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Resenha do livro “O Rosto de Deus” de Roger Scruton

Por Jefferson Cavalcante


A leitura do livro “O Rosto de Deus” foi meu primeiro contato literário com o filósofo
britânico Roger Scruton. Embora eu goste de ler assuntos diversos, filosofia não é um
assunto cuja leitura é fácil, sobretudo quando se trata de uma filosofia profunda e
elaborada como a de Scruton.
Se eu tivesse que resumir a obra em uma palavra, eu escolheria “SUBJETIVIDADE”. A
meu ver, este é o tema central do livro, haja vista que, ao tratar do rosto, o autor revela
que o papel deste é conferir subjetividade aos indivíduos.
A obra é dividida em seis capítulos.
No primeiro, intitulado “A vista de lugar nenhum”, o autor faz um passeio pelas ideias e
concepções acerca de Deus e ressalta o quanto a cultura moderna tenta “distanciar-se” da
figura divina.
“Vou considerar algumas das consequências da cultura ateísta que cresce à nossa volta
e sugerir que este não é apenas um fenômeno intelectual, que expressa uma descrença
em Deus, mas também um fenômeno moral, que envolve um distanciar-se de Deus” (p.
17)
A expressão “lugar nenhum” presente no título do capítulo refere-se à ideia metafísica e
transcendente de Deus. Esse caráter “imaterial” poderia favorecer um distanciamento do
homem em relação à divindade, entretanto, segundo Scruton, isto é superado pela
experiência religiosa. Para ele, a religião permite transferir essas especulações metafísicas
acerca da natureza divina para a nossa realidade concreta, através do relacionamento com
os semelhantes. A comunhão entre os membros da comunidade projeta, no nosso mundo
imanente, a figura do Deus transcendente, a respeito do qual os filósofos e teólogos falam
desde tempos muito remotos.
“A comunidade religiosa adapta a perspectiva de lugar nenhum, que é a perspectiva de
Deus, à perspectiva de algum lugar, que é a nossa.” (p. 42)
O foco do capítulo 2, intitulado “A perspectiva de algum lugar”, é destacar a subjetividade
do ser humano.
No início, o autor aborda o senso de moralidade dos seres humanos. Para os
evolucionistas, o senso de moralidade é uma adaptação, fruto de um processo evolutivo.
Desta forma, essa característica decorrente de instintos, também está presente nos animais
de modo semelhante ao modo em que ocorre nos seres humanos. Entretanto, Scruton
discorda dessa ideia, defendendo que a moralidade presente em todos os seres humanos
não se assemelha ao aparente senso moral resultado dos instintos animais. Ele se opõe às
ideias da psicologia evolutiva e da neurociência que tentam transformar o ser humano em
um mero objeto cujas características psicológicas decorrem de processos evolutivos ou
cujas ações são resultados de impulsos neurais.
Scruton aborda o que ele chama de “perspectiva de algum lugar”, parafraseando Thomas
Nagel. Esse algum lugar é o “eu”. Essa perspectiva é marcada pela subjetividade,
característica que concede ao ser humano um caráter pessoal, relacional. À perspectiva
da primeira pessoa (eu), acrescenta-se uma segunda pessoa (você), com quem a primeira
se relaciona. Ele aborda essa relação “eu-você”, que nos permite ter um vislumbre da
relação entre o homem e Deus. Por se tratar de um ser pessoal, e, portanto, relacional, o
homem pode se relacionar com Deus, que é igualmente pessoal.
No terceiro capítulo, intitulado “onde estou?”, Scruton aborda a pessoalidade e a
subjetividade, analisando aquilo que nos diferencia no uns dos outros, aquilo que nos
confere individualidade. Ele finaliza o capítulo destacando o papel do rosto na nossa
caracterização como sujeitos no “mundo dos objetos”.
No capítulo seguinte, o autor aborda “o rosto da pessoa” (título do capítulo) e a forma
como ele expressa a individualidade de cada ser humano. O rosto, sobretudo a boca e os
olhos, tem um papel fundamental na expressão de quem o outro é. E quando nos referimos
a quem essa pessoa é, estamos nos referindo à imagem que nós formamos, imagem esta
que pode estar bem distante do caráter real do outro. O rosto nos mostra o outro que nós
enxergamos.
“Talvez a individualidade do outro resida meramente na nossa maneira de vê-lo e tenha
pouco ou nada a ver com sua maneira de ser.” (p. 128)
Scruton faz ainda uma análise interessante acerca do estupro e da pornografia. Essas duas
coisas, ao negligenciarem o rosto, negligenciam os sujeitos, transformando-os em meros
objetos. Ele cita também os artistas pop e os(as) modelos exercem suas profissões,
desprezando o rosto e exaltando o corpo.
“A tendência subjacente das imagens eróticas de nossa época é mostrar o corpo como
foco e sentido do desejo, o lugar onde tudo ocorre, no espasmo momentâneo de prazer
sensual em que a alma é, na melhor das hipóteses, uma espectadora e não parte do jogo.
Na pornografia, o rosto não tem um papel a desempenhar exceto o de ser submetido ao
império do corpo. Os beijos não têm importância, e os olhos olham para o nada, já que
não buscam nada além do prazer imediato. Tudo isso corresponde a uma marginalização
- efetivamente uma profanação - do rosto humano. E essa profanação do rosto é também
uma anulação do sujeito. O sexo, na cultura pornográfica, não é uma relação entre
sujeitos, mas uma relação entre objetos. E qualquer coisa que possa entrar para impedir
essa concepção de ato sexual - o rosto em particular - tem de ser coberta, desfigurada
ou cuspida, como se fosse uma intrusão inconveniente do juízo numa esfera em que tudo
acontece.” (p. 144-145)
O penúltimo capítulo é intitulado “O rosto da Terra”. Nele, Scruton tenta analisar o
porquê de considerarmos alguns locais como sagrados. Ela fala ainda que a nossa
consciência ambiental, o nosso desejo de preservar o planeta tem raízes religiosas. Isso
tem relação com o mandato cultural dado a Adão e Eva, expresso no livro de Gênesis,
por meio do qual Deus ordena que eles cuidem da Terra.
O autor nos incentiva ainda a enxergar a subjetividade do mundo, negando a ideia da
Terra como um mero objeto do qual usufruímos. A Terra carrega história, identidade,
beleza e tudo isso reflete uma identidade que não é própria de objetos.
A ideia de rosto da Terra está relacionada ao senso de beleza estética. O mundo tem um
rosto que é desfigurado quando modificamos o espaço, removendo dele a beleza.
O sexto (e último) capítulo aborda “o rosto de Deus”. O capítulo começa tratando da
separação entre o ser humano e o mundo transcendental. O homem carrega em si anseios
por uma realidade sobrenatural.
O filósofo defende que o rosto de Deus se tornou visível na encarnação, sobretudo por
meio do sacrifício de Cristo. Para ele, um sacrifício que alguém faz em prol de outrem
exibe o rosto de Deus entre nós. O amor ágape, despretensioso e abnegado, que tem
origem em Deus é manifestado no meio de nós quando nos sacrificamos. É por meio do
sacrifício que refletimos a imagem de Deus.
Como eu destaquei no início, não se trata de um livro de fácil compreensão, entretanto é
uma leitura extremamente interessante. A meu ver, Scruton faz um excelente trabalho ao
mostrar o rosto de Deus em nosso mundo.
Pelo fato de eu e o autor enxergamos a realidade a partir de perspectivas distintas (eu sou
cristão e ele não), em alguns momentos, tive que discordar do pensamento por ele
apresentado. Todavia, em linhas gerais, a obra apresentou argumentos e apontamentos
que fortaleceram a minha cosmovisão cristã, enriquecendo-a em muitos aspectos. Desta
forma, recomendo a leitura da obra.

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