Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Evolução humana:
o que há de novo no front?
Walter Neves
Gabriel Rocha
O
estudo das origens humanas sempre en-
cantou na mesma medida em que sur-
preendeu ao revelar um universo inteiro
perdido no tempo. Como uma das áreas
mais disputadas da ciência, novos trabalhos
minam constantemente os conhecimentos
estabelecidos, construindo um campo de
trabalho extremamente dinâmico, às vezes
demasiadamente dinâmico.
A comunidade acadêmica brasileira tem
especial dificuldade para acompanhar o
dinamismo do debate internacional na área
encaixar melhor nos modelos filogenéticos Segundo alguns autores, muitas dessas
da origem do Homo floresiensis. A hipóte- novidades só foram possíveis pela entrada
se permanece ainda bastante especulativa de um novo elemento na história hominí-
em vista da absoluta ausência de fósseis nia: o fogo. De acordo com Richard Wran-
de Homo habilis fora da África, mas en- gham e sua famosa hipótese do cozimento,
contra algum suporte nos achados recentes o aumento no tamanho do cérebro só foi
da China e da Jordânia. A descoberta de possível através do cozimento dos alimen-
ferramentas de pedra com até 2,5 milhões tos (Wrangham et al., 1999). Segundo o
de anos no continente asiático derrubou a pesquisador, o ato de cozinhar o alimento,
visão vigente de que o Homo erectus foi em especial a carne, torna mais simples
a primeira espécie a deixar a África, 1,8 sua digestão e aumenta a quantidade de
milhão de anos atrás. Essas ferramentas energia que se pode retirar da comida. Se
antecipam a primeira saída do continente a hipótese estiver correta e o fogo foi o
africano em mais de meio milhão de anos que possibilitou as adaptações vistas em
e iniciam a busca por novos candidatos ao Homo erectus, a dominação desse elemento
feito, impactando profundamente a nossa deve ter ocorrido pelo menos um pouco
compreensão das dinâmicas populacionais antes do surgimento da espécie. No en-
no início do Pleistoceno. tanto, as evidências mais antigas de uso
do fogo por hominínios não ultrapassam 1
milhão de anos (Berna et al., 2012) e são
HOMO ERECTUS E CAÇA
absolutamente escassas até 400 mil anos
(Shahack-Gross et al., 2014). Dessa forma,
Por meio do registro fóssil, sabemos o registro arqueológico produz pouco ou
hoje que o Homo erectus foi a espécie nenhum suporte à hipótese do cozimento,
responsável por inaugurar diversas ca- que permanece puramente especulativa.
racterísticas marcantes do gênero Homo. Outra grande inovação que é frequen-
Tendo surgido na África por volta de 2 temente atribuída à espécie é a caça ati-
milhões de anos, foi a primeira espécie va e sistemática de grandes animais. O
de hominínio a apresentar uma expansão consumo de carne de forma geral está
cerebral significativa, um comportamento presente na nossa linhagem há pelo menos
de bípede estritamente terrestre (perdendo 2,5 milhões de anos. Entretanto, nesse
adaptações para a vida arborícola presen- período a obtenção de proteína animal
te nos Australopithecus e nos primeiros se resumia ao consumo de carniça, na
Homo) e até inaugurar as grandes expan- medida em que a tecnologia disponível
sões pelo planeta, tendo sido a primeira na época, a indústria olduvaiense, não
espécie conhecida da nossa linhagem a se permitia a caça ativa, mas sim apenas o
dispersar para fora da África 3. reaproveitamento de carcaças.
Com relação ao hábito de caça ativa, a
hipótese vigente sugere que o Homo erectus
foi o responsável por começar a caçar de
3 Ver Scardia et al. (2020) para uma discussão sobre
evidências mais antigas. fato no início do Pleistoceno. Essa narra-
trabalho demonstra, pelo menos até que solidou a visão mais intuitiva de que essas
algo melhor seja produzido, que a varia- espécies teriam uma alimentação baseada
bilidade encontrada no registro fóssil de em itens muito duros, de difícil processa-
Dmanisi não é expressivamente maior do mento, que só um triturador potente con-
que aquela apresentada pelo Homo sapiens seguiria quebrar, como nozes, sementes
ou pelas duas espécies de chimpanzés, Pan e raízes. Com base nessa visão, alguns
troglodytes e Pan paniscus. indivíduos do grupo chegaram a receber
O sítio de Dmanisi continua sendo in- a alcunha de “quebra-nozes”.
tensivamente escavado pelos georgianos e Somente em 2021 essa hipótese, que
é possível que, nos próximos anos, novos perdurou pelos últimos 60 anos, foi ques-
fósseis da faixa temporal entre 1,8 e 1,75 tionada de forma mais incisiva. Investigan-
milhão de anos venham a ser ali encontra- do a frequência de pequenas quebras nos
dos. Até que isso ocorra, dificilmente as du- dentes (dental chipping), Paul Constantino
as discussões aqui apresentadas avançarão. e Kathryn Konow (2021) contraintuitiva-
mente contestaram a visão vigente. Se-
gundo esses autores, essa técnica permite
PARANTHROPUS
inferir o consumo de alimentos rígidos, na
medida em que esses alimentos seriam os
Desde a descoberta do gênero Paran- causadores das quebras encontradas nos
thropus em 1938 (Broom, 1938), uma de dentes. Assim, quanto maior o número de
suas várias características mais notáveis é quebras, mais frequente o consumo de ali-
o tamanho espantoso dos molares e pré- mentos duros. Com base na visão dos Pa-
-molares, duas vezes o tamanho daqueles ranthropus como potentes trituradores de
de qualquer humano atual. Além dos gran- alimentos duros, o esperado seria encontrar
des dentes posteriores, as três espécies que mais marcas de quebras nos seus dentes
formam o gênero (P. aethiopicus, P. boisei do que naqueles de outros grupos com um
e P. robustus) apresentam de uma forma aparato mastigatório mais humilde, como
ou de outra uma mandíbula robusta, crista os Australopithecus. Constantino e Konow
sagital proeminente e arcos zigomáticos (2021), no entanto, demonstraram não ha-
muito desenvolvidos e lateralizados. Não ver uma maior frequência dessas pequenas
é muito difícil concluir que se trata de quebras dentais entre os P. aethiopicus e P.
indivíduos com intenso poder de masti- boisei (0% e 1,5% dos dentes apresentavam
gação. Além do tamanho da mandíbula e quebras, respectivamente). Na verdade, a
dos dentes, as dimensões da crista sagital frequência observada nessas espécies foi
e dos arcos zigomáticos indicam que essas inclusive menor do que aquela observada
espécies apresentavam músculos relaciona- nos Australopithecus afarensis (4,7%). Va-
dos à mastigação igualmente exagerados. lores ligeiramente mais altos foram obtidos
A partir de tais características, a pró- para o P. robustus (6,1%), entretanto uma
xima pergunta a se responder é sobre a porcentagem parecida foi encontrada entre
alimentação desses indivíduos. Com uma os Australopithecus africanus (5,6%), in-
estrutura mastigatória tão massiva, se con- dicando que os valores podem estar mais
tadas como contas de colar e indicavam últimos anos, o registro de itens simbólicos
a presença de ornamentações corporais já passou a ser estendido também ao Homo
nesse período (D’Errico et al., 2005). A neanderthalensis. Diversos trabalhos vêm
caverna de Blombos, com isso, se tornou relatando o crescente aumento de evidên-
uma referência no desmonte das ideias de cias de simbolismo em sítios arqueológicos
que o simbolismo só teria surgido na Eu- associados a essa espécie, ou em períodos
ropa há 45 mil anos, na medida em que em que somente os neandertais habitavam
mostrava que esses comportamentos apare- a Europa. Estruturas circulares feitas com
ceram muito antes no continente africano. estalagmites e datadas em 176 mil anos
O registro sul-africano continuou mos- foram encontradas a 336 metros da entrada
trando toda sua exuberância em outras da caverna de Bruniquel, na França, região
localidades. Em 2010 e 2013, a caverna privada de qualquer fonte de luz. Seu pro-
de Diepkloof ganhou destaque ao produ- pósito é desconhecido, mas os pesquisado-
zir mais de 400 fragmentos de ovos de res argumentam sobre a possibilidade de
avestruz com claras gravuras geométricas se tratar de um comportamento ritualístico
altamente padronizadas com mais de 100 (Jaubert et al., 2016). Em 2018, um novo
mil anos (Texier et al., 2010; 2013). As estudo datou, com urânio-tório, pinturas
cavernas sul-africanas foram os dois pilares rupestres de três cavernas na Espanha em
na reformulação das teorias sobre o desen- cerca de 65 mil anos (Hoffmann et al.,
volvimento da capacidade simbólica, mas 2018a). A datação dessas pinturas é cru-
obviamente não foram os únicos trabalhos. cial, pois representaria os exemplos mais
Não cessam os estudos que vêm relatando antigos de pinturas rupestres no mundo e,
novos registros simbólicos, consolidando a principalmente, por se tratar de um pe-
visão atual sobre o desenvolvimento dessa ríodo em que o Homo sapiens ainda não
capacidade cognitiva exclusivamente hu- havia chegado à Europa. Não tardou para
mana (Vanhaeren et al., 2019; Miller & surgirem as primeiras críticas ao trabalho,
Wang, 2021; Sehasseh, 2021; Prévost et em especial com relação aos métodos de
al., 2022). Em 2021 a figura de um porco datação das pinturas. Slimak e colaborado-
encontrada em Sulawesi foi datada em 45 res (2018) criticam as datações, levantando
mil anos, tornando-se a pintura rupestre fi- problemas como a contaminação detrítica,
gurativa mais antiga já encontrada (Brumm a fonte do tório utilizado na datação e
et al., 2021). O registro é importante pois outros fatores. Em 2020, outro artigo pon-
desconstrói a visão anterior de que as pin- tuou novas críticas às datações (White et
turas rupestres começaram com desenhos al., 2020). Os autores argumentam que a
abstratos enquanto as figuras representa- técnica pode apresentar problemas pois o
tivas de seres e objetos do mundo real só urânio é sensível a processos de lixiviação,
iriam aparecer milênios depois no registro o que levaria a uma superestimação das
arqueológico. O caso de Sulawesi contraria datas obtidas. Os mesmos autores ainda
essa ideia, mostrando que a pintura mais questionam o espaço de 20 mil anos entre
antiga conhecida feita pela nossa espécie essas possíveis pinturas datadas em 65 mil
já era figurativa. Surpreendentemente, nos anos e as demais pinturas conhecidas, que
fora da África contam com 2-4% de DNA quanto com o Homo neanderthalensis foram
neandertal constituindo seu código genético detectados (Reich et al., 2011; Jacobs et al.,
(Green et al., 2010). A manutenção dessas 2019; Slon et al., 2018). As propostas atu-
porcentagens 40 mil anos após a extinção do ais sugerem que, assim como ocorreu com
Homo neanderthalensis, aliada às evidências o genoma neandertal, diversas populações
do registro arqueológico, retratam um pouco humanas atuais carregam sinais considera-
desse período de integração e miscigenação velmente altos de ancestralidade denisovana.
entre as duas espécies na Eurásia. Mais significativa em populações do Sudeste
Tendo em vista que o contato entre as Asiático, a porcentagem de DNA denisova-
duas espécies ocorreu após a saída do Homo no em grupos atuais chega aos 6% (Larena
sapiens da África e que não há nenhuma et al., 2021). Outra contribuição inesperada
evidência de que o Homo neanderthalensis da obtenção do genoma desse grupo foi a
tenha entrado no continente africano, solidi- identificação de fluxo gênico entre deniso-
ficou-se a ideia de que as populações atuais vanos e neandertais. Além desses eventos
africanas estariam isentas dessa contribui- de miscigenação, foram encontrados também
ção gênica neandertal. Contraintuitivamen- traços de uma possível quarta população, até
te, entretanto, trabalhos atuais encontraram então desconhecida, que teria contribuído
quantidades inesperadas dessa ancestralidade com o material genético dos denisovanos
em território africano (Chen et al., 2020). (Prufer et al., 2014).
Nos últimos anos, a paleogenética con- Além da descoberta e da caracterização
tinuou a revelar alguns segredos sobre nos- desses momentos de intercâmbio gênico, a
sa linhagem. Em 2010, o sequenciamento próxima fronteira nesse conhecimento tem
do genoma de uma falange encontrada na sido mapear as dinâmicas do encontro entre
Sibéria foi responsável por identificar uma as diferentes populações.
nova espécie hominínia, os denisovanos, já Com a ampliação da biblioteca genética
apresentados anteriormente. Não conhecidos desses hominínios, a partir do sequencia-
de uma perspectiva morfológica, visto que mento de genomas de novos fósseis e da sua
há pouquíssimos fósseis da espécie, os deni- posterior investigação detalhada, fica claro
sovanos foram descobertos ao se comparar que essa troca genética interespecífica não
o DNA extraído da falange com o DNA de foi um evento raro. Pelo contrário, cada vez
sapiens e neandertais. Para a surpresa dos mais eventos de miscigenação estão sen-
autores, o novo genoma não pertencia a ne- do identificados no registro arqueológico.
nhuma das duas espécies, indicando se tratar Eventos de introgressão genética parecem
de algo ainda desconhecido pela ciência. ter ocorrido em diferentes períodos e em
Após a consolidação desse genoma como diferentes regiões geográficas (Villanea et
uma nova espécie hominínia, os denisovanos al., 2019; Jacobs et al., 2019; Taskent et al.,
mostraram um trajeto muito semelhante ao 2020). Nesse sentido, a intensa hibridização
do Homo neanderthalensis. Isso se deu pois, ocorrida no final do Pleistoceno não foi um
na medida em que avançavam os trabalhos processo homogêneo.
envolvendo o seu código genético, processos De forma geral, nos últimos anos, os
de miscigenação tanto com o Homo sapiens neandertais e os denisovanos ganharam
REFERÊNCIAS
LARENA, M. et al. “Philippine Ayta possess the highest level of Denisovan ancestry in the
world”. Current Biology, vol. 31, 2021.
LORDKIPANIDZE, D. et al. “A complete skull from Dmanisi, Georgia, and the evolutionary
biology of early Homo”. Science, vol. 342, 2013.
LORDKIPANIDZE, D. et al. “A fourth hominin skull from Dmanisi, Georgia”. Anat. Rec.,
vol. 288 (A), 2006.
MACCHIARELLI, R. et al. “Nature and relationships of Sahelanthropus tchadensis”. Journal
of Human Evolution, vol. 149, 2020.
MCBREARTY, S.; BROOKS, A. S. “The revolution that wasn’t: a new interpretation of the
origin of modern human behavior”. Journal of Human Evolution, vol. 39, 2000.
MCPHERRON, S. P. et al. “Evidence for stone-tool-assisted consumption of animal tissues
before 3.39 million years ago at Dikika, Ethiopia”. Nature, vol. 466, 2010.
MGELADZE, A. et al. “Hominin occupations at the Dmanisi site, Georgia, Southern
Caucasus: Raw materials and technical behaviours of Europe’s first hominins”. Journal
of Human Evolution, vol. 60, 2011.
MILLER, J. M.; WANG, Y. V. “Ostrich eggshell beads reveal 50,000-year-old social network
in Africa”. Nature, vol. 601, 2022.
NEVES, W.; JUNIOR, M. J. R.; MURRIETA, R. S. S. Assim caminhou a humanidade. São Paulo,
Palas Athena, 2015.
NI, X. et al. “Massive cranium from Harbin in northeastern China establishes a new
Middle Pleistocene human lineage”. The Innovation, vol. 2, 2021.
PRÉVOST, M. et al. “Early evidence for symbolic behavior in the Levantine Middle
Paleolithic: A 120 ka old engraved aurochs bone shaft from the open-air site of
Nesher Ramla, Israel”. Quaternary International, vol. 624, 2022.
PRUFER, K. et al. “The complete genome sequence of a Neanderthal from the Altai
Mountains”. Nature, vol. 505, 2014.
REICH, D. et al. “Denisova admixture and the first modern human dispersals into
Southeast Asia and Oceania”. The American Journal of Human Genetics, vol. 89, 2011.
REICH, D. et al. “Genetic history of an archaic hominin group from Denisova Cave in
Siberia”. Nature, vol. 468, 2010.
ROACH, N. T. et al. “Elastic energy storage in the shoulder and the evolution of high-
speed throwing in Homo”. Nature, vol. 498, 2013.
SANKARARAMAN, S. et al. “The genomic landscape of Neanderthal ancestry in present-
-day humans”. Nature, vol. 507, 2014.
SCARDIA, G. et al. “Chronologic constraints on hominin dispersal outside Africa since
2.48 Ma from the Zarqa Valley, Jordan”. Quaternary Science Reviews, vol. 219, 2019.
SCARDIA, G. et al. “What kind of hominin first left Africa?”. Evolutionary Anthropology,
2020.
SCERRI, E. M. L. et al. “Did our species evolve in subdivided populations across Africa,
and why does it matter?”. Trends in Ecology & Evolution, vol. 33, 2018.
SCHWARTZ, J. H.; TATTERSALL, I.; CHI, Z. “Comment on ‘A complete skull from Dmanisi,
Georgia, and the evolutionary biology of early Homo’”. Science, vol. 344, 2014.
SCOTT, R. S. et al. “Dental microwear texture analysis shows within-species diet
variability in fossil hominins”. Nature, vol. 436, 2005.
SEHASSEH, E. M. “Early Middle Stone Age personal ornaments from Bizmoune Cave,
Essaouira, Morocco”. Science Advances, vol. 7, 2021.
WRANGHAM, R. W. et al. “The raw and the stolen: Cooking and the ecology of human
origins”. Current Anthropology, vol. 40, 1999.
ZANOLLI, C. et al. “Further analyses of the structural organization of Homo luzonensis
teeth: Evolutionary implications”. Journal of Human Evolution, vol. 163, 2022.
ZHANG, D. et al. “Denisovan DNA in Late Pleistocene sediments from Baishiya Karst Cave
on the Tibetan Plateau”. Science, vol. 370, 2020.
ZHU, Z. et al. “Hominin occupation of the Chinese Loess Plateau since about 2.1 million
years ago”. Nature, vol. 559, 2018.
ZOLLIKOFER, C. et al. “Virtual cranial reconstruction of Sahelanthropus tchadensis”. Nature,
vol. 434, 2005.