Documents, p. 454.
312
todos os atos de violência sejam completamente interrompidos, e que não de-
veria haver provocações direcionadas a nada passível de perturbar a atmosfera
de negociações, a qual a nação árabe espera que será bem-sucedida e obterá
todos os direitos nacionais”.87 Dez dias depois, o comando lançou outra decla-
ração, de que “havia abandonado o campo, em sua confiança nas garantias dos
reis árabes e emires e para proteger a segurança das negociações”.88
Como diz Jamil Al Shuqairi: “Então, em obediência às ordens dos reis
e emires, foi chamado o fim da greve, e as atividades da revolta vieram se
encerraram no intervalo de duas horas da publicação da declaração.”89
Embora na época os britânicos desafiassem a direção palestina exata-
mente no ponto em que haviam enganado as massas - a questão da imigra-
ção judaica para a Palestina - e apesar de esses líderes terem decidido boi-
cotar a Comissão Real (a Comissão Peel), os reis árabes e emires obrigaram
essa direção a obedecê-los pela segunda vez em menos de três meses. O rei
Abdul Aziz Al As’ud e o rei Ghazi escreveram cartas a Hajj Amin AlHussaini
dizendo: “Em vista de nossa confiança nas boas intenções do governo britâ-
nico em fazer justiça ao povo árabe, é nossa opinião de que o seu interesse re-
quer que você se encontre com a Comissão Real.” Esse incidente, que parece
trivial, despedaçou a aliança na direção do movimento nacionalista, já que as
forças à direita de Hajj Amin Al Hussaini, lideradas pelo Partido da Defesa,
imediatamente se opuseram à decisão de boicotar a Comissão Peel e deram
numerosas indicações de seu desejo de aceitar o acordo que os britânicos
proporiam. Os líderes desse partido, que representavam principalmente os
effendis urbanos, se apoiaram no descontentamento sentido pelos grandes
mercadores nas cidades e no deslocamento dos interesses da burguesia urba-
na, que dependia de sólidas relações econômicas materializadas nas agências
de empresas industriais britânicas, e às vezes, judaicas, que mantinham.
Os regimes árabes, especialmente o da Transjordânia, apoiaram
fortemente as posições da ala direita, e Hajj Amin Al Hussaini e o que ele
87-Ibid., p. 457.
88-Ibid., p. 458.
89-Collection, p. 8.
313
representava não tinham nenhuma inclinação em direção à ala esquerda,
que, na verdade, ele havia começado a liquidar. Logo, suas atitudes passaram
a ser crescentemente vacilantes e hesitantes, e estava claro que ele havia
chegado a uma posição em que não poderia dar um único passo à frente com
a revolta e, igualmente, retroceder não lhe faria bem algum. Ainda assim,
quando os britânicos pensaram que poderiam naquele momento atingir
a liquidação política do Mufti no período de quietude, que seguiu ao fim
da greve, eles perceberam que isso não era verdade e que a ala à direita do
Mufti era ainda muito frágil para controlar a situação. O Alto Comissário
Britânico, maliciosamente, seguiu percebendo o grande papel que o Mufti
poderia cumprir enquanto estivesse restrito à posição entre o Partido da
Defesa a sua direita, o Partido da Independência (a sua ala esquerda) e os
movimentos de jovens intelectuais à sua esquerda. O Alto Comissário
implementou a habilidade britânica de tomar vantagem da grande margem
entre “a inflexibilidade (obstinação) dos aldeões que resistiram por seis
meses, recebendo baixos pagamentos, mas não se entregando à pilhagem e
à fraqueza ou não existência de grandes qualidades da liderança dentre os
membros do Alto Comitê Árabe”.90
A exatidão da visão do Alto Comissário do papel limitado que a ala
direita do Mufti poderia cumprir foi demonstrada quando o Partido da De-
fesa falhou em tomar posição inequívoca contra o relatório da Comissão
Peel, publicado em 7 de julho de 1937, recomendando a partilha [da Pales-
tina] e o estabelecimento de um estado judeu.
Ao mesmo tempo, ficou claro que o temor do Alto Comissário de que
a pressão vinda da ala esquerda do Mufti pudesse levar a ruídos para aban-
donar a sua atitude moderada não era infundado. Essa pressão, no entanto,
não era exercida pelo quartel de onde esperava o Alto Comissário, mas dos
quadros médios que ainda estavam representados tanto nos comitês nacio-
nais quanto, cotidianamente, por grupos de camponeses despossuídos e tra-
balhadores desempregados nas cidades e no campo.

90-Kayyali, op. cit., p. 326.


314
Assim, a única saída ao Mufti foi fugir. Ele evitou a prisão, tornan-
do-se um refugiado em Haram Al Sharif, mas os eventos o forçaram a uma
posição que ele não foi capaz de assumir um ano antes. Em setembro de
1937, Andrews, o comissário distrital da Galileia, foi baleado por quatro
comandos armados fora da igreja anglicana em Nazaré. Andrews era “o
único oficial que administrou o mandato como os sionistas consideram
correto. Ele nunca obteve sucesso em ganhar a confiança dos Fellahin
[camponeses palestinos]”. Os árabes viam-no como amigo dos sionistas e
acreditavam que sua tarefa era facilitar a transferência da Galileia para o
estado sionista demarcado na proposta de partição. Os camponeses ára-
bes não gostavam dele e o acusavam de facilitar a venda das terras de
Huleh, e acredita-se que os comandos que o mataram pertenciam a uma
das células secretas dos Qassamistas.91
Embora o Alto Comitê Árabe tenha condenado esse incidente na mes-
ma noite, a situação, exatamente como havia ocorrido quando Al Qassam
foi morto, saiu do controle do Mufti e seu grupo, a ponto de, se quisessem se
manter à frente do movimento nacionalista, terem que se agarrar e surfar na
onda crescente, como havia acontecido em abril de 1936.
Dessa vez, porém, o entusiasmo revolucionário das massas foi mais
violento, não apenas por conta da experiência que haviam adquirido durante
o ano anterior, mas também porque o conflito que estava acontecendo ante
os seus olhos havia se tornado cada vez mais claro. É certo que essa etapa da
revolta foi substancialmente, se não completamente direcionada contra os
britânicos mais do que contra os sionistas. O crescimento do conflito levou
à cristalização de posições mais definidas; os camponeses estavam quase que
completamente no comando da revolta, o papel da burguesia urbana havia
retrocedido um pouco, e as pessoas abastadas no campo e os grandes e mé-
dios camponeses estavam hesitantes em apoiar os rebeldes, enquanto as for-
ças sionistas passaram efetivamente à ofensiva.

91-Neville Barbour, Nisi Dominus, Londres, pp. 183-193.


315
Há duas questões importantes a serem consideradas no que diz respei-
to a esse estágio da revolta:
1 “Os árabes contataram os sionistas, propondo que eles chegassem a
algum acordo em base à completa separação de relações com a Grã-
-Bretanha. Mas os sionistas imediatamente rejeitaram, porque viam
suas relações com a Grã-Bretanha como fundamental”.92 Isso foi acom-
panhado por um crescente número de sionistas servindo à polícia na
Palestina; de 365 em 1935 para 682 em 1936 e, ao final daquele ano, o
governo anunciou o recrutamento de 1.240 sionistas como adicional
de policiamento armado com rifles militares. Um mês depois, o nú-
mero subiu para 2.83693, e oficiais britânicos desempenharam papel
proeminente em liderar grupos sionistas em ataques a vilarejos pales-
tinos árabes.
2 O fato de que a liderança da revolta estava fora da Palestina (em Damas-
co) tornou o papel da liderança local, a maioria da qual era de origem
camponesa pobre, mais importante do que havia sido no período an-
terior. Ela estava profundamente ligada com os camponeses. Explica
em muito a que extensão a revolta era capaz de chegar. Nesse período,
por exemplo, Abd Al Rahim Al Hajj surgiu como comandante local,
e os comunistas dizem que estavam em contato com ele e o supriam
com informações.94 Esse desenvolvimento poderia ter constituído um
ponto de virada histórico na revolta, se não fosse pela debilidade da
“esquerda”, tanto no sentido relativo quanto literal, e não fossem esses
comitês locais obrigados a manter o seu vínculo organizativo, até certo
ponto, com o “Comitê Central para a Luta” (Jihad) em Damasco, não
apenas por causa de sua tradicional lealdade a este, mas também por-
que eles dependiam relativamente dele para financiamento.
Em toda a história da luta palestina a revolta popular armada nunca
esteve tão perto da vitória quanto nos meses entre o fim de 1937 e o começo

92-Kayyali, op. cit., p. 338.


93-Jewish Observer, set. 20, 1963, Londres, pp. 13-14.
94-Abdul Qadir Yasin, Al Katib, nº 121, Abril 1971, p. 114.
316
de 1939. Nesse período enfraquecidas, o prestígio do colonialismo estava no
seu ponto mais baixo, e a reputação e influência da revolta se tornaram a
força principal no campo.
No entanto, nessa época, a Grã-Bretanha ficou mais convencida de que
deveria confiar nos sionistas que haviam lhe provido uma situação única,
que não haviam encontrado em nenhuma outra colônia - eles tinham a sua
disposição uma força local que compartilhava com a Grã-Bretanha a causa
do colonialismo e era altamente mobilizada contra a população local.
Na época, a Grã-Bretanha começou a alertar para a necessidade de
desviar parte de suas forças militares para confrontar a cada vez mais crítica
situação na Europa. Assim, a Grã-Bretanha via com crescente benevolência
“a rápida organização de forças de defesa judaicas voluntárias de 6.500
homens que já existia”.95 Já havia se direcionado de alguma forma buscar a
política de confiar na força sionista local e entregar-lhe muitas das tarefas de
repressão, que se ampliavam. Ainda assim, não destruiu a ponte que sempre
manteve com a classe liderada pelo Mufti, e foi nesse terreno e período
em particular que os britânicos desempenharam papel preponderante em
manter o Mufti como o incontestável representante dos palestinos-árabes.
As forças à direita do Mufti estavam praticamente exauridas, a ponto de que
se o Mufti não fosse mais considerado como o único líder, “ninguém poderia
representar os árabes, exceto os líderes da revolta nas montanhas”, como
o Alto Comissário Britânico para a Palestina disse.96 Não há dúvidas que
isso, dentre outras razões, contribuiu para manter o Mufti na liderança do
movimento nacionalista, Mesquita de Al Aqsa de forma precipitada e estar
em Damasco desde o fim de janeiro de 1937.
A opressão britânica, que se intensificava em níveis inesperados, e
a ampliação dos ataques policiais, prisões em massa e execuções durante
1937 e 1938 enfraqueceram a revolta, mas não puseram fim a ela. Os bri-
tânicos entenderam tanto em essência quanto em substância, assim como

95-Kayyali, op. cit., p. 346.


96-Ibid., p. 346.
317
sua liderança local, que essa era uma revolta camponesa. Como resultado, o
espírito revolucionário que prevaleceu em toda a Palestina levou todos nas
cidades a usarem adereços na cabeça (keffiya e agal) para que os homens
do campo não fossem submetidos à opressão pelas autoridades. Mais tarde,
todos foram proibidos de levar seus cartões de identificação para que as
autoridades não distinguissem entre homens do vilarejo e do campo.
Essa situação indica claramente a natureza da revolta e sua influência
na época. O campo em geral era o berço da revolta, e a ocupação temporária
das cidades em 1938 foi alcançada após ataques dos camponeses97 vindos de
fora. Significa que os camponeses e os aldeões em geral estavam pagando os
preços mais altos.
Em 1938, grande número de camponeses foi executado meramente
por estar em posse de armas. Um rápido olhar na lista de nomes daqueles que
foram mandados para as prisões ou para as forcas nos mostra que a esmaga-
dora maioria era de camponeses pobres. Por exemplo, “todos os habitantes
do vilarejo de Ain Karem, um número de 3 mil, foram sentenciados a andar
dez quilômetros todos os dias para se reportarem à delegacia de polícia”.98
Durante esse período, a Grã-Bretanha sentenciou cerca de 2 mil palestinos-
-árabes a longos períodos de encarceramento, demoliu mais de 5 mil casas,
executou por enforcamento 148 pessoas no cárcere em Akka (Acre) e mais de
5 mil foram presos por períodos diversos.99
A Grã-Bretanha, que em novembro de 1938 havia abandonado a pro-
posta de partição recomendada pelo Relatório Peel, começava então a tentar
ganhar tempo. A Conferência da mesa-redonda realizada em Londres, em
fevereiro de 1939, foi uma típica ilustração da transação duvidosa que acon-
tecia silenciosamente o tempo todo entre o comando da revolta palestina e
os britânicos, que sabiam ao certo que o comando estava pronto a barganhar

97-Em maio de 1938 os rebeldes ocuparam Hebron (Al Khalil), após terem já ocupado
o porto velho de Jerusalém(Al Quds). Em 9 de setembro, eles ocuparam Beersheba
e libertaram prisioneiros. Em 5 de outubro, eles ocuparam Tiberias; no começo de
agosto, partes de Nablus etc.
98-Bouyissir, op. cit., p. 247.
99-Ibid., p. 247.
318
a qualquer momento. É claro, Jamal Al Hussaini não foi sozinho à Conferên-
cia da Mesa-Redonda em Londres, estava acompanhado pelos representan-
tes dos países árabes “independentes”. Logo, os regimes árabes, sujeitos ao
colonialismo, estavam destinados pela segunda vez em menos de dois anos a
impor a sua vontade aos árabes da Palestina através da identidade (latente e
potencial) de interesses de todos aqueles que sentaram em volta da mesa-re-
donda em Londres.
Os discursos feitos por Jamal Al Hussaini, Emir Faisal (Árabia
Saudita), Emir Hussein (Iemen), All Mahir (Egito) e Nuri Al Sa’id (Iraque) -
que declarou que estava falando enquanto amigo próximo da Grã-Bretanha
não queria dizer uma palavra sequer que pudesse ferir os sentimentos de
nenhum britânico, porque era seu amigo do fundo do peito100 - somente
confirmaram o sucesso da política que a Grã-Bretanha havia por tanto
tempo cuidadosamente perseguido cara a cara com a direção do movimento
nacionalista palestino; ela não o abandonou e o manteve constantemente
no final de uma ponte aberta. Os britânicos estavam confiantes de que o
Iraque e a Arábia Saudita “estavam preparados para usar sua influência
sobre os líderes palestinos com o intuito de pôr fim à revolta e assegurar o
sucesso da conferência”.
No entanto, a revolta na Palestina não retrocedeu (de acordo com
números oficiais, em fevereiro de 1939, 110 foram mortos e 112, feri-
dos em 12 combates com os britânicos, 39 vilarejos foram vasculhados,
toques de recolher foram impostos em três cidades por três vezes, cer-
ca de 200 aldeões foram presos, cinco departamentos governamentais
incendiados, dez árabes executados sob acusação de porte de armas,
houve ataques a dez assentamentos sionistas, o oleoduto foi explodido,
um trem entre Haifa e Lydda foi minado, e um posto de busca foi esta-
belecido na Mesquita de Al Aqsa).
Os números britânicos apresentados pelo Secretário Colonial demons-
tram que “entre 20 de dezembro e 29 de fevereiro, houve 348 incidentes de

100-Ibid., p. 258.
319
assassinato, 140 atos de sabotagem, 19 sequestros, 23 roubos, explosões de
nove minas e 32 bombas, enquanto o Exército teve 18 mortos e 39 feridos, e
os palestinos, 83 mortos e 124 feridos; esses números não incluem baixas do
lado dos rebeldes”.101
A situação continuou assim até setembro de 1939, o mês em que a Se-
gunda Guerra Mundial eclodiu. Nesse ínterim, os palestinos-árabes sofreram
perdas insubstituíveis; a liderança, muito longe do espírito de conciliação
que prevalecia, estava fora do país, os recém-constituídos comandos locais
estavam caindo um após o outro nos vários clímax, e a violência sionista
estava num crescente constante desde meados de 1937. Não há dúvidas de
que a presença ostensiva dos britânicos e sua persistência na arena palestina
exauriu os rebeldes, os quais, com sua direção, não sabiam mais contra quem
exatamente estavam lutando ou porquê. Por um momento, a direção falaria
da tradicional amizade e interesses comuns com os britânicos, em outro, iria
tão longe quanto concordar em garantir a autonomia aos judeus nas áreas
onde estes estavam assentados. Não há dúvidas de que a hesitação da direção
e sua inabilidade em determinar um objetivo claro pelo qual lutar teve sua
parte em enfraquecer a revolta.
Mas isso não deve nos levar a negligenciar o fator objetivo: os britâni-
cos usaram duas divisões das tropas, muitos esquadrões aéreos, a polícia e a
Força Fronteiriça da Transjordânia, além de forças quase-sionistas com 6 mil
membros; tudo para ganhar o controle sobre a situação. (A Comissão Peel
admitiu que gastos com segurança na Palestina haviam aumentado de PL
826.000 em 1935 para PL 2.223.000 em 1936).
Essa campanha de terrorismo e os esforços que foram feitos para cor-
tar os elos dos rebeldes com os vilarejos exauriram a revolta. O assassinato
de Abd Al Rahim Al Hajj Muhammad, em março de 1939, representou um
golpe esmagador sobre a revolta, privando-a de um dos mais bravos, mais
sábios e mais honestos dos líderes revolucionários populares. Depois dis-
so, os comandos locais começaram a entrar em colapso e deixar o campo.

101-Al Ahram, 1 de Março, 1939, Cairo.


320
Além disso, a aproximação franco-britânica às vésperas da Segunda Guerra
Mundial certamente facilitou o cerco aos rebeldes; Arif Abd Al Razzaq,
esgotado pela fome e pela perseguição, foi entregue aos franceses, junto
com alguns de seus seguidores; as forças jordanianas prenderam Yusuf Abu
Daur e o entregaram aos britânicos que o executaram. Além disso, o ter-
rorismo britânico e sionista nos vilarejos fez com que as pessoas ficassem
com medo de apoiar os rebeldes e supri-los com munição e comida e, sem
dúvida, a ausência de até mesmo uma mínima organização tornou impos-
sível superar esses obstáculos.
Na época, o Partido Comunista Palestino atribuiu o fracasso da revolta
a cinco causas principais:
1 A ausência de direção revolucionária;
2 O individualismo e oportunismo dos líderes da revolta;
3 A falta de comando central para as forças revoltosas;
4 A fraqueza do Partido Comunista Palestino;
5 A situação mundial desfavorável.102
No conjunto, isso está correto, mas a essas causas deve ser adicionado
o fato de que o Partido Comunista era próximo à direção de Hajj Amin Al
Hussaini, a quem via como “pertencendo à ala mais extremamente anti-im-
perialista do movimento nacionalista”, enquanto considerava seus inimigos
traidores “feudalistas”.103 E isso a despeito do grupo do Mufti não ter absolu-
tamente nenhuma hesitação em liquidar os elementos esquerdistas que ten-
taram penetrar nos círculos laborais.
A esquerda comunista, além de ser fraca, era incapaz de atingir o
campo; estava concentrada em certas cidades. Ela falhou em arabizar o par-
tido, como o Sétimo Congresso da Comintern havia recomendado e foi
ainda vítima de sua visão limitada sobre a unidade árabe e sobre as relações
com o restante da pátria árabe, na medida em que estas refletissem as lutas,
o que teve repercussões organizativas.

102-Yasin, op. cit. p. 115.


103-Ibid., p. 114.
321
Está claro que, sobretudo, a grande falha responsável por essa derrota
foi a grande lacuna causada pela rápida movimentação na sociedade palesti-
na que, como vimos, estava passando por uma transformação extremamente
violenta de uma sociedade árabe agrária para uma sociedade judaica indus-
trial. Essa foi a verdadeira razão pela qual a burguesia nacionalista árabe e a
pequena burguesia não cumpriram seu papel histórico no movimento na-
cionalista palestino, na época, e permitiram que os líderes religiosos feudais
dirigissem esse movimento, por um longo período, sem rivais.
Dr. Abd Al Wahhab Al Kayyali acrescenta outras causas importantes:
“Cansaço da luta”, ele diz, “constante pressão militar e a esperança de que
alguns aspectos do Livro Branco seriam aplicados, além da falta de armas e
munição, todos cumpriram sua parte em dificultar a continuidade da revolta.
Além disso, tendo em vista que o mundo estava à beira da Segunda Guerra
Mundial, a França suprimiu os quartéis dos rebeldes em Damasco”.104
A tudo isso podemos adicionar dois importantes fatores interconec-
tados que podem ser discutidos conjuntamente, uma vez que tiveram papel
preponderante em frustrar a revolta: a atitude da Transjordânia, materializa-
da na atitude do subserviente regime liderado por Emir Abdullah e a ativida-
de levada adiante pelos agentes internos da contrarrevolução, que estavam na
periferia das atividades terroristas das forças britânicas e sionistas.
O Partido da Defesa, liderado por Raghib Nashashibi, desempenhou
o papel de representante legal do subserviente regime transjordaniano
no movimento nacionalista palestino. Esse vínculo servia provavelmente
como um tipo de camuflagem, com o objetivo de ocultar suas conexões
com o colonialismo britânico em meio à batalha na qual esse era o prin-
cipal inimigo. O vínculo, então, com o regime na Transjordânia era um
tipo de camuflagem aceito pelos dois lados. O Partido da Defesa consistia
em um pequeno grupo de effendis urbanos que representava sobretudo os
interesses da nascente burguesia compradora e começava a descobrir que
sua existência e crescimento dependiam de estar ligada não apenas ao co-

104-Kayyali, op. cit., p. 359.


322
lonialismo britânico, mas também ao movimento sionista que controlava a
transformação industrial da economia palestina. Devido a essa situação de
classe, é possível sintetizar as suas histórias dizendo que eles “cooperaram
com as autoridades da ocupação no campo administrativo e com os sionis-
tas no campo comercial, venderam terras aos judeus, atuaram como cor-
retores, disseminaram desconfiança, impediram atividades nacionalistas,
fortaleceram os elos entre Abdullah, Hussaini e os sionistas, em 1923-1924,
apoiaram a imigração e o mandato, nos anos 1920, a partição nos anos
1930, defenderam o estabelecimento de um lar nacional judeu em parte da
Palestina e a entrega da outra parte à Transjordânia... etc.”105
Enquanto Emir Abdullah, da Transjordânia, suprimia o movimento
de massas transjordaniano que, por iniciativa própria, havia decidido
na conferência popular presidida por Mithqal Al Faiz, na aldeia de Umm
Al Amd, apoiar a revolta palestina com homens e materiais, os britânicos
decidiram considerar a Transjordânia como parte do campo de ações contra
as atividades dos rebeldes palestinos.
O papel desempenhado pelo subserviente regime transjordaniano foi
além: fechou as estradas para o Iraque para impedir a chegada de qual-
quer apoio e restringiu a movimentação dos líderes palestinos que, após a
construção do emaranhado de arame farpado ao longo da fronteira nor-
te da Palestina, foram obrigados a intensificar suas atividades a partir da
Transjordânia. As atividades do regime culminaram na prisão, em 1939,
de dois líderes palestinos. Um deles, Yusuf Abu Durrar, foi entregue aos
britânicos e então executado.
Nesse momento, as forças do regime transjordaniano estavam engaja-
das lado a lado com as tropas britânicas e as gangues sionistas em perseguir os
rebeldes. Não há dúvida que esse papel desempenhado pelo regime transjor-
daniano incentivou elementos da contrarrevolução interna a intensificarem
as suas atividades. Alguns líderes do Partido da Defesa tomaram parte no
estabelecimento do que chamavam “destacamentos de paz”, pequenas forças

105-Sayegh, Anis, The Hashemite & The Palestine Question, Beirute,


1966, p. 150.
323
mercenárias que foram formadas em cooperação com os ingleses e ajudavam
a perseguir os rebeldes, participando de enfrentamentos contra eles e os ex-
pulsando de algumas posições sob seu controle. Fakhri Al Nashashibi liderou
uma dessas divisões, armando-as e dirigindo suas atividades... Isso levou ao
seu assassinato alguns meses depois do fim da revolta106. Antes, a campanha
selvagem para desarmar inteiramente a Palestina dependera de “encorajar
elementos hostis ao Mufti em supri-los (os britânicos) com informações e em
identificar os rebeldes”.107 A posição do Iraque e da Arábia Saudita na época
não era muito melhor do que a do regime jordaniano. Na conferência de Lon-
dres, eles expressaram sua prontidão em “usar sua influência com os líderes
palestinos para pôr fim à revolta”.108 Mas nada disso podia fazer dos líderes da
contrarrevolução (os agentes dos britânicos) uma força que tivesse qualquer
peso junto às massas. Ao contrário, isso fortaleceu o Mufti e sua liderança,
enquanto se pretendia, com o incentivo aos elementos contrarrevolucioná-
rios, dentre outras coisas, reduzir o Mufti e confiná-lo em um campo no qual
poderia, por fim, ser controlado. Em todo o período, os britânicos atuaram
com a convicção que Al Nashashibi nunca seria um substituto para o Mufti.
O pequeno e marginal grau de manobra do comando do Mufti, que era
resultado de disputas menores em andamento entre os colonialismos francês
na Síria e Líbano e britânico, não foi capaz de direcionar a uma mudança
radical no equilíbrio de poder, e rapidamente se contraiu ao ponto de quase
inexistir na véspera da guerra. Esses fatos, no conjunto, demonstram que a
revolta palestina foi atacada e sofreu golpes em seus três pontos mais vitais:
1 O ponto subjetivo – significando a incapacidade, hesitação, fraqueza,
subjetividade e anarquia de seus vários líderes.
2 O ponto árabe – significando a conspiração dos regimes árabes em
frustrá-la num período em que o débil movimento popular nacionalis-
ta árabe estava somente interagindo com a revolta palestina de forma
seletiva, subjetiva e marginal.

106-Ibid. Ver também Al Talia’a, nº 4, 7 de Abril, 1971, Cairo, p. 98.


107-Kayyali, op. cit., p. 348.
108-Uma carta de Bagdá para o Ministro do Exterior britânico. 31 de outubro de 1930.
Citado em Kayyali, Ibid. p., 349.
324
3 O ponto internacional - significando o imenso desequilíbrio objetivo
de poder que resultou da aliança de todos os membros do campo colo-
nialista uns com os outros e também com o movimento sionista, tendo
a seu dispor uma considerável força ofensiva na véspera da Segunda
Guerra Mundial.
A melhor estimativa sobre a revolta de 1936 a 1939 aponta que as per-
das humanas árabes nos quatro anos totalizam 19.792 mortos e feridos, in-
cluídas as baixas sofridas pelos árabes-palestinos nas mãos das gangues sio-
nistas no mesmo período.
Essa estimativa é baseada nas primeiras admissões conservadoras con-
tidas nos relatórios britânicos oficiais, checados em contraste com outros
documentos109. Esses cálculos estabelecem que 1.200 árabes foram mortos
em 1936, 120 em 1937, 1.200 em 1938 e 1.200 em 1939. Além disso, 112 ára-
bes foram executados e 1.200 assassinados em várias operações terroristas. A
soma, portanto, de árabes mortos é de 5.032, enquanto 14.760 foram feridos
na revolta de 1936-1939.
O número de detentos foi de cerca de 816 em 1937, 2.463 em 1938 e
aproximadamente 5.679 em 1939. O real significado desses números pode
ser demonstrado em comparações. Em relação ao número de habitantes,
as perdas palestinas em 1936-1939 equivaleriam às perdas pelos britânicos
de 200 mil mortos, 600 mil feridos e 1,224 milhão de presos. No caso da
América, as perdas significariam 1 milhão de mortos, 3 milhões de feridos
e 6,120 milhões de presos!
Mas a real e mais séria perda está no rápido crescimento de ambos os
setores, militar e econômico, os quais assentaram as bases da entidade sionista
colonial na Palestina. Não é exagero dizer que essa presença econômica e mili-
tar dos sionistas, cujos elos com o imperialismo ficaram mais fortes, estabele-
ceram suas principais fundações nesse período (entre 1936 e 1939) e um histo-
riador israelense vai tão longe quanto afirmar que “as condições para a vitória
que os sionistas tiveram em 1948 foram criadas no período da revolta árabe”.110
109-Walid Khalidi ed., From Haven to Conquest, IPS, Beirute, 1971, pp. 836-849.
110-Bouyissir, op. cit., p. 21.
325
A política geral seguida pelos sionistas, durante esse período, pode
ser vista em sua profunda determinação em evitar quaisquer conflitos entre
eles e as autoridades mandatárias, até mesmo quando os últimos, fortemente
pressionados pelos rebeldes árabes, foram obrigados a recusar algumas das
vigorosas demandas do movimento sionista.
Os sionistas sabiam que se dessem aos britânicos - que na época pos-
suíam o mais forte e mais agressivo exército colonial do mundo - a chance de
esmagar a revolta árabe na Palestina, esse exército estaria cumprindo maior
serviço aos seus planos do que eles jamais haviam sonhado.
Assim, os principais planos sionistas correram através de duas linhas
paralelas: a aliança mais próxima possível com os britânicos - ao extremo
que o 20º Congresso Sionista, realizado no verão de 1937, expressou sua
prontidão em aceitar a partição em sua determinação em conciliar-se com
os britânicos e evitar qualquer choque com esses. Tal política foi exercida de
modo a permitir que o império colonialista esmagasse a revolta árabe que
eclodiu novamente naquele mesmo verão.
A outra linha de sua política consistia na contínua mobilização in-
terna da sociedade dos colonos sionistas, sob o slogan adaptado por Ben
Gurion na época de “não há alternativa”, que enfatizava a necessidade de
assentar os alicerces de uma sociedade militar - e seus instrumentos mili-
tares e econômicos.
A questão da maior conciliação possível com os britânicos, apesar de
eles terem, por exemplo, tomado medidas para reduzir a imigração judaica,
foi ponto crucial na história da política sionista durante o período - e apesar
de haver no movimento certos elementos que rejeitavam o que chamavam de
“autocontrole”, a voz dessa minoria não teve nenhum efeito. A lei que guiou
as políticas sionistas durante esse período foi aquela sintetizada por Weiz-
mann: “Há completa similaridade entre os interesses dos sionistas e dos bri-
tânicos na Palestina.”
Durante esse período, a cooperação e interação entre as duas linhas
políticas - (1) aliança com o mandato britânico ao limite máximo possível
326
e (2) a mobilização da sociedade colonial judaica - tiveram consequências
extremamente importantes.
A burguesia judaica tirou vantagem da propagação da revolta árabe
para implementar muitos dos projetos que não teria sido capaz sob circuns-
tâncias distintas. Subitamente livre da competição com a produção agrícola
árabe-palestina barata111, essa burguesia procedeu ações para promover a sua
existência econômica. Naturalmente, não foi possível fazê-lo sem as bênçãos
dos britânicos.
Durante a revolta, os sionistas e as autoridades mandatárias foram
bem-sucedidos em construir uma rede de rodovias entre as principais co-
lônias sionistas e as cidades que mais tarde formariam a porção básica da
infraestrutura da economia sionista. Depois, a principal rodovia de Haifa a
Tel-Aviv foi pavimentada, e o porto de Haifa foi expandido e aprofundado.
Um porto foi construído em Tel-Aviv, o que mais tarde “mataria” o porto de
Jaffa. Além disso, os sionistas monopolizaram contratos para suprir as tropas
britânicas que começavam a inundar a Palestina.
Cinquenta colônias sionistas foram estabelecidas entre 1936 e 1939 e,
entre 1936 e 1938, judeus investiram PL 1.268.000 em trabalhos de constru-
ção em cinco cidades judaicas, contra apenas PL 120.000 investidos por ára-
bes em 16 vilarejos, no mesmo período. Judeus também se envolveram lar-
gamente nos projetos de segurança britânicos empreendidos para absorver o
grande número de judeus trabalhadores desempregados, que cresciam cons-
tantemente em números nas fronteiras da Palestina. “Os britânicos emprega-
ram trabalho judeu ao custo de PL 100 mil na construção112, assim como em
dezenas de outros projetos”.
Números publicados posteriormente nos dão uma ideia mais precisa:
o valor das exportações de bens manufaturados locais cresceu de PL 478.807

111-Tomemos um exemplo, salários pagos pelos cultivadores de frutas cítricas - o mais


importante produto agrícola na Palestina. Em 1936, o Conselho Geral de Agricultura
fixou os salários dos trabalhadores judeus em PL 12 por dunum por ano e o dos
trabalhadores árabes em PL 8.
112-Barbour, op. cit. p. 193.
327
em 1935 para quase o dobro em 1937 (PL 896.875), apesar da revolta113. Isso
só pode ser explicado pelo grande aumento de atividade da economia judaica.
O espectro dessa mobilização expandiu-se do campo econômico, em
aliança com o mandato, para o campo militar, em conspiração com este.
Os britânicos perceberam que o seu aliado sionista estava qualificado
para cumprir o papel que ninguém mais poderia desempenhar tão bem. Ben
Gurion diz somente parte da verdade, quando admite que o número de ju-
deus recrutados na força quase-policial armada com rifles subiu para 2.863,
em setembro de 1936, porque era apenas parte da força judaica - havia 12
mil homens na Haganah, em 1937, além de mais 3 mil na Organização Mili-
tar Nacional de Jabotinski114. A aliança desses, enquanto verdadeiros repre-
sentantes do movimento sionista, com o colonialismo britânico, levou à ideia
de uma “força quase-policial”, na primavera de 1936. A ideia serviu como
cobertura para a presença sionista armada que gozou das bênçãos e encora-
jamento dos britânicos.
Essa força serviu como transição por alguns meses, durante os quais a
Haganah preparou-se, no início de 1937, para um novo estágio. Não somente
os britânicos estavam cientes disso, mas de fato ajudaram a moldá-lo. Esse
estágio consistia em incursões por patrulha e operações limitadas contra pa-
lestinos-árabes, cujo principal objetivo era distraí-los e confundi-los. Teria
sido impossível avançar para esse estágio e, ao mesmo tempo, manter a tré-
gua (a aliança) com as autoridades mandatárias sem um plano conjunto. Ben
Gurion afirma que a farsa da polícia sionista adicional proveu uma “moldura”
ideal para os treinamentos da Haganah.115
No verão de 1937, foi dado a essa força o nome de “Defesa das Colônias
Judaicas”, mais tarde alterado para “Polícia das Colônias”. Ela foi organizada sob
a supervisão do mandato britânico, em todos os cantos do país, e os britânicos se
incumbiram de treinar seus membros. Em 1937, foi fortalecida com 3 mil novos
membros, todos os quais desempenharam papel direto nas operações de repres-

113-Himadeh, op. cit., p. 323.


114-Bouyissir, op. cit., p. 323.
115-Ben Gurion, op. cit., p. 372.
328
são contra os rebeldes palestinos, especialmente no norte. Em junho de 1938, os
britânicos decidiram que operações de ofensiva deveriam ser realizadas contra
os rebeldes. Portanto, realizaram cursos de instrução sobre o tema, os quais pro-
veram treinamento para um grande número de quadros da Haganah, que mais
tarde se tornariam quadros do exército de Israel116. No início de 1939, o exército
britânico organizou dez grupos de Polícia das Colônias bem armados, aos quais
foram dados nomes hebreus. Aos membros dessa força, foi permitido abandonar
o Qalbaq, o protetor de cabeça oficial, pelo chapéu australiano, para torná-los
ainda mais distintos. Esses grupos totalizaram 14.411 homens, cada um coman-
dado por um oficial britânico, que era assistido por um segundo em comando
apontado pela Agência Judaica. Na primavera de 1939, os sionistas também ti-
nham 62 unidades motorizadas, de oito a dez homens cada.
Na primavera de 1938, o comando britânico decidiu confiar a esses
elementos sionistas a defesa das ferrovias entre Haifa e Lydda - frequente-
mente explodidas por comandos palestinos - e enviou 434 membros para
executar a missão. No entanto, apenas seis meses depois, a Agência Judaica
conseguiu elevar seus números a 800. Esse desenvolvimento não foi útil
somente para acumular forças do exército sionista, mas também ajudou a
absorver grande número de judeus trabalhadores desempregados, que cres-
ciam constantemente nas cidades. Dessa forma, o proletariado judeu foi
conduzido a trabalhar em organizações repressivas, não somente nos pro-
jetos de segurança britânicos direcionados contra a revolta, mas também
na força militar sionista.
As bases do aparato militar sionista foram estabelecidas sob supervisão
britânica. À força sionista a que havia sido confiada a defesa da ferrovia de Hai-
fa-Lydda, foi dada mais tarde a defesa do oleoduto na planície de Bashan. Esse
oleoduto, recentemente construído (1934) para trazer petróleo de Kirkuk para
Haifa, havia sido explodido muitas vezes pelos rebeldes palestinos.
Isso tinha imenso valor simbólico. Os rebeldes árabes, conscientes do
valor do petróleo para os exploradores britânicos, explodiram o oleoduto

116-Ibid., p. 373.
329
pela primeira vez perto de Irbid, em 15 de julho de 1936. Este foi depois
explodido diversas vezes perto dos vilarejos de Kaukab, Hawa, Mihna Israil,
Iksal, entre at-Ufula e Bashan, em Tell Adas, Bira, Ard Al Marj, Tamra, Kafr
Misr, Jisr Al Majami, Jinjar, Bashan e Ain Daur. Os britânicos eram incapazes
de defender esse oleoduto vital e admitiram o fato, tanto que o “cano”, como
os árabes-palestinos o chamavam, foi consagrado no folclore que glorificava
atos de heroísmo popular.
De qualquer maneira, os britânicos asseguravam proteção mínima
para o oleoduto em dois sentidos. Dentro da Palestina esse foi defendido por
grupos sionistas, enquanto no território jordaniano a tarefa de guardá-lo foi
dada a “Sheikh Turki ibn Zain, chefe da subdivisão Zain da tribo Bani Sakhr,
a quem a companhia autorizou a patrulhar o deserto por quaisquer meios
necessários”.117
Ben Gurion quase revelou esse fato diretamente, quando falou sobre os
esforços britânicos em estabelecer uma força aérea sionista, a qual teria por
tarefa salvaguardar tais interesses.
Os britânicos, em um estágio inicial, foram capazes de enxergar a
estratégia chamada 30 anos mais tarde pelos americanos de “vietnamização”.
Isso teve extrema importância, porque foi esse incidente que fortaleceu a
convicção britânica de que a formação de uma força de combate sionista
resolveria muitos problemas ligados à defesa dos interesses imperialistas,
acompanhado pelos esforços para formar as forças armadas sionistas para
proteger tais interesses.
Nesse terreno, o oficial britânico Charles Orde Wingate desempenhou
papel proeminente traduzindo a aliança anglo-sionista em ação prática. Histo-
riadores sionistas tentam dar a impressão de que os esforços de Wingate foram
consequência de temperamento pessoal e devoção “idealista”. Mas é óbvio que
a esse oficial inteligente, que foi mandado a Haifa pelos seus chefes no outono
de 1937, foi confiada uma tarefa em especial - a formação de um núcleo de
forças de ataque para as forças armadas sionistas que já existiam há pelo menos
seis meses, mas que precisavam de cristalização e preparação.
117-Sifri, op.cit., pp. 131-132.
330
O oficial britânico, que os soldados “israelenses” consideram o real
fundador do exército “israelense”, fez do problema do oleoduto a sua tarefa
especial. No entanto, essa tarefa levou a uma série de operações envolvendo
terrorismo e assassinato, e foi Wingate quem tomou para si a tarefa de ensi-
nar seus pupilos em Ain Daur - dentre os quais estava Dayan - a se torna-
rem experts em tais operações.
Não há dúvidas que, além de suas qualificações como um experiente
oficial imperialista, Wingate estava munido de ilimitado ódio racista pelos
árabes. É evidente, a partir das biografias escritas por aqueles que o conhe-
ciam, que ele se deliciava em matar ou torturar camponeses árabes ou humi-
lhá-los de qualquer forma118.
Através de imperialistas como Wingate e de líderes reacionários do
tipo de Emir Abdullah, os britânicos possibilitavam ao movimento sio-
nista tornar-se, no campo militar e econômico, o posto avançado para
seus interesses. Tudo isso aconteceu devido à convicção de todos os en-
volvidos de que a liderança do movimento nacionalista palestino não era
suficientemente revolucionária a ponto de capacitá-lo a levantar-se con-
tra esses inimigos intimamente unidos.
Em meio a tudo isso, o movimento nacionalista palestino, paralisado
por fatores subjetivos que mencionamos e pelos violentos ataques lançados
tanto por britânicos quanto pelos sionistas, estava em situação difícil às vés-
peras da Segunda Guerra Mundial. As afirmações de alguns historiadores de
que os árabes “pararam” sua revolta para permitir aos britânicos travarem
sua guerra mundial contra o nazismo são tolas e refutadas não somente pelos
fatos, mas também por Hajj Amin Al Hussaini ter se refugiado na Alemanha
nazista durante toda a guerra.
Esse quadro como um todo representa o mapa político e social que pre-
valeceu durante os anos de 1936-1939. É essa situação, com as relações dialé-
ticas envolvidas, que explica a estagnação do movimento nacionalista palesti-
no durante a guerra. Quando a guerra acabou, os britânicos pensavam que o
movimento nacionalista palestino já estava bem domesticado: sua liderança

118-Khalidi, op. cit., p. 375-378.


331
estava quebrada e dispersa, sua base havia se enfraquecido e seu tecido social,
desgastado e desintegrado, como resultado da violenta mudança que estava
acontecendo na sociedade, da falência de sua direção e partidos em organizá-la
e mobilizá-la - também como resultado da fraqueza e confusão da esquerda e
da instabilidade do movimento nacionalista nos países árabes vizinhos.
Logo, o movimento sionista adentrou os anos 1940 encontrando o
campo praticamente limpo, com o clima internacional extremamente a fa-
vor, seguindo a atmosfera psicológica e política causada pelo massacre de
Hitler aos judeus. Ao passo que os regimes árabes nos países vizinhos eram
burgueses na situação histórica, sem nenhum poder real. Não havia, tampou-
co, na época, entre a sociedade judaica na Palestina, nenhum movimento de
esquerda para exercer pressão na direção oposta - praticamente a totalidade
dessa sociedade estava dedicada ao assentamento através de invasões. Com
a Segunda Guerra Mundial, a esquerda palestina havia começado a perder a
iniciativa inaugurada em meados dos anos 1930 como resultado da mudança
na política da Comintern, acompanhada pelo fracasso em arabizar o partido.
Além disso, a esquerda comunista estava se tornando cada vez mais sujeita à
repressão pela liderança árabe derrotada. (Por exemplo, os homens do Mufti
assassinaram o líder sindical Sami Taha, em Haifa, em 12 de setembro de
1947, e antes, o assassinato em Jaffa do sindicalista Michel Mitri, que havia
desempenhado importante papel em mobilizar os trabalhadores árabes antes
da erupção dos conflitos, em 1936).
Tudo isso permitiu ao movimento sionista, em meados dos anos
1940, avançar o previamente parcial conflito com o colonialismo britânico
na Palestina depois de longos anos de aliança. Assim, em 1947, as circuns-
tâncias estavam favoráveis para que colhesse os frutos da derrota de 1936,
a qual a erupção da guerra havia impedido que o fizesse antes. Assim, o
período tomado para completar o segundo capítulo da derrota palestina
- do final de 1947 a meados de 1948 - foi incrivelmente curto, porque foi
apenas a conclusão de um longo e sangrento capítulo que durou de abril de
1936 a setembro de 1939.
332
Análise literária:
A literatura de resistência
palestina: um estudo
(fragmento)

333
Texto que expõe as diferenças da literatura produzida na
Palestina, no período anterior à Nakba ainda muito atrelada
às formas clássicas árabes, pós-Nakba, refletindo temas de dor
e sofrimento (mais realistas) e a de resistência que ganhava
relevância maior naquele momento histórico, com especial
atenção à produção poética.
De certa forma, seguindo e revelando o movimento
político do povo palestino que deixa de se lamentar (poesia pós-
Nakba) para reorganizar a luta (poesia de resistência).

Nota do organizador

334
A queda da Palestina nas mãos dos sionistas, em 1948, conduziu a uma
mudança desastrosa no número e na estrutura social da população árabe da
Palestina ocupada. Cerca de três quartos dos 200 mil árabes que permanece-
ram em sua terra natal eram camponeses. As cidades foram em sua maioria
evacuadas durante a guerra ou logo depois. Este fato levou a uma revoltante
deterioração das condições sociais dos árabes, pois as cidades se constituíam
em centro de difusão tanto política como cultural.
Tendo os ocupantes sionistas fechados seu anel militar, começaram
a impor suas medidas opressivas - a atmosfera lhes era conveniente. Seu
propósito principal era a erradicação de qualquer traço da personalidade
árabe e a implantação de novas tendências, que pudessem crescer e se
integrar a vida política e literária sionista.
A literatura palestina havia sido, até a trágica Nakba, parte integrante
da corrente principal do movimento literário árabe, cujo florescimento se
dera durante a primeira metade do século XX. Havia buscado suas fontes no
Cairo e sofrera influência dos escritores egípcios, sírios e libaneses, que lide-
ravam o movimento literário à época. Mesmo os escritores palestinos mais
conhecidos deviam sua fama em grande parte ao capital árabe, que os rece-
biam e patrocinavam suas produções artísticas. Vários fatores contribuíram,
na verdade, para diminuir o valor da literatura palestina, em uma época em
que a Palestina gozava de uma posição de relevo na arena política e na luta
pelo nacionalismo árabe.
Depois de 1948, a literatura palestina foi bem sucedida em lançar as
fundações de um novo movimento literário, que pode ser mais bem descrito
como “literatura do exílio” do que uma “literatura palestina” ou “dos refugia-
dos”. A poesia, principal elemento desse movimento, pode testemunhar, em
anos recentes, um progresso notável na qualidade e técnica. O curto período
de silêncio, após a guerra de 1948, foi seguido por um grande despertar e
a poesia nacional transbordava, refletindo o fervor nacional popular. Sofria
Texto extraído da obra: Lamentos dos oprimidos - poemas palestinos. Missão da
Liga dos Estados Árabes: Rio de Janeiro, 1971. É um fragmento do estudo de Ghassan
Kanafani produzido em 1966.
335
influência das tendências literárias árabes e estrangeiras e foi, gradualmente,
quebrando as regras tradicionais da técnica, repelindo as velhas explosões
sentimentais e emergindo como um sentimento ímpar de profunda tristeza,
mais de acordo com a realidade da situação vivida.
Por outro lado, a literatura da resistência na Palestina ocupada con-
frontava-se com diferenças radicais de opinião. A espinha dorsal da literatura
árabe, na Palestina ocupada, havia desaparecido com a imigração de toda
uma geração de escritores e homens de cultura. Os nãos imigrantes constitu-
íam uma sociedade rural, em sua maior parte sujeita a perseguições políticas,
sociais e culturais sem paralelo em qualquer outra parte do mundo.
Os fatos abaixo podem lançar alguma luz sobre a verdadeira situação
dos árabes dentro da Palestina ocupada:
1. A maioria dos palestinos que permaneceu não tinha, devido a sua con-
dição social, um padrão cultural que permitisse a criação de uma nova
geração de escritores e artistas.
2. As cidades árabes, que recebiam e encorajam os jovens talentosos pro-
cedentes do setor rural, haviam se transformado em cidades proibidas
pelo inimigo.
3. A população árabe se achava completamente isolada, sem nenhum
contato com outros países árabes.
4. O regulamento militar sionista impunha restrições tirânicas à popula-
ção árabe e censurava suas produções literárias.
5. Os meios de publicação e distribuição haviam sido limitados ou colo-
cados sobre restrições severas.
6. A oportunidade de aprender idiomas estrangeiros não existia para os
árabes. Muito poucos podiam ingressar nas escolas secundárias e qua-
se nenhum nas universidades.
Deve ser lembrado, ao ler a literatura que foi capaz de emergir da-
quela situação, que a população árabe tem estado lutando na escura noite
da perseguição e da tortura para consolidar sua existência e poder expres-
sar-se. Conseguiu, agora, formar sua expressão própria, cristalizando-a em
uma palpitante literatura de resistência.
336
Sobre o severo cerco, fácil é imaginar por que a poesia se constituiu
o primeiro arauto do apelo da resistência, pois a poesia brota de boca em
boca e vive sem ser publicada. Isso também explica por que essa poesia se
restringia, a princípio, à forma tradicional, mais fácil de ser apreendida e gra-
vada, capaz de mais rapidamente atrair os sentimentos. A primeira explo-
são se caracterizava principalmente pelos poemas de amor, mas a partir da
poesia tradicional, os poemas populares começaram a surgir para formar a
primeira semente das manifestações de resistência. De fato, a poesia popular
desempenhou um importante papel na história da Palestina desde os anos 20
e se tornou famosa em todo o mundo árabe. Quase todo palestino conhece
e recita o poema popular abaixo transcrito, improvisado por um combatente
palestino, pouco antes de ser executado pelas autoridades do Mandato Britâ-
nico, em 1936:

É noite: deixe que o cativo termine o seu canto,


na madrugada suas asas estarão palpitando
e o enforcado balançará ao vento.
É noite: diminua o passo,
deixe-me abrir meu coração,
talvez você tenha esquecido quem eu sou
e quais são as minhas dores.
Piedade, minhas horas escaparam
por entre suas mãos.
Não pense que choro por medo,
minhas lágrimas são por minha Pátria
e por um punhado de pequenos implumes,
famintos e privados de seu pai.
Quem os alimentará depois que eu me for?
Meus dois irmãos
penderam do cadafalso antes de mim.
E como poderá a minha esposa viver com os seus dias
337
abandonada e triste?
Não pude ao menos colocar uma pulseira
ao redor de seu pulso
quando minha Pátria necessitou de braços.

Os poemas populares dominaram a cena por quase dez anos depois


de 1948, antes do surgimento de quaisquer tipo de literatura bem desenvol-
vida. Era o meio pelo qual a população vencida podia expressar-se mais li-
vremente. Dominava todas manifestações de suas vidas como casamentos,
lutos, festas e qualquer outros tipos de reuniões se transformavam, através
desses poemas, em demonstrações impetuosas, que ignoravam os pelotões
de fuzilamento. Muitos poetas populares foram aprisionados ou confinados
sob severas restrições. E, à medida que as tendências da poesia popular cres-
ciam e se expandiam, as forças ocupantes ampliavam suas medidas tirâni-
cas executando alguns poetas e proibindo todas as reuniões dos árabes. Tais
medidas não conseguiam, porém, extirpar esse movimento de resistência,
mantendo-o latente por quase cinco anos, para irromper novamente com
mais força e vitalidade. No início dos anos 60, surgiu de uma maneira bem
surpreendente uma nova onda literária. Os conceitos emitidos nessa nova
onda eram bravos, cheios de vitalidade e otimismo, trazendo o espírito de
desafio, ao contrário da literatura dos poetas exilados do mesmo período, em
sua maior parte triste e fervorosa.
A década que precedeu essa nova explosão pode ser melhor descrita
como período de integração da personalidade e da identificação da persona-
lidade árabe com a causa de sua luta. Os vencidos e desamparados que se ha-
viam refugiado na poesia amorosa durante os poucos anos que se seguiram a
1948, começaram, com o advento dos anos 60, a desenvolver uma verdadeira
força de resistência, intrépida, brava e cheia de esperança.
A poesia de amor era uma consequência dos amargos sentimentos de
solidão e privação que se apossaram da população árabe, após 1948. O senti-
mento de que constituíam uma minoria derrotada começou com o passar do
338
tempo a transformar-se em um sentimento de desafio, e os vencidos começa-
ram a ser bem sucedidos ao enfrentar as difíceis circunstâncias.
A resistência não representava uma escolha fácil, pelo contrário, era
uma batalha de todos os dias, contra um inimigo feroz, que a considerava
uma questão de vida ou morte. E as medidas de perseguição se tornaram
mais ferozes com a resistência consolidada. Contrariamente à poesia do exí-
lio, a poesia da resistência emergiu como um espírito revolucionário surpre-
endente, completamente liberta da tendência à tristeza, às lágrimas e muito
rapidamente se fez eco em todos os levantes políticos dos países árabes.
Essa poesia de resistência não somente testemunhou uma alteração
no significado e efeito poético, mas igualmente na forma e técnica. Rejeita-
va as formas poéticas tradicionais e adotava técnicas modernas sem perder
sua força. Quanto ao sentido, a poesia de resistência se corria aos vários
meios de expressão:
1. Amor: O amor por uma mulher é completamente integrado no amor à
Pátria. Mulher e terra são completamente assimiladas em um imenso
amor e transformadas na grande causa da libertação.
2. Sátira: O inimigo e seus adeptos são ridicularizados e os atos de su-
pressão são descritos com amarga ironia. Essa tendência é expressa no
espírito vivo e incontestável, que encara todos os fatos como uma con-
dição efêmera e transitória, a qual mais cedo ou mais tarde deverá e
será mudada, com o retorno à normalidade.
3. Desafio e provocação: O inimigo é desmascarado e posto face a face
com o firme e destemido espírito dos combatentes.
É digno de nota que a literatura de resistência é caracterizada, princi-
palmente, como esquerdista. Isto é uma consequência das circunstâncias que
dominavam a vida da Palestina e que podem ser resumidas como segue:
1. A maior parte da população árabe era rural, profundamente envolvida
nas revoluções e levantes que tiveram lugar na Palestina, antes de 1948,
contra o Mandato Britânico. Foram eles também que receberam o pior
golpe, em 1948.
339
2. As péssimas condições nas quais viviam os árabes e a desapiedada tira-
nia que tinham de enfrentar em sua luta pelo pão de cada dia.
3. O fato de que a existência do inimigo era o resultado dos esquemas
imperialistas e de que sua continuação era sustentada principalmente
pelo capitalismo.
Além do mais, a poesia de resistência se constituía em um desafio a
todos os credos sionistas. Ocupa-se de todos eles e descarta-os um após o ou-
tro. É uma literatura consolidada, baseada no raciocínio e não em uma emo-
ção passageira. Acima de tudo, continua como um importante elo na cadeia
da permanente revolução árabe e segue de mãos dadas com o movimento
progressista árabe. Tem sido também, a despeito de todos os impedimentos
e obstáculos, capaz de crescer e tornar-se uma literatura verdadeira, apresen-
tando a personalidade do poeta combatente.

340
Romance:
Retorno a Haifa

341
Texto que expõe uma literatura política mais madura
de Ghassan Kanafani, produzido em sua fase final, quando
já era um marxista revolucionário. Os personagens adentram
em diálogos densos que tocam em temas profundos para os
palestinos do pós-Nakba. Essas feridas não são tangenciadas
no texto, mas expostas como condição necessária para cura.
É uma obra que revela a evolução política do autor e sua
capacidade de relacionar política revolucionária e arte.

Nota do organizador

342
Quando Said adentrou à entrada da cidade, vindo de carro pelo cami-
nho de Al Quds, sentiu algo indescritível que lhe travou a língua, levando-o
ao silêncio e a uma tristeza que tomou seu corpo. Por um momento, quis vol-
tar e sem olhar em seus olhos, sabia que chorava em silêncio, enquanto ouvia
o barulho do mar como no passado. A memória não veio aos poucos, mas
chegou como uma enxurrada em sua mente, um mundo de pedras ruindo
sobre ele. As situações e acontecimentos surgiram de forma abrupta e caíram
sobre ele, tomando todo seu corpo. Então, disse a si mesmo que sua esposa,
Safia, sentia a mesma coisa e, por isso, o pranto.
Desde que deixou Ramallah, naquela manhã, não parou de conversar.
Tampouco sua esposa, com os campos que transpassavam o para-brisa sob
seu olhar e aquele sufocante calor que o fez sentir queimar o rosto, como os
pneus do carro no asfalto. Acima dele, o sol escaldante daquele mês de junho
distribuía sua fúria sobre a terra.
Durante o extenso percurso, ele não parava de falar. Falava com Saifa
sobre tudo: sobre a guerra e a derrota; sobre o portão de entrada de Man-
delbaun1 que os tanques demoliram e sobre o inimigo que se expandiu des-
de o rio e o Canal de Suez, até a entrada de Damasco.2 Falava sobre o cessar
fogo, rádio, roubo de joias e objetos pelo exército invasor, toque de recolher,
o primo que estava no Golfo com suas preocupações, vizinho que pegou
suas coisas e fugiu, sobre soldados árabes que combateram durante dois
dias sozinhos no morro próximo ao Hospital, homens que tiraram seus
uniformes e lutaram nas ruas de Al Quds e sobre um camponês morto. Sua
esposa falou sem parar sobre muitas outras coisas durante o caminho. Ago-
ra, quando chegaram finalmente à entrada de Haifa, ambos emudeceram e
notaram, naquele instante, que não disseram uma palavra sequer sobre o
assunto que os trouxera ali.
Tradução: Jamil Abdalla Fayad.
1-O Portão de Mandelbaun era a principal passagem entre Al Quds Ocidental e a
Oriental. Tomado do controle jordaniano pelos judeus sionistas, em junho de 1967,
em uma manobra expansionista do Estado colonizador de Israel.
2-Nos eventos de junho de 1967, as forças colonizadoras e expansionistas israelenses
invadiram e roubaram terras em Al Quds Oriental, Península do Sinai, Cisjordânia,
Faixa de Gaza e até mesmo nas Colinas de Golã da Síria.
343
“Então, esta é Haifa, depois de vinte anos!”
Na tarde de 30 de junho de 1967, um carro pequeno com placas bran-
cas da Jordânia viajava para o norte, adentrando a planície cujo nome, há
vinte anos, era Marj Bin Emir. Ele subia a estrada costeira, em direção ao
sul de Haifa, quando o carro adentrou à rua principal. Sentiu que todas as
paredes caíram e a rua se dissolveu em uma enxurrada de lágrimas. Ele disse
a sua esposa:
“É Haifa, Safia!”
Sentindo o volante pesado nas mãos, suadas como nunca, murnurrou:
“Eu a conheço, esta é Haifa, contudo ela não me reconhece mais” e
trocou de assunto.
Depois de um tempo, veio-lhe um pensamento e disse:
“Sabe? Por vinte longos anos, imaginei que o Portão de Mandelbaum se-
ria aberto algum dia... porém nunca imaginei que seria aberto pelo outro lado.
Isso não passava pela minha mente; por isso, quando o abriram, a situação foi
assustadora, esdrúxula e, de certa forma, humilhante... Posso estar maluco ao
dizer que todas as portas devem se abrir de um só lado e, se forem abertas pelo
outro, temos de considerá-las como se estivessem fechadas, essa é a verdade.”
Falava com a esposa, contudo estava alheia, com o olhar fixo na rua
ora à direita, onde as propriedades agrícolas se estendiam além da visão, ora
à esquerda, onde o mar, distante por mais de vinte anos, soava perto. Repen-
tinamente, ela disse:
“Nunca imaginei que fosse ver Haifa novamente.”
Ele reagiu:
“Você não a vê, eles apenas a mostram para você.”
Nesse instante, pela primeira vez, ela perdeu o controle e gritou:
“Que divagações são essas que você concebeu durante todo o dia?! Por-
tões, visões e tudo o mais. O que aconteceu com você?”
“O que me aconteceu?”
Disse a si mesmo, tremendo, porém conseguiu controlar os nervos e
voltou a dizer, calmamente:
344
“Eles abriram os portões logo que concluíram a ocupação, de forma
rápida, e isso não aconteceu em qualquer outra guerra na história, pois você
sabe das coisas horrendas que ocorreram naquele abril de 1948. E agora, por
que isso? Para os meus olhos e para os seus olhos? Não. Aquilo era a guerra.
Eles nos diziam em tom provocador: entrem e vejam como somos melhores
e mais evoluídos. Vocês devem aceitar a posição de ser nossos serviçais, pois
vocês nos admiram... Mas você pode ver: nada mudou... poderíamos ter feito
por Haifa algo muito melhor...”
“Então por que você veio?”
Olhou para a esposa com um olhar ríspido, e ela se calou.
Se sabia, então por que perguntou? E, mais, foi ela que implorou para
que viessem. Por vinte longos anos, ela evitou conversar sobre isso. Vinte
anos. Então, o passado explodiu como um vulcão em atividade...
Enquanto dirigia pelas ruas de Haifa, o odor da guerra permanecia
forte o suficiente para fazer com que a cidade parecesse escura, abalada e
agitada, com os rostos duros e selvagens. Depois, percebeu que dirigia seu
carro com a nítida sensação de que nada naquelas ruas havia mudado. Ele a
reconhecia, pedra por pedra, esquina por esquina, enquanto percorria suas
ruas com seu antigo Ford 1946 de cor verde.
Ele a conhecia muito bem e, agora, dirigindo seu carro, de forma habi-
tual, sentia como se não estivesse estado distante por vinte anos, nem estado
ausente por todos aqueles tristes anos.
E os nomes pareciam cair sobre ele, lavando a poeira e surgindo: Wadi
Nasnas, Rua Melik Faisal, Muraba’ Hanatir, Al Halisa e Al Hadar.3 Os nomes
se mesclavam em sua cabeça, contudo se manteve sóbrio e questionou a es-
posa em voz baixa:
“Bem, por onde iniciaremos?”
Contudo ela permaneceu em silêncio. Ele a ouviu chorando baixo, de
forma sutil, e compartilhou sua dor, mesmo que não conseguisse diferenciar
o sofrimento de ambos, que durou vinte anos e que agora ressurgia, como um

3-Bairros e ruas de Haifa.


345
gigante dentro dela, em seu peito, em suas memórias e imaginação, contro-
lando seu futuro.
Assustou-se com o fato de não ter pensado sobre o que esse sofrimento
poderia significar para ela e como esse a envelheceu em rugas, seus olhos e
mente. Acompanhava-a em cada prato do que comia, em cada tenda em que
viveu, em cada olhar que observou seus filhos, a ele e a si mesma.
Naquele momento, tudo ressurgia das ruínas do esquecimento e da
dor, trazendo o peso rançoso da derrota que havia provado ao menos duas
vezes durante sua vida.
E, repentinamente, o passado desmoronou sobre ele, afiado como faca.
Manobravam o carro ao fim da Rua Malik Faisal (as ruas para ele não haviam
trocado de nome), em direção ao cruzamento que leva para o porto, direto
para a rua que leva ao bairro Wadi Nasnas, quando se deparou com um gru-
po de soldados, parados no cruzamento, em frente a um blindado.
Ao observar os soldados com o canto dos olhos, escutou um estrondo
parecido com o de uma explosão distante. E, logo em seguida, ouviu uma
rajada de tiros que fez tremer o volante que segurava. Ele quase colidiu com
a calçada, mas no último momento se recuperou e viu um menino correndo
pela rua. Aquela cena toda o transportou ao horrível e tumultuado passado.
Pela primeira vez, em tantos anos, se lembrou do que acontecera, com todos
os pequenos detalhes, como se estivesse revivendo tudo novamente.
Era uma manhã, quarta-feira, 21 de abril de 1948.
Haifa, a cidade, não esperava o que viria, apesar de estar repleta de
tensão e fúria.
O bombardeio veio violentamente do oriente, do alto do Monte Car-
melo. As luzes das explosões atravessaram o centro na direção dos bairros
árabes.
As ruas de Haifa viraram um caos, onde reinou o terror que impôs a
toda a região o fechamento das lojas e janelas das casas.
Said estava no coração da cidade, quando o som das armas e explosões
preencheram o céu de Haifa até o início da tarde. Ele acreditou que aquele
346
ataque fosse menos vasto e, somente naquele momento, tentou, apavorado
pela primeira vez, voltar para sua residência com seu carro, quando soube
que aquilo era impossível. Transitou pelas ruas secundárias, tentando chegar
a Halisa, onde morava, mas o tumulto se espalhou, viu homens carregando
armas correndo da rua lateral para a principal e dela para a rua lateral nova-
mente. Locomoviam-se dirigidos por instruções dos alto-falantes dispostos
em locais estratégicos. Depois de um tempo, Said sentiu-se mais desorienta-
do. Os becos, fechados por metralhadoras ou pelos soldados, pareciam em-
purrá-lo em uma única direção possível. Mais de uma vez, enquanto tentava
retornar ao caminho principal escolhendo um trajeto particular, era empur-
rado por uma força na direção de um único destino - o litoral.
Estava casado com Safia há exatos um ano e quatro meses e alugou
uma pequena casa naquela região, acreditando que seria mais seguro, quando
compreendeu que não conseguiria chegar até ela... Sabia que sua esposa não
conseguiria cuidar de si própria. Desde que a trouxe do pequeno vilarejo, ela
não se acostumara com as novas circunstâncias sem solução, pois isso lhe
causava pavor. E o que poderia acontecer a ela… agora?
Estava quase perdido e não sabia quando e como começariam os en-
frentamentos armados. Pelo que conhecia, ou até onde entendia, os ingleses
ainda controlavam a cidade, e nos aspectos formais dos acontecimentos, es-
tava prevista a retirada dos britânicos para dali a três semanas.
Enquanto dirigia o carro, tinha ciência de que devia evitar os locais
altos interligados pela Rua Herltz, onde os judeus se estabeleceram desde o
início, porém, por outro lado, devia se afastar do bazar localizado entre o
bairro Halisa e a Rua Allenby, porque era o lugar em que se concentrava em
peso o armamento deles.
Tentou circundar o bazar para conseguir chegar até o seu bairro. Estava
diante da rua que terminava em Wadi Nasnas e passava pela Cidade Velha.
Rapidamente, as coisas se mesclaram e os nomes se embaralharam:
Al Halisa, Wadi Rushmaya, Al Burj, a Cidade Velha, Wadi Nasnas, sentiu-se
completamente desorientado e perdeu o rumo. O bombardeio só aumentava.
347
Mesmo estando longe do lugar do tiroteio, conseguiu ver os soldados ingleses
fechando algumas janelas e abrindo outras.
Parecia que, de uma forma ou de outra, permanecia na Cidade Velha,
e de lá correu com uma vitalidade que não acreditava que possuía, na dire-
ção sul, pois sabia que ficava a duzentos metros da Rua Al Haloul; sentiu o
cheiro do mar.
Naquele momento, recordou-se do pequeno Khaldun, seu filho, que
completava naquele dia seu quinto mês, e uma escuridão se apossou dele,
também um mau gosto na língua que nunca deixou de ter e sentir até o pre-
sente momento, vinte anos depois.
Ele podia imaginar esssa catástrofe? Os eventos se mesclam, o passado
e o presente, ambos confundindo-se, com pensamentos, ilusões, imaginações
e sentimentos de vinte anos sucessivos. Ele poderia saber? Sentiu a catástrofe
antes que ocorresse? Por vezes, dizia a si mesmo: “Sim, sabia disso antes mes-
mo de acontecer”. Outras vezes, dizia: “Não, só pensei depois. Não poderia
ter esperado nada tão monstruoso quanto isso”.
A noite chegou na cidade. Não fazia ideia de quanto tempo se passou
desde que começou a correr pelas ruas. E se tornava cada vez evidente que
estava sendo empurrado em direção ao porto, já que todas as ruas laterais que
levavam até a estrada principal foram bloqueadas. Continuou enfurnado nas
ruas laterais, tentando chegar até sua casa, mas sempre era levado de volta, às
vezes por canos de fuzis ou baionetas.
O céu estava em chamas, ao sons de tiros, bombas e explosões, próximos
e distantes. Era como se até mesmo os barulhos empurrassem a todos na
direção do mar. Mesmo não se concentrando em nada específico, não podia
deixar de ver como a multidão crescia. As pessoas saíam das ruas laterais
para a principal, desembocando no porto, enquanto homens, mulheres
e crianças, de mãos vazias ou carregando pequenas posses, choravam ou
estavam desolados, espantados e em silêncio. Mergulhou nas ondas daquela
multidão e perdeu a dimensão de seu espaço. Recordou que ia na direção do
mar e parecia estar sendo levado pela multidão que chorava, sem conseguir
348
refletir. Em sua mente existia uma única imagem, como uma foto na parede:
sua esposa Safia e seu filho Khaldun.
Os momentos duros passavam devagar e pareciam um terrível e ina-
creditável pesadelo. Passou pelo portão de ferro do porto, onde os soldados
britânicos confinavam a multidão e de lá pôde ver as pessoas se jogando so-
bre pequenos barcos, ancorados ao lado do recife. Sem ao certo saber o que
devia fazer, decidiu não entrar na balsa. E, como alguém que de repente en-
louquece ou retoma os sentidos abruptamente depois de um longo período
de insanidade, virou-se e empurrou a gente com cada gota de força que lhe
restava, criando um caminho pelo meio da multidão, no sentido oposto, de
volta ao portão de ferro.
Como se cruzasse uma cachoeira que vinha de uma montanha muito
alta, Said abria trajeto com seus ombros, braços, pernas e cabeça. A corrente-
za o fazia regredir, e ele tornava a avançar ferozmente, como um animal fu-
gitivo que abre um caminho impossível em uma mata virgem e densa. Sobre
sua cabeça, fumaça, estrondo de bombas e rajadas de metralhadoras, que se
misturavam com os choros, gritos, barulho das ondas, passos da multidão e
o som dos remos batendo na superfície da água do mar.
Será que de fato se passaram vinte anos?
O suor frio escorria pela sua testa.
Dirigia o carro pela encosta. Não contava com as memórias retor-
nando, cheias de turbulências que pertenciam apenas aos momentos reais
da sua própria experiência. Olhou para sua esposa: seu rosto estava rígido,
meio amarelado, e os olhos repletos de lágrimas. Provavelmente devia estar
relembrando seus próprios passos naquele mesmo dia em que Said estava
próximo do mar, e ela tão perto da montanha, enquanto entre os dois se in-
terligavam os fios invisíveis do medo e da agitação, terreno instável, temível
e desconhecido que se abria.
Estava - como havia dito a ele, mais de uma vez, nos anos anteriores -
pensando nele. Quando iniciou o tiroteio e as pessoas traziam as notícias de
que os ingleses e judeus começaram a invadir Haifa, sentiu um medo horrível.
349
Pensava nele, quando ouviu o som dos combates oriundos do centro
da cidade. Sentiu-se mais protegida. Ficou em casa por um tempo, porém
quando se deu conta que ele demorava, correu para a rua, sem saber ao certo
o que queria. A princípio, olhava pela janela e pela varanda. Sentiu que as
coisas se modificaram totalmente, quando o fogo começou a se aproximar
com força, no começo da tarde, vindo das colinas situadas acima de Halisa.
Sentiu-se sitiada e só então desceu as escadas. Ao longo da rua, em direção à
estrada principal, sua urgência e vontade de vê-lo chegar davam a dimensão
do quanto temia por ele. Sua preocupação com o porvir incerto a conduzia
para mil possibilidades a cada disparo de armas. Quando chegou ao ínicio da
rua, passou entre os carros apressados e seus passos a levaram para dentro da
multidão, perguntando sem obter respostas. Repentinamente, viu-se no meio
do tumulto, sendo empurrada para todos os lados pela correnteza incontrolá-
vel de pessoas, como um pequeno galho levado por um rio violento.
Quanto tempo se passou até que se lembrasse de que o próprio bebê,
Khaldun, ainda estava em seu berço em Halisa?
Não se lembrava totalmente, porém sabia que uma força grandiosa a
prendia ao chão, por onde a multidão gigantesca de pessoas passava e tocava
seus ombros, feito uma árvore bem enraizada em uma forte tormenta. Então,
ela tentou ir contra aquela correnteza com toda a sua força e, diante de sua fra-
queza e cansaço, começou a gritar com toda a potência que suas cordas vocais
tinham. Suas palavras viajavam por sobre aquela multidão, mas não atingiam
o ouvido de ninguém. Repetia o nome “Khaldun”, um milhão de vezes, e ficou
por meses depois daquilo carregando em sua garganta uma voz rouca, disfô-
nica e inaudível, enquanto o nome “Khaldun” se conservou como um ponto
flutuando no nada, perdido na enxurrada sem fim de vozes, gritos e nomes.
Estava quase ruindo sob os pés da multidão, quando ouviu uma voz
que a despertou chamando seu nome. Ao ver a face coberta de suor, ódio e
cansaço, sentiu o tamanho da tragédia, muito maior do que havia sentido
outrora. A tristeza lhe atingiu o coração como uma lâmina de faca forte e
afiada e ela decidiu retornar a qualquer preço. Pensou que talvez nunca mais
350
conseguisse olhar para Said ou nunca mais a deixasse tocá-la. Intimamente,
era como se estivesse perdendo ambos ao mesmo tempo: Said e Khaldun...
Seguiu abrindo um trajeto com toda a força que ainda tinha nos braços no
meio de uma densa mata que bloqueava o caminho a sua volta. Ao mesmo
tempo, tentava se perder de Said, que tomara a decisão sem perceber — e sem
pensar — associar Said e Khaldun...
Será que se passaram gerações e tempos antes de ela sentir as mãos
fortes e grudadas puxando-a pelos ombros?
Olhou-o nos olhos, notou algo como uma paralisia, que a fez ruir so-
bre seu ombro, rumando para um determinado local, quando percebeu que
aquela multidão intensificava seu volume a cada passo que dava.
As pessoas rumavam das ruas laterais até a principal, que levava ao
porto, enquanto os homens, mulheres e crianças, carregando coisas peque-
nas, choravam ou rezavam em completo silêncio.
Ao seu redor, aquela correnteza de pessoas os arremessava de um lado
para o outro em direção ao porto, no entanto sem forças eles não resistiam
nem sentiam nada. Somente quando viram a espuma do mar produzida pelos
remos, olharam para a praia, onde a cidade de Haifa sumia aos poucos, atrás
da tarde embaçada por lágrimas.
No trajeto de Ramallah, passando de Al Quds para Haifa, ele falou so-
bre tudo, sem parar nem por um instante. Quando chegou à entrada de Bait
Gallim, nas aproximidades de Haifa, foi tomado por um silêncio abrupto.
Aqui é Halisa, pensou enquanto ouvia o som das rodas dos carros. O rápido
galope de seu coração agitado o fazia se perder de vez em quando. Vinte anos
de ausência se reduziram e, repentinamente, como se fosse mágica, as coisas
retornaram para onde estavam, como que contrariando toda a lógica e razão.
O que poderia procurar ali?
Há apenas uma semana, em sua casa em Ramallah, Safia havia lhe falado:
“Eles estão indo para todos os lugares agora. Por que não vamos a Haifa?”
Said estava jantando naquele momento, quando viu sua mão paralisar
involuntariamente entre o prato e a boca. Depois de um momento, olhou e
351
a viu afastar-se para que não pudesse ler nada através de seus olhos. Então
disse a ela:
“Ir para Haifa? Por quê?” Com a voz terna, respondeu:
“Para ver nossa antiga casa... apenas por isso.”
Retornou a colocar a comida em seu prato, levantou-se e ficou diante
dela. Ela se manteve cabisbaixa como alguém que confessa um pecado aci-
dental. Ele ergueu a cabeça para fitar seus olhos, que estavam lacrimejando,
e, com compaixão, perguntou a ela:
“Safia... O que você pensa sobre isso?”
Ela acenou com um movimento de cabeça e concordou sem falar, pois
Said sabia o que ela pensava. Talvez Said também pensasse nisso o tempo
todo, porém aguardava que ele trouxesse à tona para que não se sentisse,
como sempre fazia, culpada pela desgraça que dominou ambos os corações.
Ele sussurrou com voz enfraquecida:
“Khaldun?”
De repente, esse nome, que ficou escondido nos principais anos, esta-
va fora, em um espaço aberto. Das poucas vezes que tentaram falar sobre a
criança, sempre disseram “ele”. Evitaram dar a qualquer um dos outros filhos
esse nome, embora o nome do mais velho ser Khalid e a filha, que nasceu
um ano e meio depois, ser Khalida. Said, era chamado de Abu Khalid4, e seus
antigos amigos, mesmo os sabiam do que ocorrera, concordaram em afirmar
que Khaldun havia morrido. Como o passado pôde entrar pela porta dos
fundos de uma forma tão extraordinária?
Said ficou parado como se estivesse dormindo em algum local lon-
gínquo. Depois de um tempo, aproximou-se dela e retornou ao seu lugar.
Ao se sentar, disse:
“Delírios, Safia, apenas delírios! Não se equivoque tão tragicamente.
Você sabe como procuramos e tentamos. Você sabe as histórias da Cruz

4-Os nomes são todos derivados do nome do primeiro filho, tendo a mesma origem
no árabe - comum, quando se quer preservar a memória de alguém. “Abu” significa
“pai de”, que tradicionalmente é usado para o filho primogênito, neste caso, Said seria
chamado de “Abu Khaldun”.
352
Vermelha, das forças de manutenção da paz e de amigos estrangeiros que
enviamos para lá. Não, não vou voltar a Haifa. É uma tragédia. Se é uma
catástrofe para as pessoas de Haifa, para nós dois, então, é uma dupla
catástrofe. Por que nos torturarmos?”
Soluçou alto, contudo ela permaneceu em silêncio. Passaram a noite
sem falar uma palavra sequer, ouvindo o som dos coturnos dos soldados ba-
tendo na estrada e o rádio noticiando.
Quando foi dormir, sabia em seu coração que não havia como fugir
daquilo. O pensamento que o atormentava por vinte anos veio à luz e não
havia mais como escondê-lo novamente. Mesmo sabendo que sua esposa não
estava dormindo e pensava na mesma coisa durante toda a noite - ele não lhe
disse nada. No início da manhã, dirigiu-se a ele de forma tranquila e disse:
“Se você quer ir, me leve com você… Não tente ir só.”
Ele sabia bem o jeito de como cada pensamento passava pela cabeça
de Safia. Mais uma vez, ela o deteve em seus caminhos. Durante madrugada,
decidiu ir só, e ela de forma instintiva descobriu sua decisão.
Os pensamentos sobre o assunto ficaram, dia após dia, por uma se-
mana. Eles os comiam com as refeições e dormiam com eles, contudo não
falavam nada sobre isso. Então, apenas um dia antes, Said disse:
“Vamos para Haifa amanhã, pelo menos para vermos. Talvez possamos
passar perto de nossa antiga residência. Acho que eles vão emitir uma ordem
restritiva proibindo o deslocamento logo. Seus cálculos estavam equivocados.”
Ficou em silêncio por um instante e não tinha certeza se queria mudar
de tema, mas ele mesmo se permitiu seguir falando:
“Em Al Quds, Nablus e aqui as pessoas falam todos os dias sobre suas
visitas a Yaffa, Akka, Tel Aviv, Haifa, Safad, cidades da Galileia e Muthallath.5
Todos falam a mesma história. Parece que viram com seus próprios olhos,
mas isso não os impediu de especular. A maioria deles reporta histórias de
insucesso. Aparentemente, o milagre de que os judeus reportavam não era
mais do que uma ilusão. Existe uma reação negativa neste país, exatamente o

5-Muthallath é um conjunto de vilarejos árabes que se estende até a Jordânia.


353
contrário do que presumiam, quando abriram a fronteira para nós. Por isso,
Safia, acho que eles cancelarão essa permissão em breve. Então, refleti, por
que não aproveitamos essa oportunidade e vamos?”. Quando olhou, Safia,
estava tremendo, e pode ver sua face ficar pálida antes de sair da sala. Ele sen-
tiu as lágrimas de tristeza bloquearem sua garganta. Desde então, o nome de
Khaldun não saiu de sua cabeça, como ocorreu há vinte anos, diante daquela
multidão que crescia no porto. Talvez ocorresse o mesmo com Safia. Eles
falaram sobre tudo ao longo da viagem, tudo, exceto Khaldun. Finalmen-
te, perto de Bat Galling, ficaram em silêncio. Aqui estavam ambos, olhando
atenciosamente para a estrada que conheciam tão bem, com suas memórias
fixas em suas cabeças como parte de suas próprias carnes e ossos.
Como ele fazia há vinte anos, reduziu a velocidade do automóvel antes
de chegar àquela curva, que ocultava a superfície rochosa acidentada atrás
dela. Manobrou o automóvel do mesmo modo de sempre e subiu o morro,
olhando o local preciso na estrada estreita. Os três ciprestes que pendiam no
trajeto traziam novos ramos. Queria parar um instante para ler os nomes gra-
fados, há muito tempo, em seus troncos, pois quase podia recordá-los um por
um, contudo não parou. Recordou-se com precisão de como as coisas acon-
teceram, e retornou, atravessando um portão que conhecia, onde alguém da
família do sacerdote vivia. A família do sacerdote possuía um grande edifício
na rua South Stanton, próximo à Rua Halul. Foi nesse edifício — no dia do
embarque — que os combatentes árabes se entrincheiraram e lutaram até
a última bala e talvez até o último homem. Quando passou pelo edifício,
foi empurrado em direção ao porto por uma força que superou sua própria.
Lembrou-se, minuciosamente, de que estava lá e só lá quando a memória
veio como se golpeado por uma pedra imensa. Lá, exatamente lá, recordou-
-se de Khaldun e seu coração bateu naquele dia da mesma maneira que há
vinte anos, tão alto como se fosse possível ouvi-lo.
Repentinamente, a casa surgiu. A mesma casa em que ele havia mora-
do pela primeira vez com sua esposa, que continuava viva em sua lembrança
354
por todo aquele período. Aqui estava novamente, diante de sua bela varanda
com um casaco de cor amarela.
Naquele momento pensou em Safia, jovem novamente, com longos
cabelos trançados, a se inclinar sobre o alpendre na sua direção. Agora ti-
nha um novo varal de roupas esticado entre duas vigas, com novas rou-
pas lavadas, vermelhas e brancas, e suspensas. Safia começou a chorar de
maneira que se podia facilmente ouvir. Manobrou o carro para a direita e
subiu com as rodas sobre a calçada, estacionando como fazia antigamente,
há exatos vinte anos.
Said vacilou por um instante e deixou o carro morrer. Todavia sabia
dentro de si mesmo que se vacilasse por muito tempo pararia ali mesmo,
ligaria o carro outra vez e voltaria. Isso fez parecer que tudo era, para ele e
esposa, perfeitamente comum, como se os últimos vinte anos tivessem sido
colocados entre prensas e esmagados até virarem uma folha de papel trans-
parente. Então, deixou o carro e bateu a porta atrás dele. Arrumou o cinto da
calça e observou a varanda, balançando as chaves na palma da mão.
Safia se aproximou de Said, permanecendo ao seu lado, porém não es-
tava tão comedida quanto ele. Ele a agarrou pelo braço e atravessaram a rua
— calçada, portão de ferro, escadas.
Começaram a subir os degraus, sem dar a oportunidade de ver todas
as pequenas coisas se mexendo e que desafiavam aquele frágil equilíbrio — o
sino, a fechadura de cobre, os desenhos das crianças na parede e no registro
de luz, o quarto degrau rachado no centro, a balaustrada feita à mão, a grade
de ferro maciço na entrada do primeiro andar onde morava Mahjub es-Sa-
adi, cuja porta estava sempre aberta, com as crianças brincando na frente,
enchendo as escadas com gritos — depois desse longo tempo, a porta de ma-
deira que tanto conhecia, agora, estava pintada e fechada.
Pôs o dedo no interruptor e falou em voz baixa para Safia:
“Trocaram a campainha.”
Ficou quieto por um instante e depois adicionou:
“E o nome, é claro!”
355
Forçou um sorriso bobo, segurou a mão de Safia, que lhe parecia ge-
lada e trêmula, enquanto por trás da porta se ouviam passos lentos, e disse
para si mesmo:
“Uma pessoa idosa, sem dúvida.”
Com o ruído abafado da fechadura, a porta se abriu lentamente.
“Então, é ela”.
Não sabia se falou aquilo em voz alta ou para si mesmo, sob a forma
de um suspiro. Ficou parado no mesmo local sem saber o que deveria falar.
Culpou-se por não ter ensaiado uma frase de abertura, apesar do fato de ter
pensado que chegaria esse instante. Ele olhou para Safia como que solicitan-
do ajuda. Umm Khalid6 deu um passo à frente e disse:
“Podemos entrar?”
A mulher velha não compreendeu. Ela era um pouco gorda, pequena
e usava um vestido azul com bolinhas brancas. Quando Said traduziu para o
inglês, as linhas de seu rosto se juntaram, demonstrando dúvida. Ela se afas-
tou para que eles entrassem, depois os levou para a sala de estar.
Ele a seguiu, tendo Safia ao seu lado, com passos vagarosos e hesitantes.
Começaram por olhar as coisas ao redor com certa perplexidade. A entrada
parecia menor do que imaginava. Viu muitas coisas que já havia considerado,
e ainda considerava, íntimas e pessoais, pois acreditava serem sagradas e de
caráter privado, uma vez que ninguém tinha o direito de se familiarizar com
um toque, nem mesmo com um olhar. A fotografia de Al Quds, de que se
recordou vividamente, ainda estava pendurada no mesmo local. Na parede
contrária, um pequeno tapete sírio permanecia onde sempre estivera.
Observou ao redor, redescobriu os itens ora pouco a pouco, ora de uma
só vez, como alguém que se acorda de um longo período de inconsciência.
Quando chegaram na sala, viu duas cadeiras de conjunto de cinco que
possuíam. As outras três eram diferentes, pareciam mais grossas e fora de
harmonia com o resto dos móveis da casa. No centro da sala estava a mesma
mesa, feita de conchas, ainda que sua cor tivesse desbotada, reconheceu.

6-Umm significa em árabe “mãe de” e tem o uso similar ao “Abu”.


356
O vaso de vidro sobre a mesa havia sido trocado por um de madeira, com
penas de pavão, que sabia conter ao todo sete delas. Tentou contá-las de onde
estava sentado, mas não conseguiu. Então se ergueu, foi em direção ao vaso e
as contou uma a uma… somente cinco.
Quando se virou para sentar no seu lugar, viu que as cortinas não eram
mais as mesmas. Aquelas que Safia havia feito há vinte anos, de fios cor de
açúcar, sumiram dali e foram trocadas por cortinas de longos fios azuis.
Então seu olhar repousou sobre Safia, que, abalada, examinava com
seus próprios olhos os cantos da sala, como se avaliasse as coisas que falta-
vam. A mulher gorda e velha, sentada em frente a eles, no braço de uma das
cadeiras, fitou-os com um sorriso forçado na face. Finalmente, sem mudar a
expressão, disse:
“Eu aguardava vocês há muito tempo.”
Seu inglês era marcado por um sotaque próximo ao alemão. Parecia pu-
xar as palavras como se as retirasse de um poço profundo assim que as dizia.
Said se curvou para frente e perguntou:
“Sabe quem somos?”
Balançou a cabeça positivamente, várias vezes, para enfatizar a respos-
ta. Pensou por um instante, escolhendo as palavras, e então disse:
“Vocês são os donos desta casa, sei disso.”
“Como sabe?”
A questão foi formulada por Said e Safia concomitantemente. O sorri-
so da velha mulher cresceu. E disse:
“Por tudo. Pelas fotografias, pelo jeito que ambos ficaram parados
em frente porta. A verdade é que, desde que acabou a guerra, muita gente
vinha aqui, olhava as casas e adentravam nelas. Diariamente, eu dizia que
vocês viriam”.
A velha pareceu confusa e começou a olhar estranhamente para as coi-
sas a sua volta na sala, como se as estivesse vendo pela primeira vez. Sem pen-
sar Said acompanhou o mesmo gesto, movendo-se para onde ela se movia, e
Safia fez a mesma coisa. Said disse para si mesmo:
357
“Que estranho! Seis olhos olhando a mesma coisa... contudo de que
forma cada um a vê!”
Ele ouviu sua voz, agora mais baixa e ainda mais lenta.
“Desculpe, porém foi o que aconteceu. Nunca tinha pensado nesse as-
sunto como agora.”
Said deu um sorriso triste. Não sabia como dizer a ela que ele não tinha
vindo por isso; que ele não queria adentrar em uma discussão política, pois
sabia que ela não era culpada de nada.
“Sem nenhuma culpa?”
Não, não corretamente! Mas como poderia explicar isso a ela?
Safia o protegeu e a questionou com uma voz inocente e desconfiada,
enquanto ele traduzia:
“De onde você veio?”
“Da Polônia.”
“Quando?”
“1948.”
“Mas quando exatamente?”
“1º de março de 1948.”
Um silêncio profundo se abateu sobre o local e todos começaram a
olhar para coisas que não precisavam olhar. Said interrompeu o silêncio, di-
zendo paulatinamente:
“Obviamente, não viemos lhe dizer para ir embora daqui. Isso nos le-
varia a um confronto...”
Safia apertou sua mão para que não continuasse com aquela conversa
e ele compreendeu.
Tentou manter a compostura e o assunto.
“Quero dizer, sua presença aqui, na nossa casa, minha e de Safia, é
outra questão.
Viemos somente para olhar as coisas, nossas coisas. Talvez você possa
compreender isso.”
Ela disse rapidamente:
358
“Eu entendo, todavia...”
Então ele perdeu a compostura:
“Sim, todavia! Esse ‘todavia’ é terrível, doloroso, sangrento...”
Manteve o silêncio sob a pressão dos olhos de sua esposa. Sentiu que
nunca conseguiria seu objetivo, que estava prestes a explodir. O que ocorria,
ali, não era mais do que um diálogo do absurdo.
Por um instante, pensou em se levantar e ir embora, pois nada mais
lhe importava. Se Khaldun estava vivo ou morto, já não lhe fazia diferença.
Como as coisas chegaram a tal ponto, ele simplesmente não sabia dizer. Es-
tava repleto de uma raiva amargurada e sentiu como se estivesse a ponto de
explodir. Não sabia como seu olhar caiu sobre as cinco penas de pavão depo-
sitadas no vaso no meio da sala. Viu suas raras e lindas cores se deslocando
com a brisa vinda da janela aberta. De repente, questionou de forma brusca,
apontando para o vaso:
“Tinha sete penas… o que ocorreu com as outras duas?”
A velha olhou para onde ele indicava, voltou a observá-lo como se o in-
terrogasse, enquanto Said continuava a indicar apontando a mão na direção
do vaso, com o olhar fixo, aguardando a resposta. O universo todo se manti-
nha em equilíbrio na ponta de sua língua. Ela se acomodou em uma cadeira
e segurou o vaso como se fosse a primeira vez e disse:
“Não sei onde estão essas duas penas de que você fala. É algo de que
não consigo me recordar, talvez Dov tenha brincado com elas e as tenha per-
dido, quando era apenas uma criança.”
“Dov?”
Eles disseram isso juntos, Said e Safia, se levantaram como se a terra os
tivesse empurrados para cima. Olharam-na com inquietude e ela continuou:
“Claro. Dov. Eu não sei qual era o nome dele, e se você se interessa com
esse tema, mas ele se parece com você...”
Depois de mais de duas horas de conversa, era possível repor as coi-
sas em seus devidos lugares novamente: foi o que ocorreu naqueles dias
entre quarta-feira à noite, 21 de abril de 1948, quando Said abandonou
359
Haifa em um barco inglês, com sua esposa, uma hora depois, obrigados
a descer na praia prateada de Akka, e quinta-feira, 29 de abril de 1948,
quando um membro da Haganah7 , juntamente com um homem velho,
que mais parecia uma galinha, abriu a porta da residência de Said em
Halisa, facilitando o caminho para Iphrat Koshen e sua mulher, vindos da
Polônia, para entrarem naquela que se transformaria em sua casa, alugada
pelo Bureau of Absentee Properfy8, em Haifa.
Iphrat Koshen chegou a Haifa, vindo com sua mulher de Milão, no
início de março, sob os cuidados da Agência Judaica.9 Deixou Varsóvia em
um pequeno comboio de pessoas, no começo de novembro de 1947. Morou
em uma residência provisória, nos arredores do porto italiano, que na época
estava cheio de atividades ilegais. No início de março, foram levados de navio
com alguns dos outros homens e mulheres para Haifa.
Seus documentos estavam em impecável ordem. Um caminhão o le-
vou com seus poucos pertences pela área portuária ruidosa e cheia de solda-
dos ingleses, trabalhadores árabes e mercadorias, através das tensas ruas de
Haifa, onde se ouviam disparos de armas ocasionais. Em Hadar, foi instalado
em um pequeno quarto de um prédio lotado de pessoas.
Iphrat Koshen logo compreendeu que a maior parte daqueles cômo-
dos estava abarrotados de novos imigrantes, à espera de uma casual remoção
para algum outro local. Não sabia se os próprios residentes usavam o nome
“Alojamento de Imigrantes”, uma vez que conheciam esse nome antes ou sim-
plesmente aprendiam ao chegar.
Talvez tivesse olhado para Halisa de sua varanda algumas vezes, porém
não sabia, nem poderia imaginar, que viria a residir lá. Na verdade, pensava
que, quando as coisas se acalmassem, seria transferido para uma residência
tranquila, em uma região rural, ao pé de uma colina: havia lido Thieves in
7-Grupo terrorista à serviço do colonialismo judeu-sionista.
8-Parte da Agência Judaica colonialista que administrava propriedade roubada dos
legítimos donos palestinos que foram expulsos pelo medo e violência da sua terra
natal – a Palestina.
9-A Agência Judaica foi estabelecida pelo Mandato Britânico para a criação de uma para
estado sionista que daria origem ao Estado colonialista de Israel.
360
the Night, de Arthur Koestler10, enquanto esteve em Milão. Foi lhe dado por
um homem que veio da Inglaterra para supervisionar a emigração e viveu
por um tempo naquelas colinas da da Cisjordânia, as quais Koestler usou
como pano de fundo de seu romance. Na verdade, não sabiam muito sobre
a Palestina, naquele tempo. Para Iphrat, a Palestina não era mais do que um
palco inventado de uma antiga lenda, ainda à maneira das cenas coloridas,
retratadas em livros religiosos cristãos, destinados às crianças na Europa.
Claro, não acreditava completamente que a terra era apenas um deserto
descoberto pela agência judaica depois de dois milênios, ainda que isso não
fosse o que mais lhe importava. Tinha sido acomodado em uma residência
onde algo chamado “espera” se tranformou em uma rotina diária para si e
para os outros que lá estavam.
Talvez por ter ouvido tiros, desde que saiu do porto de Haifa, no fi-
nal da primeira semana de março de 1948, não pensou muito sobre se algo
terrível poderia acontecer naquele momento. De qualquer maneira, nun-
ca conheceu um árabe em toda a sua existência. Na realidade, foi somente
em Haifa que encontrou o primeiro árabe, um ano e meio após a ocupação.
Aquela situação fez com que ele, durante todo esse tempo, conservasse uma
imagem única e imprevisível do que estava realmente acontecendo. Era uma
alegoria mítica, em ideal harmonia com o que imaginara em lugares como
Varsóvia ou em Milão, durante os vinte e cinco anos de sua vida. Até então,
todos aqueles combates que ouviu ou leu no jornal, Palestine Post, todas as
manhãs, pareciam ser gerados entre homens e fantasmas.
Onde exatamente ele estava, na quarta-feira de 21 de abril de 1948, no
momento em que Said estava desorientado entre as Ruas Allenby e Harat, e
sua esposa, Safia, era empurrada de Halisa até a borda do Distrito Comercial,
na direção da Rua Stanton?
Nesse ponto, era impossível lembrar dos acontecimentos com precisão
e detalhes. No entanto, recordou-se da batalha que iniciou na quarta-feira de
manhã e durou sem pausa até a noite de quinta-feira. Somente na manhã de

10-Livro que reforça a propaganda falsa sionista da terra prometida.


361
sexta-feira, 23 de abril, pode falar com certeza que tudo havia terminado em
Haifa, e que a Haganah controlava inteiramente a situação. Não sabia com
exatidão o que aconteceu: as explosões pareciam vir de Hadar, e os detalhes
anunciados pelo rádio, somados às histórias contadas pelas pessoas, se junta-
ram de forma a transformar as coisas muito difíceis de serem entendidas. Sa-
bia que a investida militar total, que se iniciou na manhã de quarta-feira, foi
lançado de três pontos, e que o Coronel Moshe Karmatil11 dirigia três bata-
lhões em Hadar Ha-Carmel e no Distrito Comercial. Um dos batalhões tinha
por objetivo tomar Halisa, a ponte e Wadi Rushmaya, na direção do porto. Ao
mesmo tempo, outro avançou do Distrito Comercial para encurralar os civis
que fugiam em pânico, forçando-os a se dirigirem a uma passagem estreita
que levava ao caminho diretamente ao mar. Iphrat não conhecia aqueles lu-
gares, cujos nomes recordava de tanto repetir, mas existia uma conexão entre
as palavras Irgun12 e Wadi Nasnas, levando-o a compreender que aquela corja
estava no comando do ataque daquele lugar.
Iphrat Kosher não necessitava de ninguém para lhe dizer que os britâni-
cos tinham interesse em dar o controle de Haifa para a Haganah. Sabia, pois,
que faziam rondas conjuntas e pôde ver aquilo tudo por conta própria, duas
ou três vezes. Não se recordou de como recebeu as informações sobre qual o
papel do Brigadeiro Stockwell13, mas estava certo de que era verdade, assim
como todos os do Alojamento de Imigrantes, sobre o apoio dele ao Haganah.
Na realidade, ele escondeu o dia da retirada das forças britânicas e a entregou
ao Haganah, surpreendendo-as no instante mais adequado, quando os árabes
pensavam que o Exército Britânico deixaria o poder em uma data posterior.
Iphrat ficou em um Alojamento de Imigrantes toda a quarta e quin-
ta-feira, pois todos foram instruídos a não deixar o lugar. Alguns saíram na
sexta-feira, mas ele ficou até sábado pela manhã. Surpreendeu-se com o fato
de não haver nenhum carro circulando. Era um real sábado judaico. Isso lhe

11-Comandante colonialista da Brigada Carmeli que tomou Haifa.


12-Grupo terrorista sionista que usava táticas militares contra civis palestinos.
13-Hugh Stockwell era integrante do alto comando britânico na Palestina e responsável
pela cidade de Haifa durante a colonização mandato.
362
trouxe lágrimas aos olhos por razões que não sabia explicar. Quando sua es-
posa o viu, ficou surpresa e também com os olhos úmidos disse:
“Choro por outra razão. Sim, é um verdadeiro sábado, porém não exis-
te mais nenhuma verdadeira sexta-feira aqui, nem um verdadeiro domingo.”
Isso foi apenas o início. Pela primeira vez, desde sua chegada, sua aten-
ção se voltou para algo do qual não contava e sobre o qual não pensava. De
repente, os sinais de destruição que passou a notar o conduziu a outro racio-
cínio, mas recusou-se a refletir sobre aquilo.
Do ponto de vista de sua mulher, Miriam, a situação era diferente. Ela
mudou quando se aproximou da igreja de Belém, em Al Hadar. Viu, de longe,
dois jovens do Haganah carregando algo que botaram em um pequeno cami-
nhão. Por um momento, viu o que estavam carregando, apertou o braço do
marido e, em pânico, gritou:
“Olhe!”
Seu marido não viu nada para onde ela apontava. Os dois homens limpa-
vam as palmas das mãos em seus uniformes de cor cáqui. Ela disse ao marido:
“Era uma criança árabe morta! Eu vi! Estava toda ensanguentada!”
Seu marido a levou pela mão para o outro lado da rua e perguntou:
“Como sabe que era uma criança árabe?”
“Você não viu como eles a arremessaram no caminhão, feito uma tábua
de madeira? Se fosse uma criança judia, jamais teriam feito isso.”
Ele queria questionar o porquê, mas, quando viu sua face, calou-se.
Miriam perdera o pai em Auschwitz há oito anos. Quando adentra-
ram a casa onde morava com o marido, que não estava em casa, escondeu-
-se com os vizinhos do andar de cima. Os soldados nazistas não acharam
ninguém e, quando desceram, esbarraram em seu irmão caçula, que ia ao
encontro dela. Tinha apenas dez anos e ia para avisá-la da presença dos
soldados — foi o que supôs — e agora estava sozinho; seu pai havia sido
levado para o campo de concentração. Quando viu os soldados nazistas,
virou-se e correu. Ela viu tudo através de uma pequena fresta entre as esca-
das. De lá, viu como o executaram.
363
Quando Iphrat e Miriam voltaram ao Alojamento dos Imigrantes, ela
decidiu ir para a Itália. Mas não podia, não naquela noite, tampouco nos
próximos dias, tentar convencer o marido. Sempre perdia na argumentação
e não conseguia encontrar as palavras para expressar seus pontos de vista ou
explicitar o verdadeiro significado de seus desejos.
Após uma semana, no entanto, a situação mudou de novo. Seu mari-
do retornou de uma viagem ao gabinete da Agência Judaica, em Haifa, com
boas notícias: eles receberam uma casa em Haifa e, junto com a casa, um
nenê de cinco meses.
Noite de quinta-feira, 22 de abril de 1948. Tura Zonshtein, a mulher
separada que morava com seu filho no terceiro andar, bem acima de Said,
ouviu um barulho, vindo do segundo andar, de um bebê chorando quase
sem forças.
No início, não acreditou no pensamento que lhe veio à cabeça, po-
rém, como o gemido continuou, desceu e bateu na porta. Por fim, sen-
tiu-se obrigada a arrombá-la. Viu um bebê no berço, totalmente exausto.
Levou-o para sua casa.
Tura acreditou que as coisas retornariam ao normal em breve. Não tar-
dou muito, no entanto, apenas dois dias, antes que essa avaliação se perdesse.
Compreendeu que a situação era sensivelmente distinta daquilo que imagi-
nava. Não era possível, para ela, continuar a cuidar de um bebê, por isso, le-
vou-o ao escritório da Agência Judaica em Haifa, onde pensou que algo seria
feito para resolver a situação.
Foi sorte de Iphrat Koshen ter ido a esse escritório da Agência Judaica
logo depois, pois os oficiais viram em seus papéis que ele não poderia ter fi-
lhos. Ofereceram-lhe uma residência em Haifa, com uma concessão especial,
caso aceitasse adotar o bebê.
Essa oferta veio como uma grata surpresa para Iphrat, que desejava
adotar uma criança desde que teve a absoluta certeza que Miriam não po-
deria ter filhos. Isso parecia ser uma dádiva divina e mal podia acreditar que
tivesse ocorrido assim tão inesperadamente. Sem dúvida, uma criança mu-
364
daria Miriam por completo, e assim interromperia aqueles estranhos pensa-
mentos, desde que viu a criança árabe morta sendo arremessada no cami-
nhão da morte, como um pedaço de madeira sem valor.
Então, quinta-feira de 29 de abril de 1948, foi o dia que Iphrat Koshen
e sua mulher Miriam, acompanhados pelo funcionário da Agência Judaica
com cara de galinha, carregaram um bebê de cinco meses para a residência
de Said, em Halisa.
Quanto a Said e Safia, nesse mesmo dia, choravam depois que ele ten-
tou a última das suas inúmeras tentativas de retornar para Haifa. Cansado e
sem forças, dormiu, completamente dominado pela exaustão, como se per-
desse a consciência, naquele quarto que era a sala de aula do sexto ano, na
escola Maarif de Ensino Secundário, de frente ao muro que protegia a famosa
Prisão de Akka, na margem ocidental.
Said nem provou o café de Miriam. Safia tomou apenas um pequeno gole,
e com ele um pedaço de biscoito de uma lata que Miriam ofertou sorrindo.
Said continuou a observar ao redor e sua confusão diminuiu ao ouvir
a história de Miriam se desenrolar, pouco a pouco, durante o que parecia ser
muito tempo. Ele e Safia permaneceram presos nas cadeiras, aguardando que
algo desconhecido acontecesse, algo que não podiam imaginar.
Miriam não parava de ir e vir e cada vez que sumia atrás da porta, eles
ouviam seus passos lentos se arrastando pelo chão. Safia, de olhos cerrados,
podia imaginar o trajeto de Miriam passando pelo corredor estreito e che-
gando até a cozinha, tendo à direita o quarto. Mais uma vez ouviu a porta se
fechar. Então, Safia olhou para o marido e disse em tom de desgosto:
“Ela age como se fosse sua casa! Sua própria casa!”
Sorriram em silêncio, enquanto Said apertava as palmas das mãos
entre os joelhos, incapaz de decidir o que fazer. Finalmente, Miriam vol-
tou e perguntou:
“Quando ele chegará?”
“Já é hora de estar de volta, porém está atrasado. Ele nunca foi pontual
no horário de voltar para casa, como seu pai.
365
Calou-se, mordendo a língua e olhando para Said, que tremia como se
tivesse recebido um choque elétrico.
“Como seu pai!”
De repente, ele se perguntou: “O que é paternidade?” Era como abrir
uma porta e deixá-la escancarada para um furacão. Pôs a cabeça entre as
mãos para tentar parar aquele pensamento maluco da pergunta que ficou
em algum local de sua mente, durante vinte anos, sem ter coragem de en-
frentá-la, enquanto Safia tocou seu ombro, e compreendeu, de uma maneira
estranha, o impacto abrupto daquelas palavras. Ela disse:
“Olhe quem está falando!” E continuou em seguida:
“Como seu pai! Como se Khaldun tivesse outro pai além de você!”
Então, Miriam se preparou para dizer algo difícil. Lentamente, retirou
as palavras, como uma mão puxando-as um poço cheio de poeira:
“Escute, Sr. Said. Quero lhe dizer algo importante. Eu dejesaria que
você aguardasse por Dov, ou Khaldun, se você preferir, para que pudessem
conversar e essa questão encerrar, pois obviamente ela deve acabar. Você acha
que isso não tem sido um problema para mim, do mesmo modo que para
você? Nesses vinte anos fiquei confusa, mas agora chegou a hora de acabar
com esse assunto. Eu sei quem é o pai dele e também sei que ele é o nosso
filho, mas vamos deixá-lo decidir, vamos deixá-lo optar. Ele é adulto e temos
de reconhecer que é o único que tem o direito de escolher. De acordo?”
Said se levantou e andou pela sala, parou em frente à mesa, mais
uma vez, contou as penas no vaso de madeira repleto de poeira. Não fa-
lou nada e se manteve em silêncio, como se não tivesse ouvido uma única
palavra. Miriam o observava com certa aflição. Finalmente, virou-se para
Safia e traduziu o que Miriam havia dito. Safia se levantou, ficou ao seu
lado e disse com a voz trêmula:
“Essa é uma escolha justa. Estou certa de que Khaldun decidirá pelos
seus verdadeiros pais. É impossível negar a identidade do sangue e da carne.”
Repentinamente, Said riu com toda sua força e sua risada se preencheu
de uma profunda amargura que anunciava a derrota:
366
“Qual Khaldun, Safra? Qual Khaldun? De que carne e de que sangue
está dizendo? Você fala que esta é uma decisão justa? Eles lhe educaram como
ser durante vinte anos, dia após dia, hora após hora, com sua comida, sua
bebida,... E você diz que é uma escolha justa! Só que Khaldun, ou Dov, ou o
diabo, ou o que quiser, não nos conhece! Quer saber o que acho? Vamos sair
daqui e retornar para o passado. O assunto está acabado. Eles o roubaram.”
Ele olhou para Safra, que havia desabado na cadeira. Ao mesmo tem-
po, pela primeira vez, ela encarou a verdade de uma só vez. As palavras de
Said pareciam verdadeiras, mas ela ainda tentava manter a esperança, que ha-
via construído em sua cabeça, há vinte anos, como uma espécie de suborno.
Então, seu marido disse:
“Talvez ele nunca tenha imaginado que é filho de pais árabes... Talvez
tenha sabido disso há pouco tempo... O que você acha? Ele foi enganado e
talvez tenha ficado ainda mais empolgado com esse erro... O crime iniciou
há vinte anos e não há dúvida de que alguém pagará o preço... O crime teve
início no dia em que o deixamos aqui.”
“Mas não o deixamos. Você sabe disso.”
“Sim, claro. Não deveríamos ter deixado nada. Nem Khaldun, nem a
casa, nem Haifa! Não foi o mesmo sentimento estarrecedor que me tomou,
e a você também, enquanto dirigia pelas ruas de Haifa? Haifa que acreditava
conhecer, enquanto ela me rejeitava. Tive a mesma sensação nesta casa, aqui,
na nossa casa. Você pode imaginar isso? Que nossa casa se negue a nos reco-
nhecer? Não vê isso? Creio que o mesmo acontecerá com Khaldun. Você verá!”
Safia chorou de tristeza. Miriam saiu da sala, que agora parecia cheia
de uma tensão palpável. Said sentiu como se todas as paredes de sua espe-
rança durante vinte anos se desmoronasse, deixando ver as coisas com mais
clareza. Ele esperou até que os soluços de Safia diminuíssem. Virou-se para
ela e perguntou:
“Você sabe o que aconteceu com Faris Al Lubda?” “Ibn Al Lubda14?
Nosso vizinho?”

14-O termo ibn significa “filho de”.


367
“Sim, claro, nosso vizinho de Ramallah que foi para o Kuwait. Você sabe
o que aconteceu quando ele visitou sua casa em Yaffa, há apenas uma semana?”
“Ele foi para Yaffa?”
“Sim. Há uma semana, creio. Ele alugou um carro em Al Quds e foi
direto para o bairro de Yaffa. Vinte anos atrás, residia em uma casa de dois
pisos, atrás da escola ortodoxa em Ajami. Lembra-se da escola? Fica indo
para Jabaliyya tem um cruzamento, e, no meio um beco, pois é onde Faris Al
Lubda morava com sua família.
Ele estava dominado pela raiva naquele dia, quando mandou o mo-
torista que parasse diante de sua casa. Subiu os degraus de dois em dois e
bateu na porta...”
Era de tarde. Yaffa parecia a mesma que Faris Al Lubda conheceu vinte
anos antes — exceto pelo bairro de Manshiyy.15 O pouco tempo que se passou
entre o instante em que bateu na porta e ouviu os passos do homem se aproxi-
marem e abri-la prolongou-se em uma eternidade de raiva e tristeza sem igual.
Finalmente, a porta se abriu. O homem era alto, moreno e usava uma camisa
branca com os botões abertos. Levou a mão para cumprimentar o recém che-
gado, sem conhecê-lo. Faris ignorou a mão estendida e falou com raiva:
“Vim para ver minha casa. Este local onde você mora é minha resi-
dência e sua presença aqui é um drama triste que se encerrará um dia pelo
poder de uma arma. Você pode, se quiser, atirar em mim, agora mesmo, mas
é minha casa, esperei durante vinte anos para retornar. E se...”
O homem parado permaneceu com a mão estendida. Riu em profusão,
aproximando-se de Faris até estarem frente a frente, abriu os braços e o abraçou...
“Você não precisa descarregar sua raiva em mim. Sou Fafai16 como
você, e eu o conheço,
Ibn Al Lubda... Entre para bebermos um café.”
Impressionado, Faris entrou e mal pôde acreditar. Era a mesma casa,
a mesma mobília e arranjo, cor nas paredes e todas as mesmas coisas que

15-Bairro residencial árabe em Yaffa.


16-Termos usado para os nascido em Yaffa.
368
recordava tão bem. Ainda com o sorriso aberto, o homem o levou até a sala
de estar. Quando abriu a porta da sala convidando-o para entrar, Faris ficou
paralisado e, repentinamente, as lágrimas verteram de seus olhos.
A sala estava como se ele tivesse saído dela naquela manhã, com o mes-
mo cheiro de antes, o odor do mar, que sempre agitava sua cabeça, no entan-
to, não foi isso que o desviou de seu lugar, mas a foto de seu irmão Badr, que
permanecia pendurada na parede branca, com uma fita preta e grossa que se
estendia pelo canto direito da imagem, a úncia em todo o recinto.
Um ar de luto repentinamente inundou a sala e lágrimas começaram
a descer pela face de Faris, ainda parado. Esses dias eram de recordações an-
tigas, mas agora vinham à tona como se os portais, que as prendiam, fossem
abertos por inteiro.
Seu irmão Badr foi o primeiro em Ajami a pegar em armas naquele
começo da semana de dezembro de 1947. Nesse instante, a casa se tornou um
local de encontro para os jovens que costumavam encher o campo de fute-
bol da escola ortodoxa todas as tardes. Badr se uniu à luta como se estivesse
aguardando por aquele dia desde a infància. Então, em 6 de abril de 1948,
Badr foi trazido para casa, nos ombros de seus camaradas, com a pistola ain-
da em sua cintura, porém sem o rifle, com o corpo desfeito pela granada
que o atingiu na estrada de Tall Al Rish. O bairro de Ajami velou seu corpo
em uma procissão funerária que correspondeu a de um mártir. Um de seus
camaradas foi à Rua Iskandar Awd, carregando uma foto ampliada de Badr,
e um calígrafo chamado Qutub escreveu em um pequeno cartaz que Badr
Al Lubda fora martirizado pela causa da independência de seu país. Uma
criança levou o cartaz à frente do funeral, enquanto outras duas levavam a
foto de Badr. À noite, a foto foi entregue a casa com uma fita preta amarrada
no canto direito.
Ainda recordou de como sua mãe retirou todas as outras imagens da
parede da sala e pendurou a foto de Badr de frente para a porta. A partir daí,
o triste odor de luto permeou a sala, onde as pessoas continuavam a se sentar,
admirar a foto e oferecer seus pêsames.
369
Faris ainda podia ver os pregos, saindo das paredes, e que haviam sus-
tentado outras imagens por vinte anos. Os pregos pareciam homens parados
diante da foto do irmão mártir, Badr Al Lubda, suspenso sozinho e envolto
de preto, no meio da sala.
O homem disse a Faris:
“Entre! Sente-se. Precisamos conversar um pouco. Esperávamos por você
há muito tempo, mas pensávamos em encontrá-lo em outras circunstâncias.”
Faris entrou como se caminhasse no absurdo e se sentou em uma ca-
deira de frente para a foto do irmão. Era a primeira vez que o enxergava em
vinte anos, quando saíram de Yaffa (um barco os levou em direção a Gaza,
enquanto seu pai foi para a Jordânia), sem levar nada, nem mesmo a pequena
foto de Badr, que permaneceu lá.
Faris não conseguiu falar um único som. Então, os dois filhos do ho-
mem adentraram a sala, correram entre as cadeiras gritando, assim como
chegaram. O homem disse:
“Eles são Saad e Badr... meus filhos.”
“Badr?”
“Sim... demos o nome de seu irmão martirizado.”
“E a foto?”
O homem parou e sua expressão se transformou. Então disse:
“Eu sou de Yaffa. Um morador de Manshiyya. Na Guerra de 1948, as
bombas de um morteiro arrasaram minha casa. Não quero relembrar como
Yaffa caiu ou como algumas pessoas vieram nos ajudar no momento difícil.
Tudo aquilo já passou... O importante é que, quando retornei com os guer-
rilheiros para a cidade abandonada, nos prenderam. Passei um longo tempo
no cárcere. Quando me libertaram, recusei-me a deixar Yaffa e aluguei esta
casa do governo.”
“E a foto?”
“Quando adentrei na casa, a foto foi a primeira coisa que vi. Talvez
tenha alugado a casa devido a ela. É difícil e não consigo explicar exatamente.
Quando eles ocuparam Yaffa, era uma cidade quase deserta. Depois que saí

370
da prisão, parecia como se eu estivesse sob um cerco. Não vi um único árabe
por aqui. Eu era uma pequena ilha, sozinha e isolada, em um oceano de hos-
tilidade. Você não viveu essa agonia, mas eu sim.
“Quando olhei a foto, encontrei alívio nela, um companheiro que con-
versava comigo, para me recordar das coisas de que eu poderia ter orgulho,
coisas que considerava serem as melhores em nossas vidas. Decidi alugar a
casa. Naquele instante, como agora, parecia-me que para um homem ter um
companheiro que pega armas e morre pelo seu país é algo muito precioso e
que não se pode abrir mão. Talvez fosse lealdade para com aqueles que luta-
ram. Senti que me livrar disso seria uma traição inaceitável. Isso me ajudou
não apenas a resistir como também a permanecer vivo. É por isso que a foto
ficou aqui como parte de nossas vidas. Eu, minha esposa Lamia, meus filhos
Badr e Saad, seu irmão Badr — somos todos uma grande família. Vivemos
juntos há vinte anos. Isso foi algo muito significativo para nós.”
Faris permaneceu lá até meia-noite, observando o irmão Badr sorrin-
do na foto, cheio de juventude, sob aquela faixa preta, como há vinte anos.
Quando Faris se levantou para ir embora, perguntou se poderia levar a foto.
O homem disse:
“Evidente. Ele é, acima de tudo, seu irmão.”
Levantou-se e retirou a foto da parede. Atrás dele, ficou um retângulo
pálido e sem sentido, um vazio perturbador.
Faris levou a foto para o carro e voltou para Ramallah. Durante todo o
trajeto, continuou observando ela, enconstada no assento ao lado. Badr apa-
rece sorrindo, com aquela expressão juvenil viva, e Faris continuou a olhá-lo,
enquanto passava por Al Quds, até a estrada que o levava a Ramallah. Subita-
mente, um sentimento o despertou e o fez ver que não tinha o direito de ficar
com a foto, embora não conseguisse explicar a si mesmo o porquê. Então,
pediu ao motorista que voltasse a Yaffa, chegou pela manhã.
Subiu os degraus novamente, devagar e bateu na porta. Quando pegou
a foto de Faris, o homem disse:

371
“Senti um vazio horrível quando olhei para a marca em retângulo dei-
xado na parede. Minha esposa chorou e meus filhos estão tristes. Lamenta-
mos por ter deixado você levar a foto. Afinal, ele é um de nós. Vivemos com
ele. E ele mora conosco, tornou-se parte da nossa família. À noite, disse a
minha esposa que se você quisesse reivindicar a foto, deveria também reivin-
dicar a casa, Yaffa e a nós... A foto não solveu seu problema, porém, no que
nos diz respeito, é uma ponte que liga você a nós e nós a você”.
“Faris voltou para Ramallah só”, disse Said a sua esposa: “Faris Al Lub-
da, se você soubesse. . .”
Ele sussurrou de forma audível:
“Agora ele pega em armas.”
Na rua, se ouvi um motor. Miriam entrou no quarto ao mesmo tempo
que seu rosto ficou pálido. Era tarde da noite e a velha caminhou devagar até
a janela, abrindo-a lentamente. Então, anunciou com uma voz vacilante:
“Dov chegou!”
Das escadas, era possível ouvir seus passos, cansados. Said ficou atento
aqueles passos, um após o outro, subindo os degraus da escada. Desde que
foi avisado da sua chegada, seus nervos afloraram em tensão, quando ouviu o
som do portão de ferro abrir e fechar.
Os minutos se prolongaram e o silêncio perdurou como de forma insu-
portável. Então, escutou o som da chave abrindo a porta. Olhou para Miriam
e viu-a, sentada ali, com o rosto pálido e trêmulo. Não teve força o suficiente
para olhar para Safia e manteve os olhos vidrados na porta. Sentiu, de uma
vez, o suor verter de cada poro de seu corpo.
Os passos oriundos do corredor eram silenciados e pareciam confusos.
Só então se escutou uma voz forte, chamando:
“Mãe!”
Miriam tremeu rapidamente e esfregou as mãos. Said ouviu Safia segu-
rando as lágrimas em silêncio. Os passos hesitaram por um momento como
se estivessem esperando por algo ou alguém. Mais uma vez, a mesma voz
falou e, logo depois ficou em silêncio, Miriam traduziu de maneira hesitante:
372
“Está questionando por que estou na sala a essa hora do dia.”
Os passos continuaram no sentido da sala. A porta estava aberta e Mi-
riam falou em inglês:
“Venha cá, Dov. Temos convidados que desejam vê-lo.”
A porta se abriu lentamente. No início, era difícil enxergar, já que a luz
que transpassava a porta era fraca, e aquele homem robusto deu um passo à
frente: trajava um uniforme militar e tinha consigo uma boina na mão. Said
se levantou, como se tivesse levado um choque que o arremessou para fora de
sua cadeira. O homem olhou para Miriam e falou com a voz ríspida:
“Essa é a surpresa? Essa é a surpresa que queria que esperássemos?”
Safia se virou para a janela e escondeu a face com suas mãos, chorando
abertamente.
O jovem ficou na porta, deslocando o olhar entre os três, confuso. Mi-
riam se levantou e disse lentamente, com uma calma incomum:
“Quero lhe apresentar os seus pais biológicos.”
O jovem deu um passo à frente, lentamente, e sua face mudou de cor,
aparentando ter perdido a confiança naquele mesmo instante. Olhou para o
uniforme, depois para Said, que permanecia de pé diante dele, observando-o
fixamente, e então disse com um tom de voz normal:
“Eu não reconheço nenhuma mãe além de você. Quanto ao meu pai, ele
foi morto na Guerra do Sinai, faz 11 anos, e não reconheço nenhum outro pai.”
Said recuou dois passos para trás, sentou-se e pegou a mão de Safia
entre as suas. Surpreendeu-se, internamente, com a destreza com que con-
seguiu recuperar a calma. Se alguém lhe contasse, dez minutos antes, que
estaria sentado ali, com toda a calma do mundo, não acreditaria, mas tudo
era distinto agora.
O tempo passou vagarosamente, enquanto tudo ficou imóvel. Então,
o jovem passou a caminhar devagar: três passos em direção ao centro da
sala, três passos em direção à porta, depois retornava o rito. Colocou a boi-
na sobre a mesa, de maneira inadequada, quase ridícula, ao lado do vaso de
madeira com as penas de pavão. Foi dominado por uma sensação esquisita,
373
como se estivesse assistindo a uma peça preparada com antecedência e em
detalhes. Tudo isso relembrava os melodramas banais, em filmes triviais,
com capítulos maus feitos.
O jovem se aproximou de Miriam e disse com uma voz firme, para que
fosse compreendido de forma clara:
“O que os dois estão fazendo aqui? Não me diga que querem me levar
de volta?!”
Com idêntico tom de voz, Miriam respondeu:
“Pergunte para eles.”
Ele se virou, rígido como um pedaço de madeira e, como se obedecesse
uma ordem, questinou Said:
“O que o senhor quer?”
Said manteve a compostura, que mais parecia ser nada além de uma
casca fina incapaz de evitar uma chama ardente. Sua voz se enfraquecia,
quando disse:
“Nada. Nada, apenas... curiosidade.”
Um silêncio rapidamente se alastrou e através dele emergiu o som dos
soluços de Safia, como se saíssem do assento de um espectador compene-
trado. O jovem retornou a olhar: de Said para Miriam, depois para a boina
deixada ao lado do vaso. Retrocedeu como se algo o forçasse a voltar para a
cadeira ao lado de Miriam. Então, acomodou-se e disse:
“Não. É impossível. É inconcebível.”
Tranquilamente, Said perguntou:
“Você está no exército? Contra quem luta? Por quê?”
O jovem rapidamente se levantou.
“Você não tem o direito de fazer essas perguntas. Você está do outro
lado.”
“Eu? Estou do outro lado?”
Riu com alegria. E com essa gargalhada explosiva, sentiu como se esti-
vesse afastando toda a dor e nervosismo, medo e apreensão para fora de seu
coração. Queria continuar a rir. Rir até que o mundo inteiro fosse colocado
374
de cabeça para baixo ou até dormir, ou morrer, ou correr para o seu automó-
vel, mas o jovem o interrompeu severamente.
“Não vejo motivo para sua risada.”
“Eu vejo.”
Ele riu um pouco mais, se conteve e ficou em silêncio tão subitamente
como quando começou; recostado em sua cadeira, sentiu a calma retornar e
procurou em seus bolsos por um cigarro.
O silêncio se alongou. Então, Safia compôs-se e perguntou com uma
voz submissa:
“Você não considera que somos seus pais?”
Ninguém sabia a quem a pergunta foi endereçada. Miriam não com-
preendeu, nem o jovem alto. Said não respondeu. Acabou o cigarro e foi até a
mesa para apagá-lo. Sentiu uma compulsão em retirar a boina de seu lugar, e
foi o que fez, sorrindo com desdém, para depois retornar a se sentar.
Então o jovem disse com a voz alterada:
“Vamos nos comportar como pessoas civilizadas.”
Mais uma vez, Said riu e disse:
“Você não quer negociar, não é mesmo? Você disse que estamos em
lados opostos. O que aconteceu? Você quer mesmo negociar?”
Agitada e sem entender ao certo, Safia perguntou:
“O que ele disse?”
“Nada.”
O jovem ficou de pé novamente e falou, como se tivesse ensaiado aque-
las frases há muito tempo.
“Eu desconhecia que Miriam e Iphrat não eram meus pais até três ou
quatro anos atrás. Desde muito criança, sou judeu. Vou à sinagoga, à escola
judaica, como comida kosher e estudo hebraico. Quando me contaram que
eu não era seu filho biológico, isso não mudou nossa relação em nada. Mes-
mo quando me contaram, mais tarde, que meus pais biológicos eram árabes,
mesmo assim, nada mudou. Não, nada mudou, isso é certo. Afinal, em última
análise, o homem é uma causa.”
375
“Quem falou isso?”
“Falou o quê?”
“Quem falou que o homem é uma causa?”
“Eu não sei. Não recordo. Por que?”
“Curiosidade. Na realidade, só porque é precisamente isso que passa
por minha cabeça neste momento.”
“O homem é uma causa?” “Precisamente.”
“Então, por que veio me procurar?”
“Não sei. Talvez porque ainda não soubesse no que de fato resultaria
isso tudo ou para estar mais certo do resultado. Não sei. De qualquer forma,
por que não continua?”
O jovem retornou a caminhar com as mãos cruzadas atrás de suas cos-
tas: três passos para lá, três passos para cá. Parecia estar tentando lembrar
uma longa lição de coragem aprendida. Interrompido no meio do raciocínio,
não sabia como concluir. Então, revisou a primeira parte em sua cabeça para
poder continuar. Então, disse:
“Depois de ficar sabendo que você é árabe, continuei me questionando:
como podem um pai e uma mãe abandonar seu filho de cinco meses e fugir?
E como podem aqueles que não são seu pai e sua mãe de sangue criá-lo e
educá-lo por vinte anos? Vinte anos! Deseja lhe dizer uma coisa, senhor?”
“Não”, Said retrucou breve e decididamente, sinalizando com um gesto
para que ele continuasse.
“Estou na reserva. Nunca entrei de um combate direto, até agora, para
que pudesse expressar meus sentimentos, mas talvez no futuro possa afirmar
o que estou prestes a dizer agora: sou deste lugar e esta mulher é minha mãe.
Não reconheço vocês dois e não sinto nada de especial por ambos.”
“Não há por que você descrever seus sentimentos para mim. Depois,
talvez seu primeiro combate seja contra um Fedayin17 chamado Khalid. Kha-
lid é meu filho. Espero que compreenda que eu não me referi a ele como seu
irmão, já que, como você disse, o homem é uma causa. Na semana passada,

17-Guerrilheiro da nobre causa palestina.


376
Khalid se juntou ao Fedayins... Você sabe por que o chamamos Khalid e não
Khaldun? Porque sempre imaginamos que o encontraríamos, mesmo que le-
vasse vinte anos. Mas isso não ocorreu. Nós não o encontramos. E não acre-
dito mais que o encontraremos.”
Said se levantou rapidamente. Só agora sentiu cansaço, como se consu-
misse sua vida. Esses sentimentos deram lugar a uma tristeza inesperada, que
quase o fez chorar. Sabia que era uma mentira, que Khalid não se uniu aos
Fedayins. Na verdade, foi ele mesmo quem o proibiu. Até mesmo advertiu
renunciar a Khalid se o desafiasse e se unisse à resistência. Os poucos dias
que se passaram desde então lhe asssemelharam a um pesadelo que encerrava
com uma imagem aterrorizante. Fora ele mesmo quem, há alguns dias, amea-
çara renunciar ao filho Khalid? Que mundo estranho! E agora não conseguia
encontrar nenhuma forma de se defender diante da desautorização desse jo-
vem alto, além de se orgulhar da paternidade de Khalid — aquele Khalid que
impediu de se unir aos Fedayins, por meio desse laço inútil que costumava
chamar de paternidade! Quem sabe? Talvez Khalid tenha aproveitado o fato
de estarmos aqui em Haifa para ir embora... Oh, se ele tiver feito isso! Que
decepção terá se voltar a sua casa e encontrar Khalid a sua espera.
Moveu alguns passos, mais uma vez, contou as penas de pavão naque-
le vaso de madeira. Pela primeira vez, desde que o jovem adentrou na sala,
olhou para Miriam e lhe disse calmamente:
“Ele questiona como um pai e uma mãe podem deixar seu filho peque-
no no berço e fugir... Minha senhora, a senhora não lhe disse a verdade, e,
quando disse, era tarde. Fomos nós quem o abandonamos? Fomos nós que
matamos aquela criança, perto da igreja de Belém, em Hadar? A criança,
cujo corpo, foi a primeira coisa que a chocou neste lugar, encerrando a jus-
tiça da crueldade diária... Talvez essa criança fosse o nosso Khaldun! Talvez
a pequena coisa que morreu naquele horrendo dia fosse Khaldun. E sim, era
Khaldun. Você mentiu para nós. Era Khaldun. Ele morreu. Este jovem não
é outro senão um filho órfão que você trouxe da Polônia ou da Inglaterra.”

377
O jovem saiu da cadeira derrotado e Said disse a si mesmo:
“Nós o perdemos, contudo certamente ele se perdeu depois de tudo
isso e nunca mais será o mesmo que foi há poucas horas.”
lsso lhe deu uma satisfação gigantesca e inexplicável, impelindo-o para
a cadeira onde o jovem estava sentado. Parou diante dele e disse:
“O homem, em última análise, é uma causa. Isso foi o que você disse
e é verdade. Contudo qual causa? Essa é a questão! Pense bem. Khalid do
mesmo modo é uma causa, não porque é meu filho, mas, de qualquer for-
ma, deixemos os detalhes de lado. Quando ficamos diante de um homem,
nada disso tem a ver com sangue, carteiras de identidades ou passaportes.
Você compreende isso? Bom. Imaginemos que você nos recebesse — como
idealizamos por vinte anos — com abraços, beijos e lágrimas. Isso faria al-
guma diferença? Mesmo que você nos tivesse aceitado, aceitaríamos você?
Que seu nome seja Khaldun, ou Dov, ou Ismael, ou qualquer outro... O que
muda? Apesar de tudo, não sinto qualquer desapreço por você. A culpa não
é somente sua. Talvez a culpa se torne seu destino a partir deste instante. E,
além disso, o que mais? O homem é composto do que é injetado nele, hora
após hora, dia após dia, ano após ano, e se me arrependo de algo é porque
acreditei, por vinte anos, no oposto disso!”
Voltou ao ritmo, se fazendo parecer o mais calmo possível, e sentou.
Nos poucos passos que deu, passando pela mesa, onde as penas de pavão
balançavam no vaso de madeira, sentiu que tudo parecia totalmente modi-
ficado desde que entrou por aquela sala, pela primeira vez, algumas horas
antes. Então, questionou a si mesmo: o que é a pátria? Sorriu com desgosto e
desmoronou na cadeira, como se fosse um objeto caindo. Safia, preocupada,
olhou com uma expressão de dúvida. Só então lhe ocorreu que poderiam
envolvê-la na conversa. Então, perguntou:
“O que é a pátria?”
Ela se curvou para trás, com o mesmo olhar de espanto, como se
não cresse no que tinha ouvido. Então, perguntou com uma delicadeza que
continha incertezas:
378
“O que disse?”
“Questionei: o que é a pátria? Pergunto-me isso há tempos. São essas
duas cadeiras que ficaram nesta sala por vinte anos? Essa mesa? Essas penas
de pavão? Aquela foto de Al Quds na parede? A fechadura de cobre? O carva-
lho? A varanda? Khaldun? Nossos sonhos sobre ele? Os pais? Seus filhos? O
que é pátria? A propósito de Faris Al Lubda, o que é a pátria? É a foto de seu
irmão pendurada na parede? São apenas questionamentos.”
Mais uma vez, Safia, repentinamente, começou a chorar, secando as
lágrimas com um pequeno lenço branco. Said olhou para ela e disse:
“Como essa mulher envelheceu. Desperdiçou sua juventude esperando
por este instante, sem saber que seria um momento terrível.”
Olhou para Dov novamente. Pareceu-lhe completamente impossível
que ele pudesse ter nascido de sua mulher e tentou achar alguma semelhança
entre Dov e Khalid, mas não conseguiu encontrar nenhuma. Em vez dis-
so, notou uma diferença em ambos que os torna totalmente opostos. Isso o
surpreendeu e fez com que perdesse qualquer sentimento por aquele jovem.
Imaginou que todas as suas recordações de Khaldun eram um punhado de
neve que o sol ardente logo derreteu.
Mantinha-se olhando para ele, quando Dov se ergeu e parou rígido
diante de Said, como se estivesse à frente de algum grupo militar. Fez um
empenho enorme para se acalmar e disse:
“Provavelmente nada disso acontecesse se você se comportasse como
um homem civilizado deveria se comportar.”
“Como?” - Questionou Said.
“Vocês não deveriam ter fugido de Haifa. Se fosse impossível, pois a
necessidade era o menos importante, então não deveriam ter deixado um
bebê de colo em seu berço; e se, ainda assim, isso também, nunca deveriam
ter parado de tentar retornar... Se isso também fosse impossível? Vinte anos
se passaram, senhor! Vinte anos! O que você fez durante esse tempo para
requerer seu filho? Se eu fosse você, teria pegado em armas por essa causa.
Existe alguma razão mais relevante? Vocês são covardes, covardes! Presos
379
por aqueles grilhões de atraso e apatia! Não me diga que nesses vinte anos
apenas choraram? Lágrimas não trarão de volta o que se perdeu e não fa-
rão milagres! Todos as lágrimas do mundo não os levarão até sua criança
perdida. Então você passou vinte anos chorando... Isso é o que você me diz
agora? Essa é sua arma insignificante?”
Said se curvou para trás, atordoado, ferozmente atingido e dominado
pela tontura. Seria verdade? Ou era apenas um sonho prolongado, uma es-
pécie de pesadelo tirânico, cobrindo-o como um animal imenso? Ele olhou
para Safia, cujo choque a fez parecer uma pessoa indefesa, e sentiu uma pro-
funda melancolia. Apenas para não parecer tolo, dirigiu-se até ela e disse com
a voz estremecida:
“Não quero me indispor com ele.”
“O que ele disse?”
“Nada... disse que somos covardes.”
Safia perguntou inocentemente:
“E por que somos covardes? Ele igualmente pode se transformar em
um covarde.”
Com isso, encarou o jovem que ainda estava de pé. As penas de pavão,
atrás dele, pareciam formar uma figura de um grande galo de cor cáqui com
cauda de pavão. Essa visão estranha animou Said, que disse:
“Minha esposa questiona se o fato de sermos covardes lhe dá o direito
de ser pior. Como você pode ver, ela, inocentemente, reconhece que fomos
covardes. Dessa perspectiva, você está correto. Contudo isso não significa que
você está certo, pois dois erros não fazem um acerto. Se esse fosse o caso, en-
tão, o que ocorreu com Iphrat e Miriam, em Auschwitz, foi certo. Quando vo-
cês vão parar de acreditar que a fraqueza e os erros dos outros são colocados
na conta de suas próprias atribuições? Esses velhos tópicos estão desgastados
e esses métodos aritméticos, cheios de trapaças... Primeiro, vocês falam que
nossos erros justificam os seus, depois dizem que uma injustiça não justifica
outra... usam a primeira lógica para justificar sua existência aqui e a segunda,

380
para evitar a penalidade que merecem. Parece-me que vocês apreciam muito
desse estranho jogo. Outra vez, você está tentando fazer de nossa fraqueza
um cavalo de corrida... Não, não estou falando com você como se fosse um
árabe, mas agora eu sei, melhor que ninguém, que o homem é uma causa,
não de sangue transmitidos de geração em geração, como um comerciante
e seu cliente negociando carne enlatada. Estou sustentando que, em última
análise, você é um ser humano, judeu ou o que seja. Deve entender as coisas
como elas deveriam ser... Eu sei que um dia entenderá essas coisas e saberá
que o maior crime que um homem pode cometer é acreditar, mesmo por um
momento, que a fraqueza e os erros dos outros lhe dão o direito de existir as
nossas custas e justificar seus próprios erros e crimes horrendos.”
Calou-se por um instante e olhou firmemente nos olhos de Dov.
“E você? Acredita que vamos continuar cometendo erros? Se, um dia,
pararmos de cometer erros, o que lhe restará então?”
Sentiu que deveriam se levantar e sair, porque tudo havia chegado
ao fim e não restava mais nada a dizer. Naquele instante, teve uma sau-
dade amorosa de Khalid e quis poder voar até ele, abraçá-lo, beijá-lo e
chorar em seu ombro, trocando os papéis de pai e filho de uma forma
única e inexplicável. “Isso é a pátria”, disse, rindo, para si mesmo. Depois,
voltou-se para sua esposa:
“Você sabe o que é a pátria, Safia? A pátria é onde nada disso pode
acontecer.”
E ela perguntou, um pouco preocupada:
“O que aconteceu com você, Said?”
“Nada. Nada. Eu só pensava alto. Procuro a verdadeira Palestina, uma
Palestina que é mais do que recordações, mais do que penas de pavão, mais
que um filho, mais do que rabiscos desenhados nas paredes. Dizia para
mim mesmo: o que é a Palestina em relação a Khalid? Ele nunca viu o vaso,
a foto, a escada, Halisa ou Khaldun. No entanto, para ele, a Palestina é algo
digno de um homem pegar em armas e dar a vida pela causa. E para nós,

381
para você e para mim, é apenas uma busca por algo soterrado sob a poeira
da memória. E veja o que achamos debaixo desse pó. Ainda mais poeira.
Estávamos errados, quando achamos que a pátria era apenas o passado.
Para Khalid, a pátria é o futuro. É assim que nós nos separamos, e é por isso
que Khalid quer pegar em armas. Dezenas de milhares como Khalid não
serão paralisados pelas lágrimas dos homens que procuram nas suas derro-
tas por fragmentos que lhes servem de escudos. Eles estão olhando para o
futuro, para que possam corrigir nossos erros e os erros do mundo inteiro.
Dov é nossa vergonha, mas Khalid é nossa honra. Não lhe disse desde o
princípio que não deveríamos vir — pois isso exigia uma guerra? Vamos!
Khalid compreendeu isso antes de nós ... Safia!”
Levantou-se e Safia ficou ao seu lado, torcendo o lenço, confusa, en-
quanto Dov ficou sentado e relaxado. Sua boina jogada parecia, por algum
motivo, mais ridícula ainda. Miriam disse lentamente:
“Vocês não podem sair assim. Não falamos o suficiente sobre a questão.”
Said respondeu:
“Não existe nada mais a dizer. Para você, talvez tudo tenha sido apenas
uma questão de má sorte, porém a história não é assim. Quando chegamos
aqui, resistimos como quando, admito, saímos de Haifa. No entanto, tudo isso
é apenas passageiro. Sabe de uma coisa, senhora? Todo palestino pagará um
preço. Conheço muitos que pagaram com os filhos. Agora sei que da mesma
forma paguei com um filho, de uma maneira diferente, mas paguei... Essa foi a
minha primeira parcela, e é algo que é difícil de explicar em palavras.”
Virou-se e viu Dov, ainda tranquilo em sua cadeira, segurando a cabe-
ça entre as mãos.
Quando se paroximou da porta, disse:
“Vocês dois podem ficar temporariamente em nossa casa. Será preciso
uma guerra para encerrar com isso.”
Então, desceu os degraus da escada olhando todas as coisas com cui-
dado. Tudo parecia menos relevante do que há poucas horas, incapaz de mo-

382
tivar qualquer sentimento profundo nele. Ouviu os passos de Safia atrás dele,
agora mais determinados do que antes. E a rua estava quase vazia. Entrou no
carro sem dar partida e desceu lentamente até o pé da encosta. Somente na
curva ligou o motor e foi em direção da Rua Malik Faisal.
Ficaram ambos em silêncio até o fim da viagem. Não trocaram ne-
nhuma palavra até chegarem à entrada de Ramallah. Só então olhou para a
esposa e disse:
“Desejo que Khalid tenha partido... durante nossa ausência!”

383
Teatro político:
Breve Conclusão

384
Texto que sintetiza a moral militante e que expõe
elementos que o autor entendia serem necessários aos lutadores
da nobre causa palestina. O texto foi produzido em sua fase
pré-marxista, já militante do nacionalismo árabe do MNA.
As descobertas do personagem principal ante sua
vivência e a forma simples de expô-las se constituem em uma
rica síntese da opção militante.

Nota do organizador
PRIMEIRO ATO

[O ator diante da plateia em monólogo]

- Bom dia! Meu nome é Abdul-Jabbar, fui criado por Ghassan Kana-
fani nos anos 60. As forças de colonização nos mataram anos mais tarde...
Estou aqui, hoje, e não vou tomar muito de seu tempo para contar minha
breve história, talvez ela lhe seja útil...
Eu sempre gostei de filosofar e costumava a filosofar muito. Deus pode
dissuadi-los pela filosofia... Desde criança já tinha o costume de fazer muitas
perguntas de diferentes tipos... Uma delas preocupou-me por semanas:
- “Por que não colocamos o sapato sobre a cabeça ao invés do chapéu?”
Então decidi colocar o sapato sobre minha cabeça e andar por minha casa.
Até que meu pai veio a mim e “delicadamente” disse:

[O ator grita rispidamente como se fosse o pai furioso].

- “Venha aqui! Deixe-me ver...”


Eu fui ao seu encontro.
- “Tire esse sapato de sua cabeça...”
- Por que pai?
- “Para que o sapato não coma sua cabeça!”
Com todo o respeito e amor, respondi:
- Eu farei, pai.
Passado um ou dois anos não recordo bem... comecei a pensar: “Por
que nós humanos não usamos nossos quatro membros como os animais
quadrúpedes o fazem? Não seria mais confortável?”

O texto é uma peça teatral adaptada pelo diretor e ator Fadi Al Naji, baseada em um texto
escrito, em 1958, por Ghassan Kanafani. Tradução de Yasser Jamil Fayad.
386
A filosofia continuava a crescer em minha cabeça como a árvore de figos
de meus avós... Seguia crescendo e nos alimentava de figo! Seguia crescendo e
nos alimentava de figo!!! Até ser destruída pelos tanques da ocupação.

[O ator olha para cada expectador... e diz:]

- “Você acha que eles podem destruir minha filosofia?”


Mantive-me o mesmo, até que uma ideia explodiu em minha mente e
virou minha vida de cabeça para baixo:
- “Já que somos trazidos à vida involuntariamente, é nosso direito de-
cidir como terminá-la voluntariamente.”
Continuei ponderando, pensando e contemplando esta ideia até che-
gar a uma conclusão:
- “Morte é a conclusão da vida.”
E esta, senhoras e senhores, é minha breve conclusão número um!

SEGUNDO ATO

[O ator diante da plateia em monólogo]

Seguindo esta conclusão, senti-me mais estável e isso me deu paz de


espírito. Não acho que isso exista muito nos dias de hoje! Comecei a pensar
como ter uma morte honrável... e, senhoras e senhores, decidi juntar-me aos
revolucionários.
Fui até lá de carne e osso, na época tinha mais carne... e livremente, não
forçado. Fui até lá voluntariamente! Caso vocês ouçam alguém dizer que Ab-
dul-Jabbar foi arrastado e forçado a se juntar aos revolucionários... Digo-os
para calarem a boca! Pois Abdul-Jabbar voluntariamente escolheu juntar-se
aos revolucionários.
Cheguei ao Centro de Recrutamento Voluntário e diante do oficial
postei-me como uma vara ereta dizendo:
387
- Preciso de um rifle.
O pobre oficial estava procurando por um uniforme militar (ele não
tinha um na época) olhou para mim e disse:
- “Nós não temos rifles”.
Senti como se estivesse na UNRWA pedindo por farinha ou lata de
sardinhas:
- Preciso de um rifle para lutar com os revolucionários.
Ele respondeu:
- “Você não entende o idioma árabe? Eu disse que não temos rifles!” E
quem está indo defender a pátria?
O oficial continuou:
- “Os revolucionários acham os seus próprios rifles, vá achá-lo e volte aqui”.
- Posso morrer antes de conseguir um rifle.
Com tom de deboche o oficial retrucou:
- “Você acha que aqui são férias de verão?”
- Não, adeus.
O oficial desencadeou minha filosofia novamente! Fiquei pensando:
“Alguém pode morrer antes mesmo de ter um rifle.” Assim, repensei e
reconsiderei minha breve conclusão número um até chegar a esta formulação...
“Mais importante do que ter um rifle é encontrar a morte com um nobre
ideal... É achar um nobre ideal, antes da morte.”
E esta, senhoras e senhores, foi minha breve conclusão número dois!

TERCEIRO ATO

[O ator diante da plateia em monólogo]

Não foi tão difícil achar um rifle perto de nossa casa, em um local onde
as forças de ocupação enfrentam a resistência dos revolucionários. Quando
os tiros pararam, fui até o campo de batalha e encontrei um soldado das forças
de ocupação morto, com um rifle sob seu braço. Julguei que um cadáver não
388
faria nada com um rifle. Aproximei-me do corpo, ergui seu braço e peguei
o rifle. Sentei-me em uma pequena colina e pensei: - Agora tenho meu rifle.

[Canção em árabe tocada pelo ator com o alaúde]:


“Sessenta anos...
E estou procurando minha pátria e identidade.
Sessenta anos...
E estou procurando minha pátria e identidade.
Procurando por minha casa lá
Em uma pátria cercada por arames farpados.
Procurando por minha infância
E pelos meus amigos de infância.
Procurando por minha infância
E pelos meus amigos de infância
Por minhas fotos e meus livros
Por minhas fotos e meus livros...”

QUARTO ATO

[O ator diante da plateia em monólogo]

Juntei-me à causa revolucionária, tenho um rifle e camaradas. Não


parei de filosofar, é claro, pelo contrário. Os camaradas se habituaram
a encontrar conforto em minha filosofia. Achei útil usá-la para explicar e
analisar eventos. Eu era o mais velho deles, depois de Hajj Khalil – que sua
alma descanse em paz – isso me dava intimidade para falar com eles, após
todos os martírios e todas as batalhas – sobre a morte, a filosofia e minhas
breves conclusões. Depois de todo martírio, minha filosofia se desenvolveu e
minhas breves conclusões se cristalizaram. Hajj Khalil foi martirizado – que
sua alma descanse em paz – em sua mão direita estava seu rifle e em sua mão
esquerda, uma bengala. Ele era um camponês... analfabeto, sua riqueza era
389
sua pátria, sua terra. Antes de ser martirizado estava jurando e amaldiçoando.
Tinha pensado um discurso de lamento pelo mártir e, quando os camaradas
reuniram-se, eu disse:
- “Camaradas! Camaradas! Camaradas! O nobre ideal não requer com-
preensão... requer sentimento!”
E esta, senhoras e senhores, é minha breve conclusão número três.
[Canção em árabe tocada pelo ator com o alaúde]:

“Eu lhe deixei na escassez de figo e azeitonas,


Vesti sua nudez com vestidos perfumados
Feitos com a destruição da casa
Eu adoro você viva
Eu adoro você morta
Eu adoro você viva
Eu adoro você morta
Eu tenho tomilho para satisfazer minha fome
Limpei minha face em seus cabelos pardos
Minha empoeirada face rubra”.

QUINTO ATO

[O ator diante da plateia em monólogo]

Logo após, o martírio de Walid Masoud. Ele tinha deixado a base


e atacou um soldado com uma faca. Foi alvejado pelas costas. Como de
costume tinha que pensar um discurso de lamento pelo mártir.
Estávamos todos reunidos e, então, eu disse:
- “Camaradas! Camaradas! Camaradas! A coragem é a medida da
sinceridade.”
E está, senhoras e senhores, é minha breve conclusão número quatro.
390
SEXTO ATO

[O ator diante da plateia em monólogo]

Um tempo depois, aquele oficial que me expulsou no início da história,


estava de uniforme desta vez, pediu-me para ir até o porto verificar o movi-
mento dos inimigos. Como ele disse, e como você podem ver, minha face
estava triste e calma. O que não chamaria a atenção para mim. Assim fui até
lá sem carregar nenhuma arma comigo.
Eu caminhei em volta do porto como um pavão, mas algumas vezes o
vento perturba os navios. No caminho de volta, um soldado me reconheceu.
Capturaram-me e me apresentaram ao oficial da ocupação, que ficou em mi-
nha frente sentindo medo... deu um tapa em meu rosto e gritou:

[O ator grita rispidamente como se fosse o oficial assustado.]

- “Você é rebelde?”
- Respondi: É claro.
- “Te amaldiçoo seu bastardo!”
- Você deseja, eu disse.
Aqui, sem meus camaradas e para me confortar disse:
- “Bater num prisioneiro é uma expressão de arrogância e medo”.
E esta é minha quinta breve conclusão, senhoras e senhores.

SÉTIMO ATO

[Um outro ator, sentado, diante da plateia em monólogo]

Abdul-Jabbar foi capturado pelas forças de ocupação e torturado pelos


soldados. Pediam para ele entregar locais das bases dos revolucionários, mas

391
Abdul-Jabbar não nos traiu. Ele jogou na face do soldado que o torturava
uma breve conclusão:
- “Traição é uma morte desprezível!”
Em uma noite estávamos nos preparando para a batalha, vimos Ab-
dul-Jabbar nos portões da base. Atrás dele, duas linhas de soldados, ele gritou
mais alto do que as balas da morte:
-“Eu trouxe para você cinquenta soldados e deixei a pátria gritando!”
Nós não conseguimos definir de onde os tiros vinham, senti como se
fosse o fim do mundo. Nossas vozes ficaram insignificantes, nossos corpos
penetrados por balas... Aqueles que sobreviveram, não foram assassinados.
E, martirizados foram deixados para serem cuidados pela terra.

[O ator, sentado, diante da plateia em tom de desespero entoa:]

“Tiros, fogo, sangue, cadáveres...


cheiro de morte e cheiro da pátria
Tiros, fogo, sangue, cadáveres...
cheiro de morte e cheiro da pátria
Tiros, fogo, sangue, cadáveres...
cheiro de morte e cheiro da pátria”
Nós éramos capazes de ouvir Abdul-Jabbar dizer:
-“Mesmo se um de nós morra... é importante continuarmos!”

392
Cartas:
A esposa;
Visão de Gaza;
Visão de Ramallah;
Curiosidade de uma criança ou o
destino de um homem;
O texto “a esposa” conta a história heroica de resistência
de um vilarejo palestino de forma literária, é uma das formas
de contar a história a contrapelo e como patrimônio cultural
da luta palestina. “Visão de Gaza” é uma carta ficcional que
expressa seu desejo de permanecer na Palestina mesmo com a
opção de outra vida, o que de certa maneira sintetiza a posição
de parte de sua geração. “Visão de Ramallah” lembra a Nakba,
a grande catástrofe planejada contra os palestinos, mesclando
memórias e histórias que o ligam ao que os autores árabes
chamam, de a “geração da Nakba”. Seus escritos refletem esse
evento trágico fundador de novas formas de expressão da
identidade e vida palestinas. “Curiosidade de uma criança
ou destino de um homem” é o momento comovente em que
Ghassan reconhece no filho a passagem da inocência da
infância à aspereza da vida adulta palestina como refugiado.

Nota do organizador

394
A Esposa

Meu caro Riad,


Você vai achar, na certa, que fiquei louco, já que é a segunda carta
que mando no mesmo dia. Acontece que esta vai servir para esclarecer
umas coisas. Pensei que era um absurdo escrever somente para dizer: pro-
cure por aí, por onde você estiver um sujeito muito grande, alto e robusto,
de quem eu nem imagino o nome, e que usa velhas roupas de cor cáqui. À
primeira vista, ele parece meio agressivo.
O que você pode concluir dessas primeiras pistas? Com certeza, nada.
A gente cruza, andando pelas ruas, com centenas de pessoas com essa mes-
ma descrição, mas quero dizer que você pode reconhecê-lo, porque se trata
de personagem bem diferente, fora do comum. Como assim? Não sei dizer
porquê. Para falar a verdade, não sei direito. Desde que o vi pela primeira vez
tive a impressão de que se desprendia dele um tipo de luz... Isso mesmo, uma
aura, uma poeira fluorescente. Confesso a você que, no momento em que ele
me parou na rua, essa poeira luminosa fez com que eu gravasse a imagem
daquele sujeito enorme. Se não foi isso, como explicar que ainda agora me
lembre dele, que sua imagem continue forte em minha memória, enquanto
esqueço de centenas de outras pessoas com quem dou de cara a toda hora, na
rua, e que logo somem no vazio?
Imagino que você está começando a me achar meio desequilibrado, já
que continuo sem esclarecer nada. Estamos ainda no mesmo pé da primeira
carta: procure um homem muito grande, robusto, de quem não sei o nome,
mas que usa velhas roupas cáqui e que parece, à primeira vista, um pouco
perturbado.
Acrescentei também o que acho uma característica bem importante:
ele está rodeado pelo que me deu a impressão de ser um halo, uma poeira flu-
orescente. Mas sei que não é suficiente. Se escrevo duas cartas no mesmo dia

395
é para colocar você a par de toda história. E você tem o direito de saber tudo
o que eu sei, já que estou pedindo para me ajudar a encontrar esse homem.
Não me lembro mais de quando foi que o vi pela primeira vez, mas me
lembro nitidamente de sua aparência: o jeito de quem perdeu alguma coisa
importante. Andava com as costas um pouco arqueadas, as mãos abertas,
olhando desconfiado para os rostos das pessoas na rua. Foi uma espécie de
visão meio estranha, contudo me esqueci dele logo depois. Voltei a me lem-
brar, quando o vi pela segunda vez. Seu olhar me arrancou literalmente do
chão e me senti flutuando, como se fosse absorvido por uma nuvem invisível.
Nunca vou saber se era eu quem havia sido atraído em sua direção, res-
pondendo a um apelo irresistível, que vinha dos olhos dele ou se foi ele quem
veio a mim. Colocou a forte mão sobre meu ombro e perguntou:
- Você a viu?
- Quem?
- A esposa.
Tive certeza, naquele momento, de que se tratava de um louco. O que
senti, cruzando meu olhar com o olhar duro desse sujeito, foi o mesmo que se
experimenta quando a gente encara alguém que perdeu a razão, que não tem
mais o senso da realidade. Escolhi, naquela hora, uma saída fácil, dizendo:
- Não, eu não vi.
Ele soltou a mão pesadamente. Virou-se de costas e escutei o que falou,
como se conversasse consigo mesmo:
- Você diz isso...há mais de dez anos...
Depois, quando desapareceu na multidão, me senti de repente impres-
sionado pelo fato de que seu imenso corpo estava rodeado daquela coisa que
eu disse parecer poeira fluorescente, aquele halo luminoso que os pintores re-
nascentistas colocavam ao redor do Cristo debruçado sobre os pobres. Você
se lembra daqueles cartões de boas festas que a gente recebia?
Eu tentei, em vão, voltar a encontrar esse homem. Mas são coisas que
acontecem num piscar de olhos. Procurei como alucinado pelas ruas, andan-
do várias vezes do início até o fim daquela que havia visto. Havia centenas de
396
homens que se pareciam com ele, mas já não adiantava mais nada.
Ainda continuo a procurar e peço que você me ajude. Sei que você está
bem longe daqui, que muitos quilômetros nos separam, mas o que impediria
esse homem de se dirigir, envolvido por sua luz inexplicável, a qualquer lugar
distante quilômetros daqui?
Pedi a mesma coisa a outras pessoas antes de escrever a você. E faço a
você o mesmo apelo que fiz a todo mundo. Já estou falando disso até mesmo
com gente que mal acabo de conhecer. Preciso confessar, Riad, que até acabei
indo mais longe.
Uma noite pensei: se esse homem pegou o costume, durante dez anos,
de interrogar as pessoas sobre a “esposa”, como ele fez comigo, com certeza
elas acabam sentindo o que eu senti, um dia, a caminhar pelas ruas. Meus
olhos se fixaram nos de um sujeito que passava, um desconhecido. Antes
mesmo que eu refletisse um pouco sobre o que fazia, parei o homem. Pus a
mão sobre seu ombro e perguntei:
- Você viu a esposa?
Pode me chamar de louco. Mas isso foi exatamente o que fiz. Aju-
dou-me a compreender mais coisas sobre aquele homem e a “esposa” per-
dida. O pior é que não consigo mais me livrar dessa vontade de parar as
pessoas na rua e fazer a mesma pergunta sobre a “esposa”.
Mas a coisa está feia. Agora preciso voltar ao ponto de partida, a esse ho-
mem envolvido por sua poeira luminosa e cujos olhos, lábios, sua mão pesada,
me colocaram pela primeira vez diante da estranha interrogação. Preciso rever
esse homem, Riad, porque consegui algumas informações sobre a “esposa”.
Riad, ele é da aldeia Shaab. Sua história começa, acho em um dia de
junho de 1948. A guerra fazia o sangue correr após seis meses de luta. Não sei
todo o seu nome, mas sei que se entregou ao combate como poucos. Esteve
por todo lado: na vanguarda, na retaguarda, no socorro aos feridos. Para seu
trabalho, ele precisava saber os horários das operações com pelo menos duas
horas de antecedência, o tempo necessário para fazer a entrega do armamen-
to. Todos os respeitavam pelo papel que cumpria. Era tão escrupuloso que
397
chegava ao ponto de, antes de cada operação, encarregar um companheiro de
entregar a arma ao seu proprietário, caso caísse durante a luta. Era meticu-
loso, acertando detalhes como o funcionário de um banco respeitável, ainda
que nunca houvesse visto um banco, respeitável ou não. Por seis meses, não
teve problemas. Nem chegou a ser necessário que tivesse sua própria arma.
Não sei por que ele teve a ideia, num dia de junho, de se apoderar de
uma arma. Era até uma boa ideia, pois os combates mais sérios se concentra-
vam, na época, justamente naquela região da Galiléia. O inimigo havia atira-
do suas principais forças nessa batalha e as levas de emigrantes começavam a
crescer dia a dia, cruzando as colinas rumo ao norte.
Ele não demorou muito para se decidir. Antes do fim da primeira se-
mana de junho já tinha resolvido. Durante um combate cujo nome esqueci,
passou a arma a um companheiro e começou a rastejar sob as nuvens de fogo,
em direção ao lado inimigo. Ele sabia que muitos soldados deles haviam sido
mortos sobre as linhas avançadas. Se esperasse o fim dos confrontos poderia
perder a chance, pois o inimigo levava de volta os soldados mortos e suas
armas, puxando-os com cordas.
Conseguiu chegar às trincheiras calcinadas. Uma espessa escuridão o
envolvia. Deixou-se cair em uma das trincheiras e arrancou com os dentes o
fuzil de um soldado morto, examinando a arma à luz das explosões. A seguir,
voltou para junto dos companheiros.
A novidade logo se espalhou pelas aldeias da região, não porque fosse
a primeira vez que isso acontecia, mas por que o tal fuzil era de um tipo
desconhecido ali.
Não quero esticar muito a história. Depois, ele foi chamado à chefia
local, instalada em uma aldeia próxima. O oficial já estava sabendo do
famoso fuzil. Quando o teve em suas mãos, arregalou os olhos:
- Mas é fuzil tcheco!
Os outros se aproximaram para ver de perto a nova arma. O aço brilhava
a luz da lanterna. Tinha uma coronha escura, marrom, e uma correia amarela,
nova, feita por mãos cuidadosas. Seu tambor, sobre o gatilho, parecia uma coroa.
398
Uma voz se ouviu no outro lado da sala:
- Então podemos concluir que eles receberam um novo carregamento de
armas dos países do Leste. Precisamos passar a informação ao quartel general.
O oficial aprovou, balançando a cabeça:
- Eu mesmo vou levar este fuzil ao quartel general.
Deixo que você imagine, Riad, o que aconteceu então. Nosso amigo se
agarrou ao fuzil, mas como você sabe, ordens são ordens. Ele lhes disse:
- Mas será que vão acreditar se vocês derem as informações sem mos-
trar o fuzil? Além disso, podem ganhar tempo... Eu mesmo posso, se quise-
rem, levar o fuzil...
Todos seus apelos deram em nada. O oficial tentou tranquilizá-lo jurando
que iria devolver o fuzil dois dias depois, com carga nova.
Os dois dias se passaram. Depois, uma semana inteira daquele mês em
que cada minuto contava, em que as pessoas morriam, as aldeias eram arrasa-
das, os campos ardiam. Nosso amigo ia de chefia local para casa e voltava de
casa para a chefia. Diziam-lhes: “Espere um pouco...”; depois: “Volte amanhã...”.
Mas os acontecimentos daquele mês decisivo, como você deve lembrar bem,
não esperaram. E dois desses acontecimentos desabaram sobre ele, de repente,
num mesmo dia. Uma manhã, ele descobriu que o oficial acabara de transferir
a chefia local para o norte, para um lugar desconhecido de todos. Mais tarde,
a aldeia de Shaab sofreu o primeiro ataque inimigo: os morteiros atingiram as
casas de barro seco e queimaram os olivais num abrir e fechar de olhos.
Quem poderia emprestar a nosso amigo um fuzil no meio de uma
tempestade assim? De nada vale um fuzil, nessas horas, para permitir a um
homem romper as barragens de fogo e achar abrigo seguro ou mesmo uma
morte honrosa. Fazer o quê, em meio aquele mar de chamas? Esperar a lou-
cura? Não lhe passava pela cabeça fugir, e a loucura não poderia lhe dar mais
do que ele já tinha em sua vida normal. Restava-lhe a morte. Mas a morte não
queria nada de quem havia estado sempre nas primeiras linhas de combate,
lutando com suas armas emprestadas.
399
Então ele se sentou onde estava, sobre uma pedra no meio da praça
de sua aldeia. Ficou olhando as casas queimarem, os homens morrerem, sua
família fugir amparada pela noite, em busca de um refúgio.
Quando Shaab foi ocupada, eles apareceram. Vendo-o na praça, sen-
tado, acharam que era um louco. Foi espancando com as coronhas dos fuzis,
expulso para o norte.
Andou dia e noite através do que restava da Galiléia, procurando seu
fuzil por onde passava, perguntando a todos os combatentes que encontrava
pelo caminho. Era como se escavasse os rostos e as coisas em busca do fuzil
que havia guardado por apenas algumas horas e com o qual nunca havia
apontado para coisa nenhuma.
Você sabe o que a aconteceu com a aldeia de Shaab? Pouca gente sabe,
e é preciso você saber para que entenda toda a história. Nosso amigo foi
empurrado pelo calor sufocante até El Baroua, indo dali até Magd Al Kroum,
Al Boana, Dir El Assad, Kesra, Kafr Samii, sempre atrás de informações
sobre seu fuzil. Seguia as pegadas, guiado pelas histórias que ouvia e pelos
homens que as contavam. Quando chegou a Tarshiha, teve notícias recentes
de Shaab. Os quarenta combatentes da aldeia, que haviam sobrevivido ao
ataque, dirigiam-se ao alto comando do Exército de Libertação, no norte.
Solicitaram ali o alistamento. Mas quando perceberam que esse exército
não pretendia lutar pela retomada de Shaab, eles o abandonaram e voltaram
sozinhos. Atacaram as forças que ocupavam a aldeia e conseguiram libertá-
la, após uma batalha que durou a noite inteira.
Pode até parecer incrível para você. Mas foi assim mesmo. Os qua-
renta combatentes voltaram a sua aldeia queimada, conseguiram libertá-la e
perseguiram os soldados inimigos até a encruzilhada de Damon. Dez deles
morreram durante a caçada.
Foi isso que aconteceu, Riad, no coração de uma região toda cercada
pelas forças inimigas. Os trinta homens ficaram na aldeia destruída, repelin-
do noite e dia os ataques seguidos. Enquanto isso, o nosso amigo, em Tar-
shiha, farejava a trilha de seu fuzil. E já começava a sentí-lo bem próximo,
400
quase ao alcance da mão. Àquela altura, ele achava que com mais um dia
encontraria sua arma e voltaria a Shaab.
Mas os acontecimentos nunca esperam. Um dia, o inimigo retomou
Shaab. Os homens que a defendiam tiveram que abandoná-la, após terem
perdido cinco dos seus. Esconderam-se nas colinas próximas, onde as pesso-
as da região costumavam, até pouco tempo atrás, levar as cabras para pastar.
Nesse dia nosso amigo soube que um novo fuzil tcheco andava em mãos
de um velho, em uma pequena aldeia ao norte de Tarshiha. Caminhando
sem descanso, chegou ao cair da noite, arrebentando de tanto andar. Ali,
disseram-lhe que os vinte e cinco sobreviventes de Shaab haviam deixado
as colinas. Apenas com seus fuzis e algumas facas, tinham lutado por toda
a manhã, reconquistando as ruínas. Estavam entrincheirados ali, depois de
terem sofrido mais três baixas.
Nosso amigo ainda acompanhava as notícias de seu fuzil de porta
em porta. Soube que o velho havia partido pela noite para cruzar as co-
linas. Talvez quisesse se juntar aos combatentes que se reuniam ao sul de
Tarshiha, esperando um ataque decisivo do inimigo. Ele, então, sem perder
mais um segundo, voltou a Tarshiha. Ficou sabendo que os homens de Sha-
ab, que lutavam nas ruínas de sua pequena e isolada aldeia, o esperavam.
Era sua aldeia, mas por ela não havia tido ainda a chance de disparar uma
única bala. Quando chegou a Tarshiha, teve notícias de Shaab. Os comba-
tentes, extenuados, haviam sofrido um ataque surpresa realizado por gran-
de número de soldados inimigos. Foram obrigados a abandonar mais uma
vez a aldeia, perdendo sete homens durante a retirada. Desapareceram nas
colinas, levando quatro feridos.
Nosso amigo achava que ia ficar louco, correndo de um lado para
outro, dividido entre as notícias de Shaab e as que falavam de seu fuzil.
Os combatentes que haviam escapado tentaram uma nova investida,
descendo das colinas somente duas horas depois de sua retirada.
Com um rápido ataque, retomaram suas posições, conseguindo ainda
401
provocar pesadas perdas entre os homens do inimigo e apoderando-se
de uma boa quantidade de armas e munições.
Não sei quem foi que disse a ele em Tarshiha que os combatentes de
Shaab poderiam conseguir-lhe uma arma como aquela que procurava, mes-
mo se ele voltasse a sua aldeia de mãos vazias. Não sei também como foi que
ele reagiu a essa idéia. Nesse mesmo dia, em Tarshiha, ele reconheceu, as
costas de um homem que passava pela praça, seu fuzil.
Como havia feito no dia em que arrancou a arma do soldado morto
com seus dentes, ele tentou retomá-la. Mas o fuzil continuou sobre as cos-
tas do outro. Surpreendido pela ousadia daquele estabanado desconhecido, o
homem voltou-se para enfrentá-lo. Pressentindo a confusão que ia ter lugar,
agarrou-se com força ao fuzil, usando uma mão livre para proteger-se da
investidas do gigante.
Mas o pobre homem era incapaz até de falar naquele instante. Fiquei
sabendo que chorou, tremendo de febre. Seus lábios secos murmuravam pa-
lavras incompreensíveis.
- É meu fuzil! – conseguiu por fim articular com voz apagada.
Suas mãos estavam agarradas à arma e seus olhos se fixavam no outro
como que esperando uma aprovação. Ouviu de volta:
- Seu fuzil? Desgraçado! Paguei o preço dele com meu próprio dinhei-
ro, não faz dois dias...
A pergunta que nosso amigo era incapaz de fazer estava inscrita em
seus próprios olhos. A resposta não demorou:
- Isso mesmo, com meu dinheiro. Comprei, na frente de cinco teste-
munhas, de um oficial que ia para o norte. Custou cem libras...
As mãos relaxaram, mas ainda sem deixarem de tocar o fuzil. Pareceia
estar a ponto de desabar, mas fez um novo esforço para dizer:
- Preciso dele para voltar a Shaab...
- Shaab? Os sionistas a ocuparam outra vez, há poucos dias.

402
Nosso amigo então largou o fuzil lentamente e recuou uns dois passos.
Um pouco mais tranquilo, o outro perguntou:
- Era seu esse fuzil?
Em resposta, teve apenas o silêncio e um aceno de cabeça, que não
escondiam o desespero.
- Paguei por ele com o dote de minha única filha. Há muitos anos eu
recusava dar minha filha como esposa àquele velho estúpido. No fim fui obri-
gado a aceitar... Quando ele pagou cem libras. As cem libras com que com-
prei, um quarto de hora depois, este fuzil de um oficial.
Essa foi a última vez que o viram em Tarshiha. Seguiu depois para o
norte. Com certeza ouviu dizer, antes de atravessar a fronteira, que seus dez
camaradas sobreviventes de Shaab haviam descido as colinas dois dias mais
tarde e que conseguiram retomar, com armas improvisadas, sua pequena al-
deia destruída.
Não sei o nome da moça que foi vendida pelo preço de um fuzil. Não
sei o que foi que o outro homem fez com o fuzil, nem como foi que acabou a
história de Shaab para seus combatentes que sumiam como manteiga no fogo.
Nosso amigo sobreviveu como o único dos habitantes de Shaab? É bem
capaz... Eu não sei, para falar a verdade. Mas talvez seja possível que ele conti-
nue a procurar, com seu olhar estranhamente pesado, seu fuzil perdido, para
poder se juntar aos que o esperavam na aldeia em ruínas.
Por que você não procura esse homem comigo, meu caro Riad? Eu
repito: ele é grande, robusto... Não sei o nome, mas usa velhas roupas cáqui e
parece envolvido por uma fina poeira fluorescente. Ele fica cara a cara com as
pessoas na rua e pergunta: “Você viu a esposa?”. À primeira vista, a gente só
pode achar que é um louco.
Procure amigo, por onde for possível. Acabei de receber há pouco al-
gumas novas informações a respeito da esposa...

403
Visão de Gaza

Meu caro Mustafa,


Acabei de receber a carta na qual você diz que arranjou tudo para mim,
em Sacramento. Também recebi um aviso da Universidade da Califórnia in-
formando sobre minha admissão em Arquitetura. Preciso agradecer por tudo
o que você fez, mas tenho de dizer, e isso vai parecer meio estranho, que
mudei de ideia. Quero que você saiba, meu caro Mustafa, que minha decisão
havia sido tomada quando eu ainda não podia ver as coisas muito claramen-
te. Por isso, meu amigo, não vou fazer companhia a você no “país do verde
e dos belos rostos”, que você me descreveu. Vou ficar por aqui mesmo. Não
vou mais sair.
Lamento muito essa decisão quando penso que não vamos mais poder
continuar juntos. Quase posso ouvir você dizendo que devemos caminhar
sempre lado a lado (e aquele nosso juramento: “Vamos ficar ricos”). Mas
agora não tenho escolha. Está certo, lembro-me bem daquele dia em que
acompanhei você até o aeroporto do Cairo. Apertamos as mãos, enquanto
começavam a girar as hélices do avião. As imagens, ali, confundiam-se num
turbilhão ruidoso, acompanhando o movimento das hélices. Até hoje, vejo
você parado diante de mim, com o rosto sério e silencioso. O mesmo rosto
que você tinha em nosso bairro de Al Shagiah, em Gaza. Com algumas
rugas a mais, é verdade. Crescemos juntos e, hoje, não precisamos de muitas
palavras para conversar. Prometemos ficar sempre juntos. Porém…
“Dentro de um quarto de hora o avião decola. Deixe de empurrar a vida
desse jeito. Olhe aqui: no próximo ano você vai ao Kuwait. Economiza algum
dinheiro, o suficiente para deixar Gaza e ir para a Califórnia. Nós começamos
juntos e precisamos continuar juntos.”
Eu olhava o movimento rápido, inquieto, de seus lábios. Era o mesmo
jeito de sempre de falar, sem ponto nem vírgula. Mas eu sentia, ainda que
de um jeito meio confuso, que você não estava contente assim com essa
404
fuga. Foi incapaz de me enumerar três motivos que a justificassem. Eu ha-
via sofrido muito e tinha todas as razões para me perguntar: por que não
abandonar Gaza e cair fora? Mas você, pelo contrário, já estava melhorando
de vida. O Ministério da Educação do Kuwait havia confirmado o emprego,
enquanto eu havia recusado. Durante aqueles anos de miséria, recebi de
você algumas pequenas quantias de dinheiro que sempre fez questão de
chamar de empréstimos, para não me humilhar. Você conhecia bem minha
situação familiar, sabia que o pequeno salário que eu recebia na escola pri-
mária não era suficiente para as necessidades de minha mãe, nem da viúva
de meu irmão e seus quatro filhos.
“Escute bem. Escreva todos os dias, todas as horas, todos os minutos.
O avião vai decolar… Adeus. Não, não. Melhor até a vista... Até a vista.”
Seus lábios frios tocaram meu rosto. Você começou a andar na dire-
ção do avião. Quando se virou, mesmo ao longe, pude perceber seus olhos
cheios de lágrimas.
Pouco tempo depois, o Ministério de Educação do Kuwait me ofereceu
um emprego. Não preciso dar detalhes novamente de minha vida cotidiana
depois disso. Tenho escrito a você sem parar. A vida era monótona e meio
vazia; vivia feito uma ostra. Sufocado por uma terrível solidão, lutava o tem-
po todo e via o futuro tão escuro quanto o coração da noite. Uma rotina in-
suportável, arrastada, uma resistência sem fim contra a força da deterioração
provocada pelo passar do tempo. Tudo ao meu redor era vicioso, asfixiante.
A vida era apenas a espera viscosa do fim de cada mês.
Por volta da metade do ano, os sionistas começaram a atirar contra a
base de Al Sahha e depois bombardearam Gaza. Cobriram nossa Gaza de
bombas e de fogo. Isso podia ter quebrado a rotina em que eu vivia, mas
àquela altura nada mais me motivava. Estava quase abandonando Gaza para
ir à Califórnia, viver um pouco para mim mesmo, depois de tantos anos de
sofrimento. Eu odiava Gaza e todo mundo que vivia nela. Tudo o que existia
nesta terra desolada me lembrava um desagradável quadro pintado, uma vez,
por um companheiro de quarto do hospital, todo em tons de cinza. Sempre
405
dei dinheiro suficiente para permitir a sobrevivência de minha mãe, da viúva
de meu irmão e suas crianças. Inspiravam-me grande piedade, mas não po-
diam justificar que eu me resignasse à minha tragédia e continuasse a vegetar,
afundando mais e mais. Na Califórnia poderia também me livrar dessa res-
ponsabilidade. Nesse verde país, longe do cheiro da derrota que me perseguiu
por sete anos… Era preciso fugir.
Mustafa, você compreende esses sentimentos porque também passou
por isso. E do que será feito esse vínculo misterioso que nos prende, apesar de
tudo, a Gaza é que freia nosso impulso rumo ao desconhecido? Por que não
procuramos analisar esse mistério, tentando esclarecê-lo? Porque, no fundo
de nós mesmos, não existia a certeza de querer abraçar uma nova vida, mais
alegre, sem preocupações? Por quê? A essa pergunta nunca ousamos respon-
der. Pelo menos até hoje…
Nas férias de junho, quando eu já estava arrumando tudo o que pre-
cisava para partir, quando minha imaginação mergulhava nas primeiras e
pequenas coisas que dão à vida sabor e prazer, descobri em Gaza coisas que
nunca havia visto antes, velho marisco fechado em sua concha que o mar ha-
via jogado por acaso, na areia. Mais dobrado sobre si mesmo do que a alma
de quem dorme em pleno pesadelo. Nas minúsculas ruas e becos, sempre o
cheiro feito da mistura de derrota e pobreza, as casas com seus balcões so-
nolentos. Era Gaza… Uma rede de rios inextricavelmente enlaçados que nos
prendia a nossas famílias, nossas casas, nossas lembranças, como uma fonte
que atrai para ela o viajante perdido.
Não sei exatamente o que se passou comigo. Tudo o que sei é que fui
visitar minha mãe um dia, bem cedo. Ali, encontrei a viúva de meu irmão,
que me pediu, chorando, que atendesse ao pedido de sua filha Nádia, a filha
de meu irmão, tão bonita já em seus treze anos de idade!
No fim da tarde, comprei uma libra de maçãs e fui ao hospital. Eu sabia
que minha mãe e a viúva de meu irmão me haviam escondido alguma coisa
a respeito de Nádia, algo que não podiam dizer na minha frente. Senti, mas
não pude adivinhar. Eu gostava de Nádia, como gostava de todas as crianças
406
dessa geração. Crianças que haviam bebido o leite da derrota e que haviam se
acostumado à vida errante; ao ponto de uma vida sedentária, tranquila, lhes
parecer uma espécie de anomalia social.
O que houve no hospital? Entrei tranquilamente no quarto branco.
Uma criança doente tem algo de santo. Mas com o que se parece uma criança
marcada por cruéis e dolorosas feridas? Nádia estava deitada na cama, sobre
um lençol muito branco. Seus cabelos espalhados faziam o rosto parecer uma
joia, em uma caixa de veludo branco. Tinha um profundo silêncio nos olhos
e notei as lágrimas no fundo deles. Mas tinha o olhar sereno, como o de um
profeta atormentado. Era ainda uma criança, mas havia crescido muito em
pouco tempo, podia-se perceber.
- Nádia…
Não sei se fui eu ou outra pessoa quem pronunciou seu nome. Ela ergueu
os olhos para mim. Quando vi aqueles olhos negros me senti derreter como um
pedaço de açúcar jogado em uma xícara de chá fervente. Vi seu sorriso transpa-
rente e ouvi sua voz:
- Tio! Você veio do Kuwait?
Sua voz parecia quebrar-se dentro da garganta. Precisou apoiar-se sobre as
mãos para levantar o pescoço em minha direção. Coloquei a mão em suas costas
e me sentei na beira do colchão:
-Trouxe uns presentes do Kuwait. Muitos presentes, mas vou esperar até
que você se levante, que fique boa e volta para casa. Comprei uma calça, aquela
calça vermelha que você me pediu, lembra?
Foi um erro que a tensão que vinha crescendo sem parar dentro de mim
acabou por provocar. Nádia tremeu, como se um arrepio percorresse seu corpo.
Abaixou a cabeça, guardando uma calma espantosa. Senti minhas lágrimas nas
costas da mão.
- Que foi, Nádia? Não quer a calça vermelha? Ela me olhou como se fosse
dizer algo, mas continuou em silêncio. Depois de um momento, ouvi sua voz, que
parecia vir de muito longe:
- Tio…
407
Retirou a colcha branca para me mostrar a perna, amputada à al-
tura da coxa.
Mustafa, eu nunca mais vou poder esquecer isso. E não vou poder es-
quecer a tristeza que a partir de então marca todos os traços do rosto dela.
Deixei o hospital, naquele fim de tarde, para sair andando pelos bairros da
cidade, com as mãos crispadas sobre o pacote de maçãs. Com a luz do sol,
que caía, as ruas me pareceram lavadas de sangue. Gaza me pareceu inteira-
mente diferente da cidade que você e eu conhecemos. As pedras amontoadas
à entrada do bairro de Shagiah davam a impressão de transmitirem algo que
me escapava. A Gaza em que passamos sete anos de tristeza e frustração não
estava mais ali. Em seu lugar, havia uma espécie de início, de amostra de algo
que viria pela frente. A rua principal, que tomei para voltar para casa, parecia
o primeiro trecho de uma estrada, mais longa do que aquela que vai até Safad.
Gaza toda, e tudo o que havia nela, estremecia ao redor da perna amputada
de Nádia, gritava um apelo que era mais do que um apelo, era o desejo deli-
rante de dar de volta a Nádia a perna cortada.
Caminhei pelas ruas que o sol ainda banhava. Fiquei sabendo que Ná-
dia havia perdido a perna ao tentar proteger os irmãos, quando sua casa se
incendiou durante o bombardeio. Ela poderia ter fugido e escapado ilesa.
Mas não fez isso. Você sabe por quê?
Não, Mustafa. Eu não vou mais para Sacramento. Não lamento isso.
Não vou poder ir até o fim dos sonhos que tivemos juntos, desde a infân-
cia. É preciso que deixemos crescer este estranho sentimento, que você
certamente teve, como uma ferida, ao deixar Gaza. Temos de fazer com
que ele supere todos os outros. Procure dentro de você mesmo até encon-
trar. Mas acho que você não pode reencontrá-lo a não ser aqui, no meio
das ruínas de nossa tragédia.
Eu não vou mais partir. Você é quem deve voltar. Voltar para aprender,
diante da perna amputada de Nádia, o que vale a vida, nossa vida.
Volte. Todos nós esperamos por você.

408
Visão de Ramallah

Eles nos alinharam em duas filas às margens da estrada de Ramallah a


Jerusalém. Mandaram todo mundo levantar os braços. Quando um soldado
sionista percebeu que minha mãe ficou diante de mim, para me proteger da-
quele sol quente de julho, ele me puxou violentamente pela mão até o meio da
estrada poeirenta. Ordenou que eu ficasse me equilibrando sobre um só pé e
com as mãos sobre a cabeça.
Eu tinha nove anos. Acabara de ver, quatro horas antes, a chegada dos
sionistas a Ramallah. Parado no meio do asfalto cinzento, notei como revis-
taram as pessoas à procura de joias, que eram arrancadas brutalmente. Ha-
via algumas mulheres-soldados que agiam como os homens, mas com maior
agressividade e convicção. Minha mãe me olhava, chorando em silêncio. Eu
queria poder dizer-lhe que me sentia bem, que o sol não me fazia nenhum
mal, como ela parecia estar achando.
Eu era a única criança que lhe havia sobrado. Meu pai morreu antes
do início dos acontecimentos. Meu irmão mais velho fora preso na tomada
de Ramallah. Eu sabia, então, o que representava para minha mãe. Hoje
é possível imaginar o que seria dela se eu não ficasse ao seu lado, quando
fomos a Damasco. Ali eu ganharia a vida vendendo jornais pela manhã nos
pontos de ônibus.
O sol começava a minar a resistência dos velhos e das mulheres. Gri-
tos, protestos e lamentações vinham de todo lado. Eu observava vários rostos
que já me havia acostumado a ver pelas ruas de Ramallah. Essa lembrança me
inspirava uma tristeza difícil de definir. Nunca vou poder explicar o calafrio
estranho que senti ao ver uma das moças judias puxarem, rindo, a barba de
meu tio Abou Othman.
Ele não era meu tio de verdade: era o barbeiro de Ramallah e também
cumpria as funções de médico na cidade. Todos gostavam de Abou Othman
e lhe deram o apelido de “tio”, para mostrar o respeito que tinham por ele.
409
Agora estava parado ali, apertando junto ao corpo sua filha mais nova, a pe-
quena Fátima, que olhava para a judia com seus grandes olhos negros.
- É sua filha?
Ele balançou a cabeça, meio inquieto. Seus olhos tinham um fulgor
sombrio. Com toda a simplicidade do mundo, a judia ergueu sua metralha-
dora para a cabeça de Fátima. A menina continuava a olhá-la com os olhos
negros cheios de pavor.
Um soldado sionista chegou justamente nesse instante. A cena havia
lhe chamado a atenção e ele se colocou diante de mim, impedindo minha
visão do que se seguiu. Ouvi três balas sucessivas zunindo. O que pude ver
a seguir foi o rosto de Abou Othman crispado por um sofrimento atroz. A
cabeça de Fátima pendeu para frente. Grossas gotas de sangue escorriam de
seus cabelos, derramadas sob o sol ardente.
Alguns minutos depois, Abou Othman passou a meu lado, carregan-
do em seus velhos braços o corpo de Fátima. Estava calado e olhava apenas
para frente, com uma espécie de calma metálica, assustadora. Ele passou
sem me ver. Notei como suas costas estavam arqueadas, enquanto ele avan-
çava entre as duas filas até a primeira curva. Meu olhar se voltou e se deteve
sobre a mulher, que se tinha jogado ao chão. Vi como ela pôs as mãos no
rosto e explodia em soluços.
Um soldado sionista chegou perto dela e pediu que se levantasse. Ela
não obedeceu. Acho que havia atingido, ali, o último grau de desespero.
Dessa vez pude ver claramente, com meus próprios olhos, o que
ocorria. O soldado a empurrou com o pé e ela se deitou de costas. Tinha a
face vermelha. O soldado colocou a ponta do fuzil sobre seu peito e dispa-
rou uma única bala.
A seguir, ele veio em minha direção. Pediu com voz tranquila que
eu levantasse o pé que havia posto no chão sem perceber. Obedeci e levei
duas bofetadas. Ele limpou a mão manchada com meu sangue em minha
camisa. Senti um enorme cansaço e fiz força para achar minha mãe ao
longe, entre as outras mulheres. Ela tinha os braços erguidos bem aci-
410
ma da cabeça. Chorava em silêncio. Quando nossos olhares se cruzaram,
ela sorriu suavemente, entre as lágrimas. Uma dor terrível cortava mi-
nha perna, que se dobrava sob meu peso. Tentei devolver o sorriso triste,
como para dizer que as bofetadas não haviam doído, que tudo estava bem
e que o mais importante era não se lamentar, ou agir como Abou Othman.
Ele passou outra vez perto de mim. Ao vê-lo, abandonei meus
pensamentos. Voltava para seu lugar sem me olhar. Ao chegar perto do
cadáver de sua mulher, parou. Eu só via seu corpo de costas, dobrado,
as roupas ensopadas de suor. Podia imaginar seu rosto: vazio, silencioso
e molhado pela transpiração. Ele se abaixou para carregar o corpo.
Muitas vezes eu vira sua mulher sentada diante da loja, esperando que
ele acabasse de almoçar para voltar com a marmita para casa. Ele passou,
pela terceira vez, diante de mim, ofegante, com o suor inundando o rosto
enrugado. Passou por mim, sempre sem me ver, e eu vi outra vez seu
dorso encurvado afastando-se entre as duas filas de prisioneiros, que
agora já não choravam mais.
O silêncio, de repente, envolveu mulheres e velhos. Foi como se as lem-
branças de Abou Othman penetrassem pelos ossos de todos. Lembranças que
ele costumava contar a todos os homens de Ramallah, quando conversavam
nas cadeiras da barbearia. Lembranças que, agora, enchiam todos os peitos e
se infiltravam sorrateiramente nos ossos, para corroê-los como ácido.
Era uma pessoa muito querida. Confiava em tudo e em todos e, mais
ainda, nele mesmo. Começou do nada e, quando a revolução da Montanha
de Fogo o empurrou... para Ramallah, voltou ao seu ponto de partida.
Recomeçou então a dar duro, sempre útil como uma planta fecundada
pela terra fértil de Ramallah. Conseguira a estima e a afeição dos habitantes
da cidade. Quando começou a última guerra da Palestina, vendeu tudo o que
tinha para comprar armas, que distribuía entre os parentes, pedindo-lhes que
cumprissem seu dever. A barbearia se transformou em depósito de armas
e munições. Ele nunca pediu nada em troca desses sacrifícios. Tudo o que
desejava era ser enterrado no belo cemitério da cidade, à sombra das árvores
411
frondosas. Os homens de Ramallah sabiam que Abou Othman esperava ser
enterrado ali, quando chegasse o dia.
Ao meu redor, os rostos cobertos de suor refletiam o peso das lembranças.
Eu olhava para minha mãe, parada ali com os braços levantados, o corpo ereto
como se não sentisse qualquer cansaço. Imóvel como uma estátua de chumbo, ela
seguiu Othman com os olhos. Eu virei um pouco a cabeça para poder ver o “tio”,
que agora estava diante de um soldado sionista. Ele disse alguma coisa e depois
apontou para sua barbearia. Depois foi andando, sozinho, na direção dela. Voltou
logo, trazendo um lençol branco que usou para envolver o corpo de sua mulher.
Retomou então, com ela nos braços, sua marcha rumo ao cemitério.
Voltei a vê-lo um pouco depois, vindo em nossa direção com o andar
muito pesado, o corpo ainda mais encurvado, os braços cansados pendura-
dos ao longo do corpo. Aproximou-se lentamente de mim. Havia envelhecido
muito. Seu rosto tinha a cor de poeira. Ofegava. Sobre seu peito se misturavam
traços de sangue e lama.
Parou e ficou me encarando como se eu fosse um desconhecido. Ficou
um pouco ali, parado no meio da estrada, sob aquele terrível sol de julho, co-
berto de poeira, encharcado de suor, seus lábios rachados e a boca, onde o san-
gue secava, entreaberta. Continuou a me olhar por um tempo. Tive a impressão
de ver em seus olhos um mundo de coisas, que me perturbavam, sem que eu
as pudesse chegar a compreender. Ele retomou seu caminho, passo a passo,
fôlego curto. Quando chegou ao seu lugar, parou de avançar, virou o rosto para
a estrada e levantou os braços bem alto.
Não foi possível enterrar Abou Othman como ele sempre havia
imaginado. Ele entrou no escritório do comandante sionista para um in-
terrogatório. Quando colocou os pés lá dentro, todos ouviram uma pa-
vorosa explosão. O prédio inteiro desabou e o corpo de Abou Othman
desapareceu entre os escombros.
Mais tarde, minha mãe contou, enquanto caminhávamos pelas monta-
nhas, rumo à Jordânia, o que houve. Abou Othman, ao entrar na barbearia an-
tes de enterrar sua mulher, não havia retornado somente com o lençol branco.

412
Curiosidade de uma criança ou o
destino de um homem?

Meu filho… o futuro,


Ontem, no outro quarto, ouvi você perguntando a sua mãe:
- “Sou palestino também?”
Quando ela disse:
- “Sim”.
Um silêncio pesado tomou toda a casa como se algo suspenso sobre
as nossas cabeças tivesse caído... Uma explosão… e depois, o silêncio. Não
podia acreditar em meus ouvidos, mas acreditei em meus dedos. Eu estava
lendo, quando senti o tremor de minhas mãos refletirem no livro.
Não… foi tudo real em um nível alarmante… e ouvi você chorar! Não
podia me mover. Algo fora de meu alcance estava acontecendo no outro quar-
to, enquanto você soluçava cheio de dúvidas. Era como se uma lâmina abenço-
ada estivesse abrindo seu peito e lá colocando o coração que lhe pertencia. Sua
pergunta ainda ecoava sob o teto reverberando o tremor de meus dedos:
- “Sou palestino também?”
Em seguida a lâmina golpeia, num movimento rápido e limpo, como
de um hábil cirurgião:
- “Sim!”… seguido de silêncio… como se nada tivesse acontecido, en-
tão ouço você chorar.
Não consegui me mover para ver o que estava acontecendo no outro
quarto, mas eu sabia, no entanto, que uma pátria distante estava renascendo…
terras de pradarias e campos de oliveiras… todos os mortos, as bandeiras
rasgadas e outras dobradas, trilhando caminho para um futuro de carne e
sangue, para nascer no coração de uma criança.
Fui tomado pelo mesmo sentimento, há cinco anos, quando você nas-
ceu. Eu estava em pé, esperando você emergir do alheio para o desconhecido,

413
e senti, enquanto ouvia você chegar ao mundo chorando com lamento, que es-
tava repousando em meus ombros e me enraizando mais firmemente ao solo.
Aqui estou, no outro quarto, vendo você nascer de novo, sentindo você
repousar em meus ombros novamente e me empurrando ainda mais profun-
damente na terra.
Neste momento desejei poder ver como, em seu rostinho abundante
de inocência, estava sendo iniciada à tristeza… como que aquele - “Sim!”
Tal qual ferro em brasa erradicou a inocência da infância, enquanto incons-
ciente, você deslizava sobre as lâminas espalhadas a sua frente. Você estava
sendo criado naquele momento, diante dos olhos de sua mãe e meus dedos,
que tremiam como as páginas do livro, como se alguém lhe empunhasse uma
arma e dirigisse seus olhos para o gatilho.
Entre os dois quartos, através paredes, as veias da terra ramifica-
ram-se, unindo-nos novamente. Não podia me mover, mas eu sabia, mes-
mo que vagamente, por que você involuntariamente chorou.
Acredito nesse desconhecido que é transmitido por palavras, mas
que não é percebido por ninguém. Você, sem saber, sentiu o verdadeiro
significado dessa palavra: pertencer… e sofrimento. Isso pode representar
pra você, mais do que para mim, talvez a euforia de uma vitória.
Esses anos que me escaparam serão seus, e a esperança, dentro de mim,
não vai diminuir, mas será enviada para você, e adicionada a sua, crescerá den-
tro de você. Você sem dúvida sentiu isso, caso contrário, por que choraria?
Lembro-me sentado no outro quarto, ouvindo você renascer através
de seu choro - como eu também nasci de novo. Eu tinha apenas dez anos,
quando carros nos transportavam para a vergonha da fuga.
Eu não sabia nada, então, não sentia nada. Sem consciência, ainda des-
frutando da inocência da infância, mas naquele momento, deparei-me com
uma cena que jamais esquecerei: os caminhões haviam parado e desloquei-
-me para onde os homens estavam de pé, impulsionado talvez, pela curio-
sidade de uma criança ou mesmo pelo destino de um homem. Os vi, então,
entregando suas armas no posto da fronteira, para que entrássemos no mun-
414
do dos refugiados com as mãos vazias. Voltei deprimido, sem compreender o
que sentia. Minha mãe estava sentada com outras mulheres e me aproximei
dela como um refúgio, então, ela me perguntou:
- “Alguma coisa errada?”
- “Eles estão entregando suas armas” - disse a ela.
Da mesma forma que sua mãe disse “Sim”, para você, naquele dia mi-
nha mãe disse “Sim!” para mim.
O silêncio se abateu sobre nós como se algo tivesse caído e sob a in-
tensidade de seu olhar, me vi chorando. Naquele dia nasci novamente, esta-
va olhando os homens, mais uma vez, com um olhar que eles não estavam
acostumados a ver em mim e minha mãe - sozinha - estava me olhando,
com um olhar que eu não estava acostumado a ver.
Não acredito que o homem cresce. Não!
O homem nasce de repente. Uma palavra, num instante, penetra em
seu coração para lhe dar um novo pulso. Uma única cena pode lançar a pro-
teção inocente da infância para a áspera estrada da vida.
Da mesma maneira que aquele “Sim!” me recriou, outro “Sim!” recriou
você, e ouvi como você o aceitou, com gemidos de um homem que emerge de
um desconhecido a outro, num fluxo rítmico impossível de controlar.
Se sua pergunta foi como a minha… a curiosidade de uma criança ou
o destino de um homem? Não importa!
Nasceu, naquele instante, a antiga terra dentro de um novo homem…
testemunhei esse nascimento do outro quarto… senti que aquelas veias re-
sistiram e se enraizaram por outros campos, por corpos. E quando veio até
mim, parecia emergir de si mesmo e uma voz em seu íntimo lhe falou:
– “Siga!”
De início, isso causou em você pânico… mas colocou-lhe às portas do
caminho de seu destino.

415
Contos e outros textos:
Muros de ferro;
A terra das laranjas tristes;
O jasmim cresceu, rapazes;
Amostra de contos da
personagem Umm Sa’ad:
A chuva;
A guerra acabou;
A proteção;

416
“Muros de ferro” sintetiza uma afirmação profunda que
Ghassan repetiria ao longo de seus textos e análises, só é um
palestino vivo aquele que luta para se libertar; a luta aparece
como antagonista da morte. “A terra das laranjas tristes”
famoso texto em que o autor utiliza elementos de sua própria
experiência pessoal e familiar para descrever os impactos
decorrentes da Nakba no tecido social palestino. “O jasmim
cresceu, rapazes” se trata da memória da cidade de Akka e
da casa da família Kanafani, em que o autor traduz uma dor
comum a tantos palestinos expulsos de suas casas, vilas, cidades
e pátria. Na amostra de contos da personagem Umm Sa’ad
(“A chuva; A guerra acabou e A proteção”), uma personagem
marcante de sua literatura, vemos como Ghassan reverencia as
mães dos campos de refugiados, orgulhosas de verem seus filhos
lutarem para libertar a Palestina, ao mesmo tempo que sofrem
pelo medo da morte e das condições miseráveis nos campos.

Nota do organizador
Muros de Ferro

Todo mundo já sabia que dentro do pacote retangular que o pequeno


Hassan acabara de receber, na manhã de seu aniversário, havia uma peque-
na gaiola com um passarinho. Amontoados ao redor do menino, ouvimos
antes que ele arrancasse o papel cheio de furos, o bater hesitante das asas e
um gorjeio abafado. Apesar disso, ninguém acreditava que o pássaro pudesse
ter chegado vivo. E o que poderia fazer uma criança como aquela com um
pássaro de verdade?
Momentos depois, o pacote estava aberto. Hassan se atira sobre a gaio-
la, agarrando-a e apertando-a com força. Grita excitado:
- É um pardal!
Mal tivemos tempo de colocar os olhos, de passagem, na gaiola e no
pardal. Hassan estava emocionado, com as maçãs do rosto vermelhas e os
olhos brilhando, enquanto girava pelo quarto, sem saber o que fazer. Depois
de alguns minutos, nos deixou ver mais de perto o pássaro preso, mas não
tirava a mão da gaiola, agarrando a argola que havia no alto dela com força.
A gaiola não estava pintada e tinha a madeira coberta por uma
camada de verniz polido. No centro dela, estava incrustado um poleirinho.
Havia um pires destinado a conter água, fixado num canto, e um recipiente
para grãos, no outro. No teto da gaiola, que tinha forma de uma pirâmide,
pequenas barras de ferro haviam sido cuidadosamente encaixadas. O
pássaro se agarrava no alto com todas as forças de suas frágeis patas. Tremia
ao sacudir desesperadamente a cabeça, mas colocava sobre nós aqueles
pequenos olhos brilhantes, como dois aros negros. O alto da gaiola era
de um vermelho metálico, o que parecia dar aos seus movimentos uma
violência impotente e triste. Tinha, no olhar sem esperança, uma espécie de
heroísmo. Por uns momentos, deixava de pular por entre as barras da jaula
e do teto, a cada vez aterrorizava pesadamente, pondo o bico entre as barras,
procurando freneticamente uma saída. Os pontos negros e vermelhos, que
tinha na cabeça, davam-lhe um certo ar de fúria e tristeza simultâneas,
418
uma tristeza pungente. Seu pequeno corpo deitado, as garras crispadas e
os olhos febris davam a impressão de que meditava, pronto a tomar uma
importante decisão.
- Por que não fica quieto um pouco?
- Está com medo...
- De quem?
- De você...
Hassan observa a ave com um olhar de decepção. Perguntava-se se al-
guma coisa nele poderia assustá-lo. Seu rosto revelava a confusão interior da
criança que não sabe como conduzir as coisas, para que tudo caminhe con-
forme sua própria vontade. Foi então que meu irmão mais velho, que estava
bem atrás de mim, disse:
- Não, ele não tem medo de você. Um pardal não sente medo.
- Então, por que ele não para de se agitar?
- Está acabando de tomar posse da nova casa... Não está vendo? Olhe
bem... Está observando pedaço por pedaço, parte por parte, aprendendo a se
mexer, conhecendo a gaiola...
Todos, juntos, olhávamos para o pássaro que volteava sem descanso
por entre as barras. Realmente, era bem possível que estivesse fazendo o
reconhecimento do novo lar... Hassan, no entanto, precisava de respostas
mais exatas:
- Mas ele já estava nessa gaiola antes de chegar aqui. Já teve tempo pra
descobrir a casa nova antes...
- Seu tio a comprou ou talvez capturou o passarinho, há pouco tempo.
Em todo caso, a gaiola é uma coisa nova para ele, por isso se mexe tanto assim.
Nossos olhares se voltaram outra vez para o pássaro, que continuava
balançando dentro da malha de ferro que o prendia. Meu irmão voltou a
falar, com a mesma voz calma:
- Um pardal precisa de dois a três meses para se acostumar com sua casa
nova. Durante esse período, ele observa tudo com a maior atenção. Ao mesmo
tempo, não deixa de procurar uma saída para dar o fora. Hassan aperta suas
419
pequenas mãos às costas e, sem tirar os olhos do pássaro cinza salpicado de um
vermelho sangue, diz:
- Vai ficar assim três meses?
- Vai.
- E não vai cantar durante três meses?
- Não. Vai gorjear um pouquinho, mas não vai cantar.
- E depois?
- Depois ele talvez cante...
- E de noite, ele vai dormir como a gente dorme?
- Não. Ele fica de pé, sem deitar. E deixa os olhos bem abertos para ver
tudo ao seu redor.
Meu irmão, que sabia que as perguntas de Hassan não iriam acabar
nunca, saiu logo do quarto. Eu sabia, de minha parte, que Hassan não me
deixaria dormir à noite, que iria se ocupar o tempo todo do pássaro, olhando
para ele a qualquer movimento. Durante cinco dias inteiros, o pássaro pre-
encheu todos os espaços da vida de Hassan. Ele convidava seus amigos para
contemplar o bicho, que agora dera para chupar as barras da gaiola. Pare-
cia estar descobrindo cada canto, cada fresta, cada cheiro. O menino repetia
a seus amigos o que meu irmão havia dito, e acrescentava, como fazem as
crianças, a cada uma das explicações, uma nova imagem ou um novo traço.
Hassan não me parecia inteiramente convencido de que o pássaro assus-
tado acabaria por se acostumar ao novo lar. Falou de suas dúvidas comigo em
muitas oportunidades, pois não tinha coragem de falar com meu irmão mais
velho. Um dia, ele me perguntou:
- Se depois de três meses eu resolvo abrir a gaiola e deixo que ele fuja,
será que volta?
Eu não podia responder. Não conhecia nada sobre a vida e os hábitos
dos pássaros. Prometi que me informaria com meu irmão e lhe levaria a re-
posta. Quando falei com meu irmão, ele resmungou:
- Não seja idiota. Ele se acostuma à gaiola, se conforma em viver ali,
mas se for colocado fora dela não volta nunca mais.
420
Não contei isso a Hassan. Não era o caso de complicar a história, que já
era demais para sua pequena cabeça. Era melhor que ele encarasse as coisas à
sua maneira. Era mais cômodo para Hassan e para nós também. Meu irmão
achava a mesma coisa. Ele achava ainda que a ideia de dar um pássaro vivo a
uma criança era absurda. Isso podia fazer com que outros aspectos de sua vida
ficassem mais tristes:
- Olhe aqui. Ele abandonou todos seus brinquedos, os bichinhos de
plástico, de pano ou de pelúcia. Um milhão de pássaros de plástico ou de
pano não vão tomar o lugar desse maldito pardal... Qual foi o nome que ele
lhe deu?
- Hassoun*.
- O quê?
- Hassoun. Ele não entende por que querem lhe dar outro nome.
Logo depois, Hassan me pediu dinheiro para comprar uma gaiola um
pouco maior. Eu já havia notado que a outra gaiola era muito pequena para
abrigar o voo desvairado e incansável da ave, todavia a nova gaiola não mudou
nada; somente lhe permitiu ir mais longe a cada bater de asas. Enquanto isso,
Hassan se encantava, sobretudo quando lhe anunciei que a mudança ficaria por
sua conta.
Expliquei que devia segurar o pássaro com as duas mãos, sem aper-
tar muito para não matá-lo, mas também sem deixar folga suficiente para
que fugisse.
- E se ele me bicar?
- Só se você estiver apertando muito. Nesse caso, afrouxe um pouco.
- E se ele fugir?
- É só não soltar demais.
Ele olha pra mim sem compreender muito bem. Mas, de um jeito ou
de outro, devia ser ele mesmo o responsável pela mudança. E fez tudo melhor
do que eu podia imaginar. Nem se queixou quando o pássaro meteu o bico
em sua mão. Nos dias seguintes, falou muito e acreditou mesmo que o pardal
estava mais feliz com sua nova gaiola. Meu irmão mais velho, escutando pa-
421
cientemente durante o almoço, não concordava. Disse a Hassan, sem levantar
os olhos do prato:
- Não foi bom você comprar uma jaula nova...
- Por quê?
- Você perdeu um mês. O pássaro precisa recomeçar a se acostumar
agora com a nova casa. Isso vai levar mais tempo, porque essa gaiola é maior.
Observei com o canto dos olhos o menino, que olhava tristemente ao
redor, fazendo força para continuar a comer. Logo ele desiste, põe a colher ao
lado do prato e me encara. Vendo a reação dele, meu irmão tenta consertar:
- Mas quem pode saber? O pássaro pode até gostar de sua nova casa e
acostumar-se depressa. Ele tem o jeito de quem entende dessas coisas...
Antes que meu irmão acabasse de dizer o que queria, nossos olhares se
encontraram. Hassan continuava a me observar fixamente, esperando algum
gesto que o tranquilizasse. Meu irmão, acabando de engolir às pressas um
enorme bocado, continuou:
- Pois é, seu pássaro deve ser especialista, deve ter morado uns dois
meses em uma gaiola de vime na casa do tio; depois ele o colocou em uma
gaiola de madeira que comprou especialmente para mandar a você. Então,
aqui, após um mês, você lhe comprou essa gaiola novinha...
Sem esperar o fim da frase, Hassan empurrou a cadeira, se levantou e
foi em silêncio para seu quarto. Tentei evitar segurando-o pelo braço. Com a
cabeça baixa, o queixo tocando o peito, ele tinha os olhos cheios de lágrimas
que estava tentando conter, à mesa. Antes que começasse a chacoalhar de
soluços, eu lhe sussurrei ao ouvido.
- O que você tem?
Ele não chegou a responder. Soltei seu braço e ele correu para o
quarto. Alguns minutos depois fui até lá. Ele estava ajoelhado perto da
gaiola onde o pássaro saltava de um lado para o outro. Quando se virou
para mim, parecia ter preparado o que me foi dizendo:
- Há três meses ele não para de se agitar. E tem ainda outros três meses
pela frente...
422
Pensei, de repente, que as pequenas asas não iriam aguentar três
meses. Eu ia propor a Hassan que abrisse a porta da gaiola e o soltasse.
Controlei-me, para deixá-lo chegar por si mesmo a essa decisão. No ins-
tante seguinte, uma coisa estranha aconteceu: o pássaro parou de uma vez.
Segurando uma barra com suas garras, e pescoço esticado - um pescoço
branco feito espuma do mar. Olhava para nós sem qualquer movimento. Eu
logo percebi o que ocorria. Mas Hassan ficou feliz. Pondo sobre mim seus
grandes olhos, sorriu. Um sorriso que já estava ficando raro, depois daquilo
tudo. Eu repeti seu sorriso.
Correu feito uma flecha rumo à sala de jantar. Ouvi os gritos de alegria
que ele dava, misturados ao som de seus passos pelo corredor:
- Ele parou! Hassoun parou!
Depois ouvi, quando voltava. Abraçou a gaiola e se ajoelhou outra vez.
Tamborilava como os dedos sobre as pernas, tremendo de alegria. Meu irmão
chega perto e fica parado por um momento atrás dele, sem muita atenção ao
pássaro. De repente, se inclina para frente com as mãos apoiadas nos joelhos,
observa o pássaro sempre imóvel, enquanto Hassan repete sem parar:
- Está vendo? Ele parou...
Com os olhos sempre fixos no pardal, meu irmão balança lentamente
a cabeça, franze as sobrancelhas e diz simplesmente:
- Ele acaba de morrer.

423
A terra das laranjas tristes1

Quando saímos de Jaffa para Akka, não houve nisso uma tragédia
anunciada. Partimos como quem vai todo ano de uma cidade a outra para
os feriados. Nossos dias em Akka, do alvorecer ao ocaso, foram bem banais
e talvez até por ser jovem na época, estava gostando daquilo de não poder ir
para a escola. De todo modo, na noite do grande ataque em Akka, a figura, de
mais a mais, começou então a tomar forma… Aquela noite implacável pas-
sou, pungente, por entre a prostração dos homens e as súplicas das mulheres.
Talvez eu, você e as crianças da nossa geração ainda fôssemos muito
novos para entender a história do início ao fim… mas os pontos começaram
a se ligar, e, pela manhã, no momento da retirada os judeus, que espumavam
nos ameaçando, ia parando uma caminhonete à nossa porta. Um amontoa-
do simples de coisas de dormir foi jogado de um lado para o outro sobre o
veículo, com movimentos ligeiros, febris… Eu estava parado, com as costas
escoradas na parede daquela antiga casa onde teríamos crescido, quando en-
tão vi minha mãe subir na caminhonete, depois minha tia, depois as crian-
ças, notei meu pai jogar você e seus irmãos sobre as bagagens no veículo, e
depois eu. Ele me resgatou do meu canto e me levantou acima de sua cabeça
até as grades de ferro sobre o teto da cabine do motorista, onde encontrei
meu irmão Ryad sentado tranquilamente. Antes que pudesse me acomodar,
o veículo já se movia… E a amada Akka desaparecia, pouco a pouco, nas cur-
vas da estrada que subia para Ras Al Naqoura… O tempo estava um pouco
nublado e uma sensação fria impelia meu corpo. Ryad estava sentado com
muita tranquilidade, suas pernas pendiam da borda das grades e escorado
nas bagagens, olhava para o céu. Eu estava sentado em silêncio, agarrando
aos meus joelhos, apoiando o queixo entre eles.
Laranjais orlavam todo o caminho… havia um medo que corroía a to-
dos nós. E a caminhonete, entre um solavanco e outro, subia pelo solo úmido.

1-Tradução: Gercyane Oliveira.


424
Enquanto tiros distantes como que ecoavam o adeus. Quando Ras Al Naqou-
ra assomou ao longe, anuviada no horizonte azul, a caminhonete finalmente
parou. As mulheres desceram por entre as bagagens e foram até um campo-
nês que estava de cócoras, com uma cesta de laranjas bem diante de si... Pe-
garam algumas… E ouvimos o som de seu pranto… Percebi naquele instante
que as laranjas eram coisas muito maravilhosas… Que essas enormes contas
imaculadas significavam muito para nós. Depois de comprá-las, as mulheres
voltaram com as frutas para o veículo e meu pai desceu do seu lugar de ca-
rona, estendendo a mão para poder pegar uma. Observou-a em silêncio…
Então desatou a chorar feito uma pobre criança…
Em Ras Al Naqoura, nosso carro parou ao lado de outros tantos… Os
homens entregavam suas armas aos oficiais de polícia que estavam lá para
recolhê-las… Quando chegou a nossa vez, vi rifles e metralhadoras sobre a
mesa… E vi uma fila de carros e caminhões que entravam no Líbano estrada
acima, circunscrevendo suas curvas, todos empenhados em se distanciar da
terra das laranjas… Também comecei a chorar um soluço copioso… Minha
mãe ainda observava em silêncio as laranjas… E nos olhos do meu pai brilha-
vam cada uma das laranjeiras que havia deixado para trás para os judeus…
Todas as imaculadas árvores que havia plantado, uma a uma, cada uma delas
expressa no seu rosto… Expressa no brilho das lágrimas que ele não segurou
diante do oficial do posto… Quando chegamos em Sayda, daquela tarde em
diante, nos tornamos refugiados. A estrada nos engoliu. Meu pai me parecia
mais velho que antes e era como se ele não dormisse havia muito tempo.
Ele estava de pé, na rua, diante das malas espalhadas pelo caminho e fiquei
pensando que se eu tentasse lhe dizer algo, ele iria, sem sombra de dúvidas,
explodir na minha cara: “pro inferno, quero que vá pro inferno…”. Esses dois
insultos estavam, claramente, estampados no seu rosto. Até eu, uma crian-
ça educada em uma rígida escola religiosa, me atrevia então a duvidar que
esse Deus quisesse mesmo a felicidade das pessoas. Duvidava também que
esse Deus pudesse ouvir tudo… tudo ver. Era como se todas aquelas imagens
coloridas que se espalharam sobre nós, na capela da escola, representando a
425
compaixão do Senhor sorrindo para as crianças, fossem, na verdade, mais
uma mentira daqueles que abrem escolas conservadoras apenas para arreca-
dar mensalidades mais gordas… Eu não tinha mais dúvidas de que o Deus
que conhecemos na Palestina já havia também Ele a deixado e se tornado um
refugiado, incapaz de resolver Seus próprios problemas, enquanto que nós,
o povo refugiado, sentados na calçada, esperávamos que um novo destino
trouxesse uma solução qualquer. Éramos os responsáveis por encontrar um
teto sob o qual pudéssemos passar a noite: um sofrimento que já assinalava
o fim da infância. A noite é realmente uma coisa assustadora e a escuridão,
que pouco a pouco desmoronava sobre as nossas cabeças, estava deixando-
-me muito apreensivo. Só de pensar que passaria a noite na rua, despertavam
todos os tipos de medos… Os mais ásperos e áridos medos... Ninguém para
se compadecer de mim. Eu não tinha ninguém que pudesse me acolher…
A cada olhar silencioso do meu pai, outro medo rebentava em meu peito. E
a laranja, na mão da minha mãe, inflamava meus pensamentos. Estávamos
todos mudos, encarando o asfalto, na esperança de que, dobrando uma es-
quina, apareceria o destino com uma solução para nós e nos levaria a um
abrigo qualquer. E, de repente, ele veio… Era o meu tio que havia chegado
na cidade antes de nós.. Era o nosso destino. Meu tio não defendia muitos
valores e, no entanto, foi quando ele se viu na rua, como nós, que renunciou a
todos de uma vez. Ele foi até uma casa onde morava uma família judia, abriu
a porta, largou seus pertences e, apontando o rosto embotado para as pesso-
as, disse em alto e bom som: “vão pra Palestina”. Decerto eles não foram para
a Palestina, contudo, para se esconder da frustração do meu tio, foram para o
quarto ao lado, deixando-o se acomodar no lugar mais confortável da casa.
Foi para aquele mesmo quarto que meu tio nos levou. Onde nos amontoou
com seus pertences e sua família, e onde mais tarde dormimos no chão,
ocupando todo o cômodo com nossos pequenos corpos cobertos com os
sobretudos dos homens que, pela manhã seguinte, vimos terem passado a
noite sentados nas cadeiras. A tragédia havia começado a tomar nova forma
e vinha sem freios na nossa direção!
426
Não ficamos muito tempo em Sayda. O quarto do meu tio não era
grande o suficiente nem para a metade de nós, embora tivesse nos abrigado
durante três noites. Minha mãe então pediu a meu pai para que ele procu-
rasse um emprego ou para que voltássemos para as laranjas. Meu pai gritou
com ela com uma voz trêmula de indignação. Ela se calou... começaram as
nossas desavenças… e a família feliz e unida havia ficado para trás, com a
terra, o lar e os mortos. Eu não sei de onde meu pai tirava dinheiro. Aliás,
eu sei que ele vendeu o ouro que havia comprado para a minha mãe, quan-
do queria deixá-la feliz e orgulhosa de ser sua esposa. Mas aquele ouro não
era suficiente para resolver nossos problemas, por isso havia, sem dúvidas,
outra fonte: teria ele pegado emprestado? Ou será que vendeu alguma outra
coisa que trouxera consigo sem que tivéssemos visto? Eu realmente não sei,
mas me lembro de termos nos mudado para um vilarejo nos arredores de
Sayda. E que lá, o meu pai se sentou na alta sacada de pedra e sorriu pela
primeira vez. Esperando pelo dia quinze de maio, para poder retornar na
alvorada dos exércitos vitoriosos.
E chegou o “15 de Maio” depois de uma espera angustiante. À meia-
-noite em ponto, meu pai me acertou um pontapé, me tirando de um sono
profundo e rugiu com intrépida esperança: “levanta... vem ver com os pró-
prios olhos as tropas árabes entrarem na Palestina”... Eu então me coloquei
de pé, desesperado. E nós fomos morro abaixo, descalços, no meio da noite,
até a estradinha que ficava a um quilômetro inteiro do vilarejo. Estávamos
todos ofegantes, os mais novos e os mais velhos, corremos como loucos. As
luzes dos veículos brilhavam ao longe, subindo na direção de Ras Al Naqou-
ra. Foi só quando alcançamos a via que percebemos o frio, mas o grito do
meu pai tomou conta de tudo. Ele agora corria atrás dos caminhões feito uma
criancinha. Ele comemorava... gritava com a voz rouca.. perdendo o fôlego.
E mesmo assim, ele não desistia de correr atrás da fila de caminhões, feito
uma criancinha. Vínhamos logo atrás, gritávamos junto com ele, enquanto
os queridos soldados nos observavam com silêncio e indiferença sob os ca-
pacetes. Mal conseguimos respirar, ao passo que o meu pai, apesar dos seus
427
cinquenta anos, seguia correndo e exaltando os soldados sem parar, atirando
para eles os cigarros que puxava do bolso. Mas nós não desistimos, ainda
corríamos com ele como um pequeno rebanho de cabras. Os carros sumi-
ram de repente… e nós então voltamos para casa, exaustos, esbaforidos.. meu
pai não dizia uma palavra. Nós tampouco conseguimos falar. Um carro que
passava iluminou o rosto dele. Estava coberto de lágrimas. Depois disso, as
coisas andaram muito devagar… fomos iludidos, e a ilusão da realidade nos
deixou devastados. Outra vez o silêncio tomou conta dos rostos. Meu pai
começou a encontrar muitas dificuldades para falar sobre a Palestina e sobre
o ditoso passado, nos seus pomares e casas. Sustentamos o muro da grande
tragédia que agora cercava sua vida, e não tardamos em perceber que subir a
montanha no clarear da manhã, segundo as ordens do meu pai, na verdade
era apenas uma distração para não tomar café da manhã. Tudo começou a se
complicar. Até a mais simples das coisas poderia irritá-lo. Ainda me lembro
de um dia que alguém lhe pediu algo, não sei o quê nem lembro quem. Ele
deu um salto e, em seguida, começou a tremer como se tivesse levado um
choque. Os olhos fulgentes do meu pai viraram-se contra nós. Alguma ideia
nefasta havia passado pela sua cabeça, e então se levantou como se tivesse en-
contrado um fim que o satisfizesse. Na torrente de um sentimento mundano
de que podia dar cabo dos seus problemas, de um sentimento de pavor de
quem está prestes a fazer uma bobagem, começou, pois, a delirar. A dar voltas
em si mesmo, à procura de algo que não alcançamos ver. Finalmente, ele cer-
cou o baú que havíamos trazido conosco de Akka e com violência, começou a
espalhar as coisas de dentro. Naquele exato instante, minha mãe havia enten-
dido tudo. Em um impulso inquietante que pesa nas mães que veem os filhos
em perigo. Ela nos empurrou para fora do quarto e nos mandou fugir para a
montanha. Mas nós ficamos na janela. Colamos o ouvido contra a madeira e,
aterrorizados, podíamos escutar a voz do nosso pai: eu quero matá-los, quero
me matar… quero acabar com isso.. quero. Meu pai então se calou.. e quando
voltamos nós espiamos, pelas frestas da porta, o quarto. Vimos o meu pai
estendido no chão, arfando alto e remoendo os dentes, chorando. E, sentada
428
num canto, estava a nossa mãe, estática, olhando para ele. Não entendíamos
muita coisa, mas lembro de que quando vi o revólver preto jogado ao lado
do meu pai… pude entender tudo. E saí de lá como se de súbito tivesse visto
um fantasma. Fui correndo para a montanha… fugindo de casa. E quanto
mais eu me afastava de casa, mais me afastava da minha infância, ao mesmo
tempo que percebia que a nossa vida não havia mais de ser algo simples ou
agradável de se levar com tranquilidade. E que as coisas haviam chegado ao
limite de que não nos restava nada, senão uma bala na cabeça de cada um de
nós. Era preciso, dali em diante, tomarmos cuidado para nunca lhe faltar com
o respeito. Era preciso recusarmos a comida mesmo com fome. Era preciso
fazermos silêncio quando o meu pai falasse dos problemas dele, e, sorrindo,
balançarmos que sim com a cabeça quando ele nos dissesse: “Subam a mon-
tanha e não retornem antes do meio-dia”. À tarde... quando começou a escu-
recer, voltei para casa. Meu pai ainda estava sofrendo e a minha mãe estava
sentada ao lado dele. Os olhos de todos brilhavam como olhos felinos, e os
lábios cerrados eram como se nunca os tivessem aberto, vestígios de uma
antiga ferida que não sarou completamente. Vocês estavam lá, empilha-
dos, tão distantes da infância quanto da terra das laranjas. As laranjas que,
certa vez nos disse um camponês que as plantava e que acabou partindo,
murcham caso se encarregue outra mão de regá-las. Meu pai ainda estava
sofrendo, deitado na cama, enquanto minha mãe remoía lágrimas de uma
tragédia que até hoje carrega consigo. Eu me esgueirei para dentro do
quarto como quem tivesse sido banido.
E, ao bater os olhos no meu pai, que tremia abatido, em seguida vi
aquele mesmo revólver preto sobre a mesinha. Ao lado, uma laranja. A laran-
ja estava seca, enrugada.

429
O jasmim cresceu, rapazes1

A casa da tia de Ghassan foi requisitada pelo governo sionista. À época


da produção desse texto, três famílias judaicas viviam lá. Apenas uma semana
antes do seu assassinato, um dos primos de Ghassan voltou depois de visitar
parentes em Akka. Uma das famílias judias, que viviam em sua casa, pagou
cerca de trinta e dois mil em moeda libanesa, além de um aluguel mensal ao
governo israelense.

Um jornalista estrangeiro que conheci bem durante sua longa estada


nos países árabes, recebeu instruções de seu jornal antes da Guerra de Ju-
nho2, para se mudar para a Palestina ocupada e ser correspondente lá.
Muitos meses se passaram... Na semana passada, este homem termi-
nou seu trabalho e retornou ao seu próprio país. De lá me escreveu: “Talvez
você tenha me esquecido: a distância de dezoito meses que nos separam está
cheia de acontecimentos, destruição, cheiro de pólvora e morte. Quando me
lembro que pouco mais de dezoito meses se esgotou, mal posso acreditar. No
entanto, agora vivemos, tenho certeza, em um mundo inacreditável. Eu vi
com meus próprios olhos que a história é falsa, a geografia também...
“Algo”, de alguma forma, aconteceu comigo: lembrei-me de você, sem
nenhuma razão em particular, e decidi lhe apresentar algo útil. Peguei uma
câmera e fui para Akka. Lá perguntei sobre sua casa. A partir da vizinhança,
encontrei as casas de sua família e comecei a fotografá-las - uma a uma -
com meu filme colorido. Lembrei-me de algumas das histórias que você me
contou, especialmente aquela descrição do longo caminho para o leste e nor-
te de Akka. Eu não sei como cheguei lá, mas fotografei o que eu pensava que
você tinha descrito.
“Estas fotos estão, agora, nas suas mãos, você acha que eu consegui
lhe enviar algo que você ama, através de todos estes meses de ruína, des-
truição e morte?”
1-Texto extraído do livro “Ghassan Kanafani by Anni Kanafani”. Publicado em abril de
1973 pelo “Palestine Research Center”. Beirute, Líbano. Tradução: Gercyane Oliveira.
2-Guerra dos Seis Dias em 1967.
430
As fotografias colori-
das estavam tremendo, invo-
luntariamente, na palma das
minhas mãos. Decidi não
olhar para elas antes de ter
um projetor bom e quando
telefonei para um parente pe-
dindo-lhe que me emprestas-
se o dele, insistiu que eu fosse
à sua casa para que pudés-
semos vê-las juntos. Estava
chovendo. Toquei a campai-
nha carregando as fotografias
como se carregasse um tesou-
ro. Quando a porta se abriu,
vi dentro dezenas de amigos
e parentes, velhos homens e
mulheres, todos reunidos ali A casa da Família de Ghassan Kanafani
em Akka.
e todos vieram sem dúvida
para ver Akka. Eles apagaram a luz e meu amigo colocou a primeira foto-
grafia: na grande tela branca na parede estava aquela estrada que se estende
para o leste até Safad. Troncos de oliveiras, nodosos por longos anos, fica-
vam ali como se estivessem esperando, debaixo deles as paredes feitas por
pedras da montanha reclinadas umas sobre as outras.
“Ah!” Exclamou uma voz no escuro: “É o olival de “assim e assim”,
suas árvores costumavam produzir toneladas. Atrás desse olival, a estrada
vai até nosso olival, mas as árvores de nossos vizinhos eram mais velhas e
mais abundantes em seus frutos”. O olival de “assim e assim” eu disse a mim
mesmo: É o “nosso olival”. Oh! Que habilidade fantástica o homem não tem
para esquecer e abstrair toda a pilhagem que aconteceu em sua vida! O salão
estava cheio do burburinho da conversa. Todos nos tornamos uma exten-
431
são daquela terra arrebatadora que se estendia diante de nós na parede. Por
um momento acreditei que estávamos sentados em sua terra úmida. Depois
veio a segunda imagem, na parede estava a casa de minha tia, em Akka, com
suas pedras de Al Quds polidas arredondadas como pães frescos do forno;
na cerca de ferro pendurada a armação do Bawwaq vermelho. Minha tia dis-
se: “O jasmim cresceu, rapazes”. Depois veio o som de soluços intermitentes
no escuro. O quadro se estendeu diante de nós, confrontando-nos com os
portões a alguns metros de distância - e ninguém para abri-los. A voz falou
novamente. “Eles cortaram o outro jasmim perto do pilar esquerdo, o jasmim
que seu tio plantou. Que Deus acabe com eles!”
Minha tia percebe, ainda fungando com o choro contido, que não lim-
param a parede externa - “Ela precisa ser lixada a cada dois anos para que
possa manter sua cor brilhante, mas o que lhes importa? Eles não pagaram
pelos frutos da vida”. Ela, então, apontou para cima, seu braço parecendo um
fantasma negro no escuro e disse: “Você consegue ver o cano? Não tínhamos
terminado de consertá-lo na época; saímos antes de ligá-lo ao solo. Você vê?
Ainda está como estava; a água vai arruinar a parede inferior. Que Deus ar-
ruine suas almas!”
Eu disse: “O pátio da frente... era nosso muro quando nós…”
Um velho tio me interrompeu para dizer:
“Lá te bati com o ramo de romã ou você esqueceu? Você veio cami-
nhando, naquele dia, quando eu estava sentado no mustaba e disse: “Olha
o que eu encontrei!” e o vi segurando uma granada de mão em que o pino
de segurança você havia tirado. Meus cabelos ficaram em pé e me debrucei
sobre você, puxei-a de sua mão e a joguei longe. Você não o encontrou, seu
malandro, entrou escondido no meu quarto, pegou e brincou com ela. Deus
deve ter protegido você, pois não explodiu - ainda não sei por quê. Foi então
que comecei a bater em você com o ramo da romã, com tanta força que você
jamais esqueceria…”
De repente, ele se lembrou novamente, como se tudo tivesse aconteci-
do ontem e me perguntou: “Como? Como você fez isso?”
432
Uma após outra apareceu a fotografia de nossa casa, o silêncio caiu.
Foi só então que nós as vimos. Eles tinham estacionado um carro vermelho
em frente a casa e ao lado dele estava um homem de chapéu, com as mãos
sobre os quadris olhando para o nosso jardim.
Ali, a apenas um quintal de distância.

433
Amostra de contos da personagem Umm Sa’ad:

A chuva, o homem e a lama

Chovia na terça-feira pela manhã. Umm Sa’ad entrou inteiramente


molhada. Os fios de água lhe escorriam pelos cabelos e caíam no rosto como
sobre terra acabada de regar. Ela tirou seu casaco, pôs em um canto o velho
guarda-chuva que parecia uma espada fora de uso e disse:
- Isso já não é mais chuva, primo! São baldes de água que estão virando
sobre a gente, lá do céu.
De repente, percebi uma faixa de lama vermelha na barra do seu ves-
tido. Perguntei:
- O que aconteceu? Você caiu?
Instintivamente, ela se voltou:
- Cair? Eu nunca caio! Que pergunta...
- Tem um pouco de lama em seu vestido.
Ela começou a esfregar o vestido com seus dedos enrugados, mas
parou quando percebeu que a lama ainda estava úmida. Ficou um pouco
em silêncio e disse:
- O campo ficou inundado essa noite... maldita vida é essa que a gente
leva aqui!
A montanha estremecia diante de mim. Senti as lágrimas abrindo
caminho através dos olhos de Umm Sa’ad. Sempre me acontecia ver as
pessoas chorando. Muitas vezes havia visto as lágrimas brotando por causa
das desgraças, do desespero, da derrota, da tragédia, da fraqueza, do amor,
da súplica, da recusa que paralisa, da cólera dos ofendidos, do cansaço, da
consciência atormentada, da fome, da espera. Mas as lágrimas de Umm Sa’ad
eram diferentes. Elas me davam a impressão de brotar de uma fonte ressecada.

434
Fiquei imóvel diante daqueles olhos brilhantes que resistiam. Verdade: Nunca
vi ninguém chorar como Umm Sa’ad.
Ela chorava com toda a superfície da pele. Suas mãos secas choravam.
As gotas de água, que caiam de seus cabelos, eram lágrimas. Seus lábios, seu
pescoço, sua testa, aquela veia que marcava seu queixo como um sinal. Tudo
nela chorava, mas seus olhos não.
- Mas... você está chorando, Umm Sa’ad?
- Eu não choro, primo... gostaria muito de poder. Nós já choramos
muito, muito. Você sabe. Nossas lágrimas foram bem mais abundantes do
que as águas que cobriram o campo ontem. Uma manhã, Sa’ad partiu. Hoje,
ele tem um fuzil e a chuva que cai sobre ele não é só feita de água, mas tam-
bém de fogo. Ninguém chora mais agora. Mas eu fiquei velha, primo. Sinto
cansaço. Passei toda a noite entre a lama e a água... vinte longos anos.
As lágrimas deveriam obstruir sua garganta, impedindo a saída livre das
palavras. Ela estendeu as mãos para mim e engoliu a amargura. Achei que es-
tava mergulhando dentro de si mesma, em um mar de desgosto e sofrimento.
- Que posso dizer a você, primo? Esta noite me senti próxima do fim.
Não quero morrer aqui, na lama e na imundície das cozinhas do campo. Você
me entende, primo? Você, no caso, sabe como escrever... Eu nunca fui à es-
cola, mas sentimos as coisas da mesma maneira. Meu Deus, que posso dizer?
Passei a noite pensando em tudo isso... Encontrei as palavras que faltavam,
mas pela manhã já havia me esquecido delas. Você escreve sua opinião. Eu
não sei escrever, mas mandei meu filho para lá. Foi o meu jeito de dizer o que
você está escrevendo. Não é assim?
Eu podia sentir a lâmina cortante de suas palavras penetrando fundo
em meu peito. A faixa de lama em seu vestido havia se transformado em uma
coroa de espinhos.
- Venha, Umm Sa’ad. Sente-se aqui. Você está esgotada. Pode ser sua
vontade de ver Sa’ad, sua preocupação com ele. E esse tempo, também. Você
está chateada, porque sabe que a chuva vai durar o dia inteiro e vai precisar pas-
sar a noite limpando a lama. Venha. Sente-se aqui. Não desanime desse jeito.
435
Sentou-se e respirou profundamente, como para expulsar com uma
golfada de ar todas as nuvens negras que a atormentavam:
- Não, primo. Você sabe o que Sa’ad fazia, quando ainda estava no
campo? Ele olhava para os homens que limpavam a lama e dizia: “Uma
noite destas a lama vai enterrar todo mundo”. Um dia, seu pai lhe pergun-
tou: “Por que diz isso? Que quer que a gente faça? Você acha que existe um
buraco no céu e que temos de tapar?”. Todo mundo riu. Mas ao olhar para
seu rosto, alguma coisa me surpreendeu. Ele pensava sobre o que acabara
de ouvir, como se a ideia lhe agradasse, como se estivesse planejando fechar
aquele buraco dali a pouco.
- E foi fechar?
- Foi...
Ela me olhou dentro dos olhos. Percebi então uma mudança quase in-
crível. As lágrimas reprimidas haviam dado lugar a uma luminosidade que
vinha das profundezas de sua alma.
- Você sabe, primo, eu não estou preocupada... Ou melhor, estou e não
estou. Você, talvez, tenha a palavra certa para definir esse estado, você que
estudou. Ontem, um companheiro dele me procurou para dizer que tudo
estava bem.
- Ele a procurou?
- Não vi seu rosto. Estava muito escuro. Todo mundo estava mergu-
lhado na lama e água. Ele se aproximou de mim. Era alto, muito alto. Disse:
“Sa’ad mandou lembranças. Ele está bem. Amanhã vai lhe dar um presente”.
Depois foi embora.

436
A guerra acabou

Uma manhã triste. O sol parecia, visto através da janela, uma bola
de fogo pendurada no vazio. Era assustador. Estávamos recolhidos sobre
nós mesmos como bandeiras dobradas. Logo vi que ela surgia abaixo, na
trilha margeada por oliveiras. No espaço feito de ausência, de imobilida-
de, foi como se qualquer coisa se erguesse do chão. Levantei-me, fui até a
janela e a vi se aproximar, a longa silhueta lembrando uma lança trazida
por forças desconhecidas.
Minha mulher chegou perto de mim e ficou também a observar a trilha:
- Umm Sa’ad. Ela chegou.
Com a precisão de um relógio, essa mulher vinha sempre. Saía da terra
como quem vinha transpondo uma escadaria sem fim.
Estávamos acompanhando seus passos quando minha mulher perguntou:
- Que fim levarão todas essas mulheres agora?
Eu não sabia. Esperava Umm Sa’ad justamente para entender o que se
passava. Atrás de nós, os capacetes dos nossos soldados se amontoavam na
areia, abandonados. As filas de refugiados cumpriam uma nova etapa do êxo-
do. Os ruídos da guerra, encobrindo o silêncio dos combatentes, chegavam
através do rádio colocado na mesa, às minhas costas, e lamentando-se como
uma viúva.
O som fraco do aparelho penetrava em tudo o que havia no quarto: os
livros, a cadeira, a mulher, as crianças, o prato, os sonhos do futuro; chegava
a desbotar as cores.
- Ela sumiu logo no começo da guerra - disse minha mulher.
- Agora, com a derrota, voltou. Foi por ela que lutaram. Agora sua derro-
ta é dupla. Fico imaginando o que ela vai dizer... Por que vem com esse jeito de
quem vai nos cuspir na cara? Como será que encontrou o campo pela manhã?
Como aquela poeira suspensa ao sol, as perguntas ficavam no ar.
Afiadas e cortantes, flutuavam no raio prateado, que o sol atirava no quarto,
437
enquanto Umm Sa’ad avançava em nossa direção, trazendo na cabeça aquela
trouxa que nunca largava.
Sua estrada espalhou pelo quarto um cheiro de mato. Eu olhava para
ela como havia feito dez dias antes. Apenas dez dias! Meu Deus, como as coi-
sas podem mudar em dez dias! Ela botou sua trouxa em um canto. Apanhou
um galho que parecia bastante ressecado e me entregou:
- Colhi em um vinhedo. Ela disse.
- Um vinhedo que achei no caminho. Vou plantar diante de sua porta.
Daqui alguns anos você vai comer uvas.
Passei o galho de uma mão para outra. Era só um bastão imprestável.
Depois, perguntei:
- Já está na época, Umm Sa’ad?
Ela fez menção de puxar o lenço branco que lhe cobria a cabeça, como
sempre fazia quando queria tempo para pensar:
- Você não deve entender lá grande coisa de vinhedos – ela disse.
É uma planta fértil, não precisa de muita água. O excesso da água faz só
estragar. Se quiser saber como ela faz, eu digo: ela tira água necessária
da umidade do ar e da terra. Depois, dá uva à vontade.
- É um ramo seco - eu disse, interrompendo.
- Dá a impressão... mas é um ramo de vinha.
- Está bem. Mas isso não importa.
- Tudo acaba - disse ela de repente - não é assim?
- Certo. É isso mesmo.
- Isso é o que você pensa.
Virou-se de costas e foi até a varanda. Cheguei perto e perguntei:
- Como foram as coisas hoje, no campo?
Ela me olhou de frente, inesperadamente, e vi nossa história inscrita em
sua fronte cor de terra. Estendeu as duas mãos para mim:
- A guerra começou no rádio e terminou no rádio. Eu queria ar-
rebentar o rádio, mas Abu Sa’ad o arrancou de minhas mãos. Ah! Meu
primo, meu primo!
438
Ela se apoiou na balaustrada da varanda. Seu olhar se dirigiu às oliveiras
que cobriam toda a colina diante de nós. Apontou para elas:
- As oliveiras não precisam de muita água. Elas vão procurar a água
necessária lá nas profundezas da terra.
Olhou para mim:
- Sa’ad partiu, mas foi apanhado depois de dois dias. Eu achava que
estava combatendo... esta manhã soube que foi detido. Que vergonha! E eu
me perguntando se não estava morto...
- Como ficou sabendo que ele estava preso?
- Na segunda-feira, pela manhã, ele ouviu o rádio. Depois foi cuidar de
tudo. Reuniu seus companheiros e deixaram o campo em segredo, como se
fosse djinnis1. Eu o surpreendi pegando um galho para encontrá-los à saída
do campo. Precisava homenagear sua partida. Ele ficou rindo até o momento
em que não pude mais vê-lo. Mas não foi muito longe. Eles o apanharam e o
jogaram na cadeia.
- E agora?
- O chefe do campo foi procurar informar-se. Veio me ver pela ma-
nhã e disse: “Não precisa se preocupar, Umm Sa’ad. Vou trazer seu filho
de volta”. Imagine, achava que era isso o que eu queria. E achava que Sa’ad
queria isso também. Mas, à noite, ele voltou para me dizer: “Seu filho é um
maluco. Consegui tirá-lo da prisão e ele fugiu. Foi em direção da montanha
e cruzou a fronteira”.
- Cruzou a fronteira? Para onde?
Por um instante, tive a impressão de que ela procurava me indicar, com
movimento de seu braço, uma direção qualquer. Mas o seu braço voltou ao
ponto de partida. Depois passou a apontar os objetos ao redor: os livros, a
cadeira, as crianças, minha mulher, o prato e eu próprio.
Eu estava me sentindo um pouco confuso. Seus gestos davam a im-
pressão de estar exprimindo algo muito complicado que sua mente não
podia dominar.

1-Na tradição islâmica refere-se a um espírito, que pode ser maldoso ou bondoso.
439
- Cruzar a fronteira para quê? Interroguei.
Nos cantos de seus lábios vi surgir um sorriso que eu nunca havia visto
antes e que iria ser constante dali em diante. Tinha o corte de uma lâmina.
Ela não movia mais os braços.
- Como se não soubesse - disse. Como se não soubesse, primo! Cruzar
a fronteira para onde? Você me faz essa pergunta e eles também! Porque não
vai tomar o seu café da manhã?
A pergunta me pegou de surpresa. Voltei os olhos para o prato que me
esperava havia umas duas horas. O apetite tinha se transformado no amargo
gosto da derrota, para sempre.
Umm Sa’ad insistiu:
- Por que não toma seu café? Eu não quero. Estou esperando alguma
coisa que satisfaça meu apetite... Você sabe, somente Sa’ad podia conseguir!
Ela se retraiu por um momento, antes de murmurar como que falando
consigo mesma:
- Se Sa’ad voltar para casa hoje à noite, se ele voltar, eu não vou poder
comer... Você entende por que ele precisa cruzar a fronteira?
Outra vez apontou o horizonte e se voltou para os livros, a cadeira,
as crianças, a mulher, o prato e para mim. Deixou o braço esticado em uma
única direção, imóvel, como uma ponte, ou talvez uma barricada.
- E você, primo,perguntou -o que vai fazer? Vinte anos se passaram.
Eu me lembrei de você ontem à noite, ao saber, ouvindo rádio, que a guerra
acabou... Pensei:”Preciso ir vê-lo”. Se Sa’ad estivesse aqui, teria dito: “Desta
vez é ele quem deve vir nos ver”. Você vai?
Ela não esperou uma resposta. Apanhou o ramo que eu havia colocado
sobre a mesa. Ficou olhando para ele como para um objeto que visse pela
primeira vez e, depois, se dirigiu devagar para outra porta, dizendo:
- Vou plantá-lo. Você vai ver só as uvas que vai dar. Já disse que quase
não precisa de água, que espreme cada grão da terra para ter o que beber.
Atravessando o corredor, pareceu-me grande e majestosa. Não sei o que
me levou a pensar, de repente, no chefe do campo que havia libertado seu filho:
440
- O chefe do campo disse como conseguiu soltar Sa’ad ?
Ela se deteve no outro extremo do corredor, no vão da porta aberta. O
sol dava à sua silhueta um ar irreal, indefinido. Eu não podia ver seu rosto,
mas a ouvi dizer:
- Você ainda está pensando no chefe do Campo?
Foi a primeira coisa que eu vi na manhã seguinte. Ela chegou cedo,
como sempre. Eu estava dormindo, mas já era hora de levantar. Ela não quis
esperar e foi me contar na cama:
- Eu não disse para não se preocupar com o chefe do campo? Sabe o
que aconteceu? Ele foi pedir que eles assinassem um papel prometendo que
teriam comportamento honesto. Eles recusaram e não aceitaram sua autori-
dade. Foi expulso dali.
- Eles quem?
- Sa’ad e seus companheiros. O chefe do campo me disse que zomba-
ram dele e que Sa’ad lhe perguntou: “Que significa ter um comportamento
honesto?”. Começaram a rir e um deles, que o chefe do campo não conhecia,
disse: “Ser honesto... será que isso não quer dizer ser sensato?”. Outro lhe
perguntou: “Ser honesto significa levar um tapa e agradecer?”. Então Sa’ad se
levantou e explicou: “Ser honesto, meu caro, significa fazer a guerra. É isso
que quer dizer.”
Ela respirou fundo, com contentamento misterioso. Sentou-se na ca-
deira e continuou:
- Que Deus os guarde! O chefe do campo me contava toda história e
eu, ali, me controlando para não rir. No final, eu lhe disse: “Por sorte eles não
bateram em você! Dê graças a Deus por isso!”. Ele ficou zangado.
- Eles se recusaram a assinar?
- Claro que se recusaram. Disseram ao chefe: “Você perdeu o bon-
de...”. Ele ficou bem zangado! Especialmente quando, depois que ele lhes
perguntou se precisavam de alguma coisa, Sa’ad respondeu: “Lembranças à
família, meu filho...”. Ficou bem irritado, porque ele é muito mais velho que

441
Sa’ad. É da mesma geração que o pai dele. Achou que foi uma imensa falta de
respeito chamá-lo de “ meu filho”, como se fosse uma criança.
- Que você disse ao chefe?
- Disse que o coração de Sa’ad era muito puro, que ele não teve a inten-
ção de ofendê-lo ao dizer “ meu filho”. Que tudo o que ele havia querido dizer
era que tinha chegado sua própria vez de dar as cartas.
- Você tentou botar panos quentes e foi pior ainda...
- Mas falei assim de propósito!
- E agora? Sa’ad vai fazer o quê? Sua liberdade não era mais útil?
Ela se levantou e ficou me olhando, com um novo sorriso nos cantos
da boca.
- Você não está preso, está? E o que é que está fazendo?
Os jornais estavam jogados no chão e o rádio que eu havia ligado
transmitia um noticiário. Umm Sa’ad ainda continuava com os olhos fixos
em mim, antes de voltá-los para o rádio. Sua voz mudou de repente:
- Sa’ad foi preso, porque se recusou a assinar um documento e por ter
um comportamento honesto... Mas qual de vocês é honesto? Todos assina-
ram esse documento de um modo ou de outro. E vocês estão o tempo todo
na cadeia!
Seu corpo estremecia. Pela primeira vez eu a via em tal estado de cóle-
ra. Levantei-me e disse:
- Fique calma, Umm Sa’ad. Eu não quis ofender você.
- Todos me dizem agora: “Eu não quis...”. Então como foi que tudo
isso aconteceu? Por quê? Por que você não cedeu seu lugar para os que
sabem o que querem?
Chegou bem perto de mim e disse:
- Escute... eu sei que Sa’ad vai sair da prisão, de todas as prisões. Você
entende?

442
A proteção

Vi em seu rosto uma alegria que eu não podia comparar com nada
que houvesse visto antes. Ela colocou suas coisas em um canto e disse:
- Sa’ad chegou...
Caminhou um pouco pelo quarto, enquanto um alegre burburinho
anunciava, do lado de fora, a chegada do grupo que festejava. A seguir, ela se
sentou e deixou descansar as mãos enlaçadas sobre os joelhos. Eu imaginei
Sa’ad, os olhos brilhantes atrás da metralhadora, retornando coberto de pó,
depois de longas noites de ausências. Perguntei:
- Faz já um ano que ele partiu?
- Não. Nove meses e duas semanas.... voltou ontem.
- Vai ficar?
- Não. Ele teve um braço operado. Foi uma bala.
Ela arregaçou a manga para me mostrar a trajetória da bala que atra-
vessou a carne desde o punho até o cotovelo. Observei seu braço, ainda
forte. De repente, tive a impressão de estar mesmo vendo os traços de uma
ferida antiga, já cicatrizada, indo do punho ao cotovelo.
- Mas, você também... - eu disse.
- Eu? Ah, é uma velha ferida, desde a Palestina. Uma raposa tinha rou-
bado uma galinha e saí atrás dela. Tentei apanhá-la junto ao arame farpado e
rasguei o braço.
- E Sa’ad, agora?
- Diz que vai voltar assim que a ferida cicatrizar.
Percebi que ela havia dito “ele vai voltar” e não “ele vai partir”. Mas ela
não havia aprendido que o exílio criava seu próprio vocabulário e acabava
por se enfiar na vida cotidiana como o arado entra na terra.
- Deus o guarde. Ele veio mostrando o braço como se fosse uma
condecoração. Diz que agora é o chefe de seu grupo e que todo mundo
lhe pergunta: “Por que vai embora tão depressa?”. Ele estava sempre na
vanguarda... Eu lhe disse que ele era o verdadeiro filho de seu pai.
443
- Ele estava com muitas saudades de você?
- Sa’ad? Imagine... Ele me abraçou, rapidamente, e saiu logo depois. Eu
disse: “É assim então? Você não sente falta de mim nem mesmo depois de
tanto tempo fora?”. Sabe o que foi que ele respondeu? “Mas eu vi a senhora
por lá”. Depois começou a rir sem parar.
- Como é? Ele viu você lá?
- Ele disse que esteve no oeste da Palestina. Andou com quatro de seus
companheiros durante mais de uma semana. Contou que se aproximaram de
um povoado e se esconderam nos arredores. Não entendi o motivo. Falava e
eu só ficava olhando para ele. Deus o proteja! Que Deus proteja todos eles!
Enquanto falava eu pensei: “Eles estiveram lá, então por que razão tinham de
se esconder no campo?”. Ele me disse... Sentiram fome. Começava a chover.
Quando o aço das metralhadoras fica molhado, a gente sente o cheiro de pão.
Isso é o quê Sa’ad disse.
Em certo momento perceberam que era impossível uma retirada,
pois havia tropas por perto. Ficaram calmos no mesmo local, esperando
que o inimigo partisse logo. Mas as tropas ficaram por ali vários dias, e
eles já estavam morrendo de fome. Era preciso escolher: ficar ali sofrendo
sem parar ou um deles correr o risco de atingir o povoado vizinho para
conseguir alguma coisa.
Era uma escolha bem difícil. Decidiram deixar passar a noite antes
de tomar uma decisão. Lá pelo meio-dia, Sa’ad disse de repente aos outros:
“Minha mãe!”. Todos olharam para a extremidade da estrada estreita e si-
nuosa, que vinha da Colina, e viram uma mulher usando um longo vestido
negro das camponesas. Caminhava em direção deles e trazia uma trouxa na
cabeça e um feixe de ramos verdes na mão.
Ela parecia da mesma idade de Umm Sa’ad e tinha o mesmo corpo
grande e vigoroso. Naquele terrível silêncio, era possível ouvir o ruído de seus
pés descalços sobre o cascalho.
- Sua mãe? - disse um deles. Sua mãe está lá no campo a esta hora. Vai
ver que a fome afetou os seus olhos.
444
- Vocês não conhecem minha mãe - respondeu Sa’ad. Ela me segue o
tempo todo... É a minha mãe.
A mulher chegou logo perto do lugar onde estavam escondidos. Estava
bem perto e eles podiam ouvir o farfalhar do longo vestido bordado com linhas
vermelhas. Sa’ad olhou para ela através da folhagem que o protegia e gritou:
- Mãe!
Ela se deteve percorreu com os olhos o campo que a cercava. Eles pres-
tavam atenção a cada um de seus gestos. Um deles segurava Sa’ad pelo bra-
ço, para impedir que fizesse qualquer bobagem. Passou um minuto e depois
mais outro. A mulher estava perplexa, mas resolveu seguir o seu caminho.
Deu dois ou três passos antes que Sa’ada chamasse de novo:
- Mãe! Responda!
A mulher parou outra vez, indecisa. Sem conseguir enxergar nada, pôs
sua trouxa no chão. Colocou os ramos sobre ela e com as mãos nos quadris
tentou ouvir melhor os ruídos que a cercavam.
- Eu vou até lá - disse Sa’ad.
A velha olhou para o ponto de onde partia a voz. Voltou-se nessa di-
reção e ficou por alguns momentos assim, sem dizer nada. Apanhou então
um ramo e começou a desfolhá-lo. A seguir deu dois passos na direção deles
e perguntou:
- Por que você não sai daí? Não quer mostrar a cara?
Os outros olhavam para Sa’ad, que hesitava. De repente, ele apanhou
sua metralhadora e ficou em pé. Saiu caminhando de encontro à mulher:
- Sou Sa’ad, mãe... estou com fome...
A velha deixou cair o ramo das mãos assim que viu surgir do mato
aquele rapaz em uniforme militar e com uma metralhadora nas costas. Os
companheiros de Sa’ad já apontavam suas armas contra a mulher enquanto
ele se expunha de corpo inteiro. Foi então que ela gritou:
- Que Deus mate todos os seus inimigos de fome! Vem! Vem com sua mãe!
Sa’ad chegou mais perto dela. Quando se encontraram, ela o abraçou
com força:
445
- Que Deus te proteja, meu filho.
- Mãe, estamos precisando de comida.
A mulher se abaixou para abrir a trouxa. Mostrou-lhe o que tinha. Ele
viu seus olhos úmidos e disse:
- Em nome do profeta, não chore, mãe...
- Há outros como você? Dê-lhes de comer. Quando o sol cair eu volto
e deixo uma cesta ao lado da estrada. Que Deus proteja vocês, meus filhos!
Quando Sa’ad voltou, os companheiros não lhe notaram qualquer
sinal de surpresa no rosto. Comeram rapidamente e um deles propôs:
- Vamos mudar de esconderijo. Talvez ela volte com os soldados
inimigos.
Sa’ad não respondeu. Ficou um pouco em silêncio e depois disse apenas:
- É a minha mãe. Vocês viram com seus próprios olhos. Como é que ela
vai pensar em trazer os soldados inimigos?
À noite, ela voltou com uma cesta e fez o mesmo ao amanhecer. A cada
vez, Sa’ad agradecia:
- Benditas sejam suas mãos, mãe!
E ela respondia:
- Deus lhe proteja, meu filho!
- Essa mulher - disse Umm Sa’ad - lhes deu comida durante cinco
dias. Sa’ad me disse que ela nunca se atrasava. Quando o perigo do cerco
passou, ela foi até eles, colocou sua trouxa no chão e disse: “Eles partiram.
Que Deus mostre a vocês, agora, o caminho certo!”
Umm Sa’ad deixou outra vez cair sobre seus joelhos as mãos entrelaça-
das como duas criaturas que não podem viver separadas:
- Ele disse que me viu ali e que, se eu não tivesse levado comida, morre-
ria de fome. E disse que se eu não tivesse rezado por ele, a bala o teria matado,
em vez de apenas ferir seu braço.
Quando ela se levantou para sair, senti em torno de seu corpo o
perfume do mato onde Sa’ad se havia escondido, protegido por esse amor
descomunal.
446
- Ele vai retornar assim que o ferimento cicatrizar - disse Umm Sa’ad.
Pediu para não me preocupar, pois sempre vai me ver perto dele por lá. Que
mais eu podia dizer? Respondi: “Que Deus acompanhe e proteja você”.
Ela virou as costas e saiu andando. Ouvi minha própria voz dizer:
- Mãe!
Ela parou no mesmo instante.

447
Entrevista de Ghassan Kanafani ao
jornalista Richard Carleton

448
O texto que se segue é uma mostra do espírito combativo
que Ghassan Kanafani transparece em todas as suas ações
políticas, incluso na entrevista concedida a jornalistas
estrangeiros.
A intransigência revolucionária apresentada foi uma de
suas marcas como político da Frente Popular de Libertação da
Palestina (FPLP).
Esta entrevista foi conduzida por Richard Carleton,
jornalista da BBC, em Beirute em 1970. Ghassan Kanafani
àquela altura já era um prestigiado intelectual e porta-voz
oficial da FPLP, em Beirute.

Nota do organizador
Entrevistador: O líder de Beirute da Frente Popular (FPLP, Frente Popu-
lar de Libertação da Palestina) é Ghassan Kanafani. Ele nasceu na Palestina,
mas fugiu em 1948, como ele diz, do terror sionista. Desde então, ele planeja a
destruição de ambos: os sionistas e os árabes reacionários.
Ghassan Kanafani: O que eu realmente sei, é que a história do mundo é
sempre a história das pessoas fracas lutando contra as pessoas fortes. De pessoas
fracas que têm uma causa correta, lutando contra as pessoas fortes que usam
sua força para explorar os fracos.

Entrevistador: Voltando-se para a luta que vem acontecendo na Jordâ-


nia nas últimas semanas. A sua organização que tem sido um lado da luta. O
que ela conquistou?
Ghassan Kanafani: Uma coisa. Temos uma causa pela qual vale lutar...
Isso é muito! O povo palestino prefere morrer de pé do que perder a causa. O
que conquistamos? Conseguimos provar que o rei está errado. Conseguimos
provar que esta nação vai continuar lutando até a vitória. Conseguimos que
nosso povo nunca pudesse ser derrotado. Conseguimos ensinar a cada pessoa
deste mundo que somos uma pequena e corajosa nação que vai lutar até a
última gota de seu sangue, para colocar justiça para nós mesmos, depois que o
mundo falhou em nos dar. É isto que conquistamos.

Entrevistador: Parece que a guerra, a guerra civil tem sido bastante in-
frutífera...
Ghassan Kanafani: (Ele corta a conversa e interrompe) Não é uma guerra
civil. É uma luta popular, defendendo-se contra um governo fascista, que você está
defendendo só porque o rei Hussain tem passaporte árabe. Não é uma guerra civil.
Entrevistador: Ou um conflito?
Ghassan Kanafani: Também não é um conflito. É um movimento de li-
bertação lutando por justiça.
450
Entrevistador: Bem, seja lá o que for, mas...
Ghassan Kanafani: (interrompe rispidamente o entrevistador) Não é
“seja lá o que for”. Porque é aqui que começa o problema. Isto é o que você
tem em mente, enquanto me faz todas as perguntas. É exatamente aqui que o
problema começa. Este é um povo que é discriminado lutando por seus direitos.
Isso é histórico. Se você disser que é uma guerra civil, então suas perguntas
serão justificadas. Se você diz que é um conflito, então, é claro, que será uma
surpresa saber o que está acontecendo.

Entrevistador: Por que sua organização não se envolve em negociações


de paz com israelenses?
Ghassan Kanafani: Você não quer dizer exatamente negociações de paz,
você quer dizer capitulação, você quer dizer rendição.

Entrevistador: Por que não apenas falar?


Ghassan Kanafani: Falar com quem?

Entrevistador: Falar com os líderes israelenses.


Ghassan Kanafani: Isso é uma espécie de conversa entre a espada e o
pescoço, você quer dizer!

Entrevistador: Quando não há espada e armas na sala, você ainda


pode falar.
Ghassan Kanafani: Não. Nunca vi uma conversa entre o colonialista e
um movimento de libertação nacional.
451
Entrevistador: Mas, apesar disso, por que não falar?
Ghassan Kanafani: Falar sobre o quê?

Entrevistador: Fale sobre a possibilidade de não lutar.


Ghassan Kanafani: Não lutar, por quê?

Entrevistador: Não lutar, não importa para quê.


Ghassan Kanafani: As pessoas geralmente lutam por algo e param de
lutar por algo. Então você não pode me dizer nem por que devemos falar e sobre
o quê. Ou falar sobre parar de lutar. E por que deveríamos?

Entrevistador: Falar para parar de lutar, parar a morte e a miséria, a


destruição, a dor.
Ghassan Kanafani: A miséria, a destruição, a dor e a morte de quem?

Entrevistador: Dos palestinos, dos israelenses, dos árabes.


Ghassan Kanafani: Do povo palestino arrancado de sua terra, jogado
nos campos refugiados, passando fome, assassinado por vinte anos e proibido
de usar até mesmo o nome Palestino?

Entrevistador: Então é melhor parar a guerra para acabar com a morte.


Ghassan Kanafani: Talvez para você, não para nós. Para nós, libertar
nosso país, ter dignidade, ter respeito, ter nossos direitos humanos; isto é algo
tão essencial como a vida.
452
Entrevistador: Você chamou o rei Hussain de fascista. Quem mais entre
os líderes árabes você se opõe totalmente?
Ghassan Kanafani: Consideramos os governos árabes de dois tipos.
Aqueles que chamamos de reacionários, que estão completamente ligados aos
imperialistas, como o rei Hussain, como o governo da Arábia Saudita, o gover-
no marroquino e o governo tunisiano. E então temos alguns outros governos
árabes que chamamos de governos pequeno-burgueses militares como Síria,
Iraque, Egito, Argélia e assim por diante.

Entrevistador: Só para terminar, deixe-me voltar ao sequestro da aero-


nave. Refletindo, você acha agora que isso foi um erro?
Ghassan Kanafani: Não cometemos um erro ao sequestrá-lo. Eles nos
contestam. Essa foi uma das ações mais corretas que já realizamos.

453
Dados e breve
nota biográfica
de Ghassan
Kanafani

454
Artista: Sliman Mansour

455
“Conseguimos ensinar a cada pessoa deste mundo que
somos uma pequena e corajosa nação que vai lutar até
a última gota de seu sangue para colocar justiça para
nós mesmos, depois que o mundo falhou em nos dar.”

Ghassan Kanafani

456
• Nome completo: Ghassan Fayez Kanafani;
• Nome do pai: Fayez Kanafani;
• Nome da mãe: Aisha Al Salem;
• Local de nascimento: Akka (Acre) / Palestina;
• Data de nascimento: 9 de abril de 1936;
• Data do martírio: 8 de julho de 1972 / Beirute – Líbano;
• Esposa: Anni Kanafani (Anni Hover) - casados em 1961. Ela per-
maneceu em Beirute após seu martírio e criou a Fundação Cultural Ghas-
san Kanafani.
• Filhos: Fayez (nascido em 24 de agosto de 1962) e Laila (nascida em
12 de outubro de 1966).
• Nacionalidade: Palestina.
• Profissão: Escritor, dramaturgo, jornalista e político palestino.
• Organizações políticas que integrou: Movimento Nacionalista Ára-
be (MNA) - adesão em 1954 e Frente Popular de Libertação da Palestina
(FPLP) - adesão em 1969.
• Prêmios recebidos: Ganhou o prêmio “Friends of Books in Leba-
non” de melhor romance, em 1966, por “O que resta para você.” Recebeu,
postumamente, o Prêmio da Organização Mundial da Imprensa, em 1974.
Em 1975, recebeu o Prêmio Lotus, concedido pela União de Escritores
da Ásia e da África. Premiado com a Ordem de Jerusalém para Cultura e
Artes, em 1990.

457
Breve nota biográfica de Ghassan Kanafani

Ghassan Kanafani nasceu na cidade de Akka, em uma família de clas-


se média, em 9 de abril de 1936, ano que marcou o início de uma grande
revolução, que durou três anos, contra o mandato Imperialista britânico e,
seu pupilo, a colonização sionista. Embora fossem muçulmanos, seus pais o
enviaram à Ecole des Frères, uma escola católica, em Jaffa, que lecionava em
língua francesa.
Em 1948, após a proclamação do Estado de Israel, sua família teve de
abandonar a Palestina, inicialmente em direção ao Líbano. De acordo com
Anni Kanafani, esposa de Ghassan, a família partiu em 9 de abril de 1948, dia
do massacre de Deir Yassin, em que membros de um grupo paramilitar sio-
nista perpetraram o genocídio de 254 pessoas (idosos, mulheres e crianças,
em sua maioria).
Kanafani completava 12 anos naquele dia. A amarga experiência foi re-
latada dez anos mais tarde, em uma mistura de fantasia e realidade, no conto
“A terra das laranjas tristes”.
Depois de permanecer por breve tempo no sul do Líbano, a família
Kanafani partiu para Damasco, onde o escritor, ainda jovem, começou a
trabalhar. Na capital síria, a família levou uma vida difícil, em um campo
de refugiados, onde seu pai abriu um pequeno escritório de advocacia. As
poucas economias levadas de Akka logo se esgotaram. Ghassan e seu ir-
mão Ghazi realizaram vários trabalhos informais, para continuar os estu-
dos e ajudar o pai a sustentar uma família com sete filhos. Aos 16 anos, Ka-
nafani concluiu o curso secundário e começou a trabalhar como professor
nas escolas das Agências das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados
da Palestina (UNRWA - sigla em inglês). Lecionou na Escola Aliança, da
mesma UNRWA, por três anos e se matriculou na Faculdade de Letras da
Universidade de Damasco.

458
A carreira docente de Kanafani deixou marcas profundas em sua per-
sonalidade, estilo de trabalho e aspirações políticas. Como um de apenas dois
professores em uma escola de 1.200 alunos (o outro era uma professora, Sa-
mia Haddad, futura esposa de Wadie Haddad, da Frente Popular de Liberta-
ção da Palestina), ficou sobrecarregado pelo volume de trabalho e pelos pro-
blemas que seus alunos enfrentavam no dia a dia - relacionados a vestuário,
comida, abrigo e doenças, além das dificuldades acadêmicas e das privações
culturais e emocionais. As imagens e as impressões que acumulou, durante
esse período, aparecem claramente em sua obra.
Em 1954, Kanafani aderiu ao Movimento Nacionalista Árabe, grupo
que recrutava, principalmente, adeptos nos meios intelectuais e defendiam
mudanças nas sociedades árabes. Posteriormente, o MNA se tornou o núcleo
das organizações de resistência palestinas. A revista semanária “A opinião”,
órgão oficial do MNA, dirigido por Hani Al Hindi e George Habash, tor-
nou-se a primeira tribuna literária de Kanafani, que escreveu 18 textos em
um ano e meio. Dentre eles destaca-se a coluna “O ser humano e os princí-
pios”, na qual criticava duramente os políticos árabes. Sua conscientização
política é permanentemente marcada pela divisão de classes. De um lado,
encontram-se os camponeses, que cultivam a terra palestina, que Kanafani
retrata com desvelo; do outro, os latifundiários, “parasitas”, donos tanto dos
camponeses quanto do campo, na opinião do escritor.
Em 1955, foi expulso da Universidade de Damasco, acusado de parti-
cipar de atividades políticas. Mais tarde, ele se formou na universidade e sua
tese foi intitulada “Raça e Religião na Literatura Sionista”. No mesmo ano,
aceitou uma proposta para lecionar na Cidade do Kuwait (capital kuwaitia-
na), onde permaneceu por cinco anos a partir de 1956.
Nesse país, descobriu que tinha diabetes. Necessitava de um tratamen-
to permanente e acreditava que não viveria muito tempo. À época, a idéia da
morte tornou-se uma obsessão - agravada pela solidão e frustração com a
situação da Palestina.

459
No Kuwait, reencontrou sua irmã Fayzeh e seu irmão Ghazi. Graças
aos três salários, a família Kanafani, que permanecera em Damasco, deixou
de passar necessidades. Em 1960, Habash o convenceu a deixar o Kuwait,
ir para Beirute e se dedicar à carreira de jornalista. Um ano mais tarde, ca-
sou-se com Anni Hover, professora cujo pai havia desempenhado um papel
importante na resistência dinamarquesa contra os nazistas. Em 1963, tornou-
-se editor-chefe do “O libertador”, o principal jornal nasserista fora do Egito.
Escreveu uma coluna semanal intitulada “O que está por detrás das notícias”
e editou o suplemento semanal “Palestina”, dirigido aos palestinos que viviam
no exílio. Pouco a pouco, tornou-se um dos mais renomados jornalistas de
Beirute. Como consequência, obteve o passaporte libanês, o que pôs fim à sua
situação de clandestinidade por não ter documentos oficiais.
Em 1965 e 1966, visitou a China. A principal figura política dessa épo-
ca, no mundo árabe, era Gamal Abd-Nasser. Kanafani não escondia sua ad-
miração pelo líder egípcio e defendeu, em seus escritos, uma amálgama de
nasserismo (essencialmente, pan-arabismo), socialismo e luta política. O ano
de 1967 foi decisivo para ele e para outros intelectuais árabes. Uma das con-
sequências imediatas da vitória israelense naquele ano foi sua mudança de
emprego. “O Libertador” dependia de financiamento egípcio, e o pequeno
salário era insuficiente para manter a família.
Kanafani vinculou-se ao “As luzes”, outro jornal de Beirute, de tendên-
cia nasserista, até 1969, quando se tornou editor chefe de “O objetivo”, jornal
semanal que expressava a opinião da Frente Popular de Libertação da Palesti-
na. (FPLP). Pouco depois, Kanafani tornou-se o porta-voz oficial da FPLP até
seu assassinato, em 8 de julho de 1972, num atentado. Uma bomba foi colo-
cada por terroristas oficiais de Israel debaixo de seu carro, estacionado diante
de um edifício em um bairro de Beirute próximo à estrada para Damasco. Ao
ligar o motor, Kanafani recebeu o impacto e morreu. A outra vítima foi uma
sobrinha de 17 anos que o acompanhava.

460
Bibliografia
de Ghassan
Kanafani

461
Artista: Maher Naji

462
“Para nós, libertar nosso país, ter dignidade,
ter respeito, ter nossos direitos humanos;
isto é algo tão essencial como a vida.”

Ghassan Kanafani

463
Em Língua Árabe:

1- Histórias sobre a Palestina e seu povo:

• A morte na cama número 12 (1961).

• Homens ao Sol (1963).

• A terra das laranjas tristes (1963).

• A porta (1964).

• Um mundo que não é nosso (1965).

• Tudo o que resta para você (1966).

• Sobre homens e armas (1968).

• Umm Sa’ad (1969).

• Retorno a Haifa (1969).

• O amante (obra inacabada, 1972).

• O cego e o surdo (obra inacabada, 1972).

2 - Estudos e críticas

• Literatura de resistência palestina: Um estudo (1966).

• Literatura sionista: Um estudo (1967).

• Literatura de resistência da Palestina sob a ocupação 1948-1968: Um


estudo (1968).

• Faris Faris (Uma coleção de artigos satíricos, publicados sob o nome de


Faris Faris no jornal As-Sayaad).

464
3- Outras publicações, incluso póstumas:

• O chapéu e o profeta (peça teatral).

• Uma ponte para sempre (peça teatral).

• A outra coisa (peça teatral).

• Surgiu então a Ásia (impressões de uma visita à China e à Índia).

• A Revolta de 1936-1939 na Palestina.

• A lótus, vermelha e morta (peça teatral).

• Obra completa de Ghassan Kanafani pela editora Rimal Publications.

Em Língua Portuguesa (no Brasil):

• Lamentos dos oprimidos – poemas palestinos. Missão da Liga dos Estados


Árabes: Rio de Janeiro, 1971. Coletânea de poemas palestinos de vários
autores e um texto de Ghassan Kanafani.

• O povo sem terra: contos da Palestina. Editora: Brasiliense, 1986. Coletâ-


nea de texto de Ghassan Kanafani.

• Homens ao sol. Editora: Bibliaspa, 2012. Obra de Ghassan Kanafani.

• KANAFANI, Ghassan (2015). A Revolta de 1936-1939 na Palestina. São


Paulo: Editora: Sundermann.

• Nosso verbo é lutar: somos todos palestinos. Editora: Fedayin, 2015. Poe-
sias de combate palestina de Yasser Jamil Fayad. Na seção “A voz que não
se cala”, em homenagem a Ghassan Kanafani temos: Visão de Ramallah
e Visão de Gaza.

• Amalgama de luta e beleza: somos todos palestinos. Editora: Fedayin,


2018. Poesias de combate palestina de Yasser Jamil Fayad. Na seção “A
voz que não se cala”, em homenagem a Ghassan Kanafani temos: Breve
conclusão, Muros de Ferro e Curiosidades de uma criança ou o destino
de um homem.
465
• Hebron - a cidade impossível. Editora: Fedayin, 2021. Ahmad Jaradat.
Na seção “A voz que não se cala”, em homenagem a Ghassan Kanafani
temos: A esposa.

• Filhos da Palestina: Retorno a Haifa e outras histórias. Editora: Lavrapa-


lavra, 2022. Obra de Ghassan Kanafani.

• O pequeno lampião. Editora Tabla, 2022. Obra infantil de Ghassan Ka-


nafani.

Em Língua Inglesa (traduções mais famosas):

• Men in the Sun and Other Palestinian Stories (translated by Hilary Kil-
patrick, 1978).

• All That’s Left to You: A Novella and Other Stories (translated by Jeremy
Reed, May Jayyusi, 1990).

• Palestine’s Children (translated by Barbara Harlow, 1984) .

• The Slave Fort’ in Arabic Short Stories, 1983 (translated by Denys John-
son-Davies).

• Palestine’s Children: Returning to Haifa & Other Stories, 2000 (with others,
translated by Barbara Harlow and Karen E. Riley).

Ghassan Kanafani foi traduzido para 17 idiomas. Sua produção inclui centenas
de artigos jornalísticos, contos, peças teatrais, cartas ficcionais, romances, estudos
sobre cultura e política na Palestina.
466
Fotos de Ghassan Kanafani.

467
Ghassan com seus filhos: Fayez e Laila.

Ghassan, estudante juvenil,


em Damasco, na Síria.

Da direta para esquerda: Lamis Hussein


Najm (sobrinha de Ghassan assassinada
junto com ele), Marwan (irmão de
Ghassan), Ghassan (ao centro), Hussein (pai
de Lamis) e Fayzeh (mãe de Lamis, irmã de
Ghassan e Marwan).

A bebê Laila no colo de Um Sa’ad,


amiga da família e inspiração da
personagem homônima criada por
Ghassan, que vemos ao fundo. Ghassan com seus pais -
Aisha Al Salem e Fayez Kanafani.

468
Ghassan e sua esposa Anni.

Ghassan e sua sobrinha Lamis.

Anni – viúva de Ghassan.

469
Imagens do atentado terrorista contra
Ghassan Kanafani.

470
Cortejo fúnebre popular de
Ghassan Kanafani.

Atrás do soldado armado está Fayez,


filho de Ghassan Kanafani, no cortejo
fúnebre de seu pai.
Cortejo fúnebre popular de
Ghassan Kanafani.

Túmulo de Ghassan Kanafani.


Túmulo de Ghassan Kanafani.

471
Cartazes
de Ghassan
Kanafani

472
Artista: Sliman Mansour

473
“É claro que a morte significa muito. O importante é
saber o porquê. O auto sacrifício, dentro do contexto
da ação revolucionária, é uma expressão da mais
alta compreensão da vida e da luta para tornar a
vida digna do ser humano. O amor pela vida de um
indivíduo torna-se um amor pela vida das massas de
seu povo, e a rejeição de que a vida persista em ser
cheia de contínua miséria, sofrimento e dificuldades.
Assim, sua compreensão da vida se torna uma virtude
social, capaz de convencer o lutador militante de que
o auto sacrifício é uma redenção da vida de seu povo.
Esta é uma expressão máxima de apego à vida.”

Ghassan Kanafani

474
Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) - 1968.

475
1ª Versão
Tradução do árabe: “O caminho da luta armada é o
caminho para a libertação da Palestina”.
Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) - 1969.

476
2ª Versão
Tradução do árabe: “O caminho da luta armada é o
caminho para a libertação da Palestina”.
Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) - 1970.

477
1ª Versão
Tradução do árabe: “Glória aos militantes que destruíram
os tanques dos fascistas”.
Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) - 1970.

478
2ª Versão
Tradução do árabe: “Glória aos militantes quedestruíram
os tanques dos fascistas”.
Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) - 1970.

479
1ª Versão
Tradução do inglês: “Apoie a luta heroica do povo palestino,
em Gaza, contra a repressão israelense”.
Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) - 1970.

480
2ª Versão
Tradução do inglês: “Apoie a luta heroica do povo palestino,
em Gaza, contra a repressão israelense”.
Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) - 1970.

481
Tradução do árabe: “Destrua os inimigos dos povos”.
Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) - 1970.

482
Pinturas
de Ghassan
Kanafani

483
Artista: Sliman Mansour

484
“Em toda a história da luta palestina, a revolta popular
armada nunca esteve tão perto da vitória quanto nos
meses entre o fim de 1937 e o começo de 1939.”

Ghassan Kanafani

485
486
Pintura intitulada: “Antar”.
Fundação Cultural Ghassan Kanafani - 1980.

487
488
Pintura intitulada: “O Leitor”.
Fundação Cultural Ghassan Kanafani - 1980.

489
Pintura intitulada: “O velho”.
Fundação Cultural Ghassan Kanafani - 1980.

490
Pintura intitulada: “Mulher”.
Fundação Cultural Ghassan Kanafani - 1980.

491
“Cavalo”
por Ghassan Kanafani.

492
Escultura
de Ghassan
Kanafani

493
Artista: Sliman Mansour

494
“A história de um povo não é obra de um indivíduo, mas
a vontade de se unir à luta incessante das massas para
derrotar todo tipo de exploração nacional e de classe.”

Ghassan Kanafani

495
Escultura
de Ghassan Kanafani.

496
Razão de viver

497
Não conheço seu nome,
mas sei por quem bate
seu coração livre.

Não consegui ver seus olhos negros,


contudo sei quem eles
anseiam ver livre.

No meio de tantos
não percebi os delicados movimentos
de seus ágeis braços,
porém sei quem eles desejam
abraçar livre.

Não compreendi o movimento


de seus lábios,
todavia sei quem eles anseiam
beijar livre.

Sei o nome
desse seu querer sem fim
que soa como uma prece.

498
E que nos faz mover,
sonhar,
desejar,
lutar,
resistir,
como uma bússola
nos norteia a vida.

Um nome
que é nobre causa.

É nossa
razão de viver...
Palestina!

Yasser Jamil Fayad

499
Em memória da jornalista palestina-
americana Shireen Abu Akleh, do canal
Al Jazeera e dos outros 52 palestinos
assassinados nas operações militares
israelenses criminosas no campo de
refugiados de Jenin, no período de abril a
maio de 2022.
A jornalista morreu ao ser atingida por tiros
no dia 11 de maio de 2022.

500
Nota sobre o organizador

501
Yasser Jamil Fayad –

Nasceu em Campos Novos-SC (25-02-1982).


Graduado em Medicina pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC),
Residência médica em Pediatria HU-UFSC,
Residência médica em Infectologia Pediátrica na
USP-Ribeirão Preto e Mestrando em Geografia
pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS),
Militante de esquerda e coordenador do
Movimento pela Libertação da Palestina –
Ghassan Kanafani.
Autor dos livros publicados pela Fedayin Editora:
“Socialismo ou mais Barbárie”, “Nosso verbo é
lutar: somos todos palestinos” e “Amálgama de
luta e beleza: somos todos palestinos”.

502
503

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